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geoges perec jorge luis borgesTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSITE CHARLES-DE-GAULLE LILLE 3 U.F.R DE LETTRES MODERNES
Jacques Fux
A MATEMTICA EM GEORGES PEREC E JORGE LUIS BORGES:
UM ESTUDO COMPARATIVO
Belo Horizonte
2010
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Jacques Fux
A MATEMTICA EM GEORGES PEREC E JORGE LUIS BORGES:
UM ESTUDO COMPARATIVO
Tese apresentada ao Curso de Ps-Graduao
em Estudos Literrios da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG e Universit Charles-de-Gaulle Lille 3, como requisito parcial obteno dos
ttulos de Doutor em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais e Docteur en Langue
et littrature franaises pela Universit
Charles-de-Gaulle Lille 3.
rea de Concentrao: Literatura Comparada
Linha de Pesquisa: Literatura e outros
Sistemas Semiticos
Orientadores: Profa. Dra. Maria Esther Maciel
Borges (Universidade Federal de Minas
Gerais)
Profa. Dra. Christelle Reggiani
(Universit Charles-de-Gaulle Lille 3)
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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Ficha catalogrfica elaborada pelos Bibliotecrios da Biblioteca FALE/UFMG
Fux, Jacques. P434.Yf-m A matemtica em Georges Perec e Jorge Luis Borges [manuscrito]
: um estudo comparativo / Jacques Fux. 2010. 249 f., enc. : il., color., p & b.
Orientadores : Maria Esther Maciel Borges, Christelle Reggiani.
rea de concentrao : Literatura Comparada.
Linha de Pesquisa : Literatura e Outros Sistemas Semiticos.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Letras.
Tese (doutorado) Universit Charles de Gaulle Lille III, UFR
Lettres Modernes.
Bibliografia: f. 221-222.
Anexos: f. 223-249.
1. Perec, Georges, 1936-1982. Crtica e interpretao Teses. 2. Borges, Jorge Luis, 1899-1986 Crtica e interpretao Teses. 3. Literatura comparada Francesa e argentina Teses. 4. Literatura comparada Argentina e francesa Teses. 5. Matemtica e literatura Teses. 6. Cabala Teses. 7. Fico francesa Histria e crtica Teses. 8. Fico argentina Histria e crtica Teses. 9. Semitica e literatura Teses. 10. Judasmo na literatura Teses. 11. Oulipo (Associao) Teses. I. Borges, Maria Esther Maciel. II. Reggiani, Christelle. III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. IV. Universit Charles de Gaulle Lille III. V. Ttulo. CDD: 843.912
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e ao meu irmo por tudo.
Maria Esther pela oportunidade e pela brilhante orientao.
Christelle Regianni pelas orientaes e pela leitura sempre atenta.
Ao CNPq e Capes pelas bolsas de estudo no Brasil e na Frana.
E a todos aqueles que, como eu, diante da beleza da literatura, se maravilham, sonham e
vibram intensamente.
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Viver muito perigoso.
Joo Guimares Rosa
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SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................................. 11
1 MATEMTICA E LITERATURA .......................................................................... 18
1.1 OULIPO ..................................................................................................................... 20
1.2 OULIPO e o Projeto de Hilbert ............................................................................... 26
1.3 Raymond Queneau e Cent mille milliards de pomes ........................................... 31
1.4 Franois Le Lionnais Les manifestes ................................................................... 33
1.5 Italo Calvino .............................................................................................................. 39
1.6 Jacques Roubaud ..................................................................................................... 43
1.7 Outros autores .......................................................................................................... 49
1.7.1 O trovador Arnaut Daniel ....................................................................................... 49
1.7.2 Miguel de Cervantes ................................................................................................ 54
1.7.3 Lewis Carroll ........................................................................................................... 56
1.7.4 Edgar Allan Poe ..................................................................................................... 58
1.7.5 Julio Verne .............................................................................................................. 60
1.7.6 Samuel Beckett ........................................................................................................ 61
2 GEORGES PEREC E RELAES BORGIANAS .............................................. 63
2.1 A vida modo de usar ou mquina de contar histrias ........................................... 67
2.1.1 Bicarr latin orthogonal dordre 10 ....................................................................... 73
2.1.2 Pseudo-Quenine dordre 10 de Perec ..................................................................... 78
2.1.3 La polygraphie du cavalier ..................................................................................... 81
2.1.4 As citaes de Borges em A vida modo de usar ..................................................... 84
2.2 Outros livros e a utilizao do carr e de sua simetria bilateral .......................... 90
2.3 A Histria do lipograma e a Cabala .................................................................... 95
2.4 Laugmentation e Le petit trait invitant lart subtil du go .............................. 99
2.5 Jeux intressants e Nouveaux jeux intressants ..................................................... 103
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3 BORGES, MATEMTICA E RELAES PERECQUIANAS ........................ 105
3.1 Matemtica e imaginao em Borges ................................................................... 110
3.1.1 O tamanho d' A biblioteca de Babel ................................................................. 119
3.1.2 A enumerao em O livro de areia e O Aleph ............................................. 121
3.1.3 Os sistemas de numerao de John Wilkins, Pierre Menard e Tln .................... 123
3.2 Recursos lgicos e matemticos em A morte e a bssola ............................... 129
3.3 Borges e a Fsica .................................................................................................... 133
3.4 Xul Solar (e o xadrez) e Adolfo Bioy Casares (e os contos policiais) ................ 136
3.5 O judasmo e a Cabala em Borges e Perec .......................................................... 143
4 BORGES E PEREC ................................................................................................. 152
4.1 Plagiadores por antecipao e Kafka e seus precursores ............................... 155
4.2 Classificaes .......................................................................................................... 161
4.2.1 Uma classificao especial John Wilkins .......................................................... 165
4.3 A ideia do labirinto em Borges, em Perec e na matemtica ............................... 170
4.4 Georges Perec e Jorge Luis Borges: nmeros, filosofia e matemtica .............. 175
4.5 A viagem de inverno e os contos borgianos ..................................................... 186
4.6 Algumas consideraes acerca do leitor em Perec, em Borges e no OULIPO .. 192
4.7 A fico e a matemtica em Borges e Perec .......................................................... 195
5 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 197
REFERNCIAS ............................................................................................................ 201
ANEXO A Axiomas de Euclides .............................................................................. 223
ANEXO B Proposies, conjecturas e axiomas de Roubaud ................................. 226
ANEXO C Poema de Arnaut Daniel ....................................................................... 227
ANEXO D Tabelas de contraintes da A vida modo de usar .................................. 228
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LISTA DE FIGURAS
1 Quadrado Mgico ................................................................................................... 42
2 Espirais de ordem 6 e n .......................................................................................... 51
3 O prdio e os deslocamentos do cavalo ................................................................. 82
4 Organograma de L'augmentation ........................................................................... 102
5 Aquiles x Tartaruga ................................................................................................ 115
6 Diagonal de Cantor ................................................................................................ 122
7 Superfcies A e B ................................................................................................... 171
8 Grafos A e B .......................................................................................................... 172
9 The serial universe, de Dunne ................................................................................ 184
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LISTA DE TABELAS
1 Trajeto dos atores em Quad I + II ......................................................................... 62
2 Entrada dos atores em Quad I + II ........................................................................ 62
3 Exemplo de bicarr ortogonal de ordem 3 ............................................................ 74
4 Cahier de charges de A vida modo de usar .......................................................... 75
5 Tabuleiro de xadrez 10 x 10 ................................................................................... 76
6 Contraintes posio e atividade de A vida modo de usar ...................................... 77
7 42 contraintes ......................................................................................................... 77
8 Formas de utilizao da matemtica por Borges e Perec ....................................... 153
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RESUMO
Esta tese prope o estudo das relaes entre matemtica e literatura nas obras de Georges
Perec e Jorge Luis Borges. O objetivo deste trabalho , inicialmente, defender a ideia de que
Borges um plagirio por antecipao do Oulipo e que, segundo as teorias oulipianas, ele
um escritor potencial. Num segundo momento, procura-se demonstrar que quanto mais amplo
o conhecimento da matemtica, maior a possibilidade de criar e ler textos que utilizam
contraintes e conceitos matemticos, caracterstica comum a Borges e Perec. Por fim,
mostrando as diferenas e semelhanas entre os dois escritores, defendemos a tese de que
estes dois autores, de origem, criao e literatura diferentes, podem ser ligados pela via da
matemtica, das classificaes e da teoria literria de precursores. Pode-se afirmar que as
relaes de Perec e Borges com a matemtica so superficiais, uma vez que, apesar de sua
frequente utilizao, ambos conheciam da mesma apenas algumas estruturas e conceitos
bsicos. Alm disso, possvel encontrar tambm uma relao, similar que existe entre a
utilizao da matemtica nos dois escritores, entre os contos cabalsticos de Borges e a
utilizao da Cabala por Perec. Perec utilizou uma estrutura cabalstica, enquanto Borges
empregou os conceitos cabalsticos para criar sua fico. As possibilidades de leitura,
interpretao e combinao se encontram nas obras dos dois escritores. Portanto, acreditamos
que conhecendo a matemtica, possvel compreender e interpretar melhor certos escritos de
Jorge Luis Borges e Georges Perec.
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RSUM
Cette thse propose ltude des rapports entre la mathmatique et la littrature chez Jorge Luis
Borges et chez Georges Perec. Le but de ce travail est, dabord, de soutenir la thse que
Borges est un plagiaire par anticipation de lOulipo et quil est un crivain potentiel selon les
thories oulipiennes. Ensuite, notre thse se propose de dmontrer que les connaissances
mathmatiques les plus rpandues permettent de composer un texte riche et fond sur des
contraintes mathmatiques, ce que Borges et Perec ont trs bien fait. Finalement, en montrant
les ressemblances entre Borges et Perec, on soutient la thse que deux crivains dorigine, de
cration et de littratures diffrentes peuvent tre lis par leur rapport la mathmatique, aux
classifications et la thorie littraire des prcurseurs. Le rapprochement de la dmarche
perecquienne et borgesienne de la mathmatique est bien sr nuancer dans la mesure o
Perec et Borges taient tout fait ignorants des mathmatiques, et il est donc difficile de dire
quil a vritablement mis en uvre des concepts ou des rsultats mathmatiques. On peut
retrouver aussi un rapport entre les nouvelles kabbalistiques de Borges et lutilisation de la
Kabbale par Perec quest similaire celui qui existe entre lutilisation de la mathmatique
chez les deux auteurs. Perec utilise une structure kabbalistique et Borges met en uvre les
concepts kabbalistiques pour faire sa fiction. Lutilisation de la mathmatique pour aider
lcriture peut tre perue chez Borges et chez Perec. Les possibilits de lecture, les
interprtations et la combinatoire se trouvent dans les uvres de ces deux auteurs. En
connaissant la mathmatique, on peut mieux comprendre et interprter certains crits de Perec
et de Borges.
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INTRODUO
Esta tese faz um estudo comparativo das obras de Jorge Luis Borges e Georges
Perec luz da matemtica caracterizada pelo estudo de padres de quantidade (conceito de
enumerao), estrutura, mudanas e espao , buscando identificar pontos de articulao entre
ambos os escritores. Tendo em vista o campo da literatura, a matemtica aqui utilizada tem
tambm como objetivo discutir e apresentar problemas do senso comum de ordem lgica,
como os paradoxos, as ambiguidades e os jogos combinatrios, muitas vezes tomados como
recursos predominantemente ficcionais, mas que tm em seus fundamentos questes de
cunho matemtico centrais para o desenvolvimento de uma determinada literatura.1 Assim,
conjecturamos que quanto maior o conhecimento de recursos, tcnicas e conceitos
matemticos, maior a potencialidade de escrita segundo contraintes e maior a possibilidade de
utilizao de recursos ficcionais.2
Por que os jogos combinatrios aumentam a potencialidade e a possibilidade de
leitura? Dois leitores, diante do mesmo texto ou poema, teriam diferentes e potenciais tipos de
leitura. E se esses textos ainda pudessem ser permutados, mudados, jogados, falsificados,
ludibriados, haveria inmeras outras possibilidades, alm da leitura bsica e distinta de cada
leitor. A partir de algoritmos, regras, restries e contraintes, potenciais leituras seriam
cabveis. Esta a inveno e contribuio do OULIPO, de Georges Perec e, como
demonstraremos posteriormente, de Jorge Luis Borges.
Um contrainte pode ser entendido como uma restrio inicial imposta escrita de
um texto ou livro, sendo as mais bsicas de carter lingustico. Existem, porm, outras
restries artificiais, que podem ser de carter matemtico, como as sugeridas pelos
fundadores do grupo francs OULIPO, criado em 1960 pelo matemtico Franois Le Lionnais
e pelo escritor, enciclopedista e matemtico amador Raymond Queneau.3 O OULIPO trabalha
1 Os conceitos que sero apresentados, como o tema infinito, os temas oulipianos e os paradoxos clssicos,
fazem com que os leitores inocentes pensem estar trabalhando somente com argumentos ficcionais, quando, na
verdade, esto discutindo conceitos importantes e teorias inovadoras da matemtica. O leitor, tanto em Borges
quanto em Perec, precisa ser um leitor laborioso, disposto a buscar os mistrios e quebra-cabeas presentes nos textos. 2 Destacamos aqui a matemtica por ser a relao entre esta e a literatura o objeto principal desta pesquisa.
Entretanto, o argumento vlido para outros campos do conhecimento: o caso da Cabala, sobre a qual Borges e
Perec conheciam alguns aspectos, e cuja utilizao aumenta as possibilidades de leitura e a aplicao da
matemtica em suas obras.
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tanto com as restries matemticas quanto com outros tipos de restries: dado um tema, os
integrantes do grupo discutem e compem textos, livros e pequenos manuscritos com essa
restrio inicial. Nesta tese, entretanto, nos dedicaremos apenas aos contraintes matemticos
ou que podem ser relacionados a alguma estrutura ou conceito matemtico, e que de alguma
maneira estejam vinculados aos trabalhos de Borges e Perec.
Unir matemtica e literatura pode ser uma forma de utilizar a cincia como uma
nova lgica, um novo conceito, uma nova sustentao e potencialidade da literatura, como
escreve Italo Calvino em Seis propostas para o prximo milnio:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para
mim mesmo que maneira de Perseu eu devia voar para outro espao. No
se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que
preciso mudar de ponto de observao, que preciso considerar o mundo sob
uma outra tica, outra lgica, outros meios de conhecimento. [...] No
universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar,
novssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa
imagem do mundo [...]. Mas se a literatura no basta para me assegurar que
no estou apenas perseguindo sonhos, ento busco na cincia alimento para
as minhas vises das quais todo pesadume tenha sido excludo (CALVINO,
1990a, p.19-20).
Ao mesmo tempo, esta tese procura mostrar que Borges pode ser interpretado
como um escritor oulipiano, e que a matemtica utilizada por ele e por Perec, embora com
caractersticas diferentes, tem o mesmo objetivo: aumentar as possibilidades de escrita e
leitura de seus argumentos ficcionais e ensasticos.
Ao longo deste trabalho sero apresentadas diversas interpretaes matemticas
dos textos de Jorge Luis Borges e Georges Perec. O objetivo da explicao, simples e
didtica, de alguns conceitos e estruturas matemticas, provar uma das hipteses desta tese:
que conhecer um pouco de matemtica aumenta as possibilidades de leitura da produo
textual desses autores. Assim, as escolhas de temas, assuntos e textos no so casuais: ou eles
tm alguma relao com a matemtica ou traam um paralelo entre estratgias narrativas de
Borges e Perec.
Ainda pouco conhecido do pblico brasileiro, Georges Perec nasceu em 1936, na
cidade de Paris, onde viveu a maior parte de sua vida, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Seu
pai lutou na Segunda Guerra Mundial, sendo morto em 1940, e sua me morreu em
Auschwitz. Perec, rfo aos seis anos, foi criado por parentes prximos. Sua obra tem incio
3 Podemos pensar, tambm, em contraintes tecnolgicos: o twitter um site de internet que impe a restrio de
publicao de textos com at 140 caracteres. Seguindo este contrainte e sua repercusso no ambiente virtual, a
Academia Brasileira de Letras lanou, no dia 15 de Maro de 2010, o Concurso Cultural de Microcontos.
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em 1965, com o romance As coisas (PEREC, 1969b), seguido por Quel petit vlo guidon
chrom au fond de la cour? (PEREC, 2002b), Um homem que dorme (PEREC, 1988) e La
disparition (PEREC, 1969a) este ltimo, j escrito aps sua entrada no OULIPO.
A obra de Perec pode ser lida por meio de muitas oposies: homogeneidade ou
heterogeneidade; tendncia ao pleno ou ao vazio; completude ou incompletude; obra
melanclica de um rfo frente a uma histria irrecupervel ou obra elaborada pacientemente
por um colecionador obstinado e um elaborador de puzzles; Jules Verne ou Franz Kafka;
Barnabooth ou Bartleby (JOLY, 2004). Essa dualidade est sempre presente na obra de Perec,
possibilitando seu enquadramento na categoria do inclassificvel e do hbrido.4 Assim Perec
descreve sua ambio como escritor, que pode ser relacionada obra de Borges, j que ele de
fato percorreu toda a literatura e escreveu inmeros e inclassificveis contos:
Se eu tento definir o que procurei fazer desde que comecei a escrever, a
primeira ideia que me vm que jamais escrevi dois livros iguais. [...] Minha
ambio de escrever seria a de percorrer toda a literatura do meu tempo sem
jamais ter o sentimento de voltar nos meus passos ou de caminhar
novamente pelos meus prprios traos e de escrever tudo o que possvel a
um homem de hoje escrever: livros grandes e curtos, romances, poemas,
dramas, livretos de pera, romances policiais, romances de aventura,
romances de fico cientfica, folhetos, livros para crianas (PEREC apud
BURGELIN, 1988, p.11).5
Em 1980, Perec escreveu um pequeno prefcio para um livro de Pierre Marly
chamado Les lunettes, que pode ser encontrado, tambm, em seu livro Penser/Classer, sob o
ttulo Considrations sur les lunettes, o qual termina assim:
H um certo nmero de coisas que sei que a partir de agora no farei mais.
infinitamente pouco provvel que eu v um dia lua, que eu viaje em um
submarino ou que aprenda chins, saxofone ou ergodique, mesmo que tenha
muita vontade s vezes. fortemente pouco provvel que me torne um
oficial da ativa, estivador em Vale Paraso, procurador de um grande banco,
buraliste, explorador agrcola ou presidente da Repblica. Entretanto,
quase certo que um dia, como um tero dos franceses, eu usarei culos. Meu
msculo ciliar, que comanda as modificaes da curvatura do cristalino,
perder pouco a pouco sua elasticidade e meu olho, a partir de ento, no
4 Aqui j podemos observar a construo de um primeiro paradoxo, uma vez que colocamos numa categoria de
classificao o inclassificvel. 5 Todas as tradues utilizadas na tese so de minha autoria. Si je tente de dfinir ce que jai cherch faire depuis que jai commenc crire, la premire ide qui me vient lesprit est que je nai jamais crit deux livres semblables. [...] Mon ambition dcrire serait de parcourir toute la littrature de mon temps sans jamais avoir le sentiment de revenir sur mes pas ou de remarcher dans mes propres traces, et dcrire tout ce qui est possible un homme daujourdhui dcrire: des livres gros et des livre courts, des romans et des pomes, des drames, des livrets dopra, des romans policiers, des romans daventures, des romans de science-fiction, des feuilleton, des livres pour les enfants.
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ser mais capaz de acomodao. Esse processo se produz, digamos, em
todos os adultos a partir de 45 anos, e eu tenho 44 anos e meio (PEREC,
1985, p.150).6
Nessa passagem, Perec escreve sobre alguns dos seus desejos que no sero
realizados. Pouco depois, aos 46 anos, morre em virtude de um cncer de pulmo, sem a
necessidade de usar culos.
Por outro lado, Jorge Luis Borges, tradutor, crtico e escritor, viveu at os 87 anos.
Nasceu em 1899, em Buenos Aires, e morreu em 1986, em Genebra. Mestre da escrita breve,
condensa em poucas pginas uma riqueza de pensamentos filosficos, literrios, poticos,
intertextuais, hipertextuais, ficcionais e conceitos matemticos. Abre o texto para o infinito e
inverte, trapaceia e muda conceitos preestabelecidos (CALVINO, 1993). Uma de suas
estratgias mais importantes, parte da inveno de si mesmo como narrador, a de passar da
prosa ensastica para a prosa narrativa, fingindo que o livro que desejava escrever j havia
sido escrito por um outro escritor hipottico, el otro, de outra cultura e com outra viso do
mundo, ou dos mundos possveis. Nas palavras de Italo Calvino:
O vivido valorizado por quanto ele ir inspirar na literatura ou por quanto,
a seu modo, repete arqutipos literrios: por exemplo, entre uma empresa
herica ou temerria num poema pico e uma empresa anloga vivida na
histria antiga ou contempornea existe uma troca que conduz a identificar e
comparar episdios e valores do tempo escrito e do tempo real. Neste quadro
se situa o problema moral, sempre presente em Borges como um ncleo
slido na fluidez e potencial de intercmbio dos cenrios metafsicos. [...] Na
perspectiva borgiana, que exclui qualquer espessura psicolgica, o problema
da moral aflora simplificado quase nos termos de um teorema geomtrico,
em que os destinos individuais formam um desenho geral que toca a cada um
reconhecer menos ainda que escolher (CALVINO, 1993, p.249).
Assim como Perec, Borges um generalista: um homem que se aproxima de
diversos livros, culturas e reas do conhecimento com o intuito de adquirir mais ferramentas
ficcionais. Como no tem nenhuma pretenso especializao, ele se vale das enciclopdias,
no s como uma reduo de modelo, mas tambm como pardia da busca de conhecimentos
variados (MONEGAL, 1983). Alm disso, ambos, na infncia, tiveram dificuldades com a
6 Il y a un certain nombre de choses dont je sais que dsormais je ne le ferai sans doute plus. Il est infiniment peu probable que jaille un jour sur la lune, que je voyage en sous-marin ou que japprenne le chinois, le saxophone ou lergodique, mme si jen ai parfois trs envie. Il est fort peu probable que galement que devienne un jour officier dactive, dbardeur Valparaiso, fond de pouvoir dune grande banque, buraliste, exploitant agricole ou prsident de la Rpublique. Par contre, il est peu prs certain quun jour, comme, parat-il, un tiers des Franais, je porterai des lunettes. Mon muscle ciliaire, qui commande les modifications de
courbure du cristallin, perdra petit petit son lasticit et mon il, ds lors, ne sera plus capable daccommodation. La chose se produit, dit-on, chez tous les adultes partir de 45 ans, et jai 44 ans et demi.
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matemtica, o que no os impediu de utiliz-la em seus trabalhos, como veremos nos
prximos captulos.
A definio e a utilizao da matemtica nesta tese gira em torno das estruturas
empregadas por Perec e pelo OULIPO, e por seus conceitos aplicados em Borges. Porm, o
conceito e a definio de literatura, seja em Borges, Perec ou no OULIPO, so bem mais
complexos. Suas vises acerca da literatura se misturam, se separam e muitas vezes se diluem
ao longo de suas produes. Assim, no temos aqui a pretenso de responder pergunta O
que Literatura?, e sim intentamos fornecer exemplos, conceitos e estruturas presentes nas
obras de Jorge Luis Borges, de Georges Perec e do OULIPO, objetivando entender como a
Literatura pode ser vista sob a tica desses escritores em sua ligao com a Matemtica.
Para Borges, literatura falar e escrever sobre a prpria literatura: sua dignidade
no est na existncia de um grande autor, e sim na conformao de uma grande narrativa.
Assim, por exemplo, no texto Pierre Menard, autor do Quixote (BORGES, 1998n), o
escritor argentino atribui a um autor contemporneo alguns fragmentos da obra de Cervantes,
o que faz com que essa tenha seu significado alterado (MONEGAL, 1980). Georges Perec,
por sua vez, ir ilustrar esse conceito com seu jogo de citaes e plgios, tomando-o como um
contrainte.
Em muitos momentos, Perec escreve que a literatura (assim como a arte do
puzzle) um jogo que se joga a dois, na qual cada forma de leitura foi pensada anteriormente
pelo autor, controlando assim todas as suas possibilidades. Porm, ele prprio discorda e
refuta, o tempo todo, esse jogo entre autor e leitor. Por mais matemtico e estruturado que o
projeto literrio seja, quando a obra alcana o pblico, leitura e recepo no esto mais nas
mos do construtor de puzzles.
O escritor francs discute, tambm, o projeto de totalidade e esgotamento. Assim,
tentando descrever tudo o que se passa em uma praa em Paris, compe o livro Tentative
dpuisement dun lieu parisien (PEREC, 2003a); com o intuito de pensar em todas as
possibilidades de se pedir um aumento ao chefe, escreve A arte e a maneira de abordar seu
chefe para pedir um aumento (PEREC, 2010). Entretanto, Perec est ciente da limitao, e
atravs dessa tentativa absurda da totalidade e do esgotamento, critica qualquer projeto que
tente abarcar o todo. Essa questo est presente tambm em Borges, que em Do rigor na
cincia (BORGES, 1999f), constri uma narrativa no sentido de afirmar e descrever
exaustivamente o mundo, ao ponto de chegar a uma imagem paradoxal de substituio e
destruio do mesmo.
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J em Espces despaces (2000), Perec vai questionar os estratos que sustentam a
oposio binria entre discursos ficcionais e referenciais, e entre narrao e descrio. Ao
empreender o que parece ser a simples descrio e nomeao dos espaos, Perec coloca em
questo as noes mais bsicas e bvias relativas ao assunto. O objeto da descrio, por
vezes, o prprio espao do texto, o que fora o leitor a uma reviso da prpria noo de
descrio, uma vez que nesses momentos no h objeto referencial ou extraliterrio a ser
descrito: o que se descreve o espao mesmo onde a descrio est acontecendo. Perec
preenche, assim, o espao Pgina de todas as formas possveis, muitas vezes de modo
ldico, em outras atribuindo escrita funes simples, porm nunca antes pensadas. Ele
escreve para se percorrer, fazendo-o horizontalmente atravs de citaes e escrevendo
margem da folha. Apresenta tambm o tamanho mdio de uma folha de papel, pensa em
quantos hectares seriam necessrios para imprimir as obras de Alexandre Dumas, afirma que
em qualquer folha possvel narrar pequenos acontecimentos: um encontro, o preenchimento
de um cheque, uma carta administrativa. Faz jogos de palavras e letras, chamando-os ideias.
possvel, ainda nesse pequeno espao, ler o humor, a hora, a preciso de determinada pessoa
na execuo de atividades ordinrias e uma infinidade de elementos, situaes, narraes,
coisas cotidianas e inesperadas.
No OULIPO, o termo literatura sempre discutido juntamente ao termo
potencial, que abordaremos no Captulo 1 desta tese. O objetivo do grupo trabalhar a
literatura potencial, e a potencialidade atingida atravs da utilizao de recursos
combinatrios e contraintes. O OULIPO adota a viso de Raymond Queneau, que afirma que
a literatura no voluntria, ou seja, que toda literatura uma inteno (LE TELLIER, 2006).
Cada membro do grupo tem liberdade para buscar sua prpria resposta s perguntas Por que
escrever? e O que literatura?. Entretanto, na maioria das vezes, a pergunta mais cabvel
aos oulipianos tem um sentido pragmtico: Como voc escreveu um dos seus livros? Ora,
se escrever uma inteno, ler requer a ateno do leitor. O leitor oulipiano , assim, um
leitor inventivo, um descobridor de jogos, regras, permutaes, que combina fragmentos, cria
o imprevisvel e identifica o irreconhecvel. Isso se d, tambm, pelas possibilidades, ainda
maiores, ofertadas pela utilizao consciente da matemtica na literatura.
Para discutir essas questes, a tese est estruturada em quatro captulos. O
Captulo 1, Matemtica e Literatura, tem como objetivo apresentar o grupo OULIPO, do qual
Georges Perec fez parte, assim como suas aplicaes e utilizaes da matemtica na literatura,
alm de apresentar alguns membros e suas principais contribuies com este contexto. Ainda
no Captulo 1, apresentamos escritores que, em diferentes pocas, utilizaram conceitos e
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estruturas matemticas em suas obras literrias. Sua eleio no casual, j que apresentam
estruturas que sero redescobertas pelo OULIPO e tambm por Borges e Perec.
O Captulo 2, Georges Perec e relaes borgianas, discute as estruturas
matemticas trabalhadas por Perec na composio de vrios de seus livros e textos,
especialmente no livro A vida modo de usar (1989b). Alm disso, objetiva-se a introduo de
alguns conceitos que sero relacionados aos textos de Borges, como a Cabala, os jogos, e as
citaes e plgios literrios. Algumas tcnicas e estruturas matemticas sero explicadas, com
o intuito de simplificar o entendimento da obra de Perec e, tambm, engrandecer a literatura
com contraintes.
No terceiro captulo, Borges, Matemtica e relaes perecquianas, buscamos
estudar as relaes entre as obras de Jorge Luis Borges, a matemtica e os sistemas lgicos.
As pesquisas neste campo tm como objetivo apresentar as fontes matemticas e o intuito
borgiano ao utiliz-las. Apresentamos, assim, os principais recursos, tcnicas e conceitos
exaustivamente utilizados por Borges para abordar temas matemticos e lgicos. Paradoxos,
problemas na Teoria de Conjuntos e questes de autorreferncia sero explicados com o
objetivo de abordar a obra de Borges em uma perspectiva diferenciada, relacionando-a aos
temas matemticos presentes no OULIPO e em Georges Perec. Nesse momento ainda
retomado o tema da Cabala, com a inteno de relacion-lo obra de Perec, tambm por uma
via matemtica.
O Captulo 4, Borges e Perec, culmina com as explicaes da matemtica e da
literatura presentes em ambos os escritores. Paralelamente, so indicadas tambm outras
relaes entre eles, com o intuito de unir duas escrituras, dois escritores de diferentes culturas
e diferentes pocas, sob um vis distinto da matemtica.
Ao longo dos captulos, nos quais os conceitos abordados e os escritores
analisados se encontram e se distanciam por meio das teorias apresentadas, tericos da
Literatura e especialistas em Georges Perec e Jorge Luis Borges so amplamente citados,
sempre com o objetivo de conduzir o raciocnio para os campos da matemtica, da lgica e da
literatura comparada.
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1 MATEMTICA E LITERATURA
Muitos escritores utilizaram recursos matemticos e lgicos para a composio de
textos, bem antes de Jorge Luis Borges e do OULIPO. A diferena principal que, no caso do
OULIPO, a utilizao da matemtica feita de forma sistemtica e rigorosa, a partir da
definio de um contrainte inicial, enquanto nos outros escritores sua aplicao livre.
Apresentaremos aqui, entretanto, apenas alguns desses escritores, cuja escolha se
deve forte presena, na obra dos mesmos, das aplicaes matemticas e recursos lgicos
utilizados tambm por Jorge Luis Borges e Georges Perec. Em alguns momentos sero
apresentadas pequenas frmulas e definies matemticas, quando as mesmas sejam
fundamentais para o entendimento posterior das obras em questo.
Refletir sobre matemtica e literatura uma tentativa de mostrar as possveis
interfaces entre esses dois modos de discurso. No comparatismo, no mais a diversidade
lingustica que serve comparao, mas a diversidade de linguagens, campos disciplinares e
de formas de expresso. A ampliao dos campos de domnio da investigao comparatista
pressupe uma duplicao de competncias e um exerccio de transdisciplinaridade. Logo,
necessrio o aprofundamento nas duas reas que sero relacionadas, assim como o domnio de
terminologias especficas, que permitam o movimento num e noutro terreno com igual
eficcia. Os estudos interdisciplinares em Literatura Comparada desejam ampliar os campos
de pesquisa e a aquisio de competncias. Estudos pioneiros, como o de Calvin S. Brown
sobre msica e literatura, ou o volume editado por James Thorpe Relations of literary study:
essays on interdisciplinary contributions e interrelations of literature expressam a tendncia
a ultrapassar fronteiras, sejam elas intelectuais, artsticas ou culturais, alm de trabalhar com
novas possibilidades de expresso artstica e formas de conhecimento (CARVALHAL, 1986).
No caso especfico desta tese, na qual se prope a reflexo sobre a literatura e a
matemtica, sobretudo nas obras de Borges e Perec, necessrio detalhar e at mesmo criar
alguns conceitos comparatistas que sero discutidos e demonstrados ao longo da mesma.
Inicialmente, trabalharemos com duas reas do conhecimento distintas, mas que se misturam,
se entrelaam e compartilham saberes. importante ressaltar, no entanto, que no
necessrio um conhecimento profundo de matemtica para recepcionar as obras de Borges e
Perec, o que nos leva a uma primeira caracterstica de perspectiva comparatista entre a
matemtica e a literatura, conforme trabalhadas nesta tese: o no conhecimento especfico da
matemtica no impede a leitura e o entendimento da obra. Essa caracterstica, porm,
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direciona imediatamente a uma segunda: o conhecimento do problema matemtico discutido e
apresentado em determinado texto aumenta substancialmente a potencialidade da obra.
Assim, conhecer e entender os recursos matemticos de A vida modo de usar (1989b), bem
como identificar os problemas de recursividade, autorreferncia e infinitude de O Aleph
(BORGES, 1998x), proporcionam novas e potenciais possibilidades de leitura.
Por outro lado, na perspectiva terica comparatista que apresentamos, emerge
uma terceira caracterstica, referente ao autor dos textos que trabalham matemtica e
literatura: ele deve conhecer o discurso, a terminologia e os problemas especficos do assunto
referenciado em seu trabalho. Borges, Perec e os oulipianos esto conscientes da necessidade
desse conhecimento, o que no impossibilita que ele se apresente em graus variados. Em
Borges e Perec, por exemplo, os recursos matemticos utilizados so mais primordiais e, pelas
limitaes da decorrentes, ambos os autores trabalham exaustivamente com os mesmos
problemas. J os matemticos profissionais do OULIPO utilizam recursos e conceitos mais
profundos e complexos, apresentando uma variabilidade muito maior em sua utilizao, como
o caso de Jacques Roubaud.
Na teoria comparatista de que nos valemos, a forma de aplicao da matemtica
pode se dar como um contrainte estrutural ou como um recurso ficcional. Estamos, portanto,
diante de uma nova teoria comparatista, com caractersticas e aplicaes bem definidas, como
veremos atravs da anlise das obras de Borges, Perec e dos oulipianos. importante ressaltar
que o comparatismo, aqui, busca unir duas reas do conhecimento, ou seja, trabalhar a partir
da ligao que se estabelece entre a matemtica e a literatura em determinadas obras. No
seria possvel, assim, um trabalho unilateral apenas com a matemtica, uma vez que o
reconhecimento de regras e estruturas da linguagem indispensvel para a construo desse
pensamento. No haveria como entender o sistema sem um conhecimento de ambos os
campos discutidos. Entretanto, na ligao matemtica-literatura aqui proposta, quanto mais se
conhece a matemtica, maior o estabelecimento de relaes, discusses e possibilidades
para as obras. O que no impede a existncia de outros caminhos de leitura, que no exijam
conhecimento algum da matemtica e que sigam distintas perspectivas de abordagem.
Um exemplo interessante da aplicao direta de conceitos e estruturas
matemticas pode ser encontrado no ano de 1884, com a publicao do livro Planolndia: um
romance em muitas dimenses (Flatland, 2009), de Edwin Abbot, que citado em um
importante livro para Borges, intitulado Matemtica e imaginao (KASNER e NEWMAN,
1976, p.129). Abbott, trabalhando com formas geomtricas e lugares estranhos, de uma, duas,
trs e at quatro dimenses, introduziu aspectos relacionados aos conceitos da relatividade e
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do hiperespao. Planolndia uma mistura de matemtica e geometria, uma pardia social
repleta de humor e sarcasmo, que nos leva a uma viagem a diferentes mundos em diferentes
dimenses fsicas e nos d, no fim, uma viso variada do espao e de suas limitaes. O
livro se ambienta, basicamente, num universo bidimensional. Esse espao, porm, apresenta
certas incompatibilidades, como a presena do olho. O axioma inicial que pode ser
identificado nessa obra a construo de um ambiente consistente, dadas as limitaes
impostas. Quando narra a existncia da Pontolndia (o mundo seria um ponto sem dimenso)
e da Linhalndia (o mundo seria uma linha, unidimensional), o autor tem que se desdobrar
para tentar explicar as conexes e inter-relaes presentes nesse novo espao, construdo
atravs de um contrainte dimensional, que um dos elementos constituintes do OULIPO.
1.1 OULIPO
Em Cerisy-la-Salle, sob a presidncia de Georges Emmanuel Clancier e Jean
Lescure, aconteceu um seminrio em homenagem Raymond Queneau. Do encontro entre
Nol Arnaud, Jacques Bens, Claude Berge, Jacques Duchateau, Latis, Jean Lescure, Franois
Le Lionnais, Raymond Queneau e Albert-Marie Schmidt, nasceu o OULIPO, grupo que se
fundamentou, inicialmente, na possibilidade de incorporao de estruturas matemticas em
trabalhos literrios atravs de mtodos restritivos, os chamados contraintes. O fundamento
principal do grupo a ruptura com a viso mtica do poeta inspirado, herdada dos
romnticos e utilizada pelos surrealistas. Como afirmou Queneau, s h literatura voluntria
(LE TELLIER, 2006, p.8).7 O OULIPO , assim, o anti-acaso, a redescoberta ou um novo
olhar para as obras do passado, dos por eles chamados plagiadores por antecipao, autores
que j utilizavam conceitos matemticos e lgicos ou a literatura sob contrainte anteriormente
criao do grupo.8 Interessam ao OULIPO a estrutura, a pesquisa da presena dessa
estrutura em obras anteriores e a criao e proposio de estruturas novas. O OULIPO ,
assim, um grupo ludicamente srio ou seriamente ldico (JOLY, 2004, p.845).9
Apesar de algumas semelhanas com o Bourbaki, o OULIPO no um grupo
secreto. Nicholas Bourbaki Bourbaki era um general de Napoleo III, e Nicolas foi um
7 Il ny a de littrature que volontaire. 8 Ao longo desta tese a expresso plagiadores por antecipao, utilizada pelos prprios oulipianos, ser aprofundada. 9 Ludiquement srieux ou srieusement ludique.
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nome sugerido pela esposa de Andr Weil foi um grupo composto por brilhantes jovens
matemticos que decidiram, em 1934, refundar a base axiomtica da matemtica. Entre seus
principais membros estavam Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Delsarte, Jean Dieudonn
e Andr Weil. Apesar de no terem inventado grandiosos teoremas, sua contribuio para a
matemtica foi fundamental, pois propuseram uma renovao, uma reestruturao e uma
reorganizao das terminologias e contedos, alm de terem realizado a composio coletiva
de seus lements de mathmatiques (BOURBAKI, 1970).
O mtodo axiomtico de Bourbaki implica uma aproximao formalista, ou seja,
sustenta-se na ideia de que intil que uma proposio evoque outra representao mental
que no a percepo mental dos signos que so escritos. A matemtica , em Bourbaki, um
modelo bem estruturado e pragmtico, cuja teoria segue as regras lgicas e os axiomas
iniciais.
Na concepo axiomtica, a matemtica aparece como um reservatrio de formas
abstratas: as estruturas matemticas. Nas palavras de Nicolas Bourbaki:
Percebe-se sem que saibamos bem o porqu que certos aspectos da realidade experimental vm se moldar em certas formas como por uma
espcie de pr-adaptao. No pode ser negado que a maioria dessas formas
tinha originalmente um contedo intuitivo bem determinado; mas
precisamente no esvaziamento voluntrio desses contedos que soubemos
atribuir-lhes toda a eficcia que portavam potencialmente e que os tornaram
susceptveis a receber novas interpretaes e a preencher plenamente sua
funo elaboradora (BOURBAKI apud LE TELLIER, 2006, p.34). 10
De acordo com a declarao formalista, encontramos uma definio da atitude
oulipiana e de sua potencialidade. Assim como Bourbaki prope uma nova fundao
axiomtica da matemtica, Queneau e Lionnais propem uma refundao da literatura, agora
sob os padres dos contraintes. Assim, nas palavras de Queneau, A inteno do Oulipo
propor novas estruturas. Isso tudo. Agora vocs podem pensar que isso trar outra coisa. O
sentido mesmo do Oulipo o de propor estruturas vazias (QUENEAU apud LE TELLIER,
2006, p.35).11
10 Il se trouve sans quon sache trs bien pourquoi que certains aspects de la ralit exprimentale viennent se mouler en certaines de ces formes comme par une espce de pradaptation. Il nest pas niable, bien entendu, que la plupart de ces formes avaient lorigine un contenu intuitif bien dtermin; mais cest prcisment en les vidant volontairement de ce contenu quon a su leur donner toute lefficacit quelles portaient en puissance, et que lon les a rendues susceptibles de recevoir des interprtations nouvelles et de remplir pleinement leur fonction laboratrice. 11 Lintention de lOulipo, cest de proposer des structures nouvelles. Cest tout. Maintenant, vous pouvez pensez, vous, que cela amnera autre chose. Le sens mme de lOulipo, cest de proposer des structures vides.
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Os oulipianos, alm da axiomatizao, tomam de Bourbaki outra paixo que ser
muito trabalhada por Perec e por Borges: a paixo taxonomista. A classificao bourbakista
ordena os conhecimentos matemticos, o que levou o matemtico Laurent Schwartz a afirmar
que o Bourbaki o Lineu da matemtica.12
Outra referncia ainda dada por Jacques
Roubaud:
O grupo Bourbaki serviria de contra modelo ao grupo surrealista pela
concepo do Oulipo. uma homenagem a Bourbaki, uma imitao de
Bourbaki, e mesmo uma pardia de Bourbaki, seno uma profanao (para
retomar o axioma de Octavio Paz): Homenagem e Profanao so as duas
tetas da literatura (ROUBAUD apud LE TELLIER, 2006, p.35).13
Nas palavras de Raymond Queneau (OULIPO, 1981), um dos seus mais ativos
participantes, OULIPO significa OUvroir,14
j que pretende trabalhar, LIttrature, pois diz
respeito literatura, e POtentielle, devido sua potencialidade. Segundo Jacques Bens, outro
membro do OULIPO, a potencialidade um trabalho que no limitado somente pelas
aparncias, mas que contm segredos a explorar, pois h um fator combinatrio entre as
vrias formas de leitura (OULIPO, 1981). Italo Calvino, em seu livro Seis propostas para o
prximo milnio, diz que mesmo pertencendo ao OULIPO e conhecendo Georges Perec, no
foi capaz de desvendar todos os mistrios e truques utilizados pelo escritor francs em A vida
modo de usar (CALVINO, 1990, p.86). O grande poema Cent mille milliards de pomes, de
Queneau, possui diversas e potenciais formas combinatrias de leitura na verdade, existem
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possibilidades de leitura do poema e, ainda que seja considerado o primeiro trabalho
acordado de literatura potencial, no seria o primeiro trabalho consciente.15
Raymond Queneau, enciclopedista e diretor da Encyclopdie de la Pliade, da
Editora Gallimard, pode ser considerado um matemtico amador. Seu trabalho mais
importante na matemtica conhecido como Les suites s-additives (BRAFFORT, 1998). Para
12 Carl Von Linn, conhecido tambm como Lineu, mdico e botnico sueco responsvel pela taxonomia
moderna. 13 Le groupe Bourbaki servirait de contre-modle au groupe surraliste pour la conception de lOulipo. Cest un hommage Bourbaki, une imitation de Bourbaki, et mme une parodie de Bourbaki, sinon une profanation (pour
reprendre laxiome dit dOctavio Paz: Hommage e Profanation sont les deux mamelles de la littrature). 14 Significa, primeiramente, oficina. As invenes e descobertas do OULIPO pretendem auxiliar a todos aqueles
que desejem us-las. 15 considerado acordado, pois na poca de sua produo ainda no existia o OULIPO. Entretanto, no o primeiro consciente, j que admite-se que outros escritores, em outras pocas, podem ter trabalhado conceitos semelhantes conscientemente, como pretendemos demonstrar em relao ao trabalho de Jorge Luis Borges. Cent
mille milliards de pomes utiliza a literatura combinatria, que transfere para o domnio das palavras, conceitos
presentes em diferentes reas da matemtica.
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ele, o OULIPO foi fundado por Franois Le Lionnais, matemtico profissional. Queneau, que
se considera cofundador, diz:
Eu tinha escrito cinco ou seis dos sonetos do Cent mille milliards de pomes,
e estava hesitante em continuar; porm no tive fora; quanto mais eu
prosseguia, mais difcil se tornava faz-lo naturalmente. Mas quando fui ao
encontro de meu amigo Le Lionnais, ele sugeriu que comessemos um
grupo de pesquisa experimental em literatura. Aquilo me encorajou a
continuar o trabalho com meus sonetos (QUENEAU apud MOTTE, 1998,
p.32).16
interessante notar que Queneau no usa vrgula entre o faz-lo e o naturalmente.
No sabemos, portanto, se o autor considera difcil compor os sonetos naturalmente, o que diz
respeito ao cerne do argumento oulipiano, ou se considera difcil compor, naturalmente.
Analisando a afirmao sob o ponto de visto do OULIPO, Queneau diz que compor
naturalmente uma tarefa difcil, j que necessrio algum contrainte a fim de recuperar e/ou
criar regras para a escritura artstica. De outra forma, compor difcil, independentemente da
existncia de estruturas pr-definidas ou no, j que a linguagem e as regras gramaticais so
contraintes inatos. Os integrantes do OULIPO acreditam que todo texto regido por regras,
sejam elas conhecidas ou no por seu autor, sejam elas contraintes explcitos ou inerentes
prpria linguagem.
O OULIPO trabalha com estruturas bem definidas e acordadas anteriormente.
Para compor um texto, utilizam certos contraintes, que tm como objetivo, segundo os
oulipianos, ajudar no desenvolvimento de seu trabalho. Nas palavras de Queneau:
Uma outra idia muitssimo falsa que mesmo assim circula atualmente a
equivalncia que se estabelece entre inspirao, explorao do subconsciente
e libertao; entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa inspirao que
consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso na realidade uma
escravido. O clssico que escreve a sua tragdia observando um certo
nmero de regras que conhece mais livre que o poeta que escreve aquilo
que lhe passa pela cabea e escravo de outras regras que ignora
(QUENEAU apud CALVINO, 1993, p.261).
Italo Calvino tambm discute um pouco esta ideia romntica de inspirao. Em
Assunto encerrado, escreve:
16 I had written five or six of the sonnets of the Cent Mille Milliards de pomes, and I was hesitant to continue; in short, I didn't have the strength to continue; the more I went along, the more difficult it was to do naturally.
[...] But when I ran into Le Lionnais, who is a friend of mine, he suggested that we start a sort of research group
in experimental literature. That encouraged me to continue working on my sonnets.
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As diversas teorias estticas afirmavam que a poesia era uma questo de
inspirao vinda de sabe-se l que alturas ou brotada de sabe-se l que
profundidade ou intuio pura ou instante no identificado da vida do
esprito; ou uma voz dos tempos com que o esprito do mundo decidia falar
por intermdio do poeta, ou espelhamento das estruturas sociais que, sabe-se
l por que fenmeno tico, refletia-se na pgina [...] a literatura, da maneira
como eu a conhecia, era obstinada srie de tentativas de colocar uma palavra
atrs da outra, conforme determinadas regras definidas ou, com maior
frequncia, regras no definidas nem passveis de ser definidas mas que
podiam ser extrapoladas de uma sria de exemplos ou protocolos, ou regras
que inventamos especificamente, isto , que derivamos de outras regras que
outros seguem (CALVINO, 2009, p.205).
Calvino, que tambm membro do OULIPO,17
discute ainda a respeito da
presena de elementos combinatrios, de um possvel hipertexto:
A estrutura liberdade, produz o texto e ao mesmo tempo a possibilidade de
todos os textos virtuais que podem substitu-lo. Esta a novidade que se
encontra na idia da multiplicidade potencial implcita na proposta da literatura que venha a nascer das limitaes que ela mesma escolhe e se
impe. Convm dizer que no mtodo do OULIPO a qualidade dessas regras, sua engenhosidade e elegncia que conta em primeiro lugar. [...] Em
suma, trata-se de opor uma limitao escolhida voluntariamente s
limitaes sofridas impostas pelo ambiente (lingusticas, culturais, etc.).
Cada exemplo de texto construdo segundo regras precisas abre a
multiplicidade potencial de todos os textos virtualmente passveis de escrita segundo aquelas regras e de todas as leituras virtuais desses textos
(CALVINO, 1993, p.270).
Calvino entra oficialmente no OULIPO em 1973 e produz alguns livros utilizando
contraintes de maneira declarada. Porm, mesmo antes de sua entrada, ele j produzia na
mesma linha que o OULIPO: era um plagiador por antecipao. Se um viajante numa noite
de inverno (CALVINO, 1999a) um hiper-romance (utilizando o conceito de hipertexto ou
hiper-romance discutido pelo prprio Calvino, forma pela qual ele chamou A vida modo de
usar, de Perec) que constri sua narrativa seguindo um modelo previamente determinado, um
algoritmo que o prprio Calvino apresenta nas obras conjuntas do OULIPO (OULIPO, 1973).
Neste artigo, Calvino mostra como construir seu livro, as relaes a serem estabelecidas
entre os personagens de cada captulo e apresenta a estrutura geral do livro exatamente como
um algoritmo que lembra o organograma de Perec em Laugmentation (2001b). J em O
castelo dos destinos cruzados (CALVINO, 1994), o escritor italiano constri uma mquina
narrativa literria segundo os moldes do OULIPO: a idia de utilizar o tar como uma
17 Dizemos membro porque, segundo as regras do OULIPO, no h como os participantes sarem do grupo, de forma que mesmo depois de mortos eles continuam membros. interessante observar ainda que cada ano
corresponde a cem anos oulipianos, de modo que os encontros do OULIPO j duram 49 sculos oulipianos...
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mquina narrativa combinatria me veio de Paolo Fabbri [...] o significado de cada carta
depende de como ela se coloca em relao s outras cartas que a precedem e as que a
procedem; partindo dessa idia, procedi de maneira autnoma segundo as exigncias do meu
texto (CALVINO apud OULIPO, 1981, p.383-384).18 Calvino tambm compartilhava com
o OULIPO muitas idias e predilees: a importncia dos contraintes nas obras literrias, a
aplicao meticulosa de regras de jogos estritos, o retorno aos procedimentos combinatrios, a
criao de novas obras utilizando materiais j existentes (CALVINO apud OULIPO, 1981,
p.384).19
Em As cosmicmicas (CALVINO, 1992) , o nome do personagem principal do livro
um palndromo, Qfwfq. H tambm outras referncias de personagens que utilizam o mesmo
contrainte (Pfwfp). Qfwfq se apresenta em vrias pocas, em vrios lugares e sob vrias
formas (ou no-formas). A partir de conjecturas e leis fsicas, o personagem recorda
momentos marcantes de sua evoluo juntamente com as dos universos (difcil nomear, j que
ele brinca de construir universos com suas partculas formadoras). Assim escreve Jacques
Joeut,20
em Europe, sobre esse e outros livros de Calvino:
Qfwfq um bom exemplo da inveno axiomtica de Calvino. Um
personagem interessante, um personagem revelador ser um personagem
forado, no sentido em que o contrainte que se exerce sobre ele parece,
primeira vista, uma deficincia, uma limitao de possibilidades, mas
paradoxalmente se revela fecundo de, pela energia necessria, compensar a
sua deficincia ele mesmo. a criana num mundo adulto em A trilha dos
ninhos de aranha, e as duas meias pores do Visconde partido ao meio, a
inexistncia mesmo do Cavaleiro inexistente ou a limitao voluntria em
nvel territorial do Baro nas rvores. Acontece que esses personagens
impedidos so reveladores das causas de todo impedimento ou de toda
tragdia. O Visconde (na sua parte boa) se recorda de sua antiga condio,
diz: Eu era inteiro, eu no compreendia (JOUET, 1997, p.815).21
18 [...] lide dutiliser les tarots comme machine narrative combinatoire mest venue de Paolo Fabbri [...] la signification de chaque carte dpend de la place quelle prend relativement aux autres cartes qui le prcdent et qui la suivent; partant de cette ide, jai procd de faon autonome, selon les exigences internes de mon texte. 19 [...] je partageais avec lOuLiPo plusieurs ides et prdilections: limportance des contraintes dans luvre littraire, lapplication mticuleuse de rgles du jeu trs strictes, le recours aux procds combinatoires, la cration duvres nouvelles en utilisant des matriaux prexistants. 20 Membro do OULIPO, de acordo com o oulipo.net. 21 Qfwf est un bon exemple de laxiomatique des inventions calviniennes. Un personnage intressant, un personnage rvlateur sera un personnage contraint, au sens o la contrainte qui sexerce sur lui parat premire vue un handicap, une limitation des possibles, mais paradoxalement se rvle fconde de par lnergie ncessaire compenser le handicap lui-mme. Cest lenfant dans un monde dadultes du Sentier des nids daraigne, les deux demi-portions du Vicomte pourfendu, linexistence mme du Chevalier inexistant ou la limitation volontaire du niveau de territoire pour le Baron perch. Il se passe que ces personnages empchs sont les
rvlateurs des causes de tout empchement ou de toute tragdie. Le Vicomte (dans sa partie bonne), se
souvenant de son ancienne condition, dit: Jtais entier, je ne comprenais pas.
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A questo da combinatria tambm referencial nas discusses do OULIPO. Para
Raymond Queneau, a literatura combinatria, o que o leva a reclamar, em 1964, da falta de
maquinrio sofisticado para se trabalhar essa combinatria. A potencialidade, nessa
perspectiva, incerteza, mas no falta de preciso: sabe-se perfeitamente bem o que pode
acontecer, mas no se sabe quando. O grande exemplo dessa posio o poema combinatrio
de Queneau ao qual nos referimos anteriormente. Nessa mesma poca, Queneau j comea a
utilizar procedimentos experimentais com computadores, e hoje as tecnologias informticas
tem propiciado novas vises e novos argumentos para o trabalho sob a perspectiva oulipiana.
Inicialmente, o OULIPO no dispunha de tantos recursos tecnolgicos como os
que verificamos na atualidade. Ao longo da histria, muito outros pensadores trabalharam
com matemtica sem tais recursos: Pitgoras considerava os nmeros como a essncia das
coisas; Plato afirmava que a Geometria a fundao do conhecimento; Leonardo da Vinci
dizia que a esttica est profundamente relacionada matemtica atravs do segmento ureo;
Descartes, Pascal e DAlembert trabalharam com matemtica, alm de escrever inmeras
obras e livros; Schopenhauer sugere a similaridade entre poesia e matemtica; Lewis Carroll
argumenta que a aplicao consciente dos conceitos matemticos na literatura torna os
escritos mais interessantes; Ezra Pound diz que a poesia um tipo de inspirao
matemtica; e Paul Valry fala que a matemtica o modelo de atos da mente.
1.2 OULIPO e o Projeto de Hilbert
Como j foi afirmado, antes do surgimento do grupo OULIPO vrios escritores
utilizaram a matemtica em seus trabalhos, porm no de forma sistemtica. Graas s
propostas de Queneau e Le Lionnais, a matemtica passou a ser utilizada de forma mais
rigorosa e consciente na literatura. O projeto inicial do grupo era fazer uma ligao entre duas
reas, em princpio, completamente opostas. Para tanto, Queneau utilizou o chamado Projeto
de Hilbert.
David Hilbert (1862-1943) foi um matemtico alemo que, no Congresso
Internacional de Matemtica de 1900, em Paris, reuniu 23 problemas matemticos que ainda
no haviam sido resolvidos e eram, at ento, considerados os mais importantes , propondo
a resoluo dos mesmos. Para ele, no existia nada na matemtica que no pudesse ser
demonstrado. Em 1921, Hilbert aproxima-se da lgica, com a inteno de reformular as bases
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da matemtica de forma rigorosa, partindo da aritmtica. Para ele, toda a matemtica poderia
ser reduzida a um nmero finito de axiomas consistentes. Assim, qualquer proposio da
matemtica poderia ser provada atravs desse sistema, tornando-o completo e consistente. Em
suas prprias palavras:
No devemos dar crdito queles que hoje adotam um tom filosfico e um ar
de superioridade para profetizarem o declnio da cultura cientfica e se
comprazerem com o ignorabimus.
Para ns, matemticos, no h ignorabimus e, em minha opinio, para as
cincias naturais tambm no, de modo nenhum.
Em vez deste disparatado ignorabimus adotemos, pelo contrrio, a
resoluo: Havemos de saber podemos saber! Ningum nos expulsar do paraso que Cantor criou para ns (HILBERT,
1930).
Para sorte de alguns matemticos e azar de Hilbert e seus seguidores, em 1931
aparecem os Teoremas da Incompletude de Gdel, e suas implicaes acabam com todo o
romantismo do Projeto de Hilbert. Nos seus teoremas, Gdel prova que um sistema
axiomtico no pode atestar sua prpria consistncia e que, caso ele o faa, s pode ser
inconsistente. Alm disso, em sistemas com o poder de definir os nmeros naturais (como o
que Hilbert idealizou), sempre h proposies (chamadas indecidveis) que no podem ser
provadas dentro do sistema (portanto, o sistema incompleto). Desta forma, no se pode
provar a completude e consistncia de um sistema capaz de fazer aritmtica.
Em seu artigo Fondements de la Littrature daprs David Hilbert, Queneau
prope algumas mudanas para a composio de textos literrios com referncias
matemticas. J que o projeto de Hilbert no ter sucesso nunca, Queneau prope um novo
sistema que , como todos os outros, incompleto:
No lugar de pontos, retas e planos, poderamos aplicar as palavras mesa,
cadeira e vidrecomes. Inspirando-me nesse ilustre exemplo, apresento aqui
uma axiomtica da literatura mudando, nas proposies de Hilbert, as
palavras pontos, retas, planos, respectivamente, por palavras, frases, pargrafos (QUENEAU apud OULIPO, 1987, p.38-39).22
Queneau apresenta tambm seus axiomas para esse novo projeto, comparando-os
aos axiomas de Euclides. uma relao extensa de axiomas, mas, em virtude de sua
22 Au lieu de points, de droites et de plans, on pourrait tout aussi bien employer les mots tables, chaises et vidrecomes. M'inspirant de cet illustre exemple, je prsente ici une axiomatique de la littrature en remplaant
dans les propositions de Hilbert les mots points, droites, plans, respectivement par mots, phrases, paragraphes.
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importncia para a utilizao da matemtica na literatura, pela primeira vez de modo
consciente e explcito, optamos por transcrever na ntegra o conjunto axiomtico em questo:
Primeiro Grupo de axiomas (axiomas de incluso)
I,I. Existe uma frase que contm duas palavras dadas.
Comentrio: Evidente. Exemplo: Sejam as duas palavras la e la, existe uma frase que contm essa duas palavras: o violinista d o la (la) cantora. I,2. No existe mais de uma frase que contm duas palavras dadas.
Comentrio: H, ao contrrio, quem pode se surpreender. Entretanto, se
pensamos em palavras como longtemps e couch, evidente que uma vez escrita uma frase que as contm, a saber: longtemps je me suis couch de bonne heure, qualquer outra expresso tal como longtemps je me suis couch tard ou longtemps je me suis couch de tt s uma pseudo-frase que devemos rejeitar em virtude do axioma presente. Nota: Naturalmente, se
escrevemos longtemps, je me suis couch tt, longtemps je me suis couch de bonne heure que devemos rejeitar em virtude do axioma I,2. Isto quer dizer que no escrevemos duas vezes Em busca do tempo perdido.
I,3. Em uma frase h, ao menos, duas palavras; existem, ao menos, trs
palavras que no pertencem todas mesma frase.
Comentrio: No h frases, ento, de uma s palavra. Sim, No, Hep, Pstt, no so frases. Acerca da segunda parte do axioma: supomos, ento, que a lngua utilizada compreende ao menos trs palavras (o que trivial no
caso do francs) e, por outro lado, exclumos a possibilidade de uma frase
que compreenda todas as palavras de uma lngua (ou todas palavras menos
uma, ou menos duas).
I,4a. Existe um pargrafo compreendendo trs palavras que no pertencem
mesma frase.
Comentrio: Segue-se imediatamente que um pargrafo compreende ao
menos duas frases. Notamos que a formulao dos axiomas I,1 a I,4a,
contrria ao axioma I,2 j que todos os quatro precisam, para serem
expressos, das palavras mots e frases, de modo que, segundo esse axioma, s deveria existir uma s frase que as compreendesse. Podemos,
portanto, formular este axioma da metaliteratura: Os axiomas no obedecem
os axiomas.
I,4b. Todo pargrafo compreende ao menos uma palavra.
Comentrio: Sim, No, Hep, Pstt, que no so frases, de acordo com I,3, no podem, portanto, formar sozinhos um pargrafo.
I,5. No existe mais de um pargrafo que compreenda trs palavras que no
pertenam todas a uma mesma frase.
Comentrio: Trata-se, ento, como no caso I,2, de uma unicidade do
pargrafo. Dito de outra forma, se empregamos em um pargrafo trs
palavras que no pertenam todas a uma mesma frase, no podemos
reutiliz-las em outro pargrafo. Mas, contestaremos, e se ele pertence todo a
uma mesma frase em outro pargrafo? Impossvel, segundo este axioma.
I,6. Se duas palavras de uma frase pertencem a um pargrafo, todas as
palavras dessa frase pertencem a esse pargrafo.
Comentrio: Passa-se o comentrio.
I,7. Se dois pargrafos tm em comum uma palavra, eles tm ainda uma
outra em comum.
Comentrio: Para obedecer a esse axioma, necessrio, portanto, que se o
escritor utilizar em um novo pargrafo uma palavra que j aparece no
pargrafo precedente, deve empregar igualmente uma segunda que figura no
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pargrafo precedente. O contrrio falso se essas palavras so artigos,
verbos auxiliares, etc.; isto notadamente antiflaubertienne no caso de
significantes (substantivos, adjetivos, por exemplo).
I,8. Existem, pelo menos, quatro palavras que no pertencem ao mesmo
pargrafo.
Comentrio. Isto quer dizer que um texto composto por um s pargrafo no merece a designao de texto; ou melhor, que a lngua francesa detm palavras suficientes (ao menos quatro). No comentrio do axioma I,7
desenvolvemos todas as consequncias que podemos tirar desse axioma (e
de outros j adotados); aqui o primeiro teorema que demonstra Hilbert.
Teorema I: Duas frases distintas de um mesmo pargrafo contm, ao menos,
uma palavra em comum; dois pargrafos distintos ou tem alguma palavra em
comum ou tem uma frase em comum ou no tem nenhuma outra palavra em
comum fora desta frase.
Comentrio: De fato, se dois pargrafos tem uma palavra em comum, deve-
se ter uma segunda, mas essas duas palavras determinam uma frase e aps
I,1, essa frase nica. Os dois pargrafos tem, portanto, uma frase em
comum. Voltamos, portanto, a um conceito flaubertienne. Repetir uma
palavra j empregada em um pargrafo precedente, obriga a repetir toda a
frase, restrio forte: tanto que no repetir a palavra mais prudente, e
Flaubert observe escrupulosamente esse axioma.
Segundo grupo de axiomas (axiomas de ordem)
II,1. Se em uma frase uma palavra se encontra entre duas palavras colocadas
em uma ordem dada, encontra-se ela, igualmente, em sentido inverso, entre
essas duas palavras.
Comentrio: Trivial.
II,2. Dadas duas palavras de uma frase, existe pelo menos uma terceira
palavra tal que a segunda esteja entre a primeira e a terceira.
Comentrio: Aqui pode surpreender. O leitor levado a se remeter ao
comentrio dos teoremas 3 e 7 para maiores informaes sobre esse assunto.
II,3. Das trs palavras de uma frase, existe uma que se encontra entre as
outras.
Comentrio: Procurando bem, encontraremos na literatura algumas frase na
qual esse axioma no se aplica, por exemplo, ao captulo XCVIII de Tristam
Shandy.
II,4. Sejam trs palavras de um pargrafo que no pertencem todas a uma
mesma frase e seja uma frase que no compreenda essas trs palavras, mas
pertena ao mesmo pargrafo, se esta frase compreende uma palavra da frase
determinada por duas dessas palavras, ela compreender sempre uma palavra
comum com a frase determinada por uma de suas palavras e a terceira.
Comentrio: Para esclarecer esse axioma, retomamos Hilbert, que formula
desta forma: de uma forma mais intuitiva: se uma reta entra dentro de um tringulo, ela sai. Deixamos ao leitor o cuidado de procurar ou de construir pargrafos conforme esse axioma. Hilbert demonstra, em seguida, alguns
teoremas: Teorema 3: Duas palavras dadas, a frase onde elas aparecem
comporta pelo menos uma palavra entre essas duas palavras; e o Teorema 7:
Entre duas palavras de uma frase, existe uma infinidade de outras.
Comentrio: O leitor ter razo em ficar surpreso pelo axioma II,2. Para
dominar esta surpresa e entender esses teoremas, necessrio somente
admitir a existncia disso que, seguindo o exemplo da velha geometria
projetiva, chamamos palavras imaginadas e palavras ao infinito. Toda frase contm uma infinidade de palavras; s percebemos um nmero grande
finito, outras se encontram no infinito ou so imaginadas. Tivemos o
pressentimento, mas jamais a conscincia clara disso. Ser, portanto,
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impossvel retrica no mais levar em considerao esse teorema capital. A
lingustica poder, igualmente, utiliz-lo em seu benefcio.
Axioma das Paralelas (vulgo: Postulatum de Euclides)
Dada uma frase, seja uma palavra que no pertena a essa frase; no
pargrafo determinado pela frase e essa palavra, existe no mximo uma frase
que compreende essa palavra e que no tenha nenhuma palavra em comum
com a primeira frase dada.
Comentrio: Seja a frase: Longtemps je me suis couch de bonne heure. E a palavra rveil. Existe no pargrafo que as compreende somente uma frase que contm a palavra rveil e que no compreende outra palavra da frase Longtemps je me suis couch de bonne heure, a saber: Cette croyance survivai pendant quelques seconds mon rveil. O primeiro pargrafo do Em busca do tempo perdido obedece, pelo menos localmente,
ao postulado de Euclides.
Deixaremos ao leitor o cuidado de transpor os axiomas de congruncia e de
continuidade (QUENEAU apud OULIPO, 1987, p.39-48).23
Axiomas de Euclides
Axioma I: Pode-se traar uma nica reta ligando quaisquer dois pontos.
Axioma II: Pode-se continuar (de uma maneira nica) qualquer reta finita
continuamente em uma reta.
Axioma III: Pode-se traar um crculo com qualquer centro e com qualquer
raio.
Axioma IV: Todos os ngulos retos so iguais.
Axioma V: Se uma reta, ao cortar outras duas, forma ngulos internos, no
mesmo lado, cuja soma menor do que dois ngulos retos, ento estas duas
retas encontrar-se-o no lado onde esto os ngulos cuja soma menor do
que dois ngulos retos (KASNER e NEWMAN, 1976, p.135-140).
O sistema descrito bem abrangente e, algumas vezes, complexo. Como os
Axiomas no precisam ser demonstrados, Queneau apenas os comenta com o intuito de
simplificar o entendimento. No sistema, que faz referncia aos axiomas de Euclides e tambm
ao livro de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, j possvel visualizar os primeiros
traos do nascimento do grupo OULIPO, marcados pela utilizao da matemtica e de
inmeros livros.24
O primeiro grupo de axiomas discute os princpios bsicos da composio
de um texto: como empregar as palavras nas frases, e a questo de determinada palavra
pertencer ou no a um texto ou a uma frase. No segundo grupo de axiomas apresentada a
ordem dessas palavras, em que posio essas palavras podem ser colocadas no texto. Queneau
tambm discute o porqu da diferena entre dois textos.
O conjunto de axiomas apresentado discute os princpios bsicos da composio
de um texto, mas tem o intuito de relacionar os primeiros axiomas criados na matemtica
23 A verso original se encontra no ANEXO A desta tese. 24 Georges Perec, por exemplo, escreveu um texto chamado Variations sur un thme de Marcel Proust (2009b)
no qual, partindo do texto bsico de Proust (Longtemps je me suis couch de bonne heure), aplica muitos outros
contraintes para sua reescrita, como o Anagrama (Je cherche le temps boug ou sem dun sinon), o Lipograma em E (Durant un grand laps lon malita tt) e a Permutao (De bonne heure je me suis couch longtemps) (OULIPO, 2009, p.24).
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(Euclides) com o que seriam os primeiros axiomas criados pelo OULIPO. Para o
entendimento da composio e estrutura do OULIPO, no entanto, os manifestos so ainda
mais importantes que os axiomas de Queneau, j que neles encontramos a descrio exata de
como e com qual intuito ser trabalhada a matemtica na literatura. Em relao aos axiomas,
sua maior importncia demonstrar que, pela primeira vez, algum (Queneau) transpe os
conceitos bsicos de ponto, reta e plano, da Teoria de Conjuntos, para a literatura.
1.3 Raymond Queneau e Cent mille milliards de pomes
Alm dos livros Exercices de style (QUENEAU, 1965b) e Petite cosmogonie
portative (1950), Raymond Queneau escreveu o poema Cent mille milliards de pomes
(OULIPO, 2009), que pode ser considerado como a primeira tentativa consciente de utilizao
da anlise combinatria na literatura.25
No primeiro livro, um episdio de poucas frases
repetido 99 vezes em 99 estilos diferentes; o segundo livro um poema de alexandrinos sobre
as origens da Terra, da Qumica, da evoluo animal e tecnolgica e da vida. J o poema
trata-se da construo de 10 sonetos, com 14 versos cada um, onde a cada primeiro verso de
cada soneto podemos fazer a correspondncia com outros 10 versos diferentes. Logo, j no
primeiro verso, temos a combinao de 100 possibilidades (10x10 = 102). No terceiro verso,
teremos 103 possibilidades. Assim, se temos 14 versos, teremos 10
14 possibilidades de
poemas. Nas palavras de Queneau, contando 45 segundos para ler um soneto e 15 para
mudar as folhas, 8 horas por dia, 200 dias por ano, teremos um pouco mais de um milho de
sculos de leitura (QUENEAU apud OULIPO, 2009, p.880):26
Cent mille milliards de pomes
Le cheval Parthnon s'nerve sur sa frise
pour la mettre scher aux cornes des taureaux
le Turc de ce temps-l pataugeait dans sa crise
il chantait tout de mme oui mais il chantait faux
Le cheval Parthnon frissonnait sous la bise
le vulgaire s'entte vouloir des vers beaux
d'une trusque inscription la pierre tait incise
25 Damos o nome de anlise combinatria ao clculo do nmero de possibilidades existentes em um determinado
problema. 26 [...] en comptant 45s pour lire un sonnet et 15 pour changer de volets, 8 heures par jour, 200 par an, on a pour plus d'un million de sicles de lecture.
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que les parents fconds offrent aux purs berceaux
Le pote inspir n'est point un polyglotte
on sale le requin on fume l'chalote
mme s'il prend son sel au celte c'est son bien
L'Amrique du Sud sduit les quivoques
on transporte et le marbre et dbris et dfroques
si l'Europe le veut l'Europe ou son destin (QUENEAU apud OULIPO, 2009,
p.889).
Segundo Queneau, h um conceito e uma justificativa para a composio de um
poema combinatrio:
Essa pequena obra permite a cada um compor vontade cem mil bilhes de
sonetos, todos normalmente bem entendidos. um tipo de mquina de
fabricar poemas, mas em nmero limitado; verdade que esse nmero, ainda
que limitado, produz leitura por aproximadamente cem milhes de anos
(lendo vinte e quatro horas por dia) (QUENEAU apud OULIPO, 2009,
p.879).27
A principal diferena desse poema de Queneau em relao a outros poemas que,
nesses outros poemas, se fizermos a recombinao de versos e estrofes, no continuaremos
verdadeiramente com o poema, uma vez que o jogo de rimas e estruturas ser quebrado,
destrudo. J em Queneau, o poema foi pensado para ser combinatrio, e assim sua estrutura,
sua rima e sua composio conservam-se, mesmo se executarmos a tarefa de realizar as
100.000.000.000.000 combinaes possveis.
Apesar de muito grande, o nmero de combinaes de Queneau no infinito. O
mesmo raciocnio ser apresentado para a anlise do conto A biblioteca de Babel, de Jorge
Luis Borges (1998o). Sua biblioteca comporta um nmero grandioso de livros, porm no
infinita apesar de a quantidade de livros includa no conto de Borges ser muito maior que a
de possibilidades do poema de Queneau. Neste caso, j se faz perceptvel uma diferena entre
o uso da estrutura matemtica nas composies do OULIPO a utilizao da anlise
combinatria para a composio do poema e nos textos de Borges a utilizao conceitual
da matemtica, como argumento ficcional.
Para Queneau, o artista deve ter plena conscincia das regras formais de sua obra,
do seu significado particular e universal e de sua influncia e funo. Dessa forma, ele entra
na polmica discusso com a contingncia do Surrealismo, recusa a inspirao, o lirismo
27 Ce petit ouvrage permet tout un chacun de composer volont cent mille milliards de sonnets, tous rguliers bien entendu. Cest somme toute une sorte de machine fabriquer des pomes, mais en nombre limit; il est vrai que ce nombre, quoique limit, fournit de la lecture pour prs de deux cents millions dannes (en lisant vingt-quatre heures sur vingt-quatre).
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romntico, o culto ao acaso e ao automatismo. Seu saber caracterizado pela globalizao e
pelo senso de limite, pela desconfiana em relao a qualquer filosofia que se queira absoluta.
A lgica compe-se como o funcionamento da inteligncia humana, e regida pela
transformao da matemtica em contato com os problemas colocados pelas cincias da
natureza (CALVINO, 1993).
De acordo com Claudia Pino, o poema combinatrio de Queneau possibilita ao
autor e ao leitor a criao de sua prpria obra:
Em Cent mille milliards de pomes, ele apresenta uma srie de cem versos
que podem ser combinados entre si e transformados em cem mil milhes de poemas diferentes. Com essa obra, Queneau dava ao leitor a possibilidade
de criar sua (tanto do leitor quanto do autor) prpria obra (PINO, 2004,
p.47).
1.4 Franois Le Lionnais Les Manifestes
Nascido em Paris em 1901, Le Lionnais era engenheiro qumico e matemtico.
Membro do Collge de Pataphysique, foi um dos principais responsveis pela fundao e
aplicao dos conhecimentos matemticos na literatura. O Collge de Pataphysique, criado
por Alfred Jarry, uma cincia de solues imaginrias que trabalha com alguns conceitos
matemticos, imitando a linguagem cientfica e transformando-a em caricatura:
A pataphysique, que a etimologia deve escrever epi (meta ta fusika) e a
ortografia real pataphysique precedida de um apstrofo, a fim de evitar um fcil trocadilho, a cincia que acrescenta metafsica, seja nela ou fora
dela, seja aplicando ou se distanciando tambm da fsica. Exemplo: a
piphnomne sendo frequentemente o acidente, a pataphysique ser,
sobretudo, a cincia do particular, mesmo quando dizemos que no h
cincia do geral. Ela estudar as leis que regem as excees... Definio: A
pataphysique a cincia das solues imaginrias que acorda
simbolicamente s propriedades dos objetos descritos por sua virtualidade
(JARRY, 1980, p.31).28
28 La pataphysique, dont ltymologie doit scrire epi (meta ta fusika) et lorthographe relle pataphysique, prcd dun apostrophe, afin dviter un facile calembour, est la science de ce qui se surajoute la mtaphysique, soit en elle-mme, soit hors delle-mme, stendant aussi loin au-del de celle-ci que celle-ci au-del de la physique. Exemple: lpiphnomne tant souvent laccident, la pataphysique sera surtout la science du particulier, quoiquon dise quil ny a de science que du gnral. Elle tudiera les lois qui rgissent les exceptions... Dfinition: la pataphysique est la science des solutions imaginaires, qui accorde symboliquement
aux linaments les proprits des objets dcrits par leur virtualit.
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O discurso pataphysique trabalha com temas cientficos, filosficos e esotricos.
Oferece uma viso paralela das coisas, muitas vezes ldica e divertida, mas que coloca em
pauta alguns fundamentos enraizados em todos os campos cientficos.
Os pataphysicos fazem um paralelo entre alguns conceitos da Fsica a fim de
mostrar suas novas teorias:
A cincia atual se funda no princpio da induo: a maior parte dos homens
viram o mais frequente fenmeno preceder ou seguir a outro e concluram
que ser sempre assim. Inicialmente isso exato frequentemente, depende de
um ponto de vista e codificado segundo a comodidade. No lugar de
enunciar a lei da queda dos corpos a um centro, preferimos aquela da
ascenso do vazio em torno de uma periferia, o vazio sendo colocado por
unidade de no densidade, hiptese muito menos arbitrria que a escolha da
unidade concreta de densidade positiva gua. (JARRY, 1980, p.32).29
Trabalhando conceitos cientficos, criando textos literrios de cunho fantstico e
mstico, citando, reescrevendo e plagiando inmeros autores (como Borges), os pataphysicos
podem ser considerados os primeiros escritores oulipianos. Raymond Queneau e Franois Le
Lionnais, os responsveis pela fundao do OULIPO, foram membros de ambos os grupos.
Em seu primeiro manifesto, chamado LA LIPO, Le Lionnais nos convida a
procurar em qualquer dicionrio as palavras literatura potencial (OULIPO, 1973, p.15).
Fatalmente, no encontraramos nenhuma referncia ao termo antes da formao do grupo.
Podemos perceber facilmente que a redao deste primeiro manifesto ainda
pataphysica, e que partir das ideias nele apresentadas que nascer o OULIPO:
A verdade que a discusso entre os Antigos e os Modernos permanente.
Ela comeou com o Zinjanthrope (um milho setecentos e cinquenta mil
anos) e s terminar com a humanidade, a menos que os Mutantes que os
sucedero no assegurem a sua substituio. Disputa, apesar de tudo, bem
mal batizada. Esses a quem chamamos os Antigos so, bem frequentemente,
os descendentes esclerosados desses que, em seu tempo, foram os Modernos;
e, estes ltimos, voltavam entre ns se organizando, na maioria dos casos, ao
lado de criadores e renunciavam seus prprios imitadores devotos. A
literatura potencial s representa um novo impulso a esse debate (LE
LIONNAIS apud OULIPO, 1973, p.16-17).30
29 La science actuelle se fonde sur le principe de linduction: la plupart des hommes ont vu le plus souvent tel phnomne prcder ou suivre tel autre, et en concluent quil en sera toujours ainsi. Dabord ceci nest exact que le plus souvent, dpend dun point de vue, et est codifi selon la commodit, et encore! Au lieu dnoncer la loi de la chute des corps vers un centre, que ne prfre-t-on celle de lascension du vide vers une priphrie, le vide tant pris pour unit de non-densit, hypothse beaucoup moins arbitraire que le choix de lunit concrte de densit positive eau? 30 La vrit est que la querelle des Anciens et des Modernes est permanente. Elle a commenc avec le Zinjanthrope (un million sept cent cinquante mille ans) et ne se terminera qu'avec l'humanit moins que les
Mutants qui lui succderont n'en assurent la relve. Querelle, au demeurant, bien mal baptise. Ceux que l'on
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Um dos principais argumentos do OULIPO considerar que temos contraintes
inatos, seja qual for a natureza dos nossos escritos, dentre os quais os mais bsicos so os
contraintes de vocabulrio, gramtica e versificao. Em seu primeiro manifesto, Franois Le
Lionnais nos pergunta o porqu de no utilizarmos, ento, novos contraintes, e imaginar
novas frmulas e conceitos, enfim, uma nova potencialidade, uma literatura potencial.
Nasce neste momento o OULIPO, com o objetivo explcito de aplicar sistematicamente e
cientificamente alguns contraintes matemticos para a criao literria.
Segundo Le Lionnais, a utilizao da matemtica, mais especificamente das
estruturas abstratas da matemtica contempornea, permite uma grande possibilidade de
explorao. Da lgebra, podem ser utilizados conceitos de leis de composio; da Topologia,
conceitos de textos abertos e fechados, bem como a relao entre vizinhos. Podem ser ainda
utilizadas algumas linguagens computacionais e vocabulrios especficos (como de animais),
entre muitas outras possibilidades.
Le Lionnais tambm explica as duas linhas de pesquisa do grupo, a elas atribuindo
os nomes de anoulipisme e synthoulipisme, indicativos das perspectivas analticas