micro-documentÁrios de atividades criativas e...

14
MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E CULTURAIS DA REGIÃO DAS MISSÕES, EPISÓDIO: GUASQUEIRO Joel Felipe Guindani 1 Tiago C. Martins 2 Marcela Guimaraes 3 Fernando Santor 4 Alan Borgartz 5 RESUMO O presente artigo tem por objetivo apresentar o processo de produção audiovisual de atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática artesanal do “Guasqueiro”, bem como a delimitação do conceito de “atividades criativas e culturais”, a partir do Escopo de categorias e setores criativos”, do Ministério da cultura (MINC). Também explicita a abordagem etnográfica necessária à aproximação dos personagens filmados e alguns resultados da pós-produção, que nos mostram a necessária visibilidade de setores criativos ainda invisíveis no campo audiovisual, sobretudo do formato “micro documentário” em suportes digitais on-line. PALAVRAS-CHAVE: audiovisual; atividades criativas e culturais; digital; missões. INTRODUÇÃO As “atividades criativas e culturais”, a partir do Escopo de categorias e setores criativos”, do Ministério da cultura (MINC) tornam-se um vasto campo para a produção audiovisual. A diversidade de atividades criativas que se pode observar no território missioneiro, que também identificamos pelo viés da complexidade de práticas sociais de sentido (WEBER, XXXX), foi o primeiro motivador da produção audiovisual que será apresentada neste artigo, especialmente o episódio denominado “Guasqueiro”, prática comum no território missioneiro, que está vinculada à arte em couro. 6 1 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 2 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 3 Professora adjunta na Universidade Federal do Pampa. [email protected]> 4 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 5 Acadêmico de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 6 O micro-documentário pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=L4-8rbzhU10

Upload: others

Post on 13-Oct-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E CULTURAIS

DA REGIÃO DAS MISSÕES, EPISÓDIO: GUASQUEIRO

Joel Felipe Guindani1

Tiago C. Martins2

Marcela Guimaraes3

Fernando Santor4

Alan Borgartz5

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar o processo de produção audiovisual de

atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática artesanal do

“Guasqueiro”, bem como a delimitação do conceito de “atividades criativas e culturais”, a

partir do “Escopo de categorias e setores criativos”, do Ministério da cultura (MINC).

Também explicita a abordagem etnográfica necessária à aproximação dos personagens

filmados e alguns resultados da pós-produção, que nos mostram a necessária visibilidade de

setores criativos ainda invisíveis no campo audiovisual, sobretudo do formato “micro

documentário” em suportes digitais on-line.

PALAVRAS-CHAVE: audiovisual; atividades criativas e culturais; digital; missões.

INTRODUÇÃO

As “atividades criativas e culturais”, a partir do “Escopo de categorias e setores

criativos”, do Ministério da cultura (MINC) tornam-se um vasto campo para a produção

audiovisual. A diversidade de atividades criativas que se pode observar no território

missioneiro, que também identificamos pelo viés da complexidade de práticas sociais de

sentido (WEBER, XXXX), foi o primeiro motivador da produção audiovisual que será

apresentada neste artigo, especialmente o episódio denominado “Guasqueiro”, prática comum

no território missioneiro, que está vinculada à arte em couro.6

1 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 2 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 3 Professora adjunta na Universidade Federal do Pampa. [email protected]> 4 Professor adjunto na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 5 Acadêmico de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Pampa. [email protected] 6 O micro-documentário pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=L4-8rbzhU10

Page 2: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Assim, este artigo apresenta, inicialmente, a concepção do projeto audiovisual, que

está contido na prática de Extensão da Universidade Federal do Pampa (Unipampa),

desenvolvido desde o ano de 2015, pelos autores deste artigo. Adiante, apresenta-se: a

delimitação do conceito de Atividade Criativas e Culturais, bem como o processo de

produção audiovisual. Para finalizar, evidencia-se a abordagem etnográfica necessária à

aproximação dos personagens filmados e alguns resultados da pós-produção, que nos

mostram a necessária visibilidade de setores criativos ainda invisíveis no campo audiovisual,

sobretudo do formato “micro documentário”, facilmente acessados através dos suportes de

veiculação digital on line.

MICRO-DOCUMENTÁRIOS E ATIVIDADES CRIATIVAS E CULTURAIS: O

INÍCIO DO PROJETO

Este artigo é fruto de um projeto de extensão em processo de execução, que tem por

objetivo a produção de micro documentários de atividades criativas e culturais da região das

missões. A delimitação do conteúdo, bem como do conceito de “atividades criativas e

culturais” segue o “escopo de categorias e setores criativos”, do ministério da cultura (minc):

patrimônio; expressões culturais; artes de espetáculo; audiovisual/do livro, da leitura e da

literatura; criações culturais e funcionais.

Todas as etapas deste projeto são executadas por um coletivo formado por: docentes,

discentes (bolsista e colaboradores) dos cursos de comunicação social, por técnicos

audiovisuais da Unipampa; pesquisadores e colaboradores do Observatório Missioneiro das

Atividades Criativas e Culturais (OMiCult) e pela comunidade escolar do Instituto

Educacional Padre Francisco Garcia. Este projeto iniciou no ano de 2015, com a nucleação

do coletivo que, posteriormente, executou oficinas de audiovisual com alunos da respectiva

comunidade escolar.

Outra ação preponderante foi a realização de uma pesquisa bibliográfica sobre

Atividades Criativas e culturais em bibliotecas da própria universidade, bem como na

Biblioteca municipal. O resultado não foi satisfatório, pois nenhuma bibliografia

especificamente sobre o assunto foi encontrada. O passo seguinte foi o contato presencial

Page 3: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

com algumas lideranças locais, produtores culturais e professores pesquisadores, que nos

indicaram alguns sujeitos ligados ao campo das artes e, amplamente, da cultura. Assim,

conhecemos alguns artistas e artesãos da cidade de São Borja, inicialmente e, na sequência,

outros que atuam na região das Missões.

Após esse primeiro passo, percebemos a relevância deste projeto, sobretudo a partir da

evidente diversidade de Atividades criativas e culturais do contexto missioneiro. Esta

diversidade diz respeito ao patrimônio material e imaterial como: expressões culturais; artes

de espetáculo; literatura; criações culturais e Funcionais, que se dispersam ao longo do tempo

histórico. Percebemos que esta diversidade ainda carece de sistematização e, sobretudo de

registro e publicização. Portanto, percebemos que outra questão relevante diz respeito à

necessidade de se garantir a identificação e o registro audiovisual, que certamente auxilia,

portanto, no reconhecimento, na visibilidade e na possível ampliação destas práticas criativas

e culturais. Em outras palavras, a produção dos micro documentários tornou-se uma forma

de reconstituir histórias: “é ouvir e olhar seus personagens, as situações em que se encontram

e, sobretudo, saber olhar as imagens dadas desses personagens e dessas situações”

(AUMONT, 58).

Partimos, então, para a execução metodológica do projeto, que confia à etnográfica

algumas técnicas de exploração, descrição e significação das atividades criativas e culturais

então identificadas. Concomitante, a produção audiovisual dos micro-documentários contou

com a participação de alguns alunos da Universidade e do Instituto Padre Francisco Garcia.

Um desafio metodológico inicial foi o de compreender o conceito de Atividades criativas e

culturais, para então seguirmos com a produção dos micro-documentários, especificamente

com a aproximação aos possíveis personagens da produção audiovisual.

ATIVIDADES CRIATIVAS E CULTURAIS: O CONCEITO E SISTEMATIZAÇÃO

De modo sintético, a compreensão de “Atividades Criativas e Culturais” pode ser

relacionada com a concepção de economia da cultura e economia criativa. Esta última

temporalmente foi estabelecida a partir dos anos 2000. O conceito remete as atividades que

contemplam o exercício individual de imaginação, buscando explorar seu valor econômico.

Page 4: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Envolve criação, produção e distribuição de produtos e serviços, usando o conhecimento, a

criatividade e o capital intelectual como recursos produtivos. Talvez, a definição mais

adequada à realidade brasileira surja de uma recente publicação do Ministério da Cultura ao

contemplar a ideia de setor criativo.

Os setores criativos são aqueles cujas atividades produtivas têm como processo

principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou serviço, cuja dimensão simbólica é

determinante do seu valor, resultando em produção de riqueza cultural, econômica e social

(MINISTÉRIO DA CULTURA- MINC, 2011, p. 22).

A capacidade de inventar, de imaginar, de criar, seja de forma individual ou coletiva é

a base fundamental do valor do bem criativo. Ora, nesse contexto se estabelece que não seja

somente nas manifestações culturais que se encontram os setores criativos. Esses setores vão

além dos tipicamente denominados culturais, que geralmente estão ligados à produção

artístico-cultural (música, dança, teatro, ópera, circo, pintura, fotografia, cinema). O setor

criativo contemplaria, além da produção artística-cultural, as expressões ou atividades

relacionadas às novas mídias, à indústria de conteúdos, ao design, à arquitetura entre outros.

Tais atividades podem ser estruturadas a partir de duas macrocategorias: a dos setores

criativos nucleares e a dos setores criativos relacionados. O quadro a seguir sistematiza os

setores criativos.

Setores Criativos Nucleares

a.

Patrimônio

natural e

cultural

b. Espetáculos

e celebrações

c. Artes

visuais e

artesanato

d. Livros e

periódicos

e. Design e

serviços

criativos

f.

Audiovisual

e mídias

interativas

Setores Criativos Relacionados

g.

Turismo

- Roteiros de viagens e

serviços

turísticos - Serviços de

hospitalidade

h. Esportes e

lazer

- Esportes - Preparação

física e bem

estar - Parques

temáticos e de

diversão

Patrimônio Imaterial

(expressões e tradições orais, rituais, línguas e práticas sociais)

Educação e capacitação

Registro, memória e preservação

Equipamentos e materiais de apoio

Quadro 01 – Escopo de setores criativos segundo a UNESCO (2009).

Page 5: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Fonte: MinC(2011, p. 27).

Os setores criativos nucleares são aqueles de natureza essencialmente criativa. São

aquelas atividades que possuem como processo principal um ato criativo gerador de valor

simbólico que responde por uma produção de riqueza cultural e econômica. Por seu turno, os

setores criativos relacionados correspondem aos segmentos que não são essencialmente

criativos, “mas que se relacionam e são impactados diretamente por estes, por meio de

serviços turísticos, esportivos, de lazer e de entretenimento” (MINC, 2011, p. 26).

No entanto, apoiado nessa proposição da UNESCO e na Conferência das Nações

Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, o Governo Federal, através do Ministério da

Cultura apresentou uma variação desse escopo, tendo por base a inserção mais específica de

algumas categorias.

1. Patrimônio– sítios culturais (arqueológicos, museus, bibliotecas e

galerias) e Manifestações tradicionais (arte popular, artesanato, festivais e

celebrações); 2. Artes– artes visuais (pintura, escultura e fotografia) e artes

performáticas (teatro, música, circo e dança); 3. Mídias– publicações e

mídias impressas (livros, jornais e revistas) e audiovisual (cinema, televisão

e rádio);4. Criações funcionais– design (interior, gráfico, moda, jóias e

brinquedos), serviços criativos (arquitetura, publicidade, P&D Criativos,

lazer e entretenimento) e novas mídias (softwares, jogos eletrônicos e

conteúdos criativos digitais) (MINC, 2011, p. 30).

Assim, por conta da criação da recente Secretaria da Economia Criativa (SEC),

Decreto 7743 de 1º de junho de 2012, o Governo Federal definiu o escopo dos setores

criativos em cinco categorias e dezenove setores criativos. O Esquema abaixo procura

apresentar tal escopo criativo.

No campo do patrimônio

a) Patrimônio Material

b) Patrimônio Imaterial

c) Arquivos

d) Museus

No campo das expressões

culturais

e) Artesanato

f) Culturas Populares

g) Culturas Indígenas

h) Culturas Afro-brasileiras

i) Artes Visuais

j) Arte Digital

No campo das Artes de espetáculo k) Dança

l) Música

m) Circo

Page 6: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

n) Teatro

No campo do Audiovisual/do

Livro,

da Leitura e da Literatura

o) Cinema e vídeo

p) Publicações e mídias impressas

No campo das

Criações Culturais

e Funcionais

q) Moda

r) Design

s) Arquitetura

Quadro 02 – Escopo Categorias e setores criativos – MINC (2011). Fonte: MinC (2011, p. 30).

A missão da Secretaria é viabilizar a formulação, a implementação e o monitoramento

de políticas públicas para o desenvolvimento local e regional, priorizando o apoio e o

fomento aos profissionais e aos micro e pequenos empreendimentos criativos brasileiros. O

objetivo é tornar a cultura um eixo estratégico nas políticas públicas de desenvolvimento do

Estado brasileiro (MINC, 2012). Para tanto, o Ministério da Cultura definiu quatro eixos

norteadores das ações de economia criativa para o Brasil: inovação; diversidade cultural;

sustentabilidade; e inclusão social.

A diversidade cultural é norteador na medida em que se considera a ambiência e a

riqueza da diversidade na constituição do país. Ou seja, a criatividade é processo e produto da

diversidade, devendo ser valorizada, protegida e promovida “como forma de garantir a sua

originalidade, a sua força e seu potencial de crescimento” (MINC, 2011, p. 34). Já a

sustentabilidade encontra o seu eixo de análise na compreensão e debate sobre o

desenvolvimento. O uso dos recursos naturais e das tecnologias poluentes acabou por gerar

grandes desequilíbrios ambientais. Por seu turno, o consumo massificou mercados com a

oferta de produtos de baixo valor agregado, destituídos de elementos originais e

identificadores de culturas locais. Essa conjuntura trouxe em seu bojo uma pífia ação de

desenvolvimento endógeno que, através da economia criativa, deve ser potencializado por

políticas públicas transversais.

O terceiro tópico norteador é a inovação. Para o Minc (2011), inovar exige

conhecimento, a identificação e o reconhecimento de oportunidades, a escolha por melhores

opções, a capacidade de empreender e assumir riscos, um olhar crítico e um pensamento

estratégico que permitam a realização de objetivos e propósitos. Assim, inovação deve ser

compreendida como o aperfeiçoamento do que está posto (inovação incremental), ou a

criação de algo totalmente novo (inovação radical). Este item em determinados segmentos

Page 7: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

criativos tem uma relação direta com a identificação de soluções aplicáveis e viáveis,

especialmente nos segmentos criativos cujos produtos são frutos da integração entre novas

tecnologias e conteúdos culturais.

Por fim, a inclusão social também é vista como princípio fundamental para o

desenvolvimento de políticas públicas culturais na área da economia criativa. O objetivo deve

ser a promoção da inclusão produtiva da população, priorizando aqueles que se encontram em

situação de vulnerabilidade social, por meio da formação e qualificação profissional e da

geração de oportunidades de trabalho e renda (MINC, 2011). Além disso, o consumo deve ser

incentivado como uma ação efetiva de acesso a bens e serviços criativos como premissa para

a cidadania. Afinal, uma população que não tem acesso ao consumo e fruição cultural é

amputada na sua dimensão simbólica (MINC, 2011, p. 35).

É neste cenário complexo onde são tecidas as atividades criativas e culturais da região

das missões e, deste ponto de vista teórico-conceitual, partimos para a identificação e o

contato com alguns produtores criativos, especificamente o artesão e Guasqueiro Ibânes

Barbosa, que há mais de 45 anos trabalha com a arte em couro.

O GUASQUEIRO

Não encontramos uma definição etimológica e conceitual do termo “Guasqueiro”. De

acordo com fontes populares, trata-se de uma prática artesão que, basicamente, diz respeito à

habilidade de manufaturar o couro curtido de animais, como o bovino, equino e o ovino.

Juliano Moreno, músico popular gaúcho, nos proporciona certo entendimento a partir de uma

de suas canções, que tematiza o “Guaqueiro” a partir da história e da prática propriamente

dita.

Nos primórdios rio grandenses, já como exportação

O couro de nossos bichos davam trabalhos pras mãos

Na base do couro cru surgem pertences campeiros

Razões pra lida gaúcha, forjada pelo guasqueiro.

Minguante é a lua certa, pra courear um animal

O couro da lua nova, resseca e quebra o carnal

Se a flor do couro está verde, ele é posto pra oriar

Mais dois dias em baixo d'agua, e está pronto pra estaquear

Page 8: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

No detalhado das cordas, fica estampado o capricho

De algum mulato vaqueano, que é guasqueiro por ofício

Sovando couro empedrado, verdadeiro couro cru

Que não são solas cortidas, pra deixa de a pé um Xirú

Em nosso meio rural, pra preparar um apero

A um ritual a ser seguido por esses homens campeiros

Com suas mãos envidraçadas, no pampa sul brasileiro

São estes os nossos guascas, que se apresentam guasqueiros

Limpa o sangue e alguma carne, que restaram com a gordura

Se deixa bem estirado, pra emparelhar a espessura

"Despus" de oreado "el cuero", e a macete bem sovado

Da zona da barrigueira, saem tentos bem delgados

Desquinando os tentos crus, pra ficar bem ajustado

Se acaso a trança for chata, desdobra os quatro costados

Apertando o pé do tento, com a ajuda do cravador

Levanta ramo por ramo, tá firmado o corredor.7

Desta poesia, compreendemos um pouco dos sentidos práticos do ofício do

Guasqueiro, que segundo o nosso personagem, Sr. Ibânes, também é um Patrimônio

imaterial, pois os saberes por ele adquiridos perduram por aproximadamente três gerações.

Deste contato inicial com a temática, passamos a nos preocupar com a forma de contato

presencial e mais intenso com o Sr. Ibânes. É neste momento que a Etnografia figura em

nosso projeto audiovisual.

O PERCURSO ETNOGRÁFICO DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

Concebemos a produção audiovisual como uma arte que requer metodologías capazes

de nos colocar em aproximação e em sintonia com a singularidade dos personagens; que nos

indique o caminho mais curto entre a natureza e o absoluto do que pretendemos registrar e

representar. Portanto, concebemos a produção audiovisual da memória enquanto uma

atividade que requer a busca ou o registro da naturalidade do mundo, expressando, assim, o

absoluto, a unicidade e a singularidade.

7 https://www.letras.mus.br/juliano-moreno/guasqueiro . Acesso em 12/07/2016

Page 9: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Para isso, vale observar algumas ideias do cineasta Russo Andrei Tarkovski, para o

qual “nem os cineastas e nem os diretores devem se encontrar em situação de superioridade

com a relação ao que se trata de dizer ou de representar” (AUMONT, 2012, p. 62). É preciso,

portanto, produzir ao mesmo passo que se entrega à naturalidade das coisas que nos cercam.

Assim, para Tarkovski, a produção audiovisual deve ser fruto de um encontro e de um

querer encontrar. O cineasta/cinegrafista depende do que ele “encontrará, mas trabalha – a

partir do seu intelecto - para provocar este encontro” (idem, p. 62). Ele ainda ressalta que “o

filme não é algo que se domine e calcule; trata-se de criar ou recriar uma experiência, que

deve ser vivida pela primeira vez durante a filmagem” (p. 62).

Todavia, a produção cinematográfica como imagem artística nasce da conjunção

paradoxal do querer (intencionalidade) e do não querer (espontaneidade); requer, portanto, a

intencionalidade intelectual e artística e a submissão à qualidade ou à natureza das coisas que

nos rodeiam, pois, a imagem é sempre concebida com dupla face: um lado representativo,

que puxa em direção do mundo (e constitui sua garantia referencial), e um lado metafórico,

que é a sua parte propriamente criativa (e constitui a sua garantia artística).

A imagem conduz ao absoluto, porque é uma forma de pensamento autônomo,

absolutamente diferente do verbal: “quando o pensamento exprime por meio de uma imagem

artística, é porque encontrou a forma única que traduz da melhor maneira possível o mundo

do autor e a sua busca de ideal” (TARKOVSKI, 1990, p. 99).

A visão naturalista que Tarkovski tem do audiovisual diz respeito ao caráter artístico

que a imagem deve assumir. Orienta-nos que uma produção audiovisual deve ser feita de

imagem fresca, nova, não repetida ou desgastada. Este frescor da imagem está ligado a seu

caráter artístico: “a arte é feita de intuição, de espontaneidade, de criatividade, pois a imagem

artística é única, indivisível” (idem, p. 41).

Assim, a produção audiovisual resulta de uma percepção poética, imediata, que não

visa analisar nem compreender intelectualmente, mas encontrar e descobrir. Se é uma arte de

imagem, o cinema torna-se, a exemplo da música, uma arte direta, sem a necessidade de uma

linguagem intermediária. Conceber o audiovisual como arte é vê-lo como “essa linguagem da

Page 10: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

natureza das coisas em mim, mais do que eu, mas nunca sem mim”. (AUMONT, 2012, p.

64).

Vale salientar, que o mundo só se manifesta no encontro; na comunicação; na relação

entre os sujeitos comunicantes: “filmar é ir a um encontro da singularidade, do absoluto que

somente é revelado naquele momento. No inesperado que a filmagem me oferece, há algo

que espero: um clarão de verdade sobre o real” (AUMONT, 2012, p. 17). Mesmo citando

como exemplo a ação técnica da câmera ou do cinematógrafo, o trabalho primordial é “não

entravar em nada essa manifestação do real” (AUMONT, 2012, p. 17).

O trabalho do cineasta consiste em provocar, em identificar e em comunicar esse

encontro. Quando da filmagem, o cineasta está em uma posição dupla e contraditória, é todo

atenção e todo retraimento: deve deixar algo advir – não importa o quê, qualquer coisa, mas

singular – e, ao mesmo tempo, ele é o fomentador desse advento, que não aconteceria sem

ele”. (AUMONT, 2012, p. 18).

Nessa perspectiva, adotamos a Etnografia como uma via metodológica indispensável.

Como define Geertz: “praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes,

transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por

diante” (2008, p. 04). Na medida em que fomos tomando conhecimento dos inúmeros fatores

históricos que compunham o fenômeno, percebemos a necessidade de observar com mais

sutileza e a establecer o diálogo através de diversas perspectivas.

O MICRO-DOCUMENTÁRIO “GUASQUEIRO”: IBANES BARBOSA

A aproximação com o nosso personagem e também artista Ibanes Barbosa foi

intermediado por Ulisses Souza, aluno egresso do curso de Relações Públicas da Unipampa.

Sempre estivemos certos de que o argumento central deste micro-documentáio seria a arte

produzida pelas mãos de Ibanes, bem como a sua viva sabedoria, que como já dissemos,

perdura em seu núcleo familiar por três gerações.

Antes de iniciarmos a gravação do micro-documentário realizamos um processo de

aproximação, mediado por Ulisses, que entrou em contato com Sr. Ibanes e solicitou a

Page 11: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

permissão para o nosso encontro presencial e a possível gravação audiovisual de sua

biografia. De imediato Ibanes aceitou nos receber, o que ocorreu logo em seguida, em uma

tarde de sexta-feira, dia 06/11/2016.

Imagem 01: chegada na casa de Sr. Ibanes. Sentada está a sua esposa Sra. Diamantina

Fonseca. Créditos. Fernanda Martini

Na sequência, iniciamos uma rápida conversa, evidenciando, novamente, os objetivos

do documentário. Ibanes se mostrou disposto e alegre com a proposta, pois, segundo ele, não

participou de nenhum trabalho semelhante, seja audiovisual, jornalístico ou de pesquisa

acadêmica.

A maior parte das gravações foi realizada no seu ateliê, que fica aos fundos de sua

residência, localizada no bairro do Passo, região norte de São Borja. Dentre as ferramentas,

também encontramos uma diversidade de peças de couro, matéria prima da sua arte e um

livro, que nos indica ser uma das fontes do seu aprendizados

Page 12: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Imagem 02: Livro utilizado pelo artesão e disposto no seu ateliê para as visitas.

Créditos. Giulia Junges

Iniciamos a gravação em seu ateliê, onde iniciou nos contanto sobre a diversidade de

produtos que havia produzido naquela semana. Ibanes logo enfatizou relata que não possui

um produto específico, mas que procura diversificar a produção.

Page 13: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

Imagem 03: Ibanes nos mostra um dos trabalhos que lhe exige mais atenção: o

trançado em bainhas de faça. Créditos. Giulia Junges

Ibanes nos relata que possui, aproximadamente, mais de 50 itens e que atende

diversas demandas, desde pequenas tarefas, como um remendo, até a confecção do que ele

considera mais difícil: a confecção de trançados e de pontos em cintos e outros assessórios,

alguns, segundo ele, expostos em feiras no Estado de São Paulo e até mesmo nos Estados

Unidos.

Imagem 04: Fotografia de um cinto (guaiaca), que foi levada para os EUA. Créditos. Giulia

Junges

Ao final da entrevista, Ibanes enfatiza que a sua arte é fruto da sua vontade de

aprender. Ressalta que nenhum dos netos ou filhos se interessaram pelo ofício. Encerramos as

gravações agradecendo a Ibanes e a sua família. O processo de edição, recentemente

concluído, possibilitou a confecção de uma cópia digital, bem como a veiculação na

plataforma Youtube, que pode ser acessado em

https://www.youtube.com/watch?v=L4-8rbzhU10

Page 14: MICRO-DOCUMENTÁRIOS DE ATIVIDADES CRIATIVAS E …omicult.org/emicult/anais/wp-content/uploads/2016/...atividades criativas e culturais da região das missões, especificamente a prática

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar este audiovisual não nos possibilitou apenas publicizar uma prática

social, mas, sobretudo, estramos em contato, convivermos e dialogarmos com um sujeito que,

através da sua viva inteligência, ofereceu-nos confiança e simpatia ao expor sua produção

artística. Ibanes é um dentre os inúmeros artistas criativos da região missioneira e, por isso, o

maior desafio do nosso projeto talvez seja o de continuar buscando personagens, histórias e

artes que certamente nos mostraram novos potenciais culturais e econômicos deste território.

São poucos os produtos audiovisuais ou, podemos afirmar, quase inexistente os

conteúdos que evidenciam e buscar valorizar as atividades criativas e culturais da região

missioneira. Portanto, os próximos micro-documentários irão percorrer o caminho da

identificação dessas atividades criativas e partir, assim, para o processo de registro e

veiculação audiovisual. Importante ressaltar, que o audiovisual é um produto capaz de

aproximar a universidade desses personagens, na grande maioria alheios ou desconsiderados

pelas nossas pesquisas e práticas acadêmicas.

BIBLIOGRAFIA

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. 3ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

MINISTÉRIO DA CULTURA- MINC, 2011.

TARKOVSKI. Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 2008.