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Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma analítica foucaultiana sobre identidades na resistência PAULO EDGAR R. RESENDE 1 ANDRÉ VIANNA NASCIMENTO 2 RESUMO Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias conferem ao ativismo de resistência, entendendo por este o comprometimento com uma ação política de ruptura com processos de dominação e de transformação radical das relações de poder. O desafio que se apresenta é o de rompimento com identidades que determinam formas engessadas de conduta e de composição da subjetividade, que constituem a metafísica de “quem sou” e de “quem é o outro”, sem que para isso se engesse em novas identidades. Todo processo de libertação requer um confronto para livrar-se de uma forma subordinada de constituição do sujeito. Entretanto, fixar-se em uma nova forma identitária pode limitar o confronto que se faz necessário para que o mundo mude. Testaremos a proposta analítica aqui apresentada na apreciação de alguns aspectos do grupo das combatentes de Rojava, que, ao que tudo indica, estão sendo capazes de reestruturar os signos cognitivos e performativos do que é ser mulher e do que as mulheres são capazes. Com a reflexão aqui proposta, pretendemos contribuir com o ativismo de resistência. Palavras-chave: Foucault, ativismo, resistência, Rojava Introdução Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias e as políticas identitárias proporcionam ao ativismo de resistência. A resistência política será tanto mais potente quanto mais os ativistas tiverem disposição e capacidade para, além dos confrontos na macropolítica, se desterritorializar de sociabilidades autoritárias e assujeitamentos, romper com relações de dominação e deslocar relações de poder. Nesta 1 Doutor em Ciência Política pela Universidade Autônoma de Barcelona, realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP. 2 Mestrando em Sociologia Política na Universidade Vila Velha, é bacharel em Relações Internacionais pela mesma universidade.

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Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma analítica foucaultiana

sobre identidades na resistência

PAULO EDGAR R. RESENDE1

ANDRÉ VIANNA NASCIMENTO2

RESUMO

Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas

de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na

atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias conferem

ao ativismo de resistência, entendendo por este o comprometimento com uma ação política de

ruptura com processos de dominação e de transformação radical das relações de poder. O

desafio que se apresenta é o de rompimento com identidades que determinam formas

engessadas de conduta e de composição da subjetividade, que constituem a metafísica de “quem

sou” e de “quem é o outro”, sem que para isso se engesse em novas identidades. Todo processo

de libertação requer um confronto para livrar-se de uma forma subordinada de constituição do

sujeito. Entretanto, fixar-se em uma nova forma identitária pode limitar o confronto que se faz

necessário para que o mundo mude. Testaremos a proposta analítica aqui apresentada na

apreciação de alguns aspectos do grupo das combatentes de Rojava, que, ao que tudo indica,

estão sendo capazes de reestruturar os signos cognitivos e performativos do que é ser mulher e

do que as mulheres são capazes. Com a reflexão aqui proposta, pretendemos contribuir com o

ativismo de resistência.

Palavras-chave: Foucault, ativismo, resistência, Rojava

Introdução

Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas

de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na

atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias e as

políticas identitárias proporcionam ao ativismo de resistência. A resistência política será tanto

mais potente quanto mais os ativistas tiverem disposição e capacidade para, além dos

confrontos na macropolítica, se desterritorializar de sociabilidades autoritárias e

assujeitamentos, romper com relações de dominação e deslocar relações de poder. Nesta

1 Doutor em Ciência Política pela Universidade Autônoma de Barcelona, realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP. 2 Mestrando em Sociologia Política na Universidade Vila Velha, é bacharel em Relações Internacionais pela mesma universidade.

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pesquisa encontramos que ao serem desconstruídas, as identidades podem servir tanto para

liberações como para a produção de novos assujeitamentos.

Enquanto forma de identificação de grupos ou ideias, não necessariamente

proporciona limitações à resistência. Mas quando imobiliza ou dificulta deslocamentos

coerentes com o cuidado de si e com a prática de uma verdadeira vida, conectada com a

singularidade de cada indivíduo, ela age como camisa de força carimbando regras,

essencializando condutas e produzindo racionalidades. Definitivamente, as lutas de resistência

requerem empreender formas de confronto para livrar-se de modelos asujeitados da constituição

do sujeito, que compõem modos de vida.

Encontramos nos estudos de Foucault (2017) à respeito da filosofia grega antiga, mais

especificamente da corrente denominada “cinismo”, importante contribuição às reflexões sobre

a resistência nos modos de vida, compondo parte indissolúvel das lutas políticas. A noção de

“militantismo”, proposta pelo autor, nos permite atualizar aquelas vivências antigas para um

sentido atual que pode ser localizado em distintas modulações da resistência. Com essa maior

clareza à respeito de uma estética da existência que se faz bela ao compor uma ética que implica

tanto o cuidado de si quanto o rigor a uma vida verdadeira, temos referenciais importantes para

se pensar e analisar a resistência política no tempo presente.

O pensamento e ativismo anarquista, outra importante referência empírica às

formulações de resistência, coincide com essa formulação ao adequar os meios aos fins, de

modo que as formas de luta e sociabilidade devem ser intrinsecamente coerentes com os

objetivos que se almeja alcançar. Desta forma, a prática anarquista não depende do sucesso de

uma revolução futura, se fazendo presente na ética da vida cotidiana daqueles que lutam pela

maximização da liberdade. É certo que neste processo, há muitos desafios, principalmente pela

identificação dos dispositivos de autoridade, materiais ou subjetivos, que incidem na limitação

do êxito de tais empreendimentos.

Um dos principais desafios que identificamos que se colocam a essas lutas e formas

de vida de resistência, trata-se das identidades. Enquanto forma de identificação de grupos ou

ideias, não necessariamente proporciona limitações à resistência. Mas quando imobiliza ou

dificulta deslocamentos coerentes com o cuidado de si e com a prática de uma verdadeira vida,

conectada com a singularidade do sujeito, ela age como camisa de força carimbando regras e

produzindo racionalidades. As coerências e compromissos com grupos, como alertadas por

Stirner (2004), tendem sempre a apresentar desafios às liberdades do indivíduo.

Definitivamente, as lutas de resistência requerem empreender formas de confronto

para livrar-se de modelos asujeitados da constituição do sujeito, que definem condutas e modos

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de vida. Neste trabalho, analisamos as práticas de liberdade que implicam confrontos, condutas

e contracondutas, continuidades e rupturas da Revolução de Rojava, que, ao que tudo indica,

está sendo capaz de reestruturar os signos cognitivos e performativos de gênero, desmontar a

autoridade patriarcal e reinventar relações econômicas, com base na igualdade e na

solidariedade. Iniciaremos o percurso desta reflexão expondo o pensamento de Foucault, com

o qual dialogaremos diretamente, para em seguida resgatar e discutir singularidades do

militantismo de Rojava, principalmente no que diz respeito ao modo com que lidam com

identidades. Como esta pesquisa está em andamento, não pretendemos englobar aqui a

totalidade das relações e modos de vida do povo de Rojava no que diz respeito às identidades,

mas destacar alguns recortes, que nos foi possível acessar.

Práticas de liberdade e militantismo como estilo de vida revolucionário

Para uma aprofundada discussão e compreensão acerca do potencial e das intensidades

de transformação das lutas sociais e políticas, torna-se imprescindível levar em consideração

os modos de vida, as relações sociais, a micropolítica da vida cotidiana, ao lado das

transformações macropolíticas, estruturais nas instituições do Estado e da economia. O tema

constitui-se de vital importância na história das lutas políticas, ao menos desde o

desentendimento de Mikhail Bakunin com Karl Marx na Associação Internacional dos

Trabalhadores até o ativismo atual nas redes sociais. Emma Goldman insiste na importância de

que “os meios utilizados para promover a revolução devem estar em harmonia com seus

propósitos” (GOLDMAN, 1977: 148), entende-se, propósitos de promover transformações

sociais profundas e consistentes para uma sociedade livre de opressões e autoritarismo:

A grande missão da revolução, da revolução social, é uma transposição fundamental

de valores. Uma transposição não apenas dos valores sociais, mas dos valores

humanos, estes até mais importantes, já que são a base de todos os outros. Nossas

instituições e as condições em que vivemos estão fundadas em ideias profundamente

enraizadas. Mudar essas condições, deixando ao mesmo tempo intactas as ideias e

valores subjacentes, significa que houve apenas transformações superficiais que não

poderiam ser permanentes nem trariam qualquer melhora real. E que seriam apenas

mudanças de forma, não de substância, como ficou tragicamente provado na Rússia”

(GOLDMAN, 1977, p. 145).

A provocação de Goldman tem, ao nosso ver, ao menos duas implicações importantes

às lutas políticas de resistência: o primeiro que elas devem se iniciar de imediato, não aguardar

pela grande revolução que abalará às instituições existentes; o segundo, que a luta de

resistência, para ter êxito substancial na transformação de uma realidade deve se dirigir

principalmente às subjetividades. Passetti (2002: 151) explica: “O anarquista quer uma outra

sociedade, sem castigo, medo, propriedade privada, tribunal, hierarquia e procura fazê-la

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cotidianamente”. As analíticas de Foucault sobre as relações de poder e a história da produção

dos sujeitos coincidem com essa perspectiva. Sobre as lutas de resistência, o autor aponta três

formas em que as podemos encontrar:

Contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de

exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo

que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a

sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão) (FOUCAULT, 2009: 235).

E conclui: “O principal objetivo destas lutas é atacar, não tanto ‘tal ou tal’ instituição

de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder (...) que faz

dos indivíduos sujeitos” (idem). É neste ponto que se constitui nosso interesse sobre a produção

de subjetividade que constitui cuidados de si, práticas de liberdade e militantismo, como forma

de vida. Ao comentar sobre o que implica para Luce Fabbri praticar o anarquismo, Rago ilumina

bem a questão:

Implica um trabalho político, ético e estético sobre si mesma, um elaborar a própria

vida como obra de arte, uma construção subjetiva sofisticada, tendo em vista o

exercício da liberdade e a ampliação dos espaços da autonomia. A prática cotidiana

do anarquismo se coloca para ela como um trabalho ético em relação ao mundo e a

si mesma, como uma busca ininterrupta da liberdade, associada à questão da

solidariedade e da justiça social. E aqui as dimensões de gênero interferem

visivelmente, já que sabemos o quanto as mulheres têm-se vinculado às questões da

subjetividade, desfazendo as fronteiras simbólicas entre o mundo público e o privado,

enquanto tradicionalmente os homens têm construído ou têm sido impulsionados a

criar uma cultura exterior, objetiva e racional (RAGO, 2001: 22).

A vida como obra de arte pode ser entendida como uma estética da existência, o

desfrute e disposição de uma vida bela, única e singular, construída a partir do cuidado de si e

práticas de liberdade. “Os anarquismos desde o século XIX traçam seus percursos sintonizando

a vida vivida com sua utopia, ou melhor, nos termos de Foucault, produzem suas heterotopias

no presente, de modo similar ao que ele compreende a vida como manifestação da arte: o artista

como condição da obra de arte” (PASSETTI et al., 2019: 37). O cuidado de si já implica uma

prática de liberdade, na medida em que há busca por se conhecer, por se cuidar, se respeitar e

“estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, (...) poder, comando”

(FOUCAULT, 2017a: 264), que, por fim, compõe uma certa maneira de ser e de se conduzir.

É isso que faz a vida como uma obra de arte, ética e livre, capaz de libertar o indivíduo de

formas de subjetivação e submissão, sem reproduzi-las. Foucault apreende essas modulações

de seus estudos sobre a filosofia e as formas de vida na antiguidade grega, onde as práticas de

liberdade eram questões essencialmente éticas, nas quais o cuidado de si poderia produzir, por

efeito, o cuidado com o outro e uma admirável estética da existência (FOUCAULT, 2004).

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É neste contexto de uma estética da existência singular e livre que o autor propõe a

noção de militantismo, atualizando o modo de vida dos filósofos gregos da corrente

denominada “cínica”. Esse modo de vida de resistência implica a manifestação irruptiva e

escandalosa da verdade, que se verificou na prática revolucionária do século XIX, compondo

“a vida como atividade revolucionária, ou a atividade revolucionária como vida”

(FOUCAULT, 2017: 161). Esse estilo de existência

Deve estar em ruptura com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade. E ele

deve manifestar diretamente, por sua forma visível, por sua prática constante e sua

existência imediata, a possibilidade concreta e o valor evidente de uma outra vida,

uma outra vida que é a verdadeira vida (idem).

Mas não foi somente desse estilo de vida que a prática revolucionária se compôs no

século XIX. Teve também outros dois aspectos que seria a “socialidade secreta” e a

“organização instituída”. Este último, “procura impor seus objetivos e sua dinâmica no campo

social e político” (idem), se fazendo reconhecer em organizações revolucionárias. Mas a

verdadeira vida posta pelos gregos é aquela em que a coragem pela verdade é levada até os

últimos limites: “ir à verdade, manifestar a verdade, fazer a verdade estourar até perder nisso a

vida ou fazer correr o sangue dos outros” (idem: 162). E essa manifestação radical e escandalosa

da verdade, que se faz necessária para expressar e viver uma vida verdadeira, se faz fundamental

no estilo de vida militantista revolucionária.

Importante situar que a combinação de um projeto político com uma forma de vida

vivida nos termos aperesentados, além de coincidir com os projetos anarquistas, como apontado

anteriormente, coincide também com alguns ativismos hodiernos, que ganharam proeminência

após o acontecimento de Maio de 1968. O que os pesquisadores acadêmicos logo denominaram

“novos movimentos sociais”, que são grupos de ativistas que se estruturam em torno do

confronto em pautas cognitivas, culturais e/ ou identitárias (MELUCCI, 1994). Inicialmente

tais lutas eram focadas em práticas de liberdade que fossem capazes de estremecer as relações

de dominação e possibilitar de imediato novas possibilidades de vida:

“Os jovens escancaravam àquele mundo que ele tinha acabado! Não estavam ali

para mostrar os rumos para um novo mundo, apenas lançavam bombas nos costumes,

nas ideias, no convencional, no conformismo, na padronização, na idiotice, no sexo

timidamente desgovernado, na crença no Estado, no dia seguinte, no futuro melhor”

(PASSETTI et al., 2019: 23).

A plasticidade do capitalismo em sua modulação neoliberal, no entanto, foi capaz de

capturar a insurreição de 1968 para transformar a pauta de sujeitos que reivindicavam relações

cotidianas pautadas na ética da liberdade, ou uma nova estética da existência, em pauta de

sujeitos portadores de direitos que reivindicam reconhecimento. Economicamente úteis e

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politicamente dóceis, esses sujeitos encontram no desenvolvimento do capital humano, no

garantismo jurídico e na justiça penal os dispositivos necessários para a inclusão

socioeconômica e o reconhecimento de direitos das minorias sociais. Tomados pela

racionalidade neoliberal, pautam sua ética da vida cotidiana no empreendedorismo de si e no

policiamento das condutas alheias (PASSETTI, 2019). É nesse contexto que a política

identitária ganha relevo nos movimentos sociais e no ativismo hodierno.

Identidade e o desafio às resistências

A captura do ativismo que combate o racismo, as classes sociais e o patriarcado em

ativismo identitário reduziu a combatividade dessas lutas. Tornou resistência em resiliência e

retirou seu significado antissistêmico. Assim, a busca por reconhecimento e direitos de inclusão

e ascensão social, econômica e política, capitaneada por lideranças bem adaptadas à

racionalidade neoliberal, marginalizou a luta contra o racismo e o patriarcado alocados nas

estruturas do próprio Estado e do capitalismo. O multiculturalismo neoliberal foi capaz de

assimilar as demandas por representatividade e reconhecimento de direitos das minorias,

desfazendo sua vinculação com os confrontos estruturais. Na medida em que diversifica e

amplia o capital humano disponível para o empreendedorismo econômico e para a liderança

política, pacificando simultaneamente as lutas e confrontos sociais, o sistema se renova e se

fortalece. As questões das minorias se tornam pautas da política representativa e são

incorporadas nas constituições e demais legislações complementares (PASSETTI, 2019;

PASSETTI et al. 2019; HAIDER, 2019).

Apesar dessa domesticação de conflitos, que ao assimilar as lutas dos movimentos

sociais, amplifica a capacidade do Estado em produzir políticas públicas de atendimento a suas

demandas (LAVALLE et al., 2019). Se por um lado, conforme relatam os autores, os

movimentos ganham capacidade de mobilização ao verem suas demandas atendidas a partir

desse processo de interação, é necessário reconhecer que isso se faz possível certamente a partir

de uma adequação das estratégias de reivindicação e organização dos movimentos aos atores

estatais. Sobre o caso dos movimentos de liberdade sexual, César (2016) afirma:

Se, por um lado, observa-se um conjunto importante de conquistas sociais para a

população LGBT, por outro lado observa-se também que essa aliança passou a ser o

meio exclusivo da escuta, do diálogo e do estabelecimento de políticas e ações de

combate ao preconceito e à violência. Mesmo se essas relações nunca se solidificam

por completo, pois sempre há avanços e recuos na relação do Estado com os

movimentos LGBT, observa-se no cenário político brasileiro a consolidação de

políticas LGBT exclusivamente encaminhadas por grupos sociais organizados em

torno das identidades sexuais e de gênero, os quais se concebem como sujeitos

identitários que reivindicam direitos. Por certo, inicia-se aí uma importantíssima

dinâmica político-social em que esses novos sujeitos de direito e as novas identidades

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abarcadas por esses movimentos reivindicam direitos sociais e individuais que lhes

foram negados em razão da identidade de gênero e da orientação sexual. Por outro

lado, contudo, atualmente já é possível considerar e antever alguns dos riscos

produzidos por esse processo no que diz respeito à possível normalização dessas

identidades. A tal risco também se acrescenta a perda do potencial crítico, criador e

transformador da ordem social e sexual, que caracteriza a originalidade dos

movimentos homossexuais até meados da década de 1980. A partir de uma

perspectiva teórica de inspiração foucaultiana, (...) podemos observar como a

produção de novas identidades e novos sujeitos de direitos está associada à produção

de novos mecanismos de controle e regulação de corpos, modos de vida, práticas

sexuais e sociais (CÉSAR, 2016: 138-139).

A curto prazo esse ativismo de matrizes de representação identitária pode, em sua

interação com o Estado, obter ganhos positivos para a qualidade de vida, no que é possibilitado

pela regulamentação de direitos, investimentos e serviços estatais. A médio e longo prazos, as

relações de dominação solidificadas na estrutura do estado e na exploração do trabalho,

permanecem intocáveis e possivelmente até mesmo fortalecidas, já que atualizadas por vezes

com equilíbrio e moderação. Ao relatar o processo de interação da luta antirracista com o

establishment político e econômico nos Estados Unidos, Asad Haider resume bem o problema:

As persistentes ideologias de unidade racial que sobraram do movimento Black

Power racionalizaram o controle da base pela elite negra, a qual se esforçou para

obscurecer as diferenças de classe que garantia sua própria entrada na

institucionalidade hegemônica. A classe política negra ascendeu no contexto de crise

econômica, desindustrialização e crescimento do desemprego dos anos 1970. Uma

política concebida unicamente em termos de unidade racial impossibilitava qualquer

contestação estrutural ao imperativo capitalista e sua transferência dos custos da

crise econômica ao trabalhador. Os políticos negros facilitaram a ofensiva dos

patrões, voltando-se contra os elementos da classe trabalhadora que eram parte da

sua base de apoio (HAIDER, 2019: 107-108).

Como efeito, mecanismos estruturais de dominação, como as leis, os presídios, a

polícia, a justiça penal e a propriedade privada, permanecem intocados. Com muita imaginação

se poderia pensar que a partir da luta dos movimentos e ativistas os alvos preferenciais do

“racismo de estado” (FOUCAULT, 2008b) ou da “necropolítica” (MBEMBE, 2018) deixariam

de ser as minorias historicamente subalternizadas, havendo assim maior distribuição social do

flagelo da subalternidade. É aí que residem a exploração do trabalho, a divisão social do

trabalho, o controle da sexualidade, as violências domésticas, sexuais e policiais, o

encarceramento em massa, a criminalização de suas atividades, o desprezo por suas vidas e etc.

Como o ideal para uma vida livre e justa é que o próprio flagelo e sujeição deixem de existir,

se faz necessário voltar o olhar para as resistências a esse modo de vida pautado na dominação,

no controle, na hierarquia, na heteronomia e na autoridade.

Novamente, Foucault nos dá algumas pistas nessa direção com as noções de

subjetivação e estética da existência. Com a noção de subjetivação compreendemos como a

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subjetividade é formada a partir de dispositivos de poder que se amparam em determinadas

verdades estabelecidas e que se colocam sobre o indivíduo em forma de sujeição a outros. Essa

sujeição, que a partir do cristianismo se evidencia na submissão dos desejos, dos pensamentos

e das condutas sobre uma verdade expressa por um poder pastoral, implica na autoanulação de

si para a salvação da alma (FOUCAULT, 2008a). Nesse propósito, a identidade pode exercer

importante papel para o assujeitamento, ao reduzir a existência do ser a uma essência de

determinadas condutas instituídas e normalizadas (DUARTE, 2016; CÉSAR, 2016).

Se as pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “identidade própria” e que

esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência, se a

questão que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com minha

identidade?”, então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito

próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação

à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as

relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade,

elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito

chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés da

identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa

identidade como uma regra ética universal (FOUCAULT, 2004b: 265-266).

A partir dessas considerações podemos pensar a identidade como podendo ser

ocasionalmente estratégica para o sujeito encontrar novos caminhos de modos de vida, novas

possibilidades existenciais, que escapem dos modelos estabelecidos. Isso, se ela for capaz de

contar com uma certa fluidez. Nesse sentido encontramos a consideração de McLaren (2016),

que não deixa, entretanto, de situar um importante contraponto:

Identidade pode ser uma importante fonte de empoderamento. Identidade de grupo

compartilhada pode ajudar indivíduos de grupos oprimidos a verem suas

experiências não como falhas psicológicas, como é frequentemente o caso para

mulheres antes dos movimentos feministas, mas questões sociais e políticas.

Estratégias liberais funcionam bem para conquistar direitos civis e representação

política para grupos oprimidos, mas (...) apesar da significância política da

identidade, ela pode funcionar de forma prejudicial e limitadora (MCLAREN, 2016:

166).

Retomando o argumento de distintas feministas críticas da identidade, como Judith

Butler, Shane Phelan, Diana Fuss, Ann Ferguson, entre outras, McLaren sintetiza em quatro as

razões da identidade de grupo ser considerada uma categoria política perigosa:

Primeira, (...) pode reificar a categoria, isto é, ela pode servir para reforçar e

naturalizar diferenças que são resultantes da opressão social e histórica. Segunda,

(...) antecipa questões sobre as condições políticas e sociais sob as quais aquela

identidade foi formada e quem a identidade deve excluir. Na teoria feminista isto é

sempre colocado desta forma: “Quem é o ‘nós’ em cujo nome essas demandas estão

sendo feitas?” (...) Terceira, usar categorias de identidade como a base para

solidariedade política não apenas antecipa questões sobre quem pertence ao grupo,

mas também serve para separar um grupo oprimido de outro e deslocar quem

pertence a mais de um grupo oprimido. Grupos oprimidos podem se dividir em

matéria de quem é mais oprimido ou de quem são as reivindicações políticas

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correntes mais urgentes. (...) Finalmente, (...) os modelos de identidade política

assumem uma falsa ligação entre identidade e política (MCLAREN, 2016: 164).

No primeiro ponto é importante insistir que as identidades são formadas a partir de

relações de dominação e opressão e, portanto, adotá-las acriticamente tende a fortalecê-las. Isso

é evidente tanto na identidade de raça, criada para diferenciar o europeu do africano para

possibilitar condições mais severas de exploração do trabalho escravo, quanto ao binarismo de

gênero, utilizado para disciplinar a sexualidade em torno de funções reprodutivas. O segundo e

terceiro pontos também merecem atenção, pois as singularidades, as diferenças individuais que

compõem cada sujeito, são abafadas pelas identidades que exercem papel de normalização de

certas condutas, ao mesmo tempo em que atribui arbitrariamente rotulações, segmenta,

hierarquiza e estigmatiza grupos de indivíduos.

A política de assujeitamento e identificação do sujeito está muito atrelada, nas

sociedades atuais, a uma biopolítica de produção de corpos determinados por uma racionalidade

neoliberal que compõe suas condutas (PASSETTI, 2019). As segmentações identitárias são

úteis para essas sociedades estratificadas onde cada conjunto de corpos está destinado a cumprir

prioritariamente certas funções sociais, políticas ou econômicas. Sejam elas sexuais,

reprodutivas, gerenciais, empreendedoras, operárias, policiais, de estabelecimento de verdades,

etc. As identidades são especialmente úteis para que determinadas verdades, através de um

poder pastoral e também de dispositivos de biopoder, exerçam assujeitamento sobre os corpos:

o psiquiatra sobre os loucos, a polícia sobre os criminosos, os médicos sobre os doentes, os

sacerdotes sobre os pecadores e, poderíamos adicionar, das lideranças de partidos e movimentos

sociais sobre os militantes, assim como de influencers sobre influenciados.

A forma mais livre que um sujeito pode estabelecer consigo mesmo é se recusando a

repetir individualidades predeterminadas e se constituindo como autor de sua própria vida,

fazendo dela uma obra de arte. Os coletivos autônomos ao Estado, de inspiração antifascista,

sempre levaram a sério a questão das dominações identitárias, buscando construir “tabus sociais

contra o racismo, o sexismo, a homofobia e outras formas de opressão que constituem os

alicerces do fascismo” (BRAY, 2019: 34), por meio de dinâmicas que Bray denomina

“antifascismo cotidiano”. Não se trata portanto de ignorar a opressão identitária que as

sociabilidades autoritárias reproduzem, mas de não se deixar capturar pelo mecanismo

identitários de constituição do sujeito, se dando conta que as identidades podem limitar a

capacidade de libertação de grupos oprimidos. Segundo Foucault, as lutas anárquicas, pautadas

na resistência:

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São lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de

ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente

individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra

sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se

voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo. (...)

Todas estas lutas contemporâneas giram em torno da questão: quem somos nós? Elas

são uma recusa destas abstrações, do estado de violência econômico e ideológico,

que ignora quem somos individualmente, e também uma recusa de uma investigação

científica ou administrativa que determina quem somos, nossa identidade.

(FOUCAULT, 2009: 234-235).

Desse modo, fica evidente que a resistência no campo individual implica a recusa às

formas pré-determinadas em que fomos constituídos enquanto sujeitos assujeitados, que

delimitam nossos desejos, condutas e racionalidades. Nas palavras de Foucault:

Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que

somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos

desse “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e

totalização própria às estruturas de poder moderno. A conclusão seria que o

problema político, ético social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar

liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos

tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que

promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de

individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 2009: 239).

Tal âmbito de resistência não se trata de tarefa simples e a solução não é composta de

receitas universais prédeterminadas, mas de práticas de liberdade não prescritas, abertas a cada

contexto a cada realidade individual e social. Nesse sentido, a partir das críticas da teoria queer

(BUTLER, 2015) sobre o binarismo sexual e de gênero, propondo que estes sejam mais fluidos,

e contra a heteronormatividade, CÉSAR (2016) propõe uma queerização da vida:

“A possibilidade de novos modos de vida e existência, chamando a atenção para as

experiências de não captura e contraconduta em relação ao corpo, ao desejo e as

práticas sexuais e sociais. Todos os movimentos sociais que abrem mão das

identidades sociais e jurídicas em nome das experiências abrem caminho para uma

vida queerizada” (CÉSAR, 2016: 145).

Mas entendemos que para uma vida verdadeiramente livre é necessário ir além de

abdicar das identidades e de praticar contracondutas. É necessário um retorno de si: “não há

outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão a relação de si para

consigo” (FOUCAULT, 2004: 306). Diante do problema do assujeitamento para as liberdades,

Passetti et al. (2019) questionam: “Como operar a conversão de si? Isso supõe um deslocamento

do olhar do sujeito em direção a si e o retorno do sujeito sobre si. É preciso uma arte, uma

técnica de navegação, a pilotagem, para romper com a renúncia de si e a promessa de salvação.”

(PASSETTI et al., 2019: 34). Os autores propõem voltar a atenção para a noção de

governamentalidade:

Page 11: Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma

11

A governamentalidade passa a ser o campo estratégico das relações de poder no que

têm de reversível, transformável e móvel, pois enquanto a concepção jurídica do

sujeito de direito o cerca pela teoria do poder político, a governamentalidade se

debruça sobre o poder como conjunto de relações reversíveis (relações do sujeito de

si para consigo). Há um sujeito a ser diluído nesta conversão de si (idem).

Nesse processo de compreensão de como pode se constituir a escrita de si, a arte da

existência na qual cada sujeito é autor de sua própria e bela vida, capaz de romper com normas,

códigos e assujeitamentos, voltamos o olhar para a revolução em andamento em Rojava. Para

analisar suas potências políticas, recorremos a antiguidade greco-romana e às práticas de

liberdade dos filósofos cínicos, atualizada por Foucault (2017) com a noção de militantismo,

que combinaria tanto projeto político quanto modo de vida.

Militantismo e resistência em Rojava

O desafio que enfrentamos aqui gira em torno de discutir as proximidades desse estilo

de vida revolucionário, militantista, que expõe o escândalo da verdade, com a questão

identitária em Rojava. Inegavelmente a revolução curda leva em conta a identidade, na medida

em que coloca a libertação da mulher como fundamental para a comunidade em construção e

como condição para a libertação de todos. Cabe discutir como o projeto político de

desconstrução do capitalismo e do Estado-nação em curso pela revolução se coaduna, de que

forma e em que medida, com um modo de vida pautado em práticas de liberdade.

No entendimento sobre essas práticas de liberdade, nossas referências serão a estética

da existência cínica, em especial a expressada na noção de militantismo. Um dos elementos

centrais do modo de vida cínico é o compromisso com a busca de uma verdadeira vida, que se

realiza ao proferir a parrésia, que implica “o risco de morte em pronunciar uma verdade. Trata-

se de uma filosofia para a qual é preciso estar livre de qualquer vínculo para a manifestação do

bios, da vida, da existência como aleturgia” (PASSETTI et al., 2019: 35).

A noção de militantismo, assim como outras em Foucault, não foi pensada em servir

como encaixe teórico às multiplicidades típicas de uma dada realidade, como peças de um

quebra-cabeça. A principal contribuição é muito mais para a reflexão das diferenças em cada

contexto, que suas similitudes. O militantismo, assim como o modo de vida cínico podem

contribuir para pensarmos as distintas formas de resistência em outros tempos históricos, cada

qual com suas particularidades, e talvez inspirar novas possibilidades de resistência, pelo relato,

pelo exemplo, nunca pela cópia e repetição. Nesta ocasião não será possível fazer uma análise

abrangente da experiência de Rojava, mas apenas uma aproximação, como proposta para

discussão no contexto de uma pesquisa em andamento.

Page 12: Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma

12

Na Revolução Curda, a luta contra a dominação patriarcal e capitalista é tão importante

quanto a descentralização radical do Estado e a luta contra as forças armadas do Estado Islâmico

e dos exércitos nacionais. Na luta pela inversão dos valores vigentes, a “descolonização

nacional está vinculada à descolonização da mulher por meio de uma nova epistemologia

feminina, ou seja, a Jineoloji” (AMOROSI, 2019: 09). A revolução parece reconhecer grande

importância à identidade, na medida em que coloca a libertação da mulher como fundamental

para a comunidade em construção e como condição para a libertação de todos. A libertação das

mulheres é transversal a todas as transformações sociais, políticas e econômicas em curso em

Rojava. Isso significa não só a redefinição das relações de gênero e o papel da mulher na

sociedade curda, mas escancarar duas potentes verdades: a primeira e mais óbvia é que as

mulheres devem ter as mesmas possibilidades existenciais que os homens, podendo se dedicar

às atividades que quiserem, incluído o confronto armado de autodefesa. A segunda é o

reconhecimento que o poder patriarcal está na base de sustentação tanto da autoridade do

Estado-nação, quanto na exploração do trabalho no sistema capitalista.

Um dos maiores incitadores da revolução curda, Abdullah Öcalan (2013) sugere a

noção de Jineologî, ou “ciência das mulheres”, que em sua acepção linguística indo-européia,

também pode ser entendida como “ciência da vida”. Trata-se de uma cosmologia feminina cujas

implicações vão para além das relações de gênero, se constituindo em uma concepção de mundo

e de vida que implica na destruição do patriarcado em todas suas dimensões. Nas palavras de

Gönül Kaya, jornalista e representante do movimento de mulheres do Curdistão:

A Jineologia apresenta uma proposta de intervenção radical no pensamento

patriarcal e no paradigma patriarcal. Nesse sentido, a Jineologia é um processo

epistemológico. O objetivo é o acesso direto às mulheres e à sociedade no campo do

conhecimento e da ciência, que é atualmente controlado pelos governantes. O

objetivo é pavimentar o caminho para as raízes e a identidade das mulheres e da

sociedade, que foram separadas de suas verdades. Mulheres devem criar suas

próprias disciplinas, alcançar suas próprias interpretações e significados, e

compartilhá-los com toda a sociedade (KAYA, 2014: s/p) 3.

Como se nota, na revolução de Rojava, a questão das identidades de gênero está

colocada no centro do confronto e da transformação cultural, política e econômica, como base

para resgatar e expressar a verdadeira vida ocultada pelo patriarcado e seus dispositivos

pastorais. A colocação do gênero como uma das bases dessa nova formação social tem causado

mudanças significativas para as mulheres, homens e transgêneros da região. A forma de vida

com a ressignificação da simbologia da mulher é acompanhado por um novo e amplo arcabouço

3 Tradução nossa.

Page 13: Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma

13

institucional e organizacional que reestruturam toda a macropolítica da região e

incessantemente estimulam novos modos de vida.

Em 2005 é fundado o Alto Conselho das Mulheres (KJB), em seguida forma-se o

Partido da Mulher Livre do Curdistão (PAJK), posteriormente a União das Mulheres Livres

(YJA) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), este último compondo o braço armado

feminino de defesa de Rojava. Muitas incógnitas ainda estão para ser esclarecidas sobre o

processo revolucionário de Rojava, mas não restam dúvidas que a revolução ali alcançou

aspectos que transcendem as estruturas políticas e econômicas:

Algumas das transformações sociais promovidas pelo movimento de mulheres no

noroeste do Curdistão (Turquia e Síria) dizem respeito à abolição dos casamentos

forçados e/ou com menores de idade; a proibição dos crimes de honra; a igualdade

nos testemunhos entre homens e mulheres e, neste sentido, a capacidade das mulheres

em receberem heranças e possuir bens; a proibição da poligamia e da tutela exclusiva

das crianças pelo pai de forma irrestrita; a proibição de negociações envolvendo

casamentos (dotes). Entre as iniciativas adotadas para aumentar a participação

feminina nas organizações curdas estão: a inclusão de cotas para a incorporação de

mulheres nos partidos políticos, a organização de grupos de planejamento para

inserção de uma agenda de gênero, a obrigatoriedade do instituto da coliderança

(cargos de representação devem ser compostos por um homem e uma mulher em

igualdade de funções). Estas iniciativas impactam profundamente no incentivo à

participação feminina nos diferentes partidos políticos e organizações pró-curdas.

(RIBEIRO, 2019: 72.)

O rompimento com o patriarcado, como visto, implica em uma tarefa múltipla e

complexa, com transformações radicais em diversas frentes. O pioneirismo de Rojava tem

demonstrado disposição a romper com comportamentos opressores e estereótipos que atribuem

papéis fixos, essencialistas à identidade de gênero. Nesse sentido, importante observarmos

como as mulheres de Rojava rompem com as identidades assujeitadas para revolucionar seu

modo de vida. Ao fazê-lo, no entanto, recriam novas identidades, a partir delas próprias,

expressando a verdade de suas potências individuais e provocando o escândalo no

tradicionalismo patriarcal dos povos do oriente médio.

Nesse processo de reconstrução da escrita de si, do controle sobre si, algumas mulheres

curdas sentiram a necessidade de constituir uma comuna só de mulheres, dentro da constelação

de comunas que o sistema de confederalismo democrático possibilita. A Vila Jinwar foi criada

por grupos de mulheres locais e voluntárias de diversos países, buscando um rompimento

severo com o patriarcado e os homens.

As mulheres de Jinwar queriam se autogovernar baseando-se em princípios

democráticos que respeitem os direitos de todos e assegurem a capacidade de todos

serem iguais na vida. (...) Toda mulher que se assenta na vila pode participar do

conselho da vila e ajudar a planejar a vida ali. As mulheres de Jinwar podem

coletivamente assar seus pães na padaria ou cozinhar e comer na cozinha comunal.

Na escolha, na academia, ou no centro de saúde, bem como na agricultura, mídia e

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14

diplomacia, toda mulher pode ter suas responsabilidades baseadas em seus próprios

desejos. (HEVAL, 2018: s/p).4

Assim como os cínicos da antiga Grécia, as mulheres curdas não se impressionam com

o medo e demonstram estar livres de vínculos sociais que aprisionam as transformações. Ao

considerar importante em um momento romper o vínculo de convivência com os homens, assim

o fizeram, rejeitando por completo o princípio patriarcal no qual a mulher é dependente do

homem e este deve ser seu provedor. Em depoimento ao canal oficial da comuna de Jinwar no

Youtube5, combatentes locais afirmam que para enterrar valores patriarcais construídos há 8000

anos as mulheres precisam se organizar e ser conscientes de que um novo futuro se constrói com

suas próprias cores, seu próprio sistema, sua justiça e sua igualdade. Consideram que na vila

começaram uma nova vida, com liberdade e autonomia. Uma delas afirma: “quando mulheres

vivem com homens elas sempre são oprimidas, sempre ficam trancadas, homens sempre

colocarão pressão nas mulheres. Mas quando vivemos ao redor de nós mesmas, haverá liberdade.

E com liberdade haverá beleza”.

Considerações

Diante do exposto, fica bastante evidente que as práticas de resistência política da

Revolução Curda em Rojava visam a libertação de um povo historicamente oprimido por

necropolíticas estatais e paraestatais, que assujeitavam às mulheres de forma ainda mais violenta

que aos próprios homens. Apesar de limitações na ruptura com a forma de subjetividade pautada

nas identidades, a revolução está em andamento, é um processo em desenvolvimento onde as

práticas de liberdade se colocam na medida da urgência em enfrentar as dificuldades que se

apresentam.

O escândalo militantista de romper com o patriarcado, com o capitalismo e com o

Estado-nação, as possibilitou criar uma nova estética da existência, na qual a ética da

solidariedade, da igualdade e da coragem pela verdade as leva a até mesmo colocar em risco a

própria vida, sem depender de homens, empunhando armas contra um dos grupos terroristas

mais violentos do planeta, o Estado Islâmico, e um exército nacional, Sírio, com histórico de uso

de armas químicas. As mulheres do Curdistão Sírio conquistaram a possibilidade de inverter os

valores, desafiar os princípios patriarcais da sociedade e expressar corajosamente suas verdades,

até então ocultadas por uma organização social milenar, patriarcal, hierárquica e autoritária.

4 Tradução nossa. 5Canal oficial da Vila Jinwar no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCkoteU8UIR1lRCLlnDapHoQ.

Page 15: Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma

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Dessa forma, compõem um modo de vida que se aproxima em alguns aspectos, não em essência,

à noção foucaultiana de militantismo, reescrevendo suas próprias vidas sem se pautarem em

valores culturais, representações, normas morais e jurídicas até então vigentes.

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