militantismo e práticas de liberdade em rojava: uma
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Militantismo e práticas de liberdade em Rojava: uma analítica foucaultiana
sobre identidades na resistência
PAULO EDGAR R. RESENDE1
ANDRÉ VIANNA NASCIMENTO2
RESUMO
Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas
de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na
atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias conferem
ao ativismo de resistência, entendendo por este o comprometimento com uma ação política de
ruptura com processos de dominação e de transformação radical das relações de poder. O
desafio que se apresenta é o de rompimento com identidades que determinam formas
engessadas de conduta e de composição da subjetividade, que constituem a metafísica de “quem
sou” e de “quem é o outro”, sem que para isso se engesse em novas identidades. Todo processo
de libertação requer um confronto para livrar-se de uma forma subordinada de constituição do
sujeito. Entretanto, fixar-se em uma nova forma identitária pode limitar o confronto que se faz
necessário para que o mundo mude. Testaremos a proposta analítica aqui apresentada na
apreciação de alguns aspectos do grupo das combatentes de Rojava, que, ao que tudo indica,
estão sendo capazes de reestruturar os signos cognitivos e performativos do que é ser mulher e
do que as mulheres são capazes. Com a reflexão aqui proposta, pretendemos contribuir com o
ativismo de resistência.
Palavras-chave: Foucault, ativismo, resistência, Rojava
Introdução
Este trabalho busca desenvolver uma analítica foucaultiana para compreender formas
de articulação de identidades individuais e coletivas pelo ativismo político de resistência na
atualidade. O interesse pelo tema se deve aos desafios que as afirmações identitárias e as
políticas identitárias proporcionam ao ativismo de resistência. A resistência política será tanto
mais potente quanto mais os ativistas tiverem disposição e capacidade para, além dos
confrontos na macropolítica, se desterritorializar de sociabilidades autoritárias e
assujeitamentos, romper com relações de dominação e deslocar relações de poder. Nesta
1 Doutor em Ciência Política pela Universidade Autônoma de Barcelona, realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP. 2 Mestrando em Sociologia Política na Universidade Vila Velha, é bacharel em Relações Internacionais pela mesma universidade.
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pesquisa encontramos que ao serem desconstruídas, as identidades podem servir tanto para
liberações como para a produção de novos assujeitamentos.
Enquanto forma de identificação de grupos ou ideias, não necessariamente
proporciona limitações à resistência. Mas quando imobiliza ou dificulta deslocamentos
coerentes com o cuidado de si e com a prática de uma verdadeira vida, conectada com a
singularidade de cada indivíduo, ela age como camisa de força carimbando regras,
essencializando condutas e produzindo racionalidades. Definitivamente, as lutas de resistência
requerem empreender formas de confronto para livrar-se de modelos asujeitados da constituição
do sujeito, que compõem modos de vida.
Encontramos nos estudos de Foucault (2017) à respeito da filosofia grega antiga, mais
especificamente da corrente denominada “cinismo”, importante contribuição às reflexões sobre
a resistência nos modos de vida, compondo parte indissolúvel das lutas políticas. A noção de
“militantismo”, proposta pelo autor, nos permite atualizar aquelas vivências antigas para um
sentido atual que pode ser localizado em distintas modulações da resistência. Com essa maior
clareza à respeito de uma estética da existência que se faz bela ao compor uma ética que implica
tanto o cuidado de si quanto o rigor a uma vida verdadeira, temos referenciais importantes para
se pensar e analisar a resistência política no tempo presente.
O pensamento e ativismo anarquista, outra importante referência empírica às
formulações de resistência, coincide com essa formulação ao adequar os meios aos fins, de
modo que as formas de luta e sociabilidade devem ser intrinsecamente coerentes com os
objetivos que se almeja alcançar. Desta forma, a prática anarquista não depende do sucesso de
uma revolução futura, se fazendo presente na ética da vida cotidiana daqueles que lutam pela
maximização da liberdade. É certo que neste processo, há muitos desafios, principalmente pela
identificação dos dispositivos de autoridade, materiais ou subjetivos, que incidem na limitação
do êxito de tais empreendimentos.
Um dos principais desafios que identificamos que se colocam a essas lutas e formas
de vida de resistência, trata-se das identidades. Enquanto forma de identificação de grupos ou
ideias, não necessariamente proporciona limitações à resistência. Mas quando imobiliza ou
dificulta deslocamentos coerentes com o cuidado de si e com a prática de uma verdadeira vida,
conectada com a singularidade do sujeito, ela age como camisa de força carimbando regras e
produzindo racionalidades. As coerências e compromissos com grupos, como alertadas por
Stirner (2004), tendem sempre a apresentar desafios às liberdades do indivíduo.
Definitivamente, as lutas de resistência requerem empreender formas de confronto
para livrar-se de modelos asujeitados da constituição do sujeito, que definem condutas e modos
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de vida. Neste trabalho, analisamos as práticas de liberdade que implicam confrontos, condutas
e contracondutas, continuidades e rupturas da Revolução de Rojava, que, ao que tudo indica,
está sendo capaz de reestruturar os signos cognitivos e performativos de gênero, desmontar a
autoridade patriarcal e reinventar relações econômicas, com base na igualdade e na
solidariedade. Iniciaremos o percurso desta reflexão expondo o pensamento de Foucault, com
o qual dialogaremos diretamente, para em seguida resgatar e discutir singularidades do
militantismo de Rojava, principalmente no que diz respeito ao modo com que lidam com
identidades. Como esta pesquisa está em andamento, não pretendemos englobar aqui a
totalidade das relações e modos de vida do povo de Rojava no que diz respeito às identidades,
mas destacar alguns recortes, que nos foi possível acessar.
Práticas de liberdade e militantismo como estilo de vida revolucionário
Para uma aprofundada discussão e compreensão acerca do potencial e das intensidades
de transformação das lutas sociais e políticas, torna-se imprescindível levar em consideração
os modos de vida, as relações sociais, a micropolítica da vida cotidiana, ao lado das
transformações macropolíticas, estruturais nas instituições do Estado e da economia. O tema
constitui-se de vital importância na história das lutas políticas, ao menos desde o
desentendimento de Mikhail Bakunin com Karl Marx na Associação Internacional dos
Trabalhadores até o ativismo atual nas redes sociais. Emma Goldman insiste na importância de
que “os meios utilizados para promover a revolução devem estar em harmonia com seus
propósitos” (GOLDMAN, 1977: 148), entende-se, propósitos de promover transformações
sociais profundas e consistentes para uma sociedade livre de opressões e autoritarismo:
A grande missão da revolução, da revolução social, é uma transposição fundamental
de valores. Uma transposição não apenas dos valores sociais, mas dos valores
humanos, estes até mais importantes, já que são a base de todos os outros. Nossas
instituições e as condições em que vivemos estão fundadas em ideias profundamente
enraizadas. Mudar essas condições, deixando ao mesmo tempo intactas as ideias e
valores subjacentes, significa que houve apenas transformações superficiais que não
poderiam ser permanentes nem trariam qualquer melhora real. E que seriam apenas
mudanças de forma, não de substância, como ficou tragicamente provado na Rússia”
(GOLDMAN, 1977, p. 145).
A provocação de Goldman tem, ao nosso ver, ao menos duas implicações importantes
às lutas políticas de resistência: o primeiro que elas devem se iniciar de imediato, não aguardar
pela grande revolução que abalará às instituições existentes; o segundo, que a luta de
resistência, para ter êxito substancial na transformação de uma realidade deve se dirigir
principalmente às subjetividades. Passetti (2002: 151) explica: “O anarquista quer uma outra
sociedade, sem castigo, medo, propriedade privada, tribunal, hierarquia e procura fazê-la
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cotidianamente”. As analíticas de Foucault sobre as relações de poder e a história da produção
dos sujeitos coincidem com essa perspectiva. Sobre as lutas de resistência, o autor aponta três
formas em que as podemos encontrar:
Contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de
exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo
que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a
sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão) (FOUCAULT, 2009: 235).
E conclui: “O principal objetivo destas lutas é atacar, não tanto ‘tal ou tal’ instituição
de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder (...) que faz
dos indivíduos sujeitos” (idem). É neste ponto que se constitui nosso interesse sobre a produção
de subjetividade que constitui cuidados de si, práticas de liberdade e militantismo, como forma
de vida. Ao comentar sobre o que implica para Luce Fabbri praticar o anarquismo, Rago ilumina
bem a questão:
Implica um trabalho político, ético e estético sobre si mesma, um elaborar a própria
vida como obra de arte, uma construção subjetiva sofisticada, tendo em vista o
exercício da liberdade e a ampliação dos espaços da autonomia. A prática cotidiana
do anarquismo se coloca para ela como um trabalho ético em relação ao mundo e a
si mesma, como uma busca ininterrupta da liberdade, associada à questão da
solidariedade e da justiça social. E aqui as dimensões de gênero interferem
visivelmente, já que sabemos o quanto as mulheres têm-se vinculado às questões da
subjetividade, desfazendo as fronteiras simbólicas entre o mundo público e o privado,
enquanto tradicionalmente os homens têm construído ou têm sido impulsionados a
criar uma cultura exterior, objetiva e racional (RAGO, 2001: 22).
A vida como obra de arte pode ser entendida como uma estética da existência, o
desfrute e disposição de uma vida bela, única e singular, construída a partir do cuidado de si e
práticas de liberdade. “Os anarquismos desde o século XIX traçam seus percursos sintonizando
a vida vivida com sua utopia, ou melhor, nos termos de Foucault, produzem suas heterotopias
no presente, de modo similar ao que ele compreende a vida como manifestação da arte: o artista
como condição da obra de arte” (PASSETTI et al., 2019: 37). O cuidado de si já implica uma
prática de liberdade, na medida em que há busca por se conhecer, por se cuidar, se respeitar e
“estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, (...) poder, comando”
(FOUCAULT, 2017a: 264), que, por fim, compõe uma certa maneira de ser e de se conduzir.
É isso que faz a vida como uma obra de arte, ética e livre, capaz de libertar o indivíduo de
formas de subjetivação e submissão, sem reproduzi-las. Foucault apreende essas modulações
de seus estudos sobre a filosofia e as formas de vida na antiguidade grega, onde as práticas de
liberdade eram questões essencialmente éticas, nas quais o cuidado de si poderia produzir, por
efeito, o cuidado com o outro e uma admirável estética da existência (FOUCAULT, 2004).
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É neste contexto de uma estética da existência singular e livre que o autor propõe a
noção de militantismo, atualizando o modo de vida dos filósofos gregos da corrente
denominada “cínica”. Esse modo de vida de resistência implica a manifestação irruptiva e
escandalosa da verdade, que se verificou na prática revolucionária do século XIX, compondo
“a vida como atividade revolucionária, ou a atividade revolucionária como vida”
(FOUCAULT, 2017: 161). Esse estilo de existência
Deve estar em ruptura com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade. E ele
deve manifestar diretamente, por sua forma visível, por sua prática constante e sua
existência imediata, a possibilidade concreta e o valor evidente de uma outra vida,
uma outra vida que é a verdadeira vida (idem).
Mas não foi somente desse estilo de vida que a prática revolucionária se compôs no
século XIX. Teve também outros dois aspectos que seria a “socialidade secreta” e a
“organização instituída”. Este último, “procura impor seus objetivos e sua dinâmica no campo
social e político” (idem), se fazendo reconhecer em organizações revolucionárias. Mas a
verdadeira vida posta pelos gregos é aquela em que a coragem pela verdade é levada até os
últimos limites: “ir à verdade, manifestar a verdade, fazer a verdade estourar até perder nisso a
vida ou fazer correr o sangue dos outros” (idem: 162). E essa manifestação radical e escandalosa
da verdade, que se faz necessária para expressar e viver uma vida verdadeira, se faz fundamental
no estilo de vida militantista revolucionária.
Importante situar que a combinação de um projeto político com uma forma de vida
vivida nos termos aperesentados, além de coincidir com os projetos anarquistas, como apontado
anteriormente, coincide também com alguns ativismos hodiernos, que ganharam proeminência
após o acontecimento de Maio de 1968. O que os pesquisadores acadêmicos logo denominaram
“novos movimentos sociais”, que são grupos de ativistas que se estruturam em torno do
confronto em pautas cognitivas, culturais e/ ou identitárias (MELUCCI, 1994). Inicialmente
tais lutas eram focadas em práticas de liberdade que fossem capazes de estremecer as relações
de dominação e possibilitar de imediato novas possibilidades de vida:
“Os jovens escancaravam àquele mundo que ele tinha acabado! Não estavam ali
para mostrar os rumos para um novo mundo, apenas lançavam bombas nos costumes,
nas ideias, no convencional, no conformismo, na padronização, na idiotice, no sexo
timidamente desgovernado, na crença no Estado, no dia seguinte, no futuro melhor”
(PASSETTI et al., 2019: 23).
A plasticidade do capitalismo em sua modulação neoliberal, no entanto, foi capaz de
capturar a insurreição de 1968 para transformar a pauta de sujeitos que reivindicavam relações
cotidianas pautadas na ética da liberdade, ou uma nova estética da existência, em pauta de
sujeitos portadores de direitos que reivindicam reconhecimento. Economicamente úteis e
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politicamente dóceis, esses sujeitos encontram no desenvolvimento do capital humano, no
garantismo jurídico e na justiça penal os dispositivos necessários para a inclusão
socioeconômica e o reconhecimento de direitos das minorias sociais. Tomados pela
racionalidade neoliberal, pautam sua ética da vida cotidiana no empreendedorismo de si e no
policiamento das condutas alheias (PASSETTI, 2019). É nesse contexto que a política
identitária ganha relevo nos movimentos sociais e no ativismo hodierno.
Identidade e o desafio às resistências
A captura do ativismo que combate o racismo, as classes sociais e o patriarcado em
ativismo identitário reduziu a combatividade dessas lutas. Tornou resistência em resiliência e
retirou seu significado antissistêmico. Assim, a busca por reconhecimento e direitos de inclusão
e ascensão social, econômica e política, capitaneada por lideranças bem adaptadas à
racionalidade neoliberal, marginalizou a luta contra o racismo e o patriarcado alocados nas
estruturas do próprio Estado e do capitalismo. O multiculturalismo neoliberal foi capaz de
assimilar as demandas por representatividade e reconhecimento de direitos das minorias,
desfazendo sua vinculação com os confrontos estruturais. Na medida em que diversifica e
amplia o capital humano disponível para o empreendedorismo econômico e para a liderança
política, pacificando simultaneamente as lutas e confrontos sociais, o sistema se renova e se
fortalece. As questões das minorias se tornam pautas da política representativa e são
incorporadas nas constituições e demais legislações complementares (PASSETTI, 2019;
PASSETTI et al. 2019; HAIDER, 2019).
Apesar dessa domesticação de conflitos, que ao assimilar as lutas dos movimentos
sociais, amplifica a capacidade do Estado em produzir políticas públicas de atendimento a suas
demandas (LAVALLE et al., 2019). Se por um lado, conforme relatam os autores, os
movimentos ganham capacidade de mobilização ao verem suas demandas atendidas a partir
desse processo de interação, é necessário reconhecer que isso se faz possível certamente a partir
de uma adequação das estratégias de reivindicação e organização dos movimentos aos atores
estatais. Sobre o caso dos movimentos de liberdade sexual, César (2016) afirma:
Se, por um lado, observa-se um conjunto importante de conquistas sociais para a
população LGBT, por outro lado observa-se também que essa aliança passou a ser o
meio exclusivo da escuta, do diálogo e do estabelecimento de políticas e ações de
combate ao preconceito e à violência. Mesmo se essas relações nunca se solidificam
por completo, pois sempre há avanços e recuos na relação do Estado com os
movimentos LGBT, observa-se no cenário político brasileiro a consolidação de
políticas LGBT exclusivamente encaminhadas por grupos sociais organizados em
torno das identidades sexuais e de gênero, os quais se concebem como sujeitos
identitários que reivindicam direitos. Por certo, inicia-se aí uma importantíssima
dinâmica político-social em que esses novos sujeitos de direito e as novas identidades
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abarcadas por esses movimentos reivindicam direitos sociais e individuais que lhes
foram negados em razão da identidade de gênero e da orientação sexual. Por outro
lado, contudo, atualmente já é possível considerar e antever alguns dos riscos
produzidos por esse processo no que diz respeito à possível normalização dessas
identidades. A tal risco também se acrescenta a perda do potencial crítico, criador e
transformador da ordem social e sexual, que caracteriza a originalidade dos
movimentos homossexuais até meados da década de 1980. A partir de uma
perspectiva teórica de inspiração foucaultiana, (...) podemos observar como a
produção de novas identidades e novos sujeitos de direitos está associada à produção
de novos mecanismos de controle e regulação de corpos, modos de vida, práticas
sexuais e sociais (CÉSAR, 2016: 138-139).
A curto prazo esse ativismo de matrizes de representação identitária pode, em sua
interação com o Estado, obter ganhos positivos para a qualidade de vida, no que é possibilitado
pela regulamentação de direitos, investimentos e serviços estatais. A médio e longo prazos, as
relações de dominação solidificadas na estrutura do estado e na exploração do trabalho,
permanecem intocáveis e possivelmente até mesmo fortalecidas, já que atualizadas por vezes
com equilíbrio e moderação. Ao relatar o processo de interação da luta antirracista com o
establishment político e econômico nos Estados Unidos, Asad Haider resume bem o problema:
As persistentes ideologias de unidade racial que sobraram do movimento Black
Power racionalizaram o controle da base pela elite negra, a qual se esforçou para
obscurecer as diferenças de classe que garantia sua própria entrada na
institucionalidade hegemônica. A classe política negra ascendeu no contexto de crise
econômica, desindustrialização e crescimento do desemprego dos anos 1970. Uma
política concebida unicamente em termos de unidade racial impossibilitava qualquer
contestação estrutural ao imperativo capitalista e sua transferência dos custos da
crise econômica ao trabalhador. Os políticos negros facilitaram a ofensiva dos
patrões, voltando-se contra os elementos da classe trabalhadora que eram parte da
sua base de apoio (HAIDER, 2019: 107-108).
Como efeito, mecanismos estruturais de dominação, como as leis, os presídios, a
polícia, a justiça penal e a propriedade privada, permanecem intocados. Com muita imaginação
se poderia pensar que a partir da luta dos movimentos e ativistas os alvos preferenciais do
“racismo de estado” (FOUCAULT, 2008b) ou da “necropolítica” (MBEMBE, 2018) deixariam
de ser as minorias historicamente subalternizadas, havendo assim maior distribuição social do
flagelo da subalternidade. É aí que residem a exploração do trabalho, a divisão social do
trabalho, o controle da sexualidade, as violências domésticas, sexuais e policiais, o
encarceramento em massa, a criminalização de suas atividades, o desprezo por suas vidas e etc.
Como o ideal para uma vida livre e justa é que o próprio flagelo e sujeição deixem de existir,
se faz necessário voltar o olhar para as resistências a esse modo de vida pautado na dominação,
no controle, na hierarquia, na heteronomia e na autoridade.
Novamente, Foucault nos dá algumas pistas nessa direção com as noções de
subjetivação e estética da existência. Com a noção de subjetivação compreendemos como a
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subjetividade é formada a partir de dispositivos de poder que se amparam em determinadas
verdades estabelecidas e que se colocam sobre o indivíduo em forma de sujeição a outros. Essa
sujeição, que a partir do cristianismo se evidencia na submissão dos desejos, dos pensamentos
e das condutas sobre uma verdade expressa por um poder pastoral, implica na autoanulação de
si para a salvação da alma (FOUCAULT, 2008a). Nesse propósito, a identidade pode exercer
importante papel para o assujeitamento, ao reduzir a existência do ser a uma essência de
determinadas condutas instituídas e normalizadas (DUARTE, 2016; CÉSAR, 2016).
Se as pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “identidade própria” e que
esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência, se a
questão que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com minha
identidade?”, então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito
próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação
à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as
relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade,
elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito
chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés da
identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa
identidade como uma regra ética universal (FOUCAULT, 2004b: 265-266).
A partir dessas considerações podemos pensar a identidade como podendo ser
ocasionalmente estratégica para o sujeito encontrar novos caminhos de modos de vida, novas
possibilidades existenciais, que escapem dos modelos estabelecidos. Isso, se ela for capaz de
contar com uma certa fluidez. Nesse sentido encontramos a consideração de McLaren (2016),
que não deixa, entretanto, de situar um importante contraponto:
Identidade pode ser uma importante fonte de empoderamento. Identidade de grupo
compartilhada pode ajudar indivíduos de grupos oprimidos a verem suas
experiências não como falhas psicológicas, como é frequentemente o caso para
mulheres antes dos movimentos feministas, mas questões sociais e políticas.
Estratégias liberais funcionam bem para conquistar direitos civis e representação
política para grupos oprimidos, mas (...) apesar da significância política da
identidade, ela pode funcionar de forma prejudicial e limitadora (MCLAREN, 2016:
166).
Retomando o argumento de distintas feministas críticas da identidade, como Judith
Butler, Shane Phelan, Diana Fuss, Ann Ferguson, entre outras, McLaren sintetiza em quatro as
razões da identidade de grupo ser considerada uma categoria política perigosa:
Primeira, (...) pode reificar a categoria, isto é, ela pode servir para reforçar e
naturalizar diferenças que são resultantes da opressão social e histórica. Segunda,
(...) antecipa questões sobre as condições políticas e sociais sob as quais aquela
identidade foi formada e quem a identidade deve excluir. Na teoria feminista isto é
sempre colocado desta forma: “Quem é o ‘nós’ em cujo nome essas demandas estão
sendo feitas?” (...) Terceira, usar categorias de identidade como a base para
solidariedade política não apenas antecipa questões sobre quem pertence ao grupo,
mas também serve para separar um grupo oprimido de outro e deslocar quem
pertence a mais de um grupo oprimido. Grupos oprimidos podem se dividir em
matéria de quem é mais oprimido ou de quem são as reivindicações políticas
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correntes mais urgentes. (...) Finalmente, (...) os modelos de identidade política
assumem uma falsa ligação entre identidade e política (MCLAREN, 2016: 164).
No primeiro ponto é importante insistir que as identidades são formadas a partir de
relações de dominação e opressão e, portanto, adotá-las acriticamente tende a fortalecê-las. Isso
é evidente tanto na identidade de raça, criada para diferenciar o europeu do africano para
possibilitar condições mais severas de exploração do trabalho escravo, quanto ao binarismo de
gênero, utilizado para disciplinar a sexualidade em torno de funções reprodutivas. O segundo e
terceiro pontos também merecem atenção, pois as singularidades, as diferenças individuais que
compõem cada sujeito, são abafadas pelas identidades que exercem papel de normalização de
certas condutas, ao mesmo tempo em que atribui arbitrariamente rotulações, segmenta,
hierarquiza e estigmatiza grupos de indivíduos.
A política de assujeitamento e identificação do sujeito está muito atrelada, nas
sociedades atuais, a uma biopolítica de produção de corpos determinados por uma racionalidade
neoliberal que compõe suas condutas (PASSETTI, 2019). As segmentações identitárias são
úteis para essas sociedades estratificadas onde cada conjunto de corpos está destinado a cumprir
prioritariamente certas funções sociais, políticas ou econômicas. Sejam elas sexuais,
reprodutivas, gerenciais, empreendedoras, operárias, policiais, de estabelecimento de verdades,
etc. As identidades são especialmente úteis para que determinadas verdades, através de um
poder pastoral e também de dispositivos de biopoder, exerçam assujeitamento sobre os corpos:
o psiquiatra sobre os loucos, a polícia sobre os criminosos, os médicos sobre os doentes, os
sacerdotes sobre os pecadores e, poderíamos adicionar, das lideranças de partidos e movimentos
sociais sobre os militantes, assim como de influencers sobre influenciados.
A forma mais livre que um sujeito pode estabelecer consigo mesmo é se recusando a
repetir individualidades predeterminadas e se constituindo como autor de sua própria vida,
fazendo dela uma obra de arte. Os coletivos autônomos ao Estado, de inspiração antifascista,
sempre levaram a sério a questão das dominações identitárias, buscando construir “tabus sociais
contra o racismo, o sexismo, a homofobia e outras formas de opressão que constituem os
alicerces do fascismo” (BRAY, 2019: 34), por meio de dinâmicas que Bray denomina
“antifascismo cotidiano”. Não se trata portanto de ignorar a opressão identitária que as
sociabilidades autoritárias reproduzem, mas de não se deixar capturar pelo mecanismo
identitários de constituição do sujeito, se dando conta que as identidades podem limitar a
capacidade de libertação de grupos oprimidos. Segundo Foucault, as lutas anárquicas, pautadas
na resistência:
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São lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de
ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente
individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra
sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se
voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo. (...)
Todas estas lutas contemporâneas giram em torno da questão: quem somos nós? Elas
são uma recusa destas abstrações, do estado de violência econômico e ideológico,
que ignora quem somos individualmente, e também uma recusa de uma investigação
científica ou administrativa que determina quem somos, nossa identidade.
(FOUCAULT, 2009: 234-235).
Desse modo, fica evidente que a resistência no campo individual implica a recusa às
formas pré-determinadas em que fomos constituídos enquanto sujeitos assujeitados, que
delimitam nossos desejos, condutas e racionalidades. Nas palavras de Foucault:
Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que
somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos
desse “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e
totalização própria às estruturas de poder moderno. A conclusão seria que o
problema político, ético social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar
liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos
tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que
promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 2009: 239).
Tal âmbito de resistência não se trata de tarefa simples e a solução não é composta de
receitas universais prédeterminadas, mas de práticas de liberdade não prescritas, abertas a cada
contexto a cada realidade individual e social. Nesse sentido, a partir das críticas da teoria queer
(BUTLER, 2015) sobre o binarismo sexual e de gênero, propondo que estes sejam mais fluidos,
e contra a heteronormatividade, CÉSAR (2016) propõe uma queerização da vida:
“A possibilidade de novos modos de vida e existência, chamando a atenção para as
experiências de não captura e contraconduta em relação ao corpo, ao desejo e as
práticas sexuais e sociais. Todos os movimentos sociais que abrem mão das
identidades sociais e jurídicas em nome das experiências abrem caminho para uma
vida queerizada” (CÉSAR, 2016: 145).
Mas entendemos que para uma vida verdadeiramente livre é necessário ir além de
abdicar das identidades e de praticar contracondutas. É necessário um retorno de si: “não há
outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão a relação de si para
consigo” (FOUCAULT, 2004: 306). Diante do problema do assujeitamento para as liberdades,
Passetti et al. (2019) questionam: “Como operar a conversão de si? Isso supõe um deslocamento
do olhar do sujeito em direção a si e o retorno do sujeito sobre si. É preciso uma arte, uma
técnica de navegação, a pilotagem, para romper com a renúncia de si e a promessa de salvação.”
(PASSETTI et al., 2019: 34). Os autores propõem voltar a atenção para a noção de
governamentalidade:
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A governamentalidade passa a ser o campo estratégico das relações de poder no que
têm de reversível, transformável e móvel, pois enquanto a concepção jurídica do
sujeito de direito o cerca pela teoria do poder político, a governamentalidade se
debruça sobre o poder como conjunto de relações reversíveis (relações do sujeito de
si para consigo). Há um sujeito a ser diluído nesta conversão de si (idem).
Nesse processo de compreensão de como pode se constituir a escrita de si, a arte da
existência na qual cada sujeito é autor de sua própria e bela vida, capaz de romper com normas,
códigos e assujeitamentos, voltamos o olhar para a revolução em andamento em Rojava. Para
analisar suas potências políticas, recorremos a antiguidade greco-romana e às práticas de
liberdade dos filósofos cínicos, atualizada por Foucault (2017) com a noção de militantismo,
que combinaria tanto projeto político quanto modo de vida.
Militantismo e resistência em Rojava
O desafio que enfrentamos aqui gira em torno de discutir as proximidades desse estilo
de vida revolucionário, militantista, que expõe o escândalo da verdade, com a questão
identitária em Rojava. Inegavelmente a revolução curda leva em conta a identidade, na medida
em que coloca a libertação da mulher como fundamental para a comunidade em construção e
como condição para a libertação de todos. Cabe discutir como o projeto político de
desconstrução do capitalismo e do Estado-nação em curso pela revolução se coaduna, de que
forma e em que medida, com um modo de vida pautado em práticas de liberdade.
No entendimento sobre essas práticas de liberdade, nossas referências serão a estética
da existência cínica, em especial a expressada na noção de militantismo. Um dos elementos
centrais do modo de vida cínico é o compromisso com a busca de uma verdadeira vida, que se
realiza ao proferir a parrésia, que implica “o risco de morte em pronunciar uma verdade. Trata-
se de uma filosofia para a qual é preciso estar livre de qualquer vínculo para a manifestação do
bios, da vida, da existência como aleturgia” (PASSETTI et al., 2019: 35).
A noção de militantismo, assim como outras em Foucault, não foi pensada em servir
como encaixe teórico às multiplicidades típicas de uma dada realidade, como peças de um
quebra-cabeça. A principal contribuição é muito mais para a reflexão das diferenças em cada
contexto, que suas similitudes. O militantismo, assim como o modo de vida cínico podem
contribuir para pensarmos as distintas formas de resistência em outros tempos históricos, cada
qual com suas particularidades, e talvez inspirar novas possibilidades de resistência, pelo relato,
pelo exemplo, nunca pela cópia e repetição. Nesta ocasião não será possível fazer uma análise
abrangente da experiência de Rojava, mas apenas uma aproximação, como proposta para
discussão no contexto de uma pesquisa em andamento.
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Na Revolução Curda, a luta contra a dominação patriarcal e capitalista é tão importante
quanto a descentralização radical do Estado e a luta contra as forças armadas do Estado Islâmico
e dos exércitos nacionais. Na luta pela inversão dos valores vigentes, a “descolonização
nacional está vinculada à descolonização da mulher por meio de uma nova epistemologia
feminina, ou seja, a Jineoloji” (AMOROSI, 2019: 09). A revolução parece reconhecer grande
importância à identidade, na medida em que coloca a libertação da mulher como fundamental
para a comunidade em construção e como condição para a libertação de todos. A libertação das
mulheres é transversal a todas as transformações sociais, políticas e econômicas em curso em
Rojava. Isso significa não só a redefinição das relações de gênero e o papel da mulher na
sociedade curda, mas escancarar duas potentes verdades: a primeira e mais óbvia é que as
mulheres devem ter as mesmas possibilidades existenciais que os homens, podendo se dedicar
às atividades que quiserem, incluído o confronto armado de autodefesa. A segunda é o
reconhecimento que o poder patriarcal está na base de sustentação tanto da autoridade do
Estado-nação, quanto na exploração do trabalho no sistema capitalista.
Um dos maiores incitadores da revolução curda, Abdullah Öcalan (2013) sugere a
noção de Jineologî, ou “ciência das mulheres”, que em sua acepção linguística indo-européia,
também pode ser entendida como “ciência da vida”. Trata-se de uma cosmologia feminina cujas
implicações vão para além das relações de gênero, se constituindo em uma concepção de mundo
e de vida que implica na destruição do patriarcado em todas suas dimensões. Nas palavras de
Gönül Kaya, jornalista e representante do movimento de mulheres do Curdistão:
A Jineologia apresenta uma proposta de intervenção radical no pensamento
patriarcal e no paradigma patriarcal. Nesse sentido, a Jineologia é um processo
epistemológico. O objetivo é o acesso direto às mulheres e à sociedade no campo do
conhecimento e da ciência, que é atualmente controlado pelos governantes. O
objetivo é pavimentar o caminho para as raízes e a identidade das mulheres e da
sociedade, que foram separadas de suas verdades. Mulheres devem criar suas
próprias disciplinas, alcançar suas próprias interpretações e significados, e
compartilhá-los com toda a sociedade (KAYA, 2014: s/p) 3.
Como se nota, na revolução de Rojava, a questão das identidades de gênero está
colocada no centro do confronto e da transformação cultural, política e econômica, como base
para resgatar e expressar a verdadeira vida ocultada pelo patriarcado e seus dispositivos
pastorais. A colocação do gênero como uma das bases dessa nova formação social tem causado
mudanças significativas para as mulheres, homens e transgêneros da região. A forma de vida
com a ressignificação da simbologia da mulher é acompanhado por um novo e amplo arcabouço
3 Tradução nossa.
13
institucional e organizacional que reestruturam toda a macropolítica da região e
incessantemente estimulam novos modos de vida.
Em 2005 é fundado o Alto Conselho das Mulheres (KJB), em seguida forma-se o
Partido da Mulher Livre do Curdistão (PAJK), posteriormente a União das Mulheres Livres
(YJA) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), este último compondo o braço armado
feminino de defesa de Rojava. Muitas incógnitas ainda estão para ser esclarecidas sobre o
processo revolucionário de Rojava, mas não restam dúvidas que a revolução ali alcançou
aspectos que transcendem as estruturas políticas e econômicas:
Algumas das transformações sociais promovidas pelo movimento de mulheres no
noroeste do Curdistão (Turquia e Síria) dizem respeito à abolição dos casamentos
forçados e/ou com menores de idade; a proibição dos crimes de honra; a igualdade
nos testemunhos entre homens e mulheres e, neste sentido, a capacidade das mulheres
em receberem heranças e possuir bens; a proibição da poligamia e da tutela exclusiva
das crianças pelo pai de forma irrestrita; a proibição de negociações envolvendo
casamentos (dotes). Entre as iniciativas adotadas para aumentar a participação
feminina nas organizações curdas estão: a inclusão de cotas para a incorporação de
mulheres nos partidos políticos, a organização de grupos de planejamento para
inserção de uma agenda de gênero, a obrigatoriedade do instituto da coliderança
(cargos de representação devem ser compostos por um homem e uma mulher em
igualdade de funções). Estas iniciativas impactam profundamente no incentivo à
participação feminina nos diferentes partidos políticos e organizações pró-curdas.
(RIBEIRO, 2019: 72.)
O rompimento com o patriarcado, como visto, implica em uma tarefa múltipla e
complexa, com transformações radicais em diversas frentes. O pioneirismo de Rojava tem
demonstrado disposição a romper com comportamentos opressores e estereótipos que atribuem
papéis fixos, essencialistas à identidade de gênero. Nesse sentido, importante observarmos
como as mulheres de Rojava rompem com as identidades assujeitadas para revolucionar seu
modo de vida. Ao fazê-lo, no entanto, recriam novas identidades, a partir delas próprias,
expressando a verdade de suas potências individuais e provocando o escândalo no
tradicionalismo patriarcal dos povos do oriente médio.
Nesse processo de reconstrução da escrita de si, do controle sobre si, algumas mulheres
curdas sentiram a necessidade de constituir uma comuna só de mulheres, dentro da constelação
de comunas que o sistema de confederalismo democrático possibilita. A Vila Jinwar foi criada
por grupos de mulheres locais e voluntárias de diversos países, buscando um rompimento
severo com o patriarcado e os homens.
As mulheres de Jinwar queriam se autogovernar baseando-se em princípios
democráticos que respeitem os direitos de todos e assegurem a capacidade de todos
serem iguais na vida. (...) Toda mulher que se assenta na vila pode participar do
conselho da vila e ajudar a planejar a vida ali. As mulheres de Jinwar podem
coletivamente assar seus pães na padaria ou cozinhar e comer na cozinha comunal.
Na escolha, na academia, ou no centro de saúde, bem como na agricultura, mídia e
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diplomacia, toda mulher pode ter suas responsabilidades baseadas em seus próprios
desejos. (HEVAL, 2018: s/p).4
Assim como os cínicos da antiga Grécia, as mulheres curdas não se impressionam com
o medo e demonstram estar livres de vínculos sociais que aprisionam as transformações. Ao
considerar importante em um momento romper o vínculo de convivência com os homens, assim
o fizeram, rejeitando por completo o princípio patriarcal no qual a mulher é dependente do
homem e este deve ser seu provedor. Em depoimento ao canal oficial da comuna de Jinwar no
Youtube5, combatentes locais afirmam que para enterrar valores patriarcais construídos há 8000
anos as mulheres precisam se organizar e ser conscientes de que um novo futuro se constrói com
suas próprias cores, seu próprio sistema, sua justiça e sua igualdade. Consideram que na vila
começaram uma nova vida, com liberdade e autonomia. Uma delas afirma: “quando mulheres
vivem com homens elas sempre são oprimidas, sempre ficam trancadas, homens sempre
colocarão pressão nas mulheres. Mas quando vivemos ao redor de nós mesmas, haverá liberdade.
E com liberdade haverá beleza”.
Considerações
Diante do exposto, fica bastante evidente que as práticas de resistência política da
Revolução Curda em Rojava visam a libertação de um povo historicamente oprimido por
necropolíticas estatais e paraestatais, que assujeitavam às mulheres de forma ainda mais violenta
que aos próprios homens. Apesar de limitações na ruptura com a forma de subjetividade pautada
nas identidades, a revolução está em andamento, é um processo em desenvolvimento onde as
práticas de liberdade se colocam na medida da urgência em enfrentar as dificuldades que se
apresentam.
O escândalo militantista de romper com o patriarcado, com o capitalismo e com o
Estado-nação, as possibilitou criar uma nova estética da existência, na qual a ética da
solidariedade, da igualdade e da coragem pela verdade as leva a até mesmo colocar em risco a
própria vida, sem depender de homens, empunhando armas contra um dos grupos terroristas
mais violentos do planeta, o Estado Islâmico, e um exército nacional, Sírio, com histórico de uso
de armas químicas. As mulheres do Curdistão Sírio conquistaram a possibilidade de inverter os
valores, desafiar os princípios patriarcais da sociedade e expressar corajosamente suas verdades,
até então ocultadas por uma organização social milenar, patriarcal, hierárquica e autoritária.
4 Tradução nossa. 5Canal oficial da Vila Jinwar no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCkoteU8UIR1lRCLlnDapHoQ.
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Dessa forma, compõem um modo de vida que se aproxima em alguns aspectos, não em essência,
à noção foucaultiana de militantismo, reescrevendo suas próprias vidas sem se pautarem em
valores culturais, representações, normas morais e jurídicas até então vigentes.
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