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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GUARULHOS – SP Rua Cândida Matos Silva, nº 52 – Centro – Guarulhos/SP – CEP 07090-060 Fone/Fax (011) 6475.8155 EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DE UMA DAS VARAS MISTAS DO FORO DE GUARULHOS – 19ª SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República ao final assinado, vem, respeitosamente, com fundamento nos artigos 127, caput e 129, incisos II, III e IX, da Constituição Federal, no artigo 6º, inciso VII, alínea 'a', da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), bem como na Lei nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), propor A Ç Ã O C I V I L P Ú B L I C A COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA, em face: da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de Direito Público, representada para este fim pela Advocacia Geral da União em São Paulo, nos termos da Lei Complementar nº 73/93 (artigo 35, inciso IV), com endereço na Avenida Paulista, nº 1842, 20º andar, São Paulo – SP, pelos relevantes motivos a seguir aduzidos:

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GUARULHOS – SP

Rua Cândida Matos S i lva , nº 52 – Centro – Guaru lhos/SP – CEP 07090-060

Fone/Fax (011) 6475 .8155

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DE UMA DAS

VARAS MISTAS DO FORO DE GUARULHOS – 19ª SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DO

ESTADO DE SÃO PAULO

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da

República ao final assinado, vem, respeitosamente, com fundamento nos artigos 127,

caput e 129, incisos II, III e IX, da Constituição Federal, no artigo 6º, inciso VII,

alínea 'a', da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da

União), bem como na Lei nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), propor

A Ç Ã O C I V I L P Ú B L I C A

COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA,

em face:

da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de Direito Público, representada para este fim

pela Advocacia Geral da União em São Paulo, nos termos da Lei Complementar nº

73/93 (artigo 35, inciso IV), com endereço na Avenida Paulista, nº 1842, 20º andar,

São Paulo – SP,

pelos relevantes motivos a seguir aduzidos:

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

I. DO PROPÓSITO DA PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Visa a presente ação impor à União a obrigação de fazer

consistente em adotar procedimentos de controle de ingresso de espanhóis no

território nacional, alicerçados em critérios de reciprocidade de tratamento

conferido a brasileiros na Espanha .

No atual estágio do impasse que liga ambas as

nações (Brasil e Espanha), mostra-se mais do que necessária a intervenção

do Judiciário para que, em razão de provimento jurisdicional criado para tal

fim , o Estado Brasileiro imprima um tratamento uniforme e jurídico para

a questão . E não é se de se olvidar, o princípio da “reciprocidade” é, antes de

mais nada, um princípio jurídico.

Ademais, alguns episódios recentes somente

reforçam a idéia de que o Judiciário, como guardião de princípios e direitos

fundamentais, deve intervir no caso concreto, dando tratamento, reitera-se,

uniforme e jurídico a uma questão que não vem sendo tratada de maneira

muito clara e objetiva pelo Poder Executivo até o momento.

II. DOS FATOS

É fato público e notório que brasileiros estão sendo

constantemente impedidos de entrar em território espanhol, mesmo quando

preenchidas as exigências da Comunidade Européia para a entrada de cidadãos

extracomunitários nas nações do bloco. Em tais situações, além de devolvidos ao

Brasil ao argumento genérico de falta de documentos, sem que sejam especificados

quais, os brasileiros são submetidos pelas autoridades imigratórias espanholas a

tratamento incompatível com a dignidade da pessoa humana, em nítida

demonstração de preconceito xenofóbico.

Inúmeros são os relatos da imprensa, que tem

intensificado o tema nos últimos dias, em virtude dos lastimáveis episódios que estão

ocorrendo com brasileiros na Espanha.

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

A exemplo, o padre Jeferson Flavio Mengali, de Bragança

Paulista – SP, tentou visitar um amigo em Madri em janeiro deste ano. Barrado no

aeroporto de Barajas, ele teve até sua estola e túnica confiscadas, após as

vestimentas eclesiásticas serem satirizadas pela imigração espanhola, comparadas a

uma fantasia de carnaval. Veja-se:

“Sou padre e fui visitar um amigo que mora em Madri e também é

padre. Chegando na imigração, fui pego de surpresa. Me

mandaram para uma sala onde permaneci por cinco horas sem

saber o que estava acontecendo ou que iria acontecer.

Depois disso nos levaram para um outro lugar, com camas e

banheiro, onde encontrei outros dez brasileiros. Lá fomos

tratados como animais ... humilhados ... Neste lugar, mais dez

horas de espera.

Tiraram todos os meus pertences. Me deixaram sem nada e, para

piorar, pegaram minha túnica e estola (roupas necessárias para

celebrar a santa missa) e perguntaram se era fantasia de

carnaval.

Todas as minhas tentativas em dialogar foram frustradas, pois

ninguém nos dava atenção ... éramos ignorados o tempo todo.

Apresentei toda a minha documentação. Meu documento da CNBB

(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), provando que era

padre, além de passaporte, passagem de volta, dinheiro, cartão

de crédito. Mas nada disso valeu.

Depois de ser entrevistado por policiais, resolveram mandar todos

de volta para o Brasil. Mais humilhação. Fui tratado como um

bandido, colocado dentro de uma viatura da polícia e me levaram

para dentro do avião escoltado. Me senti o pior dos seres

humanos.”

(Folha On Line, www.folha.com.br, Cotidiano, 07.03.2008, 19h36)

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

A humilhação e tratamento degradante a brasileiros não

estão restritos à área dos aeroportos espanhóis, estendendo-se por toda a zona de

fronteira daquele país. Veja-se o relato da mãe de um estudante brasileiro expulso

irregularmente da Espanha, contrapondo as declarações públicas do Embaixador da

Espanha no Brasil, Ricardo Peidró, que insiste em negar os maus tratos a brasileiros,

mesmo diante de tamanhas evidências:

“Em 2008, meu filho concluiu um curso na França, onde entrou

sem nenhum problema. Resolveu pegar um ônibus e ir a

Salamanca (Espanha), passar um fim de semana com um amigo

português, que lá o aguardava, e em seguida voltar ao Brasil.

No meio da viagem, os policiais de fronteira pararam o ônibus no

meio da noite, revistaram o veículo e mandaram meu filho sair.

Sem nenhuma explicação, mandaram o ônibus partir.

Quando meu filho perguntou o que estava acontecendo, foi

empurrado por um dos policiais até uma sala escura e fétida,

onde encontrou uma porção de africanos, velhos e crianças, todos

assustados, famintos e sem direito de ir ao banheiro. Foram eles

que explicaram o provável motivo dos guardas terem-no

empurrado para aquele lugar.

Vendo a situação de penúria das pessoas, meu filho ofereceu-lhes

o lanche que havia levado para a viagem. A fome era tanta que os

adultos não deixaram sobrar nenhuma migalha e, agradecidos, o

alertaram pra que tivesse cuidado ao falar com os guardas.

Não demorou para aparecerem com um papel que meu filho

deveria assinar sem ler. Quando se recusou e disse que não

assinava nada nestas condições, o guarda o empurrou dizendo-

lhe que ali não tinha escolha. Mas diante dos argumentos de

advogado especializado em direito internacional, os guardas não

tiveram meios de evitar. Ao ler, viu que ele estava assinando uma

declaração de que tinha recebido assistência consular, e outras

barbaridades.

Como ele poderia compactuar com tanta mentira assinando tal

documento? Ao dizer isto ao guarda, imediatamente os africanos

pediram-lhe que assinasse para evitar maiores represálias.

Percebendo o pânico do pessoal, assinou e foi posto num ônibus

de volta à França na manhã seguinte.

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Donde se conclui que o conceito de bons tratos do povo espanhol,

retratado nas declarações deste que se diz diplomata, é

muitíssimo diferente do nosso.”

(Folha On Line, www.folha.com.br, Cotidiano, 07.03.2008, 21h00)

Outra mãe brasileira, com filho detido em Madri –

Espanha, contestou o Embaixador, afirmando que o rapaz tinha como comprovar

todos os requisitos exigidos para ingresso naquele país:

“A mãe de Pedro Luiz Lima – um dos brasileiros detidos em Madri – a

professora de química da UFF Rosaly Silveira da Silva, 51, contestou o

embaixador e disse que seu filho tinha como comprovar todos os

requisitos citados.

'Eles dizem que faltam documentos, mas não informam quais. O

Pedro está com a carta convite para participar do congresso, com estadia

garantida e passaporte recente. Ele tem dinheiro porque, além de ter

comprado euros com R$ 1.000, ainda levou um cartão de crédito

internacional e um cartão do banco que permite que ele faça saques na

moeda local.'”

(Folha On Line, www.folha.com.br, Cotidiano, 06.03.2008, 19h02)

Em especial às mulheres brasileiras, é imposto forte

preconceito sexual pela Espanha. Veja-se o exemplo de Patrícia Camargo Magalhães,

de 23 anos, mestranda de física da Universidade de São Paulo, que foi deportada ao

Brasil sob o argumento de falta de documentos mas, para ela, o que aconteceu “foi

uma demonstração de preconceito social e sexual”:

“A jovem participaria de um congresso internacional em Portugal e

viajaria de Lisboa via Madri por uma questão de preço. Em vez do

congresso, no entanto, Patrícia passou três dias presa no aeroporto

de Madri. Em uma das salas em que ficou confinada em

companhia de 30 brasileiros e de outros tantos venezuelanos e

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africanos, com apenas 9 metros quadrados e fechada por duas

portas blindadas, foi obrigada a dormir e alimentar-se no chão,

por causa da superlotação.

Apesar de a falta de documentos ter sido apontada como a

justificativa para barrar a entrada da mestranda, no campo

reservado para a discriminação dos documentos faltantes,

entretanto, nada foi escrito.

O professor titular do Instituto de Física da USP, Manoel Roberto

Robilotta, 60, orientador de Patricia, afirmou que, no congresso, o

constrangimento abateu os cientistas. 'Sabe-se que a Espanha é destino

de mulheres cooptadas por redes de prostituição, o que o governo de lá

quer legitimamente combater, mas o que ocorreu com a Patrícia foi

claramente preconceituoso contra brasileiros, mulheres e jovens.”

(Folha On Line, ww.folha.com.br, Cotidiano, 20.02.2008, 09h39)

Sobre as degradantes condições da sala de inadmitidos no

aeroporto de Madri, onde são confinados, ao que consta, apenas cidadãos de países

de terceiro mundo, relata o representante da ONG S.O.S Racismo:

“A situação dos universitários brasileiros não é única. A cada dia,

centenas de imigrantes ficam retidos na sala de inadmitidos do aeroporto

de Madri.

'Temos inúmeros casos de profissionais qualificados, como uma médica

nicaraguense que também foi deportada em agosto do ano passado e

nós mesmos tentamos ajudá-la e foi impossível', disse o porta-voz da

ONG S.O.S. Racismo. A organização reclama das condições do

lugar onde os barrados ficam esperando a repatriação.

Segundo a ONG, as salas medem 4 m x 6 m, tem pouca luz e

nenhuma ventilação. Nos banheiros falta papel higiênico e sabão

e, apesar de ter ducha, os estrangeiros não têm acesso às suas

malas. Portanto, segundo a ONG, ficam sem toalhas ou objetos de

higiene pessoal durante a permanência na sala (...)”

(Folha On Line, www.folha.com.br, BBC Brasil, 07.03.2008,

11h38)

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Um empresário brasileiro com experiência em viagens

internacionais pelo menos desde o ano 2000, conta que se viu obrigado a utilizar

passaporte americano para ter respeitado seu direito mais primário, o de ser tratado

como ser humano:

“Sou um pequeno empresário, residente nos EUA, viajo a

negócios para vários países. Até o ano 2000 eu usava passaporte

brasileiro. (...) A partir de 2001, passei a usar passaporte

americano. (...) Recentemente, em novembro de 2007, entrei na

Espanha. Nenhuma pergunta para minha esposa ou para mim. Em

resumo: brasileiros são discriminados na Europa, sim! Esta

história de que a pessoa tenha de carregar um mínimo de

dinheiro consigo, seguro médico, comprovação de reserva de

hotel é pura balela.”

(Folha On Line, www.folha.com.br, Cotidiano, 07.03.2008,

21h00)

Diversos outros casos podem ser lidos nos jornais sobre o

assunto, todos com narrativas coerentes e uníssonas. Os relatos evidenciam que tal

tratamento dispensado a brasileiros na Espanha já é antigo e fruto de preconceitos de

toda ordem, encobertos pela suposta falta de documentos para ingresso de

estrangeiros nos países da União Européia. É nítido que a falta de providências

administrativas a destempo pelo Ministério das Relações Exteriores só fez intensificar

a situação nos últimos meses.

O número de brasileiros barrados na Espanha no

aeroporto de Barajas, em Madri, aumentou mais de 20 vezes em um ano e meio,

segundo a fonte da BBC Brasil em Madri. Só no mês passado, 452 brasileiros foram

impedidos de entrar na Espanha. (www.folha.com.br, BBC Brasil, 06.03.2008,

16h09).

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Ora, ao concatenar-se um raciocínio jurídico ,

inclusive permeado pelas noções de direito internacional, é forçoso concluir

que, em tese, é lícito à Espanha, valendo-se de sua soberania, restringir a

entrada de estrangeiros em suas fronteiras . O que é vedado, todavia , ao

povo espanhol, é, num primeiro momento fechar as fronteiras de seu país

ao povo do Brasil e, em seguida, pretender livre e irrestrito acesso

justamente ao solo Brasileiro . O direito internacional público pressupõe a

maturidade e a coerência dos povos e, portanto, admite e autoriza uma

relação de pesos e contrapesos para evitar o desequilíbrio e a iniquidade.

Para combater a desigualdade, a injustiça e para

fazer valer uma relação saudável e justa de pesos e contrapesos é que existe

o princípio da “reciprocidade” que, no caso concreto, aconselha o Estado

Brasileiro a adotar , na autorização de entrada de espanhóis em nossa

nação, o mesmo “rigor de fronteira” utilizado pelos espanhóis em desfavor

de brasileiros na atualidade. Num primeiro momento, não se trata nem

mesmo de um “juízo moral” ou incriminador sobre a conduta dos espanhóis

mas sim um juízo de justiça acerca das noções de igualdade e reciprocidade.

Mas , por falar-se em “juízo moral” ( e a moral integra o

Direito, sem dúvida) necessário discorrer, doravante, sobre importante tema de

relevância acentuada para todos os povos , ou seja , DIREITOS HUMANOS .

Conforme já explicitado, não se questiona na presente

exordial, de forma alguma , a soberania espanhola. Todavia, de outra banda,

necessário versar sobre o tratamento dado ao povo brasileiro, cujo acesso foi

inadmitido em solo espanhol, principalmente no período compreendido entre a

abordagem feita pelas autoridades espanholas e a efetiva repatriação. Há aí um

ínterim que, para muitos, tem cheiro e sabor de inferno.

Antes da efetiva repatriação, os brasileiros são submetidos

a todo tipo de humilhação , maus-tratos e afrontas covardes . Não há princípio de

direito internacional algum capaz de chancelar a afronta aos direitos humanos e,

nesse ponto, o povo espanhol demonstra sua imaturidade no trato com os direitos

humanos . A fome, o frio, a sede (inclusive de justiça), o desespero e a angústia são

sensações que permearam a alma dos brasileiros inadmitidos na Espanha. No

intervalo compreendido entre a abordagem miliciana e a repatriação, os brasileiros

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inadmitidos são aglomerados em salas imundas, sem noções mínimas de higiene, não

são alimentados e, enfim, são tratados como “prisioneiros de guerra”. Aliás, talvez

haja em algum lugar do globo, nesse dado momento, um prisioneiro de guerra que

esteja a receber tratamento mais digno do que um brasileiro que, nesse mesmo e

coincidente momento, esteja em solo espanhol aguardando sua a repatriação rumo ao

Brasil .

Não há exagero de sorte alguma em tal afirmação.

Enquanto o Procurador da República subscritor da presente ação civil pública estava a

redigir o presente texto (tarde/noite do dia 14/03/2008, sexta-feira) , passou a ser

veiculada pela imprensa a história , triste, diga-se de passagem, da brasileira Janaina

Agostinho, de 27 anos de idade. Literalmente “presa” no aeroporto de Barajas, em

Madri, há cinco dias, ela passa, nesse exato momento (em que o membro do MPF

redige esta exordial) por humilhação e segregação que se estende por um período

de tempo injustificável . Não seria prudente duvidar da idéia de que algum prisioneiro

de guerra, em algum lugar do planeta, também nesse exato instante, esteja

recebendo tratamento mais digno e condizente com as noções de direitos humanos.

Há, sem dúvida, portanto, exageros de toda sorte

praticados pelo Estado Espanhol. Ao argumento de que “no cabemos todos” (lema

utilizado pela direita espanhola mas que também encontra respaldo na alma dos

socialistas que, por pouco, sagraram-se vencedores nas últimas eleições), a Espanha

recusa a idéia de permanecer recebendo imigrantes no interior de suas fronteiras, o

que, em razão das noções de soberania, é juridicamente legítimo (os questionamentos

existem apenas no campo moral).

Mas de forma alguma se justifica o procedimento

algoz e verdugo adotado pela milícia espanhola que, nos dias de hoje,

dispensa maus-tratos e agressões covardes tanto em face de brasileiros que

buscam na imigração uma chance de melhoria de vida, quanto em face

inclusive daqueles que, nítida e comprovadamente, não têm a intenção de

imigrar em definitivo para a Espanha, mas tão somente adentrar o respectivo

território para realizar turismo ou rápidos cursos de aperfeiçoamento

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profissional. O direito internacional prevê a idéia de deportação mas as

agressões vis e covardes que vêm sendo praticadas pelo povo espanhol

indicam desvio de caráter e falta de compromisso com os direitos humanos.

III. DO DIREITO

III.a. REQUISITOS DA UNIÃO EUROPÉIA PREVISTOS NO ACORDO DE

SCHENGEN

Embora, conforme se disse, a vedação ao acesso de

brasileiros à Espanha não esteja ocorrendo, ao que se sabe, pela falta de

documentação legal, sendo este apenas o argumento utilizado pelas autoridades

espanholas para esconder preconceitos das mais variadas espécies (racial, cultural,

sócio-econômico, sexual, dentre outros), convém salientar quais são os requisitos

impostos pela União Européia para ingresso de cidadãos extracomunitários naquelas

nações, previstos na Convenção de Schengen:

Artigo 5.o

1. Em relação a uma estada que não exceda três meses, a entrada no

território das partes contratantes pode ser autorizada ao estrangeiro que

preencha as seguintes condições:

a) Possuir um documento ou documentos válidos, determinados pelo

Comitê Executivo, que permitam a passagem da fronteira;

b) Ser titular de um visto válido se este for exigido;

c) Apresentar, se for caso disso, os documentos que justifiquem o

objetivo e as condições da estada prevista e dispor de meios de

subsistência suficientes, quer para a duração dessa estada, quer para o

regresso ao país de proveniência ou o trânsito para um Estado terceiro

em que a sua admissão esteja garantida, ou estar em condições de

adquirir legalmente estes meios;

d) Não estar indicado para efeitos de não admissão;

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e) Não ser considerado como susceptível de comprometer a ordem

pública, a segurança nacional ou as relações internacionais de uma das

partes contratantes.

2. A entrada nos territórios das partes contratantes deve ser recusada a

qualquer estrangeiro que não preencha cumulativamente estas

condições, exceto se uma das partes contratantes considerar necessário

derrogar este princípio por razões humanitárias ou de interesse nacional

ou ainda devido a obrigações internacionais. Neste caso, a admissão será

limitada ao território da parte contratante em causa que deverá avisar

desse facto as outras partes contratantes.

Estas regras não prejudicam a aplicação das disposições especiais

relativas ao direito de asilo, nem das do artigo 18.

3. Será admitido em trânsito qualquer estrangeiro titular de uma

autorização de residência ou de um visto de regresso emitidos por uma

das partes contratantes ou, se necessário, destes dois documentos,

excepto se constar da lista nacional de pessoas indicadas da parte

contratante em cujas fronteiras externas se apresenta.

Na prática, informou o Cônsul Geral do Brasil em Madri,

Gerson Fonseca, à reportagem da Folha de São Paulo, que é preciso apresentar:

− passaporte válido por ao menos mais seis meses;

− comprovante de reserva em estabelecimento de reserva de

hospedagem ou carta-convite do morador que o receberá;

− confirmação de reserva de viagem organizada, com itinerário;

− bilhete de volta;

− ter ao menos 57,06 euros por dia de permanência, por pessoa (o

montante total mínimo é de 513,54 euros);

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− ter seguro médico internacional ou com cobertura no exterior com,

no mínimo, garantia de repatriação em caso de doença grave ou

acidente e cobertura de 30 mil euros;

− convite para eventuais feiras, reuniões, convenções, etc com nome

da empresa que convida, duração da estadia e propósito;

− comprovante de matrícula de eventuais cursos teóricos ou práticos;

− não estar sujeito à proibição de entrada;

− não indicar perigo à saúde pública, à ordem pública, à segurança

nacional ou às relações internacionais entre os países;

− não ter esgotado o período de permanência de três meses em três

meses, a contar da primeira data de entrada.

(Folha On Line, www.folha.com.br, Cotidiano, 06.03.2008,

13h38)

Muito embora a extensão dos documentos, basta a

apresentação de um passaporte americano, conforme visto, para que todo o rigor

documental seja esquecido e o passageiro tenha livre acesso à Espanha, sem

nenhuma pergunta sequer. Essa dura realidade não é difícil de ser constatada por

quem costuma empreender viagens internacionais.

Convém dizer, ademais, que o Acordo de Schengen é um

tratado entre países europeus para uma política de livre circulação de pessoas no

espaço geográfico da Europa, originalmente assinado em 14 de junho de 1985, pela

Bélgica, França, Alemanha, Luxemburgo e Países Baixos. Ao ser posta em prática , a

Convenção de Schengen passou a receber a adesão de diversos outros países

europeus, dentre eles a Espanha, em 25 de junho de 1991.1

Assim, não se pode dizer legalmente que era intenção

precípua do Acordo de Schengen promover o exorcismo a estrangeiros, como faz a

Espanha dos dias de hoje.

1 Enciclopédia Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_de_Shengen

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III.b. PRIMAZIA DOS DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNACIONAL. A

CONVENÇÃO EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS.

Não obstante o Acordo de Schegen autorize a Espanha a

fiscalizar cautelosamente os cidadãos extracomunitários para ingresso na Comunidade

Européia, descura-se a Espanha que, acima de qualquer acordo ou tratado

internacional, encontra-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada em

10.12.1948, da qual a Espanha, como toda nação civilizada, é signatária.

Nos termos do artigo 13 do memorável documento é

reconhecido pelas nações pactuantes que:

“Art. 13 – Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e

residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo homem tem o

direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.”

Daí vem a idéia universalmente adotada entre os povos

cultos de que , em geral (e salvo exceções) as fronteiras de um país não podem ser

fechadas aos estrangeiros.2

A doutrina especializada obtempera que “o Estado não

pode, salvo as restrições oriundas de seu inalienável direito de defesa e conservação

impedir a entrada de estrangeiros em seu território.”3

E “a qualquer estrangeiro encontrável em seu

território – mesmo que na mais fugaz da situações, na zona de trânsito de

um aeroporto – deve o Estado proporcionar a garantia de certos direitos

elementares da pessoa humana: a vida, a integridade física, a prerrogativa

eventual de peticionar administrativamente ou requerer em juízo, o

tratamento isonômico em relação a pessoas de idêntico estatuto.”4

2 Lafayette Rodrigues Pereira, Princípios de Direito Internacional, I, p. 226, Rio, 1902.

3 Luis Ivani de Amorim Araújo, Curso de Direito Internacional Público, p. 84/85, Forense, 9ª ed., 1998

4 J. F. Rezek, Direito Internacional Público, p. 186, Saraiva, 9ª ed., 2002 13

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Nesse sentido, a Carta Magna Brasileira de 1988,

reconhecida internacionalmente pelo primor de seu texto:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,

à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)”

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas

relações internacionais pelos seguintes princípios: (...)

II – prevalência dos direitos humanos; (...)

V – igualdade entre os Estados; (...)

VII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; (...)

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

(...)”

Não bastasse a Declaração Universal dos Direitos do

Homem, a Espanha também é signatária da Convenção Européia de Direitos

Humanos, enquanto país membro do Conselho da Europa, desde 24 de novembro de

1977.

Afirma o preâmbulo da Convenção Européia de Direitos

Humanos que:

“Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa,

Considerando a Declaração Universal dos Direitos do Homem

proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de

Dezembro de 1948,

Considerando que esta Declaração se destina a assegurar o

reconhecimento e aplicação universais e efetivos dos direitos nela

enunciados,

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Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é realizar uma

união mais estreita entre os seus Membros e que um dos meios de

alcançar esta finalidade é a proteção e o desenvolvimento dos direitos do

homem e das liberdades fundamentais,

Reafirmando o seu profundo apego a estas liberdades

fundamentais, que constituem as verdadeiras bases da justiça e

da paz no mundo e cuja preservação repousa essencialmente, por

um lado, num regime político verdadeiramente democrático e,

por outro, numa concepção comum e no comum respeito dos

direitos do homem,

Decididos, enquanto Governos de Estados Europeus animados no

mesmo espírito, possuindo um patrimônio comum de ideais e

tradições políticas, de respeito pela liberdade e pelo primado do

direito, a tomar as primeiras providências apropriadas para

assegurar a garantia coletiva de certo número de direitos

enunciados na Declaração Universal,

Convencionaram o seguinte: (...)”

(g.n)

O tratamento devido aos estrangeiros, dentro das normas

internacionais sobre Direitos Humanos, é especificado no Protocolo nº 4 adicional à

Convenção Européia:

Artigo 1.º

Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não

poder cumprir uma obrigação contratual.

Artigo 2.º

1 - Qualquer pessoa que se encontra em situação regular em território

de um Estado tem direito a nele circular livremente e a escolher

livremente a sua residência.

2 - Toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu

próprio.

3 - O exercício destes direitos não pode ser objecto de outras

restrições senão as que, previstas pela lei, constituem

providências necessárias, numa sociedade democrática, para a

segurança nacional, a segurança pública, a manutenção da ordem

pública, a prevenção de infrações penais, a proteção da saúde ou

da moral ou a salvaguarda dos direitos e liberdades de terceiros.

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4 - Os direitos reconhecidos no parágrafo 1 podem igualmente, em

certas zonas determinadas, ser objeto de restrições que, previstas pela

lei, se justifiquem pelo interesse público numa sociedade democrática.

Artigo 3.º

1 - Ninguém pode ser expulso, em virtude de disposição individual ou

colectiva, do território do Estado de que for cidadão.

2 - Ninguém pode ser privado do direito de entrar no território do Estado

de que for cidadão.

Artigo 4.º

São proibidas as expulsões colectivas de estrangeiros.

(g.n.)

Embora a Convenção de Schengen, numa breve leitura,

não preveja expressamente sanções para abusos cometidos pelas forças policiais na

aplicação das regras de tal acordo de fronteiras, violadores dos direitos humanos, os

países signatários da Convenção Européia dos Direitos Humanos, dentre eles a

Espanha, têm a obrigação de cumprir esse importante documento, sob pena de

condenações pela Corte Européia dos Direitos Humanos.

Conforme visto, há muito a Espanha não tem respeitado

em suas áreas de fronteira a dignidade humana dos cidadãos brasileiros, dentre

outros povos de nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento.

Sobre o princípio da dignidade humana:5

“O princípio da dignidade humana consubstancia-se no respeito ao ser

humano quanto à sua liberdade de pensar, vestir-se, locomover-se, ter

uma ideologia e um credo religioso ou não ter qualquer convicção

filosófica ou espiritual, bem como de manter sua independência para agir

dentro dos costumes e padrões morais e éticos que entende sejam

condizentes.

É princípio amplo, abrangendo a própria vida, sob o ponto de

vista físico e espiritual. Trata-se de valor constitucional supremo

5 Carlos Roberto Husek, Identificação de Brasileiros e Americanos – Princípio da Reciprocidade, Escritório On Line,

12.02.2004 (www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=4460) 16

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que agrega a unanimidade dos demais direitos e garantias

fundamentais do homem (art. 1º, III, da Constituição Federal). É

um sobreprincípio, contemplando a legalidade; a liberdade, em

todas as suas formas; a moralidade administrativa etc. Não é

obstáculo para o exercício da soberania de Estado, desde que

essa soberania seja exercida de acordo com os princípios e regras

básicas aceitos pelo mundo civilizado, voltados para a paz, o

progresso e o bem-estar da humanidade.”

(g.n.)

III.c. PRINCÍPIO DA RECIPROCIDADE

A soberania e a cooperação entre os povos constituem o

fundamento das relações entre as nações, mas estas não podem ignorar o princípio

mater da reciprocidade, sob pena de ferir o princípio da igualdade entre os Estados.6

Ensina Carlos Roberto Husek, Professor da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, que:

“O princípio da reciprocidade é invocado como um dos mais antigos no

Direito Internacional. Tratados dos séculos XII e XIII dele já se

utilizavam para justificar o cumprimento de normas. Tal princípio já

vem sendo aplicado tanto no caso de respeito às normas

internacionais, quanto no de sua violação.

Reciprocidade é medida de igualdade, que tem a finalidade de

atingir o equilíbrio, agindo mais numa zona cinzenta entre o fato e o

Direito, e possui natureza política.

Fala-se em reciprocidade por identidade ou por equivalência; no

primeiro caso, prestações idênticas; no segundo, prestações

diferentes, mas de valor compatível.

(...)

6 Leon Frejda Szklarowsky, O Princípio da Reciprocidade no Direito Internacional, Revista Juristas, 21.08.2006

(www.juristas.com.br)17

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A aplicação dos princípios internacionais (incluindo o da reciprocidade)

ajuda o Brasil nas suas relações internacionais, porque são princípios

bons, que devem ser usados politicamente e com o intuito de favorecer a

criação de benefícios jurídicos recíprocos.” (g.n.)

Em outras palavras , a reciprocidade, via de regra, deve

ser utilizada para estimular a concessão recíproca de benefícios entre as nações,

através de prestações positivas. No entanto, há de ser utilizada como

mecanismo de defesa de um Estado contra outro, quando um se vê atingido em

sua soberania ou dignidade e isso ocorre, de outra banda, através da adoção de

prestações negativas .

A Espanha discrimina indistintamente os brasileiros,

repatriando-os de forma incompatível com a dignidade da pessoa humana. Ao mesmo

tempo envia seus nativos ao Brasil, que aqui recebem das autoridades imigratórias

tratamento respeitoso aos seus direitos humanos e aqui não são impedidos de

ingressar meramente em razão de seu país de origem .

A Espanha frontalmente descumpre a reciprocidade em

relação ao Brasil, pois ao passo que o Brasil vem concedendo aos cidadãos espanhóis

prestações positivas, tem assistido ao menoscabo praticado contra brasileiros em solo

espanhol.

Não se trata de represália, mas de restabelecer a

igualdade violada pela Espanha, em prejuízo do Brasil, de forma que o Brasil

possa, através da aplicação do princípio da reciprocidade, exigir que os espanhóis

dispensem tratamento equânime ao Brasil.

III.d. DA LEGITIMIDADE ATIVA, DA LEGIITIMIDADE PASSIVA

In casu, não há dúvidas de que estão presentes a

legitimidade ativa e passiva e a competência da Justiça Federal.

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A Constituição Federal atribui ao Ministério Público Federal

a defesa dos interesses sociais (art. 127, caput). Não se pode ignorar a relevância

social dos direitos tutelados através da presente ação e o conseqüente interesse

social em sua proteção.

A Lei Orgânica do Ministério Público da União prevê como

função institucional do Ministério Público promover, via ação civil pública, a proteção

dos direitos e liberdades constitucionais (art. artigo 6º, inciso VII, alínea 'a', da Lei

Complementar nº 75/93), como o são as prerrogativas inerentes à nacionalidade, à

soberania e à cidadania, interesses difusos de extrema relevância.

Observe-se que, no caso presente, é dispensável a

instauração de procedimento preparatório de ação civil pública, uma vez que os fatos

ora expostos, além de ensejarem reparação urgente, são do mais amplo

conhecimento público e, assim, notórios, independendo de prova (art. 334 do CPC).

A legitimidade da União para figurar no pólo passivo é

cristalina, posto que ao Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, com as

diretrizes da Presidência da República, compete fazer valer o princípio da

reciprocidade nas relações internacionais, em concreto, frente à Espanha. E, mais do

que isso, compete administrativamente ao Ministério da Justiça, através do

Departamento de Polícia Federal a adoção dos procedimentos de autorização de

entrada de estrangeiros em território nacional bem como juízo acerca do

preenchimento dos respectivos requisitos.

Figurando o Ministério Público Federal no pólo ativo e a

União no pólo passivo é certo que a Justiça Federal é a competente para processar e

julgar a demanda (art. 109, I, da CF – 88).

III.e - DA INEQUÍVOCA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL DE GUARULHOS

Desde já salienta-se que, independentemente da leitura

que se faça do artigo 93 da lei 8078 (Código de Defesa do Consumidor), que rege as

noções de competência para a ação civil pública em geral (e não só nas questões de

índole consumerista , matéria pacífica que dispensa delongas) , a competência para

julgamento da presente ACP é, sem dúvida , do foro de Guarulhos .

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O artigo 2º da Lei 7347/85 reza que: “As ações previstas

nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá

competência funcional para processar e julgar a causa”. O dano combatido na

presente ACP é a entrada de espanhóis em solo brasileiro sem a adoção de medidas

de reciprocidade em relação ao comportamento que o Estado Espanhol vem adotando

em desfavor dos brasileiros que tentam adentrar o território daquele país.

Desta forma, sem dúvida, não há como recusar a idéia de

que , em nenhum foro outro, há dano maior do que em Guarulhos pois aqui fica a

maior porta de entrada (termos análogos aos do art. 22 do Estatuto dos

Estrangeiros) de estrangeiros, inclusive espanhóis, em território brasileiro , ou seja, o

aeroporto de Guarulhos, o maior da América Latina e o aeroporto com maior fluxo

de estrangeiros, inclusive espanhóis, do Brasil.

Apenas por amor à argumentação, ressalta-se, desde já,

que seria no mínimo insensato , em ACP deste jaez, fazer uma leitura torta dos

comandos do art. 93 do CDC para defender-se a idéia de que o foro competente para

a presente ACP é o do Distrito Federal, ente federativo com fluxo pífio (ou

praticamente nulo) de estrangeiros espanhóis se a comparação for feita em face do

fluxo de espanhóis no aeroporto de Guarulhos. Certamente não foi a adoção de tal

solução que pretendeu o legislador ao estabelecer a redação do artigo 2.º da lei

7347/85, ou seja, levar a causa para um foro onde dado não ocorre ou ocorre de

maneira tímida e quase nula. Seria uma aberração, data vênia, privilegiar o foro do

DF, que tem fluxo ínfimo de espanhóis em detrimento do foro de Guarulhos, cujo

aeroporto sabidamente tem proporções colossais e, segundo informações da

INFRAERO – EMPRESA BRASILEIRA DE INFRA ESTRUTURA AEROPORTUÁRIA7, está

interligado a 28 países e conta com 41 companhias aéreas, possuindo circulação diária

em torno de 100 mil pessoas. Nada no Brasil se compara a isso aqui!!!

E, ainda que as noções de competência

socorram-se dos comandos do art. 93 do CDC, a competência

permanece sendo do foro de Guarulhos, sem dúvida, com

jurisprudência forte do STF, STJ e TRF nesse sentido, nos termos dos

inafastáveis argumentos e julgados colacionados a seguir:

7 www.infraero.gov.br 20

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Preliminarmente , necessário assumir a premissa de que

não há hierarquia entre juizes federais de primeira instância. Não há juizes federais de

primeira instância que sejam de segunda classe, de somenos importância, pela

metade.

Por tal razão, o artigo 93, do Código de Defesa do

Consumidor, que também consagrou a regra de competência pelo local do dano,

ressalvou expressamente as noções de competência próprias da Justiça

Federal:

“Art. 93. Ressalvada a competência da justiça federal, é competente para a causa a justiça local:I – no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;II – no foro da Capital do Estado ou no Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil nos casos de competência concorrente.” (g.n.)

Nesse sentido, inarredável a leitura da regra de

competência da Justiça Federal, insculpida no artigo 109, da Carta Magna de 1988:

“Art. 109. aos juízes federais compete processar e julgar:

(...)

§ 2º. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção

judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o

ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa,

ou, ainda, no Distrito Federal.”

Tratando-se de dano que alcança proporções nacionais,

como ocorre na presente demanda, qualquer foro federal afetado pelo dano de

âmbito nacional terá competência para processar e julgar a ação civil pública

correspondente.

Isso porque, como a Lei nº 7.347 reza que qualquer foro

afetado pelo dano é competente para os trâmites da ACP e como o artigo 93 do CDC

fez expressa ressalva às noções de competência da Justiça Federal (artigo 109 da CF/

88), o entendimento que deve prevalecer, consoante a boa regra de hermenêutica,

ressalte-se, é o de que qualquer foro federal afetado pelo dano de âmbito nacional

terá competência para processar e julgar a ação civil pública correspondente.

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A jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça,

sensível à importância social das ações coletivas, já se posicionou no sentido de que a

ressalva feita pelo CDC às noções de competência próprias da Justiça Federal

excluem a regra de ajuizamento de ações civis de âmbito nacional somente no Distrito

Federal.

Nesses termos, o julgado abaixo:

“Interpretando o art. 93, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor,

já se manifestou esta Corte no sentido de que não há exclusividade

do foro do Distrito Federal para o julgamento de ação civil

pública de âmbito nacional.”

(STJ, Conflito de Competência nº 17.533, Rel. Min. Carlos Alberto

Menezes Direito, DJU 30.10.2000)

O entendimento do STJ é evidente, bem porque não existe

magistrado federal que seja “mais federal” do que outro.

O mesmo entendimento foi o adotado pelo E. Tribunal

Regional Federal da 3.ª Região, ao apreciar a ação civil pública nº

2000.61.11.004241-5, proposta pelo Ministério Público Federal em face da UNIÃO

perante o Juízo Federal de Marília, interior do Estado de São Paulo, em que se

objetivava, igualmente, o combate a dano de âmbito nacional. Em outras palavras, o

ponto de partida para fixação desse entendimento foi a análise da competência

territorial para julgar a chamada “ação civil pública do apagão” (autos nº

2001.61.11.001422-9), cujo objeto era o de combater as regras de racionamento de

energia elétrica impostas no segundo mandato do governo Fernando Henrique, em

razão de escassez provisória para abastecimento de energia em todo o país.

Veja-se a ementa do julgado, firmado à unanimidade:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IPI. IN 67/98. AÇÚCARES REFINADO-AMORFO,

DEMERARA, CRISTAL SUPERIOR, CRISTAL ESPECIAL, CRISTAL ESPECIAL

EXTRA, REFINADO-GRANULADO E CRISTAL STANDARD. PRELIMINARES

REJEITADAS. APELAÇÕES E REMESSA OFICIAL PROVIDOS EM PARTE.

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Em sede de ação civil pública em que é ré a União Federal e o

dano é nacional, é razoável entender-se que o Juízo da Subseção

Judiciária da Justiça Federal em Marília (SP) tem competência

para processar e julgar o feito. Preliminar de incompetência do

juízo que se rejeita. Inteligência do art. 109 da CF e 93 do CDC.

Precedente do STF.” (AC 926461, TRF – 3ª Região, Relator

Desembargador Nery Júnior, Terceira Turma, Data de julgamento

06/10/2004, publicação DJ 24/11/2004, Seção 2, p. 225)

A jurisprudência da Corte Regional apoiou-se em

precedente do E. Supremo Tribunal Federal. Oportuno transcrever excerto do Voto

do Desembargador NERY JÚNIOR, que afastou a preliminar de incompetência do Juízo

Federal da Subseção de Marília – SP:

“Desimporta que o dano seja nacional para desqualificar o juízo a

processar a Ação Civil Pública. É que nessa sede o interesse

tutelável é coletivo e difuso, porque no pano de fundo do embate

reúne-se toda a sociedade a guerrear pela modificação lá

postulada. Nesse andar, em qualquer ponto do território nacional

estará legitimado o juízo a examinar o pedido.

É oportuno também mencionar que o CDC promoveu, no art. 93, a

ressalva expressa quanto à competência da Justiça Federal.

Não é também plausível o dizer do apelante de que a lei quer mais que

'identificar' o dano, mas 'sediar'. No caso em tela, a identificação decorre

do fenômeno da difusidade, eis que também lá estaria ocorrendo.

Por fim, lapidar a lembrança exarada na veneranda decisão de fl. 644

quanto à postura da jurisprudência, quanto ao célere decisum que proibiu

o ato de fumar em aeronaves (AI 98.04.01.078679-2-RS) que com

respeitáveis fundamentos e apoios doutrinários trouxe à lume o

entendimento de que a restrição territorial da coisa julgada em ação

civil pública não incide quando a União é parte no processo .

Esse é o pensamento do Ministro Carlos Velloso, como

dedicadamente mostrou a sentença, resumível em que 'sempre que a

União for ré, não será possível fazer valer a regra do art. 16 da Lei

7.347/85, com a redação do art. 3º da MP 1.570/97 ...'

Daí porque rejeito a preliminar.” (g.n.)

Tratava-se inequivocamente de dano de âmbito nacional e

a ação civil pública na qual foram questionadas as regras do racionamento foi ajuizada

pelo Ministério Público Federal também em Marília, interior de São Paulo. Discutiu-se,

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assim, se aquele foro teria competência para julgamento de uma ação civil pública de

âmbito nacional e o entendimento do TRF – 3ª Região, inclusive com base em

precedentes dos Tribunais Superiores, foi afirmativo, fixando-se a competência do foro

de Marília para o processamento e julgamento da ação, bem como a extensão dos

limites da coisa julgada para todo o país (AG 131660 – processo nº

2001.03.00.015707-9, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Cecília Marcondes, data da decisão

31.05.2001). A partir de então repulularam inúmeros julgados no mesmo sentido.

Vale relembrar, ademais, a ação civil pública proposta

pelo Ministério Público Federal em Mato Grosso (2004.36.00.000748-6) visando a

aplicação do princípio da reciprocidade frente aos americanos, que estavam a

preparar medidas restritivas de ingresso de brasileiros nos Estados Unidos, dentre

outros nativos de países em desenvolvimento , como parte do novo sistema de

segurança contra atos terroristas. Naqueles autos, o juiz federal acolheu a tese

ministerial e deferiu liminar, para a aplicação da reciprocidade em caráter erga omnes,

nos seguintes termos:

“ (...) Mais recentemente, conforme os documentos de fls, 06/20, decidiu

o governo dos EUA implantar novo sistema de segurança no país para os

visitantes. Pela nova determinação, pessoas de várias nacionalidades,

consideradas desde logo terroristas em potencial, deverão ser

fotografadas e terão suas impressões digitais recolhidas pelas

autoridades norte-americanas assim que apartem ou deixem o território

daquele país. Obviamente, que os cidadãos europeus e de outros países

ricos não serão objeto do ato ultrajante, o qual serão reservado aos

nacionais de países pobres da América Latina, África, Oriente Médio e

Ásia. A data de início do novo procedimento será o dia 01 de janeiro de

2004 (em quatro dias).

Consigno que considero o ato em si absolutamente brutal, atentatório aos

direitos humanos, violador da dignidade humana, xenófobo e digno dos

piores horrores patrocinados pelos nazistas. Porém, dentro dos limites

territoriais norte-americanos, esta ao alvedrio daquele Estado

regulamentar a forma de entrada de alienígenas no espaço reservado à

sua soberania.

No entanto, na seara do direito internacional público, vige o chamado

princípio da reciprocidade, garantidor do que o mesmo tratamento dado

por um Estado à determinada questão também será concretizado por

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outro País afetado pela decisão do primeiro. Significa dizer que a relação

internacional entre países não pode se realizar de forma desigual,

principalmente em se tratando de princípios norteados da dignidade da

pessoa humana e de proteção e resguardo dos direitos humanos.

Dessa forma, não se pode admitir a omissão da União Federal no trato do

problema gerado na entrada e saída de brasileiros dos Estados Unidos da

América. A Constituição Federal, por seus artigos 1º, III; 3º, IV; e 4º, II,

impõe-lhe o dever de agir no caso no sentido de excluir os brasileiros do

tratamento indigno à pessoa humana e violador dos tratados/convenções

internacionais protetores dos direitos humanos.

De outro giro, enquanto perdurarem os atos norte-americanos

discriminatórios quanto aos brasileiros, pelo princípio da reciprocidade,

está autorizado a República Federativa do Brasil a impor aos cidadãos dos

Estados Unidos as mesmas exigências que estão sendo materializadas

aos nacionais aqui nascidos. Não há qualquer impedimento legal. Ao

contrário, a Magna Carta não compactua com a omissão das autoridades

brasileiras nesse sentido, porquanto lhes confere o dever legal de agir

nos exatos limites ditados pelo principio da reciprocidade.

(...)

Com efeito, defiro o pedido de concessão de medida liminar e determino

à União Federal, que faça gestões junto às autoridades norte-americanas

para que os brasileiros sejam excluídos da exigência que passa a vigorar

a partir do dia 01 de janeiro de 2004 para entrada e saída dos Estados

Unidos da América.

Enquanto perdurar a restrição imposta pelas autoridades norte-

americanas, determino à Requerida que fotografe e recolha as

impressões digitais dos nacionais dos Estados Unidos da América, nos

portos, aeroportos e rodovias, quando entrarem em território brasileiro,

sob pena de ser-lhes negada a entrada devida.

Deverá a Requerida reportar ao Juízo, no prazo de 10 dias, as

providências tomadas para o cumprimento desta, restando, desde logo,

fixada a multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a hipótese de

inobservância do ora decidido.

Oficie-se com urgência, ao Ministério de Relações Exteriores e ao

Departamento de Polícia Federal para cumprimento imediato.

Cite-se. Intimem-se.

Cuiabá, 28 de dezembro de 2003.”

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Aliada à jurisprudência, a doutrina também reconhece as

regras próprias de competência da Justiça Federal para o ajuizamento de ações

visando à defesa de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos.

ADA PELLEGRINI GRINOVER faz distinção expressa

entre o caput do artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor, onde é

ressalvada a competência da Justiça Federal, e os incisos I e II, do mesmo

artigo.

Segundo a renomada doutrinadora, o caput trata de

COMPETÊNCIA OBJETIVA EM RAZÃO DA MATÉRIA, enquanto que os incisos trazem o

que chama de COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA:

“Art. 93. Ressalvada a competência da justiça federal, é competente para a causa a justiça local:I – no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;II – no foro da Capital do Estado ou no Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil nos casos de competência concorrente.”

Nas palavras de ADA PELLEGRINI GRINOVER8:

“(2) COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA – O caput do dispositivo ressalva expressamente a competência, constitucionalmente determinada, da justiça federal, excluindo, consequentemente, da competência da justiça local as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes (art. 109 da CF).(...)

A determinação de competência territorial – ou distribuição das causas entre órgãos do mesmo tipo – faz-se pelo critério do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano (incisos do art. 93).(...)A competência territorial dos incs. I e II do art. 93 não se sujeita às regras do Código de Processo Civil, como aconteceria se se tratasse de competência relativa.É que, como visto (supra, nº 2), o art. 2º, LACP, aplicável ao CDC por força do art. 90 deste, em seu segundo sentido, confere à competência territorial natureza absoluta, ao disciplinar o gênero da competência funcional (uma das modalidades da competência absoluta).”

8Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado, Forense Universitária, 6ª edição, pgs.

776, 778 e 78026

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Assim, percebe-se que não está a autora a defender que,

em se tratando de Justiça Federal, as causas de âmbito nacional devem ser ajuizadas

na Capital do Estado, ou no Distrito Federal. Ao contrário, ensina que o caput e os

incisos do artigo 93 do CDC tratam de competências distintas: o caput, de

competência absoluta em razão da matéria, fixada pela Constituição Federal, para

causas de ajuizamento obrigatório na Justiça Federal, excepcionando-se apenas a

hipótese em que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, quando o

processamento e julgamento poderá se dar pela justiça estadual, como autoriza a

própria Constituição Federal (art. 109, § 3º); os incisos, de competência em razão do

território, que adquiriu status de competência absoluta, uma vez que os incisos

disciplinam, na verdade, competência funcional (art. 2º da LACP).

Em síntese, tratando-se de causa que deva ser

ajuizada obrigatoriamente na Justiça Federal, como é o caso da presente, em

que a UNIÃO figura no pólo passivo e o Ministério Público Federal no pólo

ativo, o que vale é o caput do artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor,

que manda consultar o artigo 109 da Constituição Federal, e não os incisos do

artigo 93.

Destarte, em se tratando de Justiça Federal, a

aplicação do inciso II do artigo 93 do CDC é incabível. A uma, porque viola

frontalmente o artigo 109 da Carta Magna e o próprio caput do artigo 93, que

através de ressalvas expressas, acaba por determinar as regras da

Constituição Federal. A duas, porque criaria uma hierarquia indevida entre os

Tribunais Regionais Federais, em evidente afronta às noções de equilíbrio

federativo (típicas de uma Justiça que, como o próprio nome define, é

FEDERAL), pois somente os juízes e desembargadores do TRF – 1ª Região,

com jurisdição sobre o Distrito Federal, teriam competência para julgar ações

civis públicas de âmbito nacional, desprestigiando sobremaneira o TRF – 3ª

Região e os demais. Isso seria verdadeira agressão, inclusive, ao pacto

federativo.

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Por todo o exposto, tem-se que a Justiça Federal de

Guarulhos (19.ª Subseção) é, sem dúvida, competente para o processamento e

julgamento da presente ação civil pública, por força do artigo 109, § 2º, da

Constituição Federal c.c. artigo 93, caput, do Código de Defesa do Consumidor.

IV. DOS PEDIDOS:

Requer-se que a União seja condenada na obrigação de

fazer, consistente em adotar, através do Departamento de Polícia Federal (Ministério

da Justiça) e do Ministério das Relações Exteriores, procedimentos especiais de

controle de ingresso de espanhóis no território nacional, alicerçados em critérios de

reciprocidade de tratamento conferido a brasileiros na Espanha, bem como em adotar

as medidas administrativas necessárias para que tais procedimentos sejam

implementados em todos os portos e aeroportos internacionais s (bem como em todas

as demais portas de entrada de estrangeiros no Brasil, aludidas no artigo 22 da lei

6815) , mormente no Aeroporto Internacional de São Paulo – Guarulhos, o maior da

América Latina, a maior porta de entrada de estrangeiros no país, dentre eles os

espanhóis.

Concretamente, deverá a União condicionar o ingresso de

cidadão espanhol em solo brasileiro ao preenchimento, no mínimo, dos mesmos

requisitos que atualmente estão sendo exigidos pela Espanha para autorizar o

ingresso de brasileiros em território espanhol, a saber :

− a) passaporte válido por ao menos mais seis meses;

− b) comprovante de reserva em estabelecimento de reserva de

hospedagem ou carta-convite do morador que o receberá;

− c) confirmação de reserva de viagem organizada, com itinerário;

− d) bilhete de volta;

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− e) ter ao menos 57,06 euros por dia de permanência, por pessoa (o

montante total mínimo é de 513,54 euros);

− f) ter seguro médico internacional ou com cobertura no exterior

com, no mínimo, garantia de repatriação em caso de doença grave

ou acidente e cobertura de 30 mil euros;

− g) convite para eventuais feiras, reuniões, convenções, etc com

nome da empresa que convida, duração da estadia e propósito;

− h) comprovante de matrícula de eventuais cursos teóricos ou

práticos;

− i) não estar sujeito à proibição de entrada;

− j) não indicar perigo à saúde pública, à ordem pública, à segurança

nacional ou às relações internacionais entre os países;

− k) não ter esgotado o período de permanência de três meses em

três meses, a contar da primeira data de entrada.

Afirmou-se acima que estes são os requisitos mínimos

que um espanhol deverá preencher para entrar em solo brasileiro pois o provimento

jurisdicional a ser prolatado não deve , de forma alguma (e sob pena de afrontar os

comandos do artigo 26 da lei 6815) , manietar o Ministério da Justiça (e a Polícia

Federal, portanto) na análise do preenchimento dos requisitos para autorização de

entrada de um espanhol em solo brasileiro . Leciona o comando de lei acima citado

que...

Art. 26. O visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito,

podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos

casos do artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério

do Ministério da Justiça.

Ante o exposto, requer-se do Judiciário que prolate

provimento ordenando às autoridades de imigração da Polícia Federal que passem

imediatamente a exigir , dos cidadãos espanhóis , o preenchimento dos requisitos

acima sem prejuízo do juízo de inconveniência que a lei outorgou ao Ministério da

Justiça, nos exatos termos do art. 26 da lei 6815 . Reitera-se, a medida deve ser

adotada em todas as portas de entrada de estrangeiros em solo brasileiro e,

principalmente, no aeroporto internacional de Guarulhos, o maior da América Latina .

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Requer-se ainda a imposição de multa, a ser fixada

pelo juízo, em caso de descumprimento da sentença ( valor que deverá ser revertido

para o fundo de direitos difusos lesados, art. 13 da lei 7347), sem prejuízo das

medidas cabíveis em sede de ações de improbidade e penais por desobediência .

IV.a) DA TUTELA ANTECIPADA:

Estão presentes os requisitos para a concessão da tutela

antecipada que, no presente caso, faz-se premente.

O fumus boni juris advém da relevância do fundamento da

demanda bem como do caráter público e notório da controvérsia sobre a qual versa o

MPF na presente ACP. É certo que brasileiros estão sendo humilhados de forma

covarde , vil e desnecessária pela Espanha que, ao invés de realizar a mera

deportação dos brasileiros que não preenchem os requisitos para entrada em solo

espanhol, com observância se suas próprias normas internas bem como das normas

internacionais relativas aos direitos humanos, resolveu, por sua conta, incluir aí um

intervalo de tempo no qual os imigrantes brasileiros são torturados psicologicamente e

submetidos a todo tipo de maus-tratos. E, reitera-se, até mesmo turistas e pessoas

interessadas em realizar rápidos cursos de aperfeiçoamento vêm sendo deportadas

com base em fundamentação evasiva e despoda de fundamentação jurídica .

É igualmente certo que a Espanha tem demonstrado, de

antiga data, preconceito xenofóbico contra os brasileiros, impedindo irregularmente o

ingresso de brasileiros em solo espanhol e repatriando-os sem observância da

dignidade da pessoa humana. Ainda, é certo que o Governo Brasileiro tem submetido

o assunto a toda a lentidão decorrente das negociações pelas vias diplomáticas, o que

só tem feito agravar a situação, conforme se vem assistindo nos noticiários.

O periculum in mora decorre do justificado receio de

ineficácia do provimento final, considerando que a cada dia eleva-se o número de

brasileiros repatriados irregularmente, humilhados e submetidos a tratamento

degradante nas fronteiras da Espanha sem que, de outra banda, sejam impostas pelo

Governo Brasileiro, de forma geral e uniforme, as medidas de reciprocidade

necessárias .

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Faz-se necessário provimento jurisdicional urgente para

que a União adote, de pronto, em paralelo aos entraves das negociações diplomáticas,

medidas concretas e efetivas para a aplicação do princípio da reciprocidade em

relações de imigração face à Espanha em todos os portos e aeroportos nacionais ,

principalmente no aeroporto de Cumbica (Guarulhos) , local no qual está situado não

o maior aeroporto brasileiro, mas sim o maior aeroporto na América Latina, uma das

maiores portas de entrada de estrangeiros no país, dentre eles os espanhóis.

Só assim, em se exigindo dos espanhóis comprovações

proporcionais as que estão sendo exigidas por eles de brasileiros na Espanha, e

repatriando os espanhóis que não fizerem prova, documental e imediata, de tais

requisitos, vedando, por consequência, seu ingresso no Brasil, poderá a União fazer

frente à crescente investida discriminatória dos espanhóis contra os brasileiros,

restituindo-se aos brasileiros, ao menos em parte, o brio merecido .

Destarte, o Ministério Público Federal requer a concessão

da medida antecipativa e a fixação de multa diária no valor de R$ 100.000,00 (cem

mil reais), a ser revertida para Fundo dos Direitos Difusos Lesados (art. 13 da Lei

7347/85), por cada dia de atraso da União em implementar os procedimentos de

controle especial de ingresso de espanhóis em território nacional, a que ficar obrigada

por força da tutela antecipada que, aguarda o MPF, seja concedida, em respeito ao

princípio da reciprocidade nas relações internacionais.

Requer, nos termos do artigo 2º da Lei nº 8.437/92, a

audiência prévia do representante judicial da União no prazo de 72 (setenta e duas)

horas. Tratando-se de competência do juízo de primeiro grau, a intimação deve ser

endereçada ao Procurador-Chefe ou Procurador-Seccional da União em São Paulo (art.

35, inciso IV, da Lei Complementar nº 73/93), que pode ser encontrado na Avenida

Paulista, nº 1842, 20º andar, São Paulo – SP.

Aguarda a citação da Ré para contestar, querendo, a

presente ação, prosseguindo-se até decisão final, que venha a julgar procedentes os

pedidos autorais, confirmando a tutela antecipada deferida.

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Protesta o Ministério Público Federal pela prerrogativa de

provar o alegado por todos os meios admissíveis em Direito, fazendo, desde já, a

juntada das normas internacionais utilizadas, em atenção ao artigo 337 do Código de

Processo Civil.

Dá-se à causa, para efeitos meramente fiscais, o valor de

R$ 1.000,00 (mil reais).

Nestes termos,

Pede-se deferimento.

Guarulhos, 14 de março de 2008

MATHEUS BARALDI MAGNANI

Procurador da República

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