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    MARXISMO

    MARXISMO

    VIVO

    Julho

    2015

    VIVO

    Revista Teorica da Liga Internacional d

    Trabalhadores - IV Internacional | Julho 20

    05

    NOVA EPOCA

    Dos.si. sobre o programa | A escola de Longjumea

    do Partido Bolchevique | Se.mi.n.rio Organizae Estrutura Partidria | Re.se.nha A Inveno dPovo Judeu

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    Publicada no Brasil por:Editora Sundermann

    Av. Nove de Julho, 925CEP: 01313-000Bela Vista So Paulo SP

    Tel: (11) [email protected]

    www.editorasundermann.com.br

    Marxismo Vivo uma publicao da Fundao Jos Luis e Rosa SundermannAvenida Brigadeiro Luis Antnio, 388 sala 64

    CEP: 01318-000 | Tel: (11) 3104-7674

    Jornalista ResponsvelMaria Ceclia Garcia

    Mtb 12.471

    Editor geral

    Martn Hernndez

    Conselho editorialAlicia Sagra (Argentina - [email protected])

    Felipe Alegra (Espanha - [email protected])Florence Oppen (Estados Unidos - [email protected])

    Francesco Ricci (Itlia - [email protected])Henrique Canary (Brasil - [email protected])

    Joo Pascoal (Portugal - [email protected])Jos Welmowicki (Brasil - [email protected])

    Maria Ceclia Garca (Brasil - [email protected] Hernndez (Brasil - [email protected])

    Nazareno Godeiro (Brasil - [email protected])Paulo Aguena (Brasil - [email protected])Ricardo Ayala (Espanha - [email protected])

    Ronald Len Nez (Paraguai - [email protected])

    Projeto grficoAna Clara Ferrari

    Diagramao e capaMartha Piloto

    TraduesPaula Maffei

    Jssica AugustiReviso tcnica

    Luciana Candido

    Notas da edio brasileira e reviso finalHenrique Canary e Luciana Candido

    ISSN: 1806-1591

    A impresso ficou a cargo da Bartira Editora Grfica de So Paulo,Brasil, e realizou-se em papel Norbrite 66 g/m.

    Para a composio do texto, foi usada a fonte Cambria, corpo 11, entrelinhas 13,2 pt; e nosttulos a fonte N.O.1981, corpo 18.

    Impresso em julho de 2015.

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    NDICEDossiDebate no CEI da LIT-QI sobre o programa08

    Sobre nosso programaMartn Hernndez

    Algumas das questes que o programa teria de abordar e atualizarMartn Hernndez

    Algumas consideraes sobre o partido e o programaPaulo Aguena

    DossiA escola de Longjumeau76

    A formao marxista na recomposio do bolchevismoAlicia Sagra

    A escola do Partido Bolchevique em Longjumeau [EXTRATOS]

    Alain Veysset

    Seminrio Internacional sobre Organizao eEstrutura Partidria

    Intervenes

    Clssicos

    96

    174Resenha

    A Inveno do Povo Judeu, de ShlomoSand: uma obra demolidora do SionismoJos Welmowicki

    11

    29

    37

    Sobre a inevitvel vitria do socialismoMartn Hernndez

    O terico da inevitabilidade do socialismo o renegado Kautski(no Marx)Francesco Ricci e Ricardo Ayala

    43

    53

    77

    87

    98

    140

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    Aos nossos leitoresNa apresentao da edio anterior de Marxismo Vivo, assinala-

    mos que, a partir deste nmero, a revista teria algumas caractersti-cas novas. Entre elas, destacvamos: [Marxismo Vivo] buscar socia-lizar as elaboraes que, em forma polmica ou no, forem surgindonas diferentes instncias da LIT. Ns, na LIT-QI, salvo raras excees,no passado, no atuvamos assim. Quando existiam polmicas te-

    ricas ou histricas que, s vezes, se prolongavam por anos, no asapresentvamos em nossos materiais pblicos (somente nos inter-nos). Publicamente, s apresentvamos os resultados inais dessaspolmicas.

    Desde a edio anterior, em que reproduzimos as intervenessobre a construo do partido revolucionrio feitas num seminriointernacional, comeamos a tornar pblicos nossos debates tericose histricos, muitas vezes polmicos.

    Nesta nova edio, no s mantemos este critrio como o amplia-mos. Como os leitores podero apreciar, existem trs grandes temas

    nesta revista, dos quais dois a segunda parte do seminrio e a dis-cusso sobre o programa incluem polmicas.

    Por que esse novo critrio?Quando foi proposto, surgiram algumas dvidas entre ns. A prin-

    cipal era: esse novo critrio no faria com que algumas seitas se uti-lizassem dele para nos atacar com mais fora do que j fazem atual-mente? Era uma dvida pertinente, pois o mundo est cheio dessasseitas que, diante de sua incapacidade para se construrem, vivem

    parasitando outras organizaes revolucionrias. Porm deixamosessa dvida de lado por um critrio de custo-benecio. Porque ver-dade que as seitas podem se valer de nosso novo critrio, mas muitomais certo que, para fazer avanar nossas elaboraes programti-cas, que o que mais nos interessa nesse caso, precisamos do dilogoe da polmica, inclusive com as organizaes adversrias ou inimi-gas. No conseguiremos isso se nossas elaboraes, inclusive nossas

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    polmicas, no se tornarem pblicas. Por outro lado, a vanguardatambm precisa ser parte desses debates, pois a construo de umprograma revolucionrio no apenas uma necessidade da LIT, masde todos os lutadores.

    Essa ltima relexo vale para convidar a todos os nossos leitores,

    sejam ou no sejam da LIT, a se somarem nossa batalha para cons-truir um programa que responda s novas necessidades.

    Os editores

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    ErrataNo artigo Gramsci trado (Marxismo Vivo n 4), uma frase da p-

    gina 85 sintetiza a opinio exposta em todo o artigo sobre a relaoentre Gramsci e Trotski. Contudo, por um erro de traduo, os nomesde Gramsci e de Trotski foram invertidos, tornando incompreensvelo sentido do texto. A frase publicada : Ento,foi Bordiga quem sus-tentou Gramsci,o mesmo Bordiga contra o qual Trotski havia arma-

    do Gramsci com ferramentas tericas em 1922-1923 (...). Por outrolado, nos anos seguintes, Bordiga no deu prosseguimento a esta cur-ta aproximao com Trotski (...). A frase correta : Ento,foi Bordigaquem sustentou Trotski, o mesmo Bordiga contra o qual Trotski haviaarmado Gramsci com ferramentas tericas em 1922-1923 (...). Poroutro lado, nos anos seguintes, Bordiga no deu prosseguimento aesta curta aproximao com Trotski (...).

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    Dossi

    Debate no Comit ExecutivoInternacional (CEI) da LIT-QI sobre o programa

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    Apresentao

    Cumprindo uma resoluo do Congresso Mundial da Liga Inter-nacional dos Trabalhadores Quarta Internacional (LIT-QI), a ltimareunio do CEI da LIT-QI deu incio a uma discusso sobre o progra-ma. Existe uma compreenso comum de que, a partir dos processosdo leste europeu (a restaurao do capitalismo e a mobilizao de

    massas que derrotou os partidos comunistas), se deram, na reali-dade, mudanas profundas que nos obrigam a atualizar o programamarxista.

    A discusso foi feita durante toda uma sesso em base a um do-cumento apresentado por Martn Hernndez, que recebeu, durante odebate, uma srie de aportes e tambm algumas crticas.

    Nesta nova edio de Marxismo Vivo, apresentamos um dossicom o produto desse debate no mbito do CEI. Apresentamos o textode Martn Hernndez na forma de trs artigos que j contm vrios

    aportes feitos na reunio e, como complemento desse texto, reprodu-zimos um artigo de Paulo Aguena intitulado Algumas consideraessobre o partido e o programa.

    Sobre as polmicas, reproduzimos a que foi mais desenvolvidana reunio, que trata da inevitabilidade do socialismo, por meio dedois textos: o de Martn Hernndez, com o contedo que apresentouna reunio, e outro, contrrio a esse, de Francesco Ricci e RicardoAyala.

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    Sobre nosso programaMartn Hernndez

    O XI Congresso Mundial da LIT, realizado em abril de 2014, votouuma resoluo sobre Formao e elaborao programtica que co-locava entre seus objetivos fundamentais desenvolver um processopermanente de elaborao programtica com o objetivo de conse-

    guir, a mdio prazo, a atualizao do Programa de transio.Para qualquer organizao poltica, ainda mais quando se trata de

    uma Internacional, o programa tudo. O programa a compreensocomum que tem tal organizao sobre a realidade que est vivendoe sobre as tarefas que se desprendem dessa compreenso. Mas a re-alidade muda (e mudam as tarefas). Por isso, o programa, de temposem tempos, precisa ser atualizado.

    Quando, no inal dos anos 1980, foi restaurado o capitalismo namaioria dos ex-Estados operrios do leste europeu; quando acon-

    teceram as grandes mobilizaes que derrubaram os governos eregimes restauracionistas dos partidos comunistas; e quando, comeles, caiu a principal direo existente do movimento operrio e demassas, todos os revolucionrios foram conscientes de que o mun-do estava passando por transformaes profundas. Isso obrigava osmarxistas a levar adiante uma profunda relexo programtica.

    Em que consistia tal relexo? Em saber se o programa marxistatinha passado pela prova dos fatos e, no caso de que o tivesse feito,em precisar em quais terrenos e com qual profundidade o programadeveria ser atualizado. Essa a tarefa que enfrentamos na atualidade.

    Alguns critrios para elaborar o programaJ se passaram cerca de 25 anos desde os grandes acontecimen-

    tos do leste europeu que comoveram e mudaram o mundo. Aparen-temente, demoramos muito para fazer ou atualizar o programa. E verdade: passaram-se muitos anos, mas para nossa corrente noforam anos de passividade no terreno da elaborao programtica.

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    Em 1994, ou seja, numa data bastante prxima dos acontecimen-tos do leste europeu e no incio da reconstruo de nossa Interna-cional, nos colocamos frente da tarefa de elaborar um projeto deprograma. No entanto, o deixamos de lado. No porque tivemos dife-renas com o texto. Pelo contrrio, porque achvamos que, frente

    dicil tarefa que nos era apresentada e frente debilidade do grupomarxista que a tinha de encarar, era mais prudente ir mais devagar,pegando a tarefa da elaborao programtica no a partir da redaodo prprio programa, mas de uma srie de elaboraes parciais.

    Como parte do que dissemos anteriormente, izemos avanarbastante uma elaborao sobre os acontecimentos do leste europeuno momento em que, em setembro de 2000, lanamos o primeironmero da revista Marxismo Vivo. Em sua apresentao, dizamos:Por que a revista Marxismo Vivo? A partir das revolues do lesteeuropeu, desenvolveu-se um debate entre milhares de lutadores domundo inteiro. (...) O que est em discusso? Absolutamente tudo,tanto no terreno terico quanto no poltico. (...)Marxismo Vivo(...)nasce para se colocar a servio desse debate programtico1.

    Como testemunho desse trabalho, existem as 27 edies da re-vista Marxismo Vivo, nas quais est resumido um conjunto das re-lexes programticas que fomos fazendo nestes anos e que so umimportante ponto de apoio para levar adiante nossa tarefa atual.

    Com relao ao tempo que demoramos para comear a prepararum projeto de programa embora excessivo e, por isso, nos auto-

    criticamos , devemos recordar que os grandes representantes domarxismo nunca tiveram como critrio responder rapidamente, emforma de um programa, s mudanas ocorridas na realidade.

    Assim, por exemplo, ainda que tanto Marx quanto Engels tenhamcomeado a desenvolver suas elaboraes e atividade poltica no in-cio da dcada de 1840, s no inal da dcada, ou seja, no incio de1848, elaboraram um programa, o Manifesto comunista, e o izeramdepois de Marx elaborar um texto de peso com suas principais con-cepes (Misria da ilosoia)e que Engels, uns meses antes do Ma-

    nifesto comunista,elaborou uma espcie de pr-manifesto chamadoPrincpios do comunismo.Da mesma maneira, os grandes dirigentes da Revoluo Russa,

    Lenin e Trotski, tendo feito importantes elaboraes programti-cas, no apresentaram um projeto de programa para ser votado emnenhum dos quatro primeiros congressos da III Internacional, dosquais participaram ativamente.

    1 Revista Marxismo Vivon 1, junho-setembro de 2000, p. 5.

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    Por sua vez, Trotski escreveu o Programa de transioquatorzeanos depois de iniciado o processo de burocratizao da URSS e cin-co anos depois da vitria do fascismo na Alemanha. Ele o fez depoisde uma srie de elaboraes programticas, entre as quais se desta-cam A revoluo tradae Stalin, o grande organizador de derrotas.

    O mesmo podemos dizer do principal dirigente de nossa corrente,Nahuel Moreno, que escreveu suas Teses para a atualizao do Pro-grama de transio35 anos depois de iniciadas profundas transfor-maes no mundo com o inal da Segunda Guerra Mundial.

    O programa, ainda que, como disse anteriormente, seja tudo, nor-malmente no o incio de um processo de elaborao para respon-der a uma nova realidade, mas o pice desse. Assim, por exemplo, oManifesto comunista,segundo relata Franz Mehring, no continhauma nica ideia que Marx e Engels j no tivessem usado em seus es-critos anteriores2. A mesma coisa dizia Trotski sobre o Programa detransio: Este texto no contm nenhum princpio novo. Sintetizatudo o que dissemos vrias vezes3.

    Como disse, poderamos ter cumprido essa tarefa h alguns anos,mas no muitos. Para elaborar ou atualizar um programa, neces-srio que os elementos e tendncias da realidade e a compreensodeles estejam suicientemente consolidados, e isso requer tempo.De qualquer forma, necessrio esclarecer que, com o programaque precisamos elaborar, no acontecer o mesmo que com os doisexemplos anteriores. Ele no vai conter s ideias que dissemos mui-

    tas vezes. Uma parte sim, mas outras tero de surgir de um processonovo de elaborao que teremos de encarar com fora redobrada apartir de agora. Por isso, no podemos apresentar uma proposta deprograma em um ms nem em dois.

    Por ltimo, em relao ao tempo necessrio para elaborar umprograma, bom recordar as palavras de James Cannon ao se referirao VI Congresso da Internacional Comunista, no qual se discutiu umprojeto de programa:

    A III Internacional foi organizada em 1919 e, at 1928, nove anos mais tarde,ainda no tinha um programa deinitivo. simplesmente uma indicao daseriedade com que os grandes marxistas encaravam a questo e com quecuidado o elaboravam4. [grifo nosso]

    2 MEHRING, Franz, Karl Marx A histria de sua vida, Editora Sundermann, 1 edi-o, 2013, p. 156.3 TROTSKI, Leon, Ns somos a IV Internacional, Carta a Camille (Klement), 12 deabril de 1938.4 CANNON, James,A histria do trotskismo norte-americano, 1942.

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    O que significa atualizar o programa?Muito falamos sobre a necessidade de atualizar o Programa de

    transio, mas poucas vezes nos referimos ao contedo dessa tarefa.Atualizar o programa signiica levar adiante duas tarefas inti-

    mamente ligadas. Por um lado, adapt-lo s mudanas que foram

    acontecendo na realidade. Isso sempre foi assim. Por exemplo, de-pois do triunfo da Revoluo Russa, surgiu a necessidade de atuali-zar o programa. A mesma coisa aconteceu na dcada de 1930 com osurgimento do fascismo e a degenerao da ex-URSS. Essa mesmarealidade que enfrentamos na atualidade a partir da restaurao docapitalismo nos ex-Estados operrios e das revolues que derruba-ram o aparato stalinista. Todos esses processos nos obrigaram e nosobrigam a atualizar o programa, porque eles signiicaram transfor-maes profundas em quase todos os terrenos, de carter duradouro

    e em escala mundial.Mas atualizar nosso programa mais do que isso. tambm, luz das novas realidades, veriicar se todas as elaboraes progra-mticas de nossos mestres seguem vlidas e, mais ainda, veriicar,inclusive, em que medida algumas delas foram vlidas quando foramfeitas. Essa a parte mais dicil da tarefa.

    Em primeiro lugar, porque no fcil para ns que no melhordos casos e sem nenhuma falsa modstia , podemos nos consideraraprendizes de marxistas, levar adiante uma crtica rigorosa, buscan-do a verdade, sobre as elaboraes dos grandes lderes da histriado marxismo. Em segundo lugar, uma tarefa dicil porque aindasobrevive em nossas ileiras uma ideia nefasta, antimarxista, que ten-de a canonizar esses grandes lderes e que, por isso, muitas vezes,se associam possveis crticas a Moreno (sem falar a Marx, Lenin ouTrotski) como uma heresia revisionista.

    Trotski, que sem dvida foi um dos maiores expoentes do marxis-mo, nunca canonizou Marx, Engels ou Lenin. Por isso, depois de ca-racterizar o Manifesto comunistacomo um folheto que demonstrauma genialidade maior que qualquer outro da literatura mundial5,

    explicou como o mesmo precisava de uma atualizao no s porcausa do tempo transcorrido desde sua elaborao, mas tambm pe-los erros que continha:

    Mas isso no implica que, depois de vinte anos de desenvolvimento sem prece-dentes das foras produtivas e vastas lutas sociais, o Manifestono necessite de

    5 TROTSKI, Leon, Noventa anos do Manifesto comunista, 30 de outubro de 1937.

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    correes ou adies. (...) O pensamento revolucionrio no tem nada em comumcom o culto aos dolos. Programas e prognsticos so examinados e corrigidos luz da experincia, que o critrio supremo da razo humana6. [grifo nosso]

    Em consonncia com esse raciocnio, Trotski desenvolveu uma

    crtica profunda e rigorosa aoManifesto.Assim, apontou, por exem-plo, uma ausncia importante: o Manifesto no contm nenhumareferncia luta pela independncia de pases coloniais e semicolo-niais7. Ao mesmo tempo, fez uma srie de crticas, entre elas ao erroem relao s camadas mdias da sociedade: o desenvolvimento docapitalismo acelerou ao extremo o crescimento de legies de tcni-cos, administradores, empregados comerciais, em resumo, a chama-da nova classe mdia. Portanto, as classes intermedirias, a cujo de-saparecimento se refere to categoricamente o Manifesto, incluem,

    mesmo num pas to altamente industrializado como a Alemanha,quase a metade da populao8.Mas na realidade, Trotski no foi o primeiro nem o nico que, rei-

    vindicando o Manifesto, o submeteu a uma dura crtica. Os primeirosa fazerem isso foram seus prprios autores, Marx e Engels, que v-rios anos depois de t-lo elaborado, ainda que continuassem reivin-dicando-o, indicavam suas limitaes: alguns pontos deveriam serretocados ou este programa envelheceu em alguns de seus pontos.A partir disso, analisando a experincia da Comuna de Paris, aponta-vam uma grande limitao:

    [...] A Comuna demonstrou, principalmente, que a classe operria no pode selimitar, simplesmente, a tomar posse da mquina do Estado (como est indicadono Manifesto) tal como est e utilizar-se dela para seus prprios ins [...]9.

    A elaborao programtica no marco do vendaval oportunistaDepois dos processos do leste europeu, no foi fcil (nem est

    sendo agora) encarar uma sria relexo programtica, porque elaaconteceu no mesmo momento em que se desatava uma ofensiva ide-olgica feroz dos porta-vozes do capitalismo para tentar demonstrarque o marxismo, com seu projeto socialista e comunista, teria mos-

    6 Ibid.7 Ibid.8 Ibid.9 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Prefcio edio alem do Manifesto comunista(1872) in: Obras escolhidas, vol. I, p. 99.

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    trado, na prtica, sua total bancarrota. A respeito disso, recordemosque intelectuais como o ilsofo e economista nipo-americano Fran-cis Fukuyama se transformaram em celebridades internacionais.

    Fukuyama, um dos idelogos do governo de Reagan, nos EstadosUnidos, com sua teoria do im da historia10, airmava, entre outras

    coisas, que, com o im da guerra fria, a democracia liberal ocidentalseria o ponto inal da evoluo sociocultural e a forma inal de gover-no humano.

    O conjunto da esquerda rechaou as ideias de Fukuyama, mascomo bem airmam Marx e Engels: As ideias dominantes em qual-quer poca no so mais que as ideias da classe dominante11. Assim,as ideias dos idelogos do capitalismo frente aos processos do lesteeuropeu se expandiram em nvel mundial como um rastilho de pl-vora e penetraram profundamente em organizaes e intelectuais deesquerda, inclusive naquelas organizaes que, como as trotskistas,tinham se mantido ieis ao programa marxista contra a degeneraoda social-democracia e do stalinismo.

    No entanto, ainda que nenhuma das organizaes e intelectuaisde esquerda tenham aderido formalmente tese de Fukuyama, naprtica, a maioria o fez no contedo. Dos processos do leste europeu,essas organizaes e esses intelectuais chegaram concluso de quea luta para que a classe operria tomasse o poder e expropriasse aburguesia era algo que j no estava colocado nem para o presen-te, nem para o futuro. Nem como uma possibilidade, nem como uma

    necessidade. Da mesma forma que os partidos revolucionrios noestavam construdos para cumprir essa tarefa. Dessa maneira, aindaque sem dizer, esses setores abraaram, com todas as suas foras, asideias centrais de Fukuyama, pois se o capitalismo no podia nem de-via ser expropriado, era ele que deveria continuar reinando. Assim, ocapitalismo no seria s o presente: seria tambm o futuro.

    Claro que as teses de Fukuyama, ao serem apropriadas pela es-querda, foram cobertas por um verniz mais progressista, mas nomenos capitalista. A classe operria no poderia nem deveria tomar

    o poder e expropriar a burguesia, mas o capitalismo deveria ser me-lhorado (reformado). Dessa forma, assim como as ideias de Fukuya-ma ganharam um peso enorme na intelectualidade de direita, umnovo reformismo ganhou tambm um peso enorme (majoritrio)entre organizaes, intelectuais e ativistas de esquerda.

    10 PERRY, Anderson, O im da historia, de Hegel a Fukuyama, Zahar, 1992.11 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunistain: Obras esco-lhidas, vol. I.

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    No marco dessas novas ideias, apareceram novos pensadorescomo John Holloway, que lanou um livro que teve grande reper-cusso: Como mudar o mundo sem tomar o poder. Surgiram tam-bm grandes eventos internacionais, como o caso do Frum SocialMundial que, com o lema Outro mundo possvel, reunia (e rene)

    milhares de ativistas para discutir como outra educao possvel,outra economia possvel, outra ONU possvel e at como ou-tras favelas so possveis, tudo sem que a classe operria tome o po-der para expropriar a burguesia.

    Tambm surgiram importantes organizaes, os denominadospartidos anticapitalistas, integrados por muitos marxistas e peloschamados reformistas honestos, que tambm se propem a mudaro capitalismo (reform-lo) sem expropri-lo.

    O Manifesto comunista: ponto de partida para atualizar o programaNormalmente, os grandes acontecimentos da luta de classes obri-

    gam os marxistas a atualizar o programa. Mas qual o ponto de parti-da dessa atualizao? Entre os que se reivindicam trotskistas, frente tarefa de atualizar o programa, normalmente pegamos como pontode partida o Programa de transio elaborado por Trotski em 1938.Foi o que fez Nahuel Moreno em 1980, quando elaborou justamentesuas Teses para a atualizao do Programa de transio.No entanto,agora estamos diante de um desaio diferente.

    Depois de ter acontecido um fato de dimenso da restaurao do

    capitalismo nos ex-Estados operrios, no podemos responder aosquestionamentos de tantos marxistas reairmando simplesmente, deforma religiosa, nossa f no futuro socialista e comunista da huma-nidade. O marxismo no uma religio, nosso programa no umabblia, e Fukuyama no um herege que merece morrer na fogueira.Torna-se necessrio analisar se o socialismo, como primeiro passoem direo a uma sociedade comunista, segue sendo ou no cientii-camente vivele, mais do que isso, se a nica coisa que pode salvara humanidade da barbrie. Sendo assim, o ponto de partida de nosso

    programa no pode ser outro que no seja o primeiro programa ela-borado pelo socialismo cientiico, o Manifesto comunista, escrito porMarx e Engels entre 1847 e 1848, que onde foram estabelecidas asbases de princpio para o surgimento de um movimento de massasconhecido como marxismo, porque so justamente essas bases prin-cipistas as que, a partir dos processos do leste europeu, esto sendoquestionadas.

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    O Manifesto comunistaparte de uma anlise central da sociedadee, a partir da, chega a uma srie de concluses e tarefas. Trata-sede precisar, em primeiro lugar, se essa anlise foi conirmada ou nopela histria.

    O Manifesto comunistaairma:

    Todas as sociedades anteriores, como vimos, repousavam no antagonismo entreclasses opressoras e oprimidas. Mas para poder oprimir uma classe, precisoassegurar a ela condies que permitam, pelo menos, arrastar a existncia deescravido [...]. O operrio moderno, ao contrrio, longe de se elevar com o pro-gresso da indstria, desce mais e mais abaixo das condies de vida da prpriaclasse [...].A sociedade j no pode viver sob sua dominao; o que equivale dizerque a existncia da burguesia , mais adiante, incompatvel com a da sociedade.[grifo nosso]

    E o que demonstrou a realidade destes quase 170 anos trans-corridos desde a redao do Manifesto comunista? A existncia daburguesia se demonstrou incompatvel com a sociedade, como air-ma o Manifesto,ou, ao contrrio, a burguesia, em todos esses anos,possibilitou o desenvolvimento econmico e cultural do conjunto dasociedade?

    Quando nossos mestres escreveram o Manifesto, na realidade tal com apontou Trotski12noventa anos depois , a burguesia erauma trava para o desenvolvimento das foras produtivas, mas era

    uma trava relativa. A sociedade, sob o capitalismo, seguia se desen-volvendo. Nesse marco, os operrios (os escravos modernos), atravsde suas lutas, diferentemente do que dizia o Manifesto, e por vriasdcadas mais, progrediram junto com o desenvolvimento da inds-tria. Conseguiram, por exemplo, com suas lutas, diminuir as horas detrabalho (que passaram de 14 ou 12 horas dirias para oito horas).Tambm conseguiram um nmero importante de conquistas econ-micas e democrticas.

    Mas chegou um momento em que essa trava relativa do capita-

    lismo ao desenvolvimento das foras produtivas se transformou emabsoluta. A Primeira Guerra Mundial entre as diferentes potnciasimperialistas foi a demonstrao mais clara dessa nova realidade. Ocapitalismo, em vez de viver, passou a sobreviver custa de uma des-truio em massas das foras produtivas que ele prprio tinha criadono passado. Dentro disso, destrua a mais importante delas: os seres

    12 Anlise desenvolvida por Leon Trotski em seu texto Noventa anos do Manifestocomunista, 1937.

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    humanos. Com a guerra de 1914, o capitalismo sobreviveu custa de10 milhes de mortos e 25 milhes de feridos e mutilados. Foi umaconirmao trgica de que a sociedade j no podia viver sob a do-minao da burguesia.

    Dessa forma, uma anlise relativamente equivocada do Manifesto

    comunistapara o ano de 1847, teve o mrito de se transformar numprognstico correto que, poucas dcadas depois, em 1914, se conir-maria.

    Quando terminou a Primeira Guerra Mundial, muitos porta-vo-zes do capitalismo disseram que ela tinha sido a primeira e a ltimaguerra. Longos anos de prosperidade e de paz eram esperados. Masa realidade desmentiu essas airmaes, mostrando que a PrimeiraGuerra Mundial tinha, na realidade, inaugurado, como disse Trotski,uma poca de guerras, revolues e fascismo. que o carter re-lativamente progressivo da burguesia tinha chegado ao seu im e, apartir dali, em essncia, veramos s sua cara mais reacionria oudiretamente contrarrevolucionria.

    As disputas interimperialistas por novos mercados pelas col-nias e semicolnias que originaram a Primeira Guerra Mundial de-ram origem, em 1939, Segunda Guerra Mundial, que deixou a pri-meira muito atrs no que se refere destruio de foras produtivas,como demonstra, em primeiro lugar, a quantidade de mortos (entre60 e 73 milhes de pessoas).

    Depois da Segunda Guerra, no houve uma nova guerra mundial.

    Porm no foi por falta de disputas interburguesas, mas pelo fato deque o poderio militar alcanado pelos Estados Unidos impossibilitouum novo confronto desse tipo. No entanto, conirmando a caracteri-zao do Manifesto, desenvolveram-se dezenas de guerras regionaisinterburguesas em que, por trs de todas elas, estavam as grandespotncias imperialistas.

    Marx disse no Manifestoque o capitalismo no consegue garantirpara o operrio moderno sua existncia de escravo e se refere, comisso, s condies de vida que se deterioram. Esses nmeros sobre as

    guerras indicam a parte mais cruel dessa anlise. Para uma grandeporcentagem de operrios, o capitalismo no s no consegue ga-rantir condies dignas de vida como tambm no consegue garan-tir sua prpria vida. Por um lado, os operrios (os escravos moder-nos), salvo raras excees, no pararam de lutar. Porm, diferente-mente do que ocorria no sculo 19, no conseguem, com essas lutas,melhorar substancialmente seu nvel de vida, a tal ponto que, paraconseguir questes muito elementares para a sobrevivncia, como

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    po, paz e terra, foram obrigados a fazer verdadeiras revolues paratentar tomar em suas mos a soluo de suas necessidades. Frentea essas tentativas s vezes vitoriosas, outras derrotadas aparecesempre a verdadeira cara da burguesia, levando adiante os crimesmais brbaros que a humanidade conheceu.

    Os operrios e camponeses russos, depois de tomarem o poder, ti-veram de pagar com suas prprias vidas por essa ousadia. Na guerracivil, morreram entre cinco e vinte milhes de pessoas. Mais recen-temente, para chegar ao poder, as massas vietnamitas tiveram de su-portar a morte de dois milhes. A esses nmeros, teramos de agregaras dezenas de golpes, invases ou represses contrarrevolucionriasque provocaram, em todo o sculo 20 e neste incio do sculo 21, de-zenas de milhes de mortos (guerras civis na China, trs milhes demortos; guerra da Coreia, trs milhes; guerra da independncia daArglia, um milho; invases do Iraque, um milho etc.)

    O Manifesto comunista passou na prova dos fatosO Manifesto comunista foi extremamente visionrio ao mostrar

    que o capitalismo, em seu desenvolvimento, deixaria de cumprir umpapel relativamente progressivo para se transformar num obstcu-lo para o desenvolvimento da sociedade. Por isso, ele estava desti-nado a ser substitudo por um novo sistema social no qual no sa produo seria social (como no capitalismo), mas tambm o seriaa apropriao dessa produo. Os trabalhos posteriores de Marx e

    Engels, em especial O capital, elaborado por Marx e concludo porEngels, fundamentaram cientiicamente essa tendncia inevitveldo sistema capitalista: em vez de desenvolver as foras produtivas,o capitalismo sobreviveria desenvolvendo as foras destrutivas. Osfatos, desde 1847 e, especialmente, desde 1914 at nossos dias, noizeram mais do que conirmar esse prognstico.

    Mas o Manifestono se limitou a analisar as tendncias do capita-lismo. Depois de precisar o que era o Estado (O governo do Estadomoderno no mais que uma junta que administra os negcios co-

    muns de toda a classe burguesa), airmava qual era a grande tarefaque estava colocada para superar o sistema capitalista e, assim, liber-tar o conjunto da humanidade:

    [...] derrota da dominao burguesa, conquista do poder poltico pelo proletariado.[...] o proletariado se valer de sua dominao poltica para arrancar, gradualmen-te, da burguesia todo o capital para centralizar todos os instrumentos de produo

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    nas mos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante epara aumentar o mais rapidamente possvel a soma das foras produtivas13.

    A anlise sobre as tendncias destrutivas do capitalismo surgiade um estudo cientico da realidade, mas, por outro lado, a possi-

    bilidade de que o proletariado tomasse o poder, que expropriasse aburguesia e que por esse meio iniciasse um desenvolvimento sem li-mites das foras produtivas era algo que estava no terreno da teoria edas hipteses, j que no havia fatos da realidade nos quais se apoiarpara justiicar tais ideias.

    S 24 anos depois da publicao do Manifesto, os operrios deParis mostraram, na prtica, que uma parte das hipteses do Mani-festoera vivel. Na clebre Comuna de Paris, eles tomaram o podere o mantiveram por dois meses at que a burguesia massacrou os

    plebeus. Era a demonstrao de que essa tarefa (que os operrios to-massem o poder), longe de ser uma iluso, era realizvel. No entanto,essa experincia deixou algumas perguntas. Os operrios poderiamconservar o poder contra a burguesia? E se conservassem o podere eliminassem a burguesia, a sociedade poderia se desenvolver semela? Mais ainda, os operrios, a partir do poder, poderiam desenvol-ver de uma forma como nunca visto antes as foras produtivas?

    Os operrios russos, a partir de 1917, mostraram que isso, longede ser uma bela utopia, era algo realizvel. O Manifesto comunista,ou seja, o socialismo, tinha triunfado e, como disse Trotski em 1936,[...] no nas pginas de O capital,mas na arena econmica que cor-responde a um sexto da supercie terrestre; no na linguagem dadialtica, mas na linguagem do ferro, do cimento e da eletricidade14.

    E depois agregou:

    Caso a URSS viesse a fracassar, fruto de diiculdades internas, golpes externose erros da direo (coisa que, esperamos ns, no acontea) restaria, como ga-rantia do futuro, o fato inabalvel de que somente graas revoluo proletria,um pas atrasado deu, em menos de duas dcadas, passos sem precedentes na

    historia15. [grifo nosso]

    Essa realidade se repetiu em quase todos os pases onde a bur-guesia foi expropriada, a tal ponto que em quase todos eles acabaram

    13 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunistain: Obras esco-lhidas, vol. I, p. 129.14 TROTSKI, Leon,A revoluo trada, Editora Sundermann, 2005, p. 45.15 Ibid.

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    com vrios lagelos do capitalismo: o desemprego, a fome, a falta desade pblica, a prostituio, a falta de moradias. Tambm acontece-ram avanos qualitativos no terreno da cultura e da educao.

    Do ponto de vista das perspectivas comunistas, tudo isso muitopouco em relao ao que se poderia conseguir, mas o importante a

    destacar, na hora de fazer um balano histrico, que essas poucasconquistas no foram conseguidas em praticamente nenhum pascapitalista. Sequer nos mais avanados. Essas conquistas so a com-provao de que o Manifesto comunista passou pela prova dos fa-tos, porque elas foram produto do que, em 1848, o Manifestopropscomo tarefa central: que os operrios tomem o poder e expropriema burguesia.

    O Manifesto comunista elaborado por Marx e Engels eenriquecido por Lenin e Trotski foi posto prova nosprocessos do leste europeu

    As conquistas alcanadas onde o capitalismo foi expropriado sodemasiado bvias para serem negadas. A prpria burguesia foi obri-gada a reconhec-las. Por exemplo, um informe do Banco Mundial de1996 dizia:

    O planejamento [a economia planiicada depois da expropriao da burguesia]deu resultados impressionantes:aumento da produo, industrializao, ensinobsico, sade, moradia e empregos para populaes inteiras16. [grifo nosso]

    No entanto, hoje em dia, a poltica central do Manifesto comu-nista que os operrios tomem o poder e expropriem a burguesia,que deu resultados impressionantes para populaes inteiras est amplamente questionada, no s como sempre esteve pelaburguesia e seus agentes, mas tambm por milhes de trabalhado-res e jovens que deram o melhor de suas vidas para construir ummundo sem exploradores nem explorados, porque essa experincia,aos olhos das amplas massas, fracassou com a restaurao do ca-

    pitalismo nos ex-Estados operrios e porque ela teve sua frente ostalinismo em suas diversas formas e, todas elas, em nome do socia-lismo, restauraram o capitalismo. Para faz-lo, utilizaram mtodosque s podem ser comparados aos do fascismo. A tal ponto que so-cialismo se transformou em sinnimo de ditadura contra os explo-rados e oprimidos.

    16 Banco Mundial, Do plano ao mercado, informe sobre o desenvolvimento mundial,Washington, 1996, p. 1.

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    justamente a partir do fracasso dessa experincia que surgemtodos os questionamentos, no s ao stalinismo e suas variantesmaosta e/ou castrista, mas tambm ao marxismo, ao leninismo e aotrotskismo. Por isso, nosso programa, que, como disse, deve partirnecessariamente do Manifesto comunista, obrigado a analisar em

    profundidade o que ocorreu nos ex-Estados operrios.Para isso, devemos voltar aos primeiros anos da Revoluo Russae aos debates que aconteceram a partir de 1924, em especial queleque se refere relao entre a Revoluo Russa e a revoluo mun-dial.

    Tanto para Marx quanto para Engels, assim como para todos seusseguidores, o socialismo e o comunismo s podiam ser concebidosem nvel internacional.

    Engels, pouco antes de escrever o Manifesto comunista com Marx,apresentou um folheto intitulado Princpios do comunismo,no quallhe perguntam: possvel essa revoluo em um s pas?. E Engelsresponde:

    No.A grande indstria, ao criar o mercado mundial, uniu to estreitamente to-dos os povos do globo terrestre, principalmente os povos civilizados, que cadaum depende do que ocorre na terra do outro. Consequentemente, a revoluocomunista no ser uma revoluo puramente nacional [...]. Ela se desenvolverem cada um desses pases mais rapidamente ou mais lentamente [...]. uma re-voluo universal e ter, por isso, um mbito universal17. [grifo nosso]

    E, novamente Engels, agora junto com Marx, no ano de 1850, es-creveu:

    [...] nossas tarefas consistem em fazer a revoluo permanenteat que seja des-cartada a dominao das classes mais ou menos possuidoras, at que o proleta-riado conquiste o poder do Estado, at que a associao dos proletrios se de-senvolva e no s num pas, mas em todos os pases dominantes do mundo, empropores tais que cesse a concorrncia entre os proletrios desses pases e at

    que pelo menos as foras produtivas decisivas estejam concentradas nas mosdo proletariado18. [grifo nosso]

    17 ENGELS, Friedrich, Princpios do comunismo,in: Obras escolhidas, Moscou, Edito-rial Progresso, vol. I, 1983, p. 93.18 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Mensagem do Comit Central liga dos Comunis-tas, em Obras Escolhidas, Moscou, Editorial Progresso, vol. I, maro de 1850, p. 183.

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    Mas, mais ainda, essa concepo internacionalista fez parte, inclu-sive, dos estatutos da I Internacional:

    [...] a emancipao da classe trabalhadora no um objetivo local nem nacional,mas sim um objetivo social que abarca todos os pases em que existe a sociedade

    moderna e cuja consequncia depende da cooperao prtica e terica dos pa-ses mais avanados19.[grifo nosso]

    Evidentemente, nem Marx nem Engels opinavam que a revoluosocialista triunfaria em todos os pases ao mesmo tempo (Ela se de-senvolver em cada um desses pases mais rpida ou mais lentamen-te). E mais, eram plenamente conscientes de que as vitrias dessasrevolues seriam, em primeiro lugar, em nvel nacional:

    Pela forma, ainda que no por seu contedo, a luta do proletariado contra a bur-guesia primeiramente uma luta nacional. natural que o proletariado de cadapas deva acabar, em primeiro lugar, com sua prpria burguesia20.

    A realidade mostrou que, tal como diziam nossos mestres, no marcode uma situao revolucionria em todo o continente europeu, a revo-luo se desenvolveu de forma desigual e acabou triunfando, nesse mo-mento, s num pas: na Rssia. Essa realidade fez com que aquilo queat aquele momento era um problema terico se colocasse de formaprtica: qual deveria ser a relao entre a triunfante Revoluo Rus-

    sa e a revoluo internacional. Esse era um tema decisivo, pois tantopara Marx quanto para Engels, ainda que a revoluo socialista pudes-se triunfar num pas, para chegar ao socialismo, ou seja, para chegar auma sociedade mais avanada que o capitalismo, era necessrio que arevoluo triunfasse, no mnimo, nos pases capitalistas mais desen-volvidos de sua poca: Inglaterra, Alemanha, Frana e Estados Unidos.

    A direo do partido bolchevique onde se destacavam as igurasde Lenin e Trotski , de acordo com a concepo de Marx e Engels,viu a importante Revoluo Russa s como um passoem direo ao

    triunfo da revoluo nos outros pases, especialmente nos mais de-senvolvidos.Uma das demonstraes mais evidentes de que essa era a con-

    cepo do partido bolchevique pode ser vista quando, nos primeiros

    19 MARX, Karl, Estatutos provisrios da Associao Internacional dos Trabalhadores,in:A Internacional, Mxico: Fundo de Cultura Econmica, p. 8.20 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunistain:Obras escolhi-das, Moscou, Editorial Progresso, vol. I, p. 121.

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    anos da revoluo, essa direo realizou os mximos esforos paraconstruir uma ferramenta decisiva para o triunfo da revoluo emnvel mundial: a III Internacional ou Internacional Comunista. No en-tanto, a partir da morte de Lenin, essa orientao foi sendo deixadade lado de tal forma que o internacionalismo dos primeiros anos foi

    sendo substitudo pelo nacionalismo com a justiicativa terica deque o que estava colocado era a construo do socialismo em um spas, o que levou, entre outras coisas, a que os congressos da III In-ternacional que eram anuais fossem se espaando no tempo, atque, em 1943, a III Internacional foi dissolvida.

    Na realidade, o socialismo em um s pas no era mais do queuma teoria justiicadora de um novo setor social, a burocracia, quese apoderou da direo do partido e que, para conservar seus privi-lgios, renunciou luta pela revoluo internacional para dar espa-o a uma poltica de coexistncia pacica com o imperialismo e decolaborao com as burguesias nacionais para manter o capitalismoatravs dos chamados governos de Frente Popular. Os motivos quelevaram Stalin a acabar com a III Internacional so muito ilustrativosda nova poltica da URSS. A internacional foi dissolvida para satisfa-zer a um pedido do primeiro-ministro ingls, Winston Churchill.

    Em torno a esse tema, houve no interior do partido bolcheviqueuma dura batalha terica e poltica: do lado da defesa da posio tra-dicional do marxismo se destacava a igura de Leon Trotski. E do ladoda nova teoria, a do socialismo em um s pas, estava a igura ascen-

    dente de Stalin.Essa batalha terminou com a vitria de Stalin, que viu suas po-

    sies se fortalecerem pelo cansao das massas russas (devido aossofrimentos durante a Primeira Guerra Mundial e com a guerra civil)e pela derrota das revolues alem e chinesa. Assim, Stalin utilizouessa relao de foras favorvel para perseguir os opositores quequeriam levar at o im a poltica de Marx, Engels e Lenin. Primeiroo fez atravs de calnias, manobras e expulses. Depois, medianteprises, deportaes, torturas, sequestros e assassinatos, o que aca-

    bou se tornando um verdadeiro genocdio de toda uma gerao derevolucionrios.Foi atravs dessa poltica de Stalin, de pretender conviver per-

    manentemente com o imperialismo em vez de lutar para derrot-lo,que as economias mais avanadas do capitalismo acabaram estran-gulando economicamente os ex-Estados operrios. Tal como airmouTrotski em seu momento:

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    A diviso mundial do trabalho, a subordinao da indstria sovitica tcnicaestrangeira, a dependncia das foras produtivas dos pases mais avanados daEuropa em relao s matrias primas asiticas etc. etc. tornam impossvel a edi-icao de uma sociedade socialista independente em qualquer pas do mundo21.[grifo nosso]

    Portanto, falsa a ideia de que a restaurao do capitalismo mos-trou o fracasso do marxismo. Na realidade, foi o contrrio: foi o dis-tanciamento da direo da URSS e dos outros Estados do marxismo oque levou restaurao.

    Nosso programa, ao fazer o balano da restaurao do capitalis-mo, no deve se limitar como normalmente se faz a denunciaros crimes de Stalin. Isso no basta. necessrio retomar o grandedebate de 1924 entre a teoria do socialismo em um s pas de Staline a da revoluo permanente de Trotski, porque, sem saldar essa dis-cusso, as novas experincias revolucionrias estaro condenadas aofracasso, pois a poltica do socialismo em um s pas realizada ouno com os mtodos de Stalin , tal como previu Trotski leva, inevita-velmente, restaurao do capitalismo.

    Quanto mais tempo a URSS estiver cercada de capitalismo, mais profunda ser adegenerao dos tecidos sociais. Um isolamento indeinido dever trazer, inevi-tavelmente, no o estabelecimento de um comunismo nacional, mas a restaura-o do capitalismo22.[grifo nosso]

    Lamentavelmente, a grande maioria das organizaes que se rei-vindicam marxistas no fez esse balano nem chegou a essas con-cluses. No melhor dos casos, s denunciaram os crimes de Stalin.Mostra disso que, no nvel dessas organizaes e, especialmente,de uma boa parte dos denominados marxistas acadmicos, bemcomum que se reivindique, de forma acrtica, intelectuais como ohngaro Georg Lukacs23, que, ainda que tivesse vrios enfrentamen-tos com o stalinismo, nas questes centrais se colocou incondicio-

    nalmente ao lado de Stalin, da teoria e da poltica do socialismo emum s pas, da coexistncia pacica com o imperialismo, das fren-

    21 TROTSKI, Leon,A revoluo permanente, Barcelona, Editora Fontamara, p. 219.22 Ibid, p. 281.23 Georg Luckcs (1885-1971): ministro (comissrio do povo) de Educao e Cul-tura durante os meses que durou a Comuna Hngara. Possui uma vasta obra sobreliteratura, esttica, ilosoia, poltica etc. Durante a revoluo hngara de 1956, foiministro da Cultura do governo de Nagy.

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    tes populares (foi o primeiro a defender essa poltica)24e tambmno terreno artstico se ops orientao marxista de Trotski (todaliberdade na arte) para defender a poltica stalinista do chamadorealismo socialista.

    O que pretendemos com nosso programa?Sempre nos referenciamos no programa da IV Internacional, o

    Programa de transio, seja para defend-lo, seja para atualiz-lo.No entanto, para sermos rigorosos, a IV Internacional nunca teve umverdadeiro programa. Trotski, falando do Programa de transio,foimuito claro a respeito:

    Destaco, ainda, que no se trata do programa da IV Internacional. O texto nocontm nem a parte terica, ou seja, a anlise da sociedade capitalista e sua fase

    imperialista, nem o programa da revoluo socialista propriamente dito. Trata-se de um programa de ao para o perodo intermedirio. Parece-me que nossassees necessitam desse documento. O verdadeiro programa da IV Internacionaldeveria ser elaborado por uma comisso especial criada pela conferncia.25

    No sabemos por que motivo a comisso que Trotski props paraelaborar o programa no foi eleita na conferncia e, por isso, hoje de-vemos nos perguntar: o que pretendemos de nosso programa? Ten-tar elaborar o verdadeiro programa da IV Internacional (que nuncaexistiu) ou nos conformarmos em tentar construir um programa com

    o critrio usado por Trotski para elaborar o Programa de transio?Existem dois possveis perigos, ambos extremos: darmo-nos um

    objetivo mais modesto, mas que acabe no respondendo s nossasnecessidades ou, ao contrrio, nos darmos um objetivo mais ambi-cioso (o verdadeiro programa da IV Internacional) e no sermos ca-pazes de atingi-lo. Esses dois perigos extremos nos levariam a umfracasso na tarefa que nos propusemos. Por isso, um tema impor-tante a deinir.

    Uma ltima observaoAs complicaes da situao atual fazem com que no seja su-

    iciente apresentar para o conjunto dos militantes da LIT e para a

    24 Na tese de Blum (1928), Luckcs defende a teoria dos governos de frente popu-lar. Perseguido pelo stalinismo durante terceiro perodo, sete anos depois, ele adotasua poltica.25 TROTSKI, Leon. Programa de transio para a revoluo socialista, Lisboa, Edito-ra Antdoto, 1978.

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    vanguarda operria, popular e juvenil um projeto de programa. Serianecessrio que, de forma paralela ao programa, elaborssemos umtexto mais extenso (ou talvez vrios textos) de comentrios sobre oprograma tal como fez Kautsky como o Programa de Erfurt queseriam muito teis para que o conjunto da militncia possa conhe-

    cer com mais profundidade os diferentes temas que vamos abordar epossa, assim, participar mais ativamente na elaborao do programa.De qualquer maneira, seguindo a tradio da III Internacional, nodeveramos comear com a elaborao de nosso programa redigindoum primeiro rascunho desse. Deveramos comear pelos 15 temasque localizamos, elaborando uma srie de teses programticas sobrecada um deles para, a partir disso, criar as condies para a apresen-tao de um texto programtico de conjunto.

    Por im, um esclarecimento: esse texto, assim como os anexos, noso um programa, nem um esboo de programa. Sequer uma estru-tura do mesmo. Ele s tem a pretenso de apontar, em vrios nveis,alguns critrios e objetivos que o programa teria de cumprir. umtexto para iniciar a discusso sobre o programa nas ileiras da LIT ecom a vanguarda operria, juvenil e popular.

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    Algumas das questes que oprograma teria de abordar e atualizar

    Martn Hernndez

    Airmar que devemos atualizar nosso programa no signiicaque devamos fazer uma radiograia ou uma ressonncia magnticada economia, da luta de classes ou da superestrutura para vermos,nos mnimos detalhes, o que mudou nas ltimas dcadas e em quegrau isso ocorreu. Tambm no pretendo que estudemos com umalupa cada um dos pargrafos e palavras do Manifesto comunista, doPrograma de transioou da atualizao que Moreno fez sobre esseltimo.

    No vamos elaborar um tratado, mas um programa que se trans-forme num guia para a ao para os partidos e os militantes revo-lucionrios. Nesse sentido, deveremos abordar a atualizao s da-

    queles temas que a compreenso da realidade atual (do ps-lesteeuropeu) assim nos exija. Os temas a tratar so muitos, mas entreeles destaco 12 que requerem especialmente uma atualizao a par-tir dos processos do leste europeu, da restaurao e da revoluo.

    1. As principais concluses dos processos do leste europeuEstas concluses devero atravessar, necessariamente, nosso pro-

    grama, j que os resultados desse processo geraram um debate sobretodos os temas que coloco a seguir e, inclusive, sobre um que de, al-

    guma forma, posso dizer que prvio, sobre se o socialismo, alm deser necessrio e possvel, tambm inevitvel26.

    2. Carter e estratgia de nosso programaNosso programa, certamente, vai ser muito diferente do progra-

    ma da maioria das organizaes de esquerda. No porque estejamos,

    26 Esse tema est desenvolvido em forma de polmica em dois textos desta revista.

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    nesse terreno, acrescentando algo novo ao programa marxista, masporque, pelo contrrio, respondendo ao debate atual, vamos partirdo Manifesto comunista, o que signiica que nosso programa deverter seu mesmo carter e estratgia: um programa da classe operria,para a classe operria e, por essa via, para toda a humanidade.

    3. Mtodo do programaO abandono pela maioria das organizaes que se reivindicam

    marxistas (de fato ou de direito) de qualquer estratgia em direo tomada do poder pela classe operria e expropriao da burguesiafez com que seus programas e sua prtica se dividissem em dois: pro-grama mnimo e democrtico, para o dia a dia, e programa socialistapara os dias de festa. Ns no defendemos dois programas: defen-demos um programa de transio para a revoluo socialista e, para

    isso, nos inspiramos, fundamentalmente, no Manifesto comunista, noprograma de Lenin para a Revoluo Russa (A catstrofe que nosameaa e como combat-la) e no Programa de transio elaboradopor Trotski em 1938. No marco deste mtodo para construir o pro-grama, que defendido por todos os que se reivindicam trotskistas, necessrio precisar, em especial, qual exatamente a relao entreas palavras de ordem e o programa.

    4. As caractersticas do que denominamos terceira etapa

    Os processos do leste europeu permitem tirar concluses no spara o futuro, mas tambm para precisar as elaboraes do passadoque, por sua vez, so importantes para o futuro. Nisso tem especialimportncia entender melhor qual foi o carter da etapa aberta aoinal da Segunda Guerra Mundial (a terceira etapa), pois, aparente-mente, nossa corrente cometeu alguns erros que necessrio que se-jam precisados e que sejam vistas suas consequncias. Entre elas, acaracterizao de que, nessa etapa, aconteceram vitrias duradouras.

    5. O imperialismo, a relao entre os Estados, a nova ordemmundial e as guerrasDesde que Lenin escreveu seu famoso folheto O imperialismo,

    fase superior do capitalismo, todo o marxismo se referenciou nessetexto. No entanto, hoje em dia esse texto, que foi um grande aporte aomarxismo, frequentemente questionado, inclusive por muitos queo reivindicam, mas que opinam, por exemplo, que a China uma novapotncia imperialista mundial.

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    Ainda que seja necessrio aprofundar um estudo a respeito, nadaindica que existam elementos da realidade atual que questionem oessencial desse trabalho de Lenin. Ao contrrio, as caractersticasdescritas por Lenin sobre o imperialismo, a partir da restaurao docapitalismo nos ex-Estados operrios, se aprofundaram. No entanto,

    necessrio fazer uma atualizao, pois desde 1919, quando foi es-crito esse texto, at a atualidade, houve muitas mudanas nos terre-nos econmico, poltico e militar. Muitas mudanas na relao entreos Estados, na diviso mundial do trabalho e, inclusive, no carterdas guerras.

    6. O capitalismo e sua criseAs principais potncias imperialistas entraram numa crise aguda

    que s pode ser comparada de 1929. Quando se restaurou o capi-

    talismo, os porta-vozes do imperialismo disseram que era a demons-trao da superioridade do capitalismo e de seu futuro. Inclusive osmais pessimistas viram que o capitalismo poderia sair da crise cr-nica com sua entrada nos ex-Estados operrios poucos anos depois,conirmando as anlises do Manifesto.

    Quais so as caractersticas atuais da crise? O que tm em comume quais so suas diferenas com as anteriores? Qual a relao dessacrise com a luta de classes? Quais so as perspectivas? Nosso progra-ma tem de responder a essas perguntas.

    7. O papel dos regimes democrtico-burguesesOs regimes democrtico-burgueses tambm precisam ser anali-

    sados em profundidade por nosso programa, pois necessrio atua-lizar nossas elaboraes em vrios aspectos. Em primeiro lugar, por-que os atuais regimes democrtico-burgueses tm diferenas impor-tantes com esses mesmos regimes nos tempos em que a burguesia ti-nha um papel relativamente progressivo e, tambm, com os de antese depois da Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, porque naselaboraes de Trotski da dcada de 1930 esses regimes eram vis-

    tos como algo que correspondia ao passado e, por isso, sucumbiriamfrente ao fascismo ou frente ditadura do proletariado. Em terceirolugar, porque, no mnimo nos ltimos trinta anos, esses regimes setransformaram numa importante arma do imperialismo, com a qualconseguiu importantes resultados em vrios terrenos: a restauraodo capitalismo nos ex-Estados operrios, o desvio de processos re-volucionrios e a destruio de organizaes operrias e revolucio-

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    nrias. Em funo disso, qual deve ser a atuao dos revolucionriosfrente aos regimes democrtico-burgueses? Como atuar nas eleiese no parlamento? Qual a relao entre a ao na luta de classes e aao parlamentar? Como preservar as organizaes revolucionriasda represso destes regimes?

    8. A questo nacionalA chamada questo nacional um tema que gerou amplos debates

    desde Marx. Na atualidade, no ps-leste europeu, a questo nacionalse recolocou no muita fora em grande parte dos pases do mundo e,com ela, os debates no interior das organizaes que se reivindicammarxistas se recrudesceram.

    Em seu momento, Lenin, com sua conhecida formulao sobre odireito autodeterminao nacional, superou em grande medida

    esse debate ao dar uma resposta principista e estratgica.No acho que nosso programa deva incorporar qualquer tipo decorreo ou ajuste s elaboraes de Lenin, mas acho sim que ne-cessrio resgatar essas elaboraes porque atualmente a maioriadas organizaes de esquerda encara a questo nacional com umaou outra das posies que Lenin enfrentou com sua formulao: asque capitulavam nao opressora e as que capitulavam aos setoresindependentistas da nao oprimida.

    9. Caractersticas e papel do proletariadoO fato de que em todo o ps-guerra o proletariado na maioriadas revolues no tenha ocupado o centro da cena fez com quemuitos setores comeassem a buscar novos sujeitos sociais da re-voluo. Na atualidade, dado que a maioria das organizaes de es-querda abandonou qualquer projeto de revoluo socialista, muitosdesses setores chegaram concluso de que o proletariado est des-tinado a ter um papel marginal na cidade ou que, diretamente, estem vias de extino.

    Mas ns, que seguimos convencidos no s de que o socialismo possvel, mas que a nica alternativa para impedir que o imperialis-mo faa retroceder toda a sociedade em direo barbrie, devemosnos perguntar e devemos responder em nosso programa, a partir deuma anlise da realidade: existe alguma outra classe ou setor socialque possa ocupar o papel revolucionrio que Marx prognosticou queteria o proletariado?

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    10. Situaes revolucionrias, crisesrevolucionrias e diferentes tipos de revolues

    Em ltima instncia, o lugar natural das organizaes revolu-cionrias nas prprias revolues. Mas o que uma revoluo?Quando podemos airmar que estamos frente a uma revoluo? Oque uma situao revolucionria? O que uma crise revolucio-nria? Qual o carter das revolues que estamos assistindo? Pa-recem perguntas simples. No entanto, essas questes provocarame provocam enormes discusses e polmicas entre os marxistas.Nosso programa tem de tentar dar resposta a todas essas pergun-tas, pois elas so bsicas para a poltica revolucionria. Mas almdisso, nosso programa tem de tirar as lies das grandes revolu-es (vitoriosas ou derrotadas): da Comuna de Paris, da granderevoluo de fevereiro na Rssia, que foi muito pouco estudada e

    que, no obstante, abriu caminho para a Revoluo de Outubro, daderrotada revoluo alem e das vitoriosas revolues chinesa ecubana.

    Trotski dizia: Sem o estudo da grande Revoluo Francesa, darevoluo de 1848 e da Comuna de Paris,jamais teramos feito a Re-voluo de Outubro27.

    As novas geraes de revolucionrios podero dirigir uma revo-luo como a de Outubro sem ter estudado as anteriores? impos-svel. Por isso, essas concluses no podem estar ausentes de nosso

    programa.

    11. A construo dos partidosrevolucionrios em nvel nacional e internacional

    O stalinismo jogou na lama o nome do socialismo e, mais do queisso, fez com que importantes setores do movimento de massas, in-clusive de sua vanguarda, depois de constatar o burocratismo e astraies dos partidos comunistas, comeassem a igualar todos ospartidos, inclusive os revolucionrios, com os PCs. Essa realidade

    cria novas diiculdades para a construo dos partidos nacionais eda Internacional.

    Nesse marco, o programa tem de responder a algumas perguntaschave: com a derrota do stalinismo, se abriu a poca do trotskismo?Qual o espao real, no ps-leste europeu, para construir a direorevolucionria? Quais so os caminhos para faz-lo?

    27 TROTSKI, Leon, Lies de Outubro, Buenos Aires. Editora El Yunque, p. 15.

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    12. As tarefas do proletariado, do partido e da Internacionaldepois da tomada do poder pela classe operria

    A maioria dos programas do passado, antes da Revoluo Russa,colocava em termos muito gerais as questes referentes etapa pos-terior tomada do poder pelo proletariado, em especial ao futuro

    socialista e comunista da sociedade. No podia ser de outra forma.Junto com isso, em termos tericos, se viu que, para chegar ao co-

    munismo, se deveria passar necessariamente por duas fases, as quaisacabaram se deinindo como socialista a primeira e comunista a se-gunda. Porm, junto com isso, se viu que no seria possvel chegar aosocialismo da noite para o dia e, menos ainda, se no acontecesse atomada do poder pela classe, no mnimo nos pases mais desenvol-vidos: Inglaterra, Alemanha, Frana e Estados Unidos. Isso levou aque se visse que, entre a tomada do poder pela classe operria e o

    socialismo, haveria uma etapa de transio que, tal como a deiniuTrotski, seria uma etapa de transio em direo ao socialismo, o queno exclua a possibilidade de que fosse uma transio no sentidocontrrio: que se voltasse ao capitalismo.

    A experincia conirmou os prognsticos nos dois sentidos: emvrios Estados triunfou a revoluo socialista, mas no se chegou aosocialismo. Surgiram Estados em transio ao socialismo que acaba-ram retornando ao capitalismo.

    Nesse sentido, nosso programa no pode falar genericamentede um futuro socialista e comunista. Deve precisar as condies eas tarefas para se chegar tomada do poder pela classe operria eseus aliados, mas no pode parar a. As experincias dos ex-Estadosoperrios no sculo 20 no nos permitem fazer isso. Deve abordar, apartir dessas experincias, as tarefas que devem ser encaradas paraevitar que se repita a experincia desses Estados dirigidos pelo sta-linismo.

    Os trotskistas (ou seja, o marxismo atual) devem ter clareza e tmde dar vanguarda essa clareza sobre qual o seu projeto para osfuturos Estados de transio em direo ao socialismo para que se-

    jam realmente isso. A experincia nefasta da direo stalinista nosd todas as condies, pela negativa, para poder tirar as conclusesfundamentais e prticas pela positiva.

    Como digo no ttulo deste texto, s enuncio algumas das ques-tes que o programa teria de abordar e atualizar. Aponto essas 12porque me parecem as mais importantes, ainda que certamente vosurgir outros temas a partir do debate com o mesmo ou, inclusive,

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    com maior destaque que os j apresentados. Entre eles, como exem-plo, podemos destacar o papel das tarefas democrticas e sua relaocom as organizaes anticapitalistas; a atualidade ou no das tticastradicionais de atuao no movimento de massas (unidade de ao,frente nica operria, frentes eleitorais etc.); o carter dos sindicatos

    atuais e do trabalho dos revolucionrios neles; as questes ambien-tais; a atuao dos revolucionrios entre as mulheres, em especialas trabalhadoras; a questo militar; as principais caractersticas dosgovernos operrios ou que tm participao de organizaes oper-rias; o governo operrio e campons; o papel da juventude estudantile operria e o trabalho revolucionrio entre ela.

    Sobre o tamanho do programaA elaborao de qualquer programa tem uma diiculdade extra

    que no pode ser esquecida, que a questo do tamanho.Um programa como o Manifesto comunista ou o Programa detransio signiica uma determinada compreenso do mundo comtudo o que isso implica. Isso pode criar a ideia de que um programainternacional tem de ser enorme. Mas isso no assim. Os programasrevolucionrios sempre foram pequenos.

    O Manifesto comunista, mesmo resumindo uma nova concepodo mundo, no mais do que um folheto de 30 pginas. As famosasTeses de abril de Lenin tinham s cinco pginas e A catstrofe quenos ameaa e como combat-la tinha 38.

    O interessante ver, por exemplo, que o famoso Programa de Go-thada social-democracia alem, que era um programa de uniicaoe provocou tantas polmicas, tinha s trs paginas.

    Em relao a essa questo do tamanho do programa, interessan-te ver a preocupao que nossos mestres tinham. Engels, ainda queno essencial tenha reivindicado o Programa de Erfurt, que s tinhacinco paginas, o criticou por sua extenso:

    [...] quiseram fazer um programa e, ao mesmo tempo, os comentrios a esse pro-

    grama. Parece que existia o temor de no ser suicientemente claro ao selecionarfrmulas breves e conclusivas. Por isso, agregaram comentrios que prolongama prpria exposio. Para mim, o programa deveria ser to breve e preciso quan-to possvel. Importaria pouco se nele se encontrasse, por acaso, um termo estra-nho ou uma frase que resulte dicil, primeira vista, de extrair todo seu conte-do. Nesse caso, as leituras pblicas nas reunies, a explicao na imprensa seronecessrias28.

    28 ENGELS, Friedrich, Critica ao projeto de programa social-democrata de Erfurt de1891.

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    Como se pode ver, Engels diferenciava claramente o programa doscomentrios sobre ele. Com esse critrio, Kautsky elaborou o Progra-ma de Erfurte, junto com isso, escreveu um trabalho de 268 pginasem que comentava o programa de cinco pginas. Com o mesmo cri-trio, Lenin escreveu um texto de 27 pginas como complemento das

    Teses de abril.Com que critrio trabalhar? A nova realidade mundial que seabriu com os processos do Leste, por ser muito complicada, exigeanlise, caracterizao e poltica muito precisas. Por isso, seria re-comendvel seguir o conselho de Engels: diferenciar claramente oprograma dos comentrios sobre o mesmo, o que no signiica queo programa deva ter entre trs e cinco pginas. Teria de ser um pro-grama equivalente em seu tamanho aoManifesto comunista ou aoPrograma de transio, que estabelea como a realidade do ps-les-te europeu, que aponte as tarefas centrais que se desprendem dessacompreenso, com um breve comentrio de cada uma delas (comofaz o Programa de transio). Por outro lado, necessrio precisarque nosso programa, mesmo sendo de um tamanho relativamentepequeno, teria de ter certa extenso porque depois das experinciasfracassadas por responsabilidade do stalinismo nosso programano pode culminar na tomada do poder pela classe operria. Tem deir mais adiante. Tem de colocar que tipo de Estado, regime e governoos trotskistas defendem para que as novas ditaduras do proletariadono terminem em novos fracassos.

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    Algumas consideraessobre o partido e o programa

    Paulo Aguena

    Palavras iniciaisNa ltima reunio do CEI, realizada em novembro de 2014, dis-

    cutiu-se sobre a atualizao programtica tomando por base o textoSobre o nosso programa, apresentado por Martn Hernndez. Comocontribuio ao debate, na ocasio, escrevi Algumas notas sobre otexto Sobre nosso programa. O artigo que apresenta Hernndezneste nmero da revista Marxismo Vivo uma espcie de verso i-nal do texto apresentado no CEI incorporou boa parte de minhaspreocupaes. No entanto, h um aspecto da discusso que no mefoi possvel apresentar por escrito reunio, de forma que expusapenas oralmente como parte de minha interveno.

    O objetivo era aprofundar e precisar a deinio de programa.Pareceu-me importante faz-lo, antes de tudo, porque se tratava doprprio objeto em discusso: ter clareza sobre o que estvamos dis-cutindo precedia todo o debate que se desenvolveria. No por acaso,corretamente, o prprio texto apresentado por Hernndez aborda,de passagem, esse tema logo em seu incio.

    Foi considerando a importncia desse aspecto da discusso queme propus a escrever um breve texto complementando o que eu ha-via apresentado. Ele seria posteriormente incorporado verso inaldo texto apresentado por Hernndez. No entanto, ao inal, achou-se

    por bem que eu o apresentasse parte para que fosse publicado narevista Marxismo Vivo. cumprindo com esse compromisso queapresento essa breve nota.

    Classes, partidos e programaPenso que necessrio comearmos por recuperar a deinio

    sobre a relao entre os partidos e os programas em geral. Nesse

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    sentido, creio ser til partir da deinio que Bukharin29e Preobra-zhenski30apresentam no texto Nosso programa, escrito em 1919,apresentado como introduo ao ABC do comunismo31:

    Todo partido se prope conseguir determinados ins: o partido dos latifundi-

    rios ou capitalistas do mesmo modo que um partido de operrios e camponeses., ento, necessrio que cada partido tenha objetivos precisos porque do contr-rio, perde o carter de partido.

    E explicam:

    Se se trata de um partido que representa os interesses dos latifundirios, se pro-por a defesa dos latifundirios: buscando os meios de manter a propriedade daterra, de submeter os camponeses, de vender o gro a preos mais altos poss-

    veis, de elevar a renda e de procurar operrios agrcolas pagos com salrios n-imos. Igualmente, um partido de capitalistas, de industriais, ter seus objetivosprprios: obter mo de obra barata, esmagar todos os protestos dos operriosindustriais, buscar novos mercados em que possam vender as mercadorias aprees elevados, obter grandes lucros; para isso, aumentar as horas de traba-lho e, sobretudo, tratar de criar uma situao que tire dos trabalhadores todapossibilidade de aspirar a uma nova ordem social; os operrios devem viver con-vencidos de que sempre houve patres e que continuaram existindo enquantoexista o homem. Esses so os objetivos dos industriais.No resta dvida de que,naturalmente, os operrios e os camponeses tm objetivos bem distintos, porserem distintos seus interesses. [grifo nosso]

    29 Nikolai Bukharin (1888-1938): membro do partido bolchevique desde 1905.Terico, economista e dirigente do partido. Depois da morte de Lenin, em 1924,aliou-se a Stalin contra a Oposio de Esquerda liderada por Trotski. Foi sucessorde Zinoviev na presidncia da Internacional Comunista. Junto com Rikov e Tomski,formaram, em 1929, a Oposio de Direita, que terminou sendo expulsa do partido.Depois de capitular a Stalin, foi permitido seu regresso ao partido. Em 1938, foi exe-cutado nos Processos de Moscou. (Nota da edio brasileira)30 Evgueni Preobrazhenski (1886-1937): dirigente bolchevique desde 1903. Ocu-pou vrios postos de importncia no partido e no Estado sovitico. Foi membro daOposio de Esquerda junto com Trotski desde 1924. Em 1928, rompeu com ela

    para ser um dos impulsionadores da industrializao forada, um giro da polticaeconmica de Stalin. Foi preso em 1933 e, em 1937, foi fuzilado durante os Proces-sos de Moscou. (Nota da edio brasileira)31 Publicado em 1920, oABC do Comunismobuscou popularizar as ideias fundamen-tais do socialismo cientico e dos pressupostos tericos do programa aprovado noVIII Congresso do Partido Comunista da Rssia (Bolchevique), quando, ento, se atu-alizou o antigo programa do POSDR, aprovado no II Congresso, em 1903. O trabalhoteve grande repercusso e se converteu numa espcie de manual de educao polticapara os militantes comunistas, inclusive para fora das fronteiras da URSS. (P. A.)

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    Assim, mais frente, conclui:

    O conjunto dos objetivos a que se prope um partido na defesa dos in-teresses da prpria classe forma o programa desse partido. As aspiraesde uma classe esto formuladas no programa. O programa do partido comunista

    contm as aspiraes dos operrios e dos camponeses pobres. O programa a coisa mais importante para todo partido. Sempre se pode saber pelo programade qualquer partido os interesses que representa. [grifo nosso]

    Esclarecem, no entanto, que nem todo indivduo que compemuma classe ou setor dela faz parte de um partido. E explicam por qu:

    [...] nem todos os proprietrios se ocupam assiduamente de seus interesses.Muitos vivem na moleza e na farra sem sequer se incomodar em revisar as con-

    tas que o administrador lhe apresenta. Porm, tambm h muitos operrios ecamponeses cheios de despreocupao e apatia [...]. Esse tipo de pessoa no cui-da de nada e no compreende sequer seus prprios interesses. Mas aqueles quese preocupam em faz-los valer se organizam num partido.

    E concluem:

    Ao partido no pertence a totalidade da classe, mas somente a frao mais enr-gica e melhor, que a que guia todo o resto. [...] Todo partido compreende a partemais consciente daquela classe cujos interesses representa.

    Partido revolucionrio e programaTrotski, numa de suas discusses prvias elaborao do Progra-

    ma de transio com dirigentes da Oposio de Esquerda Internacio-nal, trata no da relao entre partidos, classes e programa em geral,mas especiicamente entre o programa e o partido revolucionrio.Numa das conversas, publicada em junho de 1938 sob o ttulo Com-pletar o programa e coloc-lo em prtica, ele aborda a questo daseguinte maneira:

    Trotski: a importncia do programa a importncia do partido. O partido avanguarda da classe. O partido se forma pela seleo entre os elementos maisconscientes, mais avanados, mais iis [...].

    Mais frente, complementa:

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    Agora, o que o partido? Em que consiste sua coeso? Essa coeso uma com-preenso comum dos acontecimentos, das tarefas; e essa compreenso comum o programa. Assim como os operrios modernos, muito mais que os brbaros,no podem trabalhar sem ferramentas, tambm no partido o programa uminstrumento.

    Programa e conscincia da necessidadeNesse marco, Trotski ressalta que o programa no o escrito de

    um s homem, mas, ao contrrio, a sntese do trabalho coletivorealizado at hoje. Ou seja, o programa tem uma dimenso coletivae histrica. Ele produto de um acmulo da experincia coletiva quese extrai no decorrer da luta de classes.

    Por sua vez, segundo Trotski, essa sntese absolutamente ne-cessria para dar aos camaradas uma ideia da situao, uma com-

    preenso comum. Sob esse aspecto, ele lana uma crtica viso dosanarquistas e intelectuais pequeno-burgueses que temem aceitarque se d a um partido ideias comuns, uma atitude comum. Pelocontrario, desejam programas morais. Reiterando que o programa fruto da experincia coletiva, ele agrega que no se impe a nin-gum, porque quem se une ao partido o faz voluntariamente.

    Retoma a deinio de que, para o marxismo, a liberdade est as-sociada conscincia da necessidade: No somos livres. No temosnenhuma vontade livre no sentido da ilosoia metasica.

    Explica que:

    O programa a expresso da necessidade que aprendemos a compreender, e,posto que a necessidade a mesma para todos os membros da classe, podemosalcanar uma compreenso das tarefas, e a compreenso dessa necessidade oprograma.

    Programa e disciplina partidriaExatamente por ser a conscincia da necessidade, existe uma re-

    lao entre programa e disciplina partidria.Sabemos que a disciplina partidria , antes de tudo, uma impo-sio da luta de classes. Uma rgida disciplina necessria se quiser-mos enfrentar inimigos poderosos e conscientes de seus interesses.Portanto, a disciplina advm, em primeiro lugar, de um fator externo.

    No entanto, Trotski alerta que essa rgida disciplina tambm deveestar apoiada na compreenso comum, ou seja, no programa: Se adisciplina se impe sem essa compreenso, opresso. Se provm

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    da compreenso, uma expresso da personalidade. Assim, ao invsde ser um peso, a disciplina passa a ser a expresso de minha livreindividualidade.

    Ao inal, conclui que:

    No h oposio entre a vontade individual e o partido porque se entra nele li-vremente. O programa se apoia sobre a mesma base e pode estar fundamentadosobre uma poltica e bases morais claras s se o compreendemos muito bem.

    ConclusoComo vemos, o programa vital para a existncia de um parti-

    do, em geral, e, em particular, para o partido revolucionrio. A faltade clareza programtica, ou seja, de uma compreenso comum dosacontecimentos e das tarefas, tem enormes consequncias e afetatoda a vida partidria. Entender isso nos d uma dimenso mais exa-ta no s da importncia, mas tambm da urgncia que tem a tarefaa que estamos nos propondo: a de atualizar o Programa de transio.

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    Sobre a inevitvelvitria do socialismoMartn Hernndez

    Para elaborar nosso programa, devemos partir do Manifesto co-munista, mas de um Manifesto comunista que foi atualizado porMarx, por Engels, por Trotski32e que deve continuar sendo atuali-zado pelas novas geraes de revolucionrios nos dois sentidos queapontei no texto publicado nesta revista (Sobre nosso programa).

    Do Manifesto comunista, possvel dizer o mesmo que Trotskidisse h 77 anos:

    Esse folheto, que demonstra uma genialidade maior que qualquer outro na li-teratura mundial, nos espanta ainda hoje por sua atualidade. Suas partes maisimportantes parecem ter sido escritas ontem33.

    Mas o Manifesto, com o distanciamento crtico que o tempo nospossibilita, como no podia deixar de ser e como dizia Trotski, exigeque sigamos fazendo correes e acrscimos.

    A esse respeito, preciso observar que a enorme confuso ideol-gica provocada pela restaurao do capitalismo nos ex-Estados ope-rrios e pela nefasta experincia com o stalinismo tambm tem sidoalimentada por uma deinio de Marx e Engels, exposta no Manifes-to,que considero equivocada. Reiro-me tese sobre a destruio ine-vitveldo capitalismo e a vitria tambm inevitvel,do socialismo.

    O Manifesto comunistadiz: a burguesia produz, sobretudo, seusprprios coveiros. Seu colapso e a vitria do proletariado so igual-mente inevitveis.

    32 Trotski escreveu, em 1937, um texto intitulado Noventa anos do Manifesto co-munista, no qual, depois de reivindicar o Manifesto, fazia uma srie de acrscimose crticas.33 TROTSKI, Leon, Noventa anos do Manifesto comunista in: Escritos, Bogot, Edi-tora Pluma, Tomo IX, vol. I, 30 de outubro de 1937.

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    Airmaes desse tipo aparecem frequentemente nas obras dosautores do Manifesto, como quando Marx airma: (...) o resto deminha vida ser dedicado, assim como meus esforos passados, aotriunfo das ideias sociais, que conduziro, cedo ou tarde, vitria doproletariado no mundo34.

    Essas airmaes, longe de serem simples frases soltas de algu-ma agitao poltica, eram toda uma concepo, a tal ponto que,quando Marx se refere ao que considera praticamente seu nicogrande aporte (a ideia da ditadura do proletariado), airma que(...) a luta de classes conduz, necessariamente, ditadura do pro-letariado35.

    Essa concepo sobre a inevitvel destruio do capitalismo e atambm inevitvel vitria do socialismo permeou o marxismo pormais de cem anos.

    Rosa Luxemburgo: Socialismo ou barbrieA tese de Marx e Engels sobre a vitria inevitvel do socialismo

    foi questionada por Rosa Luxemburgo quando, em 1915, ela airmouque o socialismo no era inevitvel. Que, pelo contrrio, o inevitvelera a barbrie se o socialismo no triunfasse. Ou seja, para Rosa Lu-xemburgo, o socialismo era apenas uma das duas possveis alterna-tivas histricas.36

    Pode parecer estranho que este apontamento tenha sido feitopor Rosa Luxemburgo, porque era justamente ela quem tinha uma

    viso mais catastrica da economia capitalista. Porm no poracaso que tenha sido ela, j que foi a prpria Rosa quem iniciou aluta contra o reformismo da direo do SPD alemo que era, ataquele momento, a grande referncia para todas as organizaesda II Internacional.

    Foi justamente na luta contra o reformismo e em meio Primei-ra Guerra Mundial (da qual os reformistas eram cmplices) queRosa chegou concluso de que o socialismo no era inevitvel. que a direo do partido alemo usava a tese de Marx e Engels para

    justiicar sua orientao reformista oposta ao marxismo.

    34 MARX, Karl, Discurso em uma reunio em La Haya in: Obras escolhidas, Moscou,Editorial Progresso, vol. II, p. 313.35 Carta de Marx a Weydemeyer, 5 de maro de 1852.36 Essa formulao foi feita por Rosa Luxemburgo num folheto intitulado A criseda social-democracia, que escreveu em 1915, quando estava no crcere, e que foiconhecido com o nome de Junios (que era o pseudnimo que Rosa adotou naquelemomento).

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    Em 1909, em seu livro O caminho para o poder, Karl Kautsky37,apoiando-se na tese de Marx e Engels, refere-se revoluo prolet-ria como irresistvel e inevitvel. Da conclui que, como a vitriado socialismo inevitvel, o partido socialista revolucionrio no um partido que faz revolues [...]. Portanto, jamais pensamos em

    provocar ou preparar uma revoluo. Para Kautsky, como para todosos reformistas, o socialismo viria, inevitavelmente,de maneira evolu-tiva, por meio de reformas do Estado capitalista.

    interessante notar que a ideia de Marx e Engels era to forteque Rosa iniciou sua luta contra o revisionismo defendendo a mesmatese que eles. Assim, em seu livro Reforma ou revoluo,polemizan-do com Bernstein38, fala da runa inevitvel da economia capitalistae de seu colapso iminente.

    O mesmo faz Rosa em sua polmica contra Kautsky. Responde-lhe, porm, uma vez mais, defendendo a mesma concepo. Porisso, diz que a misso do partido, dado que o socialismo seria ine-vitvel, era apenas a de abreviar essa evoluo [...] e acelerar seuavano.

    Apenas em seu folheto Junios, depois do incio da Primeira Guer-ra Mundial, Rosa rompe com a concepo sobre a vitria inevitveldo socialismo. Ela aponta:

    Assim nos encontramos hoje, tal como o profetizou Engels h uma gerao, antea terrvel opo: ou triunfa o imperialismoe provoca a destruio de toda cul-

    tura, e, como na Roma Antiga, o despovoamento, desolao, degenerao, umimenso cemitrio; ou triunfa o socialismo,ou seja, a luta consciente do proleta-riado internacional contra o imperialismo, seus mtodos, suas guerras. [...]

    Esse o dilema da histria do mundo, sua alternativa de ferro, sua balana tre-mulando no ponto de equilbrio, aguardando a deciso do proletariado. Dela de-pende o futuro da cultura e da humanidade. [...]

    O socialismo no cair como man do cu. S se conquistar numa grande cadeiade poderosas lutas nas quais o proletariado, dirigido pela social-democracia,

    37 Karl Kautsky (1854-1938): principal autoridade da II Internacional, foi um dosfundadores da social-democracia e seu principal terico. Sobre o abandono por par-te de Kautsky do marxismo, ver O renegado Kautsky, de V. I. Lenin. (Nota da ediobrasileira)38 Eduard Bernstein (1850-1932): membro do Partido Social-Democrata da Alema-nha (SPD) e o primeiro a revisar a teoria marxista. Foi um dos principais tericos dasocial-democracia e do reformismo, negando a revoluo socialista. (Nota da ediobrasileira)

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    aprender a manejar o leme da sociedade para converter-se de vtima impoten-te da histria em seu guia consciente [...]. Os homens no fazem arbitrariamentesua histria, mas so eles os nicos que a fazem39.

    Muitas vezes se argumentou que, na realidade, a ideia de que

    haveria duas alternativas, socialismo ou barbrie, no foi de RosaLuxemburgo, mas de Engels, dando-se a entender, dessa maneira,que ele teria corrigido a tese exposta no Manifesto comunista. Masisso no assim. Essa confuso foi criada porque a prpria Rosa,como vimos na citao anterior, identiica Engels como o autor des-sa ideia. No entanto, Engels nunca disse algo parecido a socialismoou barbrie.

    Vrios estudiosos do marxismo procuraram essa frase e no aencontraram em nenhum dos trabalhos de Engels. Alguns explicam

    essa atribuio errnea de Rosa ao fato de que ela estava no crcerequando escreveu seu folheto e, portanto, com pouco acesso litera-tura marxista. Outros opinam que Rosa possivelmente citou Engelspara dar mais autoridade a seu texto.

    Por outro lado, esto os que acreditam que ela poderia ter seapoiado em algumas frases de Engels (e Marx) do Manifesto comu-nista ou do Anti-Dhring40.Mas a realidade que isso exigiria umesforo muito grande para concluir, por essas frases, que Engels nodefendia mais a ideia de que o socialismo era inevitvel.

    No entanto, houve um dirigente marxista, antes de Rosa, queapresentou essa ideia. Foi este dirigente que, com o passar do tempo,se converteria em um grande lder do reformismo: Kautsky, que, emseus Comentrios sobre o programa de Erfurt, apontou:

    Se de fato a comunidade socialista fosse algo impossvel, ento a humanidadeseria incapaz de um maior desenvolvimento econmico. Nesse momento,a so-ciedade moderna viria abaixo, como fez o Imprio Romanoh quase dois milanos, e, inalmente cairia na barbrie [...]. Tal como esto as coisas hoje em dia, acivilizao capitalista no pode continuar; devemos avanar rumo ao socialismo

    ou cair de novo na barbrie41.

    39 LUXEMBURGO, Rosa, Junios - a crise da social-democracia, in:Obras escolhidas.Bogot, Editora Pluma, tomo II, p. 65.40 Publicado em 1877, o texto de Engels defende o marxismo contra as ideias doilsofo Eugen Duhring, que havia criado uma teoria de socialismo alternativa con-trria ao marxismo. (Nota da edio brasileira)41 KAUTSKY, Karl, O programa de Erfurt: uma discusso dos fundamentos, 1892.

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    Dessa frase, Kautsky no tirou nenhuma concluso revolucion-ria; ao contrrio de Rosa, que valorizou a ao do proletariado, dopartido e da luta contra o reformismo para inclinar a balana a favordo socialismo. Por isso, de contedo, devemos considerar Rosa Lu-xemburgo a autora desta importante contribuio.

    Diferentes posies de nossos mestresSobre a tese de Marx e Engels, ainda que houvesse diferentes po-

    sies entre nossos mestres, aparentemente, nunca se desenvolveuum verdadeiro debate entre eles.

    Por exemplo, em 1916 Lenin escreveu um texto de coment-rios sobre o folheto de Rosa Luxemburgo (Junios), no qual dizque se trata de uma estupenda obra marxista e, nesse marco, lhefaz uma srie de crticas, mas no faz nenhuma referncia ao que

    era (ainda que Rosa no o tenha dito) um questionamento citadatese de Marx e Engels. Disso poderia se interpretar que Lenin com-partilhava da anlise de Rosa Luxemburgo. Mas no assim. Nos porque Lenin, pouco tempo antes de Rosa escrever seu folheto,publicou uma biograia sobre Marx, na qual defendia a posio domesmo, mas porque at o inal de sua vida defenderia, algumasvezes, a ideia de que o socialismo e o comunismo triunfariamine-vitavelmente.

    Nessa biograia airma:

    Pelo exposto, se v como Marx chega concluso de que inevitvel a trans-formao da sociedade capitalista em socialista, dependendo nica e exclusiva-mente da lei econmica do movimento da sociedade moderna. A socializaodo trabalho, que avana com rapidez crescente em milhares de formas e que semanifestou com especial evidncia durante o meio sculo transcorrido desde amorte de Marx no crescimento da grande produo, nos cartis, nos sindicatose nos trustes capitalistas, assim como no gigantesco crescimento do volume edo poder do capital inanceiro, a base material mais importante do adventoinevitvel do socialismo42.

    E depois desse folheto, apresenta ideias como a seguinte:

    A base econmica desta violncia revolucionria, a garantia de sua eiccia e deseu sucesso, reside no fato de que o proletariado representa e cria um tipo maiselevado de organizao social do trabalho em comparao com o capitalismo.

    42 LENIN, Vladimir, Karl Marx: breve esboo biogrico com uma exposio domarxismo in: Obras escolhidas, Moscou, Editorial Progresso, vol. I, p. 21.

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    Isso o essencial. Esta a fonte da fora e a garantia de que o triunfo final docomunismo inevitvel43.

    Por sua vez, Trotski, como Lenin, sempre defendeu a tese de Marxe Engels e o fez, inclusive, de forma polmica. Porm no citou seus

    adversrios. Mas o fez a partir de outro ngulo e com novos argu-mentos. Assim, em 1939, escreveu:

    As especulaes de certos intelectuais,segundo os quais, em detrimento da teo-ria de Marx, o socialismo no inevitvel, mas meramente possvel, esto des-providas de todo contedo. Evidentemente, Marx no quis dizer que o socialis-mo se realizaria sem a interveno da vontade e da ao do homem: semelhanteideia simplesmente um absurdo [...]. As foras produtivas necessitam de umnovo organizador e de um novo mestre e, dado que a existncia determina a

    conscincia, Marx no tinha dvida de que a classe trabalhadora, custa de errose de derrotas, chegaria a compreender a verdadeira situao e, cedo ou tarde,tiraria as necessrias concluses prticas44.

    Depois da morte de Trotski, a maioria dos marxistas continuoudefendendo suas mesmas ideias sobre a inevitvel vitria do socia-lismo. Por exemplo, o argentino Milcades Pea45, com o mesmo tipode raciocnio que Trotski, mas com outro enfoque, airmou numa pa-lestra realizada em 1958:

    O fatalismo mecanicista que pressupe que o socialismo inevitvel,inescap-vel e independente de o homem o querer ou no traz, sem dvida, uma grandepaz de esprito, fortalece a f dos crentes; quase uma religio. Mas no temnada a ver com o marxismo.46

    Evidentemente, Trotski tinha total razo quando airmava queMarx no quis dizer que o socialismo se realizaria sem a intervenoda vontade e da ao do homem: semelhante ideia simplesmente

    43 LENIN, Vladimir, Uma grande iniciativa in: Obras escolhidas, Moscou, Editorial

    Progresso, vol. III, p. 217.44 TROTSKI, Leon, A inevitabilidade do socialismo in: O marxismo de nossa poca,1939.45 Milcades Pea (1933-1965): de nacionalidade argentina, militou durante vriosanos na Palabra Obrera, organizao dirigida por Nahuel Moreno. Seus principaistrabal