na escuridão - nick lake...
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Títulooriginal:InDarkness
Copyright©2013byNickLake
1ªedição—Outubrode2013
GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,
queentrouemvigornoBrasilem2009
EditorePublisherLuizFernandoEmediato
DiretoraEditorial
FernandaEmediato
ProdutoraEditorialeGráficaPriscilaHernandez
AssistenteEditorial
CarlaAnayaDelMatto
Capa,ProjetoGráficoeDiagramaçãoAlanMaia
Imagemdacapa©Smandy|Dreamstime.com
RevisãoRinaldoMilesi
MarciaBenjamim
ConversãoparaEPUBObliqPress
DADOSINTERNACIONAISDECATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO
(CIP)(CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)
Lake,NickNaescuridão/NickLake;traduçãoPetêRissatti.
--SãoPaulo:GeraçãoEditorial,2013.Títulooriginal:InDarkness.ISBN978-85-8130-187-71.FicçãoinglesaI.Título.
13-11420CDD:823
Índicesparacatálogosistemático1.Ficção:Literaturainglesa823
GERAÇÃOEDITORIAL
RuaGomesFreire,225–Lapa
CEP:05075-010–SãoPaulo–SPTelefax:(+5511)3256-4444
Email:geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.brwww.geracaoeditorial.com.br
twitter:@geracao
ImpressonoBrasilPrintedinBrazil
ParaopovodoSiteSolèy
Quando os problemas no Haiti começaram, senti que estava destinado àsgrandes coisas. Quando recebi o chamado divino, estava com cinquenta equatroanosenãosabialernemescrever.Toussaintl’Ouverture,emcartaaNapoleãoBonaparte
Mesmoquecaído,anuncamaisselevantar,Vivasetetranquilizas.DeixasteparatrásPoderesqueportiagirão,céus,terraear;Nãoexiste,pois,umviventesequercapazDeteesquecer;combonsaliadosacontar,Teusamigossãoexultações,aagonia-capatazOamor,edohomemoinconquistávelpensar.WilliamWordsworth,paraToussaintl’Ouverture
SUMÁRIO
AgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraAgoraOutroraSempreAgoraNotadoautor
AGORA
Souavoznaescuridão,pedindosuaajuda.Souosussurroquevocêesperanãovirarsilêncio,avozquedesejacontinuar
aouvir,poissignificaquealguémaindaestávivo.Souavozpedindoparaquevenha e me arranque daqui. Sou a voz na escuridão, pedindo pra que medesenterre,melevedacovaparaaluz,comoumzumbi.Souassassinoefuiassassinadotambém,váriaseváriasvezes.Nasçoa todo
momento.Perdimaiscoisasdoqueencontrei.Destruímaisdoqueconstruí.Vinenêsabandonadosnolixoevimortosvoltaremàvida.Aosdozeanosdeioprimeirotironumhomem.Não tenhonome.Nãohánomesnaescuridão,poisnãoháninguém,apenas
eu,ejáseiquemsou(souavoznaescuridão,pedindosuaajuda),enãotenhoperguntaspramimmesmoenãoprecisopedirnadapramimmesmo,anãoserlembrar.Estousozinho.Estoumorrendo.Naescuridão,contominhasbênçãos,comomanmanmeensinou.Um:estouvivo.Dois:nãoexistedois.Não vejo nada e não ouço nada. Esta escuridão, ela é como algo sólido. É
comoseestivessedentrodemim.Eucostumavagritarporajuda,masentão,depoisdeumtempo,nãoconseguia
dizerseestava falandopelabocaouapenasnacabeça,e issomeassustou.Dequalquerforma,gritarmedásede.Então, não grito mais. Apenas toco e cheiro. É como sei o que está aqui
comigo,naescuridão.Há uma luminária, mas não funciona. No entanto, posso dizer que é uma
luminária,poissintoovidrosuavedalâmpada,elembrocomoficavaemcimadamesinhaaoladodaminhacama.Essaéoutracoisa—existeumacamaaqui.Eraminhacamaantesdeasparedescaírem.Posso sentirocolchãomacioeoestradoquebrado.Nemtodoosangueémeu,masumpoucoé.Costumavatocaroscorpos,masnãofaçomaisisso.Elescheiramtambém.
*Nãoseioqueaconteceu.Estavanacama,pensandonosmeuspróprioszafè,
entãotudosacudiu,eucaíeaescuridãocomeçou.Outalveztudoomaistenhacaído.EstounoHospitalCanapé-Vert,dissoeusei.Éumhospitalparticular, então
achoqueosblancsdevemestarpagandoporisso.NãoseiporquemetrouxeramatéaquidepoisdeteremmatadoBiggieeenfiadoumabalanomeubraço.Talveztenhamsesentidomalporisso.Ontem— ou é possível que foi hámais tempo—Tintin veiome ver. Foi
antes de o mundo desabar. Tintin deve ter usado aquele passe que Stéphanieconseguiu pra ele sair de Site Solèy e passar pelos postos de controle. MeperguntocomoStéphanieestásesentindoagoraqueBiggieestámorto,porqueelaédaONUenãodeviaestardormindocomumgângster.Deveteramadoeledeverdade.Tintinassinounomeucurativo.Dissepraelequeaspessoasassinamapenas
emgesso,nãoemcurativos,maselenãosabiaadiferença.Tintinnãosabemuitacoisasobreanyen.Por exemplo: você está pensando que ele assinou o nome dele no meu
curativo,masnãofoiisso.AssinouRoute9,comoescreveemtodolugar.Tintinnãoescreveapenas.TambémgostadegritarRoute9quandoestamosandandonasruas—Route9atémorrer,besteirasdessetipo.Euolhavapraspessoaspelasquaisagentepassavaediziapraele:—Nãoseiquemsãoessaspessoas.PodemserdeBoston.Podemacabarcom
você.
—Esseéoponto—eledizia.—Nãotenhomedodeles.SouRoute9.Eu achavaTintin um cretino,mas não falava isso pra ele.Os velhos, como
minhamanman, dizem que Route 9 e Boston costumavam significar algumacoisalápratrás.Tipo,Route9eradeAristide,eBostonosrebeldes.Agoranãosignificamnadamais.Eu estavanaRoute9 comTintin,masnão escrevia emtodolugar,nemgritavaisso.Sealguémmematasse,euqueriaquefosseporumbommotivo.Nãoporqueeudisseumnomeerrado.De qualquer forma, quando eu dava umgiro com a galera daRoute 9, não
queria que os brutamontes da Boston me conhecessem. Não queria que meconhecessematéeuestar comelesnapontadaminhaarma, e eles teriamquedevolverminha irmã.No fim, foioque tentei.Não funcionoudo jeitoqueeuqueria.Nohospital,depoisdeTintinterescritoRoute9nomeucurativo,elebalançou
minhamão.Doeu,maselenãopercebeu.—Comovocêtá?—eleperguntou.—Tomeiumtiro—eudisse.—Comovocêachaqueeutô?Tintin deu de ombros. Tomou um tiro uns anos atrás, eBiggie e Stéphanie
conseguiram que ele viesse pra cá pra ser costurado. Para ele, óbvio, não foigrande coisa.Mas é Tintin. Ele é, tipo, tão cheio de buracos, tão fácil de semachucar,queimpedeomundodemachucá-lomachucandoomundoprimeiro.Seencontrasseumcachorrinho,eleoestrangulariapraevitargostardele.Sabequetomeitirotambém,antes,quandoeueramenor.Masnemmelembrodissomuitobem.—Todomundonavilaterespeita,blud—Tintindisseeminglês.Tintinera
dessesgângsteresquefalamotempotodoeminglês,comosefossemdavilaoualgoassim,avilareal,comoNovaIorqueouBaltimore.—Vocêficoucruel láfora.Vrechimère.Nãosabiaoquedizer,entãoeudisseapenas:—Issoaí.É o que os gângsteres americanos dizem quando querem concordar com
alguma coisa. Disse isso de um jeito que ainda soaria como um malandro,mesmo que eu não desse mais a mínima para esse negócio de gangue, pormotivos que você vai ficar sabendo por si mesmo. Mas parece que foi o.k.,porqueTintinconcordoucomacabeça,comoseeutivesseditoalgoprofundo.—Vaisairdaqui,terseuquarteirão,semproblem.Talvezserchefeumdiade
vocêmesmo—Tintin disse.—Vocêmatou aquelesmalditos daBoston bemmatado.Naquelemomento, eu dei de ombros.Não quero um quarteirão.Quero que
todos osmortos não sejammaismortos,mas é pedirmuito,mesmo noHaiti,ondeosmortosnuncaestãorealmentemortos.Vrechimère.Umfantasmadeverdade.Chimère é gângster no Site.Chimère porque nós desaparecemos do nada e
voltamosdepoisdonada.Chimèreporquemorremostãojovensquejápodemosserfantasmas.Vocêdeveestarpensando,coisaestranhasechamarassim;coisaestranha terumnomeque significaquevaimorrer jovem.E, sim,éumnomeque os ricos inventaram, as pessoas que vivem fora do Site, mas pegamos onomeetomamoscontadele.Omesmocomcriminoso.Omesmocombandi.Quer me chamar de chimère? Tarde demais. Já dei esse nome pra mim
mesmo.Nãoimporta,agoraachoqueé,tipo,umbomnome.Agora,eupenso,talvez
eusejaumfantasmadeverdade.Nãoumgângster,masummorto.Emalgummomento,hojeououtrodia,ouvipessoasgritandodelonge,longe
naescuridão.Eraalgocomo:—…sobreviveu?—…vivo…aí?—…ferido?Eugritei de volta.Consegue imaginar o quegritei.Eugritei, sim.Eugritei
“meajuda”.Eugriteiessaspalavrasemfrancêse inglês.Griteiemcrioulopradizer a eles que tinha acontecido um acidente e eu estavamachucado. Então,
penseiqueeraestúpidogritar,porqueestounumhospital,então,claro,euestavamachucado, edeve ter sidoanpil óbvio que aconteceu umacidente, com tudocaído.Masninguémrespondeu,easvozesforamembora.Nãoseiquandofoi isso.
Nãoseiquandoédiaequandoénoite,oumesmoseaindaexistenoiteedia.Seconsigoouviraspessoasgritando,maselasnãopodemmeouvir,issofaz
demimumfantasma?Euacho,talvezsim.Nãopossomever.Nãopossoprovarqueexisto.Mas,então,eupenso:Não,nãopossoserumfantasma.Umfantasmanãotem
sede, e, como estou deitado aqui no hospital desmoronado, é como se minhabocafossemaiorqueeu,maiorqueaescuridão.Comoseomundoestivessenaminhaboca,nãoocontrário.Estásecaedoloridaenãoconsigopensaremoutracoisa.Meupensamento,porcausadaminhasede,éassim:…ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA. Estou morto? ÁGUA,
ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA.O que aconteceu?ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA.É ofimdomundo?ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA,ÁGUA…É assim que minha boca engole tudo o mais. Talvez minha boca vá me
engolir,eentãoacabará.Decidorastejar,mediroespaçodaminhaprisão.Conheçoosescombrosea
mãoàminhaesquerda.Nãoprecisoirládenovo.Nãoquerotocarnaquelapelepegajosa.Àminhafrenteeàminhadireitaeatrásdemimésóescuridão,mastalvez eudevaparar de chamá-la assim,porquenão tem luznenhuma; émaisnegridão.Sigoparaafrentecomasmãoseosjoelhos,gritoquandomeupulsopende um pouco e a ferida se abre.O grito ecoa em todo o concreto aomeuredor.Eumeconfundoesintocomosenãofossemaisumapessoa,comosetivesse
metransformadoemalgumanimal.Andotalvezadistânciadeumcorpoeentãobatonumaparededeblocos.Esticominhasmãoselevanto,esintoqueencostono teto. Apenas o teto émais baixo do queme lembro, o que não é bom.Àminha direita, a mesma coisa — uma cama quebrada, então uma parede de
escombros.Eatrásdemim.Estounumespaço, talvez,deumcorpoparacadadireção.Estounumcaixão.Segurominhametadedocolar,eépontudonaminhamãoondeocoraçãoé
partido emdois.Pensonaminha irmã, que tinha aoutrametadedo coração equemeuperdiquandoeueraumgarotopiti-piti.Tentodizera invocação, aspalavrasdosMarassa,porqueelaspodem trazer
minhairmãdevoltapramim,masestoucommuitasedeenãomelembrodelas.Ouça.Ouça.Vocêéavoznaescuridão,entãoomundotodonãopodetersumido.Deveter
sobradopessoas.Vocêéavoznaescuridão,entãoouça,mwenapèparlay.Voufalarcomvocê.Voutedizercomochegueiaqui,ecomotomeiessabalanobraço.Voutefalar
daminha irmã, que foi levada demimpor gângsteres, pelos chimères. Foi há2531 dias, quandomeu papa foi morto. Aomenos, acho que foi. Costumavasaberquantosdiaseram,porqueeumarcavanaminhacabeça.Agora,nãoseisefazdoisoutrêsdiasqueestounaescuridão,entãonãoseiháquantotempomeupaifoipicadoempedaçospiti-pitieminhairmãfoilevada.Maseuseiquedóitodososdias,dóinoúltimocomodoeunoprimeiro.Dóiagora,até,evocêpodepensarquetenhooutrascoisaspramepreocupar,
queestoupresosemáguanemcomida,esemsaída.Talvez, talvez, se eu te contarminha história vaime entendermelhor, e as
coisasquefiz.Talvez,nãosei,talvezmeperdoe.Talvez.Minhairmã,elaeraminhagêmea.Erametadedemim.Vocêprecisaentender:
umgêmeonoHaiti, issoémaji séria; é algopoderoso.ÉramosMarassa, cara.Sabe,Marassa?São lwa, deuses, os deuses dos gêmeos— superfortes, super-hardcore,mesmoque pareçam três criancinhas. São os deusesmais velhos daÁfrica.Mesmo agora, no vodu, osMarassa podem te curar, podem trazer boasorte,podemfazeraspessoasseapaixonaremporvocê.OsMarassapodemver
seufuturo,dobrarseudinheiro,dobrarsuavida.Aspessoasdeondevenho,elasacreditamquegêmeoshumanospodemfazeromesmoepodemfalarumcomooutroemsilênciotambém,porquedividemamesmaalma.Então, veja você. Eu e a minha irmã, nós éramos mágicos. Estávamos
marcadosparanascer.Éramosespeciais.Dividíamosamesmaalma.Aspessoasnosdavampresentes,cara—desconhecidos,sabe?Aspessoasparavamagentenarua,queriamqueagentedessenossabênçãoaelas.Dividíamos a mesma alma, então, quando ela sumiu, eu me tornei meia
pessoa. Queria que você se lembrasse disso para não me julgar mais tarde.Lembre-se:mesmoagora,enquantoestoudeitadonestehospitalemruínas,souapenasmetadedeumavida,metadedeumaalma.Euseidisso.Éporissoquefizascoisasquefiz.Masvocêaindanãosabedelas,claro—ascoisasquefiz,asrazõesporque
souumapessoapelametade,omotivoporqueeuestavanestehospitalquandotudodespencou.Vocênãosabeadorqueeucausei.Então,voutecontartudo.Primeiro,precisoexplicarosangue.Um pouco é meu. Meu curativo ficou todo rasgado quando rastejei,
procurandopelametadedomeucolar,emecorteinovidroquebrado,euacho.Játomei tiro, você sabe disso, e tem sangue vindo de lá também.O jeito que ohospitalcaiunãofoimuitoconvenientepraminhacura.Mas não posso explicar todo o sangue. Acho que um pouco vem dos
cadáveres.Essaeraumaenfermariapúblicaantesdeotetoeasparedescaírem.Tinhaumacortinaaoredordaminhacamaqueasenfermeiraspodiampuxarseeuquisesseiraobanheiro,masissoeraporprivacidade.Aquelescorpossãodasoutras pessoas que estavam aqui. Quando as paredes caíram, elas caíram emcima dessas pessoas. Posso falar, pois tem aquela mão perto de mim, e euestiqueiobraçoeatoquei,eseguiatéopulsoeentãoobraço,sentindoparaverse era um homem ou uma mulher. Não sei por quê. E não poderia dizer dequalquerjeito,porquedepoisdobraçonãohaviaombro,apenasescombro.
Pramim,eutivesorte.Estavanofinalzinhodaenfermaria,easparedesnãodespencaramaqui.Mastalvezeunãosejatãosortudo,porqueaindaestousoterrado.Talvezeusóvámorrermaislentamente.Apósterpensadoemmorrerporumlongotempo,euparoecomoosanguedo
chão.Eu imagino que seja comida e ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA,
ÁGUA, ÁGUA ao mesmo tempo. Eu puxo com meus dedos e o lambo. Énojento,mas,comoeudisse,umpoucoémeu,eissochegaaamenizarafomenomeu estômago, eminha boca fica um poucomenor, talvez do tamanho deuma cidade. Só agora que eu comi o sangue não penso tanto naminha boca;pensomaisemcomoestoufaminto.NoSiteSolèy,quandovocêestácomfome,dizque temácidodebateriano
estômago,porqueaqueimaçãoémuita.NoSiteSolèy,vocêpodecomprarumbolofeitodelamaeágua,assadonosolcomgordura.Bemagora,eupenso,noSiteSolèyelesnãosabemnadasobreafome.Semedesseumbolodelama,eutebeijaria.Mas, então, começo a pensar. Se estou com fome, significa que não posso
estarmorto.Fantasmacomesangue?Achoquenão.Umzumbi,talvez.Esperoqueeunãosejaumzumbi.Esperoqueeunãoseja…Não.Enterrominhasunhasnapalmadamão.Nãoacreditoemzumbiseaescuridão
nãopodemetransformar.Zumbismedãomedo.E,comoestoucommedo,cantoalgumas palavras de uma música pra mim mesmo. São deMVP Kompa, doWyclefJean,queeraacançãoqueestavatocandonocarrodeBiggiequandoeuoconheci.Wyclef Jean era do Haiti, mas agora ele é um grande figurão nos Estados
Unidos—granderapper,produtor,empresário.Biggieestavasempreouvindoas músicas do Wyclef. Era um herói pra mim — um menino do Haiti queconseguiu entrar nomundo damúsica.Acho queBiggie pensava que poderia
acontecercomeleumdia,oquemostracomoBiggiepodiaserestúpido.Dequalquerjeito,temumpedaçodamúsicanoqualWyclefJeandizqueseu
amigo,Lil’Joe,voltoucomozumbi.Émeia-noite, eLil’Joedevia estarmorto,masnãoestá.Elevoltaeéumzumbi,etemtodososseusamigoszumbiscomele.Wyclefcantaesserefrão,noqualeledizpratodomundopegaroszumbis,enterrá-los.Eissoébomnamúsica,porqueépossívelpegarzumbis,épossívelmachucá-los,eelesnãopodemmachucarvocê.Gostodessaideia,comamãomortapertodemim.Então,naescuridão,gritoparaquaisquerzumbisquevoupegá-los.Gritoaté
minha garganta doer aindamais com a secura e a sede. E, sim,me sinto umpoucomelhor.Sim.Nãoacreditoemzumbis.Nãoacreditoemtodaaquelamerdadevodu.Issoé,
tipo,umamentira,porqueeuviumhounganviraroPapaLegbabemdiantedosmeusolhos.Então,sim,talvezeuacrediteemvodu.Masnãosignificaquetenhoqueacreditaremzumbis,nãoé?Não.Dequalquerjeito,euacho,oqueovodufezparameajudar?Vodu é a antiga religião do Haiti. Os escravos a trouxeram da África. No
vodu, você recebe os lwa, que são como deuses, mas às vezes podem serancestrais também. Os haitianos, eles acreditam que os lwa podem descer epossuirseucorpoduranteascerimônias,falaratravésdeles.Chamamosaissodemontar— o lwa monta em você e usa seu corpo. Entende? Não é como nareligião kretyen, cristã. Falamos com nossos deuses; nossos deuses falam porintermédiodenós.Manmanfalavacomnossosdeuses,eudevodizer.Pramim,eu não tive muito a ver com eles, a não ser quando eu e minha irmãcostumávamos fingir nas cerimônias que manman organizava. Não pareciammuitointeressadosemmimtambém.Masmanman amava tudo e acreditava em tudo, mesmo sabendo que eu e
minha irmã, a gente era fraude, era mentira. Tinha um houngan que ela
procurava.ÉumtipodepadrequesabetodasascantigaspratrazeroslwaparaaTerra, e as comidas que eles gostam de comer, e os veves — os símbolospintados no chão para chamá-los pra você. Tipo, se quiser ser possuído peloBaron Samedi, o lwa da morte, precisa dar uísque e charutos pra ele, coisasassim.Agoramesmo eu ficaria feliz se oBaronSamedi aparecesse pramim eme
levassepralongedestelugar,praterraembaixodomarpraondeosmortosvão.Aomenoseunãoteriamaissedenemfome.MasoBaronSamedinãoestávindo.Manman costumava ir até ohoungan,mas nada daquilo evitou que a gente
perdesse a casa e acabasse emSite Solèy.Nada disso impediu quemeupapafossepicadinhocomfacões,queminhairmã,Marguerite,fosselevada.BiggiedissequeseuhounganpegouumossodeDreadWilmèdepoisqueele
foibaleadopelossoldadosdaONU.OhounganmoeuaqueleossoesalpicouemBiggie,eissofariacomqueasbalasnãopudessemtocá-lo,poisDreadmorreupeloHaiti,comoToussaint.Então,Biggieeraàprovadebalas,imortal,porquetinhaneleopódoossodeDread.Eraoqueelepensava,dequalquerforma.Eumesmo vi a poeira do osso numa jarra quando Biggie me levou pra ver ohoungan. Claro, vi Biggie sobreviver a merdas que nenhuma pessoa poderia.MastambémviBiggietomarumpenteinteirodemetralhadoranacaraeaquelasbalas, no fim, picotaram-no até virar comida de cachorro, com pó de osso ousempódeosso.Nãovejoporqueagradeceraovodu.Dequalquer forma,DreadWilmènão
morreu peloHaiti. Elemorreu porque atiraram nele.Não acho que ele queriamorrermesmo.Eutambémnãoqueromorrer.Nasci no sangue e na escuridão. Foi assim quemanman falou quando me
junteiàRoute9,quandocomeceiaandarcomBiggie.— Ele nasceu no sangue e na escuridão, e assim que ele vai morrer— o
houngandisseaela.
Talvezestivessecerta.Talvezeumorranosangueenaescuridão.Talvezelaficassefelizsemevisseaqui.Provavelmentenão.Noanoemquenasci,manmantinhaacabadodesemudarparaPortoPríncipe.
Disseram pra ela que havia trabalho lá, eletricidade, água encanada.Bem, elaconseguiueletricidadedeumalinhaquealguémpuxoudocabeamentopúblico,mas a única água encanada era o esgoto no meio da estrada, e não haviatrabalho, não pra qualquer um. Fui trazido ao mundo como um símbolo; fuimarcadodesdeoinício.Algumaspessoas,mesmoantesdeomundodespencar,acreditavam que eu estava destinado a ser algo especial. Começou bem nomomentoemquenasci.Era1995.Então,tenhoquinzeagora.Entende?Seimatemáticaetambémsei
ler.Meupapameensinouosdoisantesdeserassassinado.Depoisdisso,DreadWilmè me botou na escola, deu uma casa pra gente viver, também, porquemanman era dos Lavalas até o osso. Às vezes eu acho que se não fosse porDreadWilmè,nadadessamerdateriaacontecido.Mas,então,eudigopramimmesmo:“Não.DreadWilmènãoestavaláquandomataramseupapaelevaramsuairmãembora.Eletentouajudar”.Dequalquerforma,manmanestavanumcomíciodoLavalas.Estavacomum
barrigãograndeenaquelabarrigatinhanós.Diziaquemalconseguiaselevantar,estavamuitogrande.Estavaassustadacomoquepoderiasairdali.Masfoiparaocomíciodequalquerjeito,poispensouqueoLavalasmudariatudonoHaiti.Era o novo partido de Aristide, daqueles que iriam mantê-lo no poder.
ManmanamavaAristide—eraumcomunistaesignificavaqueacreditavaquetodosdeviamterdinheiroègal,casasègaleemprego.Naquelaépoca,Aristideestava no poder fazia mais ou menos cinco anos, e ninguém no Site tinhaemprego,masmanmandissequeeraporqueestavadifícilproAristide.Osnorte-americanoseosfrancesestinhamfeitotamanhabagunçanopaísquelevariaumbom tempoparaele arrumar tudo.Pramim,euachoque talvezAristide fosseapenas ummentiroso,mas eu não disse isso paramanman— ela teria ficado
anpilchateadasemeouvissedizendoisso,mesmodepois,quandotudopareciaumamerda, ficou claro pra todomundoqueAristide não eramesmoumcaralegal.Papa estava emoutro lugar, trabalhando, eu acho.Por isso,manman foi ao
comíciosozinha,mesmográvidadeoitomesesecombarrigão,comoumaburrainchada,faminta.Foielaquemdisse,nãoeu.Aristide estava empé, na frente deuma cadeira, no fundodaquela pequena
sala de reunião. Tinha sido pregador, então estava acostumado a gritar praspessoas.Eledizia:— Desde que foi descoberta por Cristóvão Colombo esta nação tem sido
escravizada.Colomboeraumfeitordeescravos.Osfranceses,edepoisosnorte-americanos, são seus sucessores, e mais que iguais a ele em crueldade einjustiça. Mas não suportamos seu jugo com alegria! Por 500 anos eles nosroubaram,maspor500anosnósosdesafiamos!Elecontinuou:— Os norte-americanos queriam que o povo do Haiti votasse num novo
governo.Gostariamdeselivrardemim,poismetorneiuminconvenienteparaeles.Queriamcontrolarnossasempresasenos tornarescravosnovamenteparaseuprópriolucro.As pessoas vibravam. Minha manman vibrava. Trabalhou numa empresa
norte-americana e eles pagavam a ela piti-piti dinheiro, e então a mandaramembora quando perdeu um dia porque estava doente. Sei no que você estápensando.Está pensando, como eu sei disso?Comominhamanman lembravadas palavras de Aristide? E eu respondo— ela não lembrava. Mas Aristideescreveuessaspalavrasnumlivro,eeuaindatenhoesselivro.Manmanjogou-ofora, e eu o tirei do lixo porque pensava que ele poderia ter algum poder.Aristideautografouparaminhamanman,sabe.Colocouseunomenele,eissoéumvodusério.Eu costumava olhar para esse autógrafo e pensar como era triste que um
homemcomideiastãoboastenhasetransformadonaquelemonstro.Biggieera
assimtambém,euacho.Eeu...Eutinhaagrandeideiadetrazerminhairmãdevolta,mastudoquefiznofimfoimatarummontedegente, tomarumtironobraço.Maseuestavafalandoparavocêdodiaemquenasci—desculpe,medistraio
otempotodo.Émaluco—nãotemnadaaquipramedistrair.Então,nasuacadeiranosfundosdaigreja,Aristidedisse:—ColoquemoLavalasnopoderevamoslançarosnorte-americanosaomar.
VamosmandarparaaFrançaeparaosEstadosUnidosacontadetudooqueelesroubaramdenós.Tomaramnossaliberdade,nossaforçadetrabalho,osfrutosdanossa terra. Precisam pagar essa conta! Duzentos anos atrás, nossos grãos decafé e nossa cana-de-açúcar viraram ouro nos cofres de mercadores de Paris,enquanto os capatazes franceses aqui noHaiti transformavam nosso povo emanimais,agrilhoadosemcorrentes,açoitadosporchicotes.Opovogritava:—Sim!Éverdade!Nostransformaramemanimais.Aristide gargalhava. Ele sempre soube como fazer com que as pessoas
gritassem e cantassem, mas, quando estava no fim, elas gritaram pra ele irembora,prasairdopaíssozinho,praimpedirqueseuschimèresmatassemseusinimigos.—Eoqueaconteceuquandoconseguimosnossaindependência?—Fale!Fale!—Quandonos livramosdascorrentes,quandoparamos seuschicotesenos
erguemossobrenossasprópriaspernas,nãomaisanimaisdecarga,osfrancesesmandaramuma fatura paranós, exigindo que pagássemos por nossa liberdadecom impostos e árvores. Fomos forçados a derrubar nossas florestas paraabastecer a França com madeira para construção, e as chuvas que seguiramacabaramcomnossaterraprodutiva.Tudooquefoideixadoestásendotiradodenósatéagora.Aristidetocounamesabaratademadeiraqueserviacomoaltar.—Asforçascoloniaisdesfrutaramdeumbanqueteanossasexpensas—ele
disse.—Sentavam àmesa, que era posta com toalha de índigo exportada doHaiti,montadacomtigelasdeaçúcartiradodoHaiti,exícarasdecaféroubadasdoHaiti.Eondeestãooshaitianos?—Ondeestão?Ondeestão?—gritavamaspessoasnaigreja.—Oshaitianosestãoembaixodamesa,comendoasmigalhas,comoratos!As
regras da ONU, do FMI, são criadas para manter os ratos embaixo da mesa,impedirqueelessejuntemaobanquete.Masnãopodemosserfeitosdeanimaisnovamente.Precisamosviraramesa!Precisamosnosrebelar!Nesse momento, Aristide pôs as palmas das mãos embaixo da mesa de
madeiraeatombou.—Precisamosviraramesa!—elegritou,enquantoelabatianochão.Todosvibravam,porquetodasaspessoasnoSiteamavamLavalaseAristide.
Amavam a ideia de receber dinheiro e terra dos ricos. Mais tarde, claro,simplesmentecomeçaramapegá-los.Efoiquandotodooproblemacomeçou.Mas foi antes de tudo aquilo. Assim, todo mundo estava batendo palmas
quando, de repente, houve um tremor, a energia caiu e as luzes se apagaram.Acontecia muito em Porto Príncipe — e ainda acontece. Naquela noite, em1995, não tinha lua e estava muito escuro. As pessoas começaram a gritar.Manmansabiaqueeraumterremotoe,comoosoutros,primeiroficouumpoucoem pânico, virando-se para correr para a rua,mas então o tremor parou e elaouviuAristidebradar:—Tudobem!Neninquiet!Sacouumisqueirodobolsoeacendeuumapequenavela.Então,mostroupara
acongregaçãoondehaviamaisvelasnaigreja.Logo,aspessoascomeçaramaseacalmar.Masmanman não estava se sentindo bem. Ficou lá, em pé, na escuridão,
apenascoma luzdasvelas tremulando,esentiuumagrandedornoestômago.Tinha uma sensação de doença no espírito. Sabia que algo de ruim estavaacontecendo.Quandoestiveracomohoungan algunsmeses antes, ocasião emquesoubequeestavagrávida,riscouumvevenochãoeinvocouPapaGede,e
PapaGededissequeobebênabarrigadelatinhaumaalmabrutalecomeçariaeterminarianaescuridãoenosangue,mastambémviveriaparasempre.Naquelemomento,aterratremeunovamente—umtremorsecundário—,e
manman ficou commedo de que o começo e o fim de seu bebê viessem aomesmo tempo. Ela gritou.Olhou para baixo e suas pernas estavammolhadas,pensouqueabolsahaviaestourado.Mas,quandotocouascoxascomosdedos,sentiu-osmeladosdesangue.Sentiu-sefracaecaiunochão—queeraapenaschãobatido,comaigrejaconstruídabememcimadele.—Souplè—elagritou.—Souplè,mwenansent.Porfavor.Porfavor,estougrávida.Alguémapegou.Alguémdissealgumacoisasobremédico.Então teveuma
comoção,ederepenteAristideestavalá,empéemcimadela,comseusóculoseternodecaubói.Sorriupraelaeseajoelhounochão.Commãosgentis,ajudou-aasedeitardebarrigapracima.—Nomeutempodepadre—eledisse—fizissomuitasvezes.Nointerior.Manman encarou o teto da igreja e viu que havia um buraco nele.Através
desse buraco as estrelas brilhavam no negrume, como se dissessem que aescuridãonuncaécompleta,quesempreháesperança.Ela sentiuumrasgaregritoudenovo,enovamente,e logoogritoerauma
sinfonia, gritos mais altos se juntavam à sua voz. Ela se ergueu sobre oscotovelosparaver,primeiro, agrandepoçade sangueentreaspernas, eentãoJean-BertrandAristide,oprimeiro-ministrodoHaiti,segurandodoisnenês,umemcadabraço.Deuàluzseusfilhos.—Umameninaeummenino—eledisse.—Gêmeos!OsMarassaJumeaux
decarneeosso.Éumsinal.Esses sãoosprimeirosnenêsnascidosnumHaitilivre.Nuncaserãoescravos.SãocomoosnovosAdãoeEva.Todos aplaudiram, até minha manman, embora no fundo ela estivesse
pensando no houngan. Ele disse que eu — nós — nasceria no sangue e naescuridão, e aquilo tinha virado verdade. Mas disse que eu e minha irmã
morreríamosnosangueenaescuridãotambém.Anosdepois,quandomanmancontouahistória,eudissepraela:—Manman,todomundomorrenaescuridão.Amaioriadaspessoas,nãoé?E
noSitemuitagentemorrenosanguetambém.Elarespondeu:—Eusei.Masissonãoadeixoumenostriste.Étãoquenteaqui,comoseeuestivessenumforno,comosealguémestivesse
meassando.Algumgigante,talvez,praeuserseujantar.Daminhaparte,euestoutentandonãopensaremcomidaebebida,masvocê
játentounãopensaremalgumacoisa?Éumapiada.Quantomaisvocêtentanãopensaralgumacoisa,maispensanessacoisa.Então,estoufazendoumarefeiçãonaminha imaginação.Eusirvonaminha
frente,enaescuridãoabsolutaéfácil,porquevocênemprecisafecharosolhosparaveraimagemdoquequiser.Defato,émetadedoproblema,porqueécomovocêparardesaberoqueérealeficabemmaluco.Mas,sim, temumbifenaminhafrente,ebatatasfritaseumcopãodeCoca-Cola.Eu comi bife apenas uma vez. Meu papa trouxe para casa um dia. Nunca
soubecomoeleconseguiu.Apenaschegouemcasatodoorgulhosoesorridente—eletinhaumsorrisobom,meupapa,brilhante—edeixouasacoladebifesnamesa.Suavamosanguequepassavapeloplásticodasacola.—Paraojantar—eledisseparaamanman.Ela olhou para ele com aquele olhar, tipo, quê, tá falando sério? Onde
conseguiu?Podiafalarmuitonumolhar,minhamanman.Eleapenasriu.—Apenasomelhorpraminhamulhereprosmeusgêmeos—eledisse.Antesdecomermososbifes,elemelevouparaforae jogamosbolaumpro
outro.Naverdade,erabobo,masdivertidotambém.Agora mordo um pedaço do meu bife. Na minha imaginação, eu fritei um
poucodemais,masémuitobom—ficaumapequenacrostanacarne.Euboteianpilsalnasminhasbatatinhas,entãobeboumgrandegoledaminhaCoca-Cola,
e issoébom também.Entãoparo,porqueouçoumacoisa.Éumsomdealgoraspando,masémuitobaixoparaseralguémcavando,delicadodemais.Euvironadireçãodosombemdevagar.Risque,risque,risque.Tatatatatatata.Risque,risque,risque.Minhamãopartenadireçãodosomeeusintooesfregarsuavedeumrabo,
ouçoalgorápidoeagitadodesaparecernaescuridão.Ratazanas.Dou um suspiro longo e lento. Posso ouvir uma roer agora, ou talvez seja
apenasimaginação.Precisosairdaqui.Porummomento,estouàbeiradopânicoverdadeiro.Começoa rezar, tipo,me tiredestabostade lugaragora, têmratoscomendo os cadáveres, têm ratos comendo os cadáveres. De repente, nãoconsigorespirar,masentãopensoemMarguerite,minhairmã.MeforçoapensaremMarguerite.Marguerite tinhacabeloscacheadoseumsorrisograndecomoa lua,eeraa
minhamelhoramiga.Éramosgêmeos,masnãoparecidos.Eueragrandeeforte,elaeraumacoisinha,jácomoumfantasma.Marguerite, eradelaestecolar.Agoraestou segurandometadedelenamão.
Tenhoqueexplicar—eraumcolardepratacomumpingentedecoração.Erapossíveldividireleaomeioeficavacomduaspartesdentadas.Papaconseguiupara ela em algum lugar misterioso. Assim que ela pegou nele, quebrou ocoraçãoemdoisedeuumametadepramim.—Achoquevocêtinhaqueguardar,daraumgarotoumdia—eulhedisse.— Somos gêmeos — ela disse. — Somos a mesma pessoa dividida pela
metade.Vocêtemmetadedomeucoração.Então, eu guardei e sempre carrego comigo, mesmo agora, enquanto estou
deitado,presonaescuridão.Margueriteeraminhairmãgêmea,masnãoeraparecidacomigo,nãomesmo.
Eu era das máquinas; qualquer coisa que tivesse um motor, eletricidade ouengrenagenseuqueriadesmontareveroqueafaziamexer.Colecionavacoisasdarua,dolixo,detodolugar.Meupapadiziaqueeuseriaengenheiroumdia,
masnãoachoqueacreditavanissodeverdade.Marguerite, ela era diferente. Sua aparência era diferente também. Tinha
aquelaconstelaçãomínimadesardasnonariz,aquelesenormesolhoscinzentos.EraumtantobonitademaisparaoSite,todomundopodiaverisso.Seolhassepara ela, sentiria que alguém devia chegar e colocá-la numa caixa à prova debalasemantê-laasalvo,feliz.Masdaívocêpensaria,bem,ficarnumacaixanãodeixariaela feliz.Porqueelaamava tudo, cara.Nãoeracomoeu,comminhasbicicletasemeus rádiosemeus fios.Andavaporaí, e eracomose tudo fossenovopraelaefeitorecentemente,emaravilhoso,mesmoasratazanas.Sim,mesmoasratazanas.Amavaessascoisas,bemcomoamavaocéueosol,
eospedaçosdesujeiraflutuandoruaabaixoquandoformavamimagensbonitasno ar. Via uma beleza naquelas criaturas imundas que o restante de nós nãopoderiareconhecer.Umavez,manmanencontrouumninhoderatinhosemumadasparedes.Foiquandotínhamosseteanosmaisoumenos,euacho.AntesqueMarguerite pudesse impedir, ela matou a ratazana mãe, espancou-a até mortecom uma vassoura. Ela queriamatar os filhotes também,masMarguerite nãodeixou.—Não,manman—eladisse.—Euqueroeles.NinguémfalavanãoparaMarguerite.NãohaviaanyenqueopovodoSitenão
fizesseporela,especialmenteosmaisvelhos.EraobrilhoqueMargueritetinhadentrodela,aquelejeitodeseiluminarcomoumalâmpadaquandoviaalgumacoisaqueafizessefeliz.Assim,manmandeixouqueelarecolhesseoninho,comcuidado,elevassepraumlugarnocantodeumterrenobaldio,ondeelafezumacaixademadeiraeencheudejornal,eissoadeixoufeliz.Simplesmentedeitavanochão,diretona terra,debarrigaprabaixocomoscotovelosapoiados, e euobservavaenquantoelaolhavaosratos.Levavacomidaparaeles;nãoseiondeencontrava,nãotínhamoscomidanemparanós,nãomesmo.MasascoisasqueMarguerite encontrava não eram comida que uma pessoa comeria — eramsemprecoisasmofadas,velhas,estragadas.Osratosnãoligavam;elesamavam.Umdia,acaixasumiu.
—Osratos,tudobemcomeles?—euperguntei.—Tá—eladisse.—Erahoradeelesirememboraeexplorar.—Ah—eufalei.—Tudobem.Eelaolhoupramimcomaquelesolhosdeoceanoaopôrdosol.—Umdia,vouexplorartambém—eladisse.—Vousairdestelugar,evou
levarvocê,manmanepapacomigo.Sabe de uma coisa? Eu acreditava nela. Entende? Eu acreditava naquela
merda.PorquequandoMargueritediziaalgo, euouvia.Era tãobonita, sabe, etãoespecialqueagentesabiaqueelapoderia seroquequisesse.Eracomo…como alguém que viveu muitas vidas antes, e sabia como ser grata. Pareceestúpido,maséverdade.Écomosetivesseumaalmaqueeramuitograndepraela,quepreenchiaelaatéaborda,aténãotermaisespaço,assimelafluíaatravésdosolhos.Porissoseimportavacomaspessoas,comosanimaistambém.Tintin também era assim— tipo, de alguma forma.Mas comTintin o que
tinhapordentroerapodre,eissoodeixavalouco,faziamachucarosoutros.Mas estou falandopara vocêdeMarguerite.Nem sempre tinham ratos com
ela,vocêprecisaentender.Daoutravez,nãomuitodepois,euestavacomelaecaminhávamosnadireção
domarparatentarencontrarpapa,verseelelevariaagentenobarcodele.Elefezissoalgumasvezes;deixavaagentelançaraslinhasnaágua,eesperávamosopeixemorderaisca,e,quandoagenteolhavapratrás,praSiteSolèy,queseerguia fedorento do oceano, pareciamenor e um lugar do qual você tinha deescapar.Papadizia:—Omaréum tipode liberdade.Masvocêsdoisprecisamfazera liçãode
casa,tudobem?Então,talvez,vocêspossamterumaliberdademelhor.Margueritedizia:— É. Tá vendo aquelas casas grandes no monte, dos ricos? Vou ter uma
daquelas um dia. Vou ter uma piscina e um carro, e vocês todos vão vivercomigo.
E nós acreditávamos nela. Acreditávamos no sonho dela. Claro que sim.QuandoMargueritediziaalgumacoisa,erareal.Então,naqueledia,agenteandavanadireçãodomar.Estavanumadasruas
mais largas; tinha mais espaço para evitar o esgoto, e havia ainda algunscarrinhoscomguarda-chuvascoloridos,vendendofrutas,masnão,agentenãoera o tipo de gente que podia pagar pelas frutas. O sol bem em cima de nósestava cruel de tão quente, comoummartelo sobre a pele.Vimos aquele caravelhoquetinhaummacaconumacorrente—elepulounanossadireçãoegritouquandopassamosporele.Margueriteberroueagarrouaminhamão,eovelhoxingouepuxouomacacodevolta,masnãosemantestermosvistoosgrandesolhosbrancos,osdentesnabocaarreganhadadobicho.—Apostoquevocênão iaalimentaraquelemacacoseencontrassecomele
—eudisse.—Omacacoestábem—elarespondeu.—Elesónãogostadeficardaquele
jeito,presonumacorrente.Marguerite era famosa por sua bondade. Pegaria uma pomba que tivesse
quebradoaasaecuidariadelaatéficarmelhor,mesmoquemanmandissessequepombassãoratoscomasas.Essa era Marguerite. Você poderia apunhalá-la, bater nela e roubar seu
dinheiro,eeladiriaqueentendia,quevocêestavafaminto,quenãopoderiafazerdiferente.Nãoquealguémfariaessascoisascomela—elaeracomoumanjonoSite. As avós tocavam nela para ter boa sorte, não estou brincando não. Deverdade, nós dois tínhamos que ser sortudos. Éramos Marassa— eu era tãogêmeo quanto ela, tão maji quanto ela. Mas as pessoas não me tocavam epareciamfelizescomisso,issoeupossodizer.Depoisdomacaco,andamosmaisumquarteirão.Daíouvimosumsom.Era
umsomdechoro,baixoetriste.Olhamosemvolta.Margueriteviuantesdemimecaminhouatéaquelemontedelixoqueestavabemaoladodarua.Euaseguie,derepente,agenteestavaolhandoparaumnenê.—Uau—eudisse.
Essenenê,eleestavaládeitadonolixo,chorando,masbemfraquinho.Mexiaasperninhaseosbracinhostambém,masbemlerdo,devagar.Tinhaumacabeçaenorme,todainchadaecomaparênciainflamada.—Estávivo—Margueritefalou.Parecia algo estúpido de dizer, mas o jeito que ela falou tinha todo um
encanto.Vocêprecisaimaginareladizendoissocomumavozsussurradae,tipo,comanjosvoandoaoredoreviolinostocando.Claro, o nenê estar vivo era uma grande coisa. Verdade é que não era
incomumvernenêsnolixonoSite,masamaioriadelesjáestavamortoquandoalguémvia.Vocêosenxergaria,àsvezes,decantodeolhoaopassearouquandofossejogaralgonolixo,etentarianãoolhar.Nãoculpariaasmães.Eunãoculpoasmãesdejeitonenhum,emboraachequeMargueriteculpasse.Pramim,euseiqueécomplicadoobastantealimentarasimesmosevocêvivenoSite.Nemédifícilentenderquemuitasmulheresnãoqueiramalimentarumnenêtambém.Era uma coisa doida, esses nenêsmortos.Às vezes, a gente voltava no dia
seguinte, ou sei lá quando, e eles sumiam. Simplesmente desapareciam.Nenhumamoun sabia o que acontecia com eles.Algumas pessoas diziam queDreadWilmèroubavaessesnenêseosmoíanumgrandepilão,usavaparafazerumpó que o protegia.Diziamque era por isso que ele sempre aparecia vivo,sempre indemne, ileso, não importava quanto a ONU e as outras ganguestentassemmatá-lo.DiziamqueDreadWilmèusavamajinegraséria,enãohaviaanyenquepoderiadartantopodereproteçãodoqueumnenêmoído.Precisoexplicarumacoisaaqui.Équeaspessoasgostamdefalarcoisasruins
dovodu.Oskretyens,oscristãos,elessempreentendemqueovoduéviolentoeperigosoemau,quandonaverdadeéumareligiãoigualaqualqueroutraepodeserbonita.Então,quandoeudigo issodosnenês,nãoqueroquevocê imaginecoisas erradas.Não é que, tipo, seja normal novodumoer nenês até virar pó.Estámuitolongedesernormal,naverdade.Éalgofoda.Mas,deondeeuvenho,éomesmoqueemqualquerlugar:existemsemprepessoasquesãoignorantesesupersticiosas.Essaspessoaspensamqueosnenêspodemserusadosparamaji
negra,equeporissoelesdesapareciam.Sei lá. Aquele nenê. Ninguém fez aquele nenê desaparecer. Aquele nenê
estavavivo.—Queeletemdeerrado?—eudisse.—Ela—minhairmãcorrigiu.—Quê?—Éela.Eu olhei para o nenê.Eu não consegui saber como ela sabia o que ele era.
Tudooqueeupodiaveréqueerafeio,comaquelacabeçonacomoumgrandefurúnculo cheio de pus. Barulhento também.Ainda estava chorando. Eu vireiparaela,tipo,hein?—Roupasrosas—disseMarguerite.—Bobão.—Ah,tá.Margueritesecurvouparaanenê,eeuagarreiobraçodela,pergunteioque
estavapensandoqueiafazer.—Elaestádoente—Margueritefalou.—Hi…hidro…seiláoquê.Acabeça
delaestácheiadeágua.—Sério?Comovocêsabedisso?—Achoquemanmanfalou.—Elatocouorostodanenê.—Vouencontrar
alguémpraajudar.AlguémdeforadoSite.Euaencarei.—Tábrincando?Mas Marguerite não era do tipo que brincava. Pegou a nenê e, por um
momento,elaparoudechorar.Olhoupraminhairmãcomaquelesolhosgulososenfiadosbemfundonaquelacabeçagorda.Então,começouachorardenovo.—Xiu—Margueritedisse.—Xiu.Elalevouanenêeeufuilogoatrás,claroquefui.Nãotemoutraopção,senão
seguirMarguerite.Nãoseisepossoexplicardeverdadesemvocêverela.Eracomo…Eracomoseapersonalidadefossenafrentedela,brilhante,comoumasombraaocontrário.Vocêsentiriaaforçadelaametrosdedistância.
Assim,eufuiatrásdelaeachoquenósdoissabíamosaondeestávamosindo.Era o único lugar aonde poderíamos ir. Naquele momento, o Site não estavafechado.Querdizer,nãotinhapostosdecontrole,nemtropasdaMinustahparaimpedirquevocêsaísse—essessãoossoldadosdaONUquevieramtrazerpazpro Site ao transformá-lo numa prisão. Mas ainda era fechado de um jeito,entende, porque não era como se a gente pudesse sair de lá e conseguir umempregoenãosermaisumratodefavela.NãotemMcDonald’snoHaiti,nãotem Burger King, lugar nenhum onde uma pessoa sem instrução de verdadepossa conseguir um emprego. Principalmente se você sai, você é pego pelapolíciaouporumagangue.ApolíciadevolvevocêparaoSite,masaganguepodesimplesmentetematar,oupior.Emesmoassim…Sevocêquisessesair,podia—setivessedeterminação.Erasócaminharatéo
fimdaruaecontinuarandandoatépassarascabanasealama.Então,foioquefizemos, eu eMarguerite, ela carregando aquela nenezinha, a cabeça inchadabalançando,chorandootempotodo.Eudisse:—Voucarregarele.Querdizer,voucarregarelaumpouco.MasMargueritefezumnãocomacabeça.Aquelacaminhadadeveterlevadoalgumashoras.Nãotínhamoságua,nada,e
estava quente. Só de pensar nisso me deixa com sede, e eu já tenho motivodemaisprasentirsede,comoestarpresoembaixodaterranumforno.Bem,osolbatianagentecomoummartelodeforja.Agentesuava,eanpil
vezes tivemosqueparar e sentar.Mas sabedeumacoisa?Não falei nenhumavezpraMargueritequedevíamosparar.Elaestavacomaqueleolhar, sabe.Aspessoasnãopediampraelaparar.Passamosomurolongocheiodepinturas.Todomundoconheciaaquelemuro.
Alguém o tinha feito anos e anos atrás durante a época dos espancamentos,quandoAristidefoiemboraeoLavalasestavatentandotrazereledevolta,eosattachés estavamatirandonosmanifestantesnas ruasdoSiteSolèy.Tinhaum
montedecriançasbrincando,eembaixodelehaviaalgumaspalavrasdeordem:Abalavichè.Abaixoapobreza.Pafevyolans.Nãocometamviolência.Abakidnaping.Abaixoosequestro.Nouvlelape.Queremospaz.Nougendwapunouediketoutmoun.Queremoseducaçãoparatodos.Aspalavrasdeordemsãoumagrandepiada,porquepobrezaésóoquetem
noSite,eaviolênciaestáemtodolugar.Pazéamaiorpiadadetodas.Acoisadaeducaçãoébemengraçadatambém—eueMarguerite,agenteeramuitoraro,porqueconseguíamosleraquelemuro.A única coisa no muro que realmente aconteceu foi que os sequestros
pararam. Os sequestros ficaram no tempo dos espancamentos, quando osattachés vinham até o Site e levavam embora os defensores do Lavalas.Ninguémosviadenovo.No fim das contas, vimos a pista de decolagem, e sabíamos que estávamos
perto. Viramos numa grande estrada que levava do aeroporto até a cidade.Margueriteolhouemvolta,entãosesentounaterraembaixodeumoutdoorcomumapropagandadaCoca-Colanele,comaquelaspessoasnumbanco,pegandogarrafas de um isopor cheio de gelo cintilante. Achei aquilo inacreditável.Absolutamenteinacreditável.Os carros passavam, alguns deles táxis caindo aos pedaços, alguns deles
carrosparticulares.Unspoucos,vindosdoaeroporto,donossoladodaestrada,traziam pessoas para cá — trabalhadores da ajuda humanitária, viajantes embusca de aventura, diplomatas, pessoas da ONU com os vidros filmados, ar-condicionado.Marguerite, ela correu até ficar o mais perto da estrada o máximo que ela
ousou.Então,sabeoqueelafez?Vocêjásabe.Elaergueuanenêeasegurounoalto.Grudavaosolhosnoscarrosquepassavam,aquelesqueiamevinhamdoaeroporto, e simplesmente se sentou ali. Após um tempo, eu pude ver osmúsculosdobraçodelatremerem.
—Hei,deixacomigo—eudisse.Então,elaolhoupramim.Concordoucomacabeça,eeupegueianenêdas
mãosdela.Segureianenênoaltopraqueaspessoasnaquelescarrosvissemacabeça.Aguentei, tipo, dezminutos, cara.Marguerite, ela conseguia segurar ameninaporumahora.Elapegouanenêdevoltaefoiexatamenteoquefez.Nãose moveu um minuto sequer, não saiu pra fazer xixi, nem nada. Estava tãoquente,cara,maselanãosemoveu.Suapeleeratodamelnaluzdosol,cabelosencaracolados na cabeça como chuvisco quente, então era difícil saber ondeterminavaMargueriteeondecomeçavaaluz.Elaficoulásentada,perfeitamenteparada,eseguravaanenêerguida.Enada,anyendenada,aconteceu.Nada.Oscarroscontinuavampassandoaostrancos,nuvensdepoeiracomasrodas,
eocheirodedieseleraumacriaturavivanasnossasnarinas,respirávamosoarpreto.Osolcontinuavaanosatingircomoumaarmamortal.Estavapreocupadose iríamosmorrer ali, se iríamos secar toda água do nosso corpo como uvas-passas, que alguém nos encontraria lá com a nenê cabeçuda e ninguém teriaanyenideiadequediabosaconteceu.Euestavacomtantasedequepenseiqueiamorrer.Agoraeuseioqueésededeverdade.Osolcomeçouabaixar,eagentepassavaanenêparaláeparacá,quandovi
Marguerite chorando. Mas eu não disse nada. Sou um garoto— o que vocêqueria que eu fizesse? Não encostei nela também.Marguerite era um buracoaberto, o mundo podia entrar nela. Não estava protegida o suficiente pra sertocada—elasimplesmentederreteriaemlágrimas,eusabiadisso,eassimfoi,eodiaacabou.Assim,euapenasvireiorostoedissequesegurariaanenêporummomento.Achoque a gente estava olhandopra baixo quandoo carro parou, ouvimos
antes de ver ele, o estalar dos pneus enquanto parava na estrada e subia noacostamentodeterra,oestalodaportaseabrindo.Então,aquelamulherveioaté
nós,muitovelha,eupenseinaépoca,maseuachoqueelaera,tipo,umajovem,deverdade.VestiaumacamisetacomaestampaMédicinssansFrontières.Eraloiratambém—nuncatinhavistoumaloiraantes.Eolhosazuis!Elaagachoudonossoladoealguémnocarrogritoupraela,maselaacenoudevoltaedissealgocurto,algoirritado.Elaolhouanenê.EueMarguerite,nós,tipo,desviamososolhos,comosea
gente pudesse ruir se dissesse alguma coisa, como se aquelamulher fosse umanimalselvagemquepoderiaserespantado.—Ela temhidrocefalia—amulherdisseem francês.Porém,pelo sotaque,
eradeoutrolugar.ElaolhouparaMarguerite.—Sabeoqueéisso?Margueritedeudeombros.—Elatádoente—minhairmãdisse.Avozdelaestavaassim,roucaeseca,
porqueestavacomsede.—Elavaimorrer?—Depende—disseamulher.—Nãosefortratada.Ésua?Margueritepiscouváriasvezes.Tipo,nóstínhamosseteanos.—Não!—Suairmã?—Não.Amulhercorreuamãopelocabelo.Estavasolto,masdealgumjeitoestava
presonaquelapresilhaquepareciaumpássaro.Penseiqueera incrível,acoisamaisincrívelqueeutinhavisto.Haviaumapenugemloirasobreasorelhasdela;euamavaasorelhasdela.Manman,elafalariasobrealwaErziliDantoecomoela era a mulher mais bonita, a deusa mais bonita, como qualquer um queolhasse ela se apaixonaria. Pensei que aquela mulher devia ser Erzili Dantonaquelecaso,oupossuídaporela,oualgoassim.—Entãooquê…?—elaperguntou,hesitante.—Achamoselanolixo—eudisse.Amulher olhou pramim, então deitou a cabeça nasmãos e chutou a terra.
Voouumpouconaminhacara,maseunãodissenada.—Merda—elareclamou.
Docarroatrásdelaveioavozdaquelehomem,bemaltaagora.Pareciaquequeriamesmoqueelaentrassenoveículo.Amulhervirouegritoualgoparatrás,eestavafazendoaquelacoisadetorcerasmãos.—Merda—eladissedenovo.—Esperemaqui.Elafoiatéocarroeporummomentonóspensamos,sim,elavailevaranenê.
Masvoltou comduasgarrafaspequenasde água.Ela entregouasgarrafaspragente,nósabrimosdireto,bebemostudo.Atéaquelemomento,eunãosabiaqueaáguatinhaumgosto.Penseiqueera
comooar:semsabor.Masaquelaáguaqueamulherdeupragente,apóstermosandadoeficadosentadosodiatodo,tinhagostodemilharesdecoisas—brilhodosol,sombras,bananas,mangas.TermineiminhagarrafaeviqueMarguerite tambémtinha terminadoadela.
Deixamosasduasnochão.—Obrigado—nósdissemos.Amulherbalançouacabeça.Penseique iria sevirar e ir embora,que tinha
dadoaáguapragenteeeratudooquepodíamosesperar.Achoqueteriachoradosenãofosseumgaroto.Então,amulhersegurounossasmãos.—Medêelaaqui—eladisse.—Rápido.Margueriteentregouanenêeamulherolhouemvolta,comosealguémque
fossepular e agarrá-la, como se alguémemPortoPríncipe se importasse comumanenêdoente,anãoserquefosseparamoê-laparaovoduoucoisaparecida.Ela olhou de volta pra gente e fez aquela expressão engraçada que era meiosorriso,meiofranzirderosto.Entrounocarro,fechouaporta,eelepartiunumapoeiracomaquelecheirodediesel.Então,elafoiembora.Simplesassim.Nuncasoubemosseanenêsobreviveuounão.Marguerite se levantou, bateu a poeira do traseiro, então cambaleou e se
balançou.Eu a agarrei antes que caísse, antes que desmaiasse.Era comoumacoisaquelembravaumapessoa,mascomtodososossosarrancados,apenasumacoisamolenolugar,comoumbichodebrinquedo.Penseiqueeramelhorlevar
elaprasombra,pratomarumaágua.—Tudobem—eladisse.—Tudobem,vamosencontraropapa.EssaeraMarguerite.
OUTRORA
NanoiteemquearebeliãoestouroucomoumincêndionoHaiti,oescravochamadoToussaintdesceudoseucavalo.Eraumbomcavalo—foiumpresentedoseusenhor,BayoudeLibertas,e,apesardaidade,aindalheserviabem.Era,Toussaintrefletiu,umcavaloadequadoparacavalgar.Ele,comoseucavalo,eravelhoehaviaservidobemaoseumestre.Logo, no entanto, não haveria mais senhores, nem escravos. Ou era o que
Boukmanesperava.Como sempre, uma ou duas pessoas recuaram quando viramToussaint. Ele
sofreuadesgraçadeternascidorepugnante,comorostotãofeioquemesmosuamulher lhechamavadeOgro.Seunarizerachatoe inchado,umacombinaçãoestranha, enquanto seus olhos eram pequenos e fundos. Carregava esse rostoparatodolugar;eracomoumcartãodevisita,umemblema.Eraconhecidoporele.Mas, ele pensou, talvez fossemelhor ser conhecido do que não ser. Então,
ninguém poderia dizer que ele nunca existiu; ninguém poderia transformá-lonum fantasma.Desdemuitonovo,Toussaintmantinhaa convicçãodequeumdia faria algo grande, que um dia todos saberiam seu nome.Ainda assim, atéaquele momento, não fizera nada além de curar umas pessoas que às vezesadoeciamecuidardoscavalosdoseusenhor(que,namaioriadasvezes,viviamemcondiçõesacentuadamentesuperioresqueasdaquelaspessoasdoentes).Nãosabia ler nem escrever, e o afligia,enquanto estava em pé naquele lugarpantanoso,comaluzdastochasreluzindoatravésdasárvores,quetalvezfossetardedemais.Estavamuitovelho.ToussaintolhouparaBoukman.OhomemtinhaquaseaidadedeToussaint—
quase cinquenta, no mínimo. Seu rosto era um entrelaçado de incisões. Seuorgulhoeseupertencimentotribalforammarcadosnapelequandoeracriança,e
agoraestavadooutroladodomundo,enãopodiaterorgulhonempertences.O chão sob os pés era esponjoso e úmido. Era terreno pantanoso, o Bois
Caiman, eToussaint podia ver, na escuridão a oeste, rastejandona surdina, oscrocodilos que deram nome à baixada arborizada. Estremeceu, embora o arestivessequenteeúmido.Queestamosfazendo?,elepensou.Éloucura.Toussaint sempre se sentiu umpeixe fora d’água—eramuito esperto para
seusconfrères,masnegrodemaisparasocializardeverdadecomseusenhor.Suairmã gêmea, nascida um minuto depois dele, morreu de difteria antes quepudesseandar,eeleselembravadelaagoraapenascomoumfantasmaindistinto,um borrão sobre pernas pequenas e rombudas, dando risadinhas. Ele nuncativeraamigos.Nuncahaviaconsideradopertenceraumasociedadedeescravos,apenascomoumindivíduo—eaquelacerimônianãoeradiferente.Nãopoderiaentregar-setotalmenteàquelahisteria,mastambémnãoconseguiarepudiá-la.AÁfrica estava em seu sangue,mesmo se ele não fosseda raçadaomeana, que,antesdemaisnada,foiresponsávelportrazerovoduparaoHaiti.Aos poucos, tomou seu rumo para a reunião, e Boukman o cumprimentou
calorosamente. Tinham se encontrado pela primeira vez há muitos anos, poisBoukman era amigo próximo de Pierre-Baptiste, padrinho de Toussaint, queensinou a Boukman rudimentos de latim e teologia. Após a morte de Pierre-Baptiste,BoukmancontinuouafrequentaracasadeToussaint,bebeucomele,jogou cartas com ele, conversou com ele. Era um bom amigo e confidente,mesmoqueseuzeloàsvezesfosseexcessivo.—Deviasaprenderaler—Boukmansempredizia—,comoeu.Assim,não
haverianadaqueteseparariadessesbrancos.Tuamenteétãorápida.—Masnãohánadaquemeseparedeles—Toussaint respondeu.—Enão
vejoutilidadenaleitura.Era mestre cavalariço e tinha liberdade para viver com conforto em sua
própriacabana;eleadividiacomsuamulheratéamortedela,portuberculose.Antesdisso,erapastordeovelhas,etinhaobtidoaliberdadedecaminharpelos
montessemsupervisãocomasovelhas.Porqueeudeverialer?Quefelicidadepoderiametrazer?Ainda assim, precisava admitir que seria agradável ler os livros franceses
sobre os quais Boukman comentava com ele—Rousseau e Raynal e outros.Raynal,segundoBoukman,dizia:“Liberdadeépropriedadedetodos”.Raynal tambémpreviaachegadadeumreinegro,umhomemquelibertaria
osescravosesubmeteriaasterrasférteisdonovomundoàsuavingançafuriosa.Boukman pensava que ele próprio era esse rei, Toussaint podia dizê-lo.Umaideiaperigosa,elepensava,massemantinhacalado.Boukmanpodiasercruelquandolevadoàira,comoquandoeleviupelaprimeiravezacruzdeprataemtornodopescoçodeToussaint.—PorqueusasoCristomártirnatuapessoa?—eleperguntara.—Logotu,
queprecisasapenasdolwadoteupovoparateproteger?Toussaintdeudeombros.SeupaioensinaraaadorarCristoeodeusúnico,
emborativesseditoqueoslwaeramreaistambém;opaideToussainterarada,das terras onde muitos dos lwa vodu nasceram, ainda assim ele conheceu aBíbliacomoseusenhor.Toussaintsabiaquemuitosescravoscarregavamíconesde Maria como substitutos da lwa Erzili Danto. Isso permitia que eles aadorassem; aomesmo tempo, deixava que eles escondessem suas verdadeirascrençase fingissem,aosolhosdo senhor,praticarumaespéciedecristianismoignorante.Então,nãoeramasduasfésseunindo?Entretanto,ToussaintnãodissenadadissoparaBoukman.Apenasencolheuos
ombrosedissequeCristoeraodeusúnico,sabiaqueirritariaBoukmanedariafimàconversa.Na verdade, herdara do pai uma atitude complicada perante a religião.
Consideravaavisãodeseupai—adequedeveriaseprestarrespeitoatodososdeusescomorepresentantesdasqualidadesqueaspessoasdesejavamalimentaremsimesmas—emgrandepartecorreta.Também fora seu pai que ensinara o uso de simples, que muitos cristãos
consideravamequivalentesàbruxaria,ecomoretirá-losdascoisasquecresciam
em todos os lugares: salsaparrilha para limpar o sangue, gatária para acalmarbebês,pau-tenenteparaestimularosnervoseexpelirvermes.Toussaintcuraraseusenhoreosfilhosmaisdeumavezeforarecompensadocombondade.Tudo isso significava que Toussaint era um cristão e um fiel dos antigos
costumes.Talveznãoquisesse rejeitar totalmenteosdeusesde seusancestrais,mas, ao mesmo tempo, por que deveria rejeitar a fé católica que seu senhorensinara a ele, tão bela e mística em sua dedicação à noção de uma únicadivindade,esobreaqualPierre-Baptistefalavacomtantaeloquência?Então,aquelacerimônia,naquelanoite,noterrenolodosodeBoisCaiman,era
toda um feito de Boukman. Era superstição vodu, e Toussaint não acreditavanela, mas veio apesar da batalha com a contradição. Teve sorte, sabia disso.Tinha visto as cicatrizes do açoite nas costas dos companheiros escravos,crianças sendo arrancadas do seio dasmães e tendo o pescoço quebrado.Viuhomensmortosporadormeceremempé.Elemesmoera livre,decerta forma,masconseguiaverqueseusirmãosnãoeram.AcreditavanacausadeBoukman,mesmonãoacreditandonabênçãoqueBoukmaninsistiaemaplicaraela.—Hojeànoite—Boukmangritouparaamultidãoquesereunia—vamos
nos levantar! Chegou o momento da rebelião contra os brancos. Os mulatsexigiramsualiberdadeeosescravizadoresretribuíramcomsangue.Dois meses antes, os mulats tinham se rebelado contra os brancos. Esses
mulats erammestiços, ou seja, filhos e filhas de homens brancos e mulheresnegras, pois o contrário era impensável.Mulats tinhammais liberdade que osnegros,masdeumaespéciemuitolimitada.Nãoerambensmóveis,mastambémnãoeramcidadãoslivres.Tentaramderrubarosbrancos,masforambrutalmentereprimidos. Sua insurreição fora um fracasso acachapante, mas teve umarepercussãoduradoura.Inspirouosnegros.—Agora—berrouBoukman—,osescravizadoresaprenderãoosignificado
realdomedo.Umaaclamaçãogeralesempalavrassaudouodiscurso,aspessoasrugiame
vibravam.—AFrançadeclaraaliberdadedosmulats,filhosbastardosdeescravizadore
escrava!EoqueaFrançadizdasescravasnegras,mãesdaqueleshomensdecor,quecultivamseuaçúcar,quepreparamoíndigoparasuasroupasfinas?Nada!—Nada!Boukmanapontouparaohoungancegoaolado.— Antes de lutarmos, precisamos reunir os espíritos à nossa causa.
Precisamos ter certeza de que os antigos deuses estão do nosso lado, e osancestraisque,porsuavez,setornaramdeuses.Eleapontouparaochãoaosseuspés,eToussaintolhouparabaixoparaver
quehaviaumpedaçodeterramaisescuraqueaquelaqueocercava,umpedaçooblongocomocomprimentodeumhomem.Boukmantomouumapáquejazianochão.Toussaintseperguntouporqueele
nãoanotaraantesecomeçouaterumasensaçãoruim.—Duas noites atrás— disse o houngan— um dos nossos bravamente se
voluntariouparavirarumzumbi.Toussaintfechouseuspunhos.Tinhaouvidofalardaquelaprática;eraovodu
profundo, escuro.Uma pessoa recebia algumas plantas, o extrato de um certopeixe,eelesconspirariamparadiminuirosbatimentoscardíacos,a respiração,para que numa inspeção superficial ela parecesse morta. Toussaint podiaimaginaroqueaconteceriaquandoessesingredienteseramcombinados.Depoisdisso, o zumbi seria enterrado e, mais tarde, exumado para ver o mundonovamente.Toussaintsempreachouoprocessoumcastigo.Porqueohomem—Toussaintestremeceuaopensarnapossibilidadedehaverumhomementerradosobaquelepedaçoescurodeterra—escolherasertratadodaquelejeito?— O homem sob nossos pés é o primeiro soldado da nossa guerra —
Boukmandisse.—Elemorreuerenasceráhojeànoite.Viajouparaa terranofundodomar,ondeosmortosvivem.FoiguiadopeloBaronSamedi,olwadocemitério,atéamorte,eelefestejoucomnossosancestraisembaixodasondas.Apenaseleconheceadisposiçãodosmortos!
Ah,pensouToussaint.Entãoohomeméumtipodeembaixadordosespíritosancestrais,doslwa.Quefarsaridículaedesagradáveltambém.Boukmanatravessouaterracomapá.Levouapenasumapazadaantesdeele
bater numacaixademadeira.Rapidamente, limpoua terradela, então alguémdesceuparaajudá-loaarrancara tampa.Dentrohaviaumhomemquepareciamorto, apenas sua pele não tinha a palidez nem seus lábios a cor azul queToussaintaprenderaaassociarcomosquepartiamdefato.Boukmanguiouosdedosdohoungancegoparaencontrarorostodohomem.
Ao fazê-lo, ele tirouum frascode seucasaco,destampou-oe, abrindoaboca,derramouolíquidonagargantadoaparentecadáver.Com um grande estremecimento, o homem sentou-se dentro da caixa,
tossindo.Puraencenação,puroteatro,Toussaintpensou.Porém,naquelemomento,umanuvemsedividiu,alualançouseusraiospara
baixo,eeleseviutremendocomoqualquerpagãosupersticioso.Controle-se,elepensou.—Diga-nos—Boukmandisseaozumbireanimado.—Diga-nosoqueviste,
tu,querenascesteestanoite.Osoutrossabemdasdrogas?Toussaintseperguntou.Achoquenão.Pensou
queprovavelmenteacreditavam,realmenteacreditavamqueaquelehomemtinhamorridoefoidespertadopormagia.Elepróprioapenassoubedotruqueporqueseupailhefalara,advertiu-odopoderdopeixeemquestão,alertouparaqueelenunca tocasse no seu estoque do pó. Não era de surpreender que os outrosespectadoresfitavamcomespanto,esperandocadapalavradeBoukman.O homem olhou direto através de Boukman, direto através do pântano
também,eseuslábiosseretorceram.—VioBaronSamedi—eledisse—,tododeossoscomumternosobreeles.
Elemelevouparabaixodasondas,eeuvicriaturasnadandoeofundodomar.E,ah!,euviLaSirène.Eratãobonitacomseurabodepeixe,emelevouatéacasadeseumarido,Agwe,enaquelacasaqueéumpaíseuvitodososnossos
mortos.— Viste nossos ancestrais — perguntou Boukman —, os ancestrais dos
escravos?—Sim,mesmoaquelescujoscorposforamdeixadosnaÁfrica.Osilênciodiminuiu;aspessoasesticavamopescoçoparaenxergar.Oroteiro
—paraToussaint,provavelmentedeviahaverum roteiroeeleaindapresumiaque Boukman o escrevera — era melodramático; mas estava tendo o efeitodesejado.—Eoqueosancestraistedisseram?—perguntouohoungan.—Disseramquenosajudariam.Prometeramquenosemprestariamsuaforça.Boukmansorriu.Deuumtapinhanascostasdohomem,eumnovoataquede
tossecomeçou.Toussaintachavaqueozumbideviaficarcomumpoucodeterranagargantaquandoeraenterrado.— Temos o apoio de nossos ancestrais, os gede lwa, os homens que se
tornaram deuses quandomorreram!— disse Boukman.—Temos o apoio doBaronSamedi,queésenhoreguardiãodamorte.TemosoapoiodeLaSirène,donadomarquenosrodeiaedacasadosmortos.Elefezumapausa.—Masexisteumcujoapoioaindapedimos.Outrosilêncio.—Quem?E:—Quem?E:—Quem?Asperguntasecoavamnaclareira.Boukmanabriuumsorriso.Eleostemmaissobcontroledoquesetivesseagarradoosacodelescomas
mãos,Toussaintpercebeu.—PrecisamosinvocarOgouBadagry,olwadaguerra—falouBoukman—,
econvidá-loparaonossomet tet,oassentodenossasalmas.Precisamosestarpossuídospelaprópriaguerra!Eleolhouaoredor,silencioso.—SIM!Nemumecodestavez,masamultidãointeira.Antesqueelepudesseevitar,e
parasuavergonha,Toussaintrespondeutambém.—MasOgounãonospossuiráanóstodos!Ohomemqueeleescolherseráo
enviadoparanoslibertar.Maisgritosdacongregação:—Éstu!—Escolhemosati!—Lidera-nos,Boukman!Comanda-nosparaavitória!Boukman,comgraça,rechaçousuaspalavras.—Não.Olwaescolherá.Toussaintsuspirou.Acausaera justa.OpróprioRousseaunãodisseraqueo
homemnasce livre,mas em todo o lugar é acorrentado?Aomenos foi o queBoukman lhe disse.Os filósofos concordavam que a liberdade era um direitoquenãopodiaserarrancado,excetocomopuniçãoporatoscriminosos.Então,eles não poderiam simplesmente fazer um levante, com justiça no coração, etomarsualiberdadeàforça?Eranecessárioquefirmassemaaliançacomaquelacerimôniasupersticiosa?Toussaint olhou em volta para os rostos brilhantes ávidos de seus
companheiros.Sim,aparentementeera.Boukman ergueu uma pedra até os lábios e a beijou. Era seu pwen. Nele
estava um dos deuses que os daomeanos trouxeram com eles para este novomundo, um deus da guerra chamado Ogou Ferro. Ou era no que Boukmanacreditava. Após beijar a pedra, ele a escorregou de volta para o bolso.Acreditava que a pedra o protegeria daqueles que desejavammachucá-lo e oajudaria emmomentos de necessidade. Toussaint achava que era apenas uma
pedra.Ovelhohoungandeuumpassoàfrentee,tomandoumgraveto,desenhouum
símbolonalama.Toussaintrecuouaoverasórbitassemolhosdohomem.Seusenhormandou que os tirassemquando ohoungan—que se chamavaLouis,mesmoquenãofosseseunomeverdadeiro—ousouolharsuafilhaemroupasdebaixo.Queafilhativesseidoatéohounganseduzi-lonãosignificavanadaaosenhor.Acegueiradoanciãonãodiminuíaemnadasuadestrezaemdesenharoveve
na lama. A imagem era complicada: um par de espadas; diversos floreiossimétricos;umbastãodepastor.Satisfeito,ohounganergueuoason,umchocalhocheiodeossosdacaudade
cobra, e começou a sacudi-lo. Então, lentamente sobre suas pernas velhas eraquíticas, ele dançou a dançaRada, pé para o lado, esquerda e direita, numacontagemdeum-dois-três-para, seus ombros rolandopara a frente e para trás.Sacudiacomforçaumfacãocomaoutramão.Toussainttambémseguravaumfacão,emboraelenãoseencaixassetãobem
nasuamão.Esperavanãoterqueusá-lo.Aconselhouseusenhoradeixaropaísquando os mulats caíram, quando sentiu — de Boukman, mas também damelancolia no rosto de todos os escravos — que o levante negro viriarapidamente. Ainda assim, Bayou ficou, insistindo que os comissários oprotegeriam, que, mesmo se os negros obtivessem sua liberdade — que, eleacreditava,comcertas ressalvas,elesdeveriam—,aquestãoseriadecididadeforma civil, sem derramamento de sangue. Toussaint acreditava no contrário.Que os escravos teriam sua liberdade, mas precisariam ensopar a terra comsanguedos escravizadores para alcançá-la, e esta era a perspectiva que enchiaToussaintdetristeza.Ohoungancantou.CantavaparaqueoLegbadaencruzilhadapudesseabriro
portão,eoslwapudessemdescersobreelequandoprecisassedeles:AttibonLegba,ouvribayèpoumoin!Ago!
Ouwè,AttibonLegba,ouvribayèpoumoin,ouvribayè!M’apèrentrèquandomatournè,Masalutlwayo.BoukmanveioparaficaraoladodeToussaint.—Duvidasdanecessidadedisso—elesussurrou.—Duvidodasabedoriadisso—disseToussaint,semfazerquestãodebaixar
avoz.—Osbrancosacreditamquesomossupersticiososeanalfabetos.Estamosprovandoqueelesestãocertos.Boukmanbalançouamãocomdesdém.— Estamos provando que somos africanos. Se pegarmos a religião e a
educaçãodosbrancos,seremoslivresapenasnostermosdeles.Toussaint meneou a cabeça num vagar. Não concordava, mas conseguia
apreciarajustificativadeBoukman.Começouaficardistraídoenquantoadançadohoungansedesenvolviacada
vezmaisferoz.Toussaintdisseasimesmoqueestavaimaginandoaquilo,maspareciaqueatéasárvoresdançavam,suasfolhasamplasbalançandoparafrenteeparatrásnumabrisaqueacabaradeaparecer,comoseaterrativesseacordadoerespirasse.Assombraslambiamaságuasletárgicascomochamaspretas.—EleestáchamandoOgouagora—disseBoukman.—Estássentindo?Toussaintnegoucomacabeça.Masnãoestavaconvencidodisso.Pareciaque
asformaslongasebaixasdoscrocodiloshaviamseaproximado,queasárvoresoscirculavam?Derepente,aluapareciamaispróximadaágua,gordaedeumapalidezdoentia, ehaviaumcheiro em tornodelede riquezaorgânica, do solopreto,ondeascoisasmortasapodreciam,deplantasrecém-arrancadas,decoisasrastejantessecontorcendonasraízes.—Ogou é o pai da guerra—Boukman falou.—No país de nossos pais,
dizem deye morne ga morne; deye feu ga feu. Atrás da montanha há outramontanha; atrás do fogo há outro fogo. Ogou é a montanha. Ogou é o fogo.Entendes?—Não—respondeuToussaint.
Boukmanoobservouporummomento.—Masvais.Ohoungan,aindadançando,apagoucomospésovevedeLegba,o lwaque
abriaasportasdomundoespiritual,ecomeçouadesenharumanovaforma.Estamostravaumamontanha,umachama,umaespada.Eledançavacadavezmaisrápido,gemendo:PapaOgouquigagnyuncheval!Toutemounepasmontè’l!PapaOgouquigagnyuncheval!Toutemounepasmontè’l!Toussaint,queantesdissoapenasestiverapresenteemritosRada,enuncanas
cerimônias Petwa fervorosas e secretas para os deuses da guerra, ouvia aspalavras da nova cantiga do houngan.Papa Ogou monta num cavalo. Não équalquerumquepodecavalgá-lo.Sabiaqueosadoradoresdovoduacreditavamqueoslwapodiamtomarocorpodeumhomemaocruzaraterrasobaságuasepossuirodonodacabeçadele,seumettet.EleviraumaescravasetornarPapaGede, o pai da morte. A voz dela ficou grave e ela bebeu uma garrafa deaguardente,entãocuspiufogo.Foiimpressionante,maseranãomenosqueumapantomimadaquiloali.ToussaintolhouparaBoukman.Elerealmenteacreditanisso?,perguntou-se.
Ou ele pretende apenas mostrar a possessão por Ogou nele mesmo,consolidandoassimsualiderança?Ainda refletia quando algo puxou sua espinha nas duas pontas e a esticou
comoumacordadepiano,fazendocomquesuacabeçafossejogadaparatráseseus dentes mordessem a língua. A boca encheu-se de sangue, mas ele nãoconseguiasentirogostoenãohaviador.Estava levementeconscientedaescuridãoque lhe tomava,edosangueeda
salivaespirrandodeseuslábios.Como se estivesse dentro d’água, ouviu o houngan cantando com mais
insistênciaagora.
OgouBadagry,c’estnegpolitique,yo!Alalila,oh,cordecoupecorde,oh!Oumaîtallè,oumaîttourneyOgouBadagry,c’estlaliye!Ogouestáaqui,Toussaintentendeu.Omestrevoltou.Onde?,elepensava.OndeestáOgou?Toussaint sentiu algo quente no seu braço. Poderia ter sido um fósforo, ou
poderiatersidoumaárvorequeimando,maseleparecianãotersensodaformadascoisas,nemmaisdaextensãodeseuprópriocorpo.Suacabeçaestavanoscéus e ospésnomar, sobomundo.Aomesmo tempo, estavado tamanhodeuma barata, olhando para o mundo através de lentes refratárias, uma criaturamínima cercada por gigantes. Tentou se virar, mas conseguia apenas rolar osolhosparaolado.Boukmanestavasorrindoparaele,sorrindoesorrindo,eToussaintconseguia
verocrânioporbaixodapele.Entãoalgoestalou,eele…
AGORA
Na escuridão, não consigo dizer quando estou sonhando ou apenaspensando.Ouçoamãomortaaomeu lado raspando, raspandoochão.Porummomento,ficoassustado.Então,eupenso,bem,aomenosnãoestousozinho.Maseuperceboque,talvez,sejaapenasoratovoltandopararoerocadáverde
novo.Vejopessoasvindoatravésdasparedes,abrindooconcretocomasmãosnuas,
vindome resgatar.Não tenho certeza se são reais, porque eu as vejo, e não épossívelvernenhumacoisarealaqui—estáescurodemais.Maselasparecemreais,comsuasmãosforteserostossorridentes.Estoualucinando,seidisso.Estou?Estouvendoumamerdaquenãoestáaqui.
Játomeidrogas—todomundotomanoSite—,entãoseicomoé.Seráqueeuatésonheicomaquelaspessoaschamando?Minhabocaficouenormedenovo.Horasoudiasatráseupreciseimijar,eeu
pegueiolíquidocomasmãos,omáximoquepude,ebebi.Ai,manman.Olhepramimagora.Vocêmedisse que eu conseguiria o que
viriademim.Emalgummomento,fechomeusolhos.Derepente,estouflutuando,atravesso
otetomeiocaído,acarnedeconcretodoprédiopresanoesqueletodevigasdeaço,eentãomaisalémpousosobreopisodemetalecorposretorcidos,esigoparaocéu.Estáclaroaquifora.Possoverohospitalembaixodemim.Estátãoquebrado que nem parece feito pelo homem; é apenas uma pilha de blocosaleatórios.Estounasnuvens.Acho,vaiverquesoumágico,vaiveraindasouMarassa,
mesmoqueminhairmãtenhasumido.NoSite,desdequenascemos,aspessoasdiziam que a gente era especial. Diziam que éramos Marassa, e aquilo davapoderespragentemudaromundo.DiziamqueAristidenos trouxepravida,e
assimoespíritodopovoedarevoluçãoestavaemnós.Mesmo depois que Marguerite foi levada de nós, as pessoas diziam essas
coisas.DiziamqueDreadWilmètinhamorridopraprotegerminhavida,entãotodaaquelarebeliãoficouaindamaisforte,comoquandovocêbotacarbononoferroeissofazcomqueelefiquemaisduro,fazeleviraraço.Algunsatédiziamque Dread Wilmè vivia dentro de mim e me olhavam de um jeito estranhoquandoeudesciaarua.Pensava que isso era estupidez,mas agora eu acho que talvez não seja tão
estúpidoassim.PossoverPortoPríncipeinteira—opalácio,ascasasdosricos,aprisãoacéu
abertodoSiteSolèy.Tudoestáem ruínas.Opalácioé sópoeiraeentulho, ascasasestãodestruídas.ApenasSiteSolèypareceigual,eissoporqueSiteSolèysemprefoiumaruína,desdeoinício.Tem uma gaivota domeu lado nas nuvens. Elame olha, inclina-se e grita.
Possoverosaviõescirculandosobreoaeroporto,eoshelicópterosvoandopraláepracásobreacidade.Temgenterastejandosobreohospitaldetonadoembaixodemim,comopequenasformigasdecapacete.Terremoto,eupenso,porqueéaúnicacoisaquepoderiaesmagartudodesse
jeito.Quandoéramospequenos,minhairmãeeu,fazíamoscidadesdelamanassarjetasdeSiteSolèy,eentãodizíamosqueéramosdinossaurosouterremotosepisávamosnessascidadesatéviraremnada.Masadevastaçãoqueeuvianaminhacabeçanuncachegoupertodisso.De
cima,oHaitiparecevarridodaTerraporumdeusfurioso.TalvezDreadWilmètenhavirado zumbi, e voltouparapunir a terra e balançou tudo com fúria atéderrubar.Ficopensandosepossovoar,e tentome inclinarnadireçãodopaláciopara
darumaolhada.Maseunãopossomemoverparaondeeuquero.Derepente,estou subindo de novo, subindo entre as nuvens, e então atravessando elas, écomoseacidadeassoladanuncativesseestadolá;estounocéuazul-clarosobreasnuvensmaciaseissovaiatéoinfinito.
Então, começo a descer muito rápido. É noite agora, parece estranho e aomesmotemponãoéestranho.Devotervoadomuitoacimadasnuvens,porquenãoestousobreacidadetambém;olhoparabaixo,paraopântano,densocomasárvores.Nãohá luzeselétricas,maspossoveruma luzvacilante,avermelhadadooutroladodasárvores,tremelicandocomoáguacomsangue,quedeveserdetochasouvelas.Minhavelocidadeaumenta.Atravessoascopasdasárvoresagoraevejoque
temgentealiembaixo;estãoempénumcírculoeolhandocommuitaatençãopara um homem que está dançando e cantando como um maluco. Elas sedesviamdeleeolhamparaoutrohomem—eleégrandeealtoefeiosodemais,seu nariz émeio achatado e inchado. Ele está se curvando pra trás, gritando,parece que pra mim, olhando direto pra mim, enquanto eu despencorapidamente.Sótenhotempodeverqueeleestáespumandopelaboca—estátendoum tipodeconvulsão—,entãoabocadele está ficandomaior emaior,como aminha quando fiquei commuita sede, e a boca dele engole omundo,comoaminhafez,temomundodentrodosseusdentestortoseescurecidos,suasgengivasdoentes,eestoudentrodelaeafundando,afundandonaescuridão.
OUTRORA
ToussaintolhouparaafeiçãopreocupadadeBoukmanetentouentendero que estava errado. Levou um tempo para discernir que o ângulo entre seusolhoseorostodohomemeradistorcido—queeleestava,defato,deitadodecostas,esticado.LevantouamãopedindoajudaeBoukmanaagarrou,fazendo-oficarempé.—Vocêfoioescolhido—Boukmandisse.—Pardon?—Toussaintfalou.Elenãotinhacertezadecomoacabounochão,masagoraqueestavaempé
novamentedescobriuqueolhavaaoredorcomumaespéciedesatisfaçãoealgode tranquilidade. Sentiu como pertencia àquele lugar, como se ficasseconfortávelaofalarcomqualquerdaquelaspessoas,comosefossesua terra,eela seguraria seus pés, não importava o que tentasse atrapalhar seu equilíbrio.Issoécomum,nãoé?Teveaestranhasensaçãodequesempreforaincompletoatéaqueleexatomomento.Lembrou-se, antesdaquele instante, de sentir-se sempredo ladode foradas
coisas.Aomesmotempo,pareciaparaelequeselembravadetersidojovemenervoso, e machucar muitas pessoas, e isso era estranho, porque nuncamachucou ninguém na vida. Imagens atemorizantes passavam diante dos seusolhos:umacoisacurvadademetalevidrosobrerodaspassandoporumaestradaestranhamente suave e escura entre cabanas, antes de explodir em um flashbranco e quente, pessoas gritando, pulando para fora do caminho; jovens emroupasbizarrascomobjetosnasmãosquepoderiamserarmassenãofossemtãocompactasedeaparênciaestranha;umacoisagrandeevoadora,pairandocomouminsetoimenso,cuspindofogodedentrodela,todooaparelhorugindo.Enquanto via essa coisa, uma palavra estrangeira ecoou nas reentrâncias de
suamente,umapalavraquenãoseadequavaemnadaaoseuléxicomental,não
significavanadaparaele.Helicóptero.Elepôsamãonatesta.Viu muitas pessoas mortas numa rua enlameada, queimadas e sangrando.
Estavaolhandopara elas e sabiaque erapor sua culpaque estavammortas, etinhaconsciênciadequenasuamãohaviaoutradaquelasarmasincomuns.Todoessetempo,eleaindaestavaemBoisCaiman.Teve uma convicção repentina e ampla, algo que o atingiu com a força da
experiência vivida, de que a vingança apenas levaria à dor. Isso também eraestranho, pois nunca se vingara de ninguémna vida.Mas suamente estava…diferenteagora.Sentiu-seaomesmotemposábioeesperançosoevulnerável.Doía,maseraextraordinário.Toussaint balançou a cabeça. Olhou ao redor e viu os escravos reunidos o
observando,atônitos.Antes,teriarecuado,masagoraentendia—estavainteiroagora,eprecisavaliderá-los.Porquê?,eleseperguntava.Porquetu?Tensmaisdecinquentaanos.Porque,elerespondeuasimesmo,elesestãoserebelandoapenasparaferir
osbrancos.Estãofazendoissoporvingança,nãopelaliberdade,eissomataráa revolução deles antesmesmo de ela nascer, como umamãe escrava que seviolenta para destruir seu bebêmulatno ventre, o fruto do estupromorto nogalhoantesdepodercair.Perguntava-se por que ele estava se rebelando,mas já sabia a resposta. Ele
mesmoeralivre—tãolivrequantoprecisavaser,dequalquerforma.Gostavadoemprego satisfatório e vivia com o filho, Isaac, numa cabana com horta nofundo.Mas os outros não eram livres. Todos os dias os via sendo vendidos etrocadoseestupradoseassassinados.Agora tentaria parar essa propriedade de pessoas e as maldades que isso
engendrava. De alguma forma— talvez tenha sido algo que Boukman disse,talvezacerimônia—elesabiaqueconseguiria.Boukmanaproximou-seesussurrouparaele.—Eutedisse.AgoraésOgou,enosfaráfortes.—Não—disseToussaint.—Ogounão.Outracoisa.
Boukmanolhou,perturbado.—Tenscerteza?Toussaint concordou com a cabeça. Boukman baixou sua cabeça,
decepcionado.—Estoutão…Toussaintsorriu.—Nãodissequenãofaria.Virou-separaosnegrosaoredor,todoselesarmadoscomasmelhoresarmas
nasquaiselespuderambotarasmãos—facasefacõesepás.—Hojeànoitenoslevantaremos!—elegritou.Porummomento,entendeuqueeraacoisacertaadizer,masapenasporum
momento—aúnicacoisaquepoderiadizerestavadiantedesuamente.Eraumamentira,masumamentirasincera.Cinquentarostos,talvezmais,encaravam-noapartirdaescuridão.— Ogou Badagry está dentro de mim! — ele gritou. — Ele me diz que
venceremosestaguerra!Seremoslivres!Os escravos reunidos e os negros livres gritaram sua aprovação, mesmo
quandoBoukmanolhouparaelecomo rosto franzido.Toussainto ignorou—explicariatudomaistarde,quandoanoiteacabasse.Bomdeus,assiméopoder.Caminhou até onde um cavalo estava amarrado a uma árvore. Não era seu
cavalo,masnãoimportava.Desamarrouoanimalemontou-onumsalto,facãonamão.—Matemqualquerumqueresistir—elegritou.—Masapenaseles.Seum
brancobaixaraguarda,dêaelepassagemsegura.Deixe-oiratéPortoPríncipeedizeràspessoasquesomoslivresagora.Deixe-oiratéaFrançaedizeraorei.Quandovirouocavaloprontoparadirigir-seàsuafazenda,pensouemoutra
coisa.—Nãodestruamaspropriedades—elegritou.—Esta terra seránossaem
breve,eprecisamosviverdela.
Então, Toussaint girou o cavalo e chutou seus flancos com os calcanhares,seguindo na direção das árvores. Os galhos pareciam esticar-se para ele,agarrando-o.Sombrasselvagensmoviam-se,dançandoaovento,enquantoaluase sustentava, inchada, sobre ele. Tinha ciência das pessoas que o seguiam,algumasapéealgumasacavalo;conseguiaouviroestampidodepésecascosno solo denso, argiloso. A luz das tochas tremulava. Formas erguiam-se dopântanonos dois lados da senda.Ele esperava que fossemapenasmadeiras, enãocrocodilos.Cerrando os dentes, esporou o cavalo ainda mais, deixando o som dos
seguidoresparatrás.AssimqueentrounaestradaparaafazendadeLibertas,começouapassarpor
pequenosgruposdepessoas.Boukmanjáreuniraosmaiscapazesdeinfluenciaras massas, mas todos os escravos sabiam que algo importante estavaacontecendonaquelanoiteemBoisCaiman,esereuniam,agitados.Toussaint observou um grupo descendo um negro enforcado numa árvore.
Cavalgavacomnervosismo.NãosouumlídercomoBoukman,elepensou.Aindanão.Ficouapavorado.EstavaaumadistânciadepoucasmilhasentreBoisCaiman
esuacasa,maseraumnegronumcavaloànoite.Sehouvessealgumsenhordeescravo ou milícia nas ruas a essa hora da noite, eles o prenderiamimediatamente.Todos aqueles escravos que estavam na cerimônia seguiam para locais
diversos.Elesseespalhariamealgunsdelesmorreriam,masessaseriaapenasaprimeira investida da sua guerra. Precisavam se unir e formar uma forçamaiscoesasequisessemarrebataropaís.Eleprecisariauni-los.Haviatempoparatanto,eeleconseguiraumavantagemagora,poissabiaque
a história do que acontecera emBois Caiman, de como ele fora possuído, seespalharia rapidamente, e em breve muitos saberiam seu nome. Poderia usaraquelerelatoparareunirosescravos,convencê-losdeque,casoseunissemsobseucomando,elelhesdariasualiberdade.
No entanto, precisava primeiro chegar à fazenda antes dos outros escravos.Dissera a eles para matar apenas os que resistissem, e quem podia dizer queBayou deLibertas não resistiria?O senhor deToussaint era umbomhomem,maseraorgulhoso também, e tinhaumaesposa e filhas.Tinha livros epossesqueamava,osquais semdúvidaelemorreriaparaproteger,pormaisestúpidoqueToussaintachasseessesentimento.Quando virou uma esquina que circundava um monte baixo, homens que
estavamsentadosnagrama ficaramempédepronto,gritando.Nãoconseguiadizer no escuro se eram negros ou brancos, então se agarrou ao cavalo,mantendoseuperfilabaixado.Houveumestrondoeeleviuapoeirapróximadoscascos do cavalo levantada por uma bala. Praguejando, apertou o cavalo comaindamaisforça,perguntando-seseconseguiriachegarlá.Quando atravessou osmilharais que pertenciam ao condeVendoux, viu um
negro lá, uma sombra na escuridão, ateando fogo no milho. Toussaint parou,desceu do cavalo, e lançou sua capa sobre as chamas — pequenas naquelemomento, mas vorazes e devoradoras. Quando o tecido grosso pousou sobreelas,apagaram-se,eafumaçaamargasubiunumacoluna.O escravo o empurrou. Toussaint observou que tinha um nariz chato,
deformado em alguns pontos.Quebrado em algummomento numa briga comoutroescravoou,maisprovavelmente,porseusenhor.—Por que fizeste isso?—o homemperguntou.—Meu sangue alimentou
estemilho.Nossosangue.Tenhoquequeimá-loparaserlivre.—Apenasosanguevaitealimentarsefizeresisso.Oescravoolhouparaelesementender.—Quandoopaísfornosso—disseToussaint—,quevaiscomer?Setiveres
queimadoomilho,oquevaitesustentar?Um tremeluzir de compreensão cruzou o rosto do homem, e ele baixou a
tocha,triste.— Terás soldados — disse Toussaint. — Do comissariado, talvez até da
França.Seriamelhorquetuqueimassesaelesdoquequeimarnossaherança.
Semolharpara trás,montounovamenteocavaloeoesporounadireçãodafazenda.A revolução espalhava-semais rápido do que ele esperava— estavasurpreso,naverdade.CavalgoufortedeBoisCaimane,aindaassim,pareciaqueaschamasdarebeliãohaviamseespalhadomaisrápidoeprecisariadeumacapamaiordoqueToussaintpoderiacosturarparaapagá-las.Sabiaquearebeliãoeraumaideiaqueseenraizara,espalhandosuassementespelosolodeformamaisirreversíveldoquequalquerervadaninha.Aideiaforasemeadaemsolofértile,assim que a semente é plantada, nem sempre poderá ser controlada,especialmente quando essa semente é o fogo. Toussaint vira incêndios deflorestas nas montanhas; começavam pequenos, mas tinham o potencial deconsumirtudo.Aironiaeraqueessaideia,comosuaescravidão,veiodaEuropa— fora concebida por aqueles revolucionários na França que se declararamlivreseclamarampeladissoluçãodamonarquia.Quandofinalmenteseaproximoudafazenda,aauroracomeçavaa irromper.
Ospássaroscantavamnasárvoresao redor.Eleviuamanchaavermelhadadosolnascentenasmontanhasdoleste,epartedeleviucomosangue,eoutraparteviucomoumrecomeço.Cruzou a entrada da fazenda aliviado em ver que não havia ninguém
enforcado,penduradoemposte.Osoutrosescravosestavamcirculandonopátio,comoseesperasseminstruções.Olharamparaelenumamisturadeansiedadeeexpectativa. Já o respeitavam, ele sabia. Cuidou da maioria deles quandoficavam doentes ou se feriam; contava histórias a eles. Em alguns dos rostosmaisjovens,contudo,eleviualgo,umaespéciedeentusiasmoqueoperturbou.Reconheceucomosededesangue.Buscouseufilhonamultidão,masogarotonão apareceu entre eles. Bom, ele pensou. Esperava que Isaac tivessepermanecidodentrodacabana,conformeele instruiu.OfilhodeToussainteraum jovem sensível, embora fosse quase um homem, e não do tipo que seenvolveriaemviolência.—Bayouestáládentro—disseumdeles.Toussaintnãoconheciaohomem,pensoutalvezquetivessevindodeumdos
sítiosvizinhos.Apontavaparaaportadacasa.—Vamosarrancá-lodelá—disseoutro.—Fazercomqueelepague.Toussaintergueuamão.—Bayounos tratoucomjustiça—eledisse.—Vamosdaraelepassagem
livreparaoCaboHaitiano.—Porquê?—quis saberumamulher.—Hojeànoiteosbrancos têmque
morrer.— Não. Hoje à noite os negros se erguerão — disse Toussaint. — E os
brancos fugirão, se tiverem juízo. Se matarmos aqueles que se renderem,seremospioresqueeles.Elesentiuahesitaçãodosoutrosedominou-a.—Esperempormim—eledisse.—Armem-se.Procuremoscomissários,os
vigilantesbrancos,masnãolevantemasarmasparamatarumvelho.Emsilêncio,dandodeombros,elesodeixaramentrarnacasa.BayoudeLibertasaindaestavanacama.Toussaintabriuaportasembatere
ajoelhou-se ao lado da cama, esforçando-se para esconder o facão. Mesmoassim, quando tocou o ombro do senhor e De Libertas acordou, olhou paraToussaintcominquietação.—Oquefoi?Sãoosmulats?A tentativa de rebelião pelosmulats e sua supressão brutal tinhamocorrido
apenas ummês antes. Ficou confinada às cidades, no entanto, onde osmulatsricos viviam, gastando o dinheiro de seus pais com putas descendentes dalinhagemdesuasmãeseemvinhoscultivadospelosantepassadosfranceses.Arebeliãodosmulatsnuncachegouaointerior.—Não—eledisse.—Não,Bayou.Sãoosnegros.DeLibertasencolheu-sedele,eToussaintsentiuocoraçãodeleendurecer.Ele suspeita demim, Toussaint pensou.Após tudo o que aconteceu, eleme
olhaevêumanimal.Com esforço, Toussaint se recompôs.MadameDeLibertas estava acordada
também,eobservavaaoredoralarmada.
—Não quero lhes causar nenhummal— disse Toussaint.— Foram bonscomigo.Maspreciso ir embora.Agora.Dizei a qualquerumque encontrardesquemelibertastes,quevossasterraspertencemaosescravosqueacultivam.Bayou de Libertas concordou com a cabeça— sempre fora um homem de
raciocíniorápido.Elesaiudacamacomgorroecamisoladedormir,eseguiuatéoaparador.Começouapegarositensdasgavetas.—Émelhorqueosenhornãolevenada—disseToussaint.—Nemdinheiro
nemarmas.Assim,haverámenosmotivosparamataremosenhor.MadameDeLibertascomeçouachorareseumaridomandouquesecalasse.— Pegue as meninas— o senhor disse, embora não fosse senhor de nada
agora.—Toussaintvaiprepararacarruagem.MadameDeLibertasapressou-separaforadasala,masnãoantesdevirar-see
lançaraToussaintumolhardemedoesuspeita,uminsultoquenãoprecisavadepalavrasparadesferirseugolpe.—Pegueoscavalos—disseToussaint.—Umacarruagemserálentademais.DeLibertascontinuouaarrumarositensnoaparador,pegandoumapenade
umacaixadepapeldecartademadeira,mergulhando-anotinteiroembutido—quantasvezesToussainttrocouaquelatinta!—ecurvando-separarabiscaralgonumafolhadepapel.—Não te preocupes, não levarei nada— ele disse, percebendo o olhar de
impaciênciadeToussaint.Entregou o papel a Toussaint antes de sair apressado da sala. Toussaint
começouadobrá-lo,enfiou-onobolsoparaBoukmanlermaistarde.Mas,parasuasurpresa,osgarranchospretospularamdopapelparasuamenteeformaramaspalavrasládentro.Eleasolhou,descrente.Maseunãopossoler!,elepensou.Aindaassim,opapeloferecia-seaeleerevelouseusignificado.Pousou a mão no coração, sentindo-o bater com selvageria. A sala inteira
parecia flutuar, respirar.Émagia?O que aconteceu comigo naquela clareira?Sentia-seaomesmotempoelemesmoeoutro.Nãoeraumfato—fatoinegável—queelenão sabia ler?E, aindaassim, aqui estavaele, olhandopara aquele
pedaço de papel, apreendendo as palavras escritas nele. Sentiu que poderiadesmaiareequilibrou-seagarrandoocantodoaparador.Encarava,boquiaberto,opapel.
Eu,BayoudeLibertas,estandoemplenojuízoeboasaúde,nesteatodeclaroquemeumestre cavalariço, que atende pelo nomedeToussaint, está, a partirdestanoitede8deagostode1791,livre.Favorconceder-lhetodososdireitoseprivilégiosdeumsúditodaFrança.
Estupefato,Toussaint virou-separa aporta, opapel farfalhandona suamãotrêmula.—Osenhornãopodedeclararisso—eledisse.De Libertas já desaparecera nas câmaras escuras da casa, assim, Toussaint
falouparaamadeiradaportaecomospregosdeferro.—Osenhornãopodedeclararisso,porquejáestoulivre.Nãomesubmetoa
ninguém,nemàFrançanemaoutrem.Eleficouparadoporummomento.Parecia,deformatãocatastrófica,queseu
antigosenhorhaviaentendidomalaenormidadedoqueestavaacontecendo,eToussaintquasesentiupenadele.Setivessessidolivre,eentãofossescapturadoe levado para outro país, então entenderias que as coisas podem mudar delugar.Sesempretiveressidoosenhor,estavisãoseráimpossívelparati.Apenasaíhouveumgrandeestrondodoandardebaixo.Toussaint foi atéa
janelaeviumaisescravosreunidoslá,armasnasmãos,aluacheiarefletidaemsuaslâminas.Apressando-se até a porta, ele parou e virou-se para o aparador. Abriu a
prancha de escrita, passou os dedos por baixo para encontrar o ferrolhoescondidoeliberouagavetaquecontinhaapistola.EstavacertoqueDeLibertasnãopercebeuqueelesabiadesselocalsecreto,masumbomescravoconheceseusenhor.Verificouseapistolaestavacarregadacombalaepólvora,entãovoltouaoseucaminhoparaforadocorredor.
De Libertas estava descendo as escadas às pressas, ofegante, uma criançaembaixodoseubraço.Ficouboquiabertoquandoviuaarmaeofacãonasmãosdoescravo.—Toussaint,não…Tumesmodissestequeeutinhasidobomparati.—Fiquequieto—disseToussaint.—Mesiga.Finjaobediência.Dominado,
se seuorgulhopuder aguentar.Este país serámeu,mas, comoo senhor disse,sempremetratoubem.Voutirarosenhordaquivivoantesdoderramamentodesangue.DeLibertasempalideceuquandoouviuumsomdeestilhaçosvindodebaixo,
eumgritode triunfodamultidão.Omedo retorcia-senabarrigadeToussaintcomoumacobra.EsperavaqueIsaacestivesseseguro;esperavatambémqueseufilho não tivesse se juntado àmultidão enfurecida.Não veria seu filhomorto,mastambémnãooveriamatar.Assimqueeupuder,elepensou,voumandarIsaacemboradaqui.—São teus irmãos—DeLibertasdisse,apontandoparaaporta.—Vão te
matarseresistiresaeles.Toussaintsorriu.—Não—elefalou.—Estenãoéomeudestino.
AGORA
Acordoeabroosolhos.E,porummomento,entroempânico.Estoucego.Então,lembrodaescuridão.Éestranho,masficamaisescurocommeusolhos
abertos.Quandoestãofechados,vejoopulsareorodopiardosangue,fogosdeartifíciosobreassobrancelhas,e lembrodaquele tempo,quandoficavadeitadoao sol com os olhos fechados, com Tintin por perto, flutuando na piscina dohomemrico,chapadodebebidaroubada.Sóqueaqui,nohospital,nãoexistesol.Aqui,quandomeusolhosestãoabertos,nãovejonada.Aferidanomeubraçocoça.Estoucomsedenovamente;minhabocaestáme
consumindo. Pensar na minha boca me dá uma sensação estranha, e eu melembro que tive anpil sonhos quando estava dormindo, sonhos curiosos nosquais eu era Toussaint l’Ouverture e cavalgava e carregava facões e outrasmerdas estranhas. Penso no DreadWilmè, porque foi ele quem primeiro mefalou sobreToussaint, oherói que libertouos escravos e fezdoHaiti umpaísindependente.EleeraoheróideBiggietambém.AmavaToussaintatémaisdoqueDread—nãoparavadefalarnele.BiggieeraogeneraldaRoute9antesdeserobraçodireitodeDreadWilmèe
um cachorro grande no Site. Fez toda as porcarias que o governo deveria terfeito nas favelas. Fundou escolas, trouxe segurança. Punia ladrões eestupradores.Vendiadrogasematavagente.Fezdemimoquesouhoje.Nãooperdoeiporisso,aindanão.MasBiggieconheciaToussainttambémerecitavabobagenssobreeleotempo
todo. É por causa disso, eu acho. É porque Biggie me contou a história de
Toussaint, épor issoqueestou sonhandocomele.Masnãoestouconvencido.Conheço os sonhos, e aquilo não parecia um e, de qualquer jeito, haviamaisdetalhes naquele sonho que Biggie nunca me contou. Penso no cheiro dequeimado daquele milho, no fogo que apaguei com meu casaco, o som daspessoascortandoumaportacommachados,easensaçãodapistolacomtoquedemarfimnamão.Não, eu acho.Só estou ficandomaluco, é isso.É a escuridão eo cheiroda
morte.Mouripourri,euacho.Então,dourisada.Achoqueapiorcoisaseriasobreviver.Agoraperceboqueapiorcoisaseria
sobreviver,masnãosermaiseumesmo.Seeusairmalucodohospital,entãonãotereisobrevividodeverdade:morrievolteicomozumbi.Nãoenlouqueça,eupensocomigomesmo.Issomefazdarrisadadenovo.Beliscomeubraço,ondeabalaentrou,eisso
mefazgritar.—Nãoenlouqueça—eudigo.Bom.Aindaconsigofalar.Vidoishomensmortosnaminhafrentequandotinhaonzeanos,emeupapa
foioprimeiro.Fazmuitotempo—2003,dia10defevereiro.Tinhaoitoanos.Foi,tipo,umanodepoisdeeueMargueriteacharmosobebê.Papa era pescador, você poderia dizer— ele dividia um barco com outro
homemdoSite.Rendiapiti-pitidinheiro,masosuficienteparanosmandarpraumaescolapequena.Naquela época, digo, em 2003, Dread Wilmè era o chefe do Site. Dread
Wilmè era um homem grande e forte com dreads que caíam nos ombros. SeDreadWilmèpegasseumhomemroubando,cortavaamãodelefora.Sepegasseumhomemestuprando,ele…Vocêentendeu.Dread Wilmè era um velho chimère, um traficante que tinha ficado tão
poderoso que era como um prefeito — numa parte do Site, ao menos. Mas
conseguia armas e algum dinheiro deAristide para proteger os apoiadores doLavalas, ou seja, na verdade quem estava à frente doSite eraAristide;DreadWilmè era apenas alguém que fazia o trabalho deAristide, quemantinha seupovo seguro.Sóqueninguém tinha emprego e ninguém tinhadinheiro.Haviarebeldesquetentavamcombaterogovernoeassassinarpessoas.AmaioriadelesmoravanoSite.Assim,AristidedavaarmasedinheiroproDreadWilmèmontarseuexércitoparticularemanterocontroledafavela.Masnofimeleconseguiucontrolarapenasmetadedela—aoutrametadeera
controlada pelos rebeldes que viviamna parte do Site chamadaBoston.Essasduasgangues,adoDreadWilmèeadosrebeldes,elassemprelutavam,viviamatirando uma na outra. Ao mesmo tempo, os attachés vinham até o Site ematavamaspessoas.Dread Wilmè começou como chimère e terminou como um deles. Mas
construiuescolas também.Pagavaparaaspessoas iremaomédico.Nadaé tãosimples como parece, você vai ver.Mas o certo era quemanman epapa nãoconcordavam sobre Aristide. Papa não gostava dele — pensava que era tãoladrãoquantoosfranceseseosamericanosqueeleodiavatanto.Euouviaelesbrigarem sobre isso, e sempre tentava impedir, porque não entendia nada deverdade,anãoserqueestavambravos.Nasemanaantesdeopapaserassassinado,houveumagrandebrigaentreele
emanman.EraporminhacausaeporcausadaMarguerite.Digo,nãoeranossaculpa, mas foi por causa de algo que manman fazia conosco e que papadescobriu.Naverdade,eraalgoqueelaestavafazendohaviaalgumtempo.Sóquepapanãosabia.Atéaqueledia.Atéasemanaantesdeelemorrer.Nãoseisemanmanseperdoouporaquilo.OfatoéqueDreadWilmèestavafazendomuitonoSitedojeitoquemanman
via.Pagavapraspessoasiremprohospital,reformavacasas,apoiavaasescolas.Porisso,conseguiualgumdinheirodoLavalas,masmanmansentiaquenãoera
suficiente.Eunãoentendiamuitodequalquercoisanaquelaépoca,vocêsabe.Maistarde,entendi.De qualquer jeito, manman descobriu um jeito de levantar dinheiro pro
Lavalas,praDreadWilmè.ÉaíqueeueMargueriteentramos.Naqueledia, agenteestavanumagaleriaprofundaemSolèy19,longedeondemorávamos.EraondeopoderdeDreadWilmèeramaisforte.Amambo,umasacerdotisavodu,conduziaacerimônia.ElainvocouPapaLegbaparaabrirosportões,onormal.Não era a primeira vez que Marguerite e eu participávamos desse tipo decerimônia, então não ouvíamos de verdade. O lugar era um porão e era deconcreto e cinzento, cheio de fumaça cinza. Era como um mundo sem cornenhuma.Emtodasasparedesaoredorhaviagente,gângsteresdeverdade,eraóbviopramim,masmanmannemligava.Todoselescantavamcomamambo—DreadWilmètambém.Eu e Marguerite nos sentamos no meio. Éramos especiais. Éramos como
mascotes do Lavalas, sabe? Nascemos pelas mãos de Aristide, o herói dopartido.ÉramosMarassa.Podíamosfazermaji,encantamentos.O porão era pequeno. Havia muita gente espremida ali: jovens, velhos,
gângsteresenãogângsteres.Asala,elapareciadiminuir,eaumentar,eseenchiacomumbarulhode trovão.Depoisdeumtempo,sentimosaatmosferamudar.Tínhamossentidoaquiloantes; sabíamosoqueera.Eracomoumformigarnapele.Então,todosestavamolhandopragenteatravésdafumaça,esabíamosqueos Marassa estavam vindo. A gente olhava para a mambo e via que eladesenhavaovevedosMarassanochãocomgiz.Digoqueagenteolhava,masnãodigoqueachavaqueMargueriteestivesseolhandotambém.Digoporqueeusei. Tudo que fazíamos naqueles dias, fazíamos juntos. Olhei para o veve.SignificaqueMargueriteolhoutambém.Éramosgêmeos.Éramosumaalmadivididaaomeio.Devoltaàqueledia,manmandissequepegariamduasgalinhasecortariamo
pescoçodelas,umpresenteparaosMarassa,opwenparaagradar-lhes.Masaspessoas não faziam aquele tipo de coisamais, nemmesmoDreadWilmè, que
amavaoantigovodu.Emvezdisso,umacriançamagrelaveioaténóscomumlale, um tipo de cesto, e nele estavam todos aqueles doces e chocolates eporcarias como essas, que a gente amaria comer, mas sabíamos que não eraassimquefuncionava.Éramosespertos,eueMarguerite,agentenãoprecisavaaprenderamesmaliçãoduasvezes.Não.Não tentamospegar os doces.Apenas concordamos coma cabeça pra
criança, e ela deu a volta na galeria, espalhando-os pelo chão. Havia algunsbrinquedostambém,porqueosMarassaamambrinquedos—coisasdeplástico,bonecos, como defuntos pequeninos. Mesmo assim, eu teria gostado deles.Nunca tive nenhumbrinquedo; nunca tinha visto umbrinquedo até a primeiravezquemanman levou a gente até a galeria.Mas eu sabia que não eram pramim; eram pra nós. Éramos Marassa, mas não éramos os Marassa. Mesmonaquela idade, entendíamos que éramos apenas uma porta. Um canal. Umajanela.Acantigacomeçava.MarassaSimbi,Mwenengagedanpays-a,MarassaGuinin,MarassalaCôte,Mwenengagedanpays-a!EraumacantigaparaosMarassadaÁfrica.Elaosinvocava;diziaaelesqueo
povo amava oHaiti, e eles sabiam que osMarassa amavam oHaiti também.Vocêsabequeeunãoacreditonessascoisas—játedisseisso—mas,quandovocêestánum lugarescuroeamambo está cantando, é algopoderoso, até eutenhoqueadmitirisso.Acantigaficavacadavezmaisalta.Eu e Marguerite, nós sabíamos o que tínhamos que fazer. Fizemos juntos,
comotudoquefazíamos.Seolhasseparanós,veriaumapessoanumespelho—alguémrefletidoemduaspessoas.Estávamosemsincronia,comoostambores,cara.Começamosa sacudir, então ficamosduroseestranhos;praqualquerumque olhasse pra nós, parecia que estávamos possuídos. Era um truque que
sabíamoscomofazer.Então,respondemoscantando:MwenreleMarassa,Mwenengagedanpays-a.MeunomeéMarassa.Euamoessepaístambém.Ao nosso redor, todos ficavam loucos. Gritavam e cantavam e jogavam os
docesnoar,epensei, joguemumdessesdocespracá.EnaquelemomentoeupodiadizerissoporqueeueraMarassa,eMarassapodiafazertudooquequeria.Olheiparamanman.Sabiaqueelaficariabrava,masnãomeimportei.—Dádoce—nósdizíamos,porqueeutinhacertezadequeMargueriteestava
pensandoamesmacoisa.—Dábrinquedo.As pessoas começaram a fuçar o chão, pegando todas aquelas coisas que a
criança tinhaacabadode jogarali.Levavampranós.E,quandocolocaramemnossocolo,colocavamdinheiro também,àsvezesfaziamperguntas.Eradifícilouvirever,comtodasaquelaspessoaseafumaça.Masfazíamosomelhor.—Vouterumbebê?—Sim.Sim,vai.Marassaabençoavocê.—VouvermeuNeresedenovo?—Quandoforahora,sim.Marassaabençoavocê.—Minhakaramelvaivoltarpramim?Elavaiabandonaromaridoevoltar
pramim?—Não.—Aristidevaificarnopoder?—Sim.Paraessapergunta,erasempresim.Sempre,semhesitação.Precisavadarotoquetambém,claro.Umabênçãonãoéumabênçãoseforsó
palavra,todomundosabedisso.Tinhadehaverumtoquecomela.Assim,cadapessoaquedeixavadinheiroagenteseguravaamãoeatocava,ounacabeçaseela estivesse ajoelhada, e eles ficavam com aquela expressão estúpida na caracomo se tivessem acabado de ver as nuvens se abrirem e os anjos caírem, ou
algumamerdaassim.Algumas delas, elas queriam apenas o toque. Sem perguntas; vinham
mancando, arrastando-se até, e esperavam pelo toque. Eume sentiameiomalcomessaspessoas.Davaparasaberquemeram:agentesabiaporqueelesnãotinhamosbraços,ouaspernas,eelesnosfitavamcomolhosvazios,outinhampedaçosdelesinchadoscomomelancias,oueramapenascinzentosemagros—e esses eram os piores. Não gostávamos de tocar neles. Mas tocávamos.Fazíamos porque diziam pra gente tocar, mas também porque era tudo o quepodíamosfazer.Sempredávamosaelesnossabênção.Bem.Quasesempre.E, no final, estávamos lá, com brinquedos e dinheiro e doces no colo. Era
como uma maldita festa, mas não conseguíamos aproveitar direito porquetínhamos que parecer sábios e mágicos e da velha África. Claro, às vezestínhamos de ser rudes, ou não faria sentido, porque é isso que as pessoasesperamdosMarassa—comolwa,osgêmeossãopoderosos,massãocrianças.Nãofazemtudotãobonzinhoelimpinhoeprevisível.—Meumaridoestámetraindo?—Claro.Vocêéfeia.Às vezes, e essa era a parte suja, a gente precisava virar as costas para os
doentes também. Marassa são como crianças: os gêmeos se viram contraalgumas pessoas, sem ser culpa delas, sem ser culpa dos lwa também. Eu eMarguerite,agenteodiavafazer isso.Escolhíamosantesdacerimônia—tipo,cadaterceirohomemagenteignora,o.k.?Àsvezes,aspessoaschoravam.Eraterrivelmentefoda.Assim,dequalquerforma, tudoerasempre igual.Manman,ela iaatéDread
Wilmèefalavacomele,easpessoascomeçavamaformarfila.Começávamos a juntar o dinheiro. O que acontecia era que dávamos esse
dinheiro ao Dread Wilmè. Com os doces a gente podia ficar. Não com osbrinquedos. Papa não podia ver os brinquedos, senão saberia o que a genteestavafazendo,emesmoassimagentenãoentendiadeverdade,sabíamosque
seriaruim.A luzdodiasempredesciaasescadasquandooalçapãoestavaaberto,ede
repentehaviaumacolunadeluznoporão,comosealguémtivesseescancaradooalçapão.E,naquelacolunadeluz,estavamosdegrausvacilantesdomundoláemcima.Papadesceuasescadas.Nãopareciaumdiaestranhoatéentão,masnaquele
momentoparecia.Éramosdoismentirosos,sentadoscomdocesnocoloquenãomerecíamos.EueMarguerite,nósolhamosprabaixo,envergonhados.—Venham—papadisse.—Agora.Avozdeleerafria,diferentedetudooquetinhaouvidoatéaquelemomento.
DreadWilmè andou até ele e começou a falar algo, mas papa virou-se, nemmesmo respondeu. Ele nos levantou do chão sem esforço, como se fôssemoscoisasleves.Osdocescaíram.Elenossacudiu,noscarregouatéasescadas.—Éparafazerobem…—manmancomeçouafalar.Papaergueuamão.—Elesnãosãomacacosdecirco—eledisse.Depois disso, houve muita frieza entremanman e papa. Não teve gritaria;
papa não gritava. Quando estava nervoso, ficava quieto e frio, como o marprofundo,eeraaindapior.EueMarguerite,agenteiabrincarnaruaquandodiscutiam,queécomoeles
chamavam quando brigavam. Primeiro, pensamos que a gente estavaencrencado,masnãopareciaqueeracomagente.Pareciaquemanmanestavaencrencada.Nãohaviaoutrascriançasemnossaruaprabrincarcomagente—ninguém
viviananossarua,nãomais.Éramosaúltimafamílianarua.DeumladoestavaBoston,quepertenciaaosrebeldes,edooutroladoestavaSolèy19,queeradeDreadWilmè.Maistarde,Solèy19setornouRoute9,porqueéonomedeumagranderodoviaqueaMinustahestavaconstruindodonossoladodoSitepranosjuntaraorestodoHaiti.Essaconstruçãojáduravaanos,eaindanãoestápronta.
Sejacomofor,aRoute9veiodepois.Porora,tudooquevocêprecisasaberéqueeueaminhafamília,nósvivíamosnumafaixanomeio,entreoterritóriodeDreadWilmèeodosrebeldes.Entende?Terradeninguém.Manmandiziaprapapaquedevíamosirembora,
maselenãoqueria.—Essaguerranãoénossa—eledizia.—Não somosanyen para eles.Se
formospraqualquerlugar,vamostomarumlado.Eelesvãomataragenteporisso.Pramim,achoquemanman teriagostadode irparao ladodosLavalas,pro
territóriodeDreadWilmè.Podiavercomoelaficavafelizquandoestávamoslá,fingindoserMarassa.Maseladeviaamaropapa,porquenuncapressionou.Então,nodiaemqueeuestavafalando,Margueriteeeuestávamosbrincando
sozinhos lá fora, enquanto manman e papa brigavam lá dentro. Às vezes,ouvíamosalgumacoisa.—Elessãosócrianças!—Vocêsestãoexplorandoosdoentes!Eu não entendia o que aquelas palavras significavam na época, não de
verdade. Mas agora entendo. E você sabe de uma coisa? Eu acho que papaestavaerrado.Um: não éramos apenas crianças. Não tem essa coisa de criança em Site
Solèy, apenas pessoas menores passando fome, apenas defuntos menores. Naestradapertodanossacasahaviaumnecrotério—MorguePrivée,diziaaplaca.Foi uma das primeiras coisas que aprendi a ler.Na placa, que na verdade eraapenas tinta na parede, havia uma garotinha também e, acima dela, um anjocarregando-aparaocéu.Épossívelpensarqueeraparamanipularaspessoas;achar que é, tipo, doentio.Mas não era. Era uma realidade. Não se levava omarido para o necrotério—ninguém tinha comopagar por isso, não é?Mas,quandoum filhomorria, entãodava-se um jeito de achar o dinheiro.Talvez afamíliaajudasse.Amenosquefosseumbebêindesejado.Entãoerasójogarnolixo.
Aquela placa não era para manipular as emoções. Era como uma placa deoficinamecânicacomumpneunelaparadizer“trocamospneus”.Emvezdisso,apenas dizia “cuidamos de seus filhos mortos”. E o Site era cheio de filhosmortos.Dois: explorarosdoentes?Nãoachonão.EueMarguerite comcertezanão
gostávamosdetocarneles.Mas,sevocêvisseaexpressãonorostodelesquandopensavamque estavam sendo abençoados, seu coração ficaria empedaços. Sealgumadessaspessoasnãoachavaqueestavacuradadepoisdeacreditarqueoslwadosgêmeosatocaram,eusouummicodecirco.Mas, voltando, não sabíamos de verdade o quepapa estava dizendo, e não
ligávamostambém.Jáficamosfelizespornãoestarmosencrencados.Tínhamosumjogo:darumpetelecoemtampinhasdegarrafaefazê-laspular
paradentrodeuma latade lixo.Eraumbomjogo.Tínhamoscinco tampasdegarrafa cada um e, se eu ganhasse, Marguerite tinha que ser minha escravadurante um dia e fazer tudo o que eu dissesse para ela. Eu podia sermau deverdade,masnuncafui.Seelaganhasse,oquenãoerararo,eutinhaqueserocavalodela,eelasentavanasminhascostasenquantoeuacarregavapela rua.Dissepraelaque issonãoera tãobomquanto terumescravo,maselaamavacavalos.Nuncatinhavistoum,masamavadomesmojeito.BiggienuncaviuumCadillacEscaladeouumagarrafadeCristal,mas isso
nãoimpediaqueelenãoparassedefazerrapscomeles.Sejacomofor,naquelaocasiãoeuperdi, entãoestavadequatro,Marguerite
gritandonasminhascostas,fingindomechicotearcomamãoerindo.De repente, veio um grito. Parecia manman. Eu tombei Marguerite e ela
despencounalama.—Quetáacontecendo?—elaperguntou.—Nãosei.Fiqueaqui.Corriparaacabanaemelanceiparadentro.Vihomensanpiljovenslá,com
bonésdebeisebolnacabeça.Estavamcomtacosdebeisebolefacões,etinhammáscarasnorosto,comobandis.
Manman estava encostada na parede da cabana, gritando, gritando.Umdoshomensmeagarrouemesegurou forte,meusbraçospresosao ladodocorpo.Eleme segurou pormuito tempo. Eu lutava e eleme bateu e omundo ficouescuro,enãoseiquantotempomaispassoudepoisdisso.Maishomensentraram,vindosdarua.—Agarota?—disseumdeles.—Estáfeito.— Não, não minha…— papa começou, mas um dos chimères chutou as
pernasdeledebaixoparacima,eelecaiudecostascomtudo.—Caleaboca—outrohomemdisse.Papaficoudejoelhosexingou.Foiaprimeiravezqueeuoouvixingar.—Deixeminhafamíliairembora—elefalou.Ochimèrequepareciasero lídersuspirou.Fezumpequenogestoeumdos
amigos golpeou papa com o facão, decepando-lhe o braço do cotovelo parabaixo. Simples assim. Depois disso, os outros começaram a cortar e estocartambém, e eu estava lutandonosbraçosdaquelequeme segurava, e ele ria, evoava sangue, e tinha rostos retorcidos para todo lado, e ruídos terríveis,molhados.No fim das contas, fechei os olhos. Acho que desmaiei. Lembro de ouvir
alguémfalar:—Eamulher?Eoutrohomemdisse:—Eledissequeelatemqueficarviva.Eooutrodisse:—Bem,sim,mas…Etodososamigosriram.Então,aescuridão.Viu?Eujáestivenaescuridãoantes,comcorpos.Conheçoestelugar.Ficome
perguntando se o hospital é apenas a cabana de novo, e talvez eu não tenhatomadoumabalanobraço,masnocoraçãoounacabeça,e tudo issoaquiéo
inferno, ou a terra embaixo domar para onde osmortos vão para ser lwa dafamíliaGede.Talvezeuestejadevoltaaoquartodepoisdoassassinatodepapa,eláéondeeuficareiprasempreagora.Respiro fundo. Tudo o que lembro é tão real. Meu quarto de hospital em
ruínaséumcinemacomasluzesapagadas—éescuridãototal,eminhavidaébrilhantedemaisdiantedela.Então,acabana.Emalgummomento a escuridão terminoue eu estavaolhandoparaumdos
homenscomarmas.Eleacenoupramim.— Isso é o que acontece quando você fode com a galera daBoston— ele
disse.Outrochimèreria.—Éissoaí—eledisse.Nãoentendi.Papanãotinhafodidocomninguém.Tudooqueelefezfoitirar
agentedagaleria,ondeestávamosfingindoabençoaraspessoas.Mesmoassim,euachoqueeusabiaquenãotinhanadaavercomaquilo,porqueentendiqueochimèreeraBoston,nãoRoute9.Meapegueiaisso.DisseamimmesmoqueumdiatodosessesporcosdaBostonmorreriam.Então, veio um estampido alto que eu reconheci como um tiro. Olhei para
cima emanman estava com uma semiautomática na mão. Chorava. Um doschimères,aquelequefaloucomigo,estavagritando.Sangueescorriadoombrodele.Percebiquehaviacaveiraseossoscruzadosnabandanasobreoseurosto.—Vadia—eledisse.—Saiam—dissemanman.—Saiamagora.Os chimères se retiraram.Manman ficou por um bom tempo segurando a
arma,eesperamosemsilêncio.Maselesnãovoltaram.Euaindaestavanochão.Osanguedopapaestavanaminhamãoenomeu
rosto;eragrudentoecheiravatudoderuim.Manmanpassoupormimesaiuparaarua,segurandoaarmaàfrentedela.Umminutoouumdiadepois,elavoltouparadentro.Tinhaumolharfrioevazionorosto.Tremia,eeufiqueipreocupado
pelofatodeaarmapoderdispararporacidente.Masentãoelapareceuretomarocontroleeeramanmannovamente.Elamelevantoue,gentilmente,abriumeusdedos.—Oquevocêtemaqui?—eladisse.Euestavacomumatampadegarrafa.Nãopercebiqueaestavasegurando.Manmanmecarregouatéosfundosdacabana.Andoueandou,eeunãosabia
paraondeela estava indo.Então, sentio cheirodomare sabiaqueela estavaindo na direção do barco, aquele quepapa usava para pescar, e ele sabia quedormiríamosaliatéconseguirmosencontraroutrolugar.—Eopapa?—eudisse.—Nãopodemosajudareleagora.—Eaarma?Ondevocêconseguiuaarma?—Nãoimporta.—MaseMarguerite?Oqueaconteceucomela?Naminhacabeça,viminhairmãsentadanasminhascostas,sorrindo.Espero
queelatenhafugido.Manmanparoueolhoupramim.Ovaziochegouaseusolhosdenovo.—Elesalevaram—eladisse,porfim.—Aqueleschimères.—Porquê?—Elaéumagarota—elafalou.—Ebonita.Umdiaelapoderáservaliosa.Pensei que aquilo era estúpido. Pensei que Marguerite era valiosa naquele
momento.Manmanpercebeuqueestavaapontodechorar,eeunãoaculpava.Mashaviaalgopeloqualeuestavagrato:Margueriteestavaviva.—Voutrazereladevolta—eudisse.Manman,ela,tipo,balançouacabeça.—É difícil— ela disse.—Mas devemos contar nossas bênçãos. Estamos
vivosejuntos,vocêeeu.Temosumaooutro.—Sim—eurespondi.Manman, ela gostava de contar suas bênçãos. Em geral, não levava muito
tempo.
Caminhamos pela areia até onde os pescadores atracavam seus barcos.Conseguiveraquelequeopapaeseuamigousavam.Mepergunteisepapaerapescadordeverdade.Manmannãomediriadeondeaarmaveio,maseseelafossedele?Eseelefosseumchimèretambém?Talveznãotenhameperguntadodeverdade.Pramim,édifícillembrar.Mas
eumeperguntoagora.— Vou fazer o que for necessário — disse paraManman. — Vou trazer
Margueritepracasa.—Tudobem—eladisse.—Tudobem.Nãoachoqueelaacreditavaemmim,masdeveria.Setivesse,talvezeunão
estivessenestaconfusão.Quandovocêmachucaumapessoaotempotodo,fazumadessas trêscoisas:vocêaenchedeódioedestrói tudoemtornodela.Ouvocêaenchedetristeza,eeladestróiasimesma.Ouvocêaenchedejustiça,eelatentadestruirtudooqueéruimecruelnestemundo.Pramim,eueraoprimeirotipodepessoa.
OUTRORA
Emseusonho,ToussaintcavalgavadevoltaparaBoisCaiman.Sabiaqueohoungan cego vivia lá. As pessoas diziam que ele conseguia falar com oscrocodilos e se tornou o rei deles. Diziam que havia mortos nos pântanos,zumbis que ele colocou lá e que podia erguer e matar qualquer um que oameaçasse. Toussaint pensou que aquelas eram boas histórias para contar sequeriaserdeixadoempaze,sejacomofor,elesabiaperfeitamentebemcomooszumbiseramfeitos—eraumprocessomaisfarmacológicoquedemorte.Eleseguiualuzturvaatravésdasárvores,atentoaocharcoemambososlados
dasenda.Umavozbaixadentrodeledissequeaquilonãoestavaacontecendodeverdade,masaindaestavaassustado.Havia umcheiro forte e vegetal de decomposição.Estava escuro, a lua, tão
cheia egordananoite anterior, obscureceu-sepelasnuvensdensas.Conseguiavermuito pouco alémdas formaspairantes das árvores, as sombras aranhosasdasvideiras.Naúltimanoiteeleestavaentreamigos—companheirosescravos.Hoje à noite, ele era um ser caloroso no meio da indiferença fria da lama.Poderia imaginar facilmente que o cheiro vinha de corpos apodrecendo, quehaviamortos,zumbis,nalama,dosdoislados…Sentiu um arrepio, apertou forte as rédeas do cavalo.Concentrou-se na luz,
seguiu-aatéchegaraumapequenacabana.Desceudocavalo,amarrou-oebateuàportaantesdeentrar.Ohoungan cegoestava sentadonumacadeiranaquela sala simplese limpa.
Alémdealgunsjarroscompó,duascadeiras,algunsvevesdesenhadosnochão,ocômodoestavavazio.—Voltaste—disseohoungan.—Sim.Issoéreal?Estouaquimesmo?Ouéumsonho?—Nãopodeserosdois?—perguntouohoungan.—Digas.Esseespíritoque
estádentrodeti,querqueeutire?—Queroqueosenhor…Nãosei.Oqueéisso?Eudisseaosoutrosqueera
Ogou,masnãoachoquesejaverdade.—Nãoseiaocertooqueé—disseohoungan.—NãoéOgouBadagry,eu
concordo.Eusaberiasobreavindadele.Nóstodos.Ogouéolwadaguerra,e,quandoelepossuiumapessoa,énormalquehajaviolência.Toussaintbalançouacabeçacomveemência.—Nãoseiseeuqueroisso—respondeu.—Mesentibemnoinício.Justo.
Mas teremos quematar tantos se quisermos nossa liberdade.Na última noite,tivedefazerdetudoparaimpedirosescravosdematarmeusenhor.Eelenuncafoicruelcomeles.Ohounganconcordoucomacabeça.—Avidaprecisaserpagacomamorte—eledisse.Eleindicouacadeiraaolado,fezumgestoparaToussaintsesentar.Toussaint o fez, e sabia que tinhamentido, embora não tivesse a intenção.
Talveznãoquisesseliderararebelião,nãoexatamente,massabiaquefaria.Eraoseudestino.Equempoderiadizerquenãoeraaprópriacoisaqueopossuíaquedariaaeleforçaparaliderarseupovo?Emseusonhoanterioreleestavanumacidadecomonenhumaqueviraantes,
com casas feitas demetal e pessoas vestidas com roupas de lunáticos. Aindaassim, sabiaqueerao futuro, enaquela terraospretoscaminhavam livresemtodo lugarenãohaviabrancosqueelepudessever.Lá, eleeraumgaroto,ouestava nos sonhos do garoto; não tinha certeza. Ao mesmo tempo, era elemesmo. Uma sensação estranha, uma que perdurou muito depois de ele teracordado, e, mesmo que tenha esquecido muito do seu sonho, lembrou-se deumaverdadeessencial.Sabia que venceriam, porque o garoto que ele era naquele estranho futuro
sabiaquenãoeracertoparaumapessoaserdonadaoutra,nãomais.Por issoToussaint não tinha dúvida de que lideraria. Ninguém mais tinha a mesmaconvicção.Ninguémmaispoderiaperseguiracausasabendoquenãoeraapenas
justa,masqueerapossível.Oproblemaeraqueelenãoqueriadeverdade.Nuncamataraalguémnavida,
enãoqueriacomeçaragora.Queriaentendertodososladosdeumconflitoantesdeprecisarpegarnumaarma.—Deresto,comotesentes?—ohounganquissaber.—Oquesabesdaquilo
queentrouemti?Porquealgoentrou.Eusenti.Todosnóssentimos.—Eugosto—disseToussaint.—Issomeassusta.Eeuposso ler!Eunão
sabialerantes.Ohounganconcordoucomacabeçadevagar.—Oslwatrazemdonsestranhos—eledisse.—Nãotenhocertezadequeéumlwa—Toussaintfalou.—Temumjeitode
dizer?Osenhorpoderia…meexaminar?Ohounganmostrouasmãos.—Medátuacabeça—elepediu.—Curva-teparaafrente.Toussaintinclinouatestaesentiuasmãoscalosasdovelhoenvolvendocom
gentilezasuacabeça.Algumtempopassouenquantoohounganfaziapequenosbarulhosdeconsideração.Finalmente,eledeuumsuspiroprofundo,deliberado,liberando-odeformairregular,esoltouacabeça.—Nãofazsentido—eledisse.—Oquê?—Temapenasumaalmaemti.Apenasumdeti.Écomose…comosenão
houvessemaisnada.—OhounganestavafalandomaisconsigomesmodoquecomToussaint.—Maseuestavalá!Eusentitutecontorcereseserestomado!Toussaintlevantou-setrôpego.— Quando eu era garoto, um houngan disse que eu tinha metade de uma
alma.Minha irmãgêmeamorreuquando éramos jovens.Ohounganme falousobre os Marassa, disse que tínhamos poder juntos, mas quando minha irmãmorreuopoderseperdeu.Minhamãepensou…Toussaintestavaprestesafalardesuairmãgêmea,ecomoelamorreu,como
sesentiucomisso,masparou.Nãoquisfalardesuavidacomohoungan.Em
vezdisso,chutouacadeiraelançou-aaochãodeterra.—Oquedevofazer?—Nãopossotedizer—disseohoungan.—Boukmandizquetuconduzirás
opovopara a liberdade,masoque eu sei?Souumhomemcego.Osbrancosfizeramissocomigo.Então,muitosdeles terãoquemorrer.Tumesmodissesteisso.Talvezdevessescorrerparaasmontanhas,viverlácomteufilhoenquantoaguerradurar.Podemvencersemti.Boukmandizqueésindispensável…único,masparecesumhomemnormalpramim.Umaalma,umnariz,doisolhos.Toussaint tremia. Estava pensando no futuro, onde andava pelas ruas de
negros vivendo todos juntos em suas próprias casas. Estava pensando sobrecomo, no futuro que vislumbrou, era um garoto, e o garoto sabia o nome deToussaint.Foiatéacadeiraquehaviachutadoealevantou.Estavaperplexoemverohoungan, num repente, empédiantedele, comum tipode cachimbonaboca.Eleotirou,fezumcírculocomoslábiosesoprou.AfumaçapairounadireçãodeToussaint,enroscou-senafrentedoseurosto
atéeleficardentrodeumanévoacinzenta.Eleacordou.Estava deitado na cama, na sua cabana. Escravos já haviam começado a se
reunirnoquintaldacasa-grande,noscampos,esperandoporsuapalavra.Aindaassim,parasuasurpresa,DeLibertasconseguiuescaparesuacasagrandeaindaestavaempé,nãoforaqueimada.Toussaintolhouparaotetoeocinzaemtornodeleerefletiuprofundamente.
Não queria matar os brancos — era verdade o que ele dissera ao houngan.Estavacheiodeumsentimento incontrolável,nãodevingança,masde justiça.Viu um mundo que esmagava as pessoas sob os pés, e determinou tomar asrédeaseocontroledelenumsolomaissuave.Para ele, deitado ali, parecia que havia três tipos de escravos, três tipos de
pessoas.Havia aqueles que estavam tão cheios de ódio pela experiência, pelaopressão,queelessedescontrolavamedestruíampropriedadesepessoas.Haviaaqueles que estavam tão cheios de tristeza por sua experiência que se
descontrolavamedestruíama simesmos;erapossívelencontrá-losenforcadosno celeiro, ou deitados no campo comos pulsos cortados;Toussaint fora essealguém muitas vezes, encontrava-os assim. Isso o fazia chorar, sempre. Oterceiro tipo de pessoa, no entanto, era cheio de experiência com um anseioardentepor justiça,umdesejoardorosodefazerascoisascertasnomundo,derecobraroequilíbrio.Naescuridão,Toussaint fantasiavaqueerao terceiro tipodepessoa,e,para
incendiaraalma,paraencher-secomumsentidodanecessidadedejustiça,eleinvocouasfacesqueparaeleincorporavamamaldadedaescravidão.Eleestavaládeitadoelembrou.Lembrou-sedeumbebê.EstebebênãoeradeToussaint;pertencia aChérie,umaescravada fazenda
vizinha.Ou,melhor,nãopertenciaaela—pertenciaaoseusenhor,eestaeraaraiz do problema. Toussaint tinha catorze anos quando Chérie chegou numanoitesemluaàpequenacabanaondeelemoravacomopai.Elabateuàportanacaladadanoite,assustandomuitoosdoisefazendo-ospensarquealgoterrívelacontecera.Nãohaviaacontecido,masestavaporumfio.Chérietinhaacabadodedaràluzeobebêestavaenroladoemtraposqueela
rasgara de suas próprias roupas. Havia fugido, ela disse ao pai de Toussaint,porque sabia que de outra forma o bebê seria tomado dela e vendido. Bebêsnegrosvaliammuitascentenasdefrancos,poisnofimdascontaselesviravamescravosnegros.—Comopodeserdomeusenhor?—elaperguntou.—Elenãofezela.OpaideToussaintsuspirou.—Eleédonodasduas—eledisse.—Ascoisassãoassim.Podiasermelhor
seeletivessefeitoamenina.Poiselaseriamulat.Toussaint franziu a sobrancelha. Talvez esse tenha sido o primeiro indício
verdadeiroque ele recebeudeque a escravidãopodia ser errada.Nuncahaviapensadomuitonissoantes,masagoraseperguntavacomopodiasercorretoumhomemvenderobebêdeumamulher.
—Por favor— disse Chérie.— Por favor, nos deixe ficar, apenas hoje ànoite.Abebêestácomfebre.Penseiquetalvez…OpaideToussainterahabilidosonamisturadesimples.Erabemsabidoem
todaaprovínciaqueelepodiaajudarquandoumacriançaestavaadoentadaouumhomemestavamorrendo.Naquelemomento,ele lançouasmãosparacimaemtomdeimpaciência,masabriuespaçoedeixouamulherentrar.Nãomaisqueumahoradepois,outrabatidanaporta.Toussaintespioupela
janela para ver homens com tochas, alguns no lombo de cavalos. As tochasdeixavam sua própria sombra longa e esguia sobre as tábuas do assoalho.Quando seu pai abriu a porta, os homens o empurraram ao passar, batendo acabeçadelecontraaparede.Nabuscadentrodacabana,encontraramChérieeobebê com facilidade e arrastaram-nos para fora. Bayou de Libertas tambémestavalá—Toussaintoviu—,maselenãodissenada;estavaapenaslá,sentadoemseucavalobaiocomoslábiosapertados.Chériechorava.Elaimplorouporperdão,abraçandoabebêcontrasi.Umdoshomens—o senhordeuma fazendavizinha, umhomemchamado
Coste—apeoudocavaloearrancouobebêdamãodamulher.—Roubasteminhapropriedade—eledisse.Coste jogou o bebê para um homem mais novo, um negro. Um dos seus
escravos.—Eupretendiavendê-la—eledisse—,masparecequeessamulherprecisa
deumaliçãosobreoprincípiodapropriedade.Elefezumgestobrusco.—Mateacriança.O escravo não revelou nenhum traço de emoção enquanto agarrava a bebê
pelascanelas,suspendia-aelhetorciaopescoço.Osossosquebraramnumritmodepercussão.Chériecaiudejoelhos,gemendo.Nãoparavadegemer.Toussaintnuncatinha
ouvido aquele som, não era humano. Era um grito horrível que não conheciarazão.Erao somdamentedeumapessoa se estilhaçandoparanuncamais se
juntar.Costevirou-separaToussainteparaseupai.—Prendaohomem—eledisse.—Porajudaredarabrigoaumafugitiva.Nessemomento,Bayoufaloupelaprimeiravez.—Não—eledisse.—Eujápermitiquecometessesassassinatonasminhas
terras,masnãopermitireiquetomesumdosmeusescravosdemim.Garantoohomem,temalmaboaenãoconseguetolerarverumamulheremapuros.Peçoquelheperdoe.Costeresmungou,masvoltouamontarnocavaloemandouqueumdosseus
homensamarrasseumacordanostornozelosdeChérie.—Aurevoir,Bayou—eledisse.—Obrigadopor suaajuda.Voudevolver
essacadelaparaocanileesperoqueodesconfortodaviagemlheensineovalordaobediência.Então, ele partiu, a corda amarrada à rédea, arrastando Chérie, aos berros,
atrásdesi.Toussaintdesviouoolhardocorpoquesebatiaesecontorcia.OpaideToussainttentouolharnosolhosdeBayou.—Osenhornãopoderiaimpedi-los?—eleperguntou.—Elalhepertence—eledisse.—Oqueeupoderiafazer?Fiquefelizporeu
nãotertedadoaele.Lembrou-sedeumhomem.Toussainteramaisjovemnessaépoca.Talvezoitoanos.Seupaiforachamado
para uma fazenda a oito, nove quilômetros de distância, bem acima doscontrafortes.Havia um escravo ferido, e seu senhor— tendo ouvido sobre ascapacidadesdopaideToussaint—pediraajuda.ElesdesceramumaalamedadechouposqueforamimportadosdaFrança,os
doisnomesmocavalo, pois, emboraopaideToussaint fossebem tratadoporBayoudeLibertas,tinhapermissãoparausarapenasumvelhopangaré.Quandochegaramàpropriedade,todadecolunasromanaseestufas,foramlevadosaumanexoque,comcerteza,atépoucotempoatrás,abrigavaalgumtipodeanimal.Porcos,Toussaintimaginoupelocheiro.
O senhor estava no centro do cômodo, altivo. Ao seu lado, outro homembranco,possivelmenteseufilho,queseguravaumfacãonumamãoeumriflenaoutra.Osdoistraziamexpressõesdesconfiadasnorosto—Toussaintpensouqueelestinhamaqueleolhardetodososhomensbrancosquandoestãonumespaçoconfinadocomnegrosquenuncahaviamencontradoantes.Aoladodeles,haviaumcatredelonanoqualumnegrograndeestavadeitado
debruços.Suascostasestavamumhorror.Algunsfarraposdepele,finoscomofitas, ainda estavamgrudados à carne,mas amaior parte era umabagunça demúsculossangrentos,emumoudoislugaresossosestavamàmostra,aquilotudoparecendo o mapa de algum país maligno. O fedor era horrendo. Toussaintconseguiadizerdeprontoqueacarneestavaapodrecendo,poistinhavistocarneemdecomposiçãoantes—àsvezes se alimentavadela—e sabia comoera echeirava.Umfluidobrancovazavadoferimento—sefossepossívelchamarascostasinteirasdohomemdeumaúnicaferida.OpaideToussaintajoelhou-seaoladodoescravoeexaminouascostas.—Foichicoteado?—eleperguntoucomvozneutra.—Sim—disseosenhor.—Elemeroubou.—Oqueeleroubou?—quissaberToussaint.Seupailhelançouumolhar,masosenhorriu.— Curioso o teu garoto — ele disse. — O homem roubou pão.
Aparentemente, ele acha que não damos a ele o suficiente para comer. Estáerrado. Sempre alimentamos bem nossos escravos, senão que utilidade elesteriamnoscampos?Ele riu de novo e o jovem riu com ele. Ambos tinham papadas que
balançavamquandoriamebigodesquevibravam.Toussaintpercebeuqueseusolhoseramazuisepálidos,umacorqueeledesdeentãoassociouàcrueldadedetal formaquenãoconseguiaaguentarumdiade iníciodeverãoquandohaviapoucasnuvensnocéu.—Aschicotadas talvez tenhamsido…umpouco fortesdemais—opaide
Toussaintdisse.
Mesmo com sua pouca idade, Toussaint conseguia dizer que ele estavamedindo as palavras cuidadosamente; como se elas fossem caras demais eprecisassemserbempensadas.Osenhordeudeombros.—Éumaliçãoparaosoutros,nãoapenasparaele—ohomemdisse.OpaideToussaint torceuonarizparaacarneputrefata,eabriuumolhodo
homem.Suspirou.—Ainfecçãoseespalhou—elecomentou.—Vêessesfilamentosvermelhos
sobreapele?Évenenonosanguedele.Possofazerumpoucodechádecascadesalgueiroparaafebre,eexistemplantasquepodemsermisturadasparatratarosangueenvenenado.Comatençãocuidadosaelepoderásobreviver.Precisarádemuita comida — sugiro mingau, fino o suficiente para ser derramado nagarganta. E, claro, água. Se ele sobreviver, levará semanas, provavelmentemeses,para se recuperar.Nãoconseguirá trabalharpormuito tempo.Enãohágarantiadeque…—Basta—disseosenhor.Eleesticouamãoeohomemquepoderiaserseufilhoentregouoriflepara
ele.Osenhorbalançouacabeça.Omaisjovementregouofacão.Oprimeirogolpenãoarrancouacabeçadoescravoferido.Nemosegundo.O
homem levantou-se, claro… piscou e se retorceu com os olhos se revirando.Levouquatrograndes talhos fortes antesque a cabeça finalmentependessedeumpedaçomeioquebradodeespinha.Toussaintcomeçouachorar.Opaideletremia,quaseàslágrimastambém.—O homem era do senhor para tratá-lo como quisesse— ele disse, com
hesitação—,masnãoteriasidomaishumanosefosseumabala?—Balascustamdinheiro—falouosenhor.Elevirouascostasedeixouoanexo.
Foi quandoToussaint caiu de joelhos e ficou enjoado.O pai acarinhou suacabeçaemurmurou,maselenãomelhoroucomesseato.Lembrou-sedeumamulher.Essamulher,comoobebê,pertenciaaCoste.Toussainthaviaficadolongedo
senhor dela e dos escravos desde o incidente como bebê,mas foi impossívelevitá-loparasempre.Nestamemória,Toussainteramaisvelho,talvezestivessecomvinte,eseupai
ficavacadavezmais fraco,diaapósdia.Então,Toussaint foienviadoatéumamulher num vilarejo próximo para prestar-lhe socorro durante o parto. Levouconsigo várias ervas e preparados e ficou tranquilo ao descobrir que, quandochegasseahora,elepoderiapermanecercalmoealiviaradordamulher,mesmoquando ele fizesse o parto. Com tesouras incandescentes, ele cortou o cordãoumbilicale,nasprimeirashorasdamanhã,elejáestavaprontoparadeixarmãeefilhoecavalgardevoltaparacasa.Todas essas habilidades médicas o ajudariam imensamente quando ele se
tornasse um general. Seria o primeiro a começar a prestar atendimento aosferidos após a batalha e o último a parar. Sua compaixão também lhe serviriabemquandochegasseahoradelideraroshomens.Mas,naquelanoite,nãoserviu.Avançando pelo caminho até a fazenda de Libertas, passou por diversas
formassombriasquesemoviamnocanavialenaescuridãoeouviuumgritodemulher.Agarrouocavaloerumouatravésdostalosaltosdaplantação.Deparou-se com Pierre Coste, sobrinho do velho senhor, e vários de seus amigosestuprandoumagarotanegraquenãotinhamuitomaisquedezesseteanos.Eraelaquemgritava.Quando Toussaint entrou na clareira que eles haviam feito no canavial, ela
nem mesmo percebeu sua presença — seus olhos tinham um vazio branco.Toussaint pôde ver que ela tinha sido espancada.Viramuita gente espancada;não precisava de suas capacidades médicas ou de sua compaixão parareconhecerossinais.
Não—eleviramuitosescravosespancados.Virahomenschicoteadospornãotrabalharduroosuficiente;viuhomenschicoteadosportrabalharemmuitoduroeficaramesgotados.—Parai—eledisse.Oshomensolharamparaele.PierreCostelançouumresmungoqueeramaisanimalquehumano.—Vai-teembora,negro—eledisse.Toussaintsuspiroufundo.—Estaisamachucá-la.Ojovemolhoucomdesprezo.—Preferequeagentetemachuque?—eleperguntou.Eraumaperguntaretórica.ElesmachucaramToussaint—emuito.Quandoelefinalmentesearrastouaté
acabanade seupai, tinhaumolho fechadoà forçapelo inchaço, três costelasquebradas,mãoesmagada,pernaquebradaecrâniorachado.Sangravapelaboca,pelonarizepelosolhos.Bayou de Libertas ficou horrorizado e entristecido quando ouviu o que
aconteceu.—Porhomenscomoesseséquetodosrecebemmáfama—eledisse.Toussaintconcordoucomacabeça,emboraelenãoconcordasse,sentindoem
seupescoçoadordasbotasdoshomensquandoofazia.Pensouqueamaioriadoshomensficariaassimsefossepresenteadacompessoasefosseconvencidade que não eram pessoas, mas pertences, bens móveis. Toussaint, naquelemomento, já conheciaBoukmane suas ideias revolucionárias,mas foi quandoeleviuseuprópriosangueatrásdesinapoeiradaestradaquealgosecristalizouna sua mente — algo que ele quase apreendeu, mas não compreendeu porcompletoquandotinhavistoobebêsendomorto,anosantes.Osanguedetodasascriaturaséomesmo,efalseiasuasingularidade.Adele,adobebê,adamãe,igual,tudoindistinguíveldosanguedequalqueranimal,nadadiferentedaqueledocavalo,nemdeumporco.Quandosearrastoudevoltaàfazenda,Toussaint
viuotruquemágicodaescravidão;esoubequeBoukmanestavacerto.Essa era amágica: erameramente uma ideia que transformava homens em
animais.Sim, havia proprietários de escravos relativamente bondosos e gentis —
Bayoueraumdeles—,masosanimaiseramdescartáveisparahomensbonsouruins. Mesmo Bayou, com toda a sua bondade natural, com toda a suasensibilidade, não se moveu quando um sacrifício foi cometido em seu solo.Embora Toussaint pudesse ver que Bayou ficou realmente aflito em ver osferimentosdoseuescravofavorito,elenuncabuscariaumareparaçãoverdadeiraparaeles.Umhomempodiaamarseuscavalos,poderianãochicoteá-loscomooutrosfariam,mas,seseucavalodesseumcoicenumvizinhorico,eleficariadeladoenquantoovizinhopunisseoanimal.Isso.EssafoiaverdadequeToussaintviuderepente:queumaideiamaléfica
fazdetodososhomensqueacreditamnelahomensruins.Eisso,paratristezadeToussaint,incluíaBayoudeLibertas.ApósoataqueaToussaint,Bayounãoexigiuqueeletrabalhasseporalgumas
semanasparaquepudesseserecompor.Issofoiconsideradomisericórdiaentreosbrancos.Então,algumtempodepois,Toussaintestavasentadoforadecasa,sobobeiral
da cabana, assistindo ao pôr do sol, quando os jovens da fazenda de Costevieram cavalgando pela trilha até a casa de Libertas. Nem olharam na suadireção—talveznãotivessemreconhecidooescravoquetentaraarruinarafarradeles.Menosdemeiahoradepois,osjovensforamembora.Naquela noite, Toussaint viu Bayou quando este visitou a cabana para ver
comoiaopai.BayoueradezanosmaisvelhoqueToussaint,noverdordosanos,e era diligente no hábito de patrulhar os perímetros das suas propriedades everificartodososseuspertences,inclusiveseusescravos,antesdeseretiraraosaposentos.— Pierre e seus amigos…— disse Toussaint enquanto ele abria passagem
paraooutro.—Elesvieramsedesculpar?BayoudeLibertaslançouumsorriso.—Vieramparamedar isso—eledisse,puxandoumaburradedinheirodo
bolso.—Minha indenização pelo tempo que tu não foste capaz de trabalhar.Homenscomoaquelesnãosedesculpam.Paraeles,ésapenaspropriedade.Maso tiodePierre ficou furiosocomelepordanificar aminha propriedade, entãomandouquetrouxessemessedinheiro.Toussaintolhouparaabolsa.Indenização?Elepensouqueasurrahaviasido
dolorida,masaquilooatravessoucomoumafaca.Elemurmuroualgo—depoisele não conseguia se lembrar. Pôde ver que Bayou estava irritado com osgarotos, conseguiu ver até mesmo que Bayou estava envergonhado pelocomportamentodeles,mas,aindaassim,umpensamentoecoavanasuamente.Não tinhasdepegarodinheiro, era o pensamento.Não tinhasdeaceitar a
indenização.ApartirdaquelemomentoeleresolveuajudarBoukman.Sehouvesseumlevante,eleseriapartedele.Nãoconseguiavivernummundo
onde um homem era capaz de quebrar os ossos do outro, e então pagar umaindenizaçãoseelequisesse,sesuaestimapelodonodohomemfossegrandeosuficienteparagaranti-la.Lembrou-sedetudo.Lembrou-sedetudoechorou.O filho acordou. Isaac veio para a cama e perguntou o que afligia seu pai.
Toussaint lhe disse que tivera um pesadelo, mas estava melhor agora. Tudoficariamelhoragora.Pensou, enquanto estava deitado na cama, em como nunca aprendera a ler,
comoBoukmanaprendeu.Doqueadiantavalersenãopassavadepropriedadeaserchicoteadaevendidaquandodessena telha?Quandoasúnicascoisasa lereramescritasnalínguadosbrancosenãotefalavamnada?Agora, ele conseguia ler, apesar de nunca ter buscado essa capacidade. Foi
despertadonele,concedido,umdom.Essedom—esuavisãodefuturo—eraa
formadeToussaintsaberqueforaescolhido.Nãoédadoaoshomensordináriossaberderepente,numaúnicanoite,comolereescreverefazercálculos.Sua decisão tinha sido tomada. Lideraria os escravos; destruiria a ideia de
senhoresdeumavezportodas,enãohaveriamaisescravos.Poderiasechamarumsenhordebomsenhor,porqueelenãochicoteavaseusescravos,masnofimdas contas ele ainda era um proprietário de homens, e os homens não foramfeitosparaserpropriedade.Erapossívelchamarumtigredebomtigre,porquemataapenasparacomer,
nãopeloprazercomoqualumgatoàsvezesofaz,maseleaindamata.EopaideToussaintsemprelhedisseraemcrioulo,queeraseuúnicoidioma,ptittigsetig.Ofilhodeumtigreaindaéumtigre.Talpai,talfilho.Meupaifoiumgrandehomem,pensouToussaint.Talvezeuváserumgrande
homemtambém.Adeterminaçãocorriaemsuasveias,elefechouosolhos.Então, estava novamente em Bois Caiman, olhando para o céu noturno
quandoalgoentrounele,comosealgopossuíssesuaalma.SequalquerpessoaestivesseassistindoaToussaint,teriavistoohomemtenso,seusolhosrevirando,antesqueelelevantasseâncorasdomundoeflutuasseparaumsonho.Elecruzoumundosetempos,eeraumgaroto,emúsicaaltaestavatocando—
exceto,elepensou,quetalveztudoaquilofossenasuacabeça—eumhomemestavadizendoalgoeminglêsqueToussaintnãoconseguiaentender,easnotasebatidasdamúsicaeramcomoumgritodefúria,comosoariaumassassinato.
AGORA
Estou tentandome lembrarde todas as palavras paraReady todie, doNotório B.I.G. — Biggie Smalls, eles também o chamam assim. Tem doisnomes,comoeu.Nãoseiqualéonomerealdele.Era.Estámortoagora,comooBiggie,quetomouseunome.Tenho meu próprio nome real, mas parei de ser chamado por ele quando
comeceiaandarcomBiggieeaRoute9.Então,fiqueiconhecidoapenascomoShorty,porqueeraassimqueBiggiemechamava.Significagaroto,esignificapequenotambém.Ébemisso,euacho.Eueraomaisjovemdaturma.Assumirumnomeéumamerdaperigosa,porquevocêpodeatrairodestinoda
pessoaparavocê—BiggieaprendeuissoporsipróprioquandotomoutirosbemcomooBiggieSmalls.MasBiggie tinhaorgulhode ser chamadodeBiggie.Sempre falavademais
sobreaEastCoastCrew,sobreTupac, todaessabobagemestúpidadeumpaísno qual ele nunca esteve. Disse que alguém tinha que levar aquele legado,alguémtinhaquerepresentar.Quandonãoestavaouvindosuasprópriasmúsicas,sempreescutavaoBiggieSmalls,especialmenteReadytodie.Semparar.Elamedeixa tãomalucoque eunão consigo lembrar de todas as palavras, porque euprecisavaouviraquelasmúsicas, tipo,milvezes.ONotórioB.I.G.foigângsterantes de ser rapper, e acho que Biggie aprendeu como ser um gângster comaquelasmúsicas,aomenosdealgumjeito.Decoreioprimeiroverso,eagoratentoelembrodosegundo.Essamúsica,é
como se ela estivesse no meu sangue, nas células do cérebro. Com músicasassimeuaprendiinglês.EsseéumversonoqualBiggieSmallsfalasobrepegarumLexus,pegarumRolex,pegarumdinheiro.SempresoubequeLexuseraumcarro, porque vi alguns na estrada para o aeroporto, mas quando eu eramaisnovopensavaqueRolexeraumcarrotambém.Tintinriuquandodisseissopra
ele,mechamoudecretino.MasvocêachaqueTintinviuumRolexduranteamalditavidinhadele?Sesim,vocênãobatebem.Estou tentando lembrar as palavras para não perder a cabeça, toda aquela
bostasobre terumaGlock,sobrefazer tiroaoalvocomosfilhosdamãe,masnãoconsigolembraroterceiroverso.Da última vez que dormi, sonhei que eu estava num pântano, cavalgando.
Nuncasubinumcavalonavida,maseucavalgavafácil.Eviaquelevelho,achoque era umhoungan, porque a casa dele era como a van onde o houngan deBiggiemorava.ElemechamavadeToussaintefalavasobreOgouBadagry,queBiggiequeriadoladodelequandofomospraguerra.Eramaluco,maseracomoseeusoubessetudooqueToussaintera,tudooque
ele conhecia.Como aprendeu curandice como pai.Comoos olhos damulherdele eram da cor precisa do âmbar polido no crepúsculo. Toussaint sabia quepareciacomaquilo—querdizer,comâmbar—,porqueseusenhorusavaumapeçacomopesodepapelnoescritório.Esqueciamaiorpartedascoisasquandoacordei,mas lembrodessas.E isso
medeixadoido,porquenãoseinemoqueéumpesodepapel.Enuncavibostanenhuma feita de âmbar, mas ainda posso descrever aquele peso de papel namente,verasbolhasnapedraamarelenta.Você me entende? Então, agora eu acho, talvez eu esteja pirando de vez,
porquenãopossoserToussaint l’Ouverture—issoseriamaluco.Nãoparodedizerpramimmesmoqueestousósonhando,quelembrodessascoisasporqueBiggiesemprefalavasobreToussaint,comoeleeraumescravoanalfabetoqueaprendeualereaescrever,ecomoeledestruiuamarinhafrancesa,comofoioherói que nos libertou. Às vezes, ele dizia que DreadWilmè era o Toussaintl’Ouverture renascido, mas quando eu estava lá deitado na escuridão, apósacordar eu pensei, não, não era Dread — ou talvez tenha sido Dreadantigamente,masnãomais—essesoueu,eusouToussaint.Masentão,mefizparardepensarnaquilo,porqueissoémuitodoido,muitodoido.Pra mim, nunca vi grandes coisas em Toussaint, de qualquer jeito. Nunca
acheiqueéramostãolivresassimnoSite.Nãopodíamossair,sósetivéssemosum passe.Havia soldados guardando a gente, e as pessoasmorriam de fome.Pensei que aquilo fazia da gente tipo escravos,mas, na verdade, Biggie tinhamaistesãoporToussaintdoqueporBiggieSmalls,entãofiqueibemquieto.Issoaí,eudigopramimmesmo.VocêestálembrandodascoisasdoBiggie.Mas então eupenso,não.Biggienuncadissenada sobreumpesodepapel
feitodeâmbare,alémdisso,eunemseioqueéâmbar.Então,estavaandandoemcírculos,eestoudevoltaaocomeço.Estouficando
loucocomaescuridãoea solidão.Amãoparoude rastejarnaminhadireção,fazendo aquele chiado, e acho que ela fazia esse som apenas na minhaimaginação, pra começar.Nãoháninguémmais aqui.Apenas eu.Não é à toaqueminhamenteestápirando,criandoessahistóriapraquandoeudormir,eeutentonãomedeixarpensarnapiorcoisa—háumapartedemimqueanseiapordormirdenovoparapoderveroqueaconteceemseguida.Ficocomtédiodedizeraspalavrasdasmúsicas,entãoeumesentoeestalo
meusdedos.Fazumsomcomoarmasdisparandobemlonge.Gostariadepoderveralgumacoisa.Qualquercoisa.Queriapoderverminhasmãos.Seeupudessever,nãomesentiriatãolouco.Preciso pensar em algo, em qualquer coisa, então penso emBiggie. É isso,
Biggie.Oidiotaadotouonomedeumgângstermorto,comosefosseumaboaideia,comosetrouxessesorte.Biggie, da primeira vez que o vi, estava empé ao lado do braço direito de
DreadWilmè, e isso não é uma expressão, cara— essa droga significa algo.SignificaqueeraosegundomaiorgângsteremSolèy19,ogeneralqueconduziatodasasoperaçõesclandestinasdeDread.EDreadrecebiaordensdeAristide,oquequasetornavaBiggiepartedogovernonoSite.Estávamosemumacabana,emalgumlugar,porqueDreadsempresemudava
paraevitaramilíciaquequeriaderrubarogovernodeAristide.Umdoscarasmeencontrou commanman no barco dopapa, nos levou pra ver ele. Foi, sei lá,poucosmesesdepoisdopapa sermortoeMarguerite sumir.Dread, eleestava
sentadonacama,umaarmaenfiadanacinturado jeans, seusdreadspendendosobreorosto—nãoseviaorostodeDreadatéelequererquevocêvisse.Tinhaumcheiroderoupasujanoar.Manmaneeu,agentetentavanãoolharparaosjovenscomarmasaonossoredor.Dreaderamaisjovemdoqueeupensava—trinta,talvez.Estavatocandouma
músicaquandochegamos,nãoerarapcomoBiggiegostava,masalgumacoisabemantigadoHaiti,talvezcantigasvodu.Dreadnãoolhavaparanós,apenasliaum livro. Biggie ficava perto dele, só que eu não sabia que ele era o Biggienaquelaépoca,seéqueissofazsentido.Sabiaapenasqueelepareciadescolado,combonédebeisebolecalçajeanscaídacomacuecaaparecendo.Achoqueeleestavacomcatorzeanosapenas,talvezquinze.Dread ainda não tinha levantado a cabeça, mas jogou o livro pra mim e
minhasmãosforamrápidaseeupegueiovolume.—Lêapáginatrês—eledisse.Meatrapalheicomolivroeabri.—Toussainteraumescravo,sim,maseraumhomemdesemblantenobree…—Bom—disseDread.Elelevantouoolharpelaprimeiravez,eeuviqueseusolhoseramgrandese
pretos,comojanelasabertasparaalgoruim,comosesuaalmafossemaisvelhadoqueeupoderiaimaginar,sóquenãodeumjeitobomcomoadeMarguerite.Deumjeitoassustador.—Ouviquevocêpodialerenãoeramentira—elecontinuou.—Seupapate
crioudamaneiracerta.Manman fez aquilo, tipo, meio engasgou, meio soluçou, e eu olhei para o
chão.— Desculpe — Dread disse. — Fiquei sabendo o que aconteceu ao seu
marido.Aoseupapa.—Dreadpegouumcelulardobolsoeagitouparanós.—FaleicomAristide.Eleconcordacomigo.VamosdarumacasaparavocêsaquiemSolèy19.Vamoscuidardevocês,mantervocêslongedaquelesdesgraçadosantigoverno.Evamostemandarpraescola.
— Ai, obrigada, obrigada — manman disse. Havia lágrimas nas suasbochechas.—Mercê,Dread.—Nãomeagradeça.Agradeçaaoprimeiro-ministro.Vireiparamanman.—EMarguerite?—perguntei.Manmanengoliu,entãobalançouacabeçapramim.Eladeuumpassoparaa
frenteejuntouasmãos,comoserezasse.—Dread,vocêsabequesemprefuiLavalasminhavidatoda.Aristide,elefez
opartodosmeusfilhos.—Agentesabe—disseDread.—Porissoqueremosfazerobemparavocês,
mantervocêsprotegidos.—Então—manmandisse—,oshomensquematarammeumarido,eles…
levaramminha filha. Ela é da mesma idade que meu filho, eles são gêmeos.Nós…eu…nósprecisamosqueelavolte.Osenhorvaiprocurarporela?Dread,eleolhouparaeladevagarporummomentoantesdelevantarepegar
asmãosdemanman. Só então vi como ele era grande.Chegava ao teto e eracomoseoquarto fossepequenodemaisparacontê-lo,comosequalquercoisafosse pequena demais para contê-lo. Tinha cicatrizes no rosto e no pescoço,comosealguémtivessetentadoarrancaracabeçadele.—Vamostentar—eledisse.Virou-separaorapazaoladodele.—Biggie—
efoicomoouvionomedeBiggiepelaprimeiravez.—Leveosdoisparaacasa—eledisseparaooutro.—Eajeiteparaqueogarotorecebaeducação.Naquele momento, eu não vi as armas, via apenas o livro que estava
segurando,quedevolviparaDread.—Não—Dreaddisse.—Fiquecomele.Leia.Esselivrovaiabrirsuamente,
dizercomooshaitianosselevantaramparaselivrardojugo,daopressão,cara.Essas pessoas que querem tirar o Aristide, querem nos fazer escravosnovamente. Verdade. Leia esse livro, talvez você possa ajudar a combatê-losmelhor.—Obrigado—eudisse.
Sabe de uma coisa? Nunca li aquele livro. Acho que perdi, talvez, quandomudamos.EstavapensandotantonomeupapaeemMargueriteeseaveriadenovoqueesquecitudosobreele.Bem,agoraeuqueriamuitoterlidoaquelelivro.Minhamente ficaàderiva,eeucomeçoapensarsobrevodu.Toussaint,ele
foi ver umhoungan, falou sobre alguma coisa que estava dentro dele.Vi umhounganumaveztambém—bemantesdeBiggieatirarnele—eeledissequeeu era uma pessoa pelametade. Antes disso eu pensava que vodu fosse umabobagem, uma mentira para o povo que queria se sentir seguro. Pensei issotambémquandoDreadfoiqueimadoedepoisdissotambém.Biggie era diferente. Biggie pensava que por causa do pó de osso que o
houngansalpicouneleasbalasnãopodiammatá-lo.Comoeudisse,pensavaqueissoeraamaiorestupidez.Masagoranãotenhotantacerteza.TenhovistooBiggiefalarcomigo,buracos
debalanocorpointeiro,comoumescorredordevegetais.Etenhovisto…nãoseioqueeutenhovisto.Eumevejovoandopeloardanoiteedescendorápidoeentrandonabocadeumhomem,eentãoeusonhocomToussaint.Achoque,nofimdascontas,talveztenhaalgomesmonessacoisadevodu.Enfioamãonobolsoepegomeupwen.Nãotinhapensadoneledeverdade
atéaquelemomento.DreadWilmèfoiquemmedeu.Éumapedracomumdeusdentrodela,dovelhopaís.Umgedelwa,umdosnossosancestrais.Seele temqueme proteger, é o que eu acho, bem, agora é a hora. Seguro-a namão. Ésuave,redonda.Comoseelaviessedomarparaficartãopolida.Penseiquenãofuncionouquandotomeiotironobraçoeacabeiaqui.Masagoraeupenso,eseelaimpediuqueeutomasseumtironocoração?Ounacabeça?Levantoopwenatéoouvido.—Mediga,lwa—eufalo.—Medigasetemcomosairdaqui.Nada.Seguroforteapedra.Peçoforça.Peçoparaelaimpedirqueeufiquemaluco.
Peçoparaencontrarcomidapramim.Meuestômagoéumacoisinhaenroscada,
comoumgato,esuasgarrasafundamemmim.Minhabocaéumdesertoqueseestendeporquilômetrosemcadadireção.Meuestômagoéumacriaturaquememachucapordentro.Opwenestáemsilêncio,massintoasuavidadecommeusdedosemevem
outro pensamento. Enfio a pedra na boca e chupo, e surgem, tipo, fogos deartifício diante dos meus olhos, mesmo que não tenha luz. A saliva descegargantaabaixo, e juroqueécomoseeuestivesse tomandoumcopodeáguafria,mesmoqueaquinãotenhaágua.Achoquetalvezopwenvásalvarminhavidanofimdascontas.Tiroapedra
dabocaedigo:—Obrigado,lwa.Então,chupoapedradenovo.Fico felizpornão terdadoopwen aTintin.Nestemomentopareceque ele
estásalvandominhavida.Seiqueéapenasumapedraetudoqueestoubebendoémeuprópriocuspe,mastemumapequenapartedemimqueacreditaemalgodiferente—temumapequenapartedemimqueachaqueapedraestámedandoágua,memantendovivo.Dissequeeuvidoishomensmortosdiantedosmeusolhosquandotinhaonze
anos.Asegundavezaconteceuassim.Euestava,tipo,aummêsdomeuaniversáriodeonzeanos.Manmaneeu,nós
vivíamossozinhos fazia877dias,e fuiparaaescolaàcustadeDreadWilmè,enquantomanman ficava fazendo sei lá o quê para osLavalas. Só que estavaficandomaisdifícil,porqueentreamortedopapaeaquelemomentodoqualeuestoufalando,Aristidefoiexpulsodopaís, tipo,pela terceiravez,evocêpodeimaginarcomoosLavalasestavamfelizescomisso.Euestavabrincandodenovo,masdessavezsozinho.Estavanomeiodanossa
rua,tentandomontarumabicicleta.ViumanaTVquealguéminstalouemumadasesquinasnoSiteparaqueaspessoaspudessemsesentarnochãoeassistir.Encontrei um par de rodas de carrinho de bebê velho e algumas correntes e
outras peças que estavam no monte de lixo. Gastei horas naquela bicicleta enuncavimuitaserventianela.Como na noite em que nasci, estavamuito escuro. Parece que sempre está
escuroquandoasgrandescoisasacontecemnaminhavida—quandonascemos,quandomeupaifoimorto,quandoDreadWilmèmorreu.Foi depois que Aristide foi embora, como eu disse. Os norte-americanos
fizerameleir,excetoporBiggie,quediziaqueforamelesqueocolocaramnopalácioemprimeirolugar.Nuncaentendiaaquilo.Pergunteiparamanmansobreisso,eeladissequeeracomplicado.Então,quandoeufaziaperguntasdemais,eladizia:chitachouteyinhourswapfaitgola.Cuidado,ouvocêvaiacharoquetáprocurando.Achoqueelaqueriadizerquealgumasperguntassãoperigosas.Então,Aristidefoiembora.AlgumasmoundiziamqueeleestavanaÁfrica,
algumasmoundiziamqueeleestavanaAméricadoSul.Outras,elasdiziamqueele voltaria um dia, quando estivesse pronto. Talvez voltasse agora. Talvezestivesse tãofelizemveroHaitidenovoquepuloudoaviãoepuf,ohospitalcaiu. O jeito que manman falava dele, você poderia achar que ele era umgigante,umcaramágicoegrandedeumahistória,maispoderosoquequalquerpessoacomum,assimquandoelepulavapara láeparacápoderia imaginarosprédiosbalançando.MasDreadWilmèaindavivianoSite.Antes,eleenviavaseuschimèrespara
combater os rebeldes. Depois que Aristide foi embora, ficou pior. O novogovernodeumaisarmasparaoscarasdaBoston,osrebeldes,edisseparaelesirem atrás do Dread Wilmè, porque ele era homem do Aristide. Inclusive apolícia foi até a favela e caçou apoiadores dos Lavalas.Com eles, vinham osattachés—eramcomoapolícia,masusavammáscaraspretasenenhumamounconseguiaverquemeleseram.Emgeral,faziamdesapareceraspessoasdequeeles não gostavam, mas às vezes tinham a chance de matar as pessoas, e omelhor momento para eles fazerem isso era durante as manifestações. Haviamuitasmanifestações,emanmanmelevouaalgumas.Vocêprecisaentender:o
SiteeraamaiorbasedeAristide.Eledisseque transformariapobresemricos,entãoospobresoamavam.Fazsentido,certo?Quandoosmilitares o chutarampra fora, e aONUchegou, a porra doSite
explodiu.Lógico.Lembro de umamanifestação. EraDia daBandeiraHaitiana, emilhares de
nóssaímosparaasruasdoSitecantandomúsicasemapoioaAristide,pedindopraelevoltar,cantandomúsicascontraLatortue,queeraoprimeiro-ministrodogovernoqueosubstituiu.Tropdesangacoulé,Latortuedoits’enaller.Muitosanguefoiderramado,Latortuetemqueserderrubado.Cantávamosemfrancêsparaqueosrepórterespudessementender,oqueera
umapiada,porquenãotinharepórteresládequalquerjeito,mesmoassimachoqueéramos,tipo,10mil,nomínimo.TodostínhamosabandeiradoHaitinamãoefoiumagrandefesta,todasaquelaspessoas,todaaquelacor.Os attachés vieram quando estávamos perto do mar, na avenida principal.
Havia soldados da ONU atrás deles em caminhões blindados, mas eles nãofizeramnada.Osattachésestavamemjipes,esaíramcomsuasmáscaraspretaseriflesnamão.Manmaneeu,nósestávamospróximosdafrentedamultidão,então vimos eles e começamos a recuar. Pessoas gritavam de medo, então otiroteioteveinício.Umcaranaminhafrente,elecaiudejoelhosesearrastounaminhadireçãocomoumzumbi,cara.Eugritavaegritava.Queriafugirdelemaisdoquequeriafugirdasbalas.Vocêtalvezvivanummundoondeaspessoasnãotomamtiro.Seioqueestá
imaginando.Vi anpil filmes. Você acha que os buracos de bala numa pessoaparecem buracos pequenos e circulares, como moedas vermelhas. Mas não éassim. O que uma bala faz, ela entra na pessoa e rasga, abre, faz dela ummonstro.Elanuncamaisseráhumana.Aquele cara naminha frente, acertaram a cara dele, e a bochecha inteira, o
ladointeirodacaradele,tipo,explodiuatéficarcercademeiometroparaforadocorpo,comoumchifre,comoumgalho,comoumacoisahorríveldeanimal.
Vocênuncaviuumamerdadessanavida,mwenjire.Eracomoumzumbi,estoute dizendo, como alguma coisa saída de um filme de terror. E ele ainda searrastavanaminhadireção,aquelemontedesangue jorravadacabeça,e faziatambémaquelesomdeanimal.Não lembro muito do que aconteceu depois disso. Eram todos correndo e
gritando.Nofim,nosvimosnumbecocommuitaspessoasenãoconseguíamosouvirmaisosdisparos.Os soldados da ONU vieram e prenderam todo mundo na favela para que
ninguémpudesseescapar.IssoéoqueelesfaziamàspessoasnoSiteduranteaépocadosespancamentos.A gente chamava os soldados da ONU de casque-bleus, porque usavam
capacetesazuis.Botavamcontêineresdecarganasentradase saídasdoSite,econstruírampostosdecontroleecolocaramsoldadosneles.Aindaestãolá—àsvezes,eueTintin,agentepassavadecarroomaispróximoqueconseguíamosemostravaabundapraeles.EraumarinhadecãeseoSiteeraaarena.Manmandissequetrêsmilpessoas
morreramemdozemeses.Masnaquelesdozemeseshouveumapessoaquenãomorreu.Umapessoaque
semudava o tempo todo, dormindonum lugar diferente a cada noite, fugindodoshomensenviadosparamatá-lo.DreadWilmè.NosmudamosparaSolèy19graçasaDread,eporumbomtemponossaparte
do Site foi segura, pois Aristide pagava DreadWilmè para proteger o povo.ManmanconheciaDreadWilmèdasuaépocanopartidoLavalas.Respeitavaocara.Elevendiadrogas,masnãotoleravacrimes.Nãodeixavaninguémroubar,cometerassassinatosemmotivo.EraruimsobasasasdeDread,maserabomaomesmotempo.MasentãoAristidefoiembora,eoSolèy19nãoeramaisseguro.Algunsdos
homens que trabalhavam para Dread Wilmè pegaram suas armas e viraramchimères,semtrabalharparanenhumamoun,apenasparaelesmesmos.Também
tinham muitos homens que queriam matar Dread, porque não gostavam deAristide, e entre eles estava o governo, que entregava armas como se fossembilhetes de loteria. Além disso, a ONU queria matar todos eles, assim nãohaveriamaisarmasnoSite.Manmansempreseassustavaduranteotempodosespancamentos, que era basicamente o tempo todo depois que Aristide foibanidodeumavezportodas,porqueaspessoasdoSite,elasnãodesistiramdele,dosonhoqueelevendeuparaelas.O.k.,agoravocêjásabedaverdadesobretudoqueacontecianaquelaépoca,
quandoeuviosegundohomemsermorto.Naquelanoite,manman estava lá fora também,porqueestavamuitoquente.
Tinhaumrádiovelhoeestavaouvindoele,sentadanumacadeirapara foradobarraco.Estavadeolhoemmim,enquantoeutrabalhavanaminhabicicleta.Semaviso,orádiodesligoujuntocomtodasasluzes.Ouvi alguém gritar. Isso não era incomum na favela,mas então ouvi outro
barulhoalto.Umtipoderonco.Eraumpoucocomoobarulhoqueouviquandotudoveioabaixo.Rrrrrrum,rrrrrumm,rrrrruuuum,rrrrruuuuum.Estoutentandoimitarpravocêobarulho.Estoufazendoaquinaescuridão,e
nãoestáficandobom,massepudesseouvirvocêentenderia.Mas você nãome ouve, não é?Ouço sua voz cada vezmenos agora— as
vozesperguntando se temalgumvivo aqui embaixo—,masvocênãoouve aminha.Vocênãomeouvequandogritodevolta.Então, tenho que descrever o barulho. É difícil fazer isso.Você vai ter que
usarsuaimaginação.O.k.,vocêestánaescuridão.Tempiti-pitiluzvindodascasasricasnomonte,
mas na favela estápreske, um breu. É impossível ver qualquer coisa que nãosejamvelas,fósforos,obrilhodoscigarros.Épossívelapenassentirocheirodosaldomaredospeixes.Vocêsóconseguesentirocheirodeóleodacorrentedebicicletanamão.Masoquevocêconseguesentirmaiséocheirodeesgoto.Dealgumlugarnaescuridãoestávindoestesomderonco,eemseguidadealgum
lugaracimaoutrosomestávindo,tipo,tzup,tzup,tzup,tzup,tzup,incrivelmentealto,ummilhãodeabelhassobreacabeça.Eraoqueparecia—etambémnão.Nãoconsigodescreverempalavras.Derrubei a corrente. Pensei que seria melhor correr, fosse lá o que fizesse
aquelebarulho,entãocomeceiamemexer.Mas,de repente, surgiuuma luzbrilhanteem todosos lados, e eucongelei.
Umholofotenumcaminhãoblindadochegou,numbrancocegante.Cuspiafogodasarmas.Umabalapassou,zuuuuuuuupi,esibilounoaçoonduladoatrásdemim.Fiqueiaterrorizado.Sentiquenãoconseguiaarsuficientenomeupeitopara
memover, como se eu fosse apenas olhos, observando, e ouvidos, ouvindo oestourodosdisparos,etodoorestodomeucorpotivessedesaparecido.Pensei,commuitaclareza,voumorrer.Esabia—deverdadesabia—pelaprimeiravezqueeunãoqueriaaquilo.Vi os capacetes da ONU e sob eles as metralhadoras estrepitando fogo.
Aquelesomacimaera,nofimdascontas,umhelicópteroeestavaatirandonosbarracosdooutroladodarua.Maisdisparosvieramdosbarracos.Umhomemcorriaruaabaixo.Nãosabia
seeraumchimèreounão,masnão importava,porqueumdos soldadosatirounelepelascostas.Viumagarotinhaempé, imóvel,egritava,gritava,dooutroladodaruadonossobarraco,atéalgoatingi-laeapartedecimadorostodelaser arrancada, e ela balançou sobre as pernas por ummomento, então caiu nalama.Uma porta se abriu e através dela eu vi Jeanne. Era amulher que vivia na
frente da nossa casa com seu bebê,Willie. Nunca soube onde estava o papadaquele bebê; talvez estivesse morto, ou talvez apenas a tenha abandonadoporque não conseguia dinheiro para cuidar deWillie. De qualquer forma, elaestavadeitadanochãocomanpil sangue,Willie sobre ela.Quis ver se estavavivo, porque eu gostava deWillie— ele sorria quando me via—, mas nãoconsegui,porquetinhabalavoandopratodolado.
Caídejoelhos.Nãopodiacorrer;sóconseguiaficarali.Vimanmanempédoladode fora do nosso barraco, gritando e gritandopara eu correr,mas eu nãoconseguia—viaaquelasbalasvoandopratodoladoetinhacertezadeque,seeumemovesse, umadelasme acertaria.Pensei que, se eu rastejassebemquieto,talvezelesparassemdeatirareeuficariao.k.Olheiaoredoreviaqueletanqueenormevindonaminhadireção,aindaumpoucodistante,masnãosedesviavademim.E as armas continuaram a disparar. Os soldados de Dread, eles estavam
trocando tiros com os casques-bleus, mas não vi muitos Minustah caindo—todos usavam colete à prova de balas e suas armas eram melhores. Algunsgângsteres largaram armas e ergueram as mãos, então os caras da ONU osagarraramearrastaramparaumveículoblindado,umHumvee.Nãosabiadissonaépoca,masumadaspessoasqueprenderamfoioBiggie.Elepassou,tipo,algunsanosnaprisãodepoisdaquelanoite.Disseramqueele
haviamatadoumsoldado.Talveztenhamesmo,seilá.Finalmente,viDreadWilmèsaindodeumbarraco.Nãotinhaideiadequeele
estivesse dormindo perto da gente, mas os chimères se mudavam sempre,especialmentedepoisqueAristidefoideposto.Nuncaficavamnumbarracoporduasnoitesseguidas,paraocasodealguémencontrá-los.Bem,euachoquealguémencontrouDreadWilmèaquelanoite.Seusdreads
balançavam loucamente e ele tinha uma arma em cadamão. Não sabia quaisarmaseramnaépoca,masagorasei.Eramuzis.DreadWilmè atingiu um soldado na perna. Mas estavam atirando nele do
helicóptero, estavam atirando nele do tanque, estavam atirando nele do solo.Algoquenteexplodiunaminhaperna,eolheiparabaixoparaverumflorescervermelhonosmeus jeans.Sabiaqueerasangue.Oquemechocavaeraquantodoía.Eujáestavadejoelhose,naquelemomento,despenqueideumavez.Otempodiminuiu.Minhapernalatejavadedor.Ali deitado vi o chão se estendendo diante de mim, um plano enlameado
infinito,eviamanmansairdobarracoecomeçarasemovernaminhadireção.—Não—tenteidizer.—Fique…Masentãoeudevoterdesmaiado,porquenãolembrodemaisnada.Orestoé
oqueminhamanmanmedisse.Manman corria naminha direção e então algo a agarrou forte.Um soldado
estavasegurandoela—saiudonegrumeeagarrouosbraçosdela,eelalutavaparaselivrar,paracorreratémim,maselenãoadeixavair.Euestavadeitadonaterra,inconsciente,eDreadWilmèestavaentremimemanman.Vindonaminhadireçãodooutrolado,semparar,estavaumveículoblindado,emanmanpodiaverqueelerumavadiretopramim,iameesmagarsemhesitarparapegarDread.HaviatantosburacosemDreadWilmè,manmandisse,quedavaparaveros
faróis dos caminhões e as lanternas das armas dos soltados brilhando atravésdeles.Nuncaacrediteinaquilo,maselajuravaserverdade.Agora,eumeioqueacreditonela.Agora,euviamerdaquemefazpensarqueelaestavafalandoaverdade.Todasaquelasbalasnele,atravésdele,minhamanmandisse,eeleaindaestavaempé,filtrandoaluz,comosefosseseudestino.Então—eessaéapartelouca—,DreadWilmèvirou-sepramim,emanman
disse que era como se ele visse algo sagrado, algo que pudesse salvá-lo.Começou a se mover na minha direção. As balas ainda o atingiam, mas elebalançavanaminhadireção,aluztremeluzindoatravésdosburacosnele,comoseseucorpofosseocéunoturnoeosfurosdebala,estrelas.Etodootempootanque continuava a seguir na minha direção — na direção de Dread,especialmente—,masprecisariapassarporcimademimparaalcançá-lo.Dread Wilmè não queria que aquilo acontecesse, ao que parecia. Ele
cambaleavanaminhadireçãosempararparaanyen,mesmoqueatirassemnele.DreadWilmè ainda estava morrendo, ainda se movia na minha direção, o
tanque se aproximava. Manman não conseguia acreditar no quanto aquilodemorou, e ela gritou o tempo todo para o tanque parar.Manman disse queDreadlevouminutosparamealcançar,nãosegundos,eelecontinuavaagritar:—Ayitiviv,Ayitiviv.
VidalongaaoHaiti.Masnãoacreditonisso.Seelefoialvejadotantasvezes,nãoestariagritando
anyen.Eu,eutomeiumtironapernaedesmaiei.Naverdade,tudoissodeveteracontecido,tipo,notempoquelevaparaestalarodedo.Manmanestavaempé,naterrabatida,presapelosoldadoqueseguravaseus
braçosatrásdascostas.Osanguecorrianaruacomoumrio.Otanqueavançavacadavezmais,retumbandonaminhadireção,eelapodiaverquealgumasbalastambémvoavampramim.Sabiaqueseossoldadosnãoparassemdeatirareotanquenãoparassedeavançar euestariamortoembreve.Elapediaajudaaossoldados, mas estava falando nos idiomas errados. Descobriu depois que ossoldadoseramdaJordânia,queéumpaísdesérticobemlonge—manmanmedissequetinhamcameloslá.OqueestavamfazendonoHaiti,eunãosei.Finalmente, Dread Wilmè chegou até mim, e me ergueu, manman jurou,
quando o Humvee estava prestes a me atingir. Pairava sobre nós como umaparede móvel. Ela temeu por um momento que ele atingiria Dread etransformariaaeleeamimemlamasangrenta,comoorestantedarua.Maseleconseguiuatempo.Curvou-se,meergueu,emelevouparaoladodarua.Elemeempurrou contra a parede de um barraco e deitou sobre mim, me cobrindo.Continuaramaatirarnele,denovoenovamente,atéelenãosemovermais.Então os soldados recuaram em seus caminhões, no tanque, e o helicóptero
foi,tzup,tzup,tzup,tzup,evoouparalonge.Manman rastejouatéocorpodeDreadWilmè.Eramaisburacoquecarnee
vazavasobreomundotodo,maselajurou—mwenjire,mwen jire—queeleabriu o olho e saiu de cimademim rolando quando a viu.Ele estava deitadonum lago de sangue, como aquele que se abriu entre as pernas demanmanquandoeueMargueritenascemos,eelateveumasensaçãoprofundadedéjàvu.TinhaumocoondedeviaestarumdosolhosdeDread,eelesangravapormilferimentos.Dread fuçou no bolso e tirou aquela pedra, um seixo liso, como algo gasto
pelomar.Eleapertouapedrinhanamãodemanman.Elasabiaqueeraumpwen,
ehaviaumdeusnelequeviajoudovelhopaísnaÁfricaOcidentalparaestarnamãodela,naquelaruasangrenta.—Paraogaroto—eledisse.—Eletemapenasmetadedaalma.Precisade
proteção.Umdia,logo,outraalmaopossuiráeelepoderáserbomoumau,masessepequenopoderiaserocarapro…Eletossiu,eosanguevooudaboca.Emseguida,umapausalongaeterrível.—…Ayiti—elesussurrou.Haiti.Manmantentouperguntarmaispraele,entenderoqueelequisdizer,porque
fezoquefezparamesalvar.Tinhaasensaçãodequeouviaumaprofecia,masnãosabiaoqueera.SabiaqueDreadWilmèestavamuitoenvolvidocomovodu,ele mesmo era quase um houngan, e que ele não dizia nem fazia nada semquerer. Não conseguia parar de pensar nele deitado comigo naquela poça desangue,enohounganquelhedissequeobebêdentrodelanasceriaemorrerianosangueenaescuridão,masviveriaparasempretambém.Mas Dread se foi. Seu olho branco, aquele que restou, refletia apenas o
negrumedocéu,comoseanoitetivessesederramadonele.Aparentemente,noexatomomentoemqueelemorreu,eudeiumsuspiroprofundoeabriosolhoseberreidehorroredor.Manmanmesegurounosbraços,olhouparacimaeviuocéupretocobertode
estrelas,omesmocéuqueelaviupeloburacodotelhadodaigrejananoiteemquenascemos.Maistarde,quandovoltouaonossobarraco,elaviuqueotelhadoestavacheiodeburacosdebala—dohelicóptero,elaimaginou.Sabiaqueseeueelaestivéssemoslá,teríamosmorrido,esabiaqueaquiloeraumsinal.Elasónãosabiaoquesignificavatudoaquilo.Ou,parasermaispreciso,ela
temia saber.Temia que a alma deDreadWilmè tivesse saído do corpo dele eentradonomeuparatomarametadedaminhaalmaqueeradeMarguerite.Elaestavaerrada,seidissoagora.NãofoiDreadWilmèquesetornouaoutra
metadedaminhaalma.
OUTRORA
Toussaint cavalgava à frente do pequeno exército. Os soldados, sepudessemserchamadosassim,estavamemsuamaioriaapé,vestidosemtrajesdescoordenados de tecidos multicoloridos, esfarrapados, seu toucado e armasridículosefornecidosapenassegundoanecessidade.Algunsestavamatémesmocomvestesfemininas,pésdescalços,ostentandocomzombariaassedasfinasdeseusantigossenhores.Ele reuniu os escravos que estavam em Bois Caiman, e rapidamente eles
dominaram os senhores neste pequeno canto do país, encontrando poucaresistência. Aumentavam seu poder ao passo que seguiam, recrutando maisnegrosparaacausaemcadafazendaquelibertavam,crescendoatodomomento,comoumpadeirosovasuamassasobreabancadaparaincorporarospequenospedaçosquesesoltaram.Noentanto,osbrancosestavamreunindosuastropasaosul,enãodemoraria
até que a guerra começasse. Toussaint estava determinado a alcançar asuperioridadeantesdisso.Pegoualgunsmapasdoescritóriodoseuex-senhoreosestudou.Considerouqueasmontanhasdointeriorseriamumabelafortaleza,oferecendoavantagemdaalturaedadiscrição,enquantoofertavamasterrasquepoderiamcultivar.Muitosdosoutrosescravospensavamapenasemvingança,ediversas vezes ele interveio para impedir atrocidades quando chegavam paradesafiar os pretensos senhores brancos das terras que eles libertaram. Noentanto, Toussaint pensava adiante. Pensava sobre o que eles fariam quandoderrubassemtodosospostoseestivessemlivres.Precisariamcomer.Precisariamresistir aos inimigos, certamente os franceses enviariam reforços para destruí-los.Àfrente,eleseguiuparaopontodeencontrocomBoukman,quejácavalgara
paraoeste,comvintehomenspara libertarosnegrose limpara terranafrente
deles.Em seguida, juntos, eles liderariam seupovo até asmontanhas e, assimesperavam, se reuniriamaoutros líderesda rebelião.Ouviram rumoresdequeescravos em todas as partes do país se levantaram, livrando-se do jugo daopressão e proclamando-se livres. Toussaint instruiu todos os homens do seuexércitoaindapequenoaespalharanotíciadequeelesseguiriamparaasalturaspara consolidar o poder. Estava confiante de que alguns negros de outrasprovínciassejuntariamaele:mulheresecrianças,comcerteza;oscovardes,semdúvida;mastambémaquelescomumavisãodelongoprazodasituação.Toussaint conseguia ouvir os homens atrás dele cantando a vitória. Eles já
haviam criadomúsicas sobre a liberdade que conquistaram, e as entoavam deformamaisentusiasmadadoquejamaiscantarammúsicasdetrabalho,emboraosritmosfossemosmesmos,elepercebeu.Sabiaqueseriaumalutamaislongadoqueelessuspeitavam,maselenãocomentou.Pensavaquenãoseriabomparaomoral.Ao seu lado, Jean-Christophe estava em silêncio, cavalgando com uma
expressãopensativanorosto.EraumadascaracterísticasqueToussaintgostavanogarotoe tinhaprazerem tê-lodo seu lado. Jean-Christophepensavamuito,mesmoseàsvezeselefosseingênuoemsuasconclusões.Bem,eleconsiderou,umpoucodeinocênciaprovavelmentefariabematémesmoaopróprioToussaintemseunovocargo—dariaaeleperspectiva.Orapazmais jovemfora treinadoporBayoudeLibertasparafazersomase
administrarsuascontas.Toussaintpensouquepoderiaserútiltambém.Precisavaimpedir que os homens que cantavam atrás dele destruíssem tudo naquelasantigascasasde fazenda.Ordenouque fossemsaqueadascuidadosamenteeosganhos fossem trazidos com eles, pois precisariam de dinheiro e comida. Erainevitável,nãoeracapazdeimpedirasmortestotalmente,esentiamuitosobreisso.Ospioresexcessos,sim—elesalvoualgumasfilhasdeestupro,algunsdossenhoresmaiscruéisda tortura—,masguerraeraguerra,eelenãoconseguiuajudaralguns.Pensoutervistososbrancosmortosatrásdeletambém,vagandoatrás do exército de gentalha, fantasmas pálidos, insubstanciais, em roupas
elegantes.Eleviravaemsuasela,olhavaossoldadosvariados,pensavasobrefantasmas
quandoouviuJean-Christopheengasgarantesdetervistoalgumacoisa.Quandosevirou, suagarganta se abriu e ele fezumbarulhohorrorizado.À sua frentehavia um negro pregado numa árvore pelos pés, sua cabeça pendendo aocontrário,suasentranhaspenduradasparaforaecheiasdemoscas.Toussaintapeoueseguiuatéasombracomplexadasárvores,luzeescuridão
lançandopadrõesencaracoladosaosseuspés,comosetentassemtransmitiralgopormeioderunasquehomemnenhumpoderialer,nemmesmoele.Quandoseaproximou,viuqueohomemeraBoukmanesentiualgonopeito
quepoderiatersidoocoraçãoseestilhaçando.Agargantadohomemmaisjovemforaaberta—suacabeçapendiabaixapor
contadisso,ocorteselvagemromperaaespinha—eporessemotivoToussaintreconheceuasfeiçõesapenasquandochegouperto.Abarrigatambémtinhasidoaberta,ehaviaumferimentodebalanatesta.—MeuDeus— disse Jean-Christophe.—É como se tivessem-nomatado
diversasvezes.—É—falouToussaint.Ele pensou no pwen de Boukman e como ele sempre dizia que isso o
protegeriaeguardariasuavida.Talvez fosseverdade, pensouToussaint.TalveztenhasidodifícilmatarBoukman,entãotiveramdemutilá-lodessejeito.Segurando o fôlego— o cheiro era horrível—, ele revistou as roupas de
Boukmanatéencontraroquebuscava.Elehaviacosturadoapedranoforrodocasaco.Toussaintfranziuocenhoparaelaeperguntou-seseohomemsabia,dealgumaforma,queestavaemperigo.—Queéisso?—perguntouJean-Christophe.Toussaintvirouapedranasmãos.—Éumdeus—elecomentou.—Trazproteção.—Nãoparecefuncionar,então—retrucouJean-Christophe.— Depende de quando ele morreu, não é? — Toussaint falou. — Se um
homemprecisouserbaleado,esfaqueadoeestripadoantesdemorrer,possodizerqueestavabemprotegido.Jean-Christopheempalideceu.—Achoquesim—elerespondeu.Toussaint não sabia o que a pedra poderia fazer ou fez,mas sabia que era
importanteparaBoukman,comosabiadaimportânciaquetinhaarebeliãoparaele.Poliuopwencomsuamanga,entãodeixou-aescorregardentrodoseubolso.AqueledeusveiodaÁfricaparavivernapedradeBoukman, eToussaintnãodeixariasuajornadaterminarnocorposemvidadaquelehomem.Elefezosinaldacruz.Deu umúltimo e demorado olhar para o rosto deBoukman.Quando o fez,
umaimagemseofereceuàsuamente:Boukman,àmesadecarteadonacasadeToussaint, bateu a mão sobre o tampo, imitando os brancos numa casa decassino,edisseaToussainteaosoutrosescravosinfluentesreunidosláquenãodeviam mais sofrer com suas cartas sendo distribuídas a eles, que deveriampegar as cartas com as próprias mãos. Foi logo depois de Boukman ter sidotrazido para a fazenda ao lado da de Bayou para supervisionar o trabalho decampo.Boukmaneraesperto,eosbrancoseramespertosobastanteparausá-lo.Apenas não sabiam quanto ele era esperto, ou para que ele poderia usar suainteligência.Ojogodecartasparou—ascoisastendiamapararquandoBoukmanfalava.
Com suasmãos, enquanto ele dissertava sobre a liberdade quemereciam, elerapidamenteconstruiuumcastelodecartas.—EstaéanaçãobrancadoHaiti—eledisse.—Nadaalémdeumcastelode
cartas. Somosmaiores emnúmero.Elesmantêmo domínio sobre nós por umtipodetruquemental,fazendooqueédelicadoefracoparecersólido.Elesoprouascartas,fezcomqueelasseespalhassem.—Somosovento—elecontinuou.—Somosoareaterraeasmontanhas
destepaís,evamostomá-lodeles.Toussaintfechouosolhos,lembrando-sedavoz,lembrando-sedasexpressões
enlevadas no rosto dos outros homens. Apenas esperava que pudesse inspirarcomoBoukmaninspirou.Subiunovamentenocavalo.Enquantocavalgaramadiante,virammaisemais
corpos, todos pregados em árvores, mas nenhum tão dilacerado como o deBoukman.Foiapedra,Toussaintpensou—não,elesoube.Preocupou-secomelanoseubolsoenquantocavalgava.ApedraprotegeuBoukman,ofezdifícildematar. Esperava que esse poder se transferisse para ele, não porque ele nãoquisessemorrer,masporquequeriarealizarosonhodeBoukman.Defato,nãotinhamedodemorrer,nãomais.Agoraentendiacomaféqueele
nunca tivera antes que veria todos aqueles que perdeu quando morresse, quefalariacomBoukman,comsuamãe,paieirmãnovamente.Eraverdadequenãohavianecessidadesobreaterraquenãopudessesersaciadaesatisfeita.Quandoa sede chegava, havia água. Quando a fome chegava, havia comida. Éimpossívelprecisardeumacoisasemqueelapossaserobtida.Umhomempodequererumcavaloverdequevoe,masnãopodenecessitardeum,poiselenãoexiste.Nessemomentopreciso,ToussaintsentiuqueprecisavadeBoukman,quenão
podia aguentar aquilo se nuncamais o visse de novo, e sabia por que aquelanecessidadeexistia,queelaseriaatendida.Depoisdeumtempo,chegaramaumagrandefazenda;Toussaintnãosabiao
nomeeissonãoimportava.Parouseucavalonumrepentequandoumtirosooueumalufadadepoeirasubiuda trilhaàsuafrente.Osbrancosretrocederam,aoqueparecia,edefenderiamacasa-grande.Atáticasensatateriasidocontornarafazenda para encontrar um caminho mais longo até as montanhas que nãocausassederramamentodesangueparanenhumlado.Porém,Toussaintnãoviuas árvores e a trilha seca e os campos cercados cheios de cana-de-açúcar seagitandoaovento.Nãoviuospilaresbrancosdacasa,reluzindonocaloraofinaldopercurso.ViuBoukmanbalançandonaquelaárvore,umapoçadoseuprópriosangueembaixodele,servindodebanqueteparaasmoscas.Voltou-seaJean-Christophe,queeraohomemmaiságilqueeleconhecia,e
espertotambém.— Vais atravessar o canavial — ele disse. — Contorna a casa e evite as
janelas.Sigaparaodepósitodelenhaseconseguir…fiqueatrásdaconstrução;os brancos não podem suportar ter coisas como essa à mostra. Estarãoobservandoaestrada,tenhocerteza.Nãoteverãochegar.—Eentão?—quissaberJean-Christophe.—Tacafogo—disseToussaint.—Estaremosesperandoelessaírem.Um homem grande, que se distinguiu como combatente, mas mostrou um
traço de crueldade terrível, deu um passo adiante. Toussaint pensou que seunomepoderiaserMatthieu.—Eentão?—eledisse.—Queresqueosdeixemosiremboradenovo?Toussaintcorreuamãopeloscabelos.—Não—elerespondeu.—Essestupodesmatar.
AGORA
Queriapoderouviralguémfalar.Queriapoderouvirmanmanmais umavez.Lembroquefoielagritandoquemefezsairdaescuridãoparaomundoreal.Depoisquetomeiotiro,manmanesperouatéossoldadosirememboraeentão
melevouatéopostodecontrolemaispróximo.DeixouDreadWilmèlánarua,morto, onde as tropas daMinustah o abandonaram. Não eram maus, aquelescaras.Queriammatarohomem—tinhamasbalasparaisso—egarantiramquegastariamalgumasbalaspara isso,massabiamquearrancarDreaddoSiteerareceberumarevoluçãodesgraçadanasmãos.Nãovaliaapena.Nãoapenasisso,masDreadtinhaafamadecomerbebês,cara,eelesoviramdesceraruacommil buracos de balas no corpo. Os soldados brancos, os blancs, não queriamaquelevoducomeles.No entanto,manman ficou nervosa porque elesme deixaram para trás. Era
umacriança,sangrando;pensouquemesmonumaguerraaspessoasnãodeviamdeixarcriançasferidasnarua.Elaficoucommedodeeumorrer,eentãonãolherestarianinguém.Acordeinovamentequandoouviagritaria.Abriosolhoseestavanosbraços
dela. Eu não era leve, tinha, sei lá, uns cinquenta quilos ou mais. Ela mecarregouocaminhointeiroatéondearuaestavabloqueadaporumcontêinerdecargalaranja,ehaviaumabarreiranafrentedarua.Osuorbrotavadorostodelae seus olhos eram imensos, estavam tão perto de mim. Tudo estava meioesbranquiçadoedesbotado,eeutinhaconsciênciadocheirodomeusangue.Oscasques-bleusapontavamarmasparanóseerampartedagritaria.Manmanestavagritandotambém,masnãoparaossoldados.Elaosignoravae
caminhava na direção daquelas pessoas com câmeras, sem uniformes, queestavam do outro lado da barreira. Os soldados mantinham essas pessoas pratrás,maselasseesgueiravamparapassaretiravamfotosdenós.Conseguiaver
os flashes piscando e faziamminha cabeça girar cada vezmais. Era, tipo, demadrugada. Havia um pouco de luz no céu, como sangue vazando de umferimento,masnãomuito.Aspessoascomcâmeras,entendiqueeramjornalistas.Gritavamegritavam
— em inglês, eu acho.Manman não falava inglês, mas gritava em crioulo egritavanofrancêstruncadoquesabia.Elagritava:—MeufilhofoibaleadopelossoldadosdaMinustahnafavela.Elagritava:—FoibaleadoduranteumaoperaçãomilitarparamatarDreadWilmè.Dread
Wilmèestámortoemeufilhoestáferido.Meajudem.Um dos repórteres se desprendeu do grupo e virou-se para os soldados.
Estendeuumacâmeradevídeoparaafrente.—VocêspodemconfirmarseDreadWilmèfoimorto?—eleperguntou.Osoldadoseafastou,parecendonervoso.Manmannãoparavadegritar.Caminhavacadavezmaispertodabarreira,e
ossoldadosfugiamdela,semsabercomoproceder.—Porfavor—eladizia.—Porfavor,medeixempassar.Deixemmeufilho
recebertratamento.Porfavor.Vocêsatiraramnele,agoralevem-noprohospital.Osrepórteresestavamfilmandotudoissoetirandofotos.Osflashes,eramum
pouco como armas disparando, e me faziam pensar que eu estava ficandoenjoado ou fosse desmaiar de novo. Não aconteceu, mas eu queria queacontecesse.—OuvimososdisparosdedentrodeSiteSolèydepoisdeverosveículosda
MissãodeEstabilizaçãodasNaçõesUnidasdoHaitientraremlá—umarepórterdisseemfrancês.—Tambémvimosumhelicóptero.Vocêsatiraramnogaroto?Elaperguntouparaojovemsoldadoqueestavapróximo,masnaverdadeela
estava perguntando para todos os soldados, e ela falava para uma câmeratambém.Viumdeles,quepareciaumpoucomaisvelhoqueorestante,virar-seefalar
baixoerápidonumwalkie-talkie.Osoutrostinhamosdedosnosgatilhos,enem
todas as armas estavam apontadas para nós; algumas delas estavam apontadasparaosrepórteres.Manman,elaeraesperta.Elanãoestavanemolhandoparaossoldados; ela falava com os repórteres o tempo todo, mostrando a eles oferimentonaminhaperna,dizendooqueaconteceu.— Eu vi Dread Wilmè morrer com meus próprios olhos — ela dizia. —
Encheramelecomtantasbalasquepodiamlevantarelecomumímã.Osrepórterescomeçaramapressionaremseguida,tentandoentrarnoSite,ea
barreiraseestendeudiantedeles.Umtentouseesgueirarporbaixoeumsoldadoagitouaarma,gritando.Achoquealguémpoderia ter tomadoumtirobemali,masnaquele instanteosoldadonowalkie-talkiedeuumpassoà frenteepôsamãonocanodaarma.—Deixemamulhereogarotopassarem—eledisseaoshomensquefaziam
abarreira.—Acompanhe-osatéoCanapé-Vertparatratamento.Os repórteres ficaram em silêncio, em seguida todos gritaram ao mesmo
tempo:—IssosignificaquevocêsconfirmamamortedeDreadWilmènasmãosdas
tropasdaMinustah?—Vocêspodem…?—Vocês…?—QualéasituaçãodeDreadWilmè?—Vocêsatiraramnogaroto?Os soldados levantaram a barreira, e manman a atravessou. Naquele
momento, ela ignorou os repórteres completamente, e era como se nãoexistissemmais.— Sem comentários — disse o soldado com o walkie-talkie. — Sem
comentários.
OUTRORA
Toussaint avistou a baía do Cabo Haitiano através da luneta. Viu trêsnaviosbojudosavançandoemáguasprofundas.EleeJean-Christopheestavamnummontesobreacidade,enquantoamaiorpartedocorpodeescravoslibertosainda acampava nas montanhas próximas a Dondon. Nem todas as forçasrebeldeseramdeToussaintainda,mastinhaféquelogoseriam.Achouqueeraobrigadoatrabalharnomeiodanoiteparaevitarosono.Pois
sedormisse,ossonhosviriam,eelesetransformarianaquelejovemnumaversãoestranhadoHaiti,ondeosnegroseramlivres,maspareciamaprisionadosaindanuma cidade de casas instáveis, cercadas por soldados. Nesse mundo depesadelo havia música alta, com batidas insistentes e repetitivas de umacerimôniavodu,ehaviasinaiseluzesestranhasquequeimavambrilhantescomoosoldomeio-dia,mesmoànoite.Tinha tantossinaisesonsestranhosqueelesempreacordavazonzoedesorientado,apesardeaquelemundolheserfamiliar,comosepartedelepertencesseàquelesonho.Outrasnoitesnãoestavanaquelacidade,masnumespaçopequenoeescuro,
comoumacaverna,epareciaqueomundoocomprimia.Estavaconvencidodeque ninguémo resgataria e que elemorreria.Gritava,mas não tinha ninguémparaouvir.EseforalgoterrívelqueentrouemmimemBoisCaiman?,eleseperguntou.
Eseforoinfernoqueestouenxergandonasminhasvisões?Esses pensamentos preocupavam Toussaint, mas seu povo precisava dele.
Deviatervoltadoparaasmontanhas,estartreinandoastropas,garantindoqueaterrafossecultivadaconformeplanejado,desenhandomapasparamostrarcomoopaísdeveriaseradministradoassimqueestivessetotalmentenassuasmãos.Efezessascoisasincansavelmentenosmesesquepassaram.TambémqueriaestarondeIsaacestava.Seufilhotinhadezesseisanosnaquelemomento,praticamente
umhomem.Contudo,nãoerasoldado,e issonãoeraapenasporqueToussaintnão queria vê-lo morrer. Isaac era um garoto sensível, inteligente, um oradorcalmoeumleitordelivros.Eleficariamelhor—maisseguro—nasmontanhas.No entanto, soube daqueles navios que singraram todo o oceano desde a
França e quis vê-los com seus próprios olhos. Assim, deixando o filho nasegurançadosmontes,trouxeumpequenodestacamento,osmelhoresentresuastropas,paraacamparbemacimadoCaboHaitianoeobservaroqueosfrancesesestavamplanejando.Osoutrosdoisgenerais,Jean-FrançoiseBiassou,pensavamqueeraummalucoparaviajaratéoCabo.—Oscomissáriosnosderamnossa liberdade—elesdiziam.—Atingimos
nossoobjetivo.Decerto,eraverdade.Oscomissáriosrenderam-seàs tropasnegras,ea ilha
eradeles,vistoqueeraagoraumarepúblicalivredebrancosenegros,nãomaissujeitaàFrança.Foraummomentoarrebatador,aculminaçãodetudopeloquelutaram. O próprio Toussaint recebeu o documento no qual, em linguagemformaleescritaprecisaemtalho-doce,ocomissárioconfirmoua liberdadeeavitóriadosescravos.Eratãoleveefrágilquantoqualqueroutrofeixedepapel,embora cada letra fosse escrita em sangue e atrás de cada palavra houvessehomensmortos.No entanto, foi em vão que Toussaint tentou explicar que aquilo que os
comissáriosfizeramedisserameramenosimportantedoqueasbatidasdeumamoscacontraumavidraça.Oscomissáriospoderiamserbrancos,masnãoeramfranceses,nãodeverdade,poisnamaiorparteelesnãoeramnascidosemsolofrancês. Quando chegaram, os franceses autênticos tomariam a liberdade dosnegrosqueoscomissáriosdeclararamelimpariamorabocomela.BiassoueJean-Françoisesperavamquepudessemapenaslivrar-sedojugoda
escravidão e ser felizes eternamente. Não lhes ocorreu que os franceses jáestavamtramandosobrecomopoderiamtiraraliberdadedosnegroseenterrá-lacomoscorposdaquelesqueresistissem.Agora,especialmenteporqueBoukmanestavamorto,Toussaintprecisavapensarnaslavourasenagovernança,enoque
aconteceria quando os escravizadores quisessem sua terra de volta. Toussaintprecisava pensar sobre as diversas negociações ainda a ser concluídas comoscomissários. Entre eles, e uma prioridade na sua mente, estava a soltura demuitos prisioneiros negros que eles mantinham — alguns presos antes dainsurreiçãoporumaladainhadepretextosfracos,algunscapturadosnodecorrerdabatalha.Comoessesprisioneirospermaneciamnocárcere,eoscomissáriospermaneciamnopoder,Toussaintnãoconsideravaosescravostotalmentelivres,nãoimportavaoqueoscomissáriosdiziam.Elesuspirou,sentindoosuorpingandodatestaparaosolhos.Omonteonde
estavam nunca fora cultivado, então oferecia a cobertura de vegetação densa.Folhas grandes os escondiam e lhes concediam um pouco de proteção do solimpiedoso. Toussaint sabia que todos no Haiti eram escravos para o sol —queimavaascoisasdesenhoreseescravosdamesmaforma.Baixoualunetaeteveavistainteira—apesardaidade,aindatinhaumaboa
visão.Aqueles três navios franceses deviam ter vindo daFrança assimque asnotíciasdarebeliãodosescravoschegaramàcosta.Aolhonu,nãopareciamtãograndes.EramofuscadospeloCaboHaitiano,umportocaóticoqueabraçavaabaía combraços abertos e pontudos.Muitas das casas eramgrandes, no estilofrancês,mashavia tambémumabarafundadeestruturasdemadeira,pequenosbarracosecasasqueseapinhavamnos flancosdasmontanhascomocracasnalateral deumabaleia.Estalou a língua contraopalato, pensandono emissáriofrancês,provavelmentepresonaquelebarco.—Tenscertezaquenãoatracou?—eleperguntou.Jean-Christopheconcordoucomacabeça.—Oemissáriofrancêsdeixouonavioumavez,numbarcoaremo.Chegouà
costaeoscomissáriosoencontraram,masdevemtê-lomandadodevolta.Haviamuitoshomensarmadoscomeles,eoemissárionãopareciafelizcomisso.Toussaint pensou nisso por um momento, feliz por ter enviado Jean-
Christophenafrente.—Oespíritodarevoluçãochegouaessescomissários também—eledisse.
—AchamquetalveznósdevêssemosserdonosdoHaiti.Achamquetalveznãodevêssemosmaisnoscurvaraumgovernoqueestáameiomundodedistância.Osbrancostambémqueremserlivres.—NãonegamopoderdaFrança—Jean-Christophedisse.—Éloucurada
partedeles.Toussaintbalançouacabeça.—Não.NegamopoderdogovernorevolucionárionaFrança.Quemdisseque
a monarquia não ressuscitará na França e esses comissários não serãoenobrecidosporresistiraosusurpadoresrepublicanos?Os três navios lá embaixonão carregavamas coresdo rei— tremulavama
bandeira tricolor que designava a República. Na França, apenas pouco tempoantes,o rei foradeposto, teveacabeçacortadaeumaassembleia tomouoseulugar.FoiumdoseventosqueconvenceramBoukman,eoutros semelhantesaele,queerahoradedeclararindependênciadosescravizadores.Toussaint quase conseguiu admirar o risco que os comissários haitianos
estavamassumindo.Recusaramapermissãoparaosnaviosdogovernofrancêsdesembarcarem—seanovaRepúblicanãocaísse,ascoisasiriammalparaele.Galbaud,oemissárioabordodomaiordosnavios,foienviadopelaFrançaparaassumir o controle doHaiti e escravizar os negrosmais uma vez.Não ficariasatisfeitoaoficaraprisionadoemsuaprópriaembarcação.Bem,Toussaintpensou.Deixaosfranceseseoscomissáriosbrigarentreeles.
Issotornaráminhatarefamaisfácil.Continuouaexaminarosnavios.Elesancoraramnoraso—muitoraso.Água
morosa, preguiçosa pelo sol quente, espremida contra os cascos. Uma figuraúnicasemoviaemumdoscastelosdaproa.Ospássarosrolavamemergulhavamnocéuazulacima.Toussaintencostouonariznochãoerespirou.Sentiuocheirodelama;sentiu
o cheiro da riqueza da vegetação fértil. Sentiu o cheiro do espírito do Haiti.Sentiuocheirodeoportunidade.—Quantossãonosnavios?—elequissaber.—Digo,quantosviste?
—Nãomuitos, uns poucos que circulam no convés.Às vezes, o emissárionaquelechapéuridículo.Toussaintfranziuocenho.Nãomuitos.Aindaassim,osnavioseramgrandes.
Elepoderiaterpensadoqueestavamcarregados—milhõesdefrancosemcana-de-açúcar, índigo, batatas e coisas assim—, excetoque a carga saiudoHaiti;nunca chegou. As únicas coisas que chegaram em navios semelhantes foramescravos.EscravoscomoopaideToussaint,quemesmonoleitodemortefalavados dias infinitos de doenças, de corpos sendo jogados ao mar, de choro naescuridão, de pernas e mãos algemadas, carne apodrecendo pelo contato commiasmashumanosqueeramonipresentesabaixodoconvés.Por que estão ancorados em águas tão rasas?, ele se perguntou.Oquehá
naquelesnavios?EledeuumtapinhanascostasdeJean-Christophe.—Queroveroquehánaquelesnavios—eledisse.—Masestãoforadabaía…oscomissáriosaindanãoosdeixaramentrar.—Eusei—falouToussaint.—Esperoquesaibasnadar.Toussaintficounapraia,observandoaáguacinzenta.Umatrilhadaluzdalua
no mar levava além do horizonte. Tinha a sensação de que, se a seguisse,terminariacomosmortosnolocaldedescanso,eporummomentoficoutentadonãoanadaratéonavio,masapenasanadaratéqueseesgotassemasforças,atéomar o engolir, até que pudesse verBoukman novamente, e seu pai, até quepudesseagarrarasmãosdeleedizer:“Faztantotempo”.Observandoaluzdalua,lembrou-sedealgoqueBoukmanlhedissera:queo
mar e a lua estavam ligados, a lua guiava de alguma forma misteriosa osmovimentosdamaré.ToussaintsentiuqueomareramesmomaisdaluadoquedaTerra.Pareciaumparagemestranha,cheiadecriaturasestranhas,sussurrandoparaele,masfria.Deuumsuspiroprofundo,ignorouoimpulsoeconcentrou-seemsentiroventonapelenua.Jean-Christophe estava ao lado dele, arrepiado. Toussaint deu um passo à
frente atémergulhar os pés na água, e de repente ficou commedo de seguir.
Sentiu a superfície do mar não como um plano simples, mas como umamembrana, uma fronteira horizontal para algum lugar estranho e não destemundo.Eledeuumpassoparatrás.Jean-Christophetocouseuombro.—Olhe—eledisse.Apontouparauma formanapenumbra alémdeles,meio enterradana areia.
Toussaint olhou para baixo e viu o rosto e o busto de uma belamulher, seusolhosdepinturadescamada,suaformademadeira.Identificoucomoafiguradaproadeumnavio,umamascotee,semdúvida,fontedeconfortoparaoshomensque navegavam com ela. Provavelmente, aquele navio tinha ido a pique hátempos,masavisãodocabeloesculpidoedosseioserguidosdeuumestranhoacesso de coragemaToussaint. Inclinou-se para tocá-la, observando como elalembravaosíconesquetinhavistodeLaSirène,alwadomaredosmortos.Amadeira estavamorna ao toque, e ele sorriu. Tinha visto o oceano antes,
comseupai,eviraascoisasqueacabavamnapraia:pedaçosdemadeirapolida,vidro,àsvezesossoshumanos,oubarrisdecomidaebebidaaindaboa.Omar,elesentiu,nãoeratãoestranho;comportava-secomoossereshumanos.Tomavacoisas—amadeiraàderiva,osafogados—easamava,massempre,comoumapessoaquemorreedeixaparatrássuasposses,asabandonava, lançando-asnacosta, e seguindo em frente. Nada pertencia ao mar para sempre; de algumaforma,terminavaemalgumapraia,nalgumlugar,esquecido.Omarexpulsaessascoisas,elepensou,essasrecordaçõesdosperdidos.Não
querlembrar.Eleentendeuaquilo.Nãoqueriaselembrartambém,nãoqueriapensarsobre
osancestraisquevieram,sofrendo,atéesta terrasobreomar reluzente.Masoque queria e o que fazia era colocar dois países diferentes em guerra. QueriaestarcomIsaac,aindaqueestivesseali.Queriaignoraropassado,aindaquesealimentassedeleparaseuódio,paraseuímpetonalutacontraosescravizadores.Tocouorostomornodadamademadeiramaisumavez,entãocaminhoupara
dentro do oceano e se deixou abraçar. Atrás dele, ouviu Jean-Christophe
engasgarquandoentrou.A água era escorregadia, quase engordurada contra a pele deToussaint.Ele
nadavadepeito,asmãosencontrando-seàfrentecomoemoração.Pensousobreospeixesnadandoembaixodele,suagraçaprateadabebendoa
luzda lua, refletindo-acomsuasescamascintilantes.Ogostodosalestavanaboca. Não era um nadador particularmente forte — tinha nadado apenas empoçosderioantes—,maseramaisfortequeJean-Christophe.Conseguiaouvirojovemesforçando-seatrásdele,suarespiraçãopesadaedifícil.À frente, conseguia ver o brilho das luzes do navio na água. Do monte,
observouumaescadacomaluneta,erumouatéela.Sabiaqueestavainvisível—eranegro,assimcomoaágua.OCaboHaitianotinhaumapatrulhaportuária,masestavabemaleste,pertodacosta.Guardavamocaiscontraoshomensdosnavios—nãoocorreraaelesquealguémpoderiavirdapraiaparaosnavios.Haviaumaescadadecordapenduradana lateraldoprimeironavio.Porum
momento,elesimplesmenteseescorounoiníciodaescadaparatomarfôlego.Aáguapretabatiacontraocascocomumrespingosuave,rítmico.Olhouparatrás,viuJean-Christophepertodobarco,egesticulouparasegui-lo.Então,começouaescalar e logo alcançou a altura das escotilhas.Balançando-se de lado a lado,tomoualgumimpulso.Essaeraaparteperigosa.Alcançouumaaberturaredondaealçou-separacimaatéestarolhandoparadentrodonavio.Seusolhossearregalaram.No porão, homens estavam sentados em filas sobre filas ou dormiam em
macasenospequenosespaçosdotabuadoabertosaelespelaslacunasentreosbarris de pólvora. Todos vestiam algo que lembrava um uniforme, emboramuitostivessemtiradoseuspesadossobretudosependuradosobrelongarinasevigas.Asarmasestavamempilhadasempirâmidesdemetalnochão.Soldados.Umdoshomens,queestavadiantedeToussaint,de frenteparaaportinhola
pelaqualeleolhava,parouefranziua testa. Inclinouacabeçaparaespreitaroespaço onde Toussaint estava. Toussaint segurou o fôlego. Fechou os olhos,
escondendosuabrancuranaescuridão.Contouatévinte.Abrindoumpoucoosolhos,viuqueosoldadovoltaraaatençãoparaumde
seusvizinhos,ecompartilhavaumpoucodetabacocomele.Toussaintexpiroumuito lentamente. Então voltou em silêncio para a escada e desceu. O mar,quando ele chegou, estava extremamente frio e tão revigorante quanto umbatismo.Nadouparaopróximonavioeescalouatéseucascocobertodecracas.Dentro
dele,enfileiradosoudeitadosemsonosoltocomobrinquedosdescartadossemusonomomento,haviacentenasecentenasdesoldados.Noterceironavio,omesmo.Eraoqueele esperava,mas ainda terríveldever.Aquantidadedeles!Uma
hordacomoessaoHaitinuncavira,opaís se fiavanomedoena intimidaçãomais do que na força militar para subjugar a população negra. Ele e outrosgenerais conquistaram os comissários, mas como poderiam esperar dominaraqueleali?Porpuroacaso,eleestavaseagarrandoàlateraldoterceironavioquandoum
oficialentrounoporãoondeossoldadosdormiam,jogavamcartasoubebiamdepequenasgarrafasde rumocultasentreaspessoas.Bateuaespadacontraumaviga,eossoldadosmexeram-separaprestaratenção.—Oscomissáriosnosdesafiaram—eledisse.—Portanto,amanhã,antesda
alvorada,invadiremosopaís.—Vivela…—umdossoldadoscomeçou,nomeiodaalgazarradevozes.—Quietos—disseooficial.—Queremquenosouçam?Sim,pensouToussaint.Sim,euquero.Estimulado, entrou na água novamente e rumou para a praia. Nadou com
braçadasseguras,suaves.Aluzdaluaaindatrilhavaumcaminhosobreaáguaque parecia poder levar a algum lugar para alguém intrépido o bastante parasegui-lo.Toussaintvirafuneraisvoduosuficienteparasaberqueospartidáriosdaquela fé híbrida com frequência lançavam seusmortos por aquele caminho
paraafundá-losnooceano.Porummomento,eleobservouaquelaestradaluminosa,masentãopensouem
algo.Mesmo com a ajuda dos comissários, pensou como poderiam derrotar oexércitoqueaFrançatinhaenviado.Masnemtodososmeushomensestãolivresainda.—Estásbem?—perguntouJean-Christophe,aproximando-sedele.Toussaintsorriu.—Muitobem,obrigado—eledisse.Nadou até terra firme, terra perfumada e bela, alimentada como sangue do
seu povo, erguendo-se como as curvas de uma mulher sobre a escuridão daságuasnoturnas.
AGORA
Na semana após a morte de Dread Wilmè, fizeram o funeral no Site.Conduziramocorpodelepelasruasnatraseiradeumapicape,etodosforamecantarammúsicascontraogoverno:Grenadyealaso,sakimourizafèayo!Grenadyealaso,sakimourizafèayo!Nenmwenpapa,nemmwenmama,sakimourizafèayo!Cantaramqueiamàguerraeestavampreparadosparamorrer.Bem,ummonte
delesmorreu,maselesnuncaforamàguerra—excetoumcontraooutro.Ummonte daqueles chimères que trabalhavam para Dread acabou se juntando aBoston,ouaoutrasgangues,eelesatiravamunsnosoutrosecortavamunsaosoutrosempedaços.Porém, naquele momento, estavam juntos. Foi a última vez em que o Site
inteiroficoujunto,euacho,comoumagrandefesta.Daminha parte, eu tive de implorar pramanman me deixar ir, poisminha
pernaestavaenfaixadapelo tiro,eeuusavamuletas.Queriaqueeu ficassenonossobarraco,dissequeseriamaisseguropramimlá.DissequeeutinhasortedeaONUterpagadomeutratamento;pramim,penseiqueelesnãodeviamteratiradoemmim,emprimeirolugar.QueriaverDread,quesalvouaminhavida.Imploreieimplorei,souplè,manman.Nofimdascontas,eladisseo.k.Saímos
enãofoidifícilsaberondeestavaofuneral,porqueanpilpessoasdetodoolugarcaminhavamnamesmadireção.Chegamosàrualargaquelevavaaomar,aquelaondeMargueriteeeuencontramosabebê,evimosapicapecarregandoocorpodeDread,easpessoasseguindoatrásdela,cantando.Ouvimosquenãohaviaenergiaparaluzesoumúsica—aONUhaviacortado
aeletricidadedoSiteparaquenãopudessehaverfuneral.
Masalguémfoiverumcarachamado50Cent;tinhaumgeradoradieselqueele alugava, apenasdaquelavezemprestou semcobrar,pois eraparaoDread.Então,haviaenergia,eluz,eumabatidaparaseguir.Um homem estava ao nosso lado. Tinha uma metralhadora na mão, mas
estavaapontadaparaochão.NãohavianenhumMinustahemlugaralgum.Aspessoas diziamque eles estavamassustados demais para se aproximar doSitenaqueledia.—Ouvidizerqueelenãoestámorto—ohomemfalou.—Disseramqueele
é um zumbi, então só parece que ele está morto. Ouvi que o houngan delearranjou tudo.Algumasmoun, elas dizemque ele não podemorrer, por causadosbebêsqueelecome.Encareiohomem.Tinhaumacicatrizqueriscavadecimaabaixoseurosto,
como se alguém tivesse tentado arrancar sua boca. Eu sabia coisas sobre oszumbis.Sabiaqueeramraros.Tipo,sealguémquisesseserumhoungan,entãoteria de se tornar um zumbi primeiro, ou, às vezes, se alguém tivesse de serpunido,fariamdeleumzumbi.Oqueaconteciaéqueumhoungandavaalgumasdrogasparafazervocêparecermorto.Então,enterravavocê,doisdias,outrês,antesdedesenterrar.AsmoundiziamqueviamBaronSamedinessetempo,quetinham conseguido se comunicar com o lwa, que nunca foram os mesmosnovamente quando renasciam.Manman, ela dizia que por isso os hounganstinhamaquelesolhosqueviamtãolonge,porqueeleserammortosqueviveramdenovo.—Dreadnãoéumzumbi—dissemanman.—Estámorto.Euovimorrer.— Você viu? — perguntou o homem. Ele tocou manman, como se isso
pudesselhedarsorte.—Sim.Foinaruadanossacasa.Tinhaaquelecaminhãodoexército,ele ia
passarporcimadomeufilhoaqui.Dreadotiroudocaminho,salvouele.Mas,nofim,ficoucheiodeburacodebala.Nãotemjeitodeelevoltaraviver.—Masohoungandele…—Não.Eletámorto.
Ohomemestavasorrindo.Percebientãoquenãoeratãovelhoquantopenseinocomeço.—Maselesalvouogaroto.Issoémajiforte.Manman franziu a testa. Ela me puxou para longe e ficamos num grupo
diferente,tododegarotascantandoechorando.Nofim,chegamosaomar.Nãohaviapraia,apenasumafileiradebarracosealgunsbarcosdepesca,umfedordepeixenoar.Asgaivotasfaziamcírculosacimadenós,guinchando.Atrásdenós,a outra Porto Príncipe erguia-se sobre suas colinas na direção dos céus, tudolimpoebrilhante,masestávamos láembaixonomontede lixo, láembaixonoSite,eDreadWilmèestavamorto.Todomundoparoudecantar.Aquelevelho,elecaminhouatéondeapicapetinhaparado,gesticulouparaos
homens em torno dele descerem o caixão. Alguém me ergueu para que eupudessevermelhor.Aquilofaziaminhapernadoer,maseunãoligava,porqueestava acima da cabeça da maioria das pessoas. O caixão foi aberto. DreadWilmè estava deitado dentro dele num terno, parecendo totalmente indemne,tipo,ninguémacreditariaquetinhamilburacosdebalanele.O velho, ele obviamente era umhoungan. Ohoungan deDreadWilmè, eu
acho.Tinhaumchocalhodeossoeumacabaça,umasoneumaclochette;eleoschacoalhava.Einvocou:—PrecisodoBaronSamedi!Eleinvocou:—PrecisodeLaSirène!Algunsvoluntáriosderamumpassoàfrenteparaseremcavalgadospeloslwa.
Euosreconheci:eramossoldadosdeDreadWilmè.Ohounganconcordoucomacabeçaefezummovimentocomasmãosparaaspessoasemtornodapicapeabriremespaço.Então,eleedoishomensergueramocaixãoeocolocaramnumpequenobarco.Ohoungantomouumalataedespejouoquehavianelasobreobarco,sobreocaixão.Em seguida, a multidão ficou calma, em silêncio. Eles sabiam que era
gasolina que o houngan estava derramando; sabiam o que estava prestes aacontecer.O houngan, então, pegou sua bengala e começou a desenhar na areia. Não
conseguia ver tudo,mas achei que estava desenhandoveves para fazer os lwadescerem. As pessoas avançavam e colocavam oferendas no chão— bolos edocesparaLaSirène, rumecharutosparaBaronSamedi,queama tudooqueexalaamorte.Haviaumbalded’águatambémparaLaSirène,poiselanãopodeficarmuitotempoforadaágua,senãomorre.Ohoungan ajeitou as oferendas e, em seguida, levantou amão.Tudo ficou
quieto.Elecomeçouacantar,primeiroacantigaparaPapaLegba,paraabrirosportais.Sim,ovoduécomplicado.Algunsdos lwanóstrouxemosdaÁfrica,alguns
encontramos nesta ilha, pegamos dos índios. E alguns deles— chamamos defamíliaGede—sãoespíritosdenossosancestraismortos.Se você morre no Haiti, transforma-se num deus. Pra mim, eu tento me
convencerdisso,enquantomintoaquinaescuridão.Eudigopramimmesmo,semanman aindaestivervivaeeumorrer,aindapoderei falarcomela—tudooqueprecisafazerévisitarohoungandela.Esses lwa podem descer e possuir uma pessoa viva, cavalgá-la como a um
cavalo.Porumahora,maisoumenos,essapessoaéodeus,falaaspalavrasdodeus.Masnãoéfácil.Primeiro,énecessárioabriroportalentrenossomundoeo mundo dos lwa, e para isso você precisa de Papa Legba, o lwa dasencruzilhadas.Eleé,tipo,alinhatelefônicaentreoshomenseoslwa.Então, a primeira coisa que se precisa fazer quando tem uma cerimônia é
invocarPapaLegba.Então,podechamaroutrolwa:BaronSamedi,talvez—éaquelequelevaatéaterraembaixodomarquandoalguémmorre;ouLaSirène—équemcuidadaspessoas lá; ouOgouBadagry—éo lwa daguerra,masninguémquerele,anãoserquesejamaluco;nenhumamounquersercavalgadaporele.Veja,umapessoaécomoumcavalo, eum lwa é comoumcavaleiro.OgouBadagry,eleéumcavaleiroqueusachicote.Umchicotepesado.
Então, claro,ohoungan, ele invocouPapaLegba, e acho que os portões seabriram,porquederepentechoveu,nomeiodoverão,eohounganpisoufortenaareiaúmidaecantoudenovo,dessavezparaBaronSamedi.Ocaraquemeseguravanosombros,eleapertouasmãosnasminhaspernas,eeusabiaqueeleestava tenso com essa parte. Baron Samedi pode não serOgou, pode não sernervoso,masaindaéumtipodevodudaescuridão.Vocêprecisa termedodolwadaguerra,mas,senãotiverfraquezanosmiolos,tambémterámedodolwadamorte.
PapaGede,noumounnoucèNoumounnoucè,c’estrondagoyè!PapaGede,noumounnoucèNoumounnoucè,c’estrondagoyè!
O houngan cantava e balançava os ossos de rabo de cobra em seu ason, edançava,dançava.De repente, um dos homens que se voluntariaram— era o tipo magrelo e
baixo—ficouduro,entãoriu,largoealto,comoumaboombox.Elenãopareciamaistãomagreloebaixo.Virou-separaohounganecantoudevoltaparaele.Suavozeraprofundae
obscuraesooucomoseecoassedeumacova.
Sonninclochelà,Papa,moinGede!M’apèvinitoutennoirjoindhoungan!TiwaweGedevinitoutennoirjoindhoungan!Tiwawe!
Toquem os sinos lá, Papa, eu sou Gede, ele cantou, porque Baron Sameditambém é o pai dos gedelwa, os lwa da morte, então é Baron Samedi, mastambéméPapaGede.Venho todo de preto para encontrar o houngan, ele cantou com sua voz
profunda.Pequenos,vocêsverãooGedevindotododepretoparaencontrarohoungan.Pequenos,vocêsverão.—Nósvemos!—disseumadascriançaslá.—Nósvemos!—disseoutra.—Nósvemosvocê,PapaGede,BaronSamedi!Papa Gede, Baron Samedi, seja lá como você queira chamá-lo, pegou um
charuto do chão e botou na boca. Acendeu com um fogo que simplesmentesurgiunamãodele—foioquepareceudeondeeuobservava.Entãopegouokleren,queéumtipodeuísquecontrabandeado,abriuatampa,tombouagarrafadecabeçaparabaixoeasecou.Eleseviroueviuumalindagarotanamultidão.Caminhou até ela, pegou-a nos braços, como se fosse umaboneca, e a beijoucomintensidade.BaronSamediamaasgarotas,cara.Então,eleadeixoucair.—Nenzampoumwa?—eleperguntou.Um cara, um dos soldados de Dread, entregou uma arma para ele. Baron
Samedi,eleapertouopinodocarregadoreoclipecaiu.Agarrousuavecomsuaoutramão.Tirouumabala,enfiounabocaeengoliu.—Ah!—eledisse.Pólvora é um dos símbolos do Baron Samedi, um dos seus objetos — se
quiser a proteção dele, carregue sempre com você. Não diga que eu não falonadadeútil.Ohoungancaminhouatéele.—Osenhorvailevarele?—ohounganperguntou.—VailevarDreadWilmè
paraamorte?BaronSamediolhouparaDread,deitadoimóvel,aquelesdreadlocksimensos
caídosemtornodopeitocomoumagrandelulapreta.Então,elejogouagarrafadeklerenvazianocaixão.—DreadWilmèéumheróidestepaís,umsoldado.Nuncaoleveiantes,nas
vezes que ele tomou tiro. Agora os brancosmataram ele tão pesado que nãotenhoescolha.Voulevá-lo.
Amultidãoexplodiudeverdade;vibrouepulou.Euquasecaídosombrosdocaraqueestavamesegurando,eleficoumuitofeliz.Então,ohoungancantouedançoudenovo.Cantou:
LaSirène,laBalene,chapomtombenanlamer,LaSirène,laBalene,chapomtombenanlamer,MapfoukarespoulaBalene(chapomtombenanlamer),MapfoukarespoulaBalene(chapomtombenanlamer).
EssaéacantigadeLaSirène.Elaainvocaedizaelaquenossochapéucaiuno mar — não sei por quê. Invoca a lwa e diz que a acariciamos, queacariciamosasereia,queacariciamosabaleia.Elaésereiaebaleiatambém,estalwa;elaéapersonificaçãodomar.Ooutrovoluntário,eleestavanocírculocomohounganeoBaronSamedi,e
ficou rígido; era como se tivesse um fio correndo cabeça e espinha abaixo, ealguémpegouofioepuxandobemfirmedosdoislados.Eleengasgou,sentindodificuldadepara respirar,e tombou.Ohounganpegouembaixodosbraçoseosegurouempé.LaSirène,elatemacaudadeumpeixeevivedebaixod’água,entãoquandoelacavalgaalguém,nãoéfácilparaeleficardepé.Essecara,eleeragrande, forte,comumabarbaeumagrandecorrenteemtornodopescoço,masderepentepareciamenor,maisfraco.ElesevirouparaoBaronSamedi.—Ah,lindoBaron—eledisse,esuavozeraaltaecomoumamúsica.—LaSirène—disseBaron—,LaBalene,você,lindacomosempre.Oshomenscaminharamparafrente,ohounganapoiandoLaSirèneaabraçou
edeu-lheumbeijoapaixonado.Omaisestranhoeraquenenhumamounachavaaquiloestranho,porqueeraoBaronSamedieLaSirène,nãodoisdossoldadosdeDread,quesebeijavamcomoestrelasdecinema.Vireiparaolharmanman—elaassistiaàquelacena,tipo,comatençãoarrebatada,comosefossebonito.Pramim,eupenseiqueerauma farsa, a coisa toda.Nãoduvidavaqueoshomenstinhamsidopagosparafazeraquilo,ouconcordaramemfazerporqueerauma
boadespedidaparaDread.Nãotinhaessacoisadelwa,eraoqueeupensavanaquelaépoca.Agoraeuseimelhordascoisas.Dequalquerforma,LaSirèneinterrompeuacenaevirou-separaohoungan,
queseguravaosdois,edisse:—Água.Avoztinhaficadosecaerouca.Ohoungan fezumgestoparaumdoshomensque estavam forado círculo,
quepegouobaldecomáguadomarederramousobreLaSirène.ElafezaquelesomdeahquefoiumpoucocomoquandoBaronSamedicomeuabala,apenasmaisagradecido,maisaliviado.—LaSirène—disseohoungan—,asenhoravai levarDreadWilmèpara
suaterranofundodomarecuidarádelelá?Elafezummovimentocomasmãos,graciosa,comoumgolfinho.—DreadWilmèéamadoportodososlwa—elafalou.Suavozaindaerademulher,equasedavapara imaginarouviráguanela,o
ecodasprofundidades,acançãodabaleia.Quase.—Claroquevoulevá-lo—eladisse.—Éumherói.ÉoHaiti.Novamente,amultidãoperdeuacabeça.Fiqueimeiopreocupadodemanman
serpisoteadaatéamorte,masestavadançandocomosoutros,batendopalmaserindo.Depoisdisso,foirápido.Ohounganfaloualgumaspalavras,eosdoishomens
que eram cavalgados caíram no chão, ficaram lá deitados e não se ergueram.Virou-separaosoutros soldadosdeDreadegesticulouparaobarco.Deve tersido planejado, porque aconteceu semmuitas palavras.Os homens pegaram obarco e o carregaram para o mar, então o pousaram na água e deram umempurrãoparaqueelefosselevado.Ohounganacendeuumbastãocobertodetrapos.Nãodisse nada, apenas jogou ele no barco ewhooooosh.Obarquinhoexplodiunaquelaboladechama,brilhantecomoumpôrdosolnaágua,chiando
sobachuvaqueaindacaíabemleve.O barco seguiu na direção do mar aberto, mesmo em chamas, estalando,
quenteaindaadistânciaqueestava,tipo,avintemetrosnomínimo.Ardiaeseafastavamaisdapraia,atécomeçarasepartireafundarnaágua.Logonãohavianadaalémdeumamanchanomar,eumcheirodegasolinaqueimadaemtodoocanto.Mais tarde, alguns homens de Dread Wilmè nadaram e mergulharam para
buscarpartesdocorpoquenão tinhamqueimado,eas trouxerampara foradomarparadarsorte.UmadaquelaspartesacaboucomohoungandeBiggie—foicomo Biggie conseguiu pó do osso de Dread salpicado nele para fazer deleindemnecontra tiros.Mas issofoidepois,quando todos já tinhamidoembora.Eunãovi,entãonãoseiseeraDreadmesmoqueBiggietinhanele,ouseDreadficouapenasnofundodomar,virouareiaelamanapraia.O homemque estavame segurandome agarrou por baixo dos braços eme
colocounochãodevolta,aoladodemanman.Elaobservou,alémdaspessoas,amanchaqueficounomar.—Bem,achoqueelenãovaivoltaragora—eladisse.Evocêsabeoqueeuachoagora?Achoqueelaestavaerrada.Achoquetudo
volta— isso que é foda no universo.Tudo volta, quer você queria, quer não,tudocobertodeterramortaetropeçandocomoumzumbi,evocênãopodedizernão, porque sempreháo tempo, fluindoparadentro e para fora, e no fimdascontas o tempo traz os restos do passado até a praia para que outras pessoasencontrem.ToussaintvoltoueeraDreadWilmè,eentãoeleeraeu.Minhairmãvoltouetudomudou.Tudovolta.Tudo.
OUTRORA
NãohaviatempoparaconvocarasforçasacampadasnofortemontanhêsemDondon, entãoToussaint tinha apenas os homens escolhidos a dedoque oacompanharam até o Cabo Haitiano. Entre eles estava Jean-Christophe, queToussaintenviaraparareuniracavalaria.Os comissários tinham um contingente maior, verdade, mas a trégua que
existiaentreeleseosnegroseraconstruída,comograndepartedoHaiti,sobresoloinstável.Toussaintsabiaquedeviausarseuconhecimentoesuaperspicáciapara reunir asduas forças e repelir os franceses,mandando-osdevoltaparaomardeondetinhamvindo.Horasantesdoamanhecer,elecavalgouatéacidadecomJean-Christopheao
seuladoemandouosoutrossoldadosaguardaremforadosportões.Osguardashesitaramquandooviram,maseleergueuamãotranquilizadora.—Somosapenasdois—elefalou.—Precisamosfalarcomoscomissários.
Elesagradecerãopelasnotíciasquetrazemos.—Soisescravos—disseumdosguardascomdesdém.—Não—retrucouToussaint.—Vossossenhoresnosdeclararamlivres.Ireis
contraapalavradeles?Osguardas resmungaram,masdeixaramToussaint e Jean-Christopheentrar,
Jean-Christophe abençoado com um semblante que não apenas inspiravaconfiançamas que também conseguia tocarmais facilmente do que amaioriaentre osmundos de negros e brancos. Toussaint o invejava nisso. Era bonito,Jean-Christophe, um cavalheiro jovem e fino.Toussaint era umhomemmuitofeio,sabiadisso.Jáoshomensdeseuexército,comosuamulherperdidadiantedele,começaramachamá-lodeOgro,comosefosseummonstrosaídodeumcontodefadas.Equemsabia?Talvezparaosbrancoselefossemesmo.Nãoinvejava,porém,aeducaçãodeJean-Christophe.Amãeeramambo,uma
sacerdotisavodu,seupaiumpetitblancproprietáriodeumpequenoquinhãodeterraaonortedopaís.Desuamãe,adquiriuumconhecimentoprofundodevoduefamiliaridadesuficientecomamaioriadasmuitaslínguasafricanasfaladasnailha.Deseupai,herdaraapeleeosolhosclaros,sendoosúnicosindíciosdesuaoutraherançaoscabelosumpoucocresposeumacerta curvados lábios.Nosolhos faiscava uma inteligência vívida e insubordinada — uma dascaracterísticasqueToussaint admiravanele.Opaido jovem tentara arrancar àforçaessaaparentediabruradelemuitasvezes;Toussaintviuascicatrizes.Eraclaro que não havia funcionado — Jean-Christophe era tão esperto quantoqualquerdiabo.Seguiramporruasestreitas,espiraladas,trilhandoseucaminhoatéomontena
direção da residência do Comissário do Haiti. Num canto havia uma jaula e,enquanto passavam por ela,macacos se atiraram nas grades, guinchando paraeles.Aoouviraquelebarulhoeverosdentesafiadosnasbocasarreganhadas,oódionosolhosarregalados,Toussaintsentiuseucoraçãopalpitarnopeito.No fim, chegaram à residência, que se erguia atrás de muros baixos e
ajardinados, buganvílias e outras flores perfumadas crescendo em grandeprofusão;Toussainttomouciênciadelasmaispelocheirodoquepelavista.Osguardasemserviçoospararamquandoseaproximaram.—Quequeres?—disseumdelesatrásdeummosquete.—EstouaquiparafalarcomBrandicourt—respondeuToussaint.—Falaroquê?Toussaintsorriu.—Querofalarcomele,nãocontigo.Assuíçasdosguardastremiamcomfúria.Eledeuumpassoadiante.—Negroinsolente!—elegritou.—Voumatá-lo.As luzes cresceram do outro lado do muro ajardinado e um tumulto geral
irrompeu. Toussaint viu velas tremeluzindo por trás de janelas da residênciatambém.Outroguardachegoucomoseparaprotegê-los.—Deixai-os—disseumavozimperiosa,oinequívocosotaquefrancês.
OpróprioBrandicourtsaiudaescuridão,passandopeloportãodojardim,umfantasmaaoreverso,assumindodetalhesecoresemcontrastecomaescuridão.—ÉsToussaint,não?—eleperguntou.Toussaintconcordoucomacabeça.—Tenhoahonra.—Perdimuitoshomenspara tuas tropas—disseBrandicourt.Ele sevirou
paraalguématrásdele,umamulher.—Ohomemtemumacertamalícia…paraumescravo—eleacrescentou.— Por que vieste? — perguntou a mulher. — Tens tua liberdade. Estás
exigindonossavidatambém?Comumlevechoque,Toussaintpercebeuqueelaseguravaumafaca,queseu
marido também estava armado, segurando uma espécie de pistola. Eles nostememtanto,elepensou,quesearmaramcontranósdois,naprópriacidade,nomeiodanoite?—Vimdar-teumaviso,étudo—eledisse.—Ah.Temosummêsparadeixarailha,outodosmorreremos?Estácorreta
minhaavaliação?FoiBrandicourtquemfaloudessavez.Emseguida,fezsinalparaosguardas.—Prendei-os—ele disse.—Mas com cuidado. Pode ter alguma bruxaria
voduaqui.Toussaintlevantouamão.—Não. Estou aqui para te dizer que os franceses desembarcarão soldados
antesdoamanhecer.Avisamosparatepreparareserepeli-los.Brandicourtirritou-se.—Maselesnão…—Ousariam?— interrompeuToussaint.—Sim, eles ousariam.Nadei para
dentro da baía e vi com meus olhos que cada navio carrega ao menos 300homens.Amulherdeuumsuspiroprofundo.Aindamaisestranho,emborativessesido
tiradadacamaporumnegrotrazendomásnotícias,nãopareciatermedo.
— Pela renda que esta ilha gera? — ela perguntou. — Claro que eles atomariamdevoltaàforça.—Bem—disseBrandicourt.—Então,vamosdarasboas-vindas.Amulherriu,umsomsuaveecurto.— E o que dirás? Que nos desculpamos por ter entregado sua posse mais
valiosa? Que sentimos muito por ter libertado os escravos e nos declararmosuma república?Quenãodeixaremos seu emissáriodescer na costa?Não sejastãoinocente.Elesespetarãonossascabeçasemlanças.TalvezBrandicourttivesseficadopálido,masnaescuridãoeradifícildizer.—Nãopodemoscombatê-los.Nossastropasestãoesgotadase…— Tenho tropas — disse Toussaint. — Estão acampados logo depois da
cidade.Etumanténsdoismilnegrosnatuaprisão.Brandicourtriucomdeboche.—Nãoépossívelqueacreditesqueeu libertariacriminososno interessede
umúnico…—Fiquequieto,Robert—disseamulher.Toussaint começava a admirar a força na voz dela. Ela o encarou, e ele
conseguiuveralinhafortedasuasobrancelha,oreflexodaluzdaluanosseusolhos.Aoredordela,haviaumcheiro—algofemininosobreeacimadasnotasmenoresdasfloresdameia-noite.— Dois mil homens desarmados, mesmo criminosos libertos, não durarão
muitocontratropasdeelitefrancesas.—Não—disseToussaint.—Maseupossoarmá-los.De armas ele estava bem servido.Muitas das propriedades que os escravos
invadirampossuíampequenosarsenais,omelhorparapermitirqueumaminoriade proprietários das fazendas dominasse uma população muito maior detrabalhadores.AmulherdeRobertBrandicourt,ComissáriodoHaiti,deuumpassoàfrentee
pousouamãonobraçodeToussaint.—Achomelhorquetuentres—eladisse.
Nasprofundas da noite,Toussaint correu amão consoladora nopescoçodocavalo.Astropasbrancasdocomissariadoestavamagoraestacionadasalémdomonteao ladodoseuspróprioshomens.Ele,noentanto,esconderaseucavalonumbeco lateralnoaglomeradode ruasquecomeçavamnoporto.Alémdele,escarranchadoemseuprópriocavalo,estavaBrandicourt.—Émelhorqueestejascorreto—disseocomissário.—Ah, eu estou— retrucou Toussaint.—Vi o futuro, e ele não inclui os
franceses.Alémdisso,seeuestivererrado,oshomensvoltarãoparaacadeia.Naescuridãoportrásdeles,alguémriu,eBrandicourtempalideceu.Todosos
doismilescravospreviamenteencarcerados,assassinoserebeldes,estupradoreseladrõesseescondiamnasruasemtornodeles,armadoscomfacõesearmasdefogo.Toussaintapontoualunetaparaosbarcos,maliluminadospelaluacrescente.
Váriosbarcosaremodestacavam-sedosnavios-mãe.Tambémviuacabeçadossoldadosenquantoelesnadavamatéacosta,tudosilenciosocomoamorte.—Estãovindo—eledisse.Começou,elepensou.Virou-separaoshomensatrásdele,encolhidosnasujeiradobeco.Dooutro
lado,sobumtoldo,jaziamoscorposdetrêsmacacosqueforamtiradosdajaulae decapitados antes que pudessem chiar e gritar. Toussaint teve de reconhecerqueamortedeles,depoisde terem-noassustadomaiscedo, lhedeuumacertasatisfação.—Estais livres—eledisseparaoshomensemvozbaixa.Tinhacertezade
que amensagem seria transmitida.—Ainda assim, esses franceses vos farãoescravosdenovosepuderempermaneceremsolohaitiano.Façaisqueosoloseencharquecomosanguedeles.Umdoshomenscheirouedisse:—Nãoestoutãocertodequeésolo.Osoutrosaoredorriramemsilêncio.—Bem—Toussaintfalou.—Muitomaispropício,então.
Oshomensriramdenovo,eelesoubequeestavamcomele.Foiseuúltimopensamentolúcidoporalgumtempo,poislogoemseguidaos
primeiros soldados franceses começaram a lançar-se no estaleiro, gotejandocomoinvasoresdealgumreinoaquático.Moveram-secomdestrezaerapidezatéas ruas, pisando suave com pés descalços. Não havia luzes; não teria havidoalerta,seToussaintnãotivesseouvidooestratagemaporacaso.Umdelespassoupelobeco,eToussaintbateuoscalcanharesnosflancosdo
cavaloeseguiuadiante.Osoldadofrancêsparoueolhouparaele,boquiaberto,obrancodosolhosmuitobrilhante.—Qu-quê?—elegaguejou.Toussaint viu o terror no rosto do homem.Colocou-se por ummomento na
peledaquelesoldado,umtruquequeaprenderamuitosanosantes.Imaginou-se um francês vindo para as Índias Ocidentais pela primeira vez.
Viu-se numa cidade estranha, no meio dos aromas de flores tropicais e solonoturno, de suor e chuva, enquanto os pássaros pipilavam sobre ele. Viu-sepensando que estava seguro, que o povo naquela cidade dispersa e fétida nãosabianadadesuavinda.Agoraeleviu amassaavultanteda terra atrásdoporto, todas as rochase a
floresta.Viu umnegro grande e feio na frente dele, a cavalo, negros sorrindocomarmasatrásdele,elembrou-sedashistóriasdamagiapagãcomentadanasruasdeParis.Sim,Toussaintpensouqueohomempodiaestartemeroso.Eleapontouparao
soldadoevirouparaosseushomens.—Expulsaiessesintrusos—elefalou.Entãoveioacarnificina.Ossoldadosforampegosdesurpresaeempurradosdevoltaparaasdocaspela
massa de criminosos libertos.Os corpos caíam ao chão e na vastidão negra eimóvel da água,mas eramprofissionais, e os prisioneiros, na suamaioria nãotreinados. As forças francesas rapidamente se reagruparam. Toussaint eBrandicourtestavamprotegidosporumcontingentequesemantevenadefesa,
docontráriopoderiamtersidoesmagados.—Agora—disseToussaint.Brandicourt manobrou o cavalo na direção do monte. Virando o cavalo,
seguiuBrandicourtdevoltaatéobeco.Viramatançasemsuavidaenãotinhadesejodever outra,mesmoque a tivesse comandado.Os soldadosdoprópriodestacamento de Toussaint dividiram-se para deixá-los passar, então ele e ocomissárioatiçaramseuscavalosparagalopar,rumandoparaoterrenomaisaltoquelhesdariaavisãodotrabalhonoturno.Quandochegaramàposiçãonotopodomonte,Brandicourtergueuatrombeta
atéoslábiosesoprou.Aessesinal,oexércitodocomissariado,deprontidão—oquesobroudele—
e o pequeno exército de negros que Toussaint comandava desceram omonte,cavalosàfrente,umcordãodeinfantariaatrás.ToussaintpensouterconseguidovislumbrarasilhuetadeJean-Christopheliderandoacavalaria.Foi a partir daquelemomento que amaré virou e varreu amontanha numa
ondanegra,empurrandoosfrancesesparaomarcomopilhasdecorpos.Por muito tempo depois disso foi difícil para Toussaint ver o que estava
acontecendo.Havia a impressão demovimento nas ruas sombrias, de homenscorrendo em todas as direções. Os sinos da igreja e dos navios soavam seualarido.Toussainttinhacertezadequedeviaestaruminfernoláembaixo,queasruas eram rios de sangue enquanto a confusão continuava,mas não conseguiavernadaládecima.Entãoosdisparoscomeçaram.Primeiro,houveapenasumaouduaschamas,entãotodasaspartesdacidade
estavamqueimando.Logo,todososlugarespareciamumafogueira;aslabaredasconsumiammetadedomundoqueToussaintconseguiaenxergar.Ficousurpresoaosentiraslágrimasnosolhos;faziamaconflagraçãodebrilhoeborrão.Nãoqueriaqueelaqueimasse,elepensou.—Nãoeraminhaintenção.Daschamasvinhamhomensàscentenas,caminhandocomumtriunforaivoso
nos olhos e no caminhar. Eram brancos e negros,mas amaioria era negra, e
caminhavamjuntos.—Osfrancesesestãodestruídos—disseJean-Christophe,caminhandomorro
acima.—Porora—disseToussaint,felizacimadamedidaporverojovemvivo.Ele olhou para trás na direção das embarcações e, quando olhou, viu uma
delas explodir: um estampido e então— tão repentino quanto ele—era umaboladefogoflutuandonaágua.Eleachavaquealgunsdosescravos,outalvezosbrancos,decidiramnadaratéosnavios,comoeletinhafeitonanoiteanterior,eacenderam os barris de pólvora. Mais tarde, ouviu que, por dias e semanasdepois do acontecido, era possível caminhar do porto até os navios sobrecadáveresfranceses.Eleduvidou,maseraumaboahistória.Semconsiderá-la,aperfeiçãodavitóriaquaseochocava.Brandicourtvirou-separaele.—Obrigado—eledisse.—Pornosavisar.Toussaintinclinouacabeça.—Não.Euqueteagradeço.Porconfiaremnós.—Precisasagradeceràminhamulherporisso—disseBrandicourt.Agradecerei,pensouToussaint.Acredite,agradecerei.—Porfalarnisso,devomejuntaraela—disseBrandicourt.—Precisamos
deixarestacidadeantesquenãosobrenadaalémdecinzas.Jean-Christophe, que estava em pé a uma distância discreta, mas ainda ao
alcancedavoz,caminhouatéToussaint.Esteapeoudocavaloepassouasrédeasao jovem.Atrásdele,nabaía,outronavio transformou-seemchamascomumestrépito.—Tensagratidãodosbrancos—Jean-Christophedisse.—Não—Toussaintretrucou.—Elestêmaminha.Nósapenasganhamosa
ilha.Dissoele tinhacerteza, tãocertoquantoestiveradequalqueroutra coisa.A
guerradeformaalgumahaviaacabado,maseleshaviamconquistadoaliberdadedoHaiti—comouma repúblicaescrava,mesmo queBrandicourt não tivesse
percebido isso ainda. Logo, dali a meses ou anos — e ele também estavapreparado para esperar — não haveria comissários, apenas um governo denegros.Guerra,eleentendia,nãoeraapenasumaquestãodepegaremarmas.Erauma
questãodepensar.Haviamovimentadoumaideiaqueseespalhariapelopaísmaisrápidoqueo
fogoquenaquele instanteconsumiaosbarracosdemadeiradoCaboHaitiano,lambendoseucaminhoatéomomentonoqualeleseergueu,transformandoostrêsnaviosnabaíaemtrêstochas,lançandoparaoaltonaformadefumopretoseuscascosevelas,suamadeiraelonasecordasnocéucravejadodeestrelasdoHaiti.E a ideia era essa: os brancos tinham de libertar os negros para salvar sua
própriapele.Elesevirou,exausto,massatisfeito,egirouseucavalonadireçãodaselvado
interior.—Casa—eledisse.Efundiu-senaescuridão.
AGORA
Eu estava cantando músicas na escuridão. Canto músicas rebeldes daépocadeAristide,queminhamanmanmeensinou,asmúsicasquecantaramnofuneraldeDreadWilmè.—Grenadyealaso,sakimourizafèyayo.Soldadosatacam.Aquelesdenósquemorrem,esseéseunegócio.EstetemsidoumgritodebatalhanoHaitidesdeostemposantigos—desde
Toussaint,aomenos.ApósamortedeDreadWilmè,osapoiadoresdeLavalasmudaramaspalavras;começaramacantar:—Sakimourivanjeyayo.Aquelesdenósquemorrem,nósosvingaremos.Me pergunto como aquilo funcionou para eles. Na minha experiência, a
vingançanãoajudaninguém,muitomenososmortos.Meperguntoseaspessoasláforapodemmeouvircantando.Meperguntose
hápessoas lá fora.Aindanãoestoucemporcentoconvencidodequenãosouumfantasma,queestanãoéaterraembaixodomarparaondevãoosmortos.Mas,sesouumfantasma,entãoquemestouassombrando?Todomundoaqui
estámortotambém.Ocheirodoscorposémuitoruimagora.Jáfazmuitotempoqueeuestiqueio
braçoetoqueiamãoqueestápertodemim.Achoqueseeufizesseissoagora,elaestariainchadaenojenta.Temumcheironojento.Tenhoummedoquevoltaatodomomentodequeamãovairastejarnaminhadireção,comoumaaranhagorda,esubirnomeurosto.Quandofechoosolhos,éoquevejo,quandonãovejonaviosecasasemchamas.Estou ficando mais fraco, posso dizer. Para começar, eu rastejava por aí,
tentava encontrar um jeito de sair. Agora fico aqui, deitado,murmurando pramimmesmo.Tentolembraroquedizemsobresobrevivência.Seiquesemorre
maisrápidopornãobeberdoquepornãocomer,eachoqueestouvivoapenasporbebersangue.Nãosouumfantasma.Acho.Souumvampiro.Estaloalínguacontraocéudaboca,queéalgoquefaçonomeusonho,em
queeueraalguémmaisvelhonumaversãodiferentedoHaiti.Nãosepreocupe,sei bem que estou ficando maluco. Estou neste hospital e, nos meus sonhos,comandoumexército.Ouaocontrário, talvez.Seiquenãoénormal.Logo,euacho,amão-aranhaviráatémim,e,seelesmedesenterraremdaqui,nãosereieuquevãodesenterrar.Seráalguémbemmaluco.Pra parar com a loucura, vejo se consigo lembrar as canções de Biggie de
novo.Biggie sempre quis ser uma estrela do rap, comoBiggieSmalls.Ele iadirigirpeloSitenoseucarro—nenhumamountinhaumcarronoSite,tirandooschefeschimères—eseubraçoiaficarpraforadajanelaeelecantariajuntocomseuCDdebatidas.Tinha aquela música que ele gravou uma vez. Colocava no CD e tentava
vendernoSite,masaspessoasnãotinhamanyenparacomer;nãoiriamcomprarumCDseestavammorrendodefome.BiggieenviouoCDparaumagravadoradeNovaIorquetambém—pegouonomecomStéphanie,euacho.Diziaqueasarmasnãonosajudariamparasempree,seagentequisesseajudadonossopaís,oúnico jeitodeconseguirerapelamúsica.Ele fezamúsicaeminglês.Assimera oBiggie—o homemera umgângster,mas não era estúpido. Podia falarcriouloeinglêseatéumpoucodealemão,porqueantesdecomeraStéphanieeleestavacomendoumamoçaalemãdoMédicinssansFrontières.Naescuridão,eurecitoaletradamúsicadele:Mwenthug,mwengangster,mwenbandi,Achaquevaimemachucar?Nãotônemaí,Naguerraéestrela,masvôtáaquiquandoacabar,Voudirigiroseucarrão,nasuamansãoeuvoumorar.Casques-bleus,attachés,PodemdaroforadomeuSite
NãovenhampracácomseussoldadosPorquetemgângsteresemcarangos,montadosTenhoarmasfortescomoToussainteosescravosVoufodercomtuavida,ninguémvaisersalvoCinquentatirosdeumaseminacara,Atétodomundomorreraquininguémpara.Nóschimés,agenteétudofantasmaVamosdispararatéarrancarsuaalma.Suasmãosagentevaiarrancar,Suacabeçaagentevaiarrancar,Vaiserdesespero,igualnuncavi.Vocêsmatamagente?Agentevoltazumbi.Pramim, nunca vi como canções como essa ajudariam oHaiti, mas nunca
disse isso porque teria deixado Biggie maluco. Ele sempre escrevia músicassobrecomoogovernotinhaferradocomele,comoosMinustahprenderameleporserumgângster,mesmoqueeletenhasidoforçadoamatarpessoas,porqueogovernonãodavadinheiropraele,apenasarmas.PorumtempãoelefezpartedoexércitoparticulardeAristide,enuncapareceusuperarochoquedequeissonãofaziaaONUgostardele.Averdade era que ele gostava dematar gente— isso era o que eu achava.
EntendeporquenuncamostreipraeleouproTintinminhametadedocoraçãoprateado que consegui de Marguerite? Teriam dito que isso era babaquice.Biggieteriatomadodemimemezoadoporserummariquinhas.MasBiggiepodiaserumbomhomemtambém.Depoisquepapafoimorto,quandoterminamosnoSolèy19,foiDreadquem
arranjoutudo,masfoiBiggiequemfezotrabalhodeverdade,cuidoudagente.Achouumtrabalhopramanmandecolocargasolinaemlatasparavendercomocombustível pras pessoas. Pra mim, eu ficava sentado na terra e assistia aomundopassar.OqueeumaisgostavaeradeassistiraoBiggienocarrodele.Eledirigiadevagar,sempreparandoprafalarcomaspessoas,descobrirquaiseram
osproblemasdelas.Davadinheiroprascriançaspraelaspoderemirpraescola;prasmãespraelaspoderemalimentarosfilhos.Àsvezes,eraumbomhomem.No entanto, não era doBiggie que eu gostava tanto; era do carro dele. Ele
chamavaocarrodecarango—algoqueele tiroudos seus raps.Eu tinhaumcarroquefizdechapadealumínioeasrodasdeumcarrinhodecompras,masnãoeratãorápidoigualaocarangodoBiggie.Eu sempre inventava coisas— era o que eu gostava de fazer. Depois que
Dreadmorreu,Biggiecontinuouapagarpraeu irpraescola, eeuaprendiummontedecoisas,masoqueeuamavaerafazermapasediagramas.FizummapanomeucadernodeondetodasasmeninasbonitasnoSolèy19estavam.EufizummapadeBoston,sónãosabianadadelá,entãoeraummapamuitobranco,enomeioeurisqueiumacruzemarqueinelaMarguerite.Nãomeesquecidela,viu.Euiatrazereladevolta.Umdia, eu estava sentado na terra, e naminha frente tinha duas tigelas de
gelo.Eutinhafeitoalgoparaajudarminhamanmaneestavatodoorgulhoso.Derepente,ouvio roncodeummotordecarro.Biggieparouna ruabemaomeulado.Olhei emvoltaparaver comquemelequeria falar,masele acenavapramim.Vireieolheiparatrás.Eleriu.—Venha—eledisse.—Sobeaí.Levanteiefuiatéele.Viquenobancotraseirodocarrotinhaumablanc,uma
garotabranca.TinhavistoelacomBiggieantes,masnãosabiaseunome,eelanãoolhavamuitopramimdequalquerjeito.—Oquevocêtáfazendo?—eleperguntou.Olheiparaastigelas.Tinhafeitoasduascomlamacozida,comoosbolosque
aspessoascomem,mas semmanteiga.Umadelas tinhaapenasgelo.Naoutratinhaumatigelamenordentrocheiadegelo,ehaviaareiaúmidaentreasduastigelas.Manmansemprereclamavaque,quandoagenteconseguiacomida,quenãoerasempre, logoelaestragavanosol.Penseisobreissoeviojeitoqueoscachorros na favela ofegavam e suas línguas evaporavam. Pensei que talvez
quandoaáguaevaporavanoarlevassecomelaumpoucodecalor.Então,penseicomigo,setivesseumjeitodecercaracomidacomareiamolhada,talvezaáguasecasse da areia e levasse o calor da comida com ela. Essa era a história dastigelas—efuncionava,porqueogelonatigelanormalestavameioderretidoeogelonaminhatigeladeareiaaindaestavacongelado.—Nada—eufaleiproBiggie.—Sóumjogo.Biggieconcordoucomacabeça, comoseentendesse,maselenãoentendeu
porquenãoeraumjogo—eraumageladeira.Maseunãofaleipraele.Biggiepôsacabeçapraforadajaneladocarro.Tinhatrançasnagônacabeça
eno rosto,umacicatrizquecorriada testa,passandopelonarizatéomaxilar.Diziamqueelefoiatingidocomumfacãoduranteumabriga.Mesmoassim,erabonito. Tinha olhos puxados que brilhavam. Gostei dos olhos do cara. Eramvivosediziamqueelegostavaderir.—Ouvidizerquevocêébomdemapa—eledisse.Eudeideombros.—Atéquesim.Eleseinclinouparafrenteeabriuaportadopassageiro,entãofezumgesto
pra eu entrar. Não conseguia acreditar — Biggie ia me levar dentro do seucarango.Eusubi.Ocarrocheiravaaervaeasuor,eeraolugarmaislegalaqueeujá
tinha ido. Biggie estava de jeans e um boné de beisebol com a aba pra trás.Estavasemcamisa,eeuconseguiaveromúsculogrande,rasgado,comoagentefala.Tinhaumcigarrodemaconhanabocaesoltavafumaçadonariz.Entreosassentoshaviaumaescopeta.Biggieapertavaumbotãoeumabatidavinhadosalto-falantes,anpilalta.EraMVPKompa,doWyclefJean,amúsicaemqueelefalasobrezumbis.Eutinhaouvidoantes.TemumpedaçonoqualWycleffala,tipo,sedesrespeitaragente,vaipradebaixoda terra.Biggie,elegritava juntocomWyclef,enaquelaépocaeupenseiqueeraacoisamaislegalqueeujátinhaouvido,entãocomeceiacantartambém.Claro,agoraqueestoudebaixodaterra,tenhoumaperspectivatotalmentediferente.
—Wyclef, ele representa o Site—Biggie disse.—Ele é um gângster deverdade.Pramim, eu ouvi queWyclef vinha de Croix-de-Bousquets, que é tipo um
lugarlegal,ou,comoelesdizem,foradePortoPríncipe,maseunãodissenada,porqueeratãolegalandarnaquelecarro,gritando,quenãotínhamosmedo.Rodamosatéumaruamaislarga.Euriaenãoparavaderir.Biggietambém
achavaqueeraengraçado.—VocêéogarotoqueDreadWilmèsalvouquandoestavamorrendo—ele
falou.Nãoeraumapergunta.—Sim—eurespondi.—Éoqueminhamanmandiz,pelomenos.Elebalançouacabeçabemdevagar.Nãoparecialembrardemimdequando
manmaneeufomosveroDread,depoisquepapamorreu.—DreadWilmèeraumherói,cara—eledisse.—Umhaitianodeverdade.
Espírito rebelde, cara.Eu estava na turma lá atrás, quando a gente era apenasSolèy19,sabe,antesdeagentevirarRoute9?Sim,euandavacomossoldadosdo Aristide quando era pequeno. Dread salvou sua vida; isso é algumamajipoderosadocaramba.Euencolhiosombros.NãosabianaépocaqueBiggietinhaosossosdoDread
Wilmè salpicados nele próprio para fazer ele à prova de balas. Talvez elepensasse que, comoDread salvouminha vida, nada podiamematar também,então eu seria um bom chimère. Um chimère que não podiamorrer; era algoespecial,comoumaarmaquenuncaficavasembalas,comoumacarteirasemprecheia.—Queroquevocêfaçaummapapramim—eledisse.Medeuumlápiseum
papel.—Aprofessoradizquevocêébomnessamerda.Queropoderverondetodomundomora.Clientes,voluntários,ascriançasdaescola.Aquelesquemedevemdinheiro,aquelesquenãodevem.Quemtemarmas.—Tu ne penses pas qu’il soit un peu jeune encore?— a garota no banco
traseirodisse.
Biggierespondeuemfrancês.Eufiqueimeiosurpreso.Pareciaqueeletinhaidopraescolaeprestadoatenção,oqueiacontraaimagemqueeutinhadele.—Legrosseestanpilinteligente,c’estcequ’onmedit.Etbientôtçaserala
guerre.Onaurabesoindesoldatscommelui.Agarotasuspirou.Mesmoqueeles estivessem falando francês,nãocrioulo, euentendi alguma
coisa. Entendi que Biggie disse que eu era inteligente, e isso me deixouorgulhoso.EntendiqueBiggiedissequehaveriaumaguerra,maseurealmentenãopenseinaquilo.—Stéphanie é daONU—ele disse.—DeParis.Ela se preocupademais.
Deviacuidardosseuspróprioszafè.Elaapontouumdedopraele.—Sevocêderarmasprascrianças,émeuzafè—eladisseemcrioulo.Fiqueisurpresodenovo.Nuncatinhaouvidoumablancfalandonossalíngua
antes.Também,eupensavaqueosdaONUeramtodossoldados.—VocêédaONU?—pergunteipraela.—Deverdade?—Sim,mas do escritório— ela disse.—Não das tropas.Meu trabalho é
protegeraspessoas,ajudar.Entende?Euencolhiosombros.NãosabiaoqueStéphanieestavafazendonocarrode
BiggieseelaeradaONU,masnãodissenada.—Aqui—eledisse.—Proseumapa.AndamospeloSolèy19pormuitashoras,semsairdo territóriodaRoute9.
Passamos por barracas com filmes em CD e bancos quemanman disse nãoserembancos,apenasagiotas.Nãotinhanenhumamounvendendocomida.Demorou,poisBiggiesempretinhadepararefalarcomaspessoas.Teveuma
mulherquedisseparaelequeoschimèresestavambrigandotodanoitenafrentedacasadela,eelanãoconseguiamaisalugarquartosporqueaspessoasestavammuito assustadas. Biggie disse que daria um jeito. Ele e Stéphanie tambémestavamentregandolatasdecomidaekitsderemédiosqueestavamempilhadosnoporta-malas.StéphanietinhatrazidodaONU,euacho.
—NãopodemosentrarcomnossoscaminhõesnoSite—Stéphaniedissepramimemcrioulo.—Éporissoquetrabalhamoscomoschimères.Deverdade,eunãoligavanemumpoucopraisso.Estavapensandonomapa.
Enquanto rodávamos, risquei ruas e casas. Marquei as coisas que Biggie medissepraescrever—nomesdepessoas,oqueelasfaziam.Logoomapaencheuapágina toda.Num ladodomapa, haviaumagrande linhapreta, e eu escreviembaixodelaBoston.Àsvezes,olhavaaescopetaentremimeBiggie.Pensei,BiggieéRoute9.SeeupudermetornarRoute9 também, talvezeu
possabrigarcomaBostonepegarminhairmãdevolta.Tinhacertezadequeelaaindaestava láemBoston,porque foiaganguedeBostonquea tinha levado,quematoupapa.Alémdisso, eu sabia que ela não estava naRoute 9, porquenuncaviMarguerite,e tinhacertezadequeeureconheceriaela,mesmoagora,quatro anos depois. Era mais do que minha melhor amiga. Mas eu meperguntavaseelamereconheceria.—Comoeufaçopravirarumchimère?—pergunteiproBiggie.Queriaumcarangotambém.Queriaquetodomundonaruameolhassecomo
olhavaBiggie.Eleriu.—Éfácil—elefalou.—Ésóandarcomigo.Nodiaseguinte,Biggiemebuscoudenovo.Eranoite,naverdade.Stéphanie
estavanobancodopassageirodessavez,montadanaescopeta.NoSite,montarescopeta não é apenas uma expressão— ela estava segurando a arma. Fiqueisurpreso com aquilo, porque tinha visto voluntários antes, e eles nãocostumavam ter armas. Percebi que ela era bonita, muito mais bonita do quetinhaachadonodiaanterior.Tinhaolhosazuiseumcabelo,tipo,castanho-claro,eo rosto eraumpoucooval.Era jovem também.Unsvinte e cincoanos,nãomais.—Salut—eladissesobreorebombardobaixo.Disseoiparaelatambém.Meurostoestavaqueimando,porqueolharparaela
faziaminhapelepinicar.Biggieseviroueriupramim,eeucomeceiatremer,
porquetinhacertezadequeelesabianoqueeuestavapensando.—Aindaquerserumchimère?Eufizquesimcomacabeça.—Bon.Bon.Route9atémorrer,certo?—Claro—eudisse.—AquelesdesgraçadosdoBostonmataramseupapa,n’est-cepas?Fiqueisurpresoqueelelembravadaquilo,porquenodiaanteriornãoparecia
quemeconheciadequandoeuemanmanfomospedirproteçãopraDread.—Vocêlembradisso?—eufalei.Biggieriu.—Lembrodetudo—elerespondeu.—Seiquevocênasceupelasmãosde
Aristidetambém.SeiqueDreadWilmètirouumtanquedocaminhoparasalvarvocê,mesmocheiodeburacosdebala.Não disse que Dread não tirou o tanque do caminho, apenas me tirou do
caminho de um tanque,mas não parecia importante e, de qualquer forma, euestavacontentequeBiggiesabiaquemeuera.Eracomoseumapessoafamosasedesseaotrabalhodepararefalarcomvocêquandoopercebesse.Tipoisso.Naquelaépoca, euachavaoBiggie incrível.Pensavaqueeraumgângster frioigualpedra,g-star,maisfrioqueooutroladodotravesseiro.Euera,tipo,fãdoBiggie;eramuitovergonhoso,olhandopratrás.Stéphaniesuspirou.Eraalgoqueelafaziamuito,eumedeiconta.— Porra de ONU— ela disse.— DreadWilmè distribuía mais comida e
remédiodoqueagentejamaisconseguiu,eelesmataramocara,saco.Não sei o que me surpreendia mais. O jeito que ela conseguia xingar em
criouloouamaneiracomoelacriticavaaONU.PenseiqueaONUeosblancseramamesmacoisa.MaspenseinojeitoqueStéphanie traziaaquelas latasdecomidaesuprimentosderemédioparaoSiteeajudavaoBiggieadistribuí-los,epenseiqueelaeramuitobacanaparaserbranca.—SequiserserRoute9,precisapassarnoteste—disseBiggie.—Sabedo
queeutôfalando?
Eunãosabia,masconcordeicomacabeça.—Sótemosquefazerumacoisaantes—elefalou.Biggiecontinuouadirigir.Quandoviramosemruasdiferentes,vimeumapa
na cabeça, assim quando paramos diante de um barraco, sabia que era oendereçodeumchimèredaRoute9chamadoTintin.Biggie saiu do carro e falou para o seguirmos.Entramos no barraco.Tintin
estavasentadonumbarrildepetróleo.Eramuitomaisvelhoqueeu.Balançavapra frente epra trás, fazendoumsomde choro.Viquehavia sanguenopeitodele,eeleseagarravaaelecomosequisesseimpedirquedeixasseocorpoouenfiá-lodevolta.—Aiie—disseBiggie.—Issodói.—Issonãoébrincadeira—retrucouTintin.Biggieriu.—EoscarasdaBoston?—Peguei eles de surpresa.Dois deles estãomortos, com certeza.O outro,
talveznão.Deiumtironoquadril,nãonoestômago.Stéphaniefezaquelebarulhodesuspirodenovo.— Você foi atacado, certo? — ela disse. — Pelas milícias leais ao novo
governo?ElesteodeiamporqueaRoute9ousouparalutarpeloAristide.Nãoé?TintinolhouparaBiggie.—Apenasdigasim—Biggiefalou.—Sim—falouTintin.— Bom— disse Stéphanie. — Certo, você está machucado por violência
política,entãoosblancsprecisamcuidardevocê.Elafalouissocomosenãofosseblanctambém.Enfiouamãonobolso,tirou
umcartãoplastificado.—Mostreissonopostodecontrole—elafalou.—Digaqueeutemandei.
OssoldadosvãoteacompanharatéoHospitalCanapé-Vert,o.k.?Elapegoualgodooutrobolso—eraummaçodedinheiro.
—Mostreissotambém.Tintinolhouparaelaagradecido.Pegouocartãoeodinheiro,enóssaímos,
masnãoantesdeBiggiedarumtapinhanascostasdeTintin.Pareciaquetinhadoído,masTintinnãodisseanyen,nadinha.Depois disso, seguimos para outra rua, e então para outra. Enquanto a
velocidadediminuía,eBiggiedesligavaomotor,percebiquetínhamoschegadoaobarracodeumdosclientesdeBiggie;sabiapelomapaquetinhadesenhado.Oqueosclientescompravam,eunãosei.Não, isso é mentira, e eu não quero mentir para você. Você é a voz na
escuridãoepreciso falaraverdade,ou talveznuncamedeixarásairdaqui.Eusabiamesmoqueelescompravamdrogas.Eusónãoligava.Você ligaria? Eumorava num lugar onde era comum comer lama.Nãome
julguem,desgraçados.Aspessoaschamamagentedegângsteres,masquemestáajudando as pessoas aqui além de nós? Nenhuma moun quer pagar pelaeducação;nenhumamounquerpagarporhospitais.AsONGsnãovêmatéSiteSolèy. Se quer comida grátis, o único lugar que você conseguirá é com umchimère.BiggieeTintinjogavamsacosdecomidaqueStéphanietraziaparaelesdeumcaminhãotodasexta-feira,alimentavametadedoSitedessejeito.Quandonossentamosforadacasa,Biggievirou-sepramim.—Possover?—eledisse.—Veroquê?—Opwen.AquelequevocêpegoudoDread.Euencarei ele.Todomundo sabiaqueDread tinhame salvado,mas eunão
sabiaquesabiamsobreopwen.Biggieviuaexpressãonomeurosto.—Meuhoungan—eledisse.—Suamanmanvaineletambém.Eufizquesimcomacabeça.Faziasentido.Pegueiapedradobolsoemostrei
paraele.—Possoencostarnela?—eledisse.—Hum,sim,claro.Eleesfregouapedra.
—Lisa—eledisse.—Quemestáaquidentro?—Nãosei.Umespíritoancestral,minhamanmandiz.Biggiedevolveuapedra.—Vocêestáprotegido,Shorty—eledisse.—Issoébom.Vocêtemapedra
dele.EutenhoosossosdeDread.Euevocê,agenteéàprovadebalas.Quandoentrarlá,nadapodetocarvocêquandoamerdatodaafundar.—Quemerda?—euperguntei.Biggie apenas olhou pra mim, e ele sabia que eu sabia o que estava
afundando.Saímosdocarro,masBiggienãoabriuaportadepronto.Euentendientão que ele havia desligado o motor antes de pararmos, e disse pra mimmesmoqueeuera estúpidopornãoperceber issonahora.Elenãoqueriaquenenhumamounouvisse,euachei.EueStéphaniesaímosdocarro.Biggiemeentregouaescopeta.—Sabeoquefazercomisso,certo?Derepentepercebiocoraçãonomeupeito.Davapancadascomosequisesse
sair,comosenãoquisessefazerpartedaquilo.—Sim—eurespondi.—Essecaraládentro,elemeroubou—disseBiggiebembaixinho.—Ele
pegouminhascoisasevendeuparaaBoston.Acreditanisso?Balancei a cabeça. Não podia acreditar, mas ele estava certo. Uma merda
comoessapodiaacabaremmorte.—Nuncadeviaterconfiadonele—Biggiedisse.—Ocaracostumavaandar
com Boston. Ouvi que ele contava vantagem sobre todos os homens que elepicou com facões. Só o deixei vivo porque sempre tem dinheiro; sempreconseguecomprar.Penseinoshomens—osgarotos—quematarammeupapa,dosfacõesque
elesseguravam.Erapossívelqueaquelehomemnobarracofosseumdeles?Sim,eupensei.Sim,era.— Comprar o quê?— disse Stéphanie, mas eu podia dizer que ela estava
brincando.
—Comida,claro—Biggiefalou.Juntouasmãoscomoseestivesserezando,comosefosseumsantooualgoassim,eissomefezrirumpoucopordentro,emeucoraçãodeuumaacalmada.—Vocêquerqueeu…?—É—disseBiggie.—Éisso.Eu pensei naquela noite que meu papa morreu, o sangue em todo lugar.
Estavaolhandoparaaportaeimagineiohomematrásdele,seelerealmenteeraumdoshomensdebandana.Decidiqueera.Lembrei como meu papa olhava, o medo nos olhos quando os facões
desceram.Comeceiaodiarohomematrásdaporta.Stéphanieestavaempé,na rua,braçoscruzados.Percebiqueela ficounum
ânguloemquemounpoderiaatirarnela ládedentro;comoseela tivessefeitoissoantes.Elapareciaentediada,eulembrodeterpensado.Biggieesticouobraçoatéacinturadacalça,pegouumapistola, e foiatéa
porta.Fezumgestopramimqueeunãoentendideverdade,entãoabriuaportacomumchute.Eu estava na frente da porta e ergui a escopeta quando a sombra de um
homemsurgiudiantedemim.Puxeiogatilho.Foimuitorápido.Teveumbumtão alto, como se o mundo estivesse caindo, e vi um esguicho de preto evermelho.Fuilançadopratrás,emeuombrochiouondeocabodaarmabateu.Cambaleeiparaafrenteparaveroquetinhafeito.Haviaummortodeitadono
chão,maseuestavaapenasmeioconscientedequetinhasidoeuqueomatara.Eumevirei.StéphanieestavabeijandoBiggie,a línguadelanabocadele,e
aquilomefezficartãoenjoadoquantoosangueespalhadoporali.Elaseafastouesorriupramim,umsorrisoestranho.—Bon—disseBiggie.—Bem-vindoàRoute9.Eutinhadozeanos.
OUTRORA
Toussaint abriu o mapa no qual, com poucos rabiscos de tinta, eleplanejaria o destino dos franceses. Haviam desembarcado mais tropas:inevitável.Passarammuitassemanasdesdeaimolaçãoeomassacredoprimeirodestacamento de desembarque.Naquelemomento, tinhamapenas as cinzas doCaboHaitianoealgumcerradoquejazianoentorno.Osfrancesesprecisariamsemoverparaointeriorsequisessemreconquistaropaís.Toussaintestariaesperandoporeles.Nãopelaprimeiravezhaviaabençoado
as feições que permitiam a Jean-Christophe se misturar aos franceses, ou aomenos aos mulats. Baixou os olhos para o mapa diante dele. Ele o haviadesenhado,marcandoos locaisondeexistiammontanhas,ondehavia florestas,ondehaviafazendasquepoderiamsustentá-los.Viajouparatodosesseslugares,cobriaocomprimentoealarguradopaísnolombodocavaloouapé.Os francesespoderiamolharparaosmapas imperfeitosepensar,ah,olhem,
há um vale que nos levará tranquilamente aos contrafortes, com muita águafresca para beber e longe de qualquer das fortalezas negras conhecidas.MasToussaint olhava para o seu próprio mapa e viu as cavernas escondidas quemarcaraaolongodalateraldovale,asárvoresabaixoqueobscureciamavisãodeles.Os outros generais, Jean-François e Biassou, pensaram que era o orgulho
arrogante quemotivavaToussaint a confrontar os franceses em campo aberto,maseleacreditavaquetinhaalgoqueosfrancesesnãotinham,comcertezanãocomtantodetalhe.Haviaosriachoseoscamposdebatata,asravinasondeumexércitopodiaficardeitado,escondido.Possuíaaterra.Como insistiadesdeo início, nãohaviamaneirade tomaremoHaiti senão
pudessemmantê-lodepoisdisso.Assim,enquantoviajava,encorajoueelogioutambém.Convenceuossoldadossedentosdesangueabaixarasespadasetomar
os arados, mesmo que apenas por um tempo, antes de pegarem em armasnovamente.Inventouumsistemadeduastigelas,umadentrodaoutra,comáguamolhadaentreelas,quefaziaacomidaficarfrescapormaistempoe,assim,nãoestragar. Quando viajaram pelo país, ensinou às pessoas o princípio da tigelarefrigerada,edessejeitooalimentoeasprovisõesnecessáriasigualmenteparaocidadãoeosoldadoeramfeitosparadurarumpoucomais.Ordenou o cultivo de tudo o que pudesse ser cultivado, e isso incluía seus
homens, a quem ele mandou procurar soldados letrados e aprender a ler eescrever com eles. Separou depósitos de comidas secas, de simples, de água.Outros sugeriram essas coisas também — seu exército não era de bestasignorantes,comooscomissáriospoderiamquereracreditar—,mascabiaaeleuniresforçosdetodos,manteroplano,fossecomoconsequênciadospassosnasuacabeçaoudeummapaqueestavadiantedele.Ele riscou um dedo pela estrada até Marmelade, norte do Cabo Haitiano.
ParoupoucoantesderiscaroCabodomapa,masolocalestavaquasedestruído,queimado num fogo vingativo. Às vezes, durante o sono, ele via pessoasgritando nas chamas, e perguntava a si mesmo se deveria assumir essaincumbência e não simplesmente ter corrido quando a revolução começou.Aindaassim,aondeeleteriaido?Teriasidoenredadopelaviolência,gostasseounão.Alémdisso,viuoqueestavaporvir.Sabiaqueaescravidãoestavaprestesaterminar,eassimprecisavamanteraobrigaçãodeseraqueleapôrfimnela.Ele se confortou também ao saber que as coisas seriam piores se ele não
estivesse presente. As tropas que ele e seus camaradas generais comandavameramdeummontedeesfarrapados,emmuitoscasostrajadoscomroupasmal-ajambradas de seus mestres, equipados com armas velhas. Eram difíceis deliderar, muito sujeitos à obediência cega ou à recusa brusca, sem reaçãomediana. Ainda assim, ele os liderou — em diversas vitórias admiráveis nocaminhoatéaconquistadasmontanhas.Seu único ferimento até então fora seu dente da frente do lado esquerdo,
atingidoporumacápsulaejetadadeseurifle.Gostavadesorrirparaaspessoase
mostraresseburaco;elemesmohaviasedadoonomedeToussaintl’Ouvertureporessaaberturaemseusdentes.Oshomensnoacampamentoespalharamqueera chamado L’Ouverture pelas aberturas que foi capaz de criar em linhasinimigas,eeleriacadavezmaiscomaquilo.Nãoforasuaintençãoaoassumironome, mas de qualquer forma era bom, pois ele entendia que, quando umsoldadotemorgulhodeseulíder,sãoseurespeitopróprioesuabravuraquesebeneficiam.Eleforaescravo—entendiaopoderdosnomes.Seusenhorfrancêslhe dera o nome Toussaint, pois ele tinha nascido no dia festivo de todos ossantos.Agoraelesenomeava,e,seonomefalavadesuasproezasmilitares,nãodeumferimentobobo,melhorainda.Infelizmente, embora ele tivesse criado suaprópria lendaquase semquerer,
foi incapaz de apagar completamente a reputação apavorante de suas tropas.Ainda eram propensos à crueldade excessiva no encontro com os brancos, etinham muito apetite por sangue, destruição e pilhagem. Biassou quaseencorajavaessecomportamento.Mas,nofimdascontas,nãohaveráBiassou,nemJean-François,apenaseu,
Toussaintpensava.Então,ossoldadosfarãooqueeumandar,todoseles,enãofarãovergonhaànossaempresa.— O plano deles não é estúpido — ele dizia a Jean-Christophe enquanto
estudavaoterreno.—Marmeladeéoúnicolugaraoqualosfrancesespoderãorecorrer.EumantenhoDondon,Biassou e Jean-François controlamLaGrandeRivière. Os franceses precisarão fugir do Cabo Haitiano ou serão destruídos,aindaquenãopossamesperarnosenfrentaraqui,embatalhaaberta.Noentanto,seganharemumacabeçadeponteemMarmelade, teremosque lutarcomelespelointerior.—Vãosemovernapróximasemana—disseJean-Christophe.— Muito bem. — Ele apontou para o mapa. — Não sabem sobre essas
cavernas,tenhocerteza.Estaremosprontos.— Prontos para quê?— perguntou Biassou, que estava sentado próximo à
entradadatenda.
Eragordoegostavadeficarpertodeumabrisa,sepossível.Mesmoassim,osuor escurecia sua camisa e corria em filetes pelas riscas na carne do rosto.Toussaint forçou um sorriso. Jean-François estava ocupado, fortalecendo suasdefesasaleste,massabiaqueBiassoueraumaameaçaasualiderança.—Umaemboscada—eledisse.—Esperopoderpegaraforçaprincipaldeles
semumagotadesangueserderramada.Biassoudeudeombros.—Paraoinfernocomaspalavras—eledisse.—Espadassãomelhores.—
Ele tocou a espada ao seu lado.—Mateimeu próprio senhor com esta aqui.Nunca senti nadamais doce. Digo para enfrentarmos os franceses em campoaberto,comohomens.—Vocêestácerto—disseToussaint.—Ébomsevingardeuminimigo.Mas
lembre… se herdarmos esta terra, como os gentis deveriam, teremos decompartilhar essa herança. Se massacrarmos todos os brancos e mulats,criaremosapenasumfeudosangrentoqueecoarápelahistória.Biassoususpirou.— Queres que sejamos piedosos? — ele falou. — Depois de tudo o que
fizeram?Toussaintbalançouacabeça.—Não,queroquesejamospragmáticos.Ouve.Vamostentardomeujeito.Se
falhar,matamostodoseles.Biassousorriu.—Gostodesseplano—eledisse.Na semana seguinte, Toussaint montou em seu cavalo, encarando um vale
inclinado,longoesuave.Ossoldadosfrancesesavançavamparacimacomoumagrandehordadeinsetos.Nãoocuparaocargodegeneralportantotempoapontode ter o dom de contar os homens com uma olhada, mas reconhecia quedeveriam sermilhares deles. Preservavamum semblante de disciplina,mesmono calor, e, apesar das escaramuças, os homens de Toussaint os castigaramquandosaíramdoCaboHaitiano,emboraeleobservassepelalunetaquemuitos
nasfilastraseiraseramcarregadosemmacas.—Todosemposição?—eleperguntou.Biassouriu.—Emboscadasforamarmadasemambososlados—elerespondeu.Eleapontouparaafileiradeárvoresemambososladosdovaleeascavernas
àfrente.Dali,Toussaintnãoconseguiaveroshomens,masaqueleeraoponto.EleeBiassouestavamescondidosatrásdeummontedeterrabempróximoao
topodovale.Cavalgaramànoiteparatomaressasposições.Agora,observavamas fileiras espremidas de homens, os cavalos bufantes, os canhões arrastadosnumaprocissãocontínuamorroacima.—Agora—Toussaintdisse.Jean-Christophe,queparouaoladodeles,concordoucomacabeçaeesporou
suamontaria,galopandonadireçãodalinhadefrentedoexércitofrancês.Umabandeirabranca tremulavanomastroqueelecarregavade lado.Toussaintnãoconseguiaouviroqueelegritavaparaossoldados,massabiaoqueeraporqueerampalavrasdelenabocadeoutrohomem.Jean-Christophediziaaelesqueogeneral Toussaint l’Ouverture solicitou a oportunidade de tratar pessoalmentecomo líder do exército francês e convidou-o a cavalgar à frente de sua forçaparaqueelespudessemnegociar.Após muita comoção entre as tropas, um homem de chapéu emergiu do
motim,montounumgaranhãomagníficoquecomeçouatrotarmorroacimaaolado de um jovem mulat. Toussaint balançou a cabeça para Biassou, e elescavalgaramparaencontrarooutro.Encontraram-se a algumascentenasdemetros antesdo exército emavanço.
Toussaintapeouecurvou-sediantedoalmirante,outenente,ouoquefosse.Desuaparte,Biassoupermaneceunocavalo;nãoeraotipoquesabiaquemesurasnãoprecisamsignificarnadasevocênãoquiser.Defato,elelançouumfranzirdesobrancelharápidoparaToussaint,comoseeleestivessemostrandofraqueza.Bem,deixeBiassouesperareveroquevaiacontecer,Toussaintpensou.Olíderfrancêstambémpermaneceunasela;umfrancêsnãosereuniriacom
um negro em termos iguais. Toussaint sorriu por dentro. Ali estava ele,humilhando-se, o único dos três a apear e curvar-se, e ainda assim levaria amelhor.Ofrancêseraaltoetinhafeiçõesarrogantes,talveztivesseunscinquentaanos,
mas com um peitoral grande e uma cintura fina, e uma espada reluzente noflanco.—Desejasnegociarostermosdarendição?—eleperguntou.Seusotaqueeradeumparisiensepuro.Toussaintriu.—Queronegociarvossostermosdarendição.Ofrancêsfezmençãodeolharaoredor,lançandoosolhossobreseusmilhares
dehomens.—Parecequeestouemvantagemnumérica—elecomentou.—Então,tendesmuitafénasaparências—Toussaintfalou.Eleergueuamãoeossoldadosseguiramadiantedesuasposições,detrásda
fortalezadepedraeárvoreeterra.Sabiaquantoshomenseletinha—cincomil,metade deles armada com pistolas tiradas dos senhores de escravos, ou doexércitobranco.De fato,muitosdesseshomenserambrancos—soldadosquelutavamcomocomissariado,masquedepoisse juntaramàcausa,desejandoaexpulsãopermanentedoscolonizadores,aunificaçãoeaindependênciadoHaiti.O francês empalideceu e tomou o sabre,masBiassou já estava com o rifle
apontadoparaele,eamãodaqueleparou.Toussaint tomou as rédeas e, com uma facilidade que camuflava sua idade,
montou na sela novamente. Fez sua montaria erguer-se sobre duas pernas egritouparachamaraatençãodossoldadosbrancos:—Baixaiasarmas!—Comoousadirigir-teaosmeushomens?—ofrancêsperguntou.Toussaintoignorou.— Estais cercados pelos homens de Toussaint l’Ouverture e Biassou, do
exércitodoHaitilivre!—elegritou.—Somoshomensdehonra.Tendesmuitos
feridos…sugiroaelesocuidadodenossasmulheresedenossoscurandeiros.Eles serão bem tratados, como vós. Qualquer homem que se render a nóssobreviverá.Alguns dos soldados começaram a baixar as armas. Toussaint sorriu — o
planoestavafuncionando.Eleergueuoriflenoar,numademonstraçãodepoder.—Rendei-vosevivereis—elegritou.—Euprometo.Lutaiecadaumdevós
morrerá.Nãosabiaseeraseupedidoouapercepçãoporpartedosfrancesesdequea
situaçãoeradesesperadora,masderepenteasarmascomeçaramacair,comumcliquetis de metal na madeira, de metal no chão pedregoso e duro. Logo, ograndeexércitohaviasedesarmado.Biassouemitiuumgritodetriunfo.Voltou-separaosmaispróximosdosseus
soldados,aquelesescondidosnosarbustosaonorte.—Agora!—elegritou.—Estãoindefesos.Matem…Elenãoterminouafrase.Comtranquilidade,Toussaintlevouorifleaoombro
eatirou,arrancandootopodacabeçadeBiassou,osanguequentejorrandopeloar.Maldito,Toussaintpensou.Ohomemdobrou-separaa frente,ospésaindapresosnos estribos, e o cavalo assustadoo carregoumonte acima, balançandocomoumabonecadepano.—NÃOATIREM!—Toussainturrouparaoshomens.MetadedoshomenseradeBiassou,eoarvibroucomaressonânciametálica
dapossibilidadedeelesseamotinarem,virando-separaToussaintemassacrandoosfrancesesemseguida.Elerespiroufundo.—Qualquerhomemquematarumprisioneiroresponderáamimcomavida!Chegouummomento terrivelmentepesado, enquantoToussaint observava a
hesitaçãonorostodosnegroslivres,dosmulatsedosbrancosquesejuntaramaeles.Ummomentopassou,umaeternidade.Outro.
OsuorbrotavanasobrancelhaenonarizdeToussaint,pingavaeaterrissavanapelemornadocavalo;eleimaginouqueconseguiaouviropequenochapinharquefazia.ParaalíviodeToussaint,noentanto,absolutamentenadaaconteceu.Ninguém
semoveu,ninguématirou.Umpássaropiouemalgumlugareumsapocoaxou.—Pegueasarmasdeles—eledisseparaJean-Christophe.—Leveosferidos
para a nossa tenda de enfermaria.Qualquer soldado que desejar se unir a nósserá bem-vindo; não aceitamos segregação neste exército. Diga a todos quehaverá liberdade, comida e bebida, e algum inglês para matar em breve, eugaranto.—Inglês?—disseolíderfrancês,quepareciapálidoechocado.— Sim — falou Toussaint. — Entendo que a marinha de Sua Majestade
aportouemGuildive.—Quê?Porquê?— Presumo— disse Toussaint— que observaram a perda de controle da
França sobreopaísepensaramem tomá-loelesmesmos. Imagino, ainda,queelesgostariamdenosescravizardenovo.Nós,eoaçúcarquecultivamos,somosmuitovaliosos,nãosomos?Olíderfrancêsconcordoulentamentecomacabeça.— Vamos comer e beber. Então, seguiremos a cavalo para Guildive, e
qualquerumdosteushomensestarálivreparasejuntaranós,desdequeprestemlealdadeamimeaoHaiti.Vós, franceses,adoraismatar ingleses,peloqueeusaiba.Umdos soldadospróximo riuenãoparouquandoo líder francês lheatirou
umolharraivoso.Euosconquistei,pensouToussaint.Euosconquistei.Apenasnaquelemomentopercebeuquesuasmãosestavamtremendo,evirou-
se para ver se o cadáver de Biassou ainda estava cavalgando por ali, mas ocavalohaviadesaparecido.Sentiuenjoo,envolvendoasmãosfriaseúmidasemtornodabarriga,eviuofrancêsolhandoparaelecomosefossealgumtipode
monstro.BomDeus,elepensou.Agoravãocomeçaradizerqueeutireimeunomeda
épocaemqueabriacabeçadeBiassou.Contudo, havia jurado que os soldados franceses viveriam se baixassem as
armas, e Biassou os teria massacrado. Toussaint era muitas coisas, mas eraprincipalmenteumhomemdepalavra.
AGORA
Achoquetalvezooxigênioestejaacabandoaqui.Possoouvirmeucoração—bum,bum,bum—,écomoumadasbatidasqueBiggieusavaparafazerrap.Possoouvirminharespiraçãotambém;émuitoaltaerápida.Nãoqueromorrerna escuridão, então começo a chorar,mas penso que não devo chorar, pois édesperdíciodeágua.Masnãovoumorrersemlutar.ÉoqueBiggiecostumavadizer.Costumava
falar:—Nãovenhaatrásdemim.Nãovenhaatrásdemimoudosmeussoldados,
porquevouatrásdevocêcommilvezesmaisforça.Venhaatrásdemim,mwenapèmange,euteengulo,cara.Atacovocêemplenaluzdodia.Em plena luz do dia. Penso sobre isso. Quero ver a luz do dia. Não tem
nenhumamoun vindo atrás de mim, mas talvez as paredes deste lugar sejamminhasinimigas;talvezeudevesselutar.Rastejosobreapilhamaispróximadeescombrosecomeçoaempurrá-la.Éestúpido,poiseuvioprédiodecima—euachoquevi,pelomenos—eseiquenãopossomedesenterrardaqui.Maseutentarei.Souumgângsterfrio,umGdeverdade,desgraçado.Gângsterparasempre.É
o que eu digo para o gesso e o metal e o concreto, xingando essas coisasenquantoelasmecortamasmãos.Nãoconsigovê-las,masjogo-asparatrásdemim. Estou chorando, eu acho, e agarrando essas coisas e jogando elas naescuridão.Nemseiseestouindonadireçãocerta.Estouapenascavando,e,quandocomeço,nãoconsigoparar.LogodepoisdeBiggiemelevarparaogrupo,euficavanumaesquinaperto
do território da Boston. Ficava na vigia; pequenos sempre ficavam na vigiaquando começavam.Na época, não tinha arma.Meu trabalho era ligar para oBiggie se alguma coisa desse errado. Tinha um celular no bolso. Me sentia
descolado, como se eu fosse um chimère de verdade. Não tinha ninguém praquem eu pudesse ligar— o telefone tinha apenas o número de Biggie, e elenuncapunhamuitocréditonele.Mas,àsvezes,eutiravadobolsoeseguravanaorelha,fingindofalarcomalguém—umapostadordapesada,esseeraeu,ummandachuva.Mas bem naquele momento eu não estava no telefone. Estava sentando na
poeira, encostado na parede, e brincava de jogarmeu pwen para cima e parabaixo,paracimaeparabaixo,pegando-ocomamão,eelefaziaumtunc suavequandocaíanamão.Tintin virou a esquina eme encarou. Tinha uma bandagemno peito, que o
fazia andar engraçado. Estava vestindo calças largas e eu conseguia ver suaboxerdaCalvinKlein.Tinhaumabarbichinhaembaixodolábioinferior.Elanãocresciadireito,maserabacanadomesmojeito.Tinhaumacorrentedeouronopescoço e, na cabeça, umboné de beisebol. Parecia drogado,mesmo que nãofossemuitomaisvelhoqueeu.Eueraummeninodecamisetaejeans,jogandominhapedra.Tintinveiopracimademim.—Queéisso?—eleperguntou.Pareciairritado.—Oquê?—Issoaí.Nasuamão.Oqueé?Olheiparaapedra.—Sóumapedra—eurespondi.Nãoseiporqueeudisseaquilo.AchoquepodiavernosolhosdeTintinque
elequeriaapedra.Enfiei-adevoltanobolso.—Táquerendomeenganar—Tintinfalou.—Éumpwen.Biggiedisseque
vocêtinhaum.Comoconseguiu?Roubou?Achoquefiqueidebocaaberta.—Não.DreadWilmèmedeu.— Ah, tá — Tintin falou. — E eu consegui um relógio do Toussaint
l’Ouverture.Achaquevouacreditarnisso?Ondevocêconseguiu,Shorty?Oque
tefaztãoespecial,hein?Comeceiamelevantar,masTintinchutouminhamãoporbaixoeeucaíde
bunda.—Achomelhorvocêmedarissoaqui—Tintindisse.—Tomeiumtiroenão
querotomaroutro.Umpwenvaimeproteger.Eudeveriaterdadoapedrapraele—podiavernosseusolhosqueeraotipo
de cara quememachucaria se eume recusasse—,mas por algummotivo eufiqueinervoso.—Não—eufalei.Tintinrespiroufundo.Nãofalounada,apenasmeagarroupelacamisetaeme
pôs em pé.Me socou, mas o punho dele bateu na fivela do meu cinto e elesoltou:—Caralho!Eleesfregouamãocomaoutra.Pulouemcimademim,meagarroucoma
mão boa, eme deu uma cabeçada,mas nãomirou direito, ou talvez eu tenhadesviado,eonarizdeleacertouminhatesta.Cambaleeipratrás—minhacabeçaestava girando—, e ele vacilou, quase caindo por cima demim. Segurava onariz,eamãoficoutodaensanguentada,pingandosobreaboca.—Filhodaputa—elefalou.Avozdeleeragrossaetrêmula.—Essapedra
táprotegendovocê,certo?Vaidarelapramim.—Não—euretruquei.—Cara,tápedindopramorrer—Tintinfalou.Mechutou,masdei umpassopara trás e ele caiude costas deumavez.A
frentedacamisaestavatodacobertadesangue.Pareciaqueeutinhadadoumasurranele,enemencosteiamão.Tintinselevantou,eseusolhosfaiscavamassassinato,podeacreditar.Então,
olheialgumacoisadecantodeolho—umreflexo, talvez,um flash—evireimeucorpoumpouquinho.Tudoaquiloaconteciasemeupensaremnada,evium carro descendo a rua devagar. Era umFord, eu acho, suave, suave, suavecomoumbarco, sem fazernenhumsom,ouaomenoseunãoouvinenhum,e
saindodajaneladocarroalgolongoepreto.EmpurreiTintinnopeito com força e ele caiudenovo.Dessavezouvi sua
cabeça batendo no chão e pude sentir o cheiro de sangue. Parecia que omomentodurariaparasempre.—Filhadap…—Tintindisse.Então eu não ouvi elemais, porque era tudo apenas bum, bum, bum, bum,
bum,bum,bum,bumdearmas,comoumabatiadedrum’n’bass.Nãotivetempode me abaixar; fiquei lá, em pé, esperando a morte chegar, como o NotórioB.I.G. na música. Eu estava pronto, cara. Não conseguiria descrever a vocêcomo me senti, ou o que vi. Parecia não ver nada além do sol batendo nocromado do carro, os disparos vindo dos canos, e não sei se eu vi ou apenasimagineioqueveiodepoisdisso.Ummomentodepois,ocarropartiu.Nosmeusouvidos,umzumbido;parecia
umbzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.Tintinfaloualgumacoisadochão,maseupudeverapenasoslábiossemexendo.Nãoconseguiaouvirnada.Nãoconseguiasentirocheirodosanguemais.Emvezdisso,vinhaumcheirodealgoqueimandoedemetal,tudomisturado,eembaixodeleumcheirodebanheiro.Olheiparabaixoeviquehaviamemijadotodo.Conseguiasentirtambémocalorespalhando-senocavalo da minha calça, nas minhas coxas. Imaginei que devia ficarenvergonhado,masminhacabeçaestavaapenascheiadevozes,vocêestávivo,vocêestávivo,vocêestávivo.Tudooqueconseguiaouvireraozumbidoetudooquepodiavereraosolnocéu.Penseiquenuncatinhavistoalgomelhor.ViamãodeTintinacenandopramim,comosepedisseparaeulhedaramão.Estiqueiamãoepegueiadele,erguendo-o.Eledisse:—…Pusminhamãonosouvidos,entãodeideombroseestiqueimeusbraçospara
mostrarquenãoconseguiaouvir.Eleseinclinoumaisperto.—PUTAMERDA—elegritou.—PUTAMERDA.
—É—eufalei.Foitudooqueconseguipensar.—Erafimdalinha—eledisse.—Fimdalinha.Euoencarei.—Vocêsalvouminhavida.—Tintinfalou.Ele me olhava com aquela expressão estranha. Não, não pra mim — ele
olhavaatravésdemim.—Quefoi?—eufalei.Nãoseiseeleouviu,masapontouatrásdemimeeumevirei.Foi quando eu vi. A parede atrás demim estava cheia de buracos de bala,
furos grandes, enormes no gesso. Uma janela tinha estourado, pedacinhos devidro em todos os lugares. Acima da minha cabeça, dos dois lados, tudo eraburacodebala.Masnenhumadasbalasmeacertou.No entanto, percebi uma coisa: a sombra atrás de mim estava pregada na
paredeporaquelasbalas;elaestavamortaebemmorta.Eraestranhoolharparaminhaprópriasombracheiadeburacos.Eumeperguntei: sesuasombra tomatiros,émásorte?Écomomorrernumsonho?Deiumpassopequenoparaumlado, e porummomento temiqueminha sombra fosse ficar paradanaparedeonde tinhamorrido, e a partir daí eu andaria pra todo canto sem sombra e asvelhasfariamosinaldodiabopramim.Masissonãoaconteceu.Minhasombraescorregoucomigopelaparede,enãohaviaburacosnela,nenhum.—Comoelesteerraram?—Tintinquissaber.Toqueimeubolsocomopwendentrodele.—Nãosei—eurespondi.—Cara—Tintinfalou.—Apedra.Biggiedissequevocêeraogarotoque
Dreadsalvou.Nãoacreditei.Agoraeuacredito.Quebomvocêterficadocomapedra.Eleergueuamãoprabaternaminha.Fiqueiolhandoparaosanguenorostodele,chocado,elevouumtempoantes
deeuperceberqueelenãoestavabrincando.Quandobatinamãodele,fezumsomdetiromuito,muitodistante.
Olheiparaorostodele.—Vocêquebrouonariz—eufalei.—É?—eledisse.—Evocêsemijou.Comecei a rir, e então ele começou a rir, e nós dois estávamos curvados,
segurandoabarriga,rindotantoquechoramos.Segurávamosumnosombrosdooutroeríamoseríamos.Osomdeummotordecarronosinterrompeu.Olhamosumprooutro e corremospara dentro do território daRoute 9.Continuamos acorrer até o fôlego acabar, então nos sentamos e esperamos para respirar denovo,e,quandofizemos,começamosarirdenovo.Depois que finalmente paramos de rir, Tintin ergueu a camisa e limpou o
sanguedorosto.—Achoqueapedraquerficarcomvocê—eledisse.—Desculpeseeutentei
tirardevocê.Depoisdisso,viramosmelhoresamigos.Simplesassim.Tintinerameuamigo,maseraumloucodesgraçadotambém.Poucosmeses
depoisdaquelestiros,elemebuscoucomocarrodoBiggie.—Eutavafazendocobrança—elefalou—,masagoravousairdoSite,fazer
umaentrega.Querdarumavolta?Umaentregasignificavaheroína,eusabiadisso,masnãosabiaqueTintinera
ummotoristadeentrega.—VaisairdoSite?—euperguntei.—Foioqueeudisse,nãofoi?Olhei para ele. Nunca tinha saído do Site— ao menos não desde que os
soldadosmataramDreadWilmèeolugarfoitodopostoemconfinamento.—Bem?—Tintinfalou.—Vocêvemounão?—Caramba,claro—eurespondi.Pulei no carro, Tintin deu a partida e saímos em disparada pela estrada.
Quando chegamos ao posto de controle da ONU, Tintin baixou o vidro.Entregouumpasseparaosoldadoblancdeserviço.
—Estepassedizumapessoa—osoldadofalouemfrancês.—Meuirmãotádoente—falouTintin.—Voulevá-loatéoCanapé-Vert.Osoldadoseabaixoueolhoupelajanelaabertapramim.—Nãoparecedoentepramim—elefalou.—Émalária—Tintinsoltou.Osoldadolançouacabeçapratrás,comoseachassequeeufosseomosquito
oualgoassim.—Temosdocumentosdele?—osoldadoperguntou.Tintinseinclinousobremimeabriuoporta-luvas.—Claro,estãoaquiemalgumlugar—elefalou.Começouapuxarumascoisas—papéiselixoeumalanternaeoutrascoisas.
Derruboualgunsdospapéisentreosassentosetentoutirá-losdelá.—Esquece—disseosoldado.Eacenouparaseguiremfrente.—Vocêtemumpasse?—pergunteiparaTintin,enquantopassávamospelo
postodecontrole.—Sim,Stéphaniemedeu.—Elaconseguemais?—Talvez,nãosei.MasBiggiequerapenasumapessoaprafazerasentregas.
Agora,essapessoasoueu.Eleenfiouopassedevoltanobolsoeolhouparaeleumbomtempoenquanto
faziaisso.Aquelepasseeraaliberdade.Viramosnumaestradamaiorecomeçamosa subiromontenadireçãoonde
ficavamascasasdosricos.Baixeimeuvidroeboteiacabeçaprafora,esentiabrisanorosto.Eraumsentimento,tipo,deliberdade.Eugritei,tipo:—Iuuuuuupi!Tintin ria.Elegritou também,entãoéramoscomodois lobosnaquele carro.
Ele viu o cachorro do outro lado da estrada mancando. Era um cachorrosarnento,umperdido.Tintindesviouocarronadireçãodele, inclinou-sesobremimeuivou:—Aruuu!Aruuu!Aruuu!
Meuestômagodançouquandoocarrodeuumaguinada,eeuagarreiovolantesempensar.—Não!—eufalei.Tintinriudenovo.Elearrancouovolantedaminhamãonoúltimomomento,
eocarroguinchounopichecomcascalhoederrapoudevoltaparaaestrada.Ocão olhou para nós quando passamos, como se nem estivesse surpreso. Tintindeuumsoconoarevirouocarrodeumavez.—Issoéliberdade,cara!—elefalou.—Agentepodefazeroquequiser.Meucoraçãopalpitava—pit-PAT,pit-PAT,pit-PAT,pit-PAT—nomeupeito
e tudo pareciamais brilhante e colorido, como se as coisas cotidianas fossemiluminadascomneon.Ocarronosatravessouparaooutrolado,e,enquantoeleseguia,oslimpadoresdepara-brisadispararam,lançandoumlíquidoespumososobreopara-brisa,noar,brilhandodeleveporele,epenseiqueocarrofosse,tipo, uma baleia, algo grande e vivo, soprando ar e água pelo respiradouro,navegando.OlheiparaTintin.Elesorria,tentandofingirqueahistóriadocãotivessesido
umapiada,maseusabiaquenãoera—conseguiavera friezanosolhosdeleatrásdaquelesorriso.Conhecia-oesabiaqueeleteriamatadoocachorroseeunãoestivesselá.Essa era a questão de estar comTintin.Às vezes, eu olhava para ele e era
comoseeleesquecessedefecharasvenezianasdosolhos,eeuviabemdentrodaalma,eviaquantoeleestavaferido.Estavadesprotegido,éamelhormaneiradedizer.Suamanmanmorreuquandoeleerapequeno,enãohaviaanyenquepudessemanterascoisasmáslonge.Imaginoqueporissoelequeriameupwen,porquetalvezfuncionassecomoumescudoparaele.Eleé desprotegido, eu digo.Esqueço que ainda existe umpresente, lá fora,
ondetemluz.QuandopensonoTintinliderandoàRoute9,penso,cacete,vamosnosdivertir,masmuitagentevaisemachucartambém.AquestãocomTintiné,tipo…tipo,elenão tempele.Tipo, todomundo,elesandamporaíe temumapeleparaseprotegerdosoledachuvaedapoeira.Tintinnãotemnadadisso.É
apenas cartilagem e músculos e veias, como num filme de terror, nenhumabarreiraentreeleeaspontasagudasdomundo.Elesentetudo,eissoomachuca.Entãoelemachucaoutrascoisasprimeiroparaqueelasnãopeguemele.Entendeoqueeutôdizendo?Então, é isso,Tintin comemorou e jogou o carro em cima do cão eme fez
sentircomoocarrodesliza,eeuviocãoolhandoparanós,aexpressãonoseurosto?Pramim,eupenseiqueocãonemligou,maseuritambémedisse:—É,bemmaluco.Fiqueifelizporelenãotermatadoapobrecoisa.—Olhasó,cara—Tintinfalou.Eleparouocarro.PodíamosveroSiteseestenderembaixodenós,tudobaixo
efrágileenorme.Espraiava-seatéomar;daqueleângulo,eracomoseacidadeforadafavelaestivesseempurrando,tentandojogá-lonaágua,comolixo.Mas,dalidecima,oSitepareciamenortambém—escapável,euacho.Era como se fosse o mundo todo, e agora eu estava fora dele. Subimos a
estradaquedesviavaparaafrenteeparatrásnomonte,girandoevirandoporqueeramuito íngreme, e as casas ficavam cada vezmaiores, e algumas delas atéficavamnoseupróprioterrenoverdejante.Omar,elereluziacomojoia,comoalgoprecioso,nãoumamisturadeesgoto
epetróleo,oquerealmenteera.Conseguivergaivotas,pelicanosmergulhando.Aonossoredor,nonossonível,omareraverde,pontuadoporcasasdestacadas,jardinsemtodososlugares,cheiosdeárvoresefloresepássaroscantando.Eralindo.Bempertodenós,haviaumgramado,macioeverde,comoalgoquevocêpudessecomer,nãoapenasandaremcima.—Jardins,cara—Tintinfalou.—É—eusoltei.Euqueria sairdocarro edeitarnaquelagrama,parecia tão fresca e suavee
verde.—Éissoaí—Tintindissedepoisdeumtempo.Estacionamosforadaquelacasabrancacompilaresna frenteedegrauspara
subirnavaranda.Dooutro ladodocarroestavaomonte,enosopéestavamomareomontedelixoondeagentemorava.—Oqueéaqui?—euperguntei.—Ondeodoutormora—Tintinrespondeu.—Elecompraamaiorpartedas
nossascoisas,distribuiparaosricos.Tintinabriuaportadocarroefoinadireçãodacasa.—Ondeestãoascoisas?—euquissaber.SabiaqueobagulhoemgeralsaíadoSiteembolsasdeesportegrandes,mas
Tininnãotirouanyendocarro.—Voupegarmaistarde—elefalou.—Calmaaí.Foi até a porta e tocou a campainha. Fez um barulho de sino, tipo, ding
DONG,dingDONG,dingDONG,efiqueipreocupadoportersidotãoaltoqueas pessoas na rua se virariam e olhariam pra nós e veriam nossas roupas degângstereseperguntariamoqueestávamosfazendoali.Esperamos,enadaaconteceu.Ninguémveioatéaporta.—Ah—Tintin falou.—Acho que ele deve estar ocupado ou algo assim.
Talvezagentedevesseolharlánofundo.Ecomeçouacaminharnagrama.—Achaqueéumaboaideia?—eufaleiatrásdele.Ele deu de ombros, vi o cabo da arma saindo da cintura da calça dele, e
comecei a ter uma sensaçãobem ruim.Naminha cabeça, conseguiver aquelecachorromancandoeovolantedocarrocorrendonadireçãodele.Tintinparounacercaaltademetalcomaramefarpadoemcima.Digitouum
número num tecladinho e o portão se abriu. Acenou para eu segui-lo.Caminhamos pelos arbustos cobertos de pequenas flores amarelas. O lugarinteirocheiravatipo…seilá,porquenuncatinhacheiradoaquelascoisasantes;era tudo fresco e bacana. Se eu estivesse sozinho, teria parado e cheirado asflores,mas sabia queTintin diria que era coisa de bunda-mole, então eu só osegui.Viramos um tipo de esquina, e tinha uma grande piscina com água dentro
dela,azul-céu.Aoladotinhacadeirasbrancaseumachurrasqueiraeaquelebargrande. Fiquei olhando para a piscina; nunca tinha visto algo daquele jeito.Tintinsorriu.—Issoqueévida,né?—elefalou.Caminhou até o bar e deslizou para abrir aquele negócio rolante, tipo uma
tampa.—Oquepossoteservir?—falou.—UísqueeCoca?Olheiemvolta.Atrásdenóstinhaaquelasjanelasimensasqueiamdochãoao
primeiroandar,eatrásdelashaviaumacozinha,masnãoconseguiverninguémládentro.—Issonãoéumaentrega,é?—perguntei.Estavanervoso,masempolgado
também.—Tipo, eumenti sobre isso—Tintinconfessou.—Desculpaaí.Odoutor
estáfora.FériasemMiamioualgumamerdaassim.Quandoagentevoltar,vocêvaidizerproBiggiequeagenteteveumproblemadecobrança.—Biggienãosabequeagentetáaqui?—Caramba,não.Vamosfalarquealgumbabacadeumadasbarracasdebosta
nãoquispagar.Dizqueagenteferroucomele;elevaipegarlevecomagente.—Masagentenão teriaque fazer isso?Acharalgumcaraedarumasurra
nele?Digo,Biggievaichecar.—Játáfeito—Tintinfalou.—Játáfeito,evocênãoprecisasepreocupar.Fiqueidebocaaberta,masemseguidafechei.Fiqueipensando,cacete,Tintin.
Masnãofaleinada.PodiaolhardiretonosolhosdoTintinnaquelemomentoeconseguiverqueaalmadelebrilhavapordentro,masnãodeumjeitobom,tipoaluzsobrealâminadeumafaca.Eusóconcordeicomacabeça.—O.k.—eufalei.—O.k.,uísqueeCoca.Tintinbateupalma.—Meugaroto—elecomemorou,ecomeçouafazerodrinque.Não sei quantos uísques com Coca a gente tomou. Um monte, eu acho.
Ficamossentadosnascadeirasbrancasebebemos,enãodemoroumuitoantes
deeuesquecerocãonaestrada,eocara,fosseláqualcara,queoTintindetonoupara que a gente pudesse ter essa tarde na piscina. Tintin era engraçado —semprefaziapiadas,imitavaoBiggie,coisasassim.Semprefoibomimitandoaspessoas, fazendocomoseele fosseaprópriapessoa,nãoumacoisaque fossepodrepordentro.Ficamos bêbados bem rápido. Tintin tirou o boné e pulou na piscina —
splash!—,eeupuleipradentrotambém.Tinhanadadoantesnomar,nosalenoesgoto,masaquiloerainacreditável.Eramorna,masmaisfriaqueoar,eaáguaerasuaveeestavaemtodolugar,comoumabraço.PenseiemMarguerite,comoquando a gente estava no barco com o papa, ele olhava para aquelas casas ediziaqueumdiaelaviverianumadelas.Pareciaestranhoestarflutuandosobosolnosonhodefuturodela,nadandonasuapiscinaebebendoseusdrinques.Nadamosatéaquelesanéisflutuanteseentramosneles,eentãoTintinfalou:—Hei,agentetemquepegarosdrinques.Depoisdisso,agenteboiounapiscina,bebendo,àderiva.Foiomelhordiada
minhavida.Fecheiosolhos.Osolestavaapino,apenasumpoucoparaoeste,imensono
céuebrilhandoforte.Comminhaspálpebrasfechadas,eracomoumaexplosãodiantedosolhos—fogosdeartifíciovermelhos,faíscasvoadoras.Sabiaqueosfogosdeartifícioerammeusangue,eaquiloeraaindamaisincrível.AbriosolhosevireiparaTintin.—Cara—eufalei.—Issoé…seilá.Éincrível.—É—elefalou.—Acheiqueiagostar.Olheiparaele,sério.—Vou tedar apedra—eu falei.—Vou tedar apedra, sevocêmedero
passe.—Tábrincando,né?—Tintinperguntou.—Esse passe é liberdade. Esse passe leva a gente pra fora do Site. Traz a
genteatéaqui.Eleriu.
—Sóporqueodoutorestádeférias—elefalou.—Guardaapedra,Shorty.EuficavabravoquandoelemechamavadeShorty—elenãoeramuitomais
velhoqueeu—,masnãodissenada.Sóboiei.—Sério,cara,podeficarcomela.Vamostrocar.Elenegoucomacabeça.—Viaquelasbalas—elefalou.—Apedraétua.Nãoqueronempensarque
merdapodedarsevocêmepassarela.Masescuta,Shorty…vocêédivertido,certo?Voutetrazeraquidenovo.—Legal—eudisse.Fecheiosolhosdenovo.Devoterdormido,porquequandoabriosolhosdenovoconseguiouviruma
gritaria. Sentei rápido, sentindo o sangue correndo para aminha cabeça. Fiteicomolhosembaçadosoladodapiscina.Fiqueizonzo,comosefossevomitar.Tintinestavaempénosazulejoscomsuascalçaslargas.Aindapingavaágua
docabelodele,eseguravaaarmadiantedele,deitadanahorizontal,comoumgângsterdeverdade.Estavagritando,masnãoconseguiaouviroqueelefalava—sentiacomosealguémtivesseenchidominhacabeçacomgraxa.—…vacadaSolèy10—euouvi.Isso chamou minha atenção de verdade, porque Solèy 10 é território da
Boston.Esfregueiosolhos.EmpénafrentedeTintinestavaumagarotacomuniforme
de empregada, umamenina, tipo, de 16 anos nomáximo. Estava tremendo etinhafolhasnochãonafrentedela,comoseelativessecarregandoaspáginasetivesse derrubado. Chutei pra longe o anel flutuante e nadei para o lado dapiscina,saindoemseguida.FuiatéTintin.—Quebostaéessa,cara?—eufalei.Eleviroupramim.Asvenezianasdeleestavamabertasdenovoeeuconsegui
veraquelaluzdoentia.—Nãotinhaqueterninguémaqui—elerespondeu.Estavaassustado,pudever.Deiumpassopralongedele.Estavaassustado,e
seriaruimdeixá-loaindamaisestressado.Issoofariaagircomoumlouco.—Tudobem—eudisse.—Tudobem.Ésóaempregada.Olhasó,T…—Nãofalanomes!—Tintingritou.Pisquei.EudesejavadeverdadenãotertomadoaqueleuísquecomCoca.—ElaéSolèy10—elecontinuou.—ElaéBoston.Olheipraela.—Comovocêsabe?Eleabriuaquelesorrisofino.—Pergunteipraela,cara.VocêédeSolèy10?—eleperguntoupragarota.Ela concordou com a cabeça. Os olhos dela viraram pra mim, estavam
arregaladoseaterrorizados.Fiqueipensando,desejeiquefosseumsonho,eeupoderiaabrirosolhosapenaseestardevoltaaoSite.—SóporqueelaéSolèy10nãosignificaqueelaéBoston—eufalei.Elaconcordoucomacabeça,maisfortedestavez.—Sousóaempregada—elaretrucou.—Sousóaempregadaenãovinada,
prometo.Medeixairembora.Euficobemquieta.Tintinpisavadeumpéparaooutro,eaarmabalançavaenlouquecida.—Semchance—eledisse.—Amerdaéqueestamos…Semchance.Ela
temquemorrer.Eracomoseeleestivessefalandoconsigomesmo.Amerdaéqueestamos…Respiroufundo,parouaarma.—Calminha—eufalei.Maseracomoseelenãomeouvissedejeitonenhum.—Elaégostosa,hein?—elemedisse.—Quê?—euperguntei.Viroupraempregada.—Tiraaroupa—elemandou.Fiqueiolhandopraele.Conseguiveragarotatremendo,eelaeradamesma
idadequeeueminhairmã;atépareciaumpoucocomMarguerite.É,erabonita,masestavatãoassustada.AtémepergunteiseeraMargueriteporummomento,
masos olhos eramdiferentes—ninguém tinhaolhos comoosdeMarguerite.Fiquei enjoado.O uísque nomeu estômago estava se revirando, como a águadescendoumralo.Nãopensei,apenascaminheiatéelaemecoloqueientreelaeTintin.—Abaixaisso—eufalei.—Ésóumagarota.Tintinhesitou.Eumevireiparaela.—Vocênuncaviuagente,certo?Elaconcordoudenovo.—Nuncavi.Euestavaaquieestavatirandoaroupapralavanderia.Sóisso.—Saidafrente—Tintinfalou.—Saidafrente,Shorty.Anteseledissepranão falarnomes,masShortyerabacana.Shortynãoera
umnomedeverdade,dequalquerjeito.—Não—euretruquei.OdedodeTintin estavaabraçadonogatilho, e eupensei,Voumorrer aqui.
Entãomelembreideumacoisa.Pusamãonobolso,tireiapedra.Lembrei-medeTintintentandomeacertar,masemvezdissoacabousemachucando.—Apedradizqueelatáfalandoaverdade—eudisse.Era uma besteira total,mas vi umpouco daquela luz diminuindo nos olhos
dele,comoumtipoderazãoquevoltava,comoseeleestivessecomeçandoaseraquelapessoarealqueàsvezeselefingiaser.—É?—eleperguntou.Eu poderia dizer que ele queria ser convencido daquilo, precisava ser
convencido.Nãoqueriamachucaragarotadeverdade.Estavaapenascommedodequeelaomachucasse,queeladissesseaodoutoroquefezeelepagasseporisso,queBiggiefizesseelepagar.Biggieeraumdesgraçadoimpiedosoquandoonegócioerapunirseussoldados.—É—eurespondi.—Eujuro.Épor issoqueestouaqui.Seagentefizer
isso,seráruimpranós.Másorte.Voduruim.Dissenósemvezdevocê,porquepercebiquepoderiaajudá-loaterumaideia
doqueestavaacontecendo.AarmadeTintintremiacadavezmais.Virou-sepragarotadenovo.—Olha só, você temqueprometer pra gente—ele falou.—Prometeque
vocênãovaidizerqueviuagenteaqui.—Nemseionomedevocês—eladisse.—Tá,mas você sabe que a gente é da Route 9. Olha só, só promete, por
favor.Sevocêdisseralgumacoisa,agentevaiterquevoltareteachar.Mesentiumbabacadizendoaquilo,masprecisavafazerTintinbaixaraarma.
Eutremiapordentrocomopensamentodoqueelefariaseelatirassearoupa,econtinuavaaverminhairmã.Margueritebrilhavanosmeusolhoscomoaquelesfogosdeartifíciovermelhos,comoasombraquentedealgoqueseolhanosol,algoquequeimadentrodosolhos.—Prometo—eladisse.—Por favor,vãoembora.Nãovoudizernada,eu
prometo.Tintinbaixouaarma.—Oslwaestãodoseulado,garota—elefalou.Eu sabiaqueele estavapensandonapedra e emcomoelameprotegia.Ele
enfiouaarmanacinturadacalça.—Vem,Shorty.Vamos dar o fora daqui—ele disse.—Temos que voltar
paraoSite.Elesjádevemestarperguntandoaondefomos.Tintinpegouacamisetaecaminhouparatrásdacasa,eeuosegui.Nuncafalamossobreaqueledia.Foiomelhordiadaminhavida,entãovirou
o pior, então ficou aquela preocupação que sempre estava no fundo da nossacabeça.Masachoqueagarotaficouquieta,porquenuncaouvimosnadasobreisso.BiggienuncasoubequesaímosdoSite.Eununcasaídenovo,atéodiaemquetomeiotiro.Ouça.EuestavacomBiggiedoisanosdepoisdaquilo.IssoéoquefazíamosnaganguedoBiggie:Rodávamosnumcarangobrilhantecomoocéu,passandocombatidapesada.Nãotínhamosnadaalémdoamorpornossagangue,nadaalémdebalapros
desafetos.Vendíamosdrogas.Matávamosgente.Demanhã, fazíamos nossas entregas. Seguíamos dois ou três no carro, um
comaescopeta—sóquenãoerasempreescopeta,àsvezeseraumaAKouumaGlock.Asgangues receberam todas essas armasdeAristide, lá atrás.Naquelemomento, a gente tinha anpil armas, mas as balas eram mais difíceis deencontrar.Então,namaiorpartedotempo,agentetentavanãousarasarmassenãoprecisasse.Àsvezes,agenteusavaosfacões.Quandopassávamos,todomundofalavaoi.—Bonjou—elesgritavam.—Bonjou.Eu sorria pra eles, mas não sou bom pra falar como o Biggie. Tenho uma
tatuagemnomeubraço,umaAK,pramostrarquesouummatador.Assim,seeuestava com a escopeta, mostrava meu braço na janela para que as pessoaspudessemver.Então,elassabiamquenãopodiammeferrar.Euseicomocortarheroína.Seicomocortarpessoas.Seiondeatirarnaspessoaspraelasmorrerem.Agora,achoquesãocoisasqueeununcadeviateraprendido.Naquelaépoca,passamospelaminhamanman.Elameviunocarroefezum
barulho,tipo,tssssuuuu,sugandoarentreosdentes.Biggieparouocarro.—Y’apwoblem?—elefalou.—Genpwoblem—manmandisse.—Nãocomvocê,Biggie.Masesseaíé
meufilhonoseucarro.Meumenino.Biggieriu.— Não vejo um menino — ele soltou. — Vejo um soldado. My frère
chouchou.Essegarotoéumdosmeusguarda-costas.Euamoele,cara.Euamotodososmeussoldados.Manmanolhouparaaarmanaminhamão,edisse:—Chitachouteryonjourwapfaitgoal.Éalgoquemanmancostumavadizermuitopramim.Significa,sevocêficar
atirando, vai acertar o alvo. Significa que, se continuar fazendo aquilo, vaiconseguiroqueestábuscando.Significa,basicamente,paredefazerissoouvaiteroquemerece.Em geral, eu ria quandomanman falava isso; é uma coisa de velha dizer
aquilo.Masalieutinhaumaarmanamão,eelafalandosobreatirarmedeixoudesconfortável.—Besteira—eudisse em inglês.Levantei doisdedos em sinal depaz.—
Paz,manman—eufalei.—Vejovocêporaí.Orostodelaendureceu.—Eaescola?—elaquissaber.—Nãovaiterminaraescola?Vocêpodiater
umemprego,podiafazerdinheiro…—Eutenhoumemprego—eufalei.—Façomuitodinheiro.Manmanapertouosolhos,comosechegassepertodemim.—Vaiacabaremsangueeescuridão—elafalou,comoohoungandissepra
elaquandoestavaansentdenós.Biggiepisounoacelerador.—Uau,suamanmanéjogoduro—eledisseenquantosaíaemdisparada.—Ô—eufalei.Éoqueeusemprefaloquandonãoseioquedizer.Biggie quase sempre estava com a gente. Quando a gente rodava, ele se
inclinavapraforadajanela.Elefumavaumbeck—elesempreestavafumando.Riapraspessoas,efaziarappraelassobrecomoogovernoojogounacadeia,eeleeramuitonovopraisso.Pensavaqueeleaindafossebemnovo,entãoelenãodeveterficadonacadeiatantotempo,maseunãodisseisso.Entregávamos as sacolas de drogas e as pessoas nos davam dinheiro.
Colocávamosodinheironoporta-malasdocarango.UmpoucodaqueledinheiroiaprascriançasnoSolèy19.Eraparaelasirempraescola.Biggiefalou:—Nenhumamoun quer ajudar a gente no Site, então a gente se ajuda.Dá
educaçãoprascrianças.
Biggietemumafilhadetrêsanos.Éumagraça.BiggiefalouqueelavaiprosEstadosUnidos,vaiprafaculdade.Euespero.Àsvezes,quandoolhavapraela,pensavaemMarguerite.Elanãoestavatãolonge—estavaemSolèy10,ondeficavaagangueBoston.Éminhagêmea,entãoestavacom14naépocatambém.Eumeperguntavacomoelaestaria;pensavanissootempotodo.Pensavaseelaera tão alta quanto eu, se era boa em consertar coisas e fazer as coisasfuncionarem como eu. Imaginava ela na minha cabeça, mas era difícil — aimagemeratodaembaçada,eeradifícilpramimsabercomoorostodecriançadelamudouquandoelaficoumaisvelha.Esperavaqueelativesseficadobonitaetivesseummontedeamigosenãoandassecomgângsteres.Àstardes,entregávamoscomidadeumdoscaminhões,ouapenasficávamos
de boa. Tinha uma brincadeira que a gente fazia também, e era a melhor.Chamava carro-fantasma. Olha o que a gente fazia: pegávamos o carango deBiggieeachávamosumaruabemlonga.Então,colocávamosumtijoloemcimado acelerador, nãomuito apertado, porque o carango émuito rápido.A gentefaziaocarroandarecaminhavadolado,eabrincadeiraerafazerumrapinteiroantesqueocarrosedesviasseeagente tivessequepularpradentroepegarovolante.Euerabomnisso,porquesouomelhorcomasmáquinas.Àsvezes,Biggieaté
medeixavadirigirocarango.Eeusemprearrumavaquandoelequebrava,oqueaconteciamuito.Umavez,Biggieficoutãodoidãoquecaiunosononovolanteejogouo carro emcimadeumaspessoas e de ummuro.Umadelas tinhaumaarma,entãoamerdacomeçouafederbemali,eBiggie tevequematarocara.Pramim,eutivequeconsertarocarro.NãotivequeconsertaroBiggie,porqueStéphaniefezunscurativosneleedeuospontoselamesma.Biggie era muito bom no carro-fantasma também, mas não estava tão
interessadonocarro;estavamaisinteressadonorap.Elefaziarapotempotodo.Naverdade,eraatémeiochato.Então,quasesempreeledeixavaocarrobaterenquantofaziarap.Eleachava issoengraçado.Decerta forma,eramesmo,euacho.
Àsvezes,elessaíamemmissões.Eu,nãomuito.OscarasmechamavamdeMecânico.Umaarmaengasgava,traziampramim.Biggiebatiaocarro,traziampramim.Entroupoeiranocarburador—oqueaconteciamuito—,traziampramim.Eu também fazia as contas. Anotava de quem era o quê, quanto a gente
entregava. Anotava quem a gente mandava pra escola. Atualizava os mapas.Biggieamavaaquilo.Diziaque,antesdeeuchegar,perdíamosanpildinheiro,eagoraéramosricos.Tintinmechamavadenerd.Mas,àsvezes,euiajunto.Àsvezes,agentesaíaemmissõesparaBoston,e
então eu montava numa escopeta se pudesse. Em geral, as brigas eram praaparecer— todomundoescondidoatrásdascasasegritandomuitoeatirandosemnemolhar.Ninguémquermorrer.—Nãoqueromorrer—Biggiedizia.—Tenhouma filha, cara.Nãoquero
morrer.Elediziaaquilo,masaindaeraumgângster.Então,àsvezes,claro,aspessoas
morriam.Às vezes, apenas semachucavam, e então Biggie tinha que chamarStéphanieepedirpraelaajudar.Elaajudavamuito—maisdoqueeladeveria,euacho.MaseupodiavernosolhosdelaqueamavaoBiggie.Burra,euacho.Aindaassim,avidaédela.Olhasó.Estoudizendotudoissoporummotivo.Paravocêentenderarotina,
entãovaientenderavidaparadaíentenderoqueaconteceuemseguida.Olhaoqueaconteceuemseguida.Erafimde2009.Eutinha14anos,eMargueritetinhasidolevadafazia2501
dias.Estávamosláembaixo,próximosaomar,empénatraseiradeumcaminhão,
Tintin e eu, jogando sacos de arroz e farinha para o povo.Alguns dos outrossoldadosdaRoute9estavamaoladodocaminhãocomsuasarmasprontas.Àsvezes,aspessoasficavammuitodesesperadas,entãoelesatacavamocaminhão.Asarmaserampraevitarisso.Stéphanie estava no caminhão também. Observava quanta comida era
distribuída.EracomidadeumaONGdaqualelaconseguiutrazercomasmãosdealgumjeito,entende?Nãopodiaentrarcomcaminhõesali,maspodiaentrarse estivessepreparadapara assumiro risco.Maspara ela não eramuito risco.Eraanamoradadeumlíderchimèredapesada.Alguémperguntousetínhamoscurativos.—Desculpe—Stéphanie falou.—Não temprodutosmédicos.Sócomida.
Vamostentartrazeralgumacoisadapróximavez.Ocaraficoumuitobravo,masumchimèredeuumpassoàfrentecomasua
arma.Oqueogarotoiafazer?Eleseafastou.Então,soouumtiro.Umadaspessoasembaixodagente,namultidão—uma
mulhercomumbebêamarradonafrentedela—caiudecaranochão.Alguémgritou,entãomaispessoasgritaram.Numinstante,nãoeramaisumamultidão,masumarevolução.Bum.Eraumaescopeta.Pegounopeitodeumdoschimèresembaixodagenteeele
voou—bang—contraalateraldocaminhão.Euestavanoassoalhodemetalenãosabiasetinhamergulhadoousealguémtinhameempurrado.Haviapessoasgritandoegritando,eeuouviozunirdeumabalaquandopassousobreaminhacabeça.Nossosrapazesestavamrespondendoaostiros.TintinxingavaenquantoesvaziavasuaAK.Eumelevantei,eorevólverestavanaminhamão.Olheiparaelesurpresopor
um instante,entãoolheiparaamultidão.Viumcaradecapuzapontandoumametralhadoraparanós.Mireiepuxeiogatilho,maiscalmodoqueeumesentia,esentioenxofreeacorditequandominhaarmadeuocoicenaminhamão.Nãoespereiparaverseelehaviacaído.Vireieprocureiosoutroschimères,evioutrode capuz correndo na direção do caminhão.Atirei nas suas pernas, e ele caiuesparramado.Então,vimaisalguém.Viumagarota.Tinhabandanasquecobriamabocaeocabelo,maseupodia
dizerqueeraumagarotaapenaspelosolhos,eestavaapontandoumaarmapra
mim.EraumaHeckler.Armacara.Eradaminhaidade,seusolhoseramgrandes.Nãoestavaamaisdedezmetrosdemim.Morri,eupensei.Morriporquenãopossoatirarnela.Estava usando uma camiseta do Jay-Z; tinha seios pequenos. Devia ter a
minhaidade,talvezfosseatémaisnova.Eentãoeupensei,quemerda.Aquelagarotaeradaminha idadee tambémnãoestavaatirando.Conseguia
ouvirTintinpertodemim,gritandoalgo,maseunãoestavaentendendo.Tudoestavaumcaos,masnocentrodocaoshaviaessagarota.Eratudooqueeuvia.Estavaolhandoparaosolhosdelaemelembreidaquelesolhos.Erampequenos,comoamêndoas.Haviapintasaoladodeles,comoeutenho.Eramdacorexatadooceanoaopôrdosol.Erammeusolhos.Eramosolhosdaminhairmã.Devagar,baixeiminhaarma.Fiteiosolhosdagarota,osolhosdeMarguerite,
otempotodo.Contei:Tempodesdequeotiroteiocomeçou:1minuto.Tempodesdeaúltimavezqueviminhairmã:2501dias.Tempodesdeeueraumapessoainteira:2501dias.Tempoemqueeuaamava:parasempre.Atrásdemim,Stéphaniedisse:—Abaixa!Abaixa!Mas eu a ignorei. Balancei a cabeça para a garota, e ela hesitou, então
balançouacabeçatambém.As pessoas sempre dizem, tipo, que o tempo para quando algo grande
acontece.Éoqueaspessoasdizem.Mas,mwenjire,éoqueaconteceunaquelemomento. Tudo parou, e nada nem ninguém se movia. Tinha aquela gaivotasobremimeelasimplesmenteparounoar,presaali,eeupodiaveraspessoassegurandoasarmas,pessoasencolhidasnochão,eelasnãosemoviamtambém.
Era apenasMarguerite, e seus olhos, e eu pude ver o brilho que saía dela,aquelebrilhodequeeulembrava,comoseaalmabrilhassepraforadela,comosefosseumacoisaqueimandofeitapraconstruir,nãoparadestruir.Tinhaaquelemeiosorrisopequenonoslábioseeupodiavê-la—elaenchiameusolhos—,masnocantodaminhavisãopodiaveraruaondeencontramosabebêtambém,epodiaveropedaçodepraiaondeDreadfoiempurrado,queimando,paraomar.Essesmomentosaconteciamaomesmotempodaquelequeeuvivia,etambém
otempoquandoMargueriteencontrouosfilhotesderato,eomomentoemqueela entregou a bebê, e todas aquelas outrasmemórias também, como todas asvezesqueficávamosnobarcocomopapa,olhandoparaoSite.Eujuro,cara,mwenjire,aquelemomentodurouparasempre.Conseguiaver
aquelaspintasnonarizdela,comoumaconstelação.Podiaverquetudoficariabemagora.Meucoraçãoestavameioassim, tão lentonomeupeito;haviaumchiadonomeuouvido,comoomar,comosegurarumaconchapertodaorelha.Elaestáviva,eupensei.Epensei,emseguida,claroqueelaestáviva.Ninguémpodiamachucá-la,nenhumamounnoSitehaviaditonãoparaela—
ela era especial. Era, tipo, aquele anjo num corpo humano; era a imagem naparededonecrotério,flutuandonoar,perfeitademaisparacairnochãoimundo.Qualquerumpodiaveraquilo.Ela levantou a mão, eu levantei também, ou talvez fossemelhor dizer que
minhamãoselevantou,edemosumpequenoaceno.Nãotenhonadaavercomo que meu corpo realmente fez, porque eu estava apenas olhando paraMarguerite.Omundointeirosereduziuaosseusolhoseàquelaspintas.Podiateranoitecidoeeunãoteriapercebido,porquenaquelemomentoMargueriteeraosol.Flash.Uma arma disparou ao meu lado, e de repente o tempo recomeçou. Vi
Margueritedesviarquandoalguém—algumdesgraçado—atirounela.Haviaumcheirodepólvoranoar,asgaivotasvoltaramarodaremcimademimnocéu
eeupodiaouviragritaria.Margueritemeolhouquandomergulheicontraaparededocaminhãoparame
proteger. Por um instante eu pensei, ela vai vir até aqui, vai correr naminhadireção.Mas então um cara de capuz— ele estava com amão no braço e osangueescorriadele—aagarroueempurrou,fazendo-acorrer,tropeçaraoladodele.Eume recuperei, eviqueoguardadocaminhão,queaindaestavavivo,veioatéondeestávamos.Vencemos, eu percebi. Havia muitas corpos caídos no chão embaixo do
caminhão, amaioria deles usando capuz.Mas havia alguns cidadãos também.Pensei,aquelesdesgraçadosdaBoston.Agenteestavasódandocomidaeelesaparecempraatiraremnós.Mas não era tudo o que eu estava pensando. Também estava pensando em
Marguerite.Elaestáviva.ElaestácomaBoston.Ela é tudo—ela é esperança, é avida, éo futuro—,não essaporcariade
gângsterdoscarros,dosberrosedasvadias.Juntos, somosMarassa.Temospoder.Podemoscurar.Podemosvero futuro
— podemos até mudá-lo. Não acreditava nisso antes, mas então pensei, e sefosseverdade?Marassapodemarrumarascoisasquebradas,fazerpessoascomaspernasferradasandarem.EseosMarassapudessemcuraroSitetambém?Ese os Marassa pudessem arrumar essas ruas, juntar de novo a Route 9 e aBoston?Nãotemosnadaalémdeamorpornossagangue;nãotemosnadaalémde balas para os nossos desafetos. Mas e se a gente tivesse amor por todomundo? Com Marguerite, eu podia fazer qualquer coisa. Pensamos juntos.Somosduasmetadesdeumapessoa.Podíamosusarnossopoder.Consertar ascoisas.Mas sozinho não sou nada. Tenho que ter ela comigo se quisermos fazer
algumacoisaparacuraresteSiteondeagentemora,mudarofuturodele.Tenhoqueresgatá-la.
OUTRORA
Toussaint l’Ouverture contemplou a cidade deGuildive do seu pequenomontepegadoaomarreluzente.Denovo,estavadeitadodefrente,respirandoocheiroterrosodoseupaís.Eraisso.Eraaesperança,eraofuturo,eraaliberdadedarepúblicahaitiana.Eratudo.Pormeses,elecavalgouincansavelmente.DiziamqueToussainteseucavalo
eramumserúnico,poiseravistoapenasemcimadamontaria.TinhamantidoocontroledafortalezaemDondon,tomouMarmelade,tomouLaGrandeRivière,expulsando todos os soldados franceses que ousaram desembarcar no Haiti.Todosesseslugareseleconquistouporsuatenacidadeeonipresença.Noinício,entendeuqueparainspirarastropasprecisavaestaremtodososlugares.Então,iaatodososlugares,nocavaloe,àsvezes,emoutroscavalos,porqueumcavalonãotinhaamesmaenergiaqueele,amesmapulsão.Dormiatrêshoraspornoite,eorestodotempoelecavalgava.Se houvesse batalhas, lutava à frente deles. Se houvesse homens feridos,
estavaao ladodeles.Sehouvessesafrasaseremplantadas,estavanapontadafila,cantandomúsicasantigas,ditandooritmodotrabalho.Osfrancesestinhamsidoderrotados.ARepúblicadaFrançahaviadeclaradoa
libertaçãodosescravos,enãoeraummerotruquemarcial;eraumadeclaraçãosolene do governo francês. No entanto, bem naquele momento, ele tinha umúltimoproblemaparalidar,eentãooHaitiestariaverdadeiramentelivre.Guildive.Os ingleses desembarcaram em diversas cidades portuárias e, no fim das
contas,foramexpulsosdetodaselas.Noentanto,aindaestavamencrustadosemGuildive,queelesfortificaramcomcanhõeslevadosdeseusnavios.OHaitieraum prêmio rico, um que valia muito o desperdício de vidas dos marinheiros
ingleses.Toussaint aprendera o valor dos escravos da nação comBrandicourt,queinspecionaraosbalançosdopaíselepróprio,ejurouqueeraamaiorpartedeumbilhãodefrancos.ToussaintficousurpresoaosaberqueosescravosdoHaitivaliammaisdoque
eleexportava,eBrandicourtexplicouqueumaexportaçãotemumaquantidadefixa,enquantoumescravopodecontinuaraplantaralimentosoutreinaranimaisouconstruirtodaasuavida,equesuaduraçãopodeserlongaseosenhornãoformuitocruel.Escravo:900milhõesdefrancos.Exportações:200milhõesdefrancos.NãoerasurpresaqueosbrancosficaramtãodesesperadosparamanteroHaiti
escravizado.Naquele momento, os ingleses queriam aquele dinheiro para si, e cabia a
Toussaint impedi-los. Ele afastou a luneta e arrastou-se por entre a vegetaçãorasteiraatéJean-Christophe.—Viasnovasfortalezas—eledisse.—Trincheirasecoisasassim.Mashá
soldadoscirculandoforadasmuralhas.Nãosabemondeestamos.—Tenscerteza?Toussasintsorriu.—Nuncatenhocerteza.Masvaleorisco.Osdoishomenscaminharamdevoltaparaumacarruagemqueestavaparada
sobasárvoresenquantoexaminavamasfortificaçõesemGuildive.Seishomensescolhidos por Tousssaint ficaram em torno dela. Toussaint aproximou-se daporta e a abriu de uma vez.Olhando dentro, viu umamulher aterrorizada, nooutono da vida, suas bochechas empapadas balançando. Ao lado dela, umcavalheiroempertigadoestavasentado,traziaumlençoesuíçasgrisalhas.—Porfavor,senhor—ohomemdisse,revelando-sefrancês.—Podelevar
tudo.Tudo.Porfavor,sópoupenossavida.Toussainttentounãoficarofendidopelasuspeitadohomemdequeeleeraum
bandido.
—Ondeirieis?—eleperguntou.—ParaGuildive—disseohomem.—Porquê?Dizeiaverdadeoumeushomensvosmatarão.Ohomempareciaprestesamentir,entãopensoumelhor.—Dequevaleficar?—elefalou.—Nãotemospaísaqui.Pensei…pensei
que se os ingleses vencessem, estaríamos do lado certo. E se não vencessem,bem,talvezeupudessepagarnossapassagememumdosnaviosdeles.—Quequereisdizercomnãoterpaís?Ohomemacovardou-se.—Vós…digo,osnegros…elestomaramnossaterra.Toussaintsuspirou.—Nãotomamosnada.Nãosomosladrões,senhor.Tomamosnossaliberdade.
Exigimos algum quinhão de terra, claro. Precisamos comer. Mas sempre foiminhaintençãorestauraramaiorpartedaterraaosdonosdasfazendas.—Deverdade?— Sim, mas não importa agora. Desde que vos declarastes a favor dos
inimigos,osingleses,soisagoraprisioneirosdeguerra.—Oh,não!Nãonosmateis—gritouamulher.Toussaintsorriu.—Não pretendo fazê-lo. Pretendo apenas tomar vossa carruagem e vossos
pertences.Ele vasculhou a carruagem, vendo os tapetes enrolados, os candelabros e a
prataria.—Dissestesquenãoéreisladrão—ohomemfalou.Toussaint ficouquase impressionado.Ummomento antes, o francês parecia
totalmentesemtutano;agoraestavamostrandoalgumacoragem.—Nãosomos.Defato,vamosdistribuirvossosbens.Eodinheirotambém.Ohomemfranziuocenhoepareciaprestesadizeralgo,masToussaintestava
fartodeconversas.Acenouparaumdosseustenentes.—LeveestaspessoasfinasparaDondon—elefalou.—Estehomemdeseja
terra.Dáaeleumquinhãonumdosmontesvoltadosparaosul,umdosbons…Useseutato.Nossoshomensoajudarãoaconstruirumacasa,seeleconcordaremcompartilharadádivadesuaterraquandooutrosestiveremfamintos.—Oh,dieusoitloué—disseohomembranco.LouvadosejaDeus.Toussaintdeuaohomemobenefíciodeseusorrisocomdentesespaçados.—Vouspouvezm’appelersimplementL’Ouverture—eledisse.PodeismechamarsimplesmentedeL’Ouverture.Jean-Christopheirrompeuemgargalhadas.Toussaintpermitiu-se rir também.Não tinhaconsciênciadequenunca tinha
feitoumapiadaantes,masestavadebomhumor.Setudofossebem,logoopaístodopertenceriaaoseupovo.Quandoohomemesuamulherforamescoltadosparalonge,Toussaintvoltou-
seaJean-Christophe.—Nãoprecisasfazerisso—elefalou.— Claro que preciso — disse Jean-Christophe. — Sou o mulat. Não
acreditariamseumnegrofosseprocurarabrigoemGuildive.Toussaint deu um passo adiante e abraçou o homem. Era resistente demais
para alguém cujas ações influenciaram o curso da guerra. Toussaint sentia asemoções transbordandodentrodele.Jean-Christophetinhaa idadeparaserseufilhoesabiaqueseorgulhariaseseufilhocrescessecomametadedabravuradorapaz.— Teu nome vai ressoar sobre todo o país— ele disse.— Farão canções
sobreti.—Jáfazem—Jean-Christophefalou.—Aomenos,asmulheresfazem.ElebeijouToussaintnorostoenquantoL’Ouverture reviravaosolhos,então
subiunacarruagem.Namanhãseguinte,Toussaintliderouseuexércitoatéosopédamontanhade
Guildive—nãodentrodadistânciadotiro,maspertoosuficienteparaqueosingleses pudessem vê-lo ali, preparado em toda a sua força. Jean-François
cavalgavaaoladodele.ApósamortedeBiassou,ohomemficoumaisdoquefelizderesponderaToussaintcomocomandante-geral.Era hábito de Toussaint na guerra tentar algum tipo de negociação; desde
entãoeleforçouosfrancesesarender-senaquelevale.Elepreferiaevitaraluta,sefossepossível.Noentanto,semprehaviaexceções.Osinglesesnuncatinhamfeito nenhuma reivindicação àquela terra; eram meros oportunistas quedesembarcaram ali na esperança de garantir quase 1 bilhão de francos emescravos.Nãoeramcomoosfranceses,queacreditavamsinceramenteteralgumdireito ao território, que o defendiam daquilo que eles viam como saques dosnegros. Esses ingleses não tinham o que fazer ali, e Toussaint não pretendiadeixar nenhumdeles ficar para fomentar rebeliões eminar seu governo assimqueeletomasseocontroledopaís.Suapropostaparaelesseriadeixarailhaoumorrer.Ainda assim, havia aquelas coisas de aparências, que alguns davam até
mesmo importância demais. Cavalgou próximo às muralhas da cidade, umabandeirabrancatremulandosobreocavalo.Uminglêscomcabelosbrancoseembaraçadoscurvou-sesobreoparapeitode
madeira.—Comcerteza,nãopodesquerernostomaràforça—eledissenumfrancês
com forte sotaque.— Temos canhões, mosquetes e disparos suficientes paradurardoismeses.Estoucontandocomisso,pensouToussaint.Ele impediuqueos inglesesembarcassememumadúziadepontos,assima
cidade de Guildive estava apinhada de soldados e da mesma forma cheia dearmasepólvora.SetegalésdaMarinhaRealestavamancoradaspoucoalémdoalcancedasarmasdeToussaint.UmadascoisasquesurpreenderamToussaint,juntamentecomsuarepentinae
milagrosa habilidade de ler, foi o fato de que seu francês melhorara umaenormidade. Falava francês antes, com seu senhor, mas não sempre, e ficavamais confortável no crioulo com os escravos. Quando falava francês, sempre
sentia como se estivesse vestindo uma das roupas apertadas que os brancosusavam, com aquelas gravatas que apertavam a garganta. Agora, no entanto,fossecomqualespíritoqueopossuíraemBoisCaiman,vestiaofrancêscomosefossealgoqueelesempretivera.—Nãoqueronada—eledisse.—Eusei.—Perdão?—disseohomemnoparapeito.—Ireisperderestabatalha—Toussaintdisse.—Melhorpartircomvossos
naviosagoraedeixaropaís.Ohomemriu.—Somosamarinhabritânica—ele falou.—Soisnegrosdestreinados.Se
insistiremlutar,sereisesmagados.Toussaintdeudeombros.—Façaiscomoquiserdes—elefalou.Deuumgiroecavalgoudevoltaparasuas tropas.Não importavaoqueele
dissesse; não importava o que o inglês falasse. Acreditavam-se incapazes deperder, muitomenos de perder para uma corja de negros— essa era a únicacoisaqueimportava.Ele ergueu a mão e deu o sinal para o ataque. Uma linha de soldados
miserável e mal-ajambrada avançou aos tropeções sob o sol escaldante. Eraquasemeio-dia,umhorário terrívelparaumabatalha.Foi exatamentepor issoqueToussaintoescolheu.Zombariasevaiassoltaram-sedossoldadosinglesesnoparapeitoenquantoas
tropaspatéticasavançavam,cambaleantes,armasmalerguidas.Acham que somos um exército de péquenots, ele pensou. Camponeses
destreinados.Eissoémuitobom.Ficou surpreso que os ingleses não houvessem percebido que, pelas
aparências,seuexércitonãoeranegro.Mas então, logo quando ele começava a perder a esperança na inteligência
deles,umgritodealarmeergueu-sedeumdosdefensoresdacidade.Quase ao mesmo tempo, os homens nas fileiras frontais do exército de
L’Ouverturecomeçaramaclamar,omedodasarmaserguendo-senosparapeitossobrepondoomedodasbaionetas,facõesepistolasatrásdelesqueosforçavamiradiante.Nãoimporta,pensouToussaint.Quantomaiscaos,melhor.—Somosingleses!—afileirafrontalesfarrapadagritou.—Nãoatireis!—Nãoatireis…somosingleses!Os prisioneiros ingleses, capturados pelos homens de Toussaint em outras
cidadesportuáriasereservadosexpressamenteparaessafinalidade,começarama uivar e a fileira se desfez. Um negro muito exuberante, um do exército deToussaintquetocavaosprisioneirosinglesesparaafrente,apunhalouumdelesnascostaseelecaiu.Então,houveconfusãoeummêlèe.Haviasoldadosnegrosentreoscativosinglesestambém—Toussaintsecertificaradisso—e,emboraos homens na cidade não fossem atirar pormedo dematar seus compatriotas,esses soldados negros, escondidos dentro da massa de prisioneiros, estavamatirandoparacima.Toussaintviuumcorpocairdasdefesas,dois,três…Éhorrível,elepensou.Mas,sevencermos,valeráapena.Olhouparacima.Osolestavanametadedesuatrajetóriaceleste.Aqualquermomentoagora.Sucedernissoeoderramamentodesanguepode
parar.Seu exército continuava a empurrar adiante os marinheiros ingleses que
haviam capturado no Cabo Haitiano e em Porto Príncipe. Esfarrapados,caminhandoomaislentamentepossível,osprisioneirosinglesesficarampresoscontra as muralhas da cidade. Não paravam de pedir misericórdia às tropasacima, e a indecisão continuava a reinar entre elas. Começaram a atirar comhesitação, mesmo quando o regimento de artilharia pesada de Toussaint seaproximouobastanteparalançarboladasdaposiçãoemqueestava.Aomesmotempo, a guarda avançada abriu passagem e passou a escalar os corposamontoadosdosprisioneiros ingleses,dessaformachegandopertodo topodasmuralhasdacidade.
Apenasaíhouveumsomtãoaltoquepareceurasgarodia,eochãosacudiu-se.Toussaintsentiuumterrorinimaginável,eumsensodedéjàvuassolador.Poruminstanteterrível,eleestavanacama,numlocalestranhodeparedesbrancasemaquinário, do qual vinham ruídos regulares, agudos, de ratinhos gritando.Havia um tubo de alguma espécie enfiado nas costas da mão, como se elemesmofossepartedamáquina.Ochãobalançouviolentamenteeentãosurgiuaescuridão apenas. Ele piscou. Então estava observando um veículo de metalsobrerodasdeborrachaexplodir,partindoaomeioaspessoasqueestavampertodele.Ondefoiisso?,elepensouquandoabriuosolhos.Eraoinferno?Não.Oinfernoéoqueestouvendoagora.Umsegundosolapareceu,eelequeimavanocentrodeGuildive,umabolade
fogo ardente embaixo do céu. Uma grande nuvem de fumaça se ergueu daschamas, e projéteis e bolas de canhão voaram gritando pelo ar em todas asdireções, como se a cidade tivesse um grande repositório de espíritosaprisionadosefantasmasvingativosqueagorasaíamemarcosflamejantes.Oarsenalhaviaexplodido.Toussaintdeuumsuspirode alívio.Conseguia apenas imaginaroque Jean-
Christophepassoupara alcançar aquilo; comoele teria convencidoos guardasnosportaisqueeraumpobremulatoprimido,insultadopelosfrancesesporsuaparticipação no levante original, condenado pelos negros como vira-casaca eagitador por ambos os lados. Como precisou entregar os ricos roubadosmaiscedodacarruagemcomosubornopelasegurança.Como,aoganharacesso,eleprecisou esperar pelomomentomais sombrio da noite para esgueirar-se até oarsenaleencontrouseucaminhodeentrada.FoinotávelcomotantoseventosconspiraramparacolocarJean-Christophelá.
Esortudotambém,poisodepósitodemuniçãoera tãograndequantoesperavaToussaint.Sabiadoacúmulomesmoantesdeosinglesestomaremacidade—ehaviaprojetadocapturarGuildiveelemesmoparaconcederàssuasforçastodasaquelas armas. Então, felizmente, os ingleses acrescentaram, trazendo seu
canhãoesuapólvoraeseusprojéteisdetodosaquelesnavios.Era o maior depósito de pólvora na ilha, e estava cuspindo fogo sobre as
forçasinglesas.EsperoqueJean-Christophetenhasaído,Toussaintpensou.Esperoquetenha
usadoumpaviolongocomosugeri.Ele viu o movimento nas defesas e ergueu a luneta para confirmar que os
inglesesfinalmenteagitavamabandeirabranca.Elesevirouaoscomandantesatrásdele.—Todomundodevebaixarasarmas—eledisse.—Devemosdestruí-los?—perguntouumdeles.—Não—disseToussaint.—Elestêmorgulhodasembarcações.Deixai-osir
paraosseusnavios.
AGORA
Estoupertodoandarondeeuestavaquandotudocaiu,algunsdiasatrás.ViMargueritenaqueletiroteiopertodomarapenasummêsantesdeeuterminaraqui,antesdeaquisetransformarnumcaixão.Sintocomoseeucontasseminhahistóriaparavocêatéopontoquandovim
paraohospital,entãoesseseráopontoquandoeuabrircaminhoatéaluz.Soaestúpido,eusei,maséoqueestoufazendo.Estoucavandoefalandoessamerdatodapravocê,eestoujogandoascoisasquecavoatrásdemim,bemcomoestoudeixandominhahistóriaparatrás.Ésujaminhahistória.Nãoprecisomaisdela.Nãopercebomaisadornasminhasmãostambém.Paracomeçar,ospedaços
de concreto estão escorregadios commeu sangue, e agora acho que devo terdesenvolvidocalos,porquequasenãodóimais.Nãoseiseavancei,deverdade,ouquantotempoestoucavando.Parecequesãohoras,maspodesermais.Umahoraatrás,talvez,ouvialguémchamandodenovo.Dessavezeminglês.—…alguémaíembaixo?Nãogostodeouvir a palavraembaixo.Eu estava no quinto andar. Se estou
embaixodeondeaspessoasestãocavando,entãoascoisasestãobemruins.Eugritodevolta,masnenhumamounresponde,comodecostume.Ouestoumortoouminhavozestábatendonoconcreto.—Nãopossoiratéaí—Stéphaniedisse.Elanãoestavanocarrocomagente,estavadooutroladodalinha—Biggie
gostavadefalarnoviva-vozquandodirigia.Estavacruzandoafavela,tentandofazerStéphanieir láparabuscarMickey,aquelesoldadoferido,sóqueelanãoqueriamaisentrarnoSite.—Nãoéseguropramim—elacontinuou.—Estounomeuhotel.Biggieriu.
—Steph—ele falou.—Steph,chérie,macopinechou-chou.Calma.Todomundo te conhece…eu falo pra todos osmeus soldados de você.Eles sabemqueeuteamo,sabemquenãopodemtemachucar.Écoute…quandjeserairichet’aurasunebellemaison.T’aurastoutcequetuvoudrascarjet’aime,tusais?—Sim— Stéphanie respondeu.— Sei que vocême ama, sei que vai me
comprarumamansão…vocêsempre fala isso.Masnãoé tãosimples,Biggie.Atiraram na gente quando estávamos distribuindo a porra da comida! Tucomprendsça?Émaluquice.NãopossomaisentrarnoSite.—Porfavor—Biggiepediu.—Estoucomumsoldadoquefoibaleadono
pé.Precisoquevocêoleveprohospital.—Nopé?—Sim,nopé.Stéphanie suspirou no telefone. É a única pessoa que eu conheço que
conseguesuspirarnumtelefoneeobteroefeitocerto.Aquelesuspiroéumadascoisasquerealmentelembrodela.—AlguémdeBostonatirounele,foiisso?—elaperguntou.—Não—Biggiefalou.—Euatireinele.Silêncioporummomento.—Vocêatirounele?Porquê?—Elemedesrespeitou.Eraverdade.Ocara—elechamaasimesmodeMickey—estava falando
que se fosse aRoute 9 que atirasse nas pessoas e assassinasse os soldados deBoston,entãoBostonjáteriarevidado.EstavainsinuandoqueBiggieerafraco,quenãoestavaenfrentandoaquelabosta.Essetipodecoisasempreacontecia—Biggiefalaque,quandovocêé líder,aspessoassemprevêmpra tedesafiar.Épartedeserlíder,issoeuentendi.MasStéphanieriu,umarisadavazia.—MeuDeus—elafalou.—Vocêsgângsterescomseurespeito.—Nãosougângster—Biggieretrucou.—Aspessoasvêmaqui,mechamam
degângster,masnãosabembostanenhumadoSite.Nenhumamounquerajudar
com educação aqui, nenhumamoun quer distribuir comida além da gente.Aspessoasaquinãotêmanyenpracomer,anyenprabeber,masconseguemarmas.Oquevocêachaquevaiacontecer?—Cala a boca, Biggie—Stéphanie disse.—Não sou documentarista pra
você recitar sua bobagempoética.Eu conheço o Site.Você é gângster.Vendedrogasematapessoas.—Ah, é?—Biggie soltou.—Tá bom. Sou um gângster. G-star na hood
fodona.ÉoqueestoufalandoproMickey…logomaisvouderrubarBoston.Então,Biggiecomeçouafazerumrap:—Nãopodepegaroscarascomarma,pegaelescomfacões.Fatiaoscaras
inteiros,derrubacombastões.—Seeletedesrespeitou—falouStéphanie—,porquevocêquerlevá-lopro
hospital?Biggieolhoupramimebalançouacabeça,tipo,comoessavacapodesertão
estúpida?— Ele é meu soldado, cara, meu frère chou-chou. Eu o amo. Só tive que
ensinarpraeleumpoucoderespeito.Stéphaniesuspiroudenovo.—Vouveroquepossofazer—elafalou.—Mas,olhaaqui,Biggie.Eugosto
devocê,entendeu?Queroquevocêfiqueo.k..Nãoqueroquevocêmorra.—Nãoqueromorrertambém.—Então,ouça.Euestavanumbarontemànoite.Muitosdosvoluntáriosvão
láealgunssoldadosdaMinustah tambémestavam lá.Dizemquevãobaterasgangues no Site, bater forte. Algum jornalista conseguiu fotos do tiroteiodaqueledia.OsMinustahtiveramdeolharcomoseelesseimportassem.—Pff—Biggiedisse.—Seelesgastassemtantoemhospitaiseáguapotável
quantogastamemtanques,talvezagenteacreditasseneles.Olheiparaele.Àsvezes,Biggienãofalavacomoseestivessenumguetodos
EstadosUnidos.Àsvezesdiziacoisasquenãoeramtotalmenteestúpidas.—Concordo,Biggie.Sabequeconcordo—Stéphaniefalou.—Mas,presta
atenção,essescarasestãofalandosério.Vãoatrásdevocê logo, logo.Querempegarunsgângsteres,mostraralgumaspilhasdearmasconfiscadasnaTV.Conseguia ouvir preocupação real na voz dela, cuidado de verdade, mas
Biggiefezaquelesomdedesdémnovamente.—OsMinustahnãofizerammerdanenhumanoSitedesdequeassassinaram
oDreadWilmè—elerebateu.—Tudooquefazeméficarsentadosnospostosdecontrole.Deixamatéagentepassarquandosaímosparavenderdrogasseagentepagar.—Sóestouteavisando—Stéphaniedisse.—Éisso.Ouvimosumclique—eladesligou.—Mulheres,cara—Biggiefalouefezaquelesinal,girandoodedoaolado
dacabeça.—Saansente,por issosepreocupatanto.Achaquenãovoucuidardela.Vivodizendopraelaquevouserumrapperricoumdia.Aquelagravadoravaicomprarminhascoisas.VouserigualaoWyclef.AgoraeuestavaencarandoBiggie.—Elatágrávida?—euperguntei.—Claro—eledisse.—Meuespermaéosuperesperma.Supersoldados.JáfaleiqueBiggietinhaumafilhadetrêsanoscomValerie,amanmandela.
EngravidarStéphanie,issofoiincrível.Comoeleachavaqueiacriaracriança,eunãosei.Eoqueelepensouqueelaiafazer?PensouqueelamudariaproSite,brincariadecasinhacomele?Nãoconseguiaacreditarqueeleeratãoestúpido—tipo,elenãotinhaouvidofalardecamisinhaouessascoisas?—Elaéfrancesa—eufalei.—TrabalhaparaaONU.Oquevaiacontecer?—Eutedisse.Vouserfigurãoumdia,matador,cheiodagrana,fodão.Eu desisti. Recostei nomeu banco.O ar fresco domar entrava pela janela
abertaeminhamãoestavaemcimadeumaescopetadecanoserrado.Mesentiabem.Tinhaopulmãocheiodeervatambém—Biggietinhaacabadodepassaramaconhapramim.Mas,mesmoqueeusentisseogostodoce,aindatinhaminhairmãnacabeça.Pramim,euqueriaguerra.Mas,sequisessequeBiggiefizessealgo,nãotinhaquesimplesmentefalarpraele.FoiassimqueMickeytomouum
balaçonopé.—ABostonchegoubempertodestavez,Shorty.Elesnãodeviam ter feito
aquilo,nãodeviamterzoadonossotrabalhocomunitáriodaquelejeito.—Certo—eufalei.—Agenteprecisadarotrocopesado,cara.EstavapensandoemMarguerite,masnãodisseaquiloproBiggie.Maserao
queeuqueria—queriaderrubaraBostonparapoderlivrarminhairmã,arrancá-ladosbabacasdaBoston,etrazê-ladevoltaparamorarcomigo.Merda,talvezeu pudesse achar um cachorro pra ela ou algo assim, talvez o cão que Tintinquase atropelou.Ela podia cuidar dele, alimentar.Então, a gente a levaria praescola,aajudariaasetornarmédicaumdia.ElasempredissequesairiadoSite.Queriaajudá-laasairmaisdoquequalquercoisanomundo.—Issoaí—Biggiefalou.—Masprimeirovamosverohoungan.Queromais
feitiços.Maisproteção.Queroolwadaguerra.—Olwadaguerra?—euperguntei.—É.OgouBadagry.Osneguinhosvãorespeitaraqueledesgraçado.Vocêestá
certo…Bostonentrounonossoterritório,temosquedarotrocopesado.AquelehounganmedeuosossosdoDreadpravestir,masagoraagenteprecisadeumvodumaisprofundo:majinegra.Entende?—Vaiterumaguerra?—euquissaber.Estava pensando em Marguerite. Estava pensando que, se eu for até o
territóriodaBostonsozinho,voumorrer.Mas,seagente for, todomundo,emguerra,talvezeutenhaumachancedeencontrarela,trazê-ladevolta.—Legal—eufalei.Ohoungan,elevivianaquelavannofimdeumbeco.Nãoestavanomapaque
eudesenhei,entãoacheiqueBiggienãoqueriaqueaspessoassoubessemondeocaramorava.Avannãotinharodas.Umladoestavaescoradonumasrevistas,ooutroladoemtijolos.Asjanelasestavamquebradas,mashaviacortinasnelas.Eflores. Pensei que era uma decoração bem bizarra pra um houngan, mas nãodissenada.Biggiebateunaporta.Nuncaovibaternumaporta.Emgeral,elesóabriae
entrava,ouparavadoladodeforacomamúsicabombandoeesperavaquevocêfosseatéele.Umvelhoabriuaporta.Viquenãoeraomesmohounganquefezo funeral de Dread; talvez aquele tivessemorrido ou algo assim. Esse estavavestido com shorts sujos, sem camisa. O corpo era mirrado e tinha pelosgrisalhosneleinteiro.Abarrigacaíaemcimadosshorts.Eracomosequisesseesconder omeio das pernas. Tinha bolsas grandes embaixo dos olhos e veiasgrandesevermelhasnonariz,osolhosinjetadosdesangue.—Temuísque?—eleperguntou.—Temkleren?Biggienegoucomacabeça.—Voufalarpraumdospequenostrazerpravocê—eledisse.—Dequalquer
forma,nãoéBaronSamediqueeuquero.Ohoungan riu pramim.Na verdade, eramais umolharmalicioso.Vi seus
dentesacabados,osburacosondealgunsdelestinhamcaído.Tinhaumcheirodepodreedeálcoolnele.Eravelho.Tipo,quarenta,nomínimo.—NãoéBaronSamediqueelequer—disseohoungan—,entãonão traz
uísque.Babaca.Nãoconseguiaacreditarnaquilo.Biggie,eleumavezatirounopédeumcara
por dizer que o cabelo dele parecia de idiota com as tranças nagô. Agora ohounganochamoudebabaca.PuxeiminhaGlock.—Prestaatençãonoquevocêfala,houngan—eudisse.—Sedesrespeitaro
Biggie,vaitomarummontedeazeitonanacara.Biggiepôsamãonaminhaarma,mefezabaixá-la.—Calma—elefalou.Então,friocomoaçoescovado,virouparaohoungan.—Jáfalei—Biggiesoltou.—Vouconseguiralgum.Vaideixaragenteentrar
ouoquê?— Depende do que você quer — o houngan falou. — Quer maji? Quer
feitiçosprabotarnaencruzilhadaeprotegerseuterritório?—QueroOgouBadagry—Biggierevelou.
Osolhosdohoungansearregalaram.Biggietirouaquelemaçodenotas,tipo,doismesesdagranadasdrogas.Entregouparaohoungan.—Vamospraguerra.Precisamosdemajiséria.—Vocêprecisadeumpsiquiatra—ohounganfalou.Noentanto,eleabriuaportaedeixouagenteentrar.Ládentroeraumabagunça.Revistaspra todo ladoe alguns livros também.
Roupas sujas, algumasxícaras epratos jogadosna sujeira.Nas lateraisdavanhaviaprateleirasquepareciamfeitasdepedaçosdeaçoonduladoemadeiraqueohounganachounarua.Haviajarrosnelas,compóseessascoisas.Tinhavevesdesenhados no chão. Um chocalho no formato de uma caveira, tambores.Conseguiasentirocheirodesuoreuísqueecomidaapodrecendo.Eracomoeuimaginava a casa de um houngan, se você soubesse que o houngan era ummendigo,oudoentemental.Ohoungan fez um gesto para ummonte de sujeira que devia ser um sofá.
Biggienãohesitou,apenassentou.Eucomeceia sentar também,masdevo terfeito uma cara ou algo assim, porque ohoungan riu eme deu um empurrão,entãoeucaídebundanascamisaserevistaseoutrascoisas.Recupereiofôlegoetenteidiminuirasbatidasdocoração.Ohoungandeuumaboaolhadaemmim.—Vocêtemumpwen—eledisse.—Possosentir.Enfieiamãonobolso,toqueiapedrinhalisaqueDreadmedeu.—É—eufalei.—Bom— disse o houngan.— Essa merda vai te proteger. Alguém deve
gostardevocê,garoto.Biggiesorriu.—Meussoldadostêmqueestarprotegidos—elefalou.Ohounganriu.—Nenhumdelestãoprotegidoquantovocê,meucaro.Ele apontouparaum jarronaprateleira àminha frente.Estavaquasevazio,
mashaviaumpoucodopócinzentonofundo.
—ÉDreadWilmè—elecontou.—Oquerestoudele.OrestoestánoBiggieaqui,mantendoelesegurodasbalas.Querqueeubotepóemvocêtambém?Nãovaiterarmapratematardepoisdisso.—IssoéDreadWilmè?—euquissaber.Foi, tipo,acoisamaisestúpidaqueeu jádisse,porqueele tinhaacabadode
falar,masfoitudooqueeupudepensar.—É.TudooqueeufaçoéchamaroBaronSamedi,elemecavalga,pegaas
cinzasesalpicaemvocê.Dessejeito,elevaitereconhecerquandoestiverquaseprasermorto.Quandovirvocêcobertocomaquelepó,sabequenãovaitelevar.Deixavocêempaz,comcerteza.DreadWilmèésagrado,cara.Ohoungan se inclinou para a frente. Seu hálito era como algo incorporado
dentrodavan.—Tudooqueprecisafazerémetrazerumuísque—elefalou.—Ealgum
dinheiro,talvez.—Elenãoprecisa—Biggiedisse.—Shortyjáéabençoado.Dreadsalvoua
vidadele—morreubememcimadele.Nãoé?—É—eurespondi.—Eleéaquelegaroto?—ohoungansoltou.—Caramba.Eleestendeuamãoeeuabalancei.—VocêéumalendanestapartedoSite—elecomentou.—Éverdadeque
Dreadtinhamilburacosnelequandomorreu?—Achoquesim—eurespondi.—Éoqueminhamanmandiz.—EocaraaindatirouumtanquedafrentedoShortyaqui—Biggiefalou.É estranho, o jeito que todo mundo sabe da história, não só eu e minha
manman.Eununcameacostumeicomisso.—Gângsterfrioigualgelo,cara—Biggiecompletou.—Você éMarassa também?— quis saber o houngan. — Ouvi dizer que
Aristidetirouvocêsdedentrodasuamanmancomasprópriasmãos.—Não—eufalei.—Minhairmãfoiembora.Ésóeu.Nãosounada.O houngan concordou com a cabeça. Foi até a prateleira— não demorou
muito,estavaapenasaumpassonooutroladodavan—etocouojarro.Então,chutoualgumacoisapraforadocaminho,limpouoespaçonochão.—Está pronto?— ele se dirigiu a Biggie.— Pode ser intenso. Ogou é…
Ogouéimplacável.Vocêfumamaconha,brincacomBaronSamedieosossosdeDread.Masessamerdaaquiéigualheroína.—Heroína émeunegócio, chapa—Biggie rebateu.—Mexocomheroína
fazmuitotempo.Bostoninvadiumeuterritório.Temosquevarrerelesdomapa.Ohoungandissequesimcomacabeçadenovo.Pegouumgizecomeçoua
desenharumvevenoassoalhodemetaldavan.Eradelicado, rápido,eeunãoesperavaqueaqueladerrotadecarapudessedesenhardaquelejeito.Então,jogouumtipodepónochãoepegouotamborecomeçouadançar.Enquantodançava,cantou:
AttibonLegba,ouvribayèpoumoin!Ago!Ouwè,AttibonLegba,ouvribayèpoumoin,ouvribayè!M’apèrentrèquandomatournè,Masalutlwayo.
Manmannosarrastavaparaummontedecerimônias,entãoeusabiaoqueeleestavafazendo.ChamouLegbaparaabriroportãoentrenossomundoeomundodoslwa.SeLegbanãoabreoportão,nadapassa.O houngan batia e batia no tambor, entoando aquela pequena cantiga
repetidamente. Comecei a ficar um pouco assustado. Em geral, quando essacoisacomeça,ohounganmudarapidamenteparaalgumoutrolwa.Nãoháessaeletricidade no ar— eu podia senti-la estalando nos meus ouvidos, correndocomoarrepiosnaminhapele.Ocheirodohomemtinhadesaparecido.Agora,ointerior da van cheirava pólvora, sexo e flores. Era como se as paredesestivessemsefechandosobremim,emevireiparaBiggie,eeleolhavacomosetivesseacabadodeverumfantasma.
De repente,ohoungan parou.Houve silêncio,mas era comoo silêncioqueaconteceantesdeumtrovão,ouantesdeumcachorrolatir.Então,acabeçadelevirou de uma vez para olhar pramim, e seus olhos não eram delemais,mascomoportõesquetinhamsidoabertos,edooutroladodelestinhaovazio,eissofaziaacabeçadoer,comoquandoagentepensaquantooinfinitoégrande.—Oquevocêquer?—eleperguntou,enãoeraavozdele…eraalgoque
ecoava.Ohoungan, ou fosse láoqueestivesseali,nãoestavaolhandoparaBiggie,
olhavapramim,masfoiBiggiequemrespondeu.— Queremos Ogou Badagry — ele disse. — Queremos ir pra guerra.
Precisamosdaajudadele.—Eusouaencruzilhada—disseohoungan queeraPapaLegba.—Você
estánaencruzilhada.Entãochegouatémim.— Sim—Biggie falou.—Mas o senhor pode nos trazer Ogou Badagry?
Precisamosdeguerrananossamettet,precisamosserfortes…Ele parou, porque o houngan se virou para olhar pra ele, e Biggie fitou
aquelesolhos.—Não—Legbasoltou.—Não?—Não.EletocouacabeçadeBiggieeeleestremeceu.—Vocêestácheio—Legbafalou.—Temumhomemmortodentrodevocê.Então,tocouaminhacabeça.— E você está vazio. Você era Marassa, agora você é nada. É metade de
pessoa, mas não vai ser por muito tempo. A cerimônia já foi completa. Foicompletahámuitosanos.OgouBadagrynãoépravocê.— Mas nossos inimigos — Biggie falou. — Precisamos destruir nossos
inimigos.—Este aqui sabe como—Legba respondeu,me tocandode novo.—Este
aquipodedestruirqualquercoisasequiser.Podeconstruircoisastambém,mas
dependedeleoqueelefaz.Senticomoseeufossedesmaiar,masenterreiminhasunhasnapalmadamão.
PapaLegbaéaencruzilhada,eupensei.Elepodeencontrarqualquercoisaedarqualquercoisa.Podedevolvercoisasqueestãoperdidas.—Euvouterminhairmãdevolta?—eufaleiparaohounganqueeraPapa
Legba.—Quebostavocêtáfalando?—perguntouBiggie.—Queporraéessaaqui?Ohounganolhoupramim.—Nãoseidoquevocêestáfalando—elefalou.—Nãomexocomaquela
porta.—Queporta?—euquissaber.Ohounganbalançouacabeça.—Eunão…Issoétudo…Avozdohounganvoltouaonormal;nãoecoavamais.Eracomoumdubmix
que parou, e voltamos àmúsica normal. Ele despencou de joelhos e os olhosvelhostremelicaramaoabrir,aquelesinjetados,nãoaquelescomovazioeterno.—Oqueaconteceu?—ohounganperguntoupragente.—Não sei—Biggie falou.—Você era Legba, eu acho. Ele disse que eu
estavacheio.DissequeShortyerametadedepessoa.Sabeoquesignifica?—Não—elefalou.—Masnãoparecebom.Eleseviroucomosejátivesseacabadotudo.— Hei, babaca — Biggie falou. — Não paguei pra isso. Me devolve o
dinheiro.Ohounganbalançouacabeça.—Fizoquevocêpediu—eleretrucou.—Nãoéminhaculpaseolwanãote
ajudou.—Paradebaboseira—Biggiedisse.—Euqueriaproteção.Agressão.Ohoungandeudeombros.—Consulteoslwa—elefalou.ElepegouaGlock.
—Espera—ohounganpediu.—Vocêprecisademim.—Nãopreciso,não.JámedeuamajidoDread.Dequalquerforma,vocême
chamoudebabaca.Éumaquestãodeprincípios,entende?EleesvaziouaGlocknohoungan,eocarafoilançadopratrástãolongeque
derrubou todasasprateleiras, inclusiveaquelacomDreaddentrodela,eelaseespatifou quando caiu nele. O pó se espalhou sobre ele todo, mas era tardedemais.Estavamorto.—Vocêpode destruir qualquer coisa?—Biggie disse pramim.—Melhor
pensarrápidoemalgumacoisa,então.Oestranhofoiquepenseiemalgumacoisamesmo.Depoisquefomosaohoungan,tudoacelerou.DesdequeLegbametocoufoi,
tipo,seilá,foicomoseumaportativesseabertonaminhacabeça,etodotipodecoisativessepassado.SaídapatrulhaeajudeiBiggieabotarfeitiçosnasestradasquelevavamparaSolèy19,eajudeiasepararalgunscarasqueestavamdevendopagamentos,eatodomomentoeracomoseeuestivessenesselugartotalmentediferente,ondehaviamuitomaisárvoresesombras.Tambémtiveaquelesonhoestranhosobreumcasteloeumacarruagem.Isso
medeuumaideia.Tinhatudocalculado.— Olha só, Biggie — eu falei uma noite. — Tenho um plano de como
podemostomarBoston.—Quê?—Biggieperguntou.—Tipo,todoseles?—Sim—eurespondi.—Todoseles.Fizemosànoite.Biggienãoestavamuitofelizementregarseucarango,mas
eulhefalei:—Seagenteconseguir,vocêvaipoderterquantoscarrosquiser.Vamosser
donosdoSiteinteirosetomarmosBoston.Pensanisso.QuervendermetadedaheroínanoSiteoutodaela?Elenosdeuocarro.EudissequeeueraoMecânico,certo?Memostreummotorquebradoeeu
conserto,nãoimportasefornumcarroounumaserraelétrica.
Assim,monteioservomotornumaarmanapartede trás.Tinhaumcontroleremotonamão,comoaquelesdecarrinhodebrinquedo.Foiacoisamaisdifícilde achar— tivemos de andarmuito o dia inteiro pelo Site, perguntando praspessoas. As crianças não têm brinquedos no Site, mas no fim das contasencontramosummeninoque tinhacompradodospaisquandosemudarampraPortoPríncipeparaconseguirempregosmelhores—enãoéaquelapiada,comoeles dizem nasmúsicas? Pagamos cinquenta dólares por ele. Então, eu tirei oservomotor do carrinho de brinquedo, entende? E ele estava preso na AK natraseira do carango. Enfiado no porta-malas e embaixo do volante tinha ummontededinamites,granadasefoguetes.NãoconseguiaacreditarnaquilotudoquandoBiggiememostrou.DissequeeradeAristide,dequandoelequeriaasganguesgarantindoopaíspraele,masBiggiedissequeelenuncasoubeoquefazercomaquelamerda,entãosódeixounumbarraco.—Essacoisaéperigosa—elefalou.—Sim,eusei.—eudisse.—Esseéoponto.Então,carango,servomotor,arma,explosivos.Orestoeraapenasbrincarde
carro-fantasma.Alguns dos caras, eles não gostaram. Disseram que Biggie não devia me
ouvir,queeutinhabostanacabeçadesdequefomosverohoungan.Lil’WaynedissebemnacaradeBiggie.—Bokobawpwen,lipadiwdominankafou.Éumaexpressãoque todomundousaeeraperfeitaparaaquelemomentoe
paraBiggie,euacho,porquesignificamesmoseohoungantedeuumamuletoprotetor, não precisa ficar deitado num cruzamento. Significa: a gente vai sematar.Biggie,eleapenasolhoucomfriezaeporumbomtempoparaLil’Wayne.—Seagentesobreviver,vocêvememedizissodenovo—elefalou.Então, foi isso. Conversamos sobre isso um pouco e já estávamos fazendo.
Aprontamosocarro,osexplosivos,asarmasefizemos.EstávamosnofimdaruaquelevaatéoterritóriodaBoston.Sabíamosqueos
líderes daBoston estavam dormindo lá naquela noite, porque botamos algunspequenosnaparada.Ospequenospareciamiguais,correndoporaí,brincando.AgangueBostonnãopodiadiferenciarumpequenodoSolèy10deumdoSolèy19.EuesperavaqueMargueriteestivesselátambém,eesperavanãomatá-la.Eu
estavaenjoado.Meuestômagoestavaduro,comoumpacotecheiodeerva.Seiquematei pessoas, e você deve estar achando que sou umapessoamá,mas averdade é que eu fiz isso apenas pra encontrarMarguerite. Eu sóme juntei àRoute9porquesãoooutropoder;sãoosúnicosquepodiammeajudaradestruiraBostonetrazê-ladevolta.Então,bemali,eraomomentoparaoqualeuespereiquasemetadedaminha
vida.Eraomomentoquandoeupodiameunirnovamenteàminhagêmea.Biggielevantouamãoedisse“vai”.Eumeinclineieligueiomotor.Boteiotijolonopedaldoacelerador,simples
assim.Tintinpassoupormimeajustouumpoucoovolante.—Melhor—elefalou.Ocarroseguiuemfrenteparadentrodanoite.Cruzouumalinhaquenenhum
denósjamaistinhacruzado,eentãoestavaemBoston,comosenãofossenadademais,mesmoqueparanósestivesseemoutromundo.Cruzouemlinhareta,ocarro-fantasma,suavecomoseda.PassouobarracoondeoschimèresdeBostonestavamdormindo,eeupeguei
ocontroleremoto.Aperteiaalavancaparaafrente,eoservomotorrespondeu,eaAKnocarrodisparou.Metralhadadocarro-fantasma.Todoumtiroteioprovocado.Oscarascomeçaramavazardosbarracoseestavamdescarregandonele.Vi
queumdelesestavamancando,osanguevazavadaperna.Aspessoasgritavam.Eupensei,merda,eufizisso.Entãoerguiminhaarma,porquealguémdelesnosviuecomeçaramaatirarnagente.Biggieabaixoucomumjoelhonochão,sua
Tec-9cuspindofogo.Por um momento, fiquei apenas congelado. Nunca tinha visto ou ouvido
tantasbalas.Aruainteiraestavapresanumacercadetiros;oarestavacheiodeprojéteis de lata e pontas de aço; estava em chamas. Eramuito louco. Tenteigritar,masasbalassãomais rápidasqueaspalavras,eeuestava láempé,nomeiodetodaaquelamortemetálica.Pensei,voumorrer.Pensei,foiumapéssimaideia.Entãoeuavi.Marguerite.Estavacorrendodeumbarraco,gritandodemedo.Nãotinhaarmanamãoe
issoerabom,eupensei—dessejeito,TintinouBiggieouMickeynãoatirarianela.Mickeyestavamancandofeio,masestavaládequalquerforma.Comeceiaandarnadireçãodela,masnãomuitoperto.Tivedepegá-lapelos
olhos,senãoera…Elasevirou,olhoupramim.Estavacorrendoparaoschimèresqueatiravam
emnósenocarro,masparou.—Corre!—eugritei.—Corre!Pralongedocarro!Elameencarou.—CORRE!AlgunscarasdaBostonvirarampramimecomeçaramaatirar,eeumejoguei
no chão. Pensei, merda, eles veem agora, eles veem o truque. Mas não semoveram.Noentanto,elasemoveu—euavicorrernadireçãooposta,maisparadentro
deBoston.Pensei,ah,obrigado,obrigado,obrigado.AmaioriadaBostonestavaatirandonocarro. Issoerabom.Eraoqueeles
deviamfazermesmo,porquesecontinuassemaatirar,então…BUM.Foi no meio da noite, mas de repente tudo virou dia, e havia um sol
queimandona rua.Pedaçosvoaramem todasasdireções—pedaçosdecarro,
umbancocaiuemcimadeumbarraco.Veioumsomnosmeusouvidoscomoaqueleestalarelétricoquandovocêenfiaacabeçanaáguadomar—osomdospeixes se movendo, eu acho. Pus o dedo do lado da cabeça. Senti o sanguequenteemeladonaminhabochecha;pareciaqueestavavindodaminhaorelha.Onde o carro estava era só fumaça preta. Um dos barracos despencoucompletamente, um estrondo de faíscas e aço ondulado. O ar estava cheiodaquelecheirodequeimado.Percebiqueeunãoestavafazendonada,entãolevanteiminhaarmaeatireina
tempestade.Nãoacheiqueimportasse,porqueninguémpoderiaestarvivoali.MinhaesperançaeraqueMargueritetivessecorridoosuficiente.Tinha pó e fumaça em todo lugar agora, e alguns dos barracos queimavam.
Caminheiparaafrente,segurandoaarmadiantedemim.Umhomempegandofogo veio na minha direção, tropeçando, e eu atirei nele sem pensar. Ummomentodepois,umabalaatingiumeubraçoeeugritei,mascontinueiandando.Era difícil segurar a arma na mão. Mas eu segurei. Estava apenas meioconscientedequeaspessoascorriampraláepracá,asbalasvoavam.Amaioriadasbalaseranossa,euacho.AgangueBostonnãoeramaisumagangue.Eu estava no meio da fumaça e no ar limpo quando a encontrei. Estava
encostada numabicicleta quebrada, assistindo às chamas.Era tão bonita e tãovulnerável.Eraaúnicacoisapuraeincorruptanaquelafavelainteira.—Marguerite—eufalei.—Marguerite,tudobem.Eumostreiametadedomeucolar.—Vê?—eufalei.—Vê,euaindatenho.Ondeestáoseu?Elameencarou,medoehorroremseurosto.—Doquevocêtáfalando?—elaperguntou.—QueméMarguerite?
OUTRORA
—TodaaFrançaveioparaoHaiti—Toussaint falou.—AFrança foiludibriadaeveiosevingareescravizarosnegrosnovamente.—Tunãosabesdisso—disseJean-Christophe.—Podeserqueelestenham
vindo…—Empaz?Nointuitodefazeramizade?Não.Toussaintexaminavaanovafrotafrancesapelalunetaenquantofalava.Cerca
de cinquenta embarcações estavam ancoradas na baía do CaboHaitiano, seuscanhões voltados para a cidade, conveses pululando com soldados. A própriacidade, nos flancos do monte, viu um ressurgimento, ele observou, após terqueimadohápouco.Nomais,davapena—nãoestavapreparadaparaaguentaroutroincêndiotãologo.Durante toda a manhã eles observaram as manobras dos navios franceses.
Primeiro, Toussaint considerou em seus movimentos hesitação, mas Jean-Christopheexplicoucomoosnaviostinhamdeficarcontraoventoeempregaroutrastáticasmarítimasparaficarnaposiçãoeatracar.Pormaisquetenhamvistoaquilo,haviamuitoshomenscomarmasabordo.
Pretendiaminvadir.— Se Bonaparte quisesse paz, não teria mandado essa frota contra nós—
Toussaintafirmou.—Temoqueelequeiratomaropaísàforça.Ele pensou que a ilha havia se livrado da França, mas agora um novo
comandanteassumiraaRepública,umhomemchamadoBonaparte,militarporinclinação,umgênionocampodebatalha,deacordocomosrumores.PareciaqueBonapartequeriareclamaroHaiti.—Onovoembaixadorfrancês,Leclerc,dizqueeletrazpresentesparati—
disseJean-Christophe.Toussaint riu. Esses franceses pareciam pensar que os negros livres não
tinham noção de antiguidade clássica. Eles acreditavam que ele nunca haviaouvido falar de Troia, do cavalo gigante dado de presente aos troianos, suabarriga demadeira cheia de soldados inimigos? Ele próprio havia usado esseestratagema,oualgoparecido,quandotomouGuildivedosingleses.—Leclercmente—elefalou.Quando as notícias da chegada da frota lhe alcançaram, Toussaint ordenou
imediatamente a retirada de seus conselheiros principais, e da maioria doexército,paraDondon.Osfrancesesestavammandandonaviossomenteporummotivo.EnviouJean-ChristopheparaassumiroCaboHaitiano,apenascom tropaso
suficienteparadesencorajarosfrancesesdedesembarcarem,mesmoseelesnãopudessemimpedi-lospormuitotempoquandoofizessem.Leclercdesembarcounumpequenobarcoaremo,lembrandoToussaintdostemposantigosquandoosfrancesestentaramessatrapaça.PediuaJean-Christophepermissãoparaatracarosnavios,dizendoqueele traziaumaproclamaçãodeBonapartedeclarandooHaitilivre,eoferecendotropasparaajudaramanterapaz,bemcomopresentesopulentoscomosinaldesuaamizade.Aoreceberoemissário,Jean-ChristophefezexatamenteoqueToussaint lhe
disse.FalouaLeclercqueToussaintseretiraraparaointerior,queelenãopodiapermitirqueosnaviosatracassem,equeossoldadosnadefesadoCaboHaitianoforaminstruídosadefendersualiberdadecomavida.Leclerc não ficou satisfeito. Arranjou que sua proclamação fosse publicada
secretamente,emuitosdosbrancosficaramimpressionadosporsuagarantiadaliberdade continuada. Incomodaram Jean-Christophe, suplicaram a ele,insistindo para ele permitir que os franceses atracassem, aceitasse sua ajuda eamizade.Eles enviariam um único emissário se quisessem amizade, Toussaint sabia.
Nãoenviariamumexército,nãoenviariamumafrota.Sabiaqueelesprecisavamirparaaguerranovamente,eagorapareciaqueos
franceses tinhamficadosfartosdeesperare iamatracar.Jáouviamtirossendo
disparados,detonaçõesdistantesláembaixo,nabaía.Essessãoospresentesquetrazem,elepensou.Na verdade, Toussaint tinha uma ideia muito boa do que a França queria.
TinhaespiõesemParistambém,esabiaoquesedizialá.Algunsmesesantes,elehaviapublicadoumaConstituiçãodoHaiti, nomeando-segovernador-geralporumprazodetrêsanos.Pensounissodeformaastuta,efezcomhumildadeosuficiente. Havia muitos que o pressionavam a assumir o cargo como rei ouditador, ou fosse lá qual nome.Mesmo os brancos o apoiavam, pois ficaramsatisfeitos quando ele lhes devolveu uma parte de suas antigas terras. Erarespeitado por todos: pelos soldados, que apreciavam sua justiça e, para suasurpresa,atémesmosuajustiçacruel;pelosbrancos,pelosmulats.Nasuavisão,a Constituição não devia ter sido controversa. Foi cuidadoso ao despi-la derecriminações e demandas. Reconhecia a audácia de sua rebelião, escrevendo,ousamos ser livres quando não éramos livres. Um item, talvez, poderia tercausadoofensa.Incluiuumartigosobreliberdadedecomércio,mascertamenteaquilonãopodiaexplicaressanova invasão francesa.Possivelmentenãoeraocaso,poderiaserqueolucrosuperasseoprincípiorepublicanodaliberdadedohomem?Ele não foi importuno. Nem insultou a pessoa do cônsul, Toussaint tinha
certeza. Escreveu para o próprio Bonaparte muitos meses antes, abordando-ocom todaapompae títuloseanexandoumacópiadaConstituiçãohaitiana.Ohomemerameramenteumreicomoutronome,aoquepareciaparaToussaint,maseleestavapreparadoparalheprestarostributos.O filho de Toussaint, Isaac, que agora estudava em Paris, informou-lhe da
reaçãoaparentedeBonaparteaoreceberaConstituiçãodeToussaint.Dizemqueocônsuljogouopapeledeclarou:— A França foi ultrajada por essa presunção. Toussaint é um escravo
revoltadoqueprecisaserpunido.OpróprioToussaintpensavaqueaquelaeraumadeclaraçãobemimprovável.
Afinal,oqueelefizeraalémdedeclararaliberdadedosescravosqueaprópria
França posteriormente confirmou? Sua Constituição deixou claro que o Haitipermaneceriasobodomíniofrancês,excetonoquediziarespeitoàliberdadedecomércioeàliberdadedosescravos.OuviuoutrahistóriaqueerasussurradanossalõesdeParis,eestapareciamais
provávelaosseusouvidos.De acordo com essa versão, Bonaparte nem sequer inspecionou a
Constituição. O que lhe interessava mais era um registro que seu mestre decontaslhepreparara.Esteregistromostravaduascolunas.OlucrodasfazendasdoHaiti,supondoaescravidão.Olucrodessasmesmasfazendas,supondoaliberdadedopopulacho.Toussaint lembrou-se desses dois números quando relatados a ele por
Brandicourt.Novecentosmilhõesdefrancos,elepensou.Issoéoquenossavidacusta.Éa
recompensa pela qual a brava República da França, a campeã da liberdade,botaforanossaliberdade.O jogo da diplomacia acabara. Os franceses estavam desembarcando e
invadindo. Toussaint combateu a eles e, então, aos ingleses por anos. Ficavatenso ao pensar que a batalha precisava recomeçar, quemais de seus homensprecisavammorrer.Mas,aindaassim,aindaassim,elenãodesistiriadopaíspeloqualseupovoderramousangue.Nodiaanterior, Jean-Christophehavia trazidoaeleumacartadeLeclerc, e
claramentemostravaocaminhotortuosoqueseestendiaàfrente.
Soubecomindignação,Cidadão-General,queosenhorserecusaareceberaesquadraeoexércitofrancesesquecomando.
AFrançaestabeleceuapazcomaInglaterra,eseugovernoenviaforçasaoHaiticapazesdesubjugarosrebeldes,seforemencontradosrebeldesnoHaiti.Quantoaosenhor,Cidadão-General,confessoquemedoeriareconhecê-loentre
osrebeldes.AlertoosenhordequesenestediaosenhornãopassaràminhaposseosfortesPicolet,Belairetodasasbateriascosteiras,amanhãaoraiardodia, 15 mil homens serão desembarcados. Quatro mil neste momento estãodesembarcandonoFortLiberté,8milnoPortRépublican.Osenhorencontraráminhaproclamaçãoanexadaaestacomunicação;elaexpressaasintençõesdogovernofrancês,mas,lembre-se,apesardaestimaquesuacondutanacolôniatenhameinspirado,considero-oresponsávelportudooquepossaacontecer.
LECLERC
General-chefedoexércitodoHaitiecapitão-generaldaColônia
Toussaint riu tanto que chorou. Rebeldes? Não havia rebeldes no Haiti.Alguns soldados, talvez, que acharam a vida de luta difícil de desistir e setornaram bandidos, mas nada mais que isso. O Haiti estava pacífico pelaprimeiravezemanos,eesteLeclercpensavaqueumexércitodemilhareseraamelhormaneirademanteressapaz?Eleficouinsultadotambémcomoohomemse denominava: general-chefe do exército do Haiti— como se ele já tivessebotadoospésnestabelaterra.No entanto, era esperta essa questão dos rebeldes. Inventar esses rebeldes
tornavapossívelalegarqueToussainteseushomensestariamentreeles.Algunsdosbrancospoderiamatéserconvencidos—obediênciaàFrançafoiumaliçãoduraparaelesesquecerem.Toussaintnãosesurpreenderiaseestacarta,comoaproclamação de Bonaparte antes dela, tivesse corrido secretamente pelo CaboHaitiano.EstavacomacartadeLeclercnamãoquandoolhouparaosnaviosnabaía.
Irritado e cansado, acendeu um fósforo e deixou sob o papel. Ele se curvou,empreteceueentãoqueimou.Apenasdepoisdeachamamordiscarsuamãoelesoltouacartanochão.Virou-se,enojado,emontouemseucavalo.—Digaaelesparaqueimar—elefalou.
—Queimaroquê?Acidade?—Tudo.Diga a eles para queimarem tudo… a costa inteira.Deixe que os
franceses desembarquem nomeio de incêndios e destruição; deixe-os sentir ogostodoinfernoqueosaguardaporestecrime.Vamosrecorreràsmontanhas.—Tudo?—perguntouJean-Christophe.—Tudo—elerespondeu.—Queimetudo.Ummêsdepois,ToussaintestavaemDondon.Ainda não tinha o filho consigo, e isso lhe causava sofrimento. Isaac
permanecia em Paris, para onde foi enviado depois de Toussaint assumir ocontroledoHaiticomoumgestodeboavontadeeconfiançadasuaparteparacomaFrança.Era,defato,umrefém,eaindaassimaFrançavinhareclamaropaís.Teve alguma paz, contudo, e ficou satisfeito em passar aquele período em
Dondon, descansando sentado às tardes; ouvindo as cigarras, desfrutando dacomida simples, bebendo vinho e conversando com seus conselheiros maispróximos,escravoslibertosqueestavamcomeledesdeoinício.Lembravaumpoucodavidaquetinhamnasfazendasantesdeoderramamentodesanguetercomeçado,embora,claro,elesnãofossemlivres.Toussaintsentava-sesemprenamesmacadeiraaoladodaentradadabarraca.
Podiaterdormidoemqualquercasadefazendanointerior,maspreferiaatenda—mostravaàstropasqueelenãoseacreditavamelhordoqueelas.Penduradonaentradada tendaestava seu longocasaco;pendurava-o lápara lembrar a simesmo e aos outros com quem eles lidavam. Estava queimado na bainha,rasgadoeperfuradoemdiversoslugaresporbalasdemosquete—olegadodesua cavalgada do norte para Dondon após supervisionar a queima dos portospara atrasar os franceses. Por descuido, ele se deparou com a retaguarda deLeclerc, e aqueles bravos soldados franceses atiraram nele — nele, ogovernador-geral!—equasederamfimàsuavida.Ocavalofoimortoembaixodele. E, mesmo que seu sobretudo encontrado mais tarde estivesse cheio deburacos,nemumaúnicabalatocousuapele.
Nãoerameudestino,elepensou.Comoelehaviaordenadoqueafaixacosteirafosseincendiada,poucohaviaa
fazeralémdeesperar.Eleesuastropascomiambemdasplantaçõeselojasnointerior.Masosfranceses,elebemsabia,cedooutardeteriamfome.Nãohaviadeixadonadaalémdecinzas.Então,eleaguardavaaquelemomento,recebendoinformaçõesdiariamentedosseusespiõesegenerais,sabendodacomoçãocivilem Gonlaive, das revoltas no Cabo Haitiano, dos enforcamentos em PortoPríncipe.Deixe-os ficar, elepensou.Eles sematarão no fim das contas e poderemos
reivindicaracosta.Ainda era seu objetivo evitar confronto direto, se possível. Jean-Christophe
implorou-lhequedobrasseonúmerodeguarda-costas,contudo,quedesignassehomens armados e confiáveis em torno dele a todo omomento, que avisassetodos os soldados do seu exército para ficarem em guarda. Suspeitava que osfrancesesusariamalgumestratagema,algumcanularparapegá-loderepenteeaté prendê-lo ou matá-lo. Toussaint sempre dispensava essas ideias comirritação. Os franceses poderiam querer seus escravos de volta, mas eramhomenshonrados,acimadetudo.Nãorecorreriamataistáticas.—Alémdisso—elefalouaJean-Christophe—,umhomemsacrificaravida
por este país quando ele estiver em perigo é uma obrigação sagrada,mas umhomemsacudirseupaísparasalvarsuavidaéinglório.NãosouoHaiti.Seeutiver de morrer, ainda teremos nossa liberdade, contanto que estejamospreparadosparacontinuarlutandoporela.Para ele, parecia que, se a primeira guerra doHaiti foi umaguerra armada,
entãoasegundaeraumaguerrademissivas.Leueescreveudiversasnumdia.Então,não ficou surpresoquando Jean-Christopheespreitoupelaentradae lhedisse:—Temalguémaquicomumacartaparati.Toussaintlevantoueamarroualonadeentradadabarracatotalmenteaberta.
Então,encarouohomemqueestáali,empé.
—Issac—elefalou.—Meufilho.Ficou surpreso com quanto o garoto havia crescido. Era lugar-comum, o
crescimentodosfilhos,masissooemocionavaeenchiacomorgulhoporeleterfeitoessehomembonitoqueestavadiantedele!EleeraoOgro;seufilho,umpríncipe.—Estoutãofelizemtever,Isaac—elecontinuou.Deuumpassoàfrenteeoabraçou,sentindoalarguradosseusombros.Forte
também,alémdebonito!Oorgulhoparecia algovivoquepoderia transbordardele.Isaac sorriu, desembaraçado do abraço, então o beijou à moda francesa.
Toussaint apertou os olhos. O gesto pareceu enfático; aquilo servia comoinstruçãosobrecomoaspessoassecumprimentavamnospaísescivilizados?—Papa—elefalou.—Ébomtevertambém.Parecescansado.—Éestepaís—Toussaintcomentou.—Aspessoasvivemtentandotirá-lo
denós.—Pois,entendo—Issacdisse.—Bem,estouaquiparaajudaragora.Toussaint pediu vinho e comida, então pediu para Isaac se sentar. Ele não
podia conceber que seu filho estivesse ali, nos planaltos haitianos.AcreditavaqueeleaindaestivesseemParis,nosseusestudos.NãoconseguiaacreditaremquantoIsaaccresceratambémecomoelepareciaumhomem.Suponhoqueelesejaumhomem,elepensou.Naidade,aomenos.Toussaintnãohaviaencontradoaliderançaatéoscinquentaanos.Quemsabia
emqualidadeseufilhodeveriaassumiromantodaresponsabilidade?IsaacexplicouqueBonaparte lhepediuparaquenavegasseatéoHaitipara
tentarpôrfimaoimpasseentreLeclerceToussaint,ereunirailha.—Euadorariaque a ilha fosse reunida—disseToussaint.—MasLeclerc
insiste em desembarcar as tropas em nossas praias e matar nossos soldados.Interpreto isso como um ato de guerra, e acredito que seria um tolo se nãointerpretasse.Isaacsorriu.
—Nunca foste tolo, pai— ele falou.—Leclerc parece ter… excedido oslimites. O cônsul está descontente com os serviços dele, e ele foi chamado aretornaraParis.—Tenscerteza?—quissaberToussaint.Ele não ouvira aquilo, mas naquela época as notícias da costa eram
infrequentesechegavamcomvagar.Acomoçãonopaísfezsurgirbandidosqueroubavamematavammuitosdaquelesqueeramcorajososo suficientepara seaventuraremnasestradas.—Tenhocerteza—disseIsaac.—Foisubstituídoporumhomemchamado
Brunet.TrateicomelenoCabo.DissequefostedeverascaluniadoporLeclerc,que seu predecessor espalhou muitas mentiras vis a teu respeito, e que elemesmonão temnadaalémdegrande respeitopor ti, comoo libertadordo teupaíselídereleitodoteupovo.—Eastropas?—Toussaintquestionou.—Brunetretiraráastropas.—Dissequeirá,pai.Pedeapenasquevocêenviealgunsdosteusparamanter
a segurança nas cidades e estradas.Diz que os bandidos precisam ser detidosparaapazeaprosperidadedopaís.Oconflitociviltambém.IsaacmostrouumacartadesseBrunet.Toussaintdesdobrou-aeleu.
AToussaint,intituladoL’Ouverture,
Temo, Cidadão-General, que fora injustamente caluniado pelo Capitão-General Leclerc, que cuidou para que rumores infundados fossem espalhadospela cidade sobre seu estimado trabalho para desestabilizar o país. NãocompartilhodasvisõesdeLeclerc,devolhegarantir,poisestouabsolutamenteconvencidodequeseussentimentostendemapenasatrazerdevoltaaordemnaregiãoondeosenhorhabita.Destafeita,ordeneiaretiradadetodasastropasfrancesasda ilha, e esta evacuação já teve início.Estoupreparado tambémaaceitar o senhor como Governador-Geral, e oficialmente invisto no senhorpoderespararegeroHaitiemnomedaFrança.
Noespíritodecooperaçãoeamizade,contudo,pediriaaosenhorgentilmentequemeprestasseajudapararestaurarascomunicaçõescomoCaboHaitiano,queforaminterrompidasnodiadeontempelasegundaveznestemês,poistrêspessoas foram assassinadas por um bando de cinquenta bandoleiros entreEnneryeCoupe-à-Pintade.Envieaesses locaishomens fiéisparapreservarapaz,aquemosenhorrecompensará;meresponsabilizareipelodesembolso.
Tambémhá,meucaroGeneral,acordosquedevemoscelebrar,impossíveisdetratar por carta, mas que uma hora de conferência resolveria. Se eu nãoestivesse hoje tão atarefado, teria eu mesmo portado esta missiva e confiadominha pessoa aos bons serviços de suas tropas, sabendo da conduta honradaqueosenhorexigedelas.
Ocupadocomoestou,noentanto,devopediraosenhorquevenhaatéminharesidência. Não encontrará lá todos os prazeres que eu gostaria pararecepcioná-lo,masosenhorencontraráafranquezadeumhomemhonradoquenãodesejanadaalémdafelicidadedacolôniaeaprópriafelicidadedosenhor.Nunca,General,o senhorencontraráumamigomais sincerodoqueeu.Comconfiançaemmimenosmeusoficiais,osenhordesfrutarádetranquilidade.
Como última garantia da minha honra, segue com esta carta um artigodeverasprecioso—ofilhodosenhor.ApenasconsiderecomoaFrançapoderiaterusadoseufilhocomorefémcontraosenhor,emvezdedevolvê-lo,eosenhorterá uma medida da minha sinceridade. Quando o senhor me visitar, poderátrazê-loconsigoounão,comoquiser.Asseguroaosenhor,emtodoocaso,queosdoisficarãoreunidos.
Cordialmente,saúdoosenhor,
BRUNET
Toussaintvirou-separaofilho.
—Confiasnestehomem?—eleperguntou.Isaacmeneoucomacabeça,concordando.—EuoconheciemParis—elerespondeu.—Éumhomemhonrado.Toussaintsorriu.— Então, depois de cearmos e passar uma noite aqui nas montanhas,
selaremosnossoscavalos.Pareceque,finalmente,oHaitipodeterencontradoapaz.
AGORA
Háumfachodeluz.Nãoachoqueestouimaginandoisso.Estábemacimademim e parece como um rio brilhante nummapa. Émínimo, ou estámuitolonge.Osuorpingadomeurosto,oquemepreocupa.Nãoachoquepossomedarao
luxodeperdermaiságuadoquejáperdi.Não existem mais vozes, e agora não estou gritando. Ainda estou longe
demaisdofachodeluz.Alémdisso,nãoqueroesgotarminhavoz.Achoquequebreiumdosdedos.Dóitocarnele,e,quandoeuoexploreicom
minhaoutramão,descobriqueeleestavapenduradodeumjeitoestranho.Então,agora estou cavando a maior parte do tempo com minha mão esquerda. Umminutoatrás, tivede jogarmeus joelhosparao ladoeempurrarcomascostasparatentarmoverumabarrademetalqueestavanocaminho.Nãoamovimuito,masosuficientepararastejaroutrometro.Enquantoesperoluzesacimademim,umalinhaparaseguir, lembroquando
todaminhaesperançafoiarrancada.Lembro que me agachei perto de Marguerite, ou seja lá quem fosse, por
apenasummomentoantesdeomundoexplodircomumbarulhodenovo.Primeiro,veioumbarulhodebaixo,emevireieviumtanquepassandopor
cima das ferragens do carro estourado. Era como um vídeo de hip-hop,masmuitomaisaltoemaisreal.Então,veioumbarulhoalto,muitopróximo.Tzup,tzup,tzup,tzup.Reconheci da noite quandoDreadWilmèmorreu. Era um helicóptero.Vi-o
pairandosobreobarracona frentedoqualagenteestavaabaixado.Dealgumlugaratrásdotanque,homensdeuniformepretoecapacetespretossaíamparaarua,acoisatodacomoumpesadelo,todososlugarescobertosdefumaça.Veiouma rajadademetralhadora.EmpurreiMargueriteparao chãoedeitei
sobreela.Vi Biggie virar para os soldados e levantar a arma. Uma lata de gás
lacrimogêniovoousobreacabeçadele,cuspindofumaçacinzenta,eelecobriuosolhosenquantoatirava.Nãoseiseatingiualgumacoisa,masmuitascoisasoatingiram.Euovisacudindoenquantoasbalasoperfuravam,eviquemanmannãoexagerouquandocontouahistóriadeDreadWilmè,poisconseguivisualizarosholofoteseafumaçaatravésdocorpodeBiggie,atravésdosfurosnopeito,queeramdestetamanho.PenseisobreopódeossodeDreadqueBiggieespalhousobresimesmopara
ficaràprovadebalas.Nãopareciaqueestavafuncionando.O helicóptero estava atirando para baixo também, e eu vi Mickey jogado
contraumaparedeporgrandesrajadas,suacabeçaquasearrancada.Tintin,porsuavez,escapouporumbeco,rápidocomoumaserpente,eeuovidesaparecer.Minhaesperançaéqueeletivessecorrido,nãoestivessemorto.Pormuitosminutos,ouhoras,eunãosoubeoqueestavaacontecendo.Todo
mundoestavaatirandoetudoeraruídoestilhaçadoefumaça.Tinhaconsciênciade Marguerite embaixo de mim, choramingando. Senti uma dor no braço epensei ter sido atingido, então lembrei que tomei um tiro antes. Estavacomeçando a doer. Descobri que não conseguia mais enxergar e percebi queestavachorando,emboraeunãosoubesseseerapelogáslacrimogênioouoquê.Parecia impossível, mas ouvi a voz de Stéphanie através do tiroteio, e ela
acenava com as mãos; eu conseguia apenas vê-la com dificuldade. O tiroteioparou,comoseelaestivesseconduzindo,sincronizandosuamúsica.—Não!—elafalou.—Elenãoestáarmado!Cessarfogo.Eu a via como se por vidros embaçados. Ela estava na frente das armas,
dizendopara aMinustahnãoatirar.Viqueela chorava também.Pensei se eraporcausadoBiggie.Eleestavadeitadonarua,pertodela,evazavasanguesobreomundotodo.Olheiparabaixo,porquepenseiqueestivessearmado.Maselaestavacerta—
euperdiminhaarmaemalgummomento.Nãolembrodetersoltado,masacho
quesoltei.—Oquevocêestáfazendoaqui?—umdossoldadosgritouparaStéphanie
eminglês.—Éumaoperaçãomilitar,caramba.—SoudaONU—ela falou.—Émeudireito estar aqui.Sãopessoasque
vocêsestãoacertando.—Hippiesmalditos—disseosoldado.Stéphanie estava se aproximando cada vezmais. Logo, ela estaria bem em
cimademim.Conseguiaveraslágrimasnorostodelaeavermelhidãoemtornodosbelosolhosazuis.Elaviuoburacodebalanomeubraçoeapertouoslábios.Emseguida,homensdepretoestavamaonossoredor.Umdelesmebotouempécomviolência.—Leve-oparaoCanapé-Vert—Stéphaniefalou.—É umgângster—o homem falou em inglês.—Não vamos levá-lo pra
lugarnenhum.—Eleestáferido.Sedeixá-loaqui,elepodemorrer.Leve-oparaoCanapé-
VertouquerqueeuligueproObservatóriodosDireitosHumanos?Ocararesmungou.Apertoumeusbraçosparatrásdascostas,eeugritei.Ele
ignoravaminhador,mealgemou.—Não tente nada— ele falou.—Você tem sorte de não deixarmos você
morreraí.Concordeicomele—nãoentendiaporqueeuestavavivo também,quando
todomundoestavamorto.Pareciaestúpido.OlheiparaMargueriteenquantoelesmearrastavam.—Nãolembrademim?—euperguntei.Eu precisava que ela fosse Marguerite, senão eu teria explodido o carro e
todasaquelaspessoaspornada.—Nãolembradebrincardecavalonasminhascostas?Elaolhoupramimcomoseeufosseumlouco.—Nãoseiquemévocê—elafalou.—Masvocênãoatirouemmim!Nocais!Vocêdeveterlembradodemim.
Eu estava gritando nesse momento. Ela era arrastada para longe de mim,mesmoquenãoestivessesemovendo.—Nãoatirei emvocêporquevocê éumgaroto—eladisse.—Agora, eu
queriatertematado.Baixeiosolhos.Senticomosealguémtivessemerasgadopordentro.—Quemé?—quissaberStéphanie.—Queméaquelagarota?—Penseiqueeraminhairmã—eufalei.Surgiuaqueladornomeupeitoeeupodiasentirquemeucoraçãosequebrara.
Sempre pensei que era bobagemquando as pessoas diziam isso,mas agora viqueeraalgoreal,comoeramospedaçosdevidroali,comosemeucoraçãofosseumalâmpadaealguémpassasseeaestourasse,eseusfragmentosestivessemnomeupeito.QuandopassamosporBiggie,umruídodetosseveiodele.Nãoestavamorto
ainda.Olheiparaelecomhorror.ComoosoldadodaMinustahquemepuxava.StéphanieficoudejoelhosepousouasmãosnorostodoBiggie.Ele disse algo para ela num sussurro oco. Era uma voz como o vento—
quieta,esemconsoantes.Eunãoconseguiaouvir,estavamuitolonge.ViabocadeStéphaniesemovercomoserespondessealgo.Eunãoqueriaouvir.Nãoteriaouvidomesmosenãotivesseumoceanoderuídosecoandonosmeusouvidos,comoointeriordeumaconcha,detodasasarmaseexplosões.Eraparticular.Então Biggieme viu. Estava deitado em tanto sangue que era como se ele
flutuassenummarvermelho,comoseele fossealgomaisdoqueumhomem.PenseiemDreadWilmèecomomanman falouqueele ficouvivoosuficienteparame salvar das armas e do tanque e parame dar o pwen. Talvez ela nãotivesse exagerado, e os ossos de Dread na pele de Biggie realmente tenhamcriadoalgumamajivodou,eporissoBiggieaindanãoestivessemorto,mesmocomtodasaquelesburacosnele.Elesevirou,eosoldadoquemepuxavaparou,surpreso.Viaexpressãonorostodosoldadoepensei,sim,vocêvai ficarbemfelizdevoltarparaaEuropa—évodusuficienteparaumavida.— Sempre foi você — Biggie falou pra mim, e sua voz era suave com
admiração.—Semprefoivocê.Olheiparaelenaquelelagodesangueeumarrepiopassoupormim,porque
senti como se eu estivesse na história da minhamanman, como se estivesseolhandoparaDreadWilmè,emeioqueespereiveramimmesmo,comdezanosde idade, deitado inconsciente ali. Pensei na pedra no meu bolso quando viquantosburacoshavianoBiggie,porqueeuestavapensandoquetalveztivessesidoapenasopwenquememanteveseguro,elepermitiuqueapenasumabalameatingisse.—Olhepravocê—elefalou.—Eusabiaquevocêestavaprotegido.Nãoconseguiaacreditarqueeleestavafalando.—Sim—eufalei.—Cara—Biggiedisse.—Vocêtátotalmentelimpo;tudooqueconseguiu
foi um buraco no braço. É como se as balas não te vissem… Merda, medesculpe,Shorty.Não gostava que eleme chamasse daquele jeito.Queria dizer para elemeu
nome,meunomereal,parafazereledizercerto,masnãopenseiquedeviabrigarcomumhomemagonizando,entãodisseapenas:—Desculpeporquê?Elefechouosolhos.—Porque,Biggie?—euperguntei.—Porquetápedindodesculpa?Elefezumacareta.Estavatãopálido,pareciaqueacorestavaescorrendodele
comosangue.—Seupapa—eledisse.—NãofoiBoston…fuieu.Euestavalá.Antesde
euter…minhaprópriagangue.Senti meus joelhos enfraquecerem e me perguntei se era porque fiquei em
choque,ouporqueomundoestavadesabandoembaixodemim.Mas,não,maistarde omundo desabou. Stéphanie estava olhando pramim também.Asmãosdela apoiavam o rosto de Biggie e os dois estavam me encarando,ensanguentados,comosefossemumadaquelaspinturascatólicasnaslateraisdasigrejas.
—Mas…vocêdisse…—Eumenti— falouBiggie.—Eupensei…queodiarBoston te faria um
bomsoldado.Averdadeé, foiDreadquemandoumatarseupapa…SeupapaodiavaAristide,eDreadsabiadisso,então…Biggiecontinuouafalar,maseunãoouviamais.Naminhacabeça,umfilmecomeçou.Flash.PapaemanmanbrigandosobreAristide.Flash. Aquela arma quemanman de repente tinha na mão, eu percebi que
talvezfosseaarmadopapadesdeoinício,quetalvezeleestivessetrabalhandocontraAristide, contra seusmercenários, comoDreadWilmè.Talvez estivessetrabalhandocontraeles,mesmoquandoeleveioenosarrancoudaqueleporão,quandoestávamossendoMarassa.Pramim,semprepareceuqueeleestavaputo,porquemanman estava nos transformando emmalucos,mas talvez era porqueestávamoslevantandodinheiroparaoLavalas.Flash.Papa caindo, os facões descendo como grandes pássaros brilhantes,
bicandocomviolência,alimentando-sedesangue.Flash. Os gângsteres berrando e comemorando enquanto cortavam ele em
pedaçospiti-piti.OlheialémdocapuzdeumhomemederepenteeleeraBiggie,ehaviaumódioqueimandonosseusolhosenquantomatavaomeupapa.Abriminhaboca,masnadasaiudela.Ouça.Estáficandomuitoquenteaqui,oconcretoemcimademimestárangendo,e
estoucommuitomedode ter entradono inferno.Não seiquanto tempo tenhopara contarminha história,mas tem algo que quero deixar claro.Quero dizerumacoisasobreoBiggie.Achoqueagoravocêdeveodiarele.Provavelmente,acreditaqueeleéummonstro,masqueroquevocêentendaqueeraapenasumgaroto,deverdade.Comoeu.QuerodizeralgosobreBiggie,eéisto.Tudo isso aconteceu num dia bem antes de eu ter vistominha irmã, ou ter
pensadoquevi,bemantesdeBiggietermefaladoquetinhasidoelequepicou
papaempedacinhos.Naquele dia, também tivemos um terremoto.Digo, também,mesmo que eu
nãotenhacertezadequefoioqueaconteceucomigo,masoquemaiscausaumgrandebarulhorepentinoeodesmoronamentodohospital?Amenosqueagentetenhasidobombardeado,enãovejomotivoporqueterroristasbombardeariamoHaiti;elejáétodofodido.De qualquer jeito, sim, naquele dia houve um pequeno tremor. Todos
sentimos. Estávamos passeando numa picape com o corpo de um gângster daRoute9;onomedeleeraChico.EraofuneraldoChico,easpessoasfaziamfilanas ruas, chorando, vibrando, entoando canções rebeldes. Duvido que muitossoubessemquemeraoChico,massemprefazíamosfuneraisbacanasnaRoute9,noSolèy19.TudovoltoucomDreadWilmè,quandoocorpodelefoicarregadopelafavelaemilharesdepessoassaíramparaasruaseseguiramatéomar,eaMinustahficoucompletamenteforadoSite,estavamcommuitomedodaqueledia.Então, o caminhão sacudiu um pouco quando o chão tremeu. Todomundo
olhouempânico,masBiggieriu.—Éumpequeno—elefalou.—Nãoénada.OHaitiestánumafalhageológica,vocêdevesaberoqueéisso.Écomose
todo o país estivesse amaldiçoado; estamos numa fenda domundo, e tudo noHaitiérachadotambém.Somosumpaísquebrado.Chicoestavaolhandoparanós.Estavanumcaixãoabertoecomsuamelhor
camisetaAdidas e umboné de beisebolDef Jam.De alguma forma, os olhosdeleseabriramquandooterremotosacudiuapicape.Biggieesticouamãoeosfechou. Quando passamos, as pessoas fora dos barracos, elas olhavam para ochão,aterra,emrespeito.Claro,baixaracabeçaeolharaterraénormalnoSite.Então, houve umbang, e outro, e nos escondemos quando percebemos que
alguémestavaatirando.EstávamospertodaBostonali,eChicomorreranumalutacomeles.—Armas!—Biggiefalou.—Peguemelas!
PuxeiminhaGlock9;estavapresaatrásdomeujeans.Destravei-aeolheiaoredor,agachando.Apicapeparou.Conseguiouvirumametralhadoradisparando,viTintinsejogandocontraalateraldapicape,decabeçabaixa.Maxnãofoitãorápido—eleestavalevantandoaescopetaquandoumabalaoatingiunaperna,espirrandosangue.ElegritouecaiudentrodocaixãodoChico.Alguém estava atirando, e eu vi as pessoas correndo em todas as direções.
Procureidesesperadamenteparaverquemestavaatirandoemnós,eentãoveioumpingpertodemimeviumburacoabertonoladodapicape,comoumaflordemetal.Olheideondeabaladeviatervindo,eviumpequenodejeanscaídoabaixo da bunda. Ele levantou a arma de novo, mas fui mais rápido — deimuitostiros.Biggieativaratambém,alémdemim,entãonãoseiquemdenósoderrubou,
maselecaiunaterra.Então,Biggiepulousobrealateraldapicape.—Deixacomigo—elefalou.Vi que um da gangue Boston tinha largado a arma e virou-se para correr.
Biggiefoiatrásdele.Deondeocaraestava,eupercebiquefoiaquelequetinhaatiradonoMax.Corriatrásdele,engatilhandominhaarma.Fiqueiesperandoseratingido,mas
pareciaqueaquelecaraeraoúltimo.TalvezTintintivessematadoumdeles,outalvezeramapenasdoisparacomeçar.Nãoeramnecessáriosmuitosgarotosparafazermuito estragoquandoo inimigo está fazendoumpercursonumcarrodefuneral,semesperarquevocêvácomeçaraatirarnele.Oódioeraácidonaminhagarganta.EugostavadeMax,eeletinhatomado
umbalaçonapernasóporqueosfilhosdaputadaBostontinhampegadoagentedesurpresa.Maxerabacana.Costumavacantarreggaes antigos, eera incrívelcontando piadas e imitando vozes. Conseguia imitar a Stéphanie como se elaestivessenasalacomagente—seusotaquefrancês,ojeitocomoelausavaàsvezesagíriadaruaparaparecermaisdescoladadoqueera,ojeitoqueelasorriacomafetaçãoegargalhavadaspiadasdeBiggie,mesmoquesepudessepensarqueelaeraduronademaisparaaqueletipodecoisa.
Claro,nuncafaziaaquilonafrentedoBiggie.Então, correndo atrás doBiggie, eu fiquei pensando sobre como a gente ia
explodiraquelepequenopaga-paudaBoston,ecomoaquiloseriabom.OuvipésbatendoatrásdemimeviqueTintintambémcorria.Deuumtiroproalto.—Route9!—eugritei.Emgeral,eunãofaziaaqueletipodecoisa,masBostontinhaarruinadonosso
funeral.Foicovardia.EntreinumbecoatrásdoBiggieeviomolequedaBostonencostadocontra
ummuronofim.Estavameiocurvado,ofegando.Biggieolhavaparaeledecimaabaixo,suaarmafavorita,aTec-9,namão.—Querfalaralgumacoisaantesdeeutematar?—eleperguntou.Ogaroto—eleerarealmenteumgaroto,nãomaisvelhoqueeu—seergueu.
EleolhoudiretoparaoBiggie.—Eupodia termatadoaquelecara—elefalou.—Aquelequeestavacom
você atrásdapicape.Souumbomatirador.Eupodia termatado ele,masnãomatei…sóacerteiapernadele.—Émesmo?—Biggiefalou.—Foda-se.Vocêfeztocaia,vocêvaimorrer.É
comofunciona.Ogarotoconcordoucomacabeça.—Me faz um favor— ele pediu.—Meu nome é Frank. Diz pra minha
manmanqueeuaamo.Diz…queeusintoporterdesapontadoela.Biggiefezoruídoquepodiatersidodefrustração.Eleergueuaarma.—Vocêmirounaperna?—eleperguntou.—Sim—disseogaroto.—O.k.—Biggierespondeu.Eleatirounacoxadogaroto,eelecaiu,gritando.—Venham—Biggie falou pramim e para Tintin.—Não atirem nele. O
garotoficavivo.—Eleabriuocelular.—Stéphanie?Temosumhomemcaído.EleprecisairproCanapé-Vert.EueTintinolhamosumparaooutro,tipo,queporraéessa?Ogaroto,Frank,
estava chorando, quietinho, um tipo de choramingo. Mas eu podia dizer queestavachorandoemparteporqueestavafeliz.Tintindeudeombros.—AchoqueBiggieestádebomhumor—elefalou.Numoutromomento,fuiveroBiggie.Podiaouvi-lonotelefonequandodesci
obecoatéondeeleestavadormindodaquelavez.Nãoseiporque,mascomeceia andar bemquieto, e fiquei feliz depois de ter feito isso.Olhei ao redor e viBiggiesentadonaquelapequenaparededetijolosqueficavabemdoladodeforado barraco. Estava segurando o celular na orelha com o ombro, e vi que aslágrimasrolavamnasbochechas.—Mas,manman—elefalou.Nunca tinha ouvido ele tão vulnerável. De repente, percebi que ele era um
garototambém—talvezfossecincoanosmaisvelhoqueeu.Escutei a voz de umamulher vinda do outro lado da linha,mas eramuito
baixa;nãoconseguiaouviroqueeladizia.—Quandovocêvoltapracasa?—Biggiecontinuou.—Sintosuafalta.SabiaqueamanmandeBiggietrabalhavaemMiami,ondetodomundodirige
furgões Escalade da Cadillac e tem periguetes gostosas de minissaia. Miamisemprepareceuocéupramimdojeitoqueosrappersfalavamemsuasmúsicas.Amanman de Biggie era faxineira, ou au pair, ou algo assim. Às vezes, elamandavadinheiro,eBiggiecompravaheroínacomele,oudavadesubornoparaalguém.—Não—elefalounotelefone.—Vocêdissequeseriaapenasporumano.Ouvieladizeralgodevolta,apenaserabaixodemaisparaseentender.Fiquei
muito,muitoquieto.—Sim, sim—Biggie disse.—Claro que estou indopra escola.Não, não
estoumetidoemproblemas.Sim,tenhoanpilamigos.Naverdade,umdosmeusamigos está chegando aqui, tenho que desligar. Sim, ele é legal. Jovem, umpequenodeverdade,masumbomgaroto.Estavafalandodemim,eupercebi,impressionado.
—O.k.,manman—elefalou.—Masmeliganapróximasemana,o.k.?Biggie estava com a arma na outra mão e ficou virando-a, virando-a, sem
parar.Limpouosolhoscomascostasdamãoque seguravao telefonepara selivrardaslágrimas.—Eusóqueroquevocêvoltepracasa—elefalou.Ele olhou, sem expressão nenhuma, para o telefone namão. Era óbvio que
havia desligado. Biggie expirou com força todo ódio e coração partido, entãoinspirouprofundamenteoardoSite,queeratodocalorefedordeesgoto,equenãodavaamínimapraele.Orostodeleficoufrio,comosetivesselevadooSiteparadentrodesimesmo,feitodeleprópriopartedaindiferença.—Foda—elefalou.Ainda fiquei ali, em pé, por cinco minutos, talvez mais. Então, entrei no
quintaleBiggiesaiudacasa,eseurostoestavafrio.—Biatch—elefalou.—Entraaínomeubarraco.Vamosfalardenegócios.
Queroarrancarmaisdinheirodaquelesbabacasdalavanderia.
OUTRORA
Toussaint amarrou seu cavalo numa estaca e observou seu filho fazer omesmo. Foram para a fazenda dos George, onde Brunet havia montado seuacampamento. Essa fazenda, diferente de muitas outras, fora bem cuidada egordasespigasdemilhoseagitavamnabrisa.Brunet saiu da casa para encontrá-los, suamulher ao lado, bonita sob uma
sombrinha.Brunettinhaumsemblantehonesto,orostoumpoucomarcadopelaidade,masmesmoassimbonito.Emvezdeumbigode,eleostentavaumabarbabemaparada.— Governador-geral — ele falou. — Que prazer vos encontrar. Sou um
admiradorde longadatadoquealcançastesnestepaís.Garantistes a liberdadedosescravos!Umfeitoqueressoarápormuitasgerações.—Liberdadenãoeraaminhaideia—disseToussaint.—Defato,temosde
vos agradecer, os franceses, por isso. Apenas ajudei a disseminar a ideia poraqui.Brunetfezumapequenamesura.—Dissestesbem—elesepronunciou.—Soistãohumildequantonobre.—Ah,nãosounobre—falouToussaint.—Osescravosestãolivres,verdade,
masaindaestamosabaixodaplebeaosolhosdosbrancos.Alémdisso,penseiqueavossarevoluçãohouvessevarridoanobrezaparalonge.Brunet sorriu.Toussaint ficou satisfeito aovê-lo—mostravaqueohomem
nãoeraumidiota.— A Revolução varreu — comentou Brunet —, mas Bonaparte parece
determinadoatrazê-ladevolta.Toussaintgargalhou.Gostavadehomensqueestavamdispostosacriticarseu
cônsul—quesugeriaqueeleeracapazdepensarporsi.ConheciaBrunethánomáximodoisminutosejáopreferiaaopedantepomposodoLeclerc.
—Isaaceujáconheciantes,claro—Brunetfalou.—EmParis.—De fato— Isaac confirmou.— Sejais bem-vindo, senhor. Acredito que
tenhaisencontradoumHaitidovossogosto.—Bem—Brunetbrincou—,euoencontrei,masquantoaissotodoocrédito
deveserdadoaocapitãodonavio.Quantoaseeleédomeugosto,acreditoqueconseguireiavaliá-loassimquetiveremcuidadodosbandoleirosedosladrões.Prefiro um país cumpridor das leis, devo dizer… é muito melhor para ocomércio.—Vamoscontribuirparatanto—Toussaintdisse.—Estoucertodequecom
acooperaçãodosmeusexércitospoderemostornaroHaitiseguroparatodoseconseguirsolofértilparaasociedade.Brunetconcordoucomacabeça.—Tambémestou—elefalou.Apresentouamulher, que sorriu comdiscriçãoquandoToussaint beijou sua
mãoenãoseencolheuaocontatodoslábiosnegros.Eleapreciouogesto,poisnemtodasasmulheresbrancasebem-nascidassecomportavamassim.—Agora,porfavor,entrai—Brunetconvidou.—Façamosumlanche.Toussaint foi primeiro, Issac atrás dele.O interior era frio e sombrio, a luz
filtrada por cortinas de renda.Um candelabro de vidro e latão pendia sobre amesacomtampodecouro,diversaspoltronasconfortáveis,umachaiselongue,eum chão polido com empenho. A sala, demuito bom gosto, era decorada natradição colonial, mas acentuadamente diversa de muitas que Toussaint viranaquiloquenãoforadesfigurado,queimadooupilhado.Osenhoraquidevetersido bom para os escravos para que sua propriedade fosse respeitada dessamaneira.MadameBrunetdesculpou-se,dizendoacreditarqueapolíticaficavamelhor
nas mãos dos homens. Toussaint não concordava necessariamente, masaquiesceueducadamentecomacabeçaecurvou-sequandoelasaiudocômodo.Eles conversaram sobre amenidades por alguns minutos, avaliando-se
mutuamente,entãoBrunetfezumlevesinaldeirritação.
—Oscriadosestãosedemorandodemaiscomovinhoquepedi—elefalou.—Vouverificar,uminstante.Elesaiudasala.Ummomentodepois,aportaseabriueumadúziadehomensentrouarmada
compistolaseespadas.ApontavamaarmaparaToussaint.Porummomento—apenas por um momento — ele não entendeu, então um peso aplacou seucoração.Eumeperguntoseelesacreditamquesoualgumbruxodamagianegra,ele
pensou,paraseremnecessáriostantoshomensparameprender.Isaacvirou-separaele,perplexo.—Pai…—elegaguejou.—Oqueestãofazendo?—Oqueachaqueestãofazendo?—perguntouToussaint.Paris tinha dado ao seu filho uma excelente educação acadêmica, mas em
muitosaspectosissonãohaviaensinadonadaaele.Toussaintolhounosolhosdofilho,ondeeleviualgodesieficousatisfeito.PuxouIsaacparatrásdeleesacouosabreparaenfrentarosdozehomens.Sim,talvezaquelefosseoseudestino.Aportaabriu-senovamenteeBrunetestavalá,umolhartristenorosto.— Baixe a espada, governador — ele disse. — Não estamos aqui para
machucá-lo,masparaprendê-loportraição.Nãoserásferido.Prometo,nemteufilho.Toussaintriu.—Prometes?Brunettinhamisericórdiaosuficienteparaparecerenvergonhado.—Peçodesculpaspeloardil.Foiaúnicamaneiraderesolverasituaçãosem
derramamentodesangue.—AsituaçãoseriaainconveniênciadomeudesejodeumHaitilivre?Brunet ignorou a frase, em vez disso apontou para a espada na mão de
Toussaint.—Baixeisso—eleordenou.
Suspirando,Toussaintobedeceu.—Apenasumacoisa—disseToussaint—eupeçoantesdemeprender.—Sim?—Brunetperguntou.Toussaintmoveu amão na direção das calças, e os soldadosmiraram suas
armasnele,olhosapertados,dedosnogatilho.—Nãoatireis—elefalou.—Nãoatireis.Toussaintmanteveamãodiantedesicomoseelapudesseimpedirumabala
seelaviesse,elevouaoutrabemdevagaraobolso.Tirouopweneentregou-oaIsaac,seusmovimentostãoexageradosquantoumamímicaparaqueossoldadosvissemqueelenãotiravaalgumaarmaoculta.—Queéisso?—disseIssac,queforaeducadoemParisenuncalutaracontra
ninguémnavida,nemforachicoteado,nempermaneceranumcharcoenquantoumhoungandançavaetocavatambor.—Umpwen.Contémoespíritodeumlwa—umlwadaguerra,euacredito.
PertenceuaBoukmane,agora,pertenceavocê.Isso…issoéoHaiti.Toussaintviuquehavialágrimasnosolhos.Issacolhouparaelecomoseopai
fosselouco,maspegouapedra.ToussaintmeneoucomacabeçaparaBrunet,indicandoqueestavapronto.Oshomenscorreramparaafrenteeamarraramosbraçosdeleatrásdascostas.
Marcharamcomeledacasaatéumacarruagem.VãomelevarparaoCaboHaitiano,elepensou.Masnãoolevaramparalá.Foramdiretoparaacostae,separando-odeIssac,
empurraram-nonumbarco,entãoremaramcomeleatéumafragataancoradanapraia.Uma brisa suave levava para ele o aroma da terra— tempero e terra eaçúcar—,masesseodorficavacadavezmaisfracoenquantoeramisturadoaosal.Então,eleconseguiasentirapenasocheirodomar,queeraocheirodamorteparaele,poisomareratudooqueestavaalémdoHaiti,eoHaitieraavida.Teriasidomaisgentilmematar,elepensou.Anoitecaiue,enquantoouviaobaterdasondasdomarcontraamadeirado
barcoaremo,ToussaintselembroudaquelanoitequandoJean-Christophenadou
atéosnaviosfranceses.Devíamostê-losqueimado.Assimqueelefoi içadoabordo,ouviuoruídopesadoemetálicodaâncora
sendoerguida,esabiaqueestavaperdido.OHaitiestavaperdido,eelenuncaoverianovamente.Sentiuomovimentodaembarcaçãoepercebeuquesaíadailhadamesmaformaqueseupaichegaraatéela—pelooceano.Pelaprimeiravezeleentendeuporqueovoduacreditavaqueosmortosdescansavamnofundodomar,porqueanarrativadomundoeraadoêxodo—doventre,doÉden—edoretorno.OsescravosvieramparaoHaitipelomar,epareciaqueeraparaomarqueelesestavamdestinadosavoltar.Aelefoinegadamesmoumaescotilha,poisforatrancadonoporãodecarga,e
elechorouporsaberquetinhamtomadoopaísdele.Aindaassim,recusava-seaperderasesperanças.Secouas lágrimaseempertigou-separamostrarquenãoforaarruinado.Naescuridão,elepensousobreamorte,poissabiaqueeraoqueo esperava. Sabia que nunca poderiam tirar o Haiti dele de verdade, pois namorte ele se reencontraria com aqueles que havia perdido no passado, falariacomeleseosabraçarianovamente.Aomatá-lo,osfrancesesodevolveriamaosseusancestrais,asuamulher,emcertosentidodariamaeleoquequeria.PensounoJuízoFinal,omomentonoqualtodososmortosserãolevadosaos
céus.SeupaioensinouqueesseacontecimentosedariaquandoJesusvoltasseàTerra,talvezemdezanos,talvezem10mil.Então,todaamorteseriadesfeitaetodas as calamidades revertidas num único lampejo. Para Toussaint, semprepareceuumaideianotável.Eleimaginavaosafogadoscaminhandonofundodomar,piratasemarinheiros,seusesqueletoscheiosdecracasevestidosdealgaspara se juntar a todos os que ascendiam, pois a gravidade dos mortos serevertera.Viuastumbasabertasvazandoseuconteúdoparacima;viucamposdebatalhadesfazendo-senoarnumalaridodeossosearmaduras.Porém, essa versão estava errada, ele entendia isso agora. Os mortos não
tinhamdeesperarporalgumdiadesconhecidoparasereunir.BoisCaimaneapedraensinaramaToussaintqueaversãoapresentadanovodueramaispróximada verdade, que as pessoas estavam sempre viajando para a morte, sempre
acompanhando Baron Samedi e La Sirène para a terra embaixo do mar paraencontrarcomossaudosos lá.Amorteerauma recepçãoconstante,comos jámortossempreaguardando,eumareuniãoperpétua.Oquepoderia,senãoisso,viremseguida?AssimqueoJuízoFinal terminar,eentão?Entãonãohaverianadaalémdaquietude,eomundoabominaaquietude.Não, ele pensou.Não existe quietude, nem agora, nem nunca. Existe uma
outraversão.Averdadeiraversão.Amortecontinuará.Nãohaveráfinaltriunfantecomalmassubindoaoscéus,
nem espera por uma reunião que poderia apenas acontecer após 10mil anos.Haveráumacorrentecontínuaeinfinitademortos,enchendoaterrasobomarquenuncapoderáserpreenchida.Masnãoétriste.Ébonito.A beleza daquilo é que, quando alguém morre, sempre terá alguém
aguardando, sempre haverá aqueles que foram perdidos, lá, a curva de suascostas e a postura de seus pés tão familiares. Haverá sempre alguém lá paradizer:—Esperamostanto.Ébomvervocê.Venha.Venha.
AGORA
Precisocontarorestodahistóriarápido,porqueémuitoprovávelqueeumorra logo.Nãoquero,maschegouahora,eusinto.Estava tentandochegaràluz, então puxei um bloco— aomenos, acho que era um bloco— e algo sesoltou. Ouvi um grande rangido e então ele caiu em cima de mim, meesmagando. Acho que minha perna está quebrada. Não importa, de verdade.Logovoumorrerdefomeoudesedemesmo.Manman estava certa. Nasci na escuridão e vou morrer na escuridão. Não
consigomaisnemverofiletedeluz,porquefoibloqueadopelacoisaquecaiu.Agoravocêsabeporquequerojogaraminhahistóriaparatrásdemim,como
osescombros.Agoravocêsabeporquenãoaqueromais.Souumassassinoeatireitantasvezesqueacerteioalvonofimdascontas,ealcanceioquevinhanaminhadireção.Perceboquemereçotudoisso.Aindaassim,asensaçãoquetivequandosoubequeBiggieeraumdoshomensquematarammeupapa,quandopercebi que era tudo Route 9, que foi como algo se partindo dentro demim,comoseeutivessedandoàluzalgo,masaúnicacoisaquepodesairdemimsãoadesgraçaeaescuridão.Tintinveiomevisitarnohospital,eutedisse.Nãoexpliqueinada.Apenaso
ouvifalaraquelaconversadehip-hopridículae,então,fingicairnosono,daíelefoi embora.Trouxeumwalkman com tocadordeCDealgunsCDs.Umdelesera deBiggie fazendo rap sobre ataques aéreos e Tec-9s, e um era deBiggieSmalls,quefalavaestarprontoparamorrer,eeupensei,issoaí,euconheçoessasensação. No fim das contas, não consegui ficar com ódio doBiggie, não deverdade—eleéumchimère,oqueeupoderiaesperar?—,masnãoqueroouviramúsicadeletambém,equandoTintinfoiemboraeudeixeiosCDsdelado.Tintinvaiacabar liderandoaRoute9,euaposto.Biggieestámorto,Mickey
também.TintinvaidizerqueelefoiumheróinaquelanoiteemBoston;vaifalar
comempolgaçãocomoseelenãotivessefugido.Seidisso.Masnãomeimporto.Deixe-o ficar com a preciosa Route 9. Ainda vai acabar numa tempestade debalas,comocantamosraps.Stéphanie veiome visitar também. Sentou-se na ponta da cama, embora eu
nãoquisessequeelasesentasse.Elaestavachorando;podiaveravermelhidãoaoredordosolhos.—NãoqueremfazerofuneraldoBiggie—eladisse.—Achamqueviraria
umpretextoparaviolêncianoSite.Depoisdetudooquefizeramcomasarmasdeles!Elacomeçouachorar.Sentiquedeveriaabraçá-laoualgoassim,masnãofiz.
TalvezelaquisesseajudaroSitenoinício,masfoiseduzidapeloBiggieepeloestilodevidagângster,e tudofoiporáguaabaixo.Elapode tersidodaONU,masnãopassavadeumagarota,vinteecincoanosnomáximo.Algumaspessoasgostamdisso,apelamparaopoderdasarmas,mesmosedisseremquequeremapenassalvaropovo.—Porque eles fizeramaquilo?—euperguntei para ela.—Minustah.Por
queelesomatarameosoutros?—Achamqueestãoajudando—elafalou.—Achamqueestãoajudandoa
manteroSitelivredocrime.—Sequiserem fazer isso,deveriampagaralgumasescolas, criar empregos.
Assimaspessoasnãoiamquererdroga.Merda,eupensei.PareceoBiggiefalando.—Concordo—Stéphanie disse.—Falo pra eles,mas nãome ouvem.Às
vezes,quandovocêtemumaarmanamão,elacomeçaapensarporvocê.Sabiadoqueelaestavafalando.Àsvezes,quandoeuseguravaumaarma,era
comoseaarmaquisessemataraspessoas,nãoeu.Eu,nunca.Oqueeuacabeidefalarfoiumamentira.Desculpe.Nãoseiporqueeuminto.
Vocêsabeperfeitamentebemqueeuqueriamataraspessoasnomeu tempo,equeeufizissotambém.Stéphanie não ficou muito tempo. Não tínhamos muito para conversar.
Pergunteioqueelafariacomobebê.DissequesabiadoBiggiequeelaestavaansent,edavaparavertambémpelamaneiraqueelapousavaamãonabarriga,mesmoqueelaaindanãoaparecesse.—VouvoltarparaaFrança—eladisse.—ParaLille.Nãoqueromeubebê
crescendoaqui.Disseaelaqueeraumaboa ideia.Quenão iriaquerermeu filhocrescendo
aquitambémseeutivesseum.Elasorriu.Logodepois,foiembora.Eladissequemevisitariadenovo.Nãovisitou.Esperoqueelasaiaviva.Esperoqueoterremotonãotenhaenterradoelaeo
bebê de Biggie. Como já estou fazendo confissões, talvez eu pudesse dizer avocêquepartedemimnãoseimportariaseobebêdelenuncanascesse.EntendoBiggieenãooodeio,masissonãosignificaqueoperdoo.Finalmente,minhamanmanveiomevisitar.Elasesentounacadeiradeplásticoao ladodacamaechorou.Emseguida,
meperguntouoqueaconteceu.Conteiaelatudooquedisseavocê—disse-lheahistóriainteira.AúnicapartequedeixeideforafoiquetinhasidoDreadquemordenouamortedopapa,porqueeunãoacheiqueelaaguentariasaberdisso.Nofim, ela não chorava mais, mas acho que era apenas porque não tinha maislágrimasprachorar.Então,elaselevantoudacadeiraesecurvousobremim.— É minha culpa — ela falou. — Amaldiçoei você quando se juntou ao
Biggieeàganguedele,eaculpaétodaminha.—Não,nãoé,manman—eufalei.—Foiminha.Eudeveriaterouvidovocê.Elasoluçava.—Não, foi aomeouvirquevocêcaiunesta roubada—ela falou.—Você
nuncadeveriatermeouvido.—Porque,manman?Elavoltouasesentaredesviouorostodemimparaaparede.Daí,tipo,veio
umcliquenaminhacabeça,eeuconseguiaverporquenadoremseusolhos.Conseguiveroqueelaestavaprestesamefalaredesejeipoderpararotempo,
comoeleparouquandoeuestavaaoladodomar,olhandoparaMarguerite,ouparaagarotaquepareciaMarguerite.Masotempocontinuou;conseguiouvi-loserfatiadoempedaçospelorelógionaparede.Nãoconseguifazê-loparar.Manmanesfregouosolhoseolhouparaocantodasala.Aquelamoscaestava
lá, zunindo e zunindo contra a janela, sem perceber que estava tentandoatravessarovidroeficoupresa.Mesenticomoaquelamosca.Não.Eu desejei ser aquelamosca; aomenos eumorreria rápido, e a prisão
estaria acabada. Lembro que o sol brilhava contra a janela, fazendo-a parecerumapinturadeumachama,umaaberturaparaoinferno.—Marguerite—manmancomeçou.—Não—eufalei.—Não.Nãoqueriaqueelamedissesse.Sabiaoqueela iadizerenãoqueriaouvir.
Tenteibotarasmãosnosouvidos,masmanmannãoparouepuxoumeusbraços.—Elesmataramelaaquelanoite—minhamanmandisse.—Marguerite.Eu
mentisobreisso.Quandosaíparaaruaatrásdeles,tinhamidoembora…Nãoavideprimeira, estava tão escuro.Quandovi…algoquebrounaminhamente.Disseavocêqueelaestavavivaporquequeriaquevocêtivesseesperança.Algoqueeunãotinhamais,masqueriaquevocêtivesse.Eu já sabia daquilo,mas, quandomanman falou, algo se rompeu dentro de
mimeeupareidesereu,pareideserumapessoa.Tenteirespirar,maspareciaqueoardasalatinhaidoembora,eeuestavanum
vazio.Bom,eupensei,aomenoseuvoumorrer.Masnãomorri.Meucoraçãocontinuouabaternumritmodescompassadonopeito,continuou
afazeraquelamúsicaestúpida.Aomenos,comumsomdolorido,oarfluiudevoltaparaosmeuspulmões.—Mas…agarota…elanãoatirouemmim,lápertodomar.—Outra pessoa—manman falou.—Outra pessoa que não quis tematar.
Existempessoasassim,vocêsabe…mesmonoSite.
Euencareimanman.Elapartiumeucoração,epartedemimqueriaquebrarodela.Partedemimquisfalarparaela:—Manman,sabiaquefoiDreadquemmatouopapa?Sabiaquequandovocê
mudouparaSolèy19,mudouparaacasadoassassinodoseumaridoechamoudesua?Maseunãodisse.Nãoqueriamachucá-la,mesmonaquelemomento.Deixe
elapensarqueopapamorreuporquevivíamosnumaterradeninguém,porqueAristide e seus companheiros viramnele umaperturbação.Deixe ela acreditarqueomundoeraumlugarondecoisasruinsaleatóriasaconteciam,nãoumlugarondeaspessoas—osgarotos—faziamcoisasterríveissóporquepodiam.Manman botouamãonobolsoe, antesqueela tirasse, eu sabiaoque teria
nela.Sabiaoque ela estava tentandomedar e sabiaque, se eupegasse, seriacomoseestivesseabsolvendomanman.Então,quandoelatentoumeentregarametadedocolardeMarguerite,eufecheimeupunhocontraele,nãoquispegá-lo,ecruzeimeusbraçosnopeito.— Você deveria pegá-lo—manman disse.— Deveria juntar as peças do
coração.—Não, não posso— eu falei.—Elamorreu.Você pegou o colar… fique
comele.—Sintomuito—manmanfalou.—Sintomuitomesmo.Fecheiosolhos.—Váembora,porfavor—eupedi.Algumtempodepoisdisso,tudodesmoronou.
OUTRORA
QuandoToussaint chegou, suaprimeira cela tinhauma janela e por elaconseguia ver o rio Dolbys e a estrada para Besançon. Podia avistar asmontanhascomneve,algoquenuncaviranoHaiti.Eraumavisãoqueenchiaseupeitodemedo—aquiloeospenhascoseprecipíciosdaquelaterraesquecidanaregiãoalpinadaFrança.No início, apesar de ser prisioneiro, Toussaint foi tratado com respeito.
Recebeu papel e uma pena; de fato, foi encorajado a escrever. Devia tersuspeitadodaquilo,masreteveaconvicçãoingênuadequelheconcederiamumjulgamento.Conversoucomodiretordaprisão,umhomemcivilizado,erecebeudelelivrosepeçasparaler,bemcomojornaisdomundoláfora.Certavez,essehomem,Bresse, lhe trouxeumacertapeçadeAlphonsedeLamartinequeforapublicada e encenada em Paris. Dramatizava a vida de Toussaint, contando ahistória da luta em monólogos rimados sem preocupação com a verdade oumesmocomaverossimilhança.Eleleuapeça,estremecendodiantedasuaaltajanela,comsurpresaeespanto.
Nem uma palavra sequer era verdade.Nela, ele era um deus grego, feroz emsemblanteenabatalha,uma representaçãodavingança furiosa,determinadoaassassinarosescravizadores.Era incultoe tinhaumúnicoobjetivo.Nãohaviamenção à sua supervisão da agricultura, esforços para garantir que seu povoestivesse sempre alimentado, sua aquisição repentina das capacidades de ler,escrever e fazer mapas. Uma das ficções mais bizarras da peça era que eleenterraraumafortunanasmontanhasdointerior,umbaúdeouro,prataejoiasroubadas dos senhores das fazendas, quando Toussaint se esforçava paradevolver aos escravizadores suas posses. Considerou escrever ao dramaturgoparainformá-losobreseuserros,masnãoofez.Em vez disso, escreveu diversas cartas a Bonaparte, levantando alegações
sobre seu caso, argumentando que tudo o que fizera fora pelo Haiti, que suaconstituição tinha o intuito de garantir sua segurança, que ele e o paíspermaneciamsúditosfiéisdaFrança,masnãoescravos.Essascartasnãoforamrespondidas.Após dois meses de prisão, recebeu a visita do ajudante de ordens de
Bonaparte, umhomemchamadoCafarelli.Quandoo enviado se apresentou, aesperançafloresceunopeitodeToussaintcomoumaflorrara.—Toussaintl’Ouverture—disseohomem—,venhoemnomedeBonaparte
comumaoferta.Toussaintsorriu,algoquenãofaziahaviatempos.Talvezelefossefinalmente
verseufilhodenovo.—Dizei-me—elefalou.—Oimperadorenviou-meatévóspara…—Imperador?—perguntouToussaint,semacreditar.Cafarelli ficou levementeenrubescido.Erapequenoemestatura,comsuíças
finasnolugardeumbigode.Pareciaumpoucocomumratoquecrescerademaiscom restos de comidade cárcere, vestido com jaqueta e gibão, e viera prestarumavisitaaoprisioneiromaisfamosodali.—O…hum…ocônsuléchamadoassimagora,monsieurL’Ouverture.Toussaintriu.Osnegroshaviamselibertadodepoisqueosfilósofosfranceses
defenderamaideiadequetodososhomenstinhamdireitoàliberdade,depoisosfrancesesserebelaramcontraorei.Agoraosfrancesessubstituíramumreiporumimperador.—Perdão—disse,reprimindoagargalhada.—Interrompivossaoferta.—Sim.Oimperadorenviou-meatévós…—Jádisseestaparte.— Sim. Se revelardes pra mim o local do tesouro escondido no Haiti, ele
devolverávossaliberdadeeperdoarávossoscrimes.—Meuscrimes?—VósvosrebelastescontraaFrança.
— Não — disse Toussaint. — Eu me rebelei contra a escravidão. NuncacontraaFrança.Oajudantedeordensdeudeombros.—NegaisquedeclarouumaConstituiçãosempermissão?Quesenomeastes
governador-geralsemratificaçãodocôn…doimperador?—Não,masfoiapenasumaConstituição,emeumandatoerasomentedetrês
anos,eosmandatosproibiamexpressamenteminhareeleição.Deveríeistervistoo que os haitianos queriamme dar. Teriamme tornado rei se eu não tivesseresistido. Dei a eles liberdade, dei a eles paz, e como paga eles me queriamditador. Seu imperador deveriame agradecer pelaminha tolerância e força decaráter naminha insistência pela democracia emeu desejo demanter elos decomércioeamizadecomaFrança.EumesmofizdoHaitiumanexo!Poderiaterrompidotodososlaçossequisesse.—NegaisqueenriquecestesàcustadaFrança?— Claro que nego — Toussaint respondeu. — Não existe tesouro. Estais
desinformado.—Eleapontouparaaspáginasdapeçacaluniadora.—Bonapartetemidomuitoaoteatro?—Émuitoocupadoparatanto—falouCafarelli.Toussaintrevirouosolhos.Ohomemnãotinhasensodehumor.Aindaassim,
havia baseado seu julgamento de Brunet em impressões efêmeras, e aquelehomemoenganoucompletamente.—Fui instruídoaaveriguara localizaçãodotesouro—continuouCafarelli.
—Informai-nosesereislibertado.Toussaintafundouorostonasmãos.—Morrereiaqui,então—eledisseemvozbaixa.—Nãohátesouro.Cafarellipousouamãonoombrodooutro,nãoeraindiferenteporcompleto.—Preciseisapenasentregá-loamim—elefalou.Assim,Toussaintchorou.Nãohavia tesouro.Tudooque se tomarados escravizadores foi distribuído
entreseushomens,usadoparamelhorarasfundaçõesdopaís,prepará-loparaa
liberdade.Mas um dramaturgo disse que ele enterrara riquezas e, acreditandonisso, Bonaparte desejava sequestrá-las. Toussaint lembrou-se de sua diversãoamargadeantes,pelasinvençõesdohomemqueescreverasuavidaparaopalco.Naquele,eleadorariaestrangulá-lo.Diasdepois,Cafarellivoltou.—Continuaisobstinado?—eleperguntou.—Continuoamanterquenãotenhonenhumtesouroenterrado,seéissoque
quereisdizer—Toussaintrespondeu.—Perguntaiaosmeushomens,seassimdesejardes.—Ah,pretendemosfazê-lo—Cafarellicomentou.Toussaint amaldiçoou sua língua solta. Ele não queria que seus homens
sofressemporaquelaloucura.— Fui instruído a obter de vós uma resposta por escrito a Bonaparte —
Cafarellianunciou—,jurandonãopossuirdesnenhumtesouro.Dizeiaoguardaquandoterminardeseentregareivossacartaaoimperador.Toussaintacenoucomamão,irritado.—Muitobem—elefalou.
GeneraleImperador,
Permitis que vos diga, Imperador, com todo respeito e submissão que vosdevo, que o governo francês está completamente enganado com relação aToussaintl’Ouverture,umdosvossosmaiszelososecorajososservosnoHaiti.TudooquefizfoiemnomedosnegroseemnomedoHaiti,nãoparaofenderaFrançaouvossaelevadapessoa.Defato,quandoosinglesesforamfinalmenteexpulsos e nossa Constituição declarada, tornei o Haiti um súdito e umadependência da França, algo que não precisaria ter feito! Sacrifiquei meusangueeumapartedaquiloquepossuíaparaserviraomeupaíse,apesardosmeusesforços,todaafainaresultouemvão.
Nãopossuotesouro.Nãotenhoriquezas,nemplacasdeprataenterradasno
solo doHaiti. Tenho apenasminha liberdade, que conquistei por ato domeuestimadoex-senhor,BayoudeLibertas,equeoEstadoFrancêsconfirmoucomsatisfação.Trabalheimuitoparaconseguirahonraeaglóriadogovernoeparaobter a estima dosmeus camaradas cidadãos, e agora como recompensa soucoroadocomespinhoseamaisacentuadaingratidão.
Primeiro, Imperador, é lastimável para mim que eu não o conheçapessoalmente. Se vos familiarizastes tanto com a minha pessoa enquanto euestava no Haiti, deveríeis ter me feito mais justiça; saberíeis então que meucoração é bom. Não sou versado, sou um ignorante; até meus cinquenta equatro anos neste mundo eu não sabia ler. Mas meu pai e meus amigos memostraram o caminho da virtude e da honra, e tenho firme consciência nestesentido.Não lidereimeushomensporumaglóriapessoal,maspelaglóriadaliberdade,quefoiumaideiaqueaprendemosdaFrançaedesuaRevolução.Seeu não tivesse me devotado ao Haiti, não deveria ter ficado lá — esta é averdade!Souumdesgraçado,miserável,umavítimadetodososmeuspréstimos.
Peço-vosminha liberdade para que eu possa trabalhar, para que eu possaganharmeusustentoeajudarminhainfelizfamília.Apeloavossagrandeza,avossa genialidade para pronunciar um julgamento justo sobreo meu destino.Deixaivossocoraçãoenterneceresertocadopelaminhasituaçãoeporminhasdesventuras.
Saúdoavóscomprofundorespeito,
TOUSSAINTL’OUVERTURE
Além da missiva, enviou por Cafarelli um relato de sua vida, que compôsrapidamentenaesperançadequefariaBonaparteconsiderá-lodemaneiramaisfavorável. Prefaciou-o com um pedido de um julgamento justo e expressou aesperançadequeaquelerelatopoderiacomporosautos,poderiaserentregueao
juiz e ao júri como testemunho de sua honra. Omitiu a cerimônia em BoisCaiman, que ele temia poder fazer com que ele parecesse selvagem edesinformado. Disse, em vez disso, que sua capacidade de ler, embora vindatarde na vida, foi adquirida da forma convencional. Escreveu sobre ummercenário francês a quem ele pagou para que lhe fosse ensinado, sorriuenquanto escrevia pela felicidade de sua invenção, pois as palavras eramumaespéciede arma, e assimele incumbiu estemercenário exatamentedoque elenormalmente venderia. Ficou tão envolvido com tal ideia que quase chegou aacreditar nela, e poderia até mesmo ver em sua mente as muitas horas quegastaracomodardanário.EntregouosdocumentosaoscuidadosdeCafarelli,entãoesperou.Eesperou.Por semanas, nenhuma resposta chegou. Meses até. Então, sem aviso, as
coisas mudaram. O diretor da prisão foi despedido, e um homem chamadoColomier assumiu o cargo. Este homem tirou de Toussaint seus materiais deescrita,aescrivaninha,acamae,finalmente,acela.Colomierlevoudeleavistadasmontanhas, confinando-o a uma cela subterrânea, pequena, sem nenhumajanela.Toussaintsentiu-sedegenerarnumamasmorra,asparedesviscosaspelosvaporesepelomofo.De repente, estava na escuridão. A comida foi interrompida, então a água.
Lambiaaumidadedasfriasmuralhasdepedra,massabiaquenãoaguentariapormuitosdias.Naquelaescuridão,nãoconseguiamaisdistinguirsonhoderealidade,etentou
contar sua história a um público invisível, um público que nunca respondia,numatentativadepreservarasanidade.Entendeu o que acontecia ali — ou pensou que entendia, pois havia uma
possibilidade de que ele tivesse enlouquecido, que a paranoia o tivessearrebatado.Aindaassim…Não,eletinhacertezadequehaviaentendido.Esteeraojulgamento,aquele
eraoseujulgamento.Haviasidocondenadoàmorte.Aumamortelenta.Desdequeodiretordaprisãoforadispensado,elenãopoderiaserconsiderado
responsável. Este Colomier, que o substituíra, era jovem e inexperiente; diria,semdúvida,queToussaintoatacououofereceuresistênciadealgumaforma,eem legítima defesa confinou-o na escuridão. Essa seria a história.Amorte deToussaintseriamarcadanosregistrosdocárcerecomocausadaporumadoençaqualquer,nãoporinaniçãodeliberada.Sim,Toussaintsabiacomoessascoisasfuncionavam.Erauminconveniente,
assimToussaint foi entregue àmorte. Seu testemunhoperante um tribunal erainconcebível, pois diria apenas que não fez nada de errado, e não poderiamcorreresse risco;nenhumaofensaàhonra francesaseria tolerada.Semorressenaprisão,contudo,poderiamcontinuarapintá-locomoumcriminoso,inventarcalúnias sobre ele, insistir no despropósito do tesouro, como se ele fosse umpirata.E,sub-reptícios,trariamaescravidãodevoltaaoHaitiedesfariamtodasassuasconquistas.Toussaintjazianaescuridão.Não sabia quanto tempo estava naquele lugar, nemcomomedir emdias ou
semanas ou horas. Sabia de seu tempo de exército que um homem conseguiadurar um pouco mais de três dias sem água, três semanas sem comida.Continuavaasenutrircomaáguadasparedes,massemcomidaacessívellogoperderiaasforçasparafazê-lo.Pareciatambém,parasimesmo,quenãoeramaisele.Num instante, estavana celadaprisão, e, nooutro, estava empénuma rua
com edifícios vacilantes feitos de um material estranho, cinzento, e metal, ehavia sinais em todos os lugares que ele não reconhecia. Viu outra daquelascarruagensdemetalcomrodasenquantoelaexplodianumaboladefogo,comonoarsenalemGuildive,earmaseramdisparadasdetodososcantos—masnãoera Guildive. Viu um jovem com vestes estranhas e soldados em uniformespretos,carregandoarmasbrilhantesquepareciamsuavesediferentes.
Nummomento, estava flutuando sobre um país arruinado, olhando para asconstruções que tinham se tornado ruínas, e circulando com ele no ar haviagrandesmáquinasvoadorascompásgirandonotopodelas.Emoutromomento,eraumhomemcomcabelopeculiarquecaíaparabaixo
do pescoço em cordas grossas, e estava em pé numa rua enlameada, umamáquina voadora estranha no alto, quando homens mascarados de capacetedispararamcontraeleeatravésdele,adorera inacreditável.Estavamorrendo,mas rastejava na direção de um garoto que estava caído na lama, e sabia queprecisavapararoveículoqueestavaprestesaesmagaromenino.Emoutromomento, ainda, estava num lugar apenas umpouco diferente da
suacela,ealihaviaumpesoqueopressionava,eeleconseguiasentirocheirodosangueedapodridão.Eraumgaroto,umjovenzinho,quenuncaveriaaluznovamente.Entendeuque,dealgumaforma,emalgumsentido,eraaquelegarotoeaquele
homemaomesmotempo.ApósoincidenteemBoisCaiman,ToussaintfalouparaBoukmandascoisas
impossíveisqueviueperguntouseestavaenlouquecendo.Boukmanrespondeu:—Podemosserpossuídospeloslwadosnossosancestrais,osespíritosGede,
então quem consegue afirmar que não podemos ser possuídos pelos lwa denossosdescendentes?Se fosse verdade, pensou Toussaint, então ele realmente não havia
conquistado nada, pois seu descendente também estava preso na escuridão,também estava morrendo, sua carne também estava aos poucos sendoenfraquecidapelaprivação.Haviaarriscadosuavidaparadaraopovoliberdade,masopovoaindanãoestavalivre.Questionou até se os mortos seriam reunidos, como chegou a acreditar na
embarcaçãoqueo levoudoHaiti,ouse tudose romperiaenuncamais ficariainteiro. Tentou imaginar o rosto do pai, de Boukman. Não conseguiu. Haviaapenasumindíciodelembrança,umamemóriatãoimpossíveldeagarrarquantoum reflexo em águas agitadas. Tudo o que restara deles foram poucas
características,umahistóriaouduas, lembrouqueelesdisseramalgoestranho.Não tinha sequer certeza se essas memórias estariam de acordo com aquelasoutrasquesabiaseremdele,ouse,nalembrança,estavadistorcendoosmortos,mudandosuaformacomoomarouaterrafazem,arrancandoseusossos.Estounaescuridão,numespaçopequeno,eminhamenteéumlugarpequeno
e escuro também, ele pensou. Estamos todos presos numa caverna, e essacaverna somos nós mesmos. A forma das paredes muda como a água; essabarreiraatrapalhaaentradadaquelepoucodeluzefaztudooquevemosúnicoparanós.OBoukmanqueToussaintviuelembrounãofoioBoukmanqueoutrapessoa
via, e por isso foi destruídonãouma,mas duas vezes: amorte nomundo e amorte na memória. Foi desmantelado e alterado por uma centena de mentesdiferentes,todaspercebendoomundodeformadiversa.Comoumapessoapoderiarenascersendotãosurradaedistorcidapormentes
distintas?Comoo assassinatopoderia ser desfeito?E como seriapossível queumdiaToussaintentrarianumacavernafriaembaixodomareBoukmanestariaesperandoporele,dizendonossa,háquantotempo?PensounotruquequeBoukmanrealizouemBoisCaiman,dozumbiquefoi
desenterradoeinterrogadosobreasexperiênciasnamorte.Toussaintsorriu.Nãoexistiam zumbis, apenas a trapaça teatral. Ninguém que era enterrado sereerguia,tossindonagredaondeforasepultado.Não, ele não morreria na escuridão e adentraria a escuridão também. Não
haveriareunião,enadaficariainteironovamente.NãohaveriaJuízoFinal—elesabiadaquiloantes—,masagoraviaquetambémnãohaveriaretorno.Apenasoêxodoexiste.Toussaint fechouosolhos,oupensouquefechou.Nãoconseguia tercerteza
naescuridãoseosolhosestavamabertosoufechados.Estava esgotado. Para ele, parecia fácil deslizar do lugar escuro para outra
realidade,equeamortenãodemorariaparaapanhá-lo,levá-loembora.Eleestavacerto.
*Eaindaassim…Eaindaassim…Eaindaassimpareciaqueamortenãoeraofim,apesardetudo.Toussaint foi surpreendido,poisdepoisdemorrer, àderivasobre seucorpo,
pairandonoardacela,olhavaparasimesmo,láembaixo.Nãohaviamaisdor,nemraiva.Quandoolhouparabaixo,viucomcalmaque
nunca fora capaz em vida, como ficara esquálido, como os franceses haviamtransformadoseurostonumamáscaramortuária,quasesemcarne,asbochechasfundas, sombras escuras sob os olhos. Viu os ossos contra a pele como seansiososparasair,selibertar.Emboraestivesseescuro,conseguiaverasparedesdacela.Olíquengrudado
naparede,numesverdeadodoentio.Tinha riscos,algumasdas linhasparalelasraspadas feitas pelas unhas, algumas palavras ilegíveis, feitas por iletrados,talvez,oupessoascomunsquenãoconseguiamvernoescuro.Estranhofoique,apesardeafúriaeodesapontamentoterem-nodeixadojunto
com as sensações de frio e fome, embora ele parecesse ter deixado essassensações da carne para trás, sentiu-se atraído por aquele resto de corpo láembaixo.Sentiuquegostariadedescernovamente,mergulharnele,confortá-lo.Pareciaalgotristeesolitário,umrecipientevazioqueeledeviapreencher.Eleseesforçouparaseguiradiante,masnadaaconteceu.Então, foi como se algo o agarrasse, alguma corrente ascendente como
aquelasdearquentequesuspendemospássarosnocéu,eele foipuxadoparacima.Seucorpodesapareceuláembaixo,eentãoeleestavadentrodoFortdeJoux,
olhando para a pedra de dentro, e por uma lasca de tempo impossível de tãopequenaelesoubequedeviaserpedra,paraentãorespirarefluirtãolentamentequeum séculopassounumabatidade coração.Daí, estavana luznovamente,cruzando as barras de ferro das celas, umgosto enferrujado na boca, antes deatravessarotetoelançar-separaoaltonadireçãodoaralpino.
Olhouparabaixo,ocasteloqueomantinha,agoratãopequeno,umninhodeáguiasempoleiradonasmontanhas.Abaixoestavaumvalequecomeçavacomouma garganta rochosa, descia através dos pinheiros e terminava como umapastagem verde e macia. A estrada até a prisão voltava e revolteava por ele.Sorriu,poiseraaqualidadeessencialdeumvalequeprecisava terumasaída,que precisava chegar ao fim e despejar-se em baixadas férteis. Um vale, elerefletiu,eraalgoparaseescaparporsuaexatadefinição.Eradifícilencontrarocaminhoparasairdeumacaverna.Masumvale,ah,umvale.Poderiasairdeumvale,sairdolugarescuro,longedasalturasterrivelmenteagudasdasmontanhas,eparadentrodomundo.Enquanto Toussaint flutuava, um raio de luz começou a cair. Gotículas
passavam através dele, tornavam-se, por breves instantes, parte dele. Sentiu ofrescor e a imortalidade da água, e, quando viu os filetes da queda d’águatamborilando do penhasco para o seu leste, entendeu que toda a água era amesma,nenhumagotaeradiferentedaoutra.Nãohaviacorpo,entãoelenãosentiudefatojúbilo—eleeraojúbilo,como
eraáguaepedra.Eraoareoarera livreeaquiloera júbilo.Conseguiu,comumamodulaçãodopensamento,flutuarparabaixo,sobreaprisão,nadireçãodabaixada gramada. Estava sobre os pássaros; um corvo circulou, grasnando,embaixo dele. O sol estava alto e brilhante no céu; as árvores e a gramaansiavamporele.Toussaintentendeuqueestavamorto.Deverdade.Contudo,entendeutambém
quenãopoderiammaisdetê-lo;nãopoderiammantê-lonaquelelugarondenãohavialuz.Estavafinalecompletamentelivre.Não…Não…Não,poisentãofoipuxadonovamente.Nãoestavamaisvoando,massendo
carregadoporalgoinvisível,aindaquepoderoso.Levantou,levantouerápido.Ovaleficoucadavezmenor,atéquenãoestavanumvale,masnumafendaúnicana pedra, cheia de musgo. Então, estava numa brancura vasta, como fumaça
espessa.Ergueu-se,avançouporeleatéumcéuazul-claro,easnuvensqueelecruzou
eramum tapete branco e grande embaixo dele, estendendo-se até o horizonte,ondeconseguiaverasestrelas.Estrelas—duranteodia!Comrapidez,asnuvenscomeçaramarolarembaixodele;osolacimagirou
pelo céu.Não havia uma sensação precisa de velocidade; não tinha pele parasentirapressãodoar,nemnariz,tampoucogargantaparasentiroimpulsorápidodo vento enquanto se movia, mas sabia que seguia muito rápido, bem comosabiaqueviajavaaoredordomundo.Estouindoparacasa,elepensou.Rompeu as nuvens novamente e viu a ilha verde estendida embaixo dele,
vívidacontraoazuldomar.Eracrepúsculo—viuosolsepondosobreaáguaaoeste,viuasluzesbrilhandodaterra,tantasluzes.Toussaint desceu cada vez mais maravilhado, observando o país estranho
sobre o qual estava pairando, vendo as cidades esparramadas que engoliram afloresta, grandes prédios que substituíram as fazendas.Umamáquina colossalcomasasasdeumpássarovoavaabaixodelecomumrugido, fazendo-ogirarnas pontas de seus turbilhões. Ela passou caindo por ele – ou talvez tenhapassadoatravésdele.As cidades eram muito grandes; era impossível. Tantas pessoas não
conseguiriam viver numa cidade! Ficariam loucas; era uma espécie de prisão.Milhares emilhares de luzes reluziam na escuridão densa e, quando aceleroupeloar,viuquecadaluznãoeraumacasa,comoelepensara,masapenasumadasmuitasjanelasdecadaedifício.Asluzesqueimavamemtodososlugares;aspessoas no Haiti embaixo dele pareciam incapazes de aguentar a escuridão.Mesmoamáquinavoadora,inclinando-seaoaproximar-sedosolo,piscavacomluzes vermelhas e brancas. Entre as cidades, mesmo, filamentos de luzestendidos,comoseasprópriascidadesprecisassemdeligação,precisassemsetocar,comoaspessoas,entãoespalhavamfiosdecompromissobrilhante,comosetivessemsetornadoelaspróprias,pelahabitaçãodetantaspessoas,emseres
vivos.Tudo isso ele percebeu numa batida de coração. Em seguida, chegou mais
perto,eviuqueeraumpaísaospedaços.Pareciatãobonitodecima,cintilanteeponteado de luz, mas agora ele via que a maioria dos prédios estavadesmoronado ou desmoronando, e tudo era ruína. Árvores e paredes estavamcaídas no chão, máquinas voadoras circulavam como se fascinadas peladestruição.Oqueaconteceu?,elepensou.Oquê?Quandoseaproximoudotopodasconstruções,aruínaficavaaindamaisclara
— conseguia ver onde as pessoas tinham erigido vilas de tendas entre osescombros da cidade. Pela localização na ilha, conseguia dizer que era PortoPríncipe,masnãoeraaqueeleconhecia.Esticava-se,continhamultidões—eestavadestruída.Eaindaassim…Eaindaassim…Eaindaassim,acelerandopeloar,Toussaintviunegrosemtodososlugares,
caminhandopelasruas,conversando,sentadosemgrupoemtornodefogueiras.Viuapenasumpunhadodebrancos,eentendeuqueaquelagrandecidade—aimensidão de luzes— era uma cidade de negros, e ele enxergou que naquelefuturobrilhanteseupovoeralivre.Um telhado ergueu-se rapidamente para encontrá-lo. Pertencia a um grande
prédio quadrado com milhares de janelas, muitas das quais se estilhaçaramquandooprédioveioabaixo,comoseestivesseexaustodemaisparasemanterdepé.Tentouamortecersuaqueda;asuperfícierígidadotelhadovinhacadavezmaisrápido,rápido,rápidoeentão…Então ele estava dentro do material denso — não era pedra, pois ele não
conseguia senti-la — e havia metal retorcido e vidro. Estava dentro dessepesadeloapenaspoucoantesdeeleaterrissarcomumimpactoesmagador.Esperou,masnadamudou.Suajornadaterminara;seuêxodoestavanofim.
Haviaretornado.Masparaonde?Estavanumlugarpequeno,elesentiu,algocomosuacelanaprisãofrancesa.Tinha consciência de algo choramingando no escuro, e não tinha certeza se
nãoeraelemesmo.Estavadentrodoprédioarruinado,sabiadisso.Maseratudooquesabia.Estendeuamãodiantedorosto.Nãoconseguiavernada.Ficousurpresopela
altura e peso do braço, pela cumplicidade familiar de músculos e tendões ejuntasqueerguiamamãodiantedele.Correualínguadentrodaboca,sentiuadureza estranha do dente enraizado com firmeza na gengiva, aquele que acápsuladaarmaarrancara.Meudentecresceudenovo?Abriuabocaparagritar,efoiquandoadoroatingiu:asensaçãoeradeum
tijoloesmagandoaperna,deumincêndionobraço.Testouosdedosesentiuqueo material, muito parecido com pedra, o aprisionara. Estava num corponovamente,emboranãofosseoseu,aparentemente.Eraprisioneirodenovo.Estava soterrado numa ruína impenetrável, com algo pesado sobre a perna.
Nãosabiaoquehaviaacontecidocomaquelemundo,maspodiaverquenuncaseriaomesmo.Nãoestavanumvale,percebeucomhorror;nuncatinhaestadoemumvale.Estavanumacavernaenãohaviaescapatória.
SEMPRE
Estamosnaescuridão.Estamosnaescuridão,sempre.Entendemos o que Boukman disse em Bois Caiman; entendemos pela
primeiravez.Atrásdamontanhaháoutramontanha;atrásdofogo,outrofogo;atrásdetudotemalgomais,outramassa,enãocorrespondeaoscontornosdestemundo;étudooqueestáaquinomundo,masémuitomaistambém.Temosumaboca—podemossenti-lanorosto,umaaberturaquepodedeixar
o espírito vazar—,mas, quando a usamos, quando falamos, não há ninguémpara ouvir. As vozes que vêm até nós, à deriva através da escuridão além denossaprisão,poderiamtambémserasvozesdosmortos.Bemalémdenossasmuralhas, bemalémdas fronteirasquenos cercam,há
pessoas que querem ajudar.Há sempre pessoas que querem ajudar,mas estãolongedemais,esomosmuitosilenciosos.Noentanto, temoscontroledonossocorpo, podemos animar nossos membros para tocar as fronteiras da nossarealidade,nãotemosforçapararompernossarealidade,somosincapazesdesairparaaluz,ondeossenhoresvivem.Somosumescravo.Somos um escravo deste espaço, da inevitável degradação do que está
aprisionado. Podemos nos alimentar, mas não há comida; podemos trabalharcomnossasmãosemente,masnãohánadaparafazer;temosolhos,masnãohánadaparaver.Nãoháfuturo,nempassado.Estamosnaescuridão.Somosum.
AGORA
Tenhoumaideia.Nãohánadamaisqueeupossafazer,entãoestáéminhaúnicaideia.Éaúltimacoisaafazer.Lembro como manman dizia que, no passado, em vez de oferecer doces,
costumavammatarduasgalinhasparaosMarassaedavamsangueaoslwa,eraatradição.Possosentirosanguedomeubraço,grossoemeioquepingando.Achoquevaletentar.NãoseicomofazerovevedosMarassa.Mesmoseeusoubesse,estáescuro
demais e não tenho bosta nenhuma para escrever.Mas colocomeus dedos naferidaeenguloumgritoquequersair.Pegoumpoucodesangueeesfregonosescombrosdiantedemim.Minha voz é rouca e seca; é como um dente de coroa numa bicicleta sem
graxa.Mascantoomelhorqueposso:
MarassaSimbi,Mwenengagedanpays-a,MarassaGuinin,MarassalaCôte,Mwenengagedanpays-a!
Cantosemparar,mesmodepoisdeacharqueminhavozvaisumir,serecusaramover-semais,comocoroasdebicicletafazemàsvezes.Nãopara.Masnadaacontecetambém.Algumtempopassa,econtinuaanãoacontecernada.Perceboqueestouprontoagora,quetodasasopçõesforamusadas.Esperoo
fim — ou esperamos, devo dizer. Parece que há outra pessoa, alguém maisvelho,masalguémqueeuconheço.Alguémquefui,ouquefoieu.Alguémdos
meus sonhos. Sei que não faz sentido,mas estoumorrendo; não preciso fazersentido.Teconteiminhahistóriaagora,entãotalvezvocêpossamedeixarempaz.Ficome perguntando se talvez eu devesse ter pegado ametade do colar de
manman e juntado com a minha. Pergunto se devia tê-la perdoado. Não, émentira.Seiqueeudeviaterperdoado.Éminhamanman,eeuamandeiemboracheiadevergonhaeculpa.Portudooquesei,elaestámortaagora,enuncamaisvoupoderpedirdesculpas.Fechomeus olhos, tento imaginar o rosto daminhamanman.Não acontece
nada. Consigo lembrar de uma sobrancelha, um certo sorriso.Mas a imagemdela é comouma tela deTVcomuma antena louca.Nãoperdi apenas ela naescuridão, mas também perdi a memória dela. Está totalmente destruída; nãosobrounadapramimalémdeumasobrancelhaeumsorriso,algumascoisasqueeladisse,amemóriadocalordoseuabraço.Elasefoi,enuncavoufalarcomeladenovo,nemmesmonaminhamente,
porqueminhamenteéumlugarescuroeasimagensseperdemnela,distorcidas.Digoamimmesmo,repetidamente,nuncavouvê-ladenovo.Masnãocoma
minhaboca,porqueminhabocaestásecademais,comminhamenteapenas.Começoachorar.Mepergunto,seeumorrer,eelaestivermorta,vamosnosverdenovo?Vou
verMargueritetambém,eopapa?Erespondopramimmesmo,não.Nãohánadadepoisdamorte.Euseiporquefiqueinaescuridãoessetempotodo,queéomaispróximoda
mortequevocêpodechegar,enãovimounnenhuma,semcontarquandoeueraToussaintevi todaaquelagentedele—Boukmane IsaaceBrandicourt.Masnãoerareal;eraminhamentequebrando,comoaminhaperna,esmagadapeloconcretoepelaescuridão.Mantenhomeusolhosfechados.Começoamorrer.Ouço um barulho de rasgo, de rachaduras, muito alto e próximo. Eu acho,
talvezsejaofim,talvezamortefinalmentetenhachegado.Ficofeliz.Meubraçoe minhas costas doem, minha boca de novo é grande como o mundo, e temalguémaquinaescuridãoqueeuprecisoconhecer,comquemeuprecisoserum.Peladordaminhabocasedenteeudigo:—Obrigado.Então, ouço anpil gritos e urros. Acho que alguns são em inglês, mas a
maioriaéemcrioulo.Aomenospareceavozdeumamulher.Seráqueéaterraembaixodomarparaondeosmortosvãoevouencontrarminhairmãlá?Mas, de repente, sinto o cheiro de algo que não émeu suor emeu sangue.
Possosentirocheirodefora,possosentirocheirodomar,bemlonge.Abromeusolhos.Vejopessoasolhandopramim,comsorrisosimensosnorosto.Temabocarra
afiada de algum tipo de escavadeira sobre mim; parece um dinossauro meolhandodecima,etenhomedodosdentesdela.Alguémrastejasobreoconcretonaminhadireção.Emseguida,mãospousam
sobremim,meerguem,tocandocomoseparatersorte.Algosedesprendedentrodemimeflutua.Aomesmotempo,algoseafunda
dentrodemim,oualguém,devodizer, porqueeu sinto…Sei lá,maseu sintoqueéapessoaqueestavanaescuridãocomigo,apessoaqueestavamorrendocomigonaescuridão.Bemnofundoseiquemé,masnãopossodizernempramimmesmo,porqueéinsano.Possoler,euacho.Etenhosentimentoseumaalmanopeito,epossofalare
rirechorarcomoumapessoareal,esoucapazdefazercoisasboas.Fizmerdanopassado,ah,fiz,seiquefiz,masvoutentartedeixarorgulhosa,manman.Me pergunto de novo semanman está viva. Gostaria de vê-la; gostaria de
dizer pra ela que sintomuito, que eu a perdoo. Porque eu entendo, realmenteentendo.Entendoporqueelafezoquefez,porqueelamedissequeMargueriteestava viva — foi para me poupar daquela dor. Sabia o que Margueritesignificavapramim,queelaerametadedemim.GostariadeaceitardemanmanametadedocolarqueelatiroudeMarguerite
parapoderusarasduasmetades,paraqueelapossaverqueagorasou inteiro,não mais metade de uma pessoa. Queria ser abraçado por ela, saber que elasemprevaime acompanhar, não importa o que eu fiz.Queria saber se elameperdoa,também,comoeuperdooela.Masnãovaiacontecer.Manmansefoi.Deveterido.Viojeitocomotudoficoudestruído.Algunsdoscarasdaequipederesgate,ousejaláquemforem,estãotentando
falarcomigo.Nãoconsigofalar,nãoainda.Seiqueaspessoasestãomovendoascoisasqueestãosobremim,entãoasmãosmeseguramporbaixodosovacoemepuxamparacima,eestounoombrodealguémesendosacolejadoenquantomecarregampelosescombros.Aindaestáescuroaqui,aindaestamosládentro,ouaomenosaindaestamosembaixodetodasascoisasquecaíramequebraram.—Espere—dizumdosblancsemfrancês.—Quê?—Temummontedegente lá.Estãodevigíliahádias.Senãoprepararmos
essas pessoas, vai haver uma revolta. Verão um garoto e pensarão que têmoutros.—Humm—murmuraaprimeiravoz.Sou deixado sobre os escombros, ainda no hospital, e vejo o homem que
estavamesegurandocomeçarasairparaaluz.Derepente,eucagonacalça.Nãoqueria,apenasaconteceu.Sintoalgoestalar
dentro de mim. Quero ir com ele, sabe. Não quero ser deixado para trás naescuridão.Começoagritarechorar.Meurostoestátodomolhado.Estoumuitoenvergonhado.Então,ocaradámeia-voltaevoltaatémim.Elesecurvapertodemimediz:—Retetrankil,p’tit,retetrankil.Talvezporqueeleestejafalandoparaeumeacalmaremcrioulo,talvezporque
eleestejasendogentilobastanteemusarminhalíngua,outalvezporqueeleseabaixoutãodevagar,deumjeitotãosolidário,seilá,masoimportanteéqueeuparo de gritar. Consigo balançar a cabeça concordando, tipo, o.k., você vai e
voltaaquipramim.—Bon—elediz.—Bon.Então,elerealmenteentrouna luz,emedeixouaqui.Queromuitosegui-lo.
Tem, tipo,umbrilhobrancoem tornodele, comoumborrãoem tornodo sol.Quandodeixao interioresai,écomoseeledesaparecesse,dissolve-sena luz.MefazpensarsobreMarguerite,ojeitoqueocabelodelacomfrisadosefundiacom a luz do sol, demodo que você não conseguia ver onde ela terminava eondeocontornoquentedosolcomeçava.Da brancura impressionante dentro da qual ele desapareceu, ouço o blanc
dizer:—Agentedesenterrouumgaroto.Eleenfatizouum.Ouçoalgumaspessoasfazeremsonsagudosdefelicidade,
mas anpil mais pessoas choram e gritam. Acho que muitas delas esperampessoasquenãosãogarotos—pessoasqueaindaestãoembaixodosescombros.— É um garoto, cerca de quinze anos. Vamos trazê-lo pra fora. Não
encontramosnenhumoutrosobrevivente.Maischoroagora.Quandooblancvoltaemepeganovamenteesegueadiante,vejoaspessoas
quecomeçaramacorrerparadentrodoprédio,aquelasqueapolíciaeosblancsnãoconseguiramsegurar.Algumasfestejamcomalegriaealgumaschoram.Vejohaitianos se agachando com a mão sobre a boca, lágrimas rolando nasbochechas.—Temmaisalguémvivolá?—umdelespergunta.—Ouviualguém?—Não—eurespondo.—Nãotemninguém.Mashavia.Haviamaisalguém,maselesoueuagora.Ohomemquemecarregaparaetomafôlego.Sóqueaindaestamosládentro.
Olhoemvolta,porquetudoéaçoretorcidoeconcretoestilhaçado,eperceboqueestamos na recepção do hospital quando vejo o vidro quebrado, as janelasfrontais,tudosobreochãoazulejado.Háanpilblancsaquitambém,decapacete
vermelho;pensoquetalvezsejambombeiros.Possoapenasverpeloburacoondeeramasportas,evejoqueacidadeinteiradesabou,quetemapenasruínaaquifora, apenas lixo. Quando olho em volta, vejo que flutuei mesmo sobre ohospital,queopaísrealmentefoidestruído,quetudooqueeuviéverdade.Sintoas lágrimasescorreremnomeu rosto.Manman, seráqueelanãopode
estar viva?Mas eu estou vivo. Estou vivo e sei que vou procurar por ela e,talvez,achá-la.Deixouminhamãoabertaeminhametadedocolarcainochão;nãoprecisomaisdeleprasercompleto,eentãolargo-onomeiodasoutrascoisasquebradas.Éestranho.Eufaçoissoeumaimagemvemàminhacabeça.Éomuralnarua
seguinte,aqueledonecrotério,dagarotasendoerguidaparaocéu,amãodeanjoembaixo dela. Apenas agora, o rosto da garota é o deMarguerite, a garota éMarguerite.Sintoocaloragudodaslágrimasnocantodosolhos,porqueéoqueeuquero:queroserlevado,embalado,abraçado.Umdosblancsdiz:—Vocêémuitosortudo,viu.Eeupenso,não,nãosou.Tudooqueimportapramimestámorto.Atéopaís
estámorto.Esses blancs, eles parecemmuito orgulhosos, então tento sorrir, porque sei
quanto eles amamajudar, como sempre estão ajudando, comonão conseguemapenas pensar nos seus próprios zafè e sair da ilha. Olhe onde a ajuda deleschega;olheabagunçaondeestamosmetidos…Masnão,eunãopossoodiá-los,porquetemumamulhernaminhafrente:ela
acendeumalanternanomeuolho,estáusandoumagarrafaparapingaráguanaminhaboca—temgostodetudooqueébomnomundo,mangas,bananas—eela está com uma camiseta na qual está escritaMédecins san Frontières. Amulhertemcabelosloiroseolhosazuis,pelinhosloirosnasorelhas.ÉamulherquepegouobebêdeMarguerite todos aqueles anos atrás.Ela está aquidesdeaquelaépoca,ouvoltou,seilá.Masnãoachoqueelamereconhece.Entendo,eunão a culpo, porque estou coberto de pó e sujeira; sou uma pessoa morta
desenterradae trazidaparaa luz.Então,sódigoaelaoquequeriadizer todosaquelesanos.Eudigo:—Seucabeloéincrível.Eudigo:—Suasorelhassãoacoisamaisbonitaqueeujávi.Elaolhapramim,tipo,queporraéessa?Entãoouçoaquelebarulho;éumbarulhoqueconheçotãobem,umavozque
conheçotãobem.Eempurroamulher,mesmoqueeuaame,mesmoqueeuametodo mundo aqui. De verdade, é como se meu coração inteiro fosse a bolabrilhantedoamornopeito,batendocomoosol,ummarteloqueconstróienãodestrói.Eentão…Eentão…Eentão,dealgumaforma,eumemovo,mancando,seguindoaquelavoz.Ela
deveterouvidoquandooblancdissequetinhamdesenterradoumgaroto;devetersidoumadaspessoasesperando,umadaspessoasemvigília.Tropeçopelovidroquebradoatravessandooburacoirregulare,finalmente,estouaoarlivre,eeleenchemeuspulmões,etemumcéuazulláemcima,eestamosnaluzagora,queimando nossos olhos, lágrimas correndo no nosso rosto, eu olho para aestradae………Meu fôlegoparanomeupeito,porque lá estáminhamanman, gritando e
gritando.Masnãosãogritosdedor,masdealegria.Então,elacorrenaminhadireçãoemeagarra,mejogaparacima,emeabraçaemeabraça.Eestáo.k.,estábom,estáo.k.metocar,porquenãosouMarguerite,nãosou
Tintin;tenhopelecobrindomeucorpo.Nãotenhomaisburacosemmim.Viviemorritantasvezesporestepaís,enãohánadaquepossameperfuraremeferir.Eeudigo:—Manman.Manman,euteamo.Eufiqueiatirandoeacerteioalvo,masnão
vouatirarmais.Eelafalavapalavrasotempotodotambém.Palavrastipo,amor,meugaroto,
amor,palavrasdefúria,palavrasdealegria,amor,amor,amor.Eu acho, sim, eu fui um zumbi o tempo todo. Não devia ter medo de ser
zumbi,porque…Sim,eumorri,váriaseváriasvezes.Masagoraeurenasci.Sim…Sim…Sim…Euestavanaescuridão,masagoraestounaluz.
NOTADOAUTOR
Esteéumlivrodeficção.Emboraeutenhafeitopesquisasparaolivro,souromancista, não um especialista em Haiti, e quaisquer erros são de minharesponsabilidade.Àsvezes,simplifiqueieajusteiosfatosparaseencaixaremnoformatodahistória.Suspeito, contudo, quequalquer umque lerNa escuridãoficará curioso sobre quanto dele é verdade e quanto foi inventado.A respostasimpleséaseguinte:acreditoqueolivroéverdadeironaessência.Seesperavaquealgumasdascoisasmaisdesagradáveisqueacaboudelerforaminventadas,peçodesculpas.NãoinventeiapersonagemdeToussaintl’Ouvertureefuifielàsuahistória,
aomenosnaessênciaenos fundamentos.Foinecessárioatenuarahistóriaemcertamedida.Porexemplo,nestelivroignoreiaquestãodoladoespanholdailha(a atual República Dominicana), com o qual Toussaint teve relaçõescomplicadas.Contudo,osfatosimportantessãoverdadeiros.Toussaintrealmenteliderou uma rebelião escrava aos cinquenta e quatro anos, derrotando o podercolonialmaior e libertando seu povo,mesmo se apenas temporariamente. Eraum homem simples e iletrado que conseguiu uma das maiores e menosreconhecidasvitóriasmilitaresdetodosostempos.Atéondesei,seucarátereracalmo, sábio, inspirador. Foi traído da maneira apresentada nesta história erealmentemorreunumamasmorrafrancesa.AcerimôniaemBoisCaimanaconteceu,emboranãosesaibamuitosobreela,
eembelezeiosdetalhesparaminhasintenções.Narealidade,provavelmentefoiuma invocação a Erzili Danto, um dos mais importantes lwa, para apoiar arebelião.Shortynuncaexistiu,nemsua família.MasRoute9eBoston—eaguerra
entreeles—são reais,comoquase todososdetalhesdavidanoSiteSolèy.Éumadasfavelasmaispobreseviolentasexistentes,aindamaisagora,naesteira
do terremoto de 2010. Com frequência é mencionada como o lugar maisperigosodaTerra.Aspessoasrealmentecomiam,ecomem,tortasfeitasdelama,tamanho o seu desespero. Bebês realmente eram, e são, abandonados paramorrer em pilhas de lixo. Por anos, a favela foi praticamente isolada porbarricadase,especialmenteduranteoperíodosangrentonaprimeiradécadadonovo século, a polícia e osattachés foramacusados várias vezes de atirar emcivis desarmados durante manifestações e invasões domiciliares. Muitosmoradoressimplesmentedesapareceram,nuncaforamvistosdenovo.DreadWilmèexistiu.Viveuemorreuemgrandepartedojeitoquedescrevi:
aclamado como herói por seus apoiadores, que alegavam que ele traziasegurança, educação e cuidados rudimentares com a saúde num lugar onde ogovernonãofornecianada;difamadopelogovernocomogângstereassassino.Averdade, como sempre, está em algum lugar entre os dois polos. Até hoje,controvérsiasardorosascercamseuassassinato,eemespecialrodeiamaquestãode quantos civis forammortos durante a operação. Seu funeral foi um eventograndioso,acompanhadopormilharesdepessoasemarcadopordiscursos.Atéondesei,aconteceumaisoumenoscomodescrito,comDreadsendoempurradoparaomarnumbarcoemchamas.Finalmente,nenhumaobradeficçãoéumailha,mesmoumlivroquesepassa
emuma.GostariadeagradeceraCaradocKing,LouiseLamont,ElinorCooper,David Fickling, Sarah Odedina eMadeleine Stevens por toda a sua ajuda naconstruçãodestahistória.Egostariadeagradeceravocêtambém,pelaleitura.NickLakeOxford,2011