o farol na escuridão - arthur ferreira jr.'. - simetria macabra crônicas do mythos de cthulhu

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 As sombras da noite sem dúvida despertam a imaginação humana, e existem aqueles que, mesmo afirmando serem crescidos, ainda sentem calafrios diante do escuro da noite. E se há uma noite que todos tememos, pois ela é ainda mais inescapável que o ciclo alternante da noite mundana, é a noite da mente – o desconhecido, o inconsciente, os sonhos rapidamente esquecidos durante o café da manhã, mas que não deixam de distorcer o ânimo dos sonhadores, bem de leve, durante o resto do não tão abençoado dia. Dessa noite da mente, fugimos toda vez que adormecemos, ficando às margens de seu abismo estranhamente familiar. Nossos sonhos se dão nessa zona liminar, nessa região de obscuridade psíquica. Às vezes sonhos iluminados reluzem em nossa mente, trazendo ideias, epifanias, alívios – e são esses sonhos, essas tochas solitárias em meio à zona uivante que cerca o abismo da noite da mente, que nos impelem a cada período de vinte e quatro horas a buscar o sono, quando um atordoamento insidioso teima – e consegue – nos dominar. Somos como mariposas atraídas por esses fachos de luz na zona limítrofe – centelhas que nos revigoram para o dia seguinte, mas que, infelizmente, também acabam nos expondo aos perigos do abismo além do sonhar. Existem sendas e caminhos, nessa zona pouco compreendida, que desembocam como rios do além, no caos oceânico desse abismo. E muito embora o medo desse abismo esteja sempre presente e oculto em nossa espécie humana, existem aqueles que sentem um fascínio quase mórbido pela obscuridade que se move dentro de nós... da mesma forma que o restante da humanidade é atraída pelos fogos-fátuos de inspiração que brilham nas zonas oníricas mais próximas da consciência. Eu sou um desses fascinados, e o preço que pago por isso é grande. Meu nome, antes que perguntem, é Virgílio de Almeida. Nome vulgar, admito, mas acredito que eu mesmo esteja longe de ser vulgar, dadas as coisas que instintivamente sei e que outros se esforçam anos para descobrir. Nasci numa cidade-satélite de uma metrópole bem maior. Embora oficialmente pertencente ao município da grande cidade, quase um subúrbio, um parasita urbano inchado, de casinhas coladas umas às outras, Grotão era de caráter bastante distinto da urbe maior a qual estava agarrada. Soturna, de ruas e casas manchadas pela poluição de uma refinaria próxima, cheia de jardins malcuidados, árvores tomadas de trepadeiras, chácaras em mau estado e muros cobertos de hera – a região era uma verdadeira erva daninha, se comparada à  vivacidade da quase capital. Irônico que me refira assim nesses termos à minha terra natal, quando

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7/31/2019 O Farol na Escuridão - Arthur Ferreira Jr.'. - Simetria Macabra Crônicas do Mythos de Cthulhu

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 As sombras da noite sem dúvida despertam a imaginação humana, e existemaqueles que, mesmo afirmando serem crescidos, ainda sentem calafrios diantedo escuro da noite. E se há uma noite que todos tememos, pois ela é ainda maisinescapável que o ciclo alternante da noite mundana, é a noite da mente – odesconhecido, o inconsciente, os sonhos rapidamente esquecidos durante o caféda manhã, mas que não deixam de distorcer o ânimo dos sonhadores, bem deleve, durante o resto do não tão abençoado dia.

Dessa noite da mente, fugimos toda vez que adormecemos, ficando àsmargens de seu abismo estranhamente familiar. Nossos sonhos se dão nessa

zona liminar, nessa região de obscuridade psíquica. Às vezes sonhos iluminadosreluzem em nossa mente, trazendo ideias, epifanias, alívios – e são esses sonhos,essas tochas solitárias em meio à zona uivante que cerca o abismo da noite damente, que nos impelem a cada período de vinte e quatro horas a buscar o sono,quando um atordoamento insidioso teima – e consegue – nos dominar.

Somos como mariposas atraídas por esses fachos de luz na zonalimítrofe – centelhas que nos revigoram para o dia seguinte, mas que,infelizmente, também acabam nos expondo aos perigos do abismo além dosonhar. Existem sendas e caminhos, nessa zona pouco compreendida, quedesembocam como rios do além, no caos oceânico desse abismo.

E muito embora o medo desse abismo esteja sempre presente e ocultoem nossa espécie humana, existem aqueles que sentem um fascínio quasemórbido pela obscuridade que se move dentro de nós... da mesma forma que orestante da humanidade é atraída pelos fogos-fátuos de inspiração que brilhamnas zonas oníricas mais próximas da consciência.

Eu sou um desses fascinados, e o preço que pago por isso é grande.

Meu nome, antes que perguntem, é Virgílio de Almeida. Nome vulgar, admito,mas acredito que eu mesmo esteja longe de ser vulgar, dadas as coisas queinstintivamente sei e que outros se esforçam anos para descobrir.

Nasci numa cidade-satélite de uma metrópole bem maior. Emboraoficialmente pertencente ao município da grande cidade, quase um subúrbio,um parasita urbano inchado, de casinhas coladas umas às outras, Grotão era decaráter bastante distinto da urbe maior a qual estava agarrada. Soturna, de ruase casas manchadas pela poluição de uma refinaria próxima, cheia de jardinsmalcuidados, árvores tomadas de trepadeiras, chácaras em mau estado e muroscobertos de hera – a região era uma verdadeira erva daninha, se comparada à

 vivacidade da quase capital.

Irônico que me refira assim nesses termos à minha terra natal, quando

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na verdade me sinto esquisitamente confortável dentro dela. Para ser bempreciso, uma fobia mal explicada me assola quando saio de Grotão, sendo queum semestre de estudos fora de seus limites, há cerca de um ano e pouco, mecustou uma rotina quase insuportável de pesadelos, nervosismo e ansiedade

 beirando a paranoia.

Pode-se dizer então que, da mesma forma que Grotão drena a vida deNovo Portal, cidade maior à qual é pegada, eu dependo da estranha vidinha deGrotão, especialmente sua vida noturna – em mais de um sentido.

Carente de bares e botequins onde jogar conversa fora, os habitantes deGrotão desenvolveram o hábito e costume de fazer serões nos jardins de suascasas, muitas vezes jogando cartas e bebericando vinhos. Nesses serões escuteimuitas histórias estranhas, e com o passar do tempo, concatenando fatos aepifanias internas, observações a reflexões, pude notar um grande padrão que seimpõe nas conversas noturnas de Grotão – padrão feito de sonhos. Era costumecomentar que sonhos haviam tido na noite anterior, ou mesmo durante a sesta

(parece que o número de pessoas que podiam se dar ao luxo da sesta, bem comoo número das que trabalham em casa, é desproporcionalmente alto em Grotão).Ora, passar a adolescência ouvindo relatos dos sonhos alheios me chamouimensamente a atenção – apesar dos meus conterrâneos, chega a ser estranho,na verdade darem pouquíssima importância aos sonhos. Para eles, sonhos erammoeda banal de troca, de conversação quase fática, que trocavam tãoinconscientemente quanto todos nós pomos num reflexo a mão no bolso quandocompramos algo.

Essa atenção era fruto de uma sensibilidade aguçada a padrões econceitos. Meu pai, homem de idade já avançada quando nasci, era um

matemático dedicado e, embora não tivesse exercido profissionalmente,também um linguista – imagino que se ele próprio tivesse nascido algumasdécadas depois, com certeza teria se dado muito bem no campo da linguagem decomputadores. Tendo me criado praticamente sozinho após a prematura mortede minha mãe, vinte e três anos mais nova que ele, essa figura paterna que hácerca de seis meses foi voluntariamente morar num asilo geriátrico exerceugrande influência sobre mim, com certeza bem mais que minha mãe morta, ouminha tia solteirona que morava conosco e mal conseguia conversar direito.

Meu velho pai tinha, como vários de sua rua, o costume de frequentar osserões de Grotão, especialmente quando me tornei adolescente e ele passou a

me levar junto. Daí desenvolvi o hábito de desenhar os diagramas oníricos:anotava os fragmentos de sonhos contados nas reuniões, marcava-os com umanotação numérica, e usava os números como referenciais em grandes esquemasque esboçava em cartolina. Os números eram ligados por setas e vetores e essesdiagramas eram expostos nas paredes de um quarto vago da casa de meu pai,onde moro até hoje. Posso dizer que praticamente substituíram a necessidade depapel de parede ali – é provável que haja mofo debaixo dos esquemas presos àparede: às vezes em dias quentes um estranho odor domina o aposento, eGrotão é um lugar muito úmido – mas não consigo reunir disposição suficientepara retirar tudo e fazer uma limpeza.

E de onde vinham as setas e vetores que ligavam os sonhos de tantosmoradores do subúrbio de Grotão? A princípio, a intuição e uma análise talvezgrosseira me guiavam. Pequenos detalhes recebiam às vezes um peso maior do

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que similaridades óbvias. Com o tempo tornou-se complicado representar adiferença nos relacionamentos entre os diferentes sonhos, e passei a usarnúmeros para representar esse peso, nas flechas que ligavam os sonhosanotados nos cadernos guardados no mesmo aposento de cheiro mofado. Logodepois de ter experimentado isso, uma sensação de inadequação estética e deerro me assaltou e removi toda a notação numérica dos sonhos em si,

substituindo-a por símbolos. Cada sonho agora recebia um sigilo desenhadotanto no diagrama quanto na anotação de caderno. Era aí que minha estranhaintuição, que minha tia dizia ter sido herdada de minha mãe, agia com maisforça: a escolha dos sigilos mal tocava minha mente consciente, era quase escritaautomática – uma única relida na anotação, e o sigilo era imediatamentedesenhado em seu cabeçalho e logo depois, com uma rapidez frenética, nodiagrama onírico a ser exposto na parede.

Os poucos de fora da família que chegaram a contemplar as paredescheias de esquemas e símbolos geralmente deixavam-se arrastar por um longofascínio e murmuravam curtos comentários às vezes sem nexo. Nenhum desses

– quase todos colegas de escola – fazia parte dos grupos que organizavam osserões, embora eu tenha quase certeza de que notícia dos diagramas fora cairnos ouvidos de alguns participantes, que pararam de descrever sonhos emminha presença. Em geral, contudo, a rotina da troca de relatos continuavainalterada, fornecendo dados e dados que geravam mapas e mais mapas desonhos e visões noturnas.

Essas mandalas me tomavam mais tempo do que era conveniente, eembora meu pai de início enxergasse tudo com uma certa curiosidade eassombro, começou depois a fazer comentários sobre a inutilidade daquilo,sobre o caráter fantasioso da notação numérica e simbólica, culminando com

sua ideia de me fazer morar fora, na cidade grande, para estudar em uma desuas universidades com mais facilidade (às vezes a viagem entre Grotão e NovoPortal levava quase três horas, de ônibus). Essa mudança de atitude coincidiucom o gradual diminuição da frequência no comparecimento às reuniões de

 jardim. Cheguei a argumentar que um carro resolveria todos os problemas detransporte, e que eu era disciplinado o suficiente para acordar cedo todo dia,mas meu pai não quis nem ouvir falar disso. Ao contrário de vários de meuscolegas, que receberam de presente um automóvel ao entrar na faculdade, eutinha um pai que dificilmente cogitaria em gastar parte de suas economias queele guardava para meu futuro (e sim, para numa casa na cidade) com um carro.E agora, minha mania, dependente dos serões de nossos vizinhos, e no fim das

contas dependente da própria Grotão, com certeza seria interrompida se ele nãome desse mesmo carro nenhum – pronto, estava decidido.

O pai pagaria as custas do aluguel de um apartamento enquanto fossepreciso. Bom, já devo ter mencionado que a coisa toda não durou mais de seismeses, não foi? Mas é preciso tanto agradecer quanto me arrepender desses seismeses e da teimosia do velho.

O que deveriam ter sido quatro anos, no mínimo, de permanência nacidade grande, me esperavam. Um pequeno apartamento quarto-e-sala noantigo centro de Novo Portal, conseguido por intermédio de um dos raros

amigos de minha tia, seria minha base sólida durante esses anos. Todos osmeses meu pai me mandaria um dinheiro para pagamento do aluguel e demaisdespesas – eu não precisaria, por enquanto, me preocupar em fazer bicos ou ter

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um emprego de meio período, porque meu pai fazia questão de assegurar que eunão usasse a eventual fadiga como argumento para fazê-lo voltar atrás.

Tinha completado dezessete anos há poucos dias quando me instalei no dito

apartamento, e a primeira noite que lá passei me deu a impressão de ser a piornoite da minha vida – embora eu não soubesse que era apenas o começo. Poruma fortuita combinação de proteção excessiva de minha tia, e de um certodesinteresse inato pelas coisas fora de minha vizinhança, eu nunca haviadormido fora de Grotão. Já havia visitado a cidade grande, e já havia dormido nacasa de amigos e até de uma ex-namorada, mas nunca de fato dormido fora doestranho subúrbio. E naquelas noites em meu novo lar conheci uma terrívelmescla de liberdade e pavor.

Custei a dormir. Ou na verdade, custei a me dispor a dormir – aarrumação das coisas e mobílias demorou mais que eu imaginava, e depois de

tudo eu ia e vinha pela casa, a cada instante notando pequenos detalhes que mepassaram despercebidos durante o dia (teias de aranhas ocultas em cantosescuros, farelo de pão acumulado debaixo de uma das janelas, pregos nasparedes que talvez antes segurassem quadros, uma pilha de papéis amareladosaparentemente largada pelo inquilino anterior no fundo de uma gaveta, umesquisito e inédito cadáver de uma barata branca debaixo da cama). Por voltadas duas da manhã finalmente me coloquei na cama, mas acho que só conseguidormir lá pelas três horas, já que antes fiquei me virando e revirando sozinhopela cama de casal.

 Ao contrário do que sempre acontecera até então nos meus períodos de

sono em Grotão, consegui perceber o instante preciso em que adormeci – e sónão cheguei a registrar a hora e minutos exatos, porque não deixo relógios nemcelular ligados perto da cama. Meus olhos se fecharam e a escuridão resultantecomeçou a tremular diante de mim.

Comecei a andar no meio daquela massa informe de trevas, e o maisestranho é que ela parecia curiosamente gélida ao toque, e não fugaz e imaterialcomo todo aglomerado de escuridão. Era uma coisa entre gás denso e líquido

 viscoso. Era possível não só sentir, mas ouvir bem alto, um ritmo de batidasregulares, que não vinham de nenhum ponto obscuro à distância, mas sim demim mesmo – o ambiente tenebroso parecia responder a essas batidas, como

um dedo constante e repetidamente perfurando a superfície de um lago,provocando ondas concêntricas.

 A diferença estava em que as emanações centradas em mim afetavamnão uma superfície bidimensional, mas uma medonha zona de no mínimo trêsdimensões – algo me fazia desconfiar que o tempo se distorcia mais além, e sóaquele ritmo constante que saía de mim fazia a escuridão se estabilizar numespaço em que eu pudesse me mover direito. E apesar de poder me movimentar,não tinha pista alguma de onde estava indo.

Um vago e crescente horror começou lentamente a me assaltar – era de

se estranhar que aquela sensação aterrorizante houvesse demorado tanto tempopara se manifestar naquele espaço onírico, pois pelo menos três minutospercebidos haviam transcorrido desde que meus olhos haviam se fechado, mas

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era como se minhas reações emocionais estivesse mais lentas, emborainevitáveis – e percebi, o que fez o horror aumentar exponencialmente, que medeixar levar por aquele surto gerava consequências... físicas, ou pelo menosfísicas de acordo com a perspectiva do sonho.

Meu medo se espalhava junto com as emanações que meu corpo emitia,

provocando uma espécie de … não posso dizer terremoto,  já que não estava naterra... uma espécie de distúrbio espacial, um tremor psíquico que se expandia.E com o tremor minhas percepções iam junto, me fazendo conseguir sentir todaa escuridão que me envolvia. E a escuridão reagia. Ela se tornava mais densa,mais viscosa, mais enredante, e eu me sentia como se imerso num cipoal –tentáculos feitos de distorção e colapso se erguiam numa única onda que tentavarechaçar o meu próprio ser.

Conforme minha percepção se espalhava pelo abismo ao meu redor, euenxergava, ouvia – e pior, sentia o gosto e o odor – dos tentáculos que seagitavam à minha volta. Numa revolta rápida, a viscosidade sombria que

originalmente me cercava foi despedaçada pelos tentáculos de espaço distorcido(eram como feridas no cosmos, ferimentos, rachaduras e fendas que se moviamnum turbilhão intenso, pulsando de modo tão bizarro que revelavam umaestranha e anômala consciência). A escuridão foi assim rasgada, e eu caí numtúnel de paredes circulares e espelhadas, por uma longa eternidade, até serdespejado, gotejante como se coberto por um líquido amniótico, numa planícieextensa que se espalhava até onde meus olhos conseguiam enxergar, ondeatingia um horizonte malva.

Quando tempo andei por essa planície vazia e esbranquiçada, meus péspisando um chão indefinido e brumoso que cedia devagar se eu parasse muito

tempo num só lugar? Não quis descobrir o que me aconteceria, ou onde cairia,se parasse para descansar, e errei pela planície de Thangar-Baru por vários e

 vários milênios... até que um inesperado meteoro cruzou o céu malva, umaestrela cadente que incendiava aquela atmosfera mórbida, e num estrondoatingiu Thangar-Baru, estilhaçando aquele domínio onírico e me fazendoacordar com um salto e correr sem pensar até a janela semiaberta.

Depois de acalmar minha respiração, levei alguns minutos paraperceber duas coisas extraordinárias: o relógio digital encimado num poste darua indicava 01:01 – duas horas antes do horário em que adormeci – e, de ondehavia tirado o nome Thangar-Baru? 

O dia seguinte foi marcado por extremo cansaço. Eu conseguira adormecernormalmente, caindo num sono sem sonhos, depois daquilo, mas só por voltadas cinco horas da manhã. Ou do que acho que seria as cinco da manhã. A princípio pensei que alguma coisa me fizera dormir mais de 24 horas seguidas, eter acordado à uma hora significava ter dormido durante todo o dia – mas nãoera o caso. A data era a mesma (a madrugada de 23 de março), assim mostrava orelógio digital exposto lá fora. Estranhamente, meu celular estava desligado eassim não pude ter uma noção muito clara se ele havia misteriosamente se

atrasado e na realidade eu me atrapalhara, e só havia achado que adormecerapor volta das três da manhã. Ao ser religado, o celular havia perdido o registrode hora e data.

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Parecia que o celular não estava sozinho em seu problema, porque oúnico outro aparelho eletrônico que estava ligado na casa também estavadesligado – um microsystem que estava em stand-by na sala. Esse não quisfuncionar durante três dias, e como não tive tempo de levá-lo num técnico, portrês dias ficou mudo até que ao voltar para casa na noite do dia 26 o aparelho

estava ligado, e não houve explicação nenhuma de como isso havia acontecido.

De qualquer forma, durante esses três dias, eu, que nunca sofri depesadelos em toda minha vida, fui obrigado a uma alternância noturna desonhos ruins e insônia. Aliás, não só noturna, já que qualquer cochilo quetentava durante o dia também invariavelmente terminava em frustração ou em

 viagens oníricas medonhas. O trajeto era mais ou menos o mesmo: a ondulaçãoque se espalhava de mim mesmo, a batalha dos tentáculos contra a escuridão, oeventual fragor das trevas entrando em colapso e a queda quase eterna até serexpelido numa planície que eu tinha a certeza total e absoluta que se chamava –se chamava, não, ela se chama assim, já que ainda está lá – Thangar-Baru.

 A perambulação naquele ermo branco e malva levava muito tempodentro do sonho, até que algum incidente estranho a interrompia. Se daprimeira vez houve a queda de um meteoro, da segunda vez encontrei umestranho poço que se erguia das brumas baixas e, ao observar suas profundezas,um jorro de chamas verdes se ergueu dele formando uma coluna que ia até o céumalva, e o clarão doentio me cegou de imediato, me obrigando a despertar. Daterceira vez, um enxame de pequenas coisas ia se aproximando bem lentamente,as minúsculas pernas articuladas e frenéticas quase invisíveis na bruma branca.Tentei me afastar delas, mas era inútil, acabei sendo alcançado e – é difícildescrever exatamente a sensação da coisa toda – devorado vivo por aquele

enxame que não tinha fim, minha consciência se dispersando pelos corpos dosínfimos e aberrantes seres. A horda de entidades híbridas entre crustáceo earacnídeo, cada um deles com onze patas articuladas e assimétricas ao redor deum corpo revestido por uma quitina oleosa, marchou indiferente até a as bordasde Thangar-Baru e atravessou uma bizarra cortina intangível de cor malva … mefazendo acordar.

Pois bem, se todo meu costume de pesadelos se restringia a relatosalheios, devem imaginar então o sofrimento dessas três noites de pesadelos bemfora do comum e além de qualquer estranhamento presente nos sonhos emGrotão. Essas três noites foram acompanhadas de três dias em que articulei as

coisas de modo a me preparar para a universidade. Em nenhum deles almoceidentro de casa. Era compreensível: a casa estava me dando medo, por causa dospesadelos, e eu a evitava, a não ser para dormir. Como consequência, a maioriadas minhas coisas ficou bagunçada, o que ainda piorava a sensação dealheamento que sentia dentro daquele lugar. E naqueles três dias, só uma coisame aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos einesperados pesadelos.

Essa coisa foi Anna.

Não vão achar ruim que chame uma mulher de “coisa.” Também não tem nada a ver com o conceito de mulher-objeto. Longe disso. Na verdade, como os leitores

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perceberão mais adiante, essa palavra faz total jus à moça que almoçava nomesmo restaurante que eu.

Eu passava mais tempo naquele restaurante que somente tomando cafée almoçando: antes e depois das refeições, fazia anotações em meu caderno,pondo no papel minhas impressões a respeito dos misteriosos pesadelos que

estavam me acometendo. Pela primeira vez, eu tinha o ânimo de fazer a crônicados meus próprios sonhos, e não os da vizinhança. Às vezes fazia tentativas dedesenhar a planície branca e nebulosa onde sempre vagava, mas quase sempreesses garranchos e esboços eram inconclusivos. Thangar-Baru parecia altamenteelusiva, indescritível.

Também fazia esboços das coisas que experimentava nos sonhos, e delasextraía um sigilo correspondente. No segundo dia de almoço notei que umamoça, que no dia anterior estava sentada numa das mesas próximas, estava meobservando com um mal disfarçado interesse. Era uma ruiva de cabelos longos elevemente ondulados, olhos castanho-esverdeados, não muito alta. Sua

expressão de sobrancelhas erguidas me exercia um certo fascínio, era como seela emanasse uma aura que atraísse e ao mesmo tempo deixasse o atraídonaquela zona liminar, próximo mas sem a coragem de se aproximar.

E é claro, não tive a coragem de falar com ela. Nem teria exatamente oque falar. Provavelmente ela teria alguma razão, como eu tinha, de almoçar alitodos os dias (era tão prático e aconchegante), quem sabe mais tarde, com aconvivência visual eu chegasse a conseguir conversar com ela; mas de qualquerforma eu me sentia exausto. Porém não foi preciso que um ritmo habitual seestabelecesse, porque no terceiro dia, quando eu desenhava as figuras daquelaterrível e paciente horda de animais híbridos, Anna veio falar comigo.

“Está na EBANP?” Falou ela por trás de meu ombro esquerdo,referindo-se à divisão de artes e design de uma das mais conceituadasacademias de Novo Portal. Interrompi o esboço e me virei para responder; deonde ela estava, conseguia enxergar vários outros desenhos e sigilos e símbolos eaté mesmo a leve tentativa de um novo diagrama onírico.

Seu rosto era franco, mas o olhar era insidioso, com uma certa malícia.Mas não cheguei a hesitar. “Não, não, estou para entrar no curso de psicologia.Por quê? Acha que isso aqui tem algum valor?”

“Sem dúvida. Você parece não ter muita técnica, muita experiência, masesses seus desenhos transmitem algo... melhor dizer que revelam alguma coisa.Não estou certa?”

 Agora sim eu hesitei. Dava até a impressão de que ela sabia algumacoisa, mas isso era impossível. Ou pelo menos eu achei que era impossível – otempo provou que eu estava mais do que errado. Mas estou me adiantando.

 Antes que eu pudesse responder qualquer coisa (nem lembro o que ia dizer), umtamborilar frenético de chuva sobre o toldo se fez ouvir, e um vento varreu aparte da frente do restaurante, derrubando vários dos meus papéis e nosobrigando a correr para catá-los com urgência.

Depois que tudo foi salvo (ou o que achei que era tudo; depois, em casa,fiquei com a impressão de ter sumido um dos esboços), e nos movemos para a

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parte coberta por telhado do estabelecimento, a ruiva sorriu e fez umcomentário: “Parece que vamos passar um bom tempo aqui. Qual o seu nome?”

Ela não podia estar mais certa, pois a tempestade que se seguiu durou mais de

três horas e soube depois que houve inundações nas partes mais pobres dacidade. E daquelas horas de conversa surgiu o hábito de nos encontrarmos ali epalestrarmos durante mais tempo do que era necessário para almoçar. Descobrique era mesmo uma artista plástica, estudando na mesma faculdade que eu (amesma Universidade Federal de Novo Portão que ela mencionara para quebraro gelo), e era seu primeiro semestre ali, mas não o primeiro semestre no curso.

Parece que havia sido estudante de intercâmbio nos EUA, numa cidadede nome estranho em Massachusetts, chamada Arkham (o que tinha a ver com ofictício Asilo Arkham das histórias do Batman, não sei) e que estava atrasada,talvez por ter pego diversas matérias que à primeira vista nada tinham a ver com

seu curso – de música, matemática e até de arqueologia. Dizia ser muito curiosae dispersa: e na primeira vez em que fui em sua casa, cheguei a ver largada numcanto a caixa de um remédio que sei que servia para um transtorno, distúrbio ousíndrome que mudou de nome várias vezes nos últimos anos. Num momento emque ela fora no banheiro, notei que a caixa estava cheia.

Enquanto isso a rotina de encontros com Anna se somou à rotina dafaculdade, que muito me interessou, até o máximo que permitia meu cansaçoperene, porque havia uma terceira rotina, a dos pesadelos. Toda noite umepisódio estranho acontecia em Thangar-Baru. Alguns deles se repetiam, masnão de modo idêntico. E Anna tinha um interesse ardente nesses meus sonhos –

pedia detalhes, apreciava os esboços (embora eu escondesse dela alguns dosmais extravagantes, ou que tivessem alguma semelhança com os diagramas quefazia na casa de meu pai). Um dia, não havia completado um mês de aulas, elacomentou que se eu só tinha esses sonhos no apartamento, então era porque oapartamento devia ser o culpado – e me chamou para dormir em sua casa.

Eu só havia estado nessa casa dela uma vez, antes. E ela nunca fora naminha própria casa. O convite parecia estranho, porque não estávamosnamorando – tudo o que fazíamos era conversar, e fora o tom muitas vezesmalicioso da voz de Anna, sua malícia se resumia à voz, aos olhos brilhantes e às

 vezes a maneira de caminhar, e nunca se expressava como sugestões verbais.

 Alguém poderia me dizer que isto já seria suficiente para determinar que elaestava emitindo sinais, mas é que ao mesmo tempo, durante aquele mês, é comose ela erguesse uma barreira invisível que desencorajasse qualquer aproximaçãomaior. E de fato invisível e indefinível era essa barreira, porque ela estava longede ser feia, desinteressante ou pouco inteligente. Pelo contrário, me dava aimpressão de ser a mulher mais astuta que eu já conhecera. Até aí, a minhaprópria idade reduzida, de um calouro do lado de uma veterana de intercâmbiosde aparentes 23 anos, podia ser a razão do fascínio misturado com aversão quesentia por ela.

Não vi como recusar o convite. Na primeira vez em que estivera na casa

onde ela morava sozinha, eu não passara da sala; só havíamos passado lá paraela pegar uns livros e ir ao toalete. Fora quando eu notara a caixinha deremédios. Alguma coisa me fez não mencionar que reparara na caixa, nem

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mesmo que mexera nela e a achara com todos os comprimidos no lugar. Agoraas coisas eram diferentes: eu ia dormir na casa de Anna.

O que chamava mais a atenção naquela sala não era a caixa de remédiosque provavelmente não estaria mais lá, mas uma profusão de quadros deaparência bizarra. A maior parte deles era cubista ou medievalista, e não sei

quais deles eram reproduções e quais eram genuínos. Um dos quadros chamavaa atenção não por ser psicodélico ou arcaico, mas pelo realismo – se é que possochamar de realismo uma representação de um ser tão grotesco, semi-humanocom traços caninos. Naquele dia, quando perguntei quem era o autor daquilo –não deixava de ser uma obra de arte, embora das mais perturbadoras – ela disseque trouxera o quadro da sua temporada de intercâmbio, que o autor chamava-se Richard Pickman, que haviam pouquíssimas obras dele disponíveis, e que elahavia gasto quase todo o dinheiro sobressalente da viagem com essa e outrasobras obscuras. Quem sabe depois ela me mostrasse as outras, acrescentou.

Quem sabe o meu convívio com Anna me distraísse de alguma forma

dos meus sonhos, porque embora eles não houvessem cessado, eu me sentiamenos exausto nos dias em que a encontrava. Levando isso em conta, porestranhas que fossem essas e outras obras, não se comparavam com os horroresde meus sonhos; então, se a opinião dela fosse correta, não me custaria nadapassar a noite perto das tais obras de arte – que, segundo ela, não se restringiama quadros, havia também esculturas, fotografias, gravações musicais e livrosraros. Ela se definia como uma apreciadora do exótico; mas eu, depois de verapenas os quadros da sala, enxergava pouca coisa de exótico e mais de macabro.

O que eu poderia definir talvez como no mínimo exótico era a escolha delugar para morar. A casa, onde ela morava sozinha, havia sido anteriormente um

prédio de apartamentos de três andares. Por alguma razão que ninguémcomentava ou sabia explicar, o ex-dono do prédio mandara derrubar os doisandares superiores e toda a estrutura havia sido convertida numa casa de doispisos. Quem prestasse atenção ao entrar na casa, como eu iria fazer, notava asimetria provocada pela antiga disposição de quatro apartamentos por andar.No meio deles havia um poço, para o qual davam quatro janelas no primeiropiso e apenas três no segundo – a oitava janela havia sido emparedada, sabe-selá por qual motivo. Para quem morava num apartamento pequeno, de bizarrasdiscrepâncias no pé-direito, meio torto e mal estruturado, a casa deveria meconfortar, mas não foi o caso: aquela simetria agia sobre mim como se asparedes da casa servissem como os muros de uma prisão, uma sensação

 vagamente claustrofóbica que nunca havia sentido antes num ambiente tãoespaçoso.

Foi essa sensação que me arrebatou naquele fim de tarde em que Anna abriu aporta para que eu entrasse, com um sorriso mais malicioso do que o normal. Euteria demorado mais um pouco observando melhor a fachada da casa – ela nãoestaria mal colocada em Grotão, me causava uma certa nostalgia – massobreveio um temporal tão logo a dona da casa abriu a porta. Essas pancadas dechuva inesperadas estavam ficando cada vez mais comuns na cidade.

Deu para perceber, logo de cara, que alguns dos quadros haviam sidotrocados. Havia também uma novidade – umas caixas de papelão abertas no

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chão perto da mesa de mogno, e em cima da tal mesa, lado a lado, duasesculturas que não pareciam muito normais. Uma delas era uma coisadeformada em baixo-relevo, feita de argila; provocava arrepios ao sercontemplada, e o ser monstruoso cercado por uma escrita desconhecida pareciaum cefaloide alado, tendo como pano de fundo uma cidade ancestral. Nãochegou a me alterar muito o humor, contudo, porque havia a segunda escultura:

uma tartaruga de marfim, finamente esculpida, de olhos quase vivos e cascodetalhado. Peguei a tartaruguinha na mão e era tão linda e pitoresca, que o baixo-relevo perturbador perdia qualquer importância.

“Não se anime muito,” Anna interrompeu o meu devaneio com aescultura, “não é o original. Ambas cópias muito bem-feitas, senão você nãoestaria aí com essa cara. Quem as fez era um artista inspirado... tão inspiradoquanto você, eu acho.”

“Continua achando mesmo que sou um artista, não é?” Pus a tartarugade volta à mesa e dei uma boa olhada ao redor: alguém havia feito uma bela

faxina, os móveis estavam brilhando e não havia uma só grama de poeira nochão. Mesmo assim, o jeito antisséptico do ambiente me incomodava. Se asparedes me lembravam, de leve, muros de prisão, o piso e próprio ar que mecercava davam a impressão de estar num hospital – dava quase para cheirar oéter. Devia ser algum produto de limpeza que eu não conhecia.

“Pelo menos eu acho que vocês bebem das mesmas fontes.” O sorriso de Anna dessa vez foi até predatório, mas ela logo colocou-se numa posturarelaxada e até sedutora, me fazendo cair a guarda de novo. “Foi um rapaz queconheci numa enevoada colônia de artistas durante o ano de intercâmbio. Para oseu conselho, dizia que artista não escolhe ser artista, só aceita o fardo. Quando

fui embora, ele ficou me devendo e pagou com estas esculturas. Não foi a únicacoisa que trouxe de lá, mas depois lhe mostro. Minha casa não é um museu,pode ficar mais calmo, não precisa ficar assim, com essa cara. Sente aí que eu

 vou buscar alguma coisa para bebermos.”

Enquanto ela sumia nos fundões da casa (Por que não havia um bar nasala? Do jeito que devia ter dinheiro, nada custava instalar um móvel assim... ouserá que tinha uma adega em algum lugar?), pus a mochila com minhas coisasde lado, e tentei relaxar num dos sofás, mas não consegui. O arranjo daspinturas na parede, como mencionei, havia mudado; e a nova disposição pareciadiabolicamente hipnótica, simetricamente sugestiva. Acabei levantando, e

examinei boa parte dos quadros. Havia alguma coisa que me chamava a atençãonaquilo tudo, e como era de meu costume, peguei o meu caderno de anotaçõesna mochila, e copiei a disposição dos quadros nas três paredes em que elesestavam expostos.

Parecia estar demorando demais, então eu cheguei a referenciar quaisquadros estavam em cada posição... e como dos onze quadros exibidos, apenasdois tivessem o nome na parte inferior da moldura, desenhei sigilos abstratos esintéticos para representar os outros nove; e acabou me dando na cabeça, depoisque vi que ela estava demorando mesmo, de elaborar sigilos até mesmo paraaqueles quadros que tinham nome.

Era como se eu estivesse de volta a Grotão, só que em vez de relatosoníricos, eram imagens. Valeria a pena descrever esses quadros, ou citar seus

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nomes? Mas se estou dizendo que aquela simetria macabra me chamava mais aatenção que as próprias imagens?

 A única parede sem quadros estava tomada por uma enorme estantecom alguns aparelhos eletrônicos, televisão e som, pela porta para o interior dacasa e pelo sofá onde eu deveria estar sentado. Daquele sofá você teria uma visão

abrangente dos quadros... e também de outras coisas na sala que pareciam fazerparte da disposição simétrica em questão, a saber, dois candelabros antigospendendo do teto, a porta da rua, dois tapetes de cor verde-musgo no chão e... opróprio sofá onde eu acabei finalmente me sentando.

Não pude respirar nem três segundos naquele sofá, porque de dentro dacasa veio o estardalhaço de uma garrafa quebrando.

Saí correndo, quase em pânico (todo o processo de observação do diagrama

havia me deixado sensível naquele momento), na direção do som estilhaçante.Passei por um corredor com três portas e uma delas, a segunda, estava aberta.Era a cozinha. Ou na verdade uma das cozinhas da casa. Corri até ela, e o pânicodeu lugar ao choque.

Os fragmentos de vidro se espalhavam por todo o chão ladrilhado. Osmaiores cacos concentravam-se ao redor e sobre uma enorme poça de líquidorubro. Levemente curvada na direção da poça, Anna segurava o pulso ferido,escorrendo um filete de sangue – e naquele instante tive a mórbida impressãode que todo aquele sangue derramado no chão viera daquele filete que pingavasobre a poça.

Ela ergueu os olhos e esboçou um sorriso sem graça, ou quase. Pareciaestar se divertindo e ao mesmo tempo resignada. E, junto com o sorriso, veio ocheiro inebriante do vinho derramado no chão.

Era vinho tinto.

Como é que não tinha sentido aquele cheiro tão forte de vinho, aochegar na soleira da porta, eu não sei, mas posso atribuir ao meu estado denervos um tanto alterado, pressionado pelo cansaço e pela antecipação.

Rapidamente eu a ajudei a se recompor e ela pediu ajuda para lavar oferimento. Segundo ela, ao manusear a garrafa quebrada, a derrubou e um dosestilhaços, ao pular do chão, atingiu o seu pulso, quase na artéria. Por issoestava rindo, ela disse – era um riso nervoso, porque poderia ter sido muitopior.

Lavamos o seu pulso num lavabo no fim do corredor, bastanteperfumado, mas que não conseguia disfarçar de todo aquele odor de produtoquímico que havia sentido ao entrar na casa. Esse cheiro era indefinível: se vocêconseguir imaginar uma mistura de éter e água sanitária, terá conseguido chegarperto do onipresente cheiro daquela noite na casa de Anna.

Depois de ter enfaixado com uma gaze o seu pulso, Anna voltou comigoà sala. Quando passamos pela porta da cozinha, vi aquela mancha vermelha no

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chão – o vinho derramado, que formava um padrão esquisito, não muito normalpara uma poça de líquido derramado. Parecia mesmo que a poça havia sedeslocado um pouco durante aqueles minutos em que estivemos no lavabo. “Não

 vamos limpar esse chão?” perguntei à dona da casa, antes de tomar qualqueriniciativa.

“Não. Estou cansada depois disso, deixa aí, usamos a outra cozinha sefor preciso, perdi até a vontade de beber. Vamos para a sala.” Com um suspirode alívio, ela pôs um braço em volta dos meus ombros, seu perfume cítrico enfim

 vencendo o cheiro esquisito da casa, e discretamente me guiou até o sofá da salaonde...

…Onde eu havia deixado o diagrama recém-desenhado.

O olhar de Anna desceu até o papel mal dobrado, parou por cerca de dez

segundos, analisando com um certo cuidado, seguindo com um longo eprofundo suspiro. Era como se ela estivesse só checando e confirmando.Permaneci calado, e minha anfitriã voltou aqueles olhos que antes eram quase

 verdes, mas que ali, sob a estranha iluminação de sua casa incomum, me davamquase a certeza de serem amarelados. Ela estendeu a mão que antes envolviameus ombros e segurou meu rosto, dizendo:

“Por quê você faz isso? Que está procurando com isso?”

 A palma de sua mão estava levemente suada, e do lado esquerdo de suatesta eu podia ver uma pequena gota de suor, descendo vagarosamente. Até três

minutos antes, mesmo com a agitação do acidente com a garrafa, ela não pareciaestar suando assim – pelo contrário, sua pele sempre mostrou uma suavidade eimpecabilidade fascinantes, que me davam a vontade de tocá-la. Pois bem,aquele toque era completamente diferente do que eu imaginava que seria.Úmido. Palpitante. Forçoso, invasivo.

Tentei controlar meu próprio nervosismo – nunca mulher alguma medeixara tão agitado, tão perturbado; e se não fui exemplo de conquistador atéentão, namoros curtos e pequenos casos não me faltaram na juventude emGrotão.

“Procurando? Que quer dizer?” Tentei erguer minha mão para segurar acintura dela, de certa forma reagir àquela intimidade nova, mas não consegui.Era como se ela segurasse minhas rédeas, enquanto provocava com suas esporasmaldosas – como aquela mão morna e suada, a postura firme e altiva de seucorpo, e seu olhar ao mesmo tempo sonolento e transfixo.

 A outra mão de Anna segurou o outro lado do meu rosto, ela seaproximou um ou dois centímetros, e exalou estas palavras: “O mapa. Vocêdesenhou um mapa. Quem usa um mapa, quer encontrar algo, procura algumacoisa, tenta se localizar, achar uma razão para a existência, quer definir algo,trazer esse algo à realidade, não estar mais perdido – você estava perdido, meu

querido?”

Não consegui responder, mas dessa vez consegui pôr as mãos em volta

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da cintura dela. Era como se aquilo fosse uma confrontação: e confesso queestava perdendo. Os olhos da garota pareciam cada vez mais amarelados, quasedourados, sua boca carnuda abria e fechava durante suas falas, de um jeito queparecia estar mastigando algo invisível. Os dentes eram tão alvos, notei; suacintura, tão gostosa de segurar, era como explorar um território ao mesmotempo proibido e extremamente familiar... o que era aquela sensação?

Ela continuou, e empurrou os quadris para a frente, “Quer se perder denovo, meu querido? Quer me penetrar de novo?” De novo, como assim? Eupodia não saber direito do que ela estava falando, mas a situação toda me fazianão querer maiores explicações, pelo menos não explicações verbais.

 A boca de Anna era levemente salgada, um alvoroço tomou conta demim enquanto a beijava. Era uma fome sendo saciada, e uma sensaçãomartelante de estar caindo num precipício sem volta.

Rapidamente estávamos sem roupa sobre o chão duro entre os dois

tapetes. O pensamento paradoxal de familiaridade e proibição aumentava a cadacarícia que trocávamos, a cada movimento de minha língua sobre os seios de Anna, a cada movimento de seus quadris sobre mim, quando subimos no sofá,fazendo sexo sobre o próprio diagrama que havia provocado aquele diálogoabsurdo. Enquanto ela se contorcia sobre meu tronco, seu pescoço se esticavapara trás num gesto de prazer, e a língua saía da boca, serpenteando malva...malva, pouco a pouco sua pele branca se tornou mais e mais da cor das brumasdaquela planície que todas as noites eu visitava; num movimento violento ela se

 jogou no chão comigo por cima, atordoado, ainda a penetrando, e a realidade aomeu redor se desfez, eu caía de novo naqueles túneis de paredes espelhadas, sóque dessa vez sentia estar absurdamente caindo para cima; a explosão de

tentáculos apareceu ao redor de mim, e voltou ao meu corpo, sendo absorvidanum espasmo involuntário.

Balancei a cabeça, horrorizado e excitado ao mesmo tempo, e me visemierguido, nu, trêmulo, numa cama de um quarto desconhecido.

O rico aposento não estava em condições tão boas como sua opulência poderiasugerir. A cama onde acordei estava totalmente desforrada, lençóis jogados pelochão; alguns deles até mesmo rasgados. Prateleiras e prateleiras faziam guisa de

estante, espalhadas pelas paredes de pintura um tanto descascada. Os pregos dealgumas das prateleiras estavam bastante corroídos, enferrujados. Além disso,em frente à cama havia um tipo de móvel de madeira negra e ferro, com cincogavetões desproporcionais, e três porta-incensos soltando fortes odores noquarto. Junto ao incenso queimando, vários livros abertos e papéis amontoados.O que mais chamava a atenção naquele lugar estranho mas um tantoaconchegante (como se já estivesse dormido várias vezes ali), era a compridarachadura vertical correndo pela parede logo atrás do tal móvel. Tanta atençãoque você quase esquecia que o quarto não tinha porta!

Praticamente entrei em pânico. Olhei para meu corpo nu e sobreveio

uma pavorosa sensação de deja vù; uma mancha rubra se espalhava pela cama epelos meus quadris, com padrões quase idênticos ao da mancha de vinho nochão da cozinha, mais cedo... exceto que aquele líquido me encharcando não era

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 vinho, e sim, sangue.

Levantei-me desesperado, para caçar uma saída daquele inferno. Só aínotei que havia uma porta no quarto: mas que louco colocaria a cabeceira deuma cama de casal virada para uma porta, obrigando a quem quer que fosse seesgueirar e espremer para sair ou entrar do quarto? Me acalmei um tanto, e

prestes a abrir aquela porta para procurar minhas roupas e tomar um banho,onde quer que fosse, meus olhos instintivamente se voltaram ao esquisito móvelatrás de mim: a madeira dele havia estalado, e naquele silêncio e situaçãoqualquer ruído soava como se flagelos vibrando no ar.

Para aumentar minha surpresa, vários dos papéis dispostos sobre essemóvel eram alguns de meus diagramas oníricos, daqueles que eu pendurava nasparedes da casa de meu pai. Entre esses diagramas achavam-se vários livrosabertos – chequei os títulos numa pressa curiosa e inadequada: Azathoth eOutros Horrores, poemas de um certo Edward Derby; Anotações MatemáticasCompiladas de Walter Gilmor; O Rei Vestido de Amarelo, uma Reconstituição

 Histórica; um volume sem título nem capa, com capítulos de nome Teratosofia, Placas Tectônicas da Terra dos Sonhos, Cavalgando a Esfinge Negra e Simetria Macabra; Manuscritos Pnakóticos (este o mais volumoso edesordenado); um livro de psicologia, intitulado Percepções Anômalas doTempo, do dr. Wingate Peaslee (já ouvira menção deste autor, por um dos meusprofessores); uma espécie de roteiro de cinema datilografado, de nome O

 Legado de Eibon; e até um libreto de ópera de um tal Bordighera, cheio deanotações manuscritas nas margens.

Fiquei tão atordoado checando aqueles livros e diagramas, que não ouvinem percebi a porta do quarto se abrindo... até que eu me voltasse para trás, a

 visse a cama manchada entre a porta aberta e o corpo desnudo e curvilíneo de Anna, uma mão segurando um cacho ruivo, a outra uma toalha vermelha, quaseda mesma cor do sangue que manchava também os quadris e o púbiscuidadosamente depilado da garota...

“Olá, meu querido. Dormiu bem?” Ela foi chegando mais perto, como setudo estivesse exatamente como ela desejava, e tudo muito bem, obrigada.Estendeu a toalha vermelha para mim. “Quer tomar um banho? É melhormesmo uma boa ducha... não acha? Sabe, você não foi o único que caiu no sonologo depois da transa, e bem rápido aliás, que eu não fiquei chateada.”Percebendo (ou fingindo só então perceber) que eu estava meio paralisado, me

tomou pelo braço: “Vamos então?”

Quem sabe a água caindo sobre meu corpo acabasse me despertando de verdade, pensei, e eu acabasse descobrindo que era tudo um sonho eróticomesclado a um pesadelo. Ou então, no mínimo, eu acordaria direito, e poderiafazer as perguntas que me afligiam. Por enquanto, por mais perturbadora quefosse a situação e mesmo a presença daquela minha companheira, algo me diziapara aproveitá-la antes que tudo sumisse, ou então que tudo piorasse, tornando-se ainda mais enigmático e estarrecedor. Ela me conduziu até a porta – será queessa porta estava trancada, enquanto eu dormia? – e entramos num toalete, quetinha uma outra porta, esta entreaberta, dando para um dos corredores da

exótica casa de Anna.

Uma banheira embutida na parede e no chão, com três estranhas

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torneiras de um metal similar ao cobre, mas muito menos fosco e mais atraenteaos olhos, derramando suavemente água, enchendo a banheira grande, de cormarmórea. Como não ouvi antes o ruído da água caindo, não sei. Cada torneiraparecia fornecer água numa temperatura diferente, e todas as três estavam bemabertas: não era apenas um pingar.

Entramos na água da banheira cheia até mais da metade e meu estadode ânimo não se aclarou muito. Parece que ela se aproveitou disso paradesestimular quaisquer perguntas, me excitando novamente com seus toques emais uma vez fizéssemos sexo, embora desta vez nenhuma alucinação mearrebatasse. Embora com um toque maior de violência – nos arranhamos e nosmordemos bastante, e acabei possuindo-a de quatro, provocando gritos quedevem ter se espalhado pelos estranhos corredores e cômodos da casa – quandotudo terminou, eu estava mais calmo, e mais propenso a crer que aquelaexperiência inusitada mais cedo não passara realmente de uma alucinação,causada com toda certeza pelo meu cansaço acumulado naquele mês depesadelos, e até pela minha falta de sexo durante esse mesmo período.

Mas nada disso explicava o sangue que sujava a cama, sangue em nossoscorpos que se misturou à água e a um pouco de sangue que derramamos durantea segunda sessão de sexo, e que o ralo da banheira sorveu célere e faminto.Quando fiz notar isso a Anna, ela respondeu:

“Não sei explicar isso direito, Virgílio. É como se você tivesse metornado virgem de novo, meu querido... que nem na música: tocada pelaprimeira vez, sabe?”

Me deu a impressão de que ela estava escondendo alguma coisa: mas a

impressão acabou não incomodando muito, porque Anna sempre parecia estarescondendo alguma coisa, o que me fez admitir que isso fosse apenas parte docomportamento misterioso dela, do charme que ela usava para alternativamente(ou simultaneamente) seduzir e afastar as pessoas ao seu redor. E também deconvencê-las daquilo que não parecia muito certo, ou que parecia fora do lugar:quando perguntei por quê meus diagramas estavam espalhados por cimadaquele móvel no quarto, e como ela os havia conseguido, ela disse que fui eumesmo que os trouxe na mochila, e que enquanto eu dormia ao lado dela nacama, ela vasculhou a mochila procurando camisinhas, achando os diagramas;

 já que havíamos transado sem proteção nenhuma e ela não tinha, de qualquerforma, nada guardado em casa para isso, pois não havia contado com o ardor

que havia nos consumido, não havia sido nada planejado.

É verdade que haviam algumas camisinhas na mochila; não sou tãoidiota assim. Mas fui idiota o suficiente para aceitar essa explicação, porque nãome lembrava absolutamente de ter guardado e levado diagramas que deviamestar expostos lá nas paredes um tanto mofadas da casa de meu pai. Porém,alguma coisa lânguida e firme na voz de Anna me fez não contrariá-la e acharque eu havia, no fim das contas, me atrapalhado, ou tido algum lapso.

Eu disse que passei apenas seis meses morando no apartamento da cidade, eque isso me rendeu uma rotina insuportável de pesadelos, não foi? Pois essa nãofoi a verdade completa. Os pesadelos frequentes, desde que dormi pela segunda

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 vez naquela noite, ao lado de Anna, desapareceram de maneira inexplicável.Quando voltei para o apartamento no dia seguinte, a noite transcorreutranquila, embora com uma leve dose de apreensão.

Como qualquer outra pessoa que vive na cidade. Ou quase poderiadizer: como sempre foram as noites dormidas em Grotão.

E por mencionar Grotão, não voltei lá até o final do semestre. Apesar dealguns pedidos estranhos da parte de meu pai, de ir passar o fim de semana comele (durante o primeiro mês, ele fazia questão de que eu permanecesse nacidade, para não insistir em voltar a Grotão), o meu namoro com Anna metomava quase todo o tempo desperto fora das aulas. Ou quase isso, já que faltei

 várias aulas junto com ela, rodando a cidade em sua companhia, ou nosencontrando na casa dela (e nunca no meu apartamento: ela sempre serecusava), desfrutando de várias horas de sexo. Embora não fosse uma mulherciumenta, Anna com certeza revelou-se possessiva, tomando quase todos osinstantes da minha vida, inclusive quando não estava fisicamente por perto.

 Além de possessiva, também continuou mantendo sua aura de mistério:o ápice disso foi quando, com cerca de três meses e pouco de namoro, ou seja,depois de mais ou menos quatro meses e meio de minha estadia na cidade, elapassou vários dias sumida, sem telefonar nem abrir a porta da casa (é possívelque estivesse lá dentro o tempo todo, nunca me passou uma cópia da chave).

 Antes que eu chegasse a notificar a polícia, ela reapareceu na universidade,pedindo desculpas pelo sumiço, mas é que havia tido de lidar com um problemade família, e nisso ficou. Não adiantou pedir maiores explicações. Desde essedia, nossa relação se afrouxou um pouco, mas não o suficiente para diminuir odomínio dela sobre mim – não que ela continuasse me procurando com a

mesma insistência, mas eu não deixava de pensar nela e nossos contatoscomeçaram a ser, em sua maioria, iniciados por mim.

Um mês se passou; meu pai aumentou a insistência de seus convitespara que eu voltasse a Grotão nos fins de semana, mas as últimas provas seaproximavam, então usei esse fato de desculpa para não ficar sem ver Anna.Essa foi uma das minhas fontes de arrependimento, que mencionei no começodo relato: se tivesse aceito um desses convites, quem sabe meu pai não estivesseagora internado num asilo, num estado de senilidade avançada que antes nãodemonstrava.

E então, durante a última semana de provas, os convites tornaram-semenos uma exigência do que uma súplica. Meu pai implorava, quase chorandoao telefone, que eu largasse tudo e viesse vê-lo – ele não tinha nem condições desair da própria casa naquele momento para me encontrar, e eu não conseguientender muito bem a razão, mas sua voz era aflita e ele estava muito confuso edesesperado.

Como uma espécie de vingancinha por aquele sumiço de Anna, não dei a elaaviso nem explicação nenhuma e fui direto, após uma prova numa quarta-feira,

da universidade para o subúrbio de Grotão. Cheguei bem tarde, quase onzehoras da noite; o céu noturno exibia um brilho cinza-escarlate, e poucas estrelaspodiam ser vistas em meio à cobertura de ar sujo. Era incrível, mas parecia que

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Grotão exibia um estado ainda mais deteriorado: as ruas estavam maissilenciosas do que mesmo aquela hora sombria poderia indicar, o descuido dos

 jardins era ainda mais nítido, e trepadeiras, líquens e manchas pútridas depoluição lotavam os muros da casa de meu pai. Este ardia em febre, nem sequerpôde me abrir a porta, que lidei com minha própria chave.

Uma terrível e bizarra melancolia me assaltou ao perceber também odesleixo e caos dentro de minha própria casa. Minha tia solteirona pareciasequer existir: apesar de não estar de cama como meu pai, deixava a casa aodeus-dará, o chão quase pegajoso de poeira e umidade, objetos e roupaslargados nesse piso imundo. Não tive qualquer ânimo de reclamar, todavia. Nãosó a febre delirante de meu pai merecia atenção imediata, como notei que a tiatinha retraído-se a uma misantropia ainda maior, nem sequer mais falava, eandava pelos corredores da casa como autômato insensível. Por quê meu pai nãomencionara antes esse declínio horrendo, ele nunca me respondeu. Parece que atendência dele a eufemismos acabara lhe custando a saúde e talvez, a sanidadede sua irmã.

 A cada noite que passo andando por esses corredores da casa que umdia foi de meu pai, sozinho, lembrando daquela ocasião fatídica em que voltei adormir nela, um temor e uma sensação de amargura me assaltam. Mas eu seique é melhor para ambos estarem longe de Grotão e da praga que ali seinstaurou, à minha revelia e por minha culpa.

Depois das providências tomadas com mais urgência, meu pai revelouem sussurros que estava com medo de dormir. Suas olheiras estavam muitopiores do que há seis meses atrás; uma palidez lhe tomava o rosto quando elefalava dos pesadelos horríveis que tinha. E em seu relato, o medo foi crescendo

em meu próprio peito, porquanto eu reconhecia detalhes muito familiares, masque não tinha contato há meses.

O pior de tudo é que meu pai precisava de repouso; não adiantava senãoconfrontá-lo com o que ele mais temia, que era dormir. Pus uma músicarelaxante em seu quarto, e tentei confortá-lo com uma conversa sem muitopropósito, para que ele logo entrasse no sono. Durante essa conversa –praticamente uma canção de ninar – eu via minha tia passar a cada cincominutos ou isso, andando pelo corredor como se estivesse caçando insetos nasparedes.

 Apesar de perturbado e temeroso, meu pai acabou se rendendo ao sono.Havia um colchonete no quarto, e quase considerei seriamente estendê-lo edormir ali mesmo, do lado da cama de solteiro de meu pai. Mas, ignorandoalguma intuição estranha que me vinha, preferi dormir no quarto ao lado, ondehavia a cama de casal que meu pai usara com minha mãe enquanto ela esteva

 viva.

Pedi à tia que fosse dormir, em vez de vagar pela casa, e ela resmungoude volta alguma coisa que não compreendi; deixei de insistir e fui eu mesmo merecolher. Tirei a camisa e dormi com a mesma calça que andei na rua.

Eu tentei abafar aquele medo debaixo do tapete do subconsciente, mas ele

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 voltou para me assombrar... Tão logo adormeci, me vi como há meses, vagandopelas trevas palpáveis, o fervilhar dos tentáculos anômalos lutando contra essastrevas, a inenarrável queda por um túnel penumbroso e espelhado. Só que aocontrário de me ver sozinho na grande planície branca e enevoada de Thangar-Baru, coberto pelo céu esquisitamente malva, para suportar algum novo ordálionoturno, vi uma multidão de vultos a caminhar perdida na infinitude da

planície. As figuras cambaleavam em meio à bruma que se erguia ansiosa, comose manifestando uma vontade inominável.

Comecei a também andar entre esses vultos, buscando avidamente umaexplicação para aquilo – e entre eles encontrei faces conhecidas, vizinhos quenão via há meses, colegas de infância, o carteiro do bairro, os policiaispreguiçosos que faziam a ronda, o padeiro envelhecido, todos demonstrandouma mistura incompreensível de apatia e pânico, que poucas palavras tenhopara descrever.

 Além das feições emaciadas e abatidas, as figuras na névoa de Thangar-

Baru também exibiam marcas, cicatrizes, lacerações, membros mutilados,órgãos expostos... quanto mais eu andava em meio a eles, que mal respondiam ameu olhar interrogativo, como se não estivesse ali (eles mal reagiam uns aosoutros!), mais o estado físico e mental dos vultos parecia piorar.

Foi quando o pânico me assaltou, pois eu não havia até entãoencontrado meu pai, nem minha tia. Saí em nervosa e desabalada busca, para sónotar outro detalhe apavorante… várias das cicatrizes e marcas nos corpos demeus vizinhos oníricos tinham a forma dos sigilos que eu desenhara nosdiagramas de seus sonhos!

 Ao perceber isto, soltei um grito insano. A multidão ao meu redorestacou, como se tomada de um frêmito de temor, e vários procederam a fugirdesordenadamente… era como se meu berro houvesse de atrair uma fera, ouquem sabe as hordas de monstrengos que habitavam a planície. Mas era tudoum sonho! Tudo um sonho! Uma insensatez me tomou e fui sendo deixado pelosfiguras que corriam em desespero, até que uma forma pouco reconhecível, maspressagiosa, começou a descer, vinda dos céus, como se nadasse em meio a umoceano de cor malva… ao chegar mais perto, notei que bizarras patas quitinosasse mexiam num frenesi inquieto, quatro de cada lado; que a coisa, hedionda, eracomo um imenso tubarão, com as patas assemelhadas às de um escorpião, e quecomo de um aracnídeo assim também a cauda terminava num maldoso ferrão. A 

coisa pousou, vinda do líquido nojento que era o céu malva, e pude perceber quesua cor era quase que a mesma do céu, apenas um pouco mais escura, e daí adificuldade de distinguir antes o que era aquilo que se contorcia, nadando noespaço acima.

O monstro não teve um instante sequer de imobilidade, enquanto aminha própria paralisia me prendia e enraizava os pés em meio a névoa cruelque baixava, como se satisfeita em revelar cada contorno macabro daquele serfaminto. Porque faminto ele estava: abocanhou dois dos vultos em fuga,sacudindo a cabeça descomunal e mutilando as figuras num banho de sangue,logo absorvido pela bruma inquieta.

 As projeções oníricas atacadas afastaram-se, misturando gemidos elamentos a um uivo incompreensível, como se numa língua ancestral entoado

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súplicas, e nelas eu reconhecia a voz de meu pai e minha tia… mas nada pudefazer. A criatura virou-se para mim, e eu, preso de medo, sentia como se meufim já houvesse chegado. Seria devorado por aquela abominação malva queagora predava na planície de Thangar-Baru.

O monstro chegou a poucos metros de mim, mas seu tamanho, maior

que uma locomotiva, me dava a ilusão de estar a poucos centímetros de meurosto – e de qualquer forma, era um sonho, não? Só podia ser um sonho! Derepente, uma serenidade mórbida caiu sobre mim, pois instintivamente soubequem era aquele devorador, aquele torturador medonho, feito de sangue esubstância malva dos sonhos: ele abriu as mandíbulas já esperadas, arregalandoos olhos tomados pelas pupilas de um púrpura de tom escuríssimo, exibindo asfileiras de dentes que se contorciam com o formato e jeito de ferrões

 venenosos… e dentro de sua goela esfomeada, pulsava aquela língua inchada,hedionda e anormal, que tinha a forma de um rosto humano esculpido na carne

 viva!

O rugido gutural da coisa agrediu-me de tal forma que fui expulsodaquele domínio de pesadelos, acordando encharcado de suor, na cama doquarto vizinho ao de meu pai.

Saí correndo da casa, horrorizado, depois de checar a segurança de ambos, pai etia. Acordei um vizinho que me conhecia desde criança, e exigi aos gritos que eleme emprestasse o carro, era uma emergência, eu precisava ir à cidade naquelemesmo instante. Assustado, o homem acabou concordando, e disparei pelasruas de Grotão em alta velocidade, na direção da estranha casa de Anna.

Fora de mim, tomado de raiva, senti a cólera sumir num instante, aocruzar a esquina da rua onde aquela casa anormal se ocultava. Um incêndioconsumia a casa de dois andares, e ninguém parecia ter chamado os bombeiros,ou pelo menos eles não haviam chegado. Desesperado, liguei para a sede dos

 bombeiros pelo celular; e depois de muita tentativa (a recepção estava péssima,e a linha caía toda hora) dei o endereço para que viessem socorrer a casa quecomeçava a parecer uma ruína antiga e devastada, mostrando finalmente sua

 verdadeira aparência.

Cheguei a imaginar se um ato heroico da minha parte, ali naquele

momento fatídico, poderia ter salvado Anna, quando um dos bombeiros veio medizer que o cadáver dela fora encontrado em meio aos destroços – mas oremorso não me doeu muito tempo, porque depois de alguma reserva dasautoridades, soube que o incêndio começara do quarto dela, e que fora umadaquelas quase míticas ocorrências de autocombustão espontânea… umpolêmico vídeo chegou a vazar, com minha falecida namorada executandoestranhos cânticos rituais diante de uma câmera digital conectada à internet, eculminando nas chamas tomando inexplicavelmente seu corpo no ápice do talrito.

 Ao que parece, pelo menos um dos bujões de gás das cozinhas da casa

havia sido deixado aberto, e o gás disperso pela casa causou o estrago principal,ao explodir. Uma lenda urbana até se formou sobre o caso, e uma de suas

 variações mais inócuas conta que o fogo que engolfou a ritualista era verde e

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tremulava de modo quase caprichoso. A maioria das pessoa que chega a assistirao vídeo não vê nada disso, porém. Quanto a mim, pelo contrário, sentia que um

 véu, colocado antes por Anna, fora tirado dos meus olhos. Não demoraria muitopara eu descobrir toda a verdade que pressentia.

Hoje, um ano depois desses acontecimentos, me acostumei a uma rotina ingrata,levado por uma senso de dever singular, de responsabilidade pessoal – essesnomes enfeitados que damos à sensação de culpa. Reuni como pude os restossobreviventes da biblioteca profana de Anna, suas obras de arte enigmáticas,seus tomos secretos de rituais. Houve uma certa dificuldade nesse sentido, mascomo ela não tinha parentes vivos reconhecidos, e o advogado da minha própriafamília era quase tão astuto quanto Anna… Meu pai, sem qualquer necessidadede uma explicação da minha parte, foi para o asilo curtir os últimos anos de sua

 velhice, numa paz maior do que a que poderia ter em Grotão; e minha tia teve deser encerrada numa casa de recuperação para doentes mentais.

Sozinho naquela casa, agora cercada de uma série de proteções ealarmes, depois de espreitar pelas ruas do subúrbio, à noite, me refugio noquarto trancado, cujas paredes estão lotadas pelos diagramas oníricos quedesenhei… pelos sigilos de invasão de sonhos, elaborados nos papéis do cofre de

 Anna… pelas notas discretas de jornal que mostram o aumento dacriminalidade, dos casos de surto mental, de sonambulismo e de acidentesinexplicáveis em Grotão… e pelos registros chamuscados que não chegam aprovar legalmente, mas para os que sabem deduzir, revelam a realização de umaborto durante aquele curto período em que Anna esteve desaparecida… de umembrião de três meses e treze dias… e naquele cubículo isolado, após acender os

necessários incensos místicos de cheiro antisséptico, desenho meu círculo deproteção para em seu centro adormecer, todas as noites…

…E invadir Thangar-Baru, a Planície Eterna nas Terras do Sonho, ondemultidões de almas adormecidas correm perigo, para subir no farol que construía duras penas, nas bordas daquele reino onírico, feito a partir da essência deconhecimento e sigilos arcanos, e de suas alturas localizar nas trevas de cormalva a sombra daquela coisa que caço e enfrento e mato, empunhando a facade aço meteórico forjado no poço do fogo verde: a coisa monstruosa queressuscita noite após noite, e que escancara a goela antes de morrer, mostrandona deformada língua aquele rosto quase idêntico ao meu, a não ser pelos cabelos

ruivos e pelos olhos verde-amarelados, em êxtase imortal, iguais aos de minhafalecida namorada, Anna, a feiticeira.

Esta noveleta foi publicada originalmente emhttp://insanemission.blogspot.com/2010/09/o-farol-na-escuridao.htmlE foi revisada e reescrita em alguns pontos em junho de 2012.

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