narrar o trauma

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    PSIC. CLIN., RIODE JANEIRO, VOL.15, N.2, P.X Y, 2003

    65ISSN 0103-5665

    PSIC. CLIN., RIODE JANEIRO, VOL.20, N.1, P.65 82, 2008

    65ISSN 0103-5665

    NARRAROTRAUMA AQUESTODOSTESTEMUNHOSDECATSTROFESHISTRICAS

    Mrcio Seligmann-Silva*

    RESUMO

    O trabalho prope uma reflexo sobre algumas das caractersticas do gesto testemu-nhal enfatizando as aporias que o marcam. Partindo da idia de que o testemunho de certomodo s existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade, o texto enfatiza osdilemas nascidos da confluncia entre a tarefa individual da narrativa do trauma e de suacomponente coletiva. Nas catstrofes histricas, como nos genocdios ou nas persegui-es violentas em massa de determinadas parcelas da populao, a memria do trauma sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memria individual e outro cons-

    trudo pela sociedade. O testemunho analisado como parte de uma complexa poltica damemria.Palavras-chave: testemunho; memria do trauma; trauma; poltica da memria

    ABSTRACT

    NARRATINGTRAUMA TESTIMONIESOFHISTORICALCATASTROPHESThe text carries out a reflection about some of the main issues concerning the gesture of

    testimony, highlighting the apories of witnessing. Departing from the idea that testimony onlyexists under the sign of its collapse and impossibility, the essay stresses the dilemmas raised from

    the convergence between the individual task of the trauma storytelling and its collectivecomponent. In historical catastrophes, as in the cases of genocides or violent mass persecutions of

    particular groups of people, the memory of the trauma is always a search for a compromisebetween the individual memory work and another, more collective. The testimony is analyzedas a part of a complex politics of memory.

    Keywords: testimony; trauma memory; trauma; politics of memory

    * Professor livre-docente de Teoria Literria na Universidade de Campinas (UNICAMP) e

    pesquisador do CNPq.

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    Parler, crire, est, pour le dport qui revient, un besoin aussi immdiat et aussifort que son besoin de calcium, de sucre, de soleil, de viande, de sommeil, de silence.

    Il nest pas vrai quil peut se taire et oublier. Il faut dabord quil se souvienne.Il faut quil explique, quil raconte, quil domine ce monde dont il fut la victime.

    Georges Perec (citado em Levi, 2005: 15)

    Estas palavras de Perec nos lanam sem mais no corao da cena do testemu-nho. Antes de mais nada, vemos aqui a necessidade absoluta do testemunho. Elese apresenta como condio de sobrevivncia. O prprio Primo Levi (1988) ex-pressou este fato no prefcio de isto um homem. Vale a pena voltarmos a estaspalavras de Levi porque ele acrescenta a esta idia de necessidade de testemunhar

    outro dado fundamental, a saber, a sua implcita dialogicidade: A necessidade decontar aos outros, de tornar os outros participantes, alcanou entre ns, antes edepois da libertao, carter de impulso imediato e violento, at o ponto de com-petir com outras necessidades elementares (Levi, 1988: 7). Seguindo estas pala-vras, podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma atividade elemen-tar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager(campode concentrao) ou de outra situao radical de violncia que implica esta neces-sidade, ou seja, que desencadeia esta carncia absoluta de narrar. Levi nesta passa-

    gem coloca as expresses aos outros e os outros entre aspas. Este destaqueindica tanto o sentimento de que entre o sobrevivente e os outros existia umabarreira, uma carapaa, que isolava aquele da vivncia com seus demais compa-nheiros de humanidade, como tambm a conseqente dificuldade prevista destacena narrativa. Sabemos que dentre os sonhos obsessivos dos sobreviventes constaem primeiro lugar aquele em que eles se viam narrando suas histrias, aps retornarao lar. Mas o prprio Levi tambm narrou uma verso reveladora deste sonho,que ficou conhecida, na qual as pessoas ao ouvirem sua narrativa se retiravam do

    recinto deixando-o a ss com as suas palavras. A outridade do sobrevivente vistaa como insupervel. A narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a torna-vam elementar e absolutamente necessria, este desafio de estabelecer umapontecom os outros, de conseguir resgatar o sobrevivente do stio da outridade, deromper com os muros do Lager. A narrativa seria a picareta que poderia ajudar aderrubar este muro. A circulao das imagens do campo de concentrao que seinscreveram como uma queimadura na memria do sobrevivente, na medida emque so aos poucos traduzidas, ber-Setzte, transpostas, para os outros, permite

    que o sobrevivente inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstruoda sua casa. Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido prim-rio de desejo de renascer.

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    Gostaria de pensar, neste espao, caractersticas deste gesto testemunhalenfatizando algumas das aporias que o marcam. A cena testemunhal no demodo algum estranha aos profissionais da rea de psicologia e decerto muito doque vou apresentar bastante familiar, Heimlich, a vocs. Em certo sentido pode-mos ver a cena psicanaltica elementar, ou seja, o paciente diante de seu analista,como uma cena testemunhal. Trata-se, mutatis mutandis, de um sobrevivente bus-cando a ateno e escuta de um outro, tendo em vista a construo de um mundomenos Unheimlich1.Isto sem contar a centralidade da noo de trauma em Freude na histria da psicanlise, noo cuja histria no trato aqui, mas pressuposta,tendo em vista sua importncia vital para se entender a questo da narrativa dotrauma. Visando um local de compromisso entre esta cena familiar a vocs e abor-

    dagens mais histricas ou filosficas, e sem perder de vista um possvel dilogo,decidi enfatizar algumas das problemticas nascidas da confluncia entre a tarefaindividual da narrativa do trauma e de sua componente coletiva. Da a nfase nottulo desta conferncia na expresso catstrofes histricas. Nestas situaes, comonos genocdios ou nas perseguies violentas em massa de determinadas parcelasda populao, a memria do trauma sempre uma busca de compromisso entre otrabalho de memria individual e outro construdo pela sociedade. Aqui a j em siextremamente complexa tarefa de narrar o trauma adquire mais uma srie de de-

    terminantes que no podem ser desprezados mesmo quando nos interessamos emprimeiro plano pelas vtimas individuais. No que segue apresentarei em primeirolugar alguns aspectos da mencionada dificuldade de se testemunhar. Veremos queo testemunho de certo modo s existe sob o signo de seu colapso e de sua impos-sibilidade. No segundo passo tratarei especificamente da questo da poltica damemria: primeiro introduzindo algumas definies importantes para se enten-der o conceito de memria, depois tratando do tema da memria como umapoltica.

    NARRARO INENARRVEL

    Dori Laub (1995), em um ensaio importante sobre o tema do testemunhoda Shoah, dedicou especial ateno para a questo da impossibilidade de narra-o e formulou a idia que o Holocausto foi um evento sem testemunha (Laub,1995: 65). Neste trabalho ele destacou a impossibilidade daquele que esteve noLager(o que se passou com o prprio Laub quando criana) de ter condies de se

    afastar de um evento to contaminantepara poder gerar um testemunho lcido entegro. O prprio grau de violncia impediu que o testemunho pudesse ocorrer.Sem testemunho, evidentemente, no se constitui a figura da testemunha. Para ele

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    em primeiro lugar ele se d sempre no presente. Na situao testemunhal o tempopassado tempo presente (Mais um paralelo, alis, com a cena psicanaltica esabemos que Freud buscou vrias metforas ao longo de sua vida, como a dacmara fotogrfica, um campo geolgico e o bloco mgico, para exprimir esteelemento paradoxal da temporalidade psquica concentrada em um mesmo to-pos.). Mais especificamente, o trauma caracterizado por ser uma memria de umpassado que no passa. O trauma mostra-se, portanto, como o fato psicanalticoprototpico no que concerne sua estrutura temporal. Levi diz que neste hoje dasua escritura ele no est certo se os fatos (do Lager) de fato aconteceram. Este teorde irrealidade sabidamente caracterstico quando se trata da percepo da me-mria do trauma. Mas, para o sobrevivente, esta irrealidade da cena encriptada

    desconstri o prprio teor de realidade do restante do mundo2.Hlne Piralian (2000), psicanalista de origem armnia, refletiu sobre esta

    questo ao tratar do genocdio armnio e sobre a questo da sua representao.Para ela a simbolizao do evento implica a (re)construo de um espao simb-lico de vida (Piralian, 2000: 21). Esta simbolizao deve gerar um retemporalizaodo fato antes embalsamado. Ele adenda, assim, ao fluxo dos demais fatos da vida.Piralian fala tambm, e de modo muito feliz, de uma tridimensionalidade advindada simbolizao. Ao invs da imagem calcada e decalcada, chata, advinda do cho-

    que traumtico, a cena simbolizada adquire tridimensionalidade. A linearidadeda narrativa, suas repeties, a construo de metforas, tudo trabalha no sentidode dar esta nova dimenso aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova di-menso equivale a conseguir sair da posio do sobrevivente para voltar vida.Significa ir da sobre-vida vida. claro que nunca a simbolizao integral enunca esta introjeo completa. Falando na lngua da melancolia, podemos pen-sar que algo da cena traumtica sempre permanece incorporado, como um corpoestranho, dentro do sobrevivente. Na cena do trabalho do trauma nunca podemos

    contar com uma introjeo absoluta. Esta cena nos ensina a sermos menos ambi-ciosos ou idealistas em nossos objetivos teraputicos. Para o sobrevivente semprerestar este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado comoque do outro lado do campo simblico.

    Este estranhamento est intimamente vinculado ao tema da irrealidade dosfatos vividos e da conseqente inverossimilhana dos mesmos. Este constitui umtoposimportante das narrativas do trauma. O sobrevivente, como o tradutor, estsubmetido a um duplo vnculo. Enquanto aquele que traduz deve se submeter, ao

    mesmo tempo, sem esperanas de uma trgua, ditadura da lngua que traduz e ada lngua para qual est traduzindo, do mesmo modo o sobrevivente no caso daShoah tenta (sem sucesso) conciliar as regras de verossimilhana do universo

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    concentracionrio com as do nosso mundo. O Levi que sonha com seu pblicoouvinte que o abandona j previa a sensao de inverossimilhana gerada pelosfatos que narraria e a conseqente acusao de mentiroso que o esperava. RobertAntelme (1957), em seu testemunho sobre sua experincia nos campos alemes,tambm expressou esta angstia que est na base da pulso testemunhal.

    H dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, est-vamos todos, eu creio, tomados por um delrio. Ns queramos falar, finalmen-te ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparncia fsica era suficientementeeloqente por ela mesma. Mas ns justamente voltvamos, trazamos conosconossa memria, nossa experincia totalmente viva e sentamos um desejo fren-

    tico de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nosimpossvel preencher a distncia que descobrimos entre a linguagem de quedispnhamos e essa experincia que, em sua maior parte, nos ocupvamos ain-da em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a no tentar explicarcomo havamos chegado l? Ns ainda estvamos l. E, no entanto, era impos-svel. Mal comevamos a contar e sufocvamos. A ns mesmos, aquilo quetnhamos a dizer comeava ento a parecer inimaginvel. Essa desproporoentre a experincia que havamos vivido e a narrao que era possvel fazer delano fez mais que se confirmar em seguida. Ns nos defrontvamos, portanto,com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imagi-nao. Ficou claro ento que seria apenas por meio da escolha, ou seja, aindapela imaginao, que poderamos tentar dizer algo delas (Antelme, 1957: 9)3.

    essencial nos determos um pouco nesta concluso que Antelme extrai dodilema da testemunha. Aimaginao apresenta-se a ele como o meio para enfren-tar a crise do testemunho. Crise que, como vimos, tem inmeras origens: a inca-pacidade de se testemunhar, a prpria incapacidade de se imaginar o Lager, o

    elemento inverossmil daquela realidade ao lado da imperativa e vital necessidadede se testemunhar, como meio de sobrevivncia. A imaginao chamada comoarma que deve vir em auxlio do simblico para enfrentar o buraco negro do realdo trauma. O trauma encontra na imaginao um meio para sua narrao. Aliteratura chamada diante do trauma para prestar-lhe servio. Et pour cause, sedermos uma pequena olhada sobre a histria da literatura e das artes veremos queos servios que elas tm prestado humanidade e seus complexos traumticos no desprezvel. Da Ilada aOs sertes, de dipo Rei (Sfocles, [500 BC.] 1982)

    Guernica(Picasso, 1937), de Hamlet (Shakespeare, [1602] 1936) ao teatro ps-Shoah de um Beckett, podemos ver que o trabalho de (tentativa) introjeo dacena traumtica praticamente se confunde com a histria da arte e da literatura. A

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    teoria freudiana da tragdia como ritual de exorcismo do assassinato do pai pelahorda primeva apenas uma das inmeras verses da teoria esttica que v asartes como uma espcie de escudo de Perseu. Neste escudo miramos os olhos daGrgona que, segundo Primo Levi, matou ou emudeceu aqueles que chegaramao fundo do sistema concentracionrio e se deparam com eles. Para muitossobreviventes, como o caso de Jorge Semprun (1994), a pessoa que melhorpode escrever sobre os campos de concentrao quem no esteve l e l entroupelas portas da imaginao4.

    Mas esta soluo est longe de implicar uma pacificao na cena do traumae do seu testemunho. Antes por conta da imaginao que muitas acusaes sofeitas contra o testemunho. Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu

    evidente compromisso com a imaginao), a prpria narrativa testemunhal, quese quer primeira, atestao, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa descartada por muitos historiadores como o prprio Raul Hilberg (1996) como sendo fonte no fidedigna para o historiador. Neste ponto vislumbramosuma querela que acompanha a historiografia desde seus primrdios, em sua lutacontra a escrita dita imaginativa. Mas ao invs de negarmos ao testemunho apossibilidade de ver na imaginao e em seu trabalho de sntese de imagens umpotente aliado, devemos, com Derrida (1998), ver nesta aproximao entre o campo

    testemunhal e o da imaginao a possibilidade mesma de se repensar tanto a lite-ratura, como o testemunho e o registro da escrita autodenominado de srio erepresentacionista. Ocorre uma reviso da noo de literatura justamente porquedo ponto de vista do testemunho ela passa a ser vista como indissocivel da vida,a saber, como tendo um compromisso com o real. Aprendemos ao longo do scu-lo XX que todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhal. No setrata da velha concepo realista e naturalista que via na cultura um reflexo darealidade, mas antes de um aprendizado psicanaltico da leitura de traos do

    real no universo cultural. J o discurso dito srio tragado e abalado na sua arro-gncia quando posto diante da impossibilidade de se estabelecer uma fronteirasegura entre ele, a imaginao e o discurso dito literrio. No existe uma essnciado literrio que d conta de cont-lo diante do discurso dito srio. Por fim, comoescreve Derrida, le tmoignage a toujours partie lie avec la possibilit au moinsde la fiction, du parjure et du mensonge. Cette possibilit limine, aucuntmoignage ne serait plus possible et naurait plus en tout cas son sens detmoignage (Derrida, 1998: 28). O testemunho s tem sentido com a sua

    contraparte estrutural, o falso-testemunho. Ou seja, assim como Coleridge (1817)definiu a literatura como uma suspenso voluntria da desconfiana, o mesmo,em outro grau (mas justamente tudo torna-se uma questo de grau), se d no

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    testemunho. Sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de tambm portaraquele testemunho que se escuta, no existe o testemunho. O dialogismo do teste-munho o transporta para o campo da pragmtica do testemunho. E aqui j estamosanunciando nosso prximo passo: a poltica do testemunho.

    Antes de passar para este item, mas j nos dirigindo a ele, tratemos por fim,dentro do tema das aporias do testemunho, da questo da sua paradoxal singula-ridade. Todo testemunho nico e insubstituvel. Esta singularidade absolutacondiz com a singularidade da sua mensagem. Ele anuncia algo excepcional. Poroutro lado, esta mesma singularidade que vai corroer sua relao com o simb-lico. A linguagem um constructo de generalidades, ela feita de universais. Otestemunho como evento singular desafia a linguagem e o ouvinte. Sabemos que

    a fragmentao do real, o colapso do testemunho do mundo, como vimos, emperrasua passagem e traduo para o simblico. A conhecida literalidade da cena trau-mtica ou o achatamento de suas imagens, que vimos acima trava a simbolizao.Mas ao se reafirmar esta singularidade absoluta do testemunho barra-se a possibi-lidade de sua repetio e sinapse com o simblico, sempre assombrado pela possi-bilidade da sua ficcionalizao. Como vimos, esta passagem para o imaginrio desejvel e pode ter um efeito teraputico, mas para um certo discurso sobre otestemunho sobretudo o jurdico, mas no s a fico contamina e dissolve o

    teor de verdade do testemunho. No discurso jurdico onde este elemento para-doxalmente singular do testemunho (e das provas) levado mais adiante, colocan-do o testemunho em um verdadeiro territrio de ningum. Dostoivski percebeuisto e, freqentador contumaz de tribunais, ele dizia que as provas tm sempredois gumes (Dostoivski, [1865] 2001: 348), um verdadeiro insightpsicanalti-co sobre o duplo vnculo. Ou seja, a literalidade da situao traumtica trazconsigo a sensao de singularidade absoluta. Esta no nada mais do que osintoma da ruptura com o simblico. Na tentativa de cobrir este gap com a

    simbolizao a testemunha se volta para o trabalho da imaginao. neste pontoque o campo jurdico passa a lanar uma suspeita sobre o testemunho. Ele gostariade manter a singularidade total do testemunho, que significaria a chancela de seuteor de prova, de fragmento do real. Mas a engrenagem jurdica emperra umasegunda vez, justamente ao defender esta singularidade literaldo evento. Pois tam-bm as leis como a linguagem so generalizantes, so universais que muitoprecariamente cobrem os delitos individuais. O testemunho como hbrido desingularidade e de imaginao, como evento que oscila entre a literalidade trau-

    mtica e a literatura imaginativa, assombra duplamente o direito.Por outro lado, o testemunho tambm se quer compreensvel e, mesmo, otestemunho se quer exemplar. Neste sentido reencontramos um veio tradicional

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    do conceito de testemunho, que o articula figura crist do mrtir (tambmmuito cara a Dostoivski). Mrtir aquele que sofre e morre para testemunharsua f. O mrtir (do grego mrtus- uros, aquele que testemunha, ou seja, quepercebe o mundo), ao testemunhar de modo nico esta f universal, torna-se elemesmo um exemplo, um modelo, uma vida exemplar, que as hagiografias at osculo XX reproduziam com certo sucesso. Aquele que testemunha um fato ex-cepcional muitas vezes torna-se ele tambm uma figura exemplar. Sabemos dovalor atribudo em nossa sociedade aos sobreviventes. Eles representam exemplosnicos daqueles que viram de perto atrocidades inominveis. Eles portam estasverdades e so tratados como porta-vozes delas. Esta unicidade paradoxal do tes-temunho, que desafia a linguagem, levou tambm ao discurso da unicidade das

    catstrofes. Em particular fala-se muito da unicidade da Shoah. Como escreveuPrimo Levi: o sistema concentracionrio nazista permanece ainda um unicum,em termos quantitativos e qualitativos (Levi, 1990: 7). Mas esta questo deve servista com cautela. Seria moral comparar qual grupo tentativamente dizimado so-freu mais? Aqui encontramos uma tpica armadilha de nossa era politicamentecorreta e devemos, de preferncia, no pisar nela e sim tentar desmont-la.

    Do ponto de vista das vtimas e este ponto de vista fundamental ao seestudar o testemunho, voltaremos a este ponto toda catstrofe nica. Radicalizar

    esta singularidade, assim como condenar toda comparao entre os genocdios,por outro lado, pode gerar uma espcie de teologia negativa concentracionria,muito improdutiva e que apenas tende a reproduzir dois males: em primeiro lugara prpria situao do traumatizado na sua resistncia simbolizao e, em segun-do lugar, o discurso dos algozes que tambm visa estender um tabu sobre o discur-so que recorde as atrocidades cometidas. Como escreveu Ruth Klger (1994), elamesma uma sobrevivente de trs campos de concentrao e autora de um relatoautobiogrfico publicado em portugus com o ttulo Passagens da memria,mes-

    mo cada cachorro nico (Klger, 1994: 70).

    POLTICADAMEMRIA

    O testemunho uma modalidade da memria. Se os estudos sobre o teste-munho no seu sentido no mais religioso ou meramente jurdico, mas antescomo uma busca de se ler na cultura as marcas das catstrofes do sculo XX sedesenvolveram nas ltimas dcadas porque ocorreu neste perodo uma virada

    culturalistadentro das ditas cincias humanas. Nesta virada a memria passou aocupar um lugar de destaque, submetendo a quase onipresena da historiografiano que tange escritura de nosso passado5. Neste perodo tambm a prpria his-

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    toriografia se abriu aqui e ali influncia dos discursos da memria, como vemosem trabalhos de histria que introduzem procedimentos da histria oral ou nosque se abrem tambm ao trabalho com as imagens. A historiografia positivistatradicional avessa s imagens, desconfia delas assim como despreza a imagina-o. J a memria sempre foi pensada como um misto de verbalidade e imagens.Em seu pequeno tratado De memoria et reminiscentia(450 a 24) Aristteles notouque a memria, devido ao seu carter de arquivo de imagens, pertence mesmaparte da alma que a imaginao: ela um conjunto de imagens mentais das im-presses sensuais, com um adicional temporal; trata-se de um conjunto de ima-gens de coisas do passado. Aristteles tambm escreveu com relao ao nossopensamento de um modo geral: a alma nunca pensa sem uma imagem mental

    (De anima, 432 a 17, citado por Yates, 1974: 32); mesmo quando pensamos demodo especulativo, devemos ter uma imagem mental com a qual pensamos (Deanima, 432 a 9, citado por Yates, 1974: 32). Esta idia importante de ser desta-cada ao tratarmos do testemunho, porque assim como falamos de narrativa teste-munhal tambm deve-se pensar em uma arte testemunhal, ou seja, em prticasimagticas do testemunho6.

    Por agora nos contentemos em acentuar o elemento eminentemente polticono qual se desdobram os discursos testemunhais. O prprio conceito de testemu-

    nho pode ser traado ao longo do sculo XX na sua relao com o pensamentopoltico. Jean Norton Cru (citado por Rousseau, 2003), o primeiro a introduzir oconceito no campo da historiografia, tinha como objetivo fazer uma crtica daprimeira guerra mundial e dos discursos oficiais, belicistas, que enalteciam as fi-guras dos heris guerreiros. Sua resposta foi propor que a historiografia se abrissepara os testemunhos dos soldados. Seu livro Tmoins, de 1929, deve ser vistocomo a primeira tentativa sistemtica de se pensar o testemunho moderno7.

    J Walter Benjamin (1974), com a sua concepo do historiador como um

    chiffonier, tambm abriu a historiografia para o discurso testemunhal, apesar deter utilizado pouco este conceito. Mas uma frase famosa das suas teses Sobre oconceito da histria(Benjamin, 1974), no deixa dvidas quanto sua fortssimaproposta de leitura da histria na sua face testemunhal. Refiro-me evidentemente frase: nunca existiu um documento da cultura que no fosse ao mesmo tempoum [documento] da barbrie (Benjamin, 1974: 696; traduo nossa). interes-sante ler a traduo do prprio Benjamin dessa famosa passagem: Tout cela[lhritage culturel] ne tmoigne [pas] de la culture sans tmoigner, en mme temps,

    de la barbarie. J na Amrica Latina, sobretudo desde os anos 1960, o conceitode testemunho adquiriu uma centralidade enorme no contexto da resistncia sditaduras que assolaram o continente.

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    Hlne Piralian (2000) escreve seu referido livro de ensaios sobre o genocdiodos armnios de 1915-1916 sob o signo de uma escritura contra o negacionismo.Como muitos de vocs sabem, aquele genocdio que atingiu cerca de 1.200.000armnios do ento Imprio otomano, de uma populao total de cerca de1.800.0000, at hoje negado pelo governo da Turquia. Ainda em 2005 um con-gresso sobre este genocdio, que deveria ocorrer na Universidade de Bogazici, foiimpedido de ocorrer pelo governo turco (Folha de So Paulo, 24/09/2005: A27).Para Piralian o desafio do testemunho deste genocdio negado que assim matouduas vezes suas vtimas e continua a assassin-las simbolicamente o de se cons-truir em termos coletivos espaos para alm do desejo da vingana, da parte dosdescendentes das vtimas, e com a renncia da negao, do lado dos turcos. Apenas

    deste modo ela cr que se poderia finalmente proceder ao trabalho de luto, que at omomento foi travado e impedido por conta da negao. O negacionismo neste caso apenas um caso particularmente radical de um movimento que acompanha ogesto genocida. O genocida sempre visa a total eliminao do grupo inimigo paraimpedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingana. Os algozessempre procuram tambm apagar as marcas do seu crime. Esta uma questo cen-tral que assombra o testemunho do sobrevivente em mais de um sentido.

    Em primeiro lugar porque o sobrevivente vive o sentimento paradoxal da

    culpa da sobrevivncia. A situao radicalmente outra, na qual todos deveriammorrer, constitui sua origem negativa. A indizibilidade do testemunho ganha comeste aspecto um peso inaudito. Mas o negacionismo tambm perverso, porquetoca no sentimento acima referido de irrealidade da situao vivida. O negacionistaparece coincidir com o sentimento comum que afirma a impossibilidade de algoto excepcional. O apagamento dos locais e marcas das atrocidades correspondequilo que no imaginrio posterior tambm tende a se afirmar: no foi verdade. Aresistnciaquando se trata de se enfrentar o real parece estar do lado do negacionis-

    mo. Este sentimento comum mora no prprio sobrevivente e o tortura, gerandouma viso cindida da realidade. Piralian nota que o testemunho visa a integraodo passado traumtico. Esta integrao s pode ser conquistada contra o negacio-nismo. No por acaso se conta que Hitler em um discurso a seus chefes militaresem 22 de agosto de 1939, s vsperas da invaso da Polnia, teria dito Quem selembra hoje do extermnio dos armnios [durante a Primeira Guerra Mundial]?.Sua inteno era clara: apenas o lado herico da guerra seria lembrado, a impuni-dade estaria garantida. A negao antecedeu o prprio ato, ou seja, a tentativa de

    extermnio dos judeus europeus. A memria da barbrie tem, portanto, tambmeste momento iluminista: preservar contra o negacionismo, como que em umaadmoestao, as imagens de sangue do passado8.

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    Catherine Coquio (2004), em um interessante livro sobre o genocdio dosTutsis no Ruanda de 1994, aborda justamente os conflitos entre os rituais oficiaisde memria e as tentativas individuais da populao sobrevivente de enfrentareste luto quase impossvel de 1.300.000 mortos assassinados com faces ao longode apenas trs meses. Ela descreve uma situao na qual enquanto o Estado ten-deu para um rpido trabalho de memria, mais parecido a um trabalho de es-quecimento, boa parte da populao sofre diante da ausncia de interlocutorespara suas demandas de testemunho. Os rituais oficiais pareceriam mais Deckerin-nerung (memria encobridora) do que real disposio a tratar do passado. Fazparte destes rituais a publicao de um dicionrio com o nome dos desaparecidos,a exumao dos cadveres enterrados em fossas coletivas e a construo de

    memoriais, como foi o caso do Memorial de Kigali. Este ltimo foi inauguradoem 2004, aos dez anos do massacre, e contm um museu do genocdio, cujacenografia foi inspirada em Yad-Vasem, o memorial central dedicado Shoah emJerusalm. Mas faltam espaos para o testemunho. As igrejas, que poderiam emparte abrigar esta demanda, foram transformadas em 1994 em cenrio para osmassacres. Um relato de Monique Ilbudo, escrito em 1998, quatro anos aps ogenocdio, apresenta um pouco o retrato desta populao destruda por aquelaexperincia. Em 1998 as pessoas ainda estavam embrutecidas, perdidas. Alguns

    haviam escolhido a loucura para sobreviver e nos contavam coisas incoerentes.Outros estavam fechados no mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas,completamente destrudos (Ilbudo, citada por Coquio, 2004: 83).

    J o testemunho de Esther Mujawayo, tambm citado por Coquio (2004),mostra um descompasso entre as boas intenes daqueles que querem dar apoio aesta populao e suas necessidades.

    estes psiclogos... no queriam ouvir nosso traumatismo seno sob a forma queeles o compreendiam. [...] percebamos que o pas se transformava em um cam-po de experincias de um bando de aventureiros e antes de mais nada, de apren-dizes de psiclogo, de engenheiros, mdicos. Quantos energmenos ns novimos?[...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humanitrios so pes-soas apressadas e, como todas as pessoas apressadas, freqentemente julgamantes de escutar: eles querem solues rpidas, eficazes como mecanismos deautomvel, mas que no podem funcionar com humanos, ainda menos com

    humanos que saem de um genocdio. Eles querem se livrar da sua culpa comprogramas rpidos (Mujawayo, citada por Coquio, 2004: 84)

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    Esther Mujawayo reclama tambm da retrica oficial de 2004 que afirmavaque j se havia falado o suficiente do genocdio. Ela v uma coincidncia entreeste tipo de idia e o desejo dos Hutus de esquecer tudo e de apagar o passado. OEstado assumiu um discurso de unidade nacional, tentando conciliar os desejosdificilmente conjugveis dos Hutus e dos Tutsis. Deste modo, o testemunho nopde acontecer e estabelecer sua tentativa de criar pontes entre o sobrevivente e arealidade, entre ele e a sociedade. O discurso ficou estancado. Mesmo as tentativasde introduzir algo semelhante s Comisses de Verdade e Conciliao da fricado Sul parecem no ter obtido o resultado esperado. A introduo da Gacaca,uma instituio jurdica tradicional de Ruanda, uma espcie de conselho popular,deveria ter permitido a confisso em massa dos culpados e o testemunho das

    vtimas. Como este ritual no previa sanes penais, ele acabou se transformandoem um ritual de anistia disfarado de boas intenes. Neste sentido aGacacafoiinstrumentalizada pelo projeto de reconciliao e unificao que previa o perdocomo meio de cura dos traumas sociais. J a prpria ONU tampouco teve bem-vinda sua iniciativa de criar um Tribunal Penal Internacional para Ruanda, umavez que ela vista como cmplice por sua inao durante o genocdio.

    Jean Hatzfeld (2005) destaca a fala de uma sobrevivente deste genocdio queafirma, dentro de um topos que vimos acima, que no adiantaria testemunhar,

    porque ningum acreditaria nos fatos relatados. Sem contar que os sobreviventestm medo de retaliaes contra os que testemunham em pblico, visto que em2003 ocorreu uma srie de assassinatos de sobreviventes que foram consideradospotenciais denunciantes das atrocidades (Coquio, 2004). Lendo o testemunho deSylvie, uma assistente social de Ruanda citada por Hatzfeld (2005), entendemosum pouco melhor do que se trata nesta luta contra este legado do mal. Percebe-mos que a justia e sua capacidade de negociao entre os partidos e entre o passa-do e o presente ainda pode ter um papel a desempenhar nesta cena, como de resto

    j est ocorrendo na Amrica Latina em pases como a Argentina e o Chile, quetambm se vem s voltas com a herana dos gigantescos desmandos ocorridosdurante seus regimes ditatoriais. Citemos as palavras de Sylvie:

    No fundo de mim mesma no se trata de perdo ou de esquecimento, mas dereconciliao. O branco que deixou os assassinos agirem, no h nada a lheperdoar. Quem olhou o vizinho abrir o ventre das moas para matar o bebdiante dos olhos delas, no h nada a perdoar. No h por que desperdiarpalavras para falar desse assunto com esta gente. S a justia pode perdoar...Uma justia que oferea um lugar verdade, para que o medo se esvaia... Umdia, talvez, uma coabitao ou uma ajuda mtua voltem a existir entre as fam-

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    lias dos que mataram e dos que foram mortos (Sylvie, citada por Hatzfeld,2005: 218).

    O tema da narrao do trauma de catstrofes histricas nos levou, portanto,a passar da cena do testemunho para a cena jurdica. Mas ser esta capaz de permi-tir a construo da desejada passagem entre os indivduos traumatizados pela ca-tstrofe e a sociedade? Ela permitir uma reintegrao do passado9? Sem dvidas aesfera do direito e a instituio do tribunal podem criar fruns para esta constru-o de passagens e para a refundao de moradias para estes Eus danificados, mas verdade tambm que, enquanto um membro da esfera do poder, o direito noest isento de parcialidades. E mais, enquanto um modo de pensar falocntrico

    calcado no discurso dacomprovao e daatestao, ou seja, do testemunho comotestis, o terceiro em uma cena de litgio, e no como superstes, discurso de umsobrevivente, o direito tende a no garantir espao para a fala muitas vezes frag-mentada e plena de reticncias do testemunho do trauma (Seligmann-Silva, 2005).Talvez a busca deste local do testemunho seja antes uma errncia, um abrir-se parasua assistematicidade, para suas fraturas e silncios. na literatura e nas artes ondeesta voz poderia ter melhor acolhida, mas seria utpico pensar que a arte e aliteratura poderiam, por exemplo, servir de dispositivo testemunhal para popula-

    es como as sobreviventes de genocdios ou de ditaduras violentas. Mas isto noimplica, tampouco, que ns no devamos nos abrir para os hierglifos de mem-ria que os artistas nos tm apresentado. Podemos aprender muito com eles.

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    NOTAS

    1 Este paralelo entre a cena do testemunho e a da clnica parece-me importante porque respon-

    de em parte questo acerca da possibilidade do testemunho em meio, e no aps as situa-

    es traumticas. O testemunho, na verdade, marcado pelo tempo do presente. Trata-setambm sempre de uma performance testemunhal. O ato de testemunhar tem o seu valor em

    si, para alm do valor documental ou comunicativo deste evento. A cena do testemunho, se

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    o testemunho de fato acontece, sempre e paradoxalmente externa e interna ao evento narra-

    do. Interna porque em certo sentido no existe um depois absoluto da cena traumtica, j

    que esta justamente caracterizada por uma perenidade insupervel. Por outro lado, o teste-

    munho externo quela cena traumtica na medida em que ele cria um local meta-reflexivo.

    Ele exige um certo distanciamento. Assim, poder testemunhar durante uma situao traum-

    tica, como a vida no Lager, o soldado no campo de batalhas, ou o morador de zonas de

    conflito blico e social (com todas as caractersticas particulares de cada uma destas situa-

    es), poder testemunhar j implica uma sada (mesmo que apenas simblica) desta situao.

    O testemunho em si teraputico. Os dirios de guerra e de prisioneiros e muitos documen-

    tos testemunhais encontrados enterrados no Lager so prova desta atividade testemunhal

    mesmo em situaes aparentemente impossveis de abrigarem um espao testemunhal. Os

    testemunhos recolhidos por M. V. Bill no seu filme Falco Meninos do trfico (2006) e

    analisados por Ana Maria Rudge e Betty Fuks durante o Encontro Nacional Trauma e Mem-

    ria (organizado pelo Programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica da PUC-Rio em

    junho de 2007, ocasio na qual este trabalho foi tambm apresentado), tambm so uma

    prova contundente deste fato.2 No final deA trguaPrimo Levi (1997) narra um sonho que o perseguiu aps seu retorno de

    Auschwitz que tambm expressa esta fora da realidade do Lagerde dissolver tudo aquilo que

    poderamos denominar de seu exterior. Trata-se de um sonho em cascata: Primo Levi v-se

    entre familiares e amigos, mesa ou em outro local aprazvel. Aos poucos ele tomado deuma angstia difusa, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenrio, as paredes, as

    pessoas, e a angstia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou s

    no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei tambm

    que nada era verdadeiro fora do Lager. De resto eram frias breves, o engano dos sentidos, um

    sonho: a famlia, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, termi-

    nou, e no sonho externo, que prossegue glido, ouo ressoar uma voz, bastante conhecida;

    uma nica palavra, no imperiosa, alis breve e obediente. o comando do amanhecer em

    Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, Wstavach (Levi, 1997:359). A realidade externa torna-se a exceo, tempo de frias, imagem de sonho. Ela

    fica sitiada pelo real do Lager, que descrito como sonho-pesadelo que engloba e devora o

    mundo exterior. O despertar final deA trgua comandado por uma voz conhecida e estran-

    geira (Heimlich totalmente Unheimlich) o despertar para esta terrvel verdade do trauma.

    Jorge Semprun (1994) narra este mesmo sonho em cascata em seu livro-testemunho Lcriture

    au la vie.3 Tambm uma passagem de uma entrevista de Primo Levi, na qual ele responde ao famoso

    dictum adorniano segundo o qual escrever poesia aps Auschwitz seria um ato de barbrie: Aminha experincia prova o contrrio. Pareceu-me, ento, que a poesia era melhor mesmo do

    que a prosa para exprimir o que me oprimia. Quando eu digo poesia eu no penso em nada

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    lrico. Nesta poca eu teria reformulado a frase de Adorno: depois de Auschwitz no se pode

    escrever poesia seno sobre Auschwitz (Levi, 2005: 34). De fato, o prprio Adorno reformulou

    aquele dictum alguns anos depois em um sentido prximo ao de Levi. Como ele escreveu em

    1962 em seu trabalho Engagement, tambm referindo-se ao seu dictum de 1949: O excesso

    de sofrimento real no permite esquecimento; a palavra teolgica de Pascal on ne doit plus

    dormir deve-se secularizar. [...] aquele sofrimento [...] requer tambm a permanncia da arte

    que probe (Adorno, 1973: 64). No mesmo passo lemos ainda: no h quase outro lugar

    [seno na arte] em que o sofrimento encontre a sua prpria voz (Idem).4 Neste sentido ele fez um largo elogio da imaginao como meio de suscitar a imaginao do

    inimaginvel (Semprun, 1994: 135).5 Com relao a este ponto remeto ao meu ensaio de 2003.6 Refiro-me aqui a um importante filo na arte contempornea no qual encontramos artistas

    que praticam uma nova arte da memria. Entre os artistas que trabalham de modo

    programtico o tema da memria podemos destacar Rosangela Renn, Anselm Kiefer, Joseph

    Beuys, o cartunista Art Spiegelman (autor de Mause de In the Shadow of no Towers), os

    cineastas Alain Resnais (autor de Nouit et Brouillarde de Hiroshima mon Amour), Claude

    Lanzmann (autor de Shoah), Chris Marker (autor de La Jete), Wim Wenders, o artista Jochen

    Gerz (autor de antimonumentos, como seuMonumento contra o fascismo, em Hamburgo ou

    oMemorial contra o racismo, de Saarbrcken), Christian Boltanski (autor, entre outras obras

    centrais, de The Missing House, em Berlim), Horst Hoheisel (tambm autor de antimonu-mentos, como de uma proposta de se explodir o portal de Brandenburgo como memorial

    para lembrar a Shoah, autor de Os portes dos alemes, e co-autor, ao lado de Anfreas Knitz, da

    exposio Vogel Frei Pssaro Livre, realizada na Pinacoteca de So Paulo em 2003). Pode-

    mos lembrar tambm de outros artistas que se dedicaram especificamente em algumas de

    suas obras ao tema da representao da Shoah, como Naomi Teresa Salomon (lembremos de

    sua exposioAsservate Exibits, Auschwitz, Buchenwald, Yad Vashem no Schirn Kunsthalle

    de Frankfurt em 1995) e de Zbigniew Libera (autor da polmica obra Lego Concentration

    Camp Set, de 1996). Na Argentina vemos tambm um boom da memria deslanchado pelotrabalho de luto da ltima ditadura, que deixou como legado mrbido mais de 30.000 desa-

    parecidos. Entre estes artistas eu destacaria dois fotgrafos: Marcelo Brodsky e Helen Zout.7 Com relao ao papel de Jean Norton Cru na histria do conceito de testemunho ver o livro

    de Frdric Rousseau (2003) e o meu artigo de 2005.8 Se existe de um lado o negacionismo, como uma prtica tradicional dos autores de crimes e

    sobretudo dos autores coletivos de crimes contra a humanidade, e, do outro lado, a tendncia

    do sobrevivente e da vtima a querer se esquecer do seu passado traumtico, podemos

    distinguir ainda uma terceira modalidade de resistncia ao real que seria a marca de nossaatual sociedade caracterizada pela presena traumatizante da violncia. Em Freud a teoria da

    defesa diante da vivncia da dor contm, neste sentido, ensinamentos preciosos. O mesmo

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    vale para seu conceito de Verleugnung, recusa da realidade. Vale lembrar de uma passagem do

    dicionrio de Laplanche & Pontalis (1988) ao tratar deste ltimo termo: Na medida em que

    a recusa incide na realidade exterior, Freud v nela, em oposio ao recalcamento, o primeiro

    momento da psicose: enquanto o neurtico comea por recalcar as exigncias do id, o psictico

    comea por recusar a realidade (Laplanche & Pontalis, 1988: 562).9 Shoshana Felman apostou nesta possibilidade de o testemunho jurdico criar um espao para

    o testemunho em seu belo livro de ensaios de 2002.

    Recebido em 28 de novembro de 2007Aceito para publicao em 17 de fevereiro de 2008