nas fronteiras entre o rural e o urbano a v lÍrio/rn
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
JOSÉ MAYCON DA SILVA CUNHA
NAS FRONTEIRAS ENTRE O RURAL E O URBANO:
REFLETINDO A JUVENTUDE FEMININA RURAL DO ASSENTAMENTO VALE DO
LÍRIO/RN
NATAL, RN
2017
JOSÉ MAYCON DA SILVA CUNHA
NAS FRONTEIRAS ENTRE O RURAL E O URBANO:
REFLETINDO A JUVENTUDE FEMININA RURAL DO ASSENTAMENTO VALE DO
LÍRIO/RN
Monografia apresentada ao curso de graduação em
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN, como requisito para a conclusão do
curso e obtenção do título de Bacharel em Ciências
Sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Elisete Schwade
NATAL, RN
2017
JOSÉ MAYCON DA SILVA CUNHA
NAS FRONTEIRAS ENTRE O RURAL E O URBANO:
REFLETINDO A JUVENTUDE FEMININA RURAL DO ASSENTAMENTO VALE DO LÍRIO/RN
Aprovada em: __ / __ /____
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profa. Dra. Elisete Schwade (Orientadora – UFRN)
___________________________________________
Profa. Dra. Irene Alves de Paiva (UFRN)
___________________________________________
Me. Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego (Membro externo)
NATAL, RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
Cunha, José Maycon da Silva.
Nas fronteiras entre o rural e o urbano: refletindo a
juventude feminina do assentamento do Vale do Lírio / José Maycon
da Silva Cunha. - 2017.
66f.: il.
Monografia (graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Graduação em
Ciências Sociais, 2017.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elisete Schwade.
1. Assentamentos humanos - juventude feminina. 2. Rural-
Urbano. 3. Mulheres. 4. Projetos de vida. 5. Resistência. I.
Schwade, Elisete. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 911.37-055.25
AGRADECIMENTOS
Cada um de nós é vários, sugeriram Deleuze e Guattari no início de seus Platôs.
Acreditando nisso, não posso tomar para mim a autoria solitária deste trabalho. Por isso, de
início, os agradecimentos é a forma de revelar as múltiplas facetas e mãos que cooperaram na
criação e produção dessa criatura bisonha chamada monografia. O clichê que temos é a forma
de dizer “obrigado!” aos visíveis e aos invisíveis que estiveram presentes neste longo
percurso.
À família, que de muitos e muitas me apoiam o quanto podem. Distantes, asseiam para
que meus sonhos se realizem. À minha mãe Josélia que desde a batalha das primeiras horas do
dia não sossega em busca do sucesso dos filhos, e de quem recebi o presente de ser a
inspiração. Aos meus irmãos e irmãs dissipados pelos ventos. À minha querida avó materna
Ester, com quem possuo combinação de alma, agradeço pelas viagens no tempo.
À minha querida orientadora, a professora Dra. Elisete Schwade, por sua paciência e
carinho durante todo o período em que nos conhecemos, desde o início da minha graduação,
devo salientar. Pelos muitos conselhos e orientações, por ter me ofertado ter experiências
antropológicas dignas dos pioneiros, além de me possibilitar conhecer uma grande
profissional a quem tenho o máximo de carinho e respeito, obrigado!
Ao CNPq que graças ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC), entre os períodos de 2013-2014 e 2015-2016, possibilitou o financiamento de
pesquisas em assentamentos rurais as quais participei e que sem elas essa pesquisa não seria
viável.
À Pró-reitoria de Assistência Estudantil da UFRN, cuja bolsa-residência, mesmo que
precariamente, possibilitou sem sombra de dúvida a minha permanência na Universidade.
A todos e todas que acabam por formar o grupo de pesquisa Gênero, Corpo e
Sexualidade, e contribuíram com muitas discussões e inquietações. Obrigado pelas tarde
regadas a café e desconstruções.
À Socorro Ribeiro por sua linda amizade e sabedoria, sem a qual eu já teria voado
pelos céus idealistas e pousado em alguma terra longínqua. Sua serenidade diante dos
problemas me conforta.
À Hayanne Barbosa, por sua amizade paradoxal que, entre muitas discussões,
acompanhou todo o processo deste trabalho, além de ter um peso fundamental em minhas
elucubrações aéreas, como também, sem sua participação e contribuições neste trabalho, sem
sombra de dúvida, não seria possível. Para que todos saibam: acreditamos em utopias!
Ao Daniel Bento por sua calma libriana e ao Diêgo Dantas por tornar a vida mais leve,
bitchzinhas! Ao Francisco Cleiton, por me fazer acreditar que o mundo acadêmico ainda tem
salvação (será que precisa?) e a quem devoto um imenso carinho. Ao Arthur Leonardo, por
sermos loucos afinal. Aos amigos de uma vida, Roque Chianca, Daniel Simeão, Raphaella
Calixta e Diana Brito, às últimas em especial tornaram minhas tardes mais felizes com
certeza!
Aos amigos e amigas que fiz durante todo esse percurso. O trem mesmo partindo às
onze, estará sempre em movimento. Existe muito trilho pela frente.
A todas/os as/os moradoras/es do assentamento Vale do Lírio – São José do
Mipibu/RN, que tão afetuosamente receberam os grupos de estudantes que se dedicam a
pesquisa e a prática de extensão universitária no assentamento. Agradeço, especialmente, às
jovens que me auxiliaram na construção desta pesquisa. À Gilmara, que condensa a força da
juventude e da mulher rural, e por quem tenho carinho.
[...]
Das sete filhas vendo seis
Cinco pro canavial
Uma é pro bordel, a outra é social
Mulher na roça não tem vez
Pula quiçó maguari
[...]
(Influência do Jackson, Guinga e Aldir Blanc – 1998).
RESUMO
A partir de questionamentos sobre a circulação das jovens moças residentes do assentamento
rural Vale do Lírio no município de São José do Mipibu/RN com as zonas urbanas
circundantes à comunidade, buscou-se investigar as formas nas quais a juventude feminina
estabelece constantes fluxos e deslocamentos entre o rural e o urbano, construindo
cotidianamente alternativas possíveis de resistências e produção de meios que efetivem os
projetos de vida. Com uma metodologia etnográfica, observaram-se as interlocuções de
jovens residentes do assentamento com espaços urbanos; destacando as redes de
sociabilidades construídas e situando as distinções de gênero no tangente ao contato com o
meio citadino. Demonstram-se, com isso, como as mulheres jovens circulam e constroem
estratégias para alcançar seus projetos de vida, lidando, ainda, com conflitos e relações de
poder que informam posições requeridas dentro da comunidade local. Problematizou-se a
construção de identidades e suas representações coletivas, em concomitância com
estabilização do contexto rural-urbano, além de apresentar a possibilidade de uma análise
cotidiana da juventude rural. A articulação com movimentos sociais e segmentos religiosos
são instrumentos possíveis de contato com as diferentes urbanidades, além de desaguar num
fluxo global de informação e contato com novas realidades, fundamentais para a formação
subjetiva dos sujeitos, principalmente, da juventude feminina imersa na luta diária de inserção
nas atividades rurais locais e de produção de planos para a vida.
Palavras-chave: Juventude. Rural-Urbano. Mulheres. Projetos de vida. Resistência.
ABSTRACT
Based on questions about the circulation of the young girls living in the rural settlement Vale
do Lírio in the county of São José do Mipibu / RN, with the urban areas surrounding the
community, we sought to investigate the ways in which female youth establishes constant
flows and displacements between the rural and the urban, building daily possible alternatives
of resistance and production of means that effect the life projects. From an ethnographic
methodology, there were observed the interlocutions of young residents of the settlement with
urban spaces; highlighting the sociability networks built and situating the distinctions of
gender in the tangent to contact with the city environment. It demonstrates, therefore, how
young women circulate and construct strategies to achieve their life projects, Strategies to
achieve their life projects, still dealing with conflicts and power relations that inform required
positions within the local community. The construction of identities and their collective
representations has been problematic, concomitantly with the stabilization of the rural-urban
context, besides presenting the possibility of a daily analysis of the rural youth. The
articulation with social movements and religious segments are possible instruments of contact
with the different urbanities, as well as pouring into a global flow of information and contact
with new realities, as well as pouring into a global flow of information and contact with new
realities, fundamental for the subjective formation of the subjects, especially, the feminine
youth immersed in the daily struggle to insert into local rural activities and to produce plans
for life.
Keywords: Youth. Rural-Urban. Women. Life projects. Resistance.
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 - Quadro de mapas. Relação do assentamento rural Vale do Lírio, São José do Mipibu/RN
[de cima para baixo] i) à região Nordeste do Brasil, ii) ao Estado do Rio Grande do Norte, e iii) à
região metropolitana de Natal/RN. Fonte: goo.gl/nwvbBS................................................................... 18
Imagem 2 - Caixa d’água referência da entrada do Assentamento Vale do Lírio - São José do
Mipibu/RN. Fonte: José Guilherme Magnani, Ago 2014. .................................................................... 20
Imagem 3 – Quadro de mapas 2: acima, temos apresentação do assentamento Vale do Lírio em sua
extensão territorial com as divisões i) agrovila de moradores e ii) lotes de produção individuais;
abaixo, a disposição dos principais locais referenciados dentro do assentamento, sendo i)acesso da RN
316, ii)quitanda da família da Gilmara, iii) Caixa d’água, iv) Igreja Adventista do Sétimo Dia, v)
Igreja Assembleia de Deus, vi) capela Católica de Nsa. das Vitórias, vii) horta coletiva organizada
pelos jovens, viii) posto de saúde, ix) pracinha local, x) campo de futebol improvisado, e xi) início da
área do lotes de produção. Fonte: goo.gl/nwvbBS. ............................................................................... 44
Imagem 4 – Horta coletiva dos jovens elaborada no terreno ao lado da igreja de Nsa. Sra. Das Vitórias.
Fonte: Hayanne Barbosa, Dez. 2015. .................................................................................................... 48
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1 - RURALIDADES E JUVENTUDES: O QUE HABITA NAS FRONTEIRAS? ............................................... 17
1.1 O LÍRIO À BEIRA DA ESTRADA ...................................................................................................................... 17
1.2 ENTRE O RURAL E O URBANO ...................................................................................................................... 23
1.3 O QUE É A JUVENTUDE? ................................................................................................................................ 28
1.4 ELICIAÇÃO DE UM GRUPO JOVEM ................................................................................................................. 32
CAPÍTULO 2 - A DINÂMICA LOCAL ....................................................................................................................... 37
2.1 O GLOBAL NO CAMPO DE LÍRIOS ................................................................................................................... 38
2.2 RELIGIÃO E POLÍTICA EM AÇÕES LOCAIS ...................................................................................................... 42
2.2.1 Segmento evangélico: adventista e assembleiano ................................................................................ 43
2.2.2 Segmento católico ................................................................................................................................ 47
CAPÍTULO 3 – AS JOVENS MULHERES DO VALE DO LÍRIO .................................................................................. 51
3.1 CONEXÕES DO FEMININO, OU SIMPLESMENTE UMA QUESTÃO DE AGÊNCIA. ................................................. 51
3.1.1 Uma anedota para o feminino .............................................................................................................. 57
3.2 UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE CORPOS QUE CIRCULAM ............................................................................. 57
À GUISA DE CONCLUSÕES ..................................................................................................................................... 60
EPÍLOGO - UM CAUSO NOS BASTIDORES DA PESQUISA ........................................................................................ 62
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................................... 65
13
INTRODUÇÃO
Este trabalho destina-se a pensar as interações e as confluências do que pode ser
denominada a multifacetada realidade dos assentamentos rurais. Encrustados, muitas das
vezes, nos entremeios do campo e da cidade, os assentamentos rurais são entidades
acinzentadas elaboradas enquanto unidades de produção agrícolas (BERGAMASSO, 1996). Os
assentamentos rurais são formações complexas passíveis de serem estudadas sob a óptica de
uma heterogeneidade do social à la Gabriel Tarde (2007), os quais possuem em suas origens
não mais as barreiras separatistas do que seria o campo e a cidade, as unidades de produção e
as unidades de consumo, mas sim, que se unem numa complexidade difícil de decifrar devido
a forte interação mútua entre si. Sob a óptica da heterogeneidade, a realidade não produz mais
barreiras. As divisões muitas das vezes são embaçadas e abstratas. Postas a baixo pela ação
dos próprios moradores dos assentamentos que, com a cidade, estabelecem pontes de
interação e produzem laços de novidade e possibilidades do novo.
Desvenda-se uma nova realidade que muitos achavam está afastada do meio urbano,
isolada em um longínquo espaço. Percebo os assentamentos como formas tão complexas
quanto os meio urbanos, e que com eles estão em constante interação, seja com seus
moradores em relações comerciais, na busca dos recursos de saúde, educação, político ou
lazer. Os assentamentos rurais podem desafiar aos limites rígidos estabelecidos pelas
dicotomias rural/urbano, tradicional/moderno, entre outros, como pude perceber no
assentamento Vale do Lírio no munícipio de São José do Mipibu/RN, no qual me aventurei
em pesquisas que de alguma forma geraram este trabalho monográfico.
Estabeleci contato com o Assentamento Vale do Lírio em meados Abril de 2014, por
via de uma parceria com os grupos Motyrum Rural, um programa de ensino, pesquisa e
extensão na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e o PET – Conexões rurais
(Programa de Educação Tutorial). Esses grupos possuem caráter interdisciplinar e buscam
desenvolver atividades de intervenção em comunidades locais. Meu vínculo foi enquanto
bolsista de iniciação científica do CNPq sob a orientação da profa. Dra. Elisete Schwade
(Departamento de Antropologia – UFRN), no projeto de pesquisa “Trânsitos e deslocamentos:
Assentamentos rurais e imagens do urbano”, no período de 2013-2014, no qual buscamos
mapear as relações mantidas pelos assentados com a cidade, refletindo o fluxo e as imagens
construídas e ativadas pelos residentes do assentamento Vale do Lírio com a zona urbana
14
próxima, ou seja, a relação dos trajetos pessoais dos moradores da comunidade e o imaginário
produzido em relação com o meio urbano.
As visitas ao assentamento ocorriam duas vezes por mês, variando as atividades
realizadas com os moradores dependendo do cronograma definido pelo grupo Motyrum
Rural, bem como minhas visitas acompanhadas de Hayanne Barbosa, minha colega de
pesquisa. Aproveitei os momentos de atividades para conversar com os/as moradores/as,
sendo que nenhuma conversa foi gravada ou registrada em áudio, pois, mesmo percebendo
aceitabilidade por parte dos moradores, ou até mesmo das jovens interlocutoras, preferi
apenas conversar descontraidamente com eles/as.
As atividades a que me refiro são basicamente pequenas dinâmicas que incentivavam
às discussões sobre a juventude no campo, práticas saudáveis em combate à hipertensão e
diabetes, ou até mesmo, conversas e elaboração de propostas para projetos futuros a serem
implantados na comunidade com o objetivo de produção de rende local, como o projeto do
peixe em disputa pelo grupo jovem. Entre outras atividades realizadas pelos grupos de
extensão, como as já citadas acima, realizava-se dinâmicas com os moradores no intuito de
resgate histórico, bem como, elaboração de uma gincana entre os jovens da comunidade.
A discussão da relação das/os residentes em assentamentos rurais com espaços
urbanos, bem como a consequente construção das imagens do urbano, se constitui um aspecto
fundamental para a reflexão acerca de diversas dimensões evidenciadas nas realidades de
assentamentos (SCHWADE, 2009). A relação com o urbano está na base dos diálogos
estabelecidos com o exterior dos assentamentos. Tal diálogo tem consequências em se
tratando da efetivação do consumo, da formação educacional, da militância, da diferenciação
de gênero e geração, enfim, como construção de novas identidades sociais (WANDERLEY,
2000). A partir do projeto de pesquisa, pude me direcionar para as observações de trânsitos
dos sujeitos dentro e fora do assentamento observado. Pontuando a diferença entre as
maneiras de interação (SIMMEL, 2013) que os sujeitos estabeleciam com os meios urbanos
próximos. O meu foco recaiu sobre o segmento jovem por conseguir estabelecer maior
afinidade com os rapazes e moças locais, devido ao pertencimento a mesma faixa etária que a
maioria deles/as.
O maturamento deste trabalho monográfico deu-se entre 2015-2016, quando
participei de outro projeto de pesquisa “Entre contextos rurais e urbanos: gênero, juventude e
cotidiano no assentamento Vale do Lírio”, também sob a orientação da profa. Dra. Elisete
Schwade. Observamos as interlocuções de jovens residentes do assentamento Vale do Lírio
com os espaços urbanos, destacando as redes de sociabilidades (SIMMEL, 2006) construídas e
15
destacando uma distinção entre os gêneros no que se referente à organização juvenil. Dei,
com isso, continuidade às observações e atividades iniciadas anteriormente no período de
2013-2014. Houve, então, o mapeamento das redes de relações estabelecidas no processo de
circulação dos jovens residentes do assentamento para atividades nas cidades próximas e o
retorno destes ao referido assentamento, uma vez que, as atividades desenvolvidas pelos
jovens são temporárias, possibilitando idas e vindas entre o assentamento e as cidades
vizinhas. Na população jovem do assentamento a busca por alternativas exteriores é
constante, inclusive naqueles contextos em que o investimento na produção agrícola no
assentamento se consolida como alternativa viável. Quando o projeto de assentamento tem
êxito, apresenta-se a justificativa da busca do consumo, associado à vida na cidade.
Com isso, este trabalho monográfico justifica-se pela relevância de trabalhos sobre
assentamentos rurais, em especial sobre juventude, em virtude da “carência de estudos sobre
jovens em outros contextos, um tanto relegados a um segundo plano pelas pesquisas
acadêmicas, como a juventude rural” (CASTRO, 2009, p. 209). Trata-se de uma categoria
complexa que continua a ser invisibilizada (ibid.) e dessa forma, tornam-se imprescindíveis
pesquisas que busquem dar visibilidade ao entendimento deste campo.
O contato direto com as jovens em conversas informais e observação de ações do
cotidiano. Estabeleci contato com cerca de oito jovens entre 17 a 26 anos. O contato
“prolongado” com a comunidade deu-se em virtude das variadas atividades exercidas na
localidade através de projetos de pesquisa e extensão. Dentro de um período de 2 anos (início
de 2014 até o final de 2015) com visitas quinzenais, normalmente realizadas aos sábados à
tarde, em virtude dos horários de disponibilidade dos estudantes de extensão e do
organograma dos projetos realizados; e, como eu acompanhava o grupo em atividade, acabei
por seguir também o calendário de idas à comunidade.
A partir dessas visitas periódicas e observações pontuais de reuniões e visitas a
alguns moradores, pude registrar em meus diários de campo, as principais atividades e ações
realizadas pela juventude local, em específico, as mulheres jovens. Juntei pequenas
informações de muitos das/os moradoras/es sobre o cotidiano da comunidade, mesclando com
assertivas das principais jovens as quais mantive contato. A partir de muitas conversas nas
varandas das casas, outras à sombra do cajueiro solitário no centro da comunidade, não posso
esquecer-me dos momentos regados a suco de mandioca, que tão deliciosamente as senhoras
do Vale do Lírio sabem fazer; que, inclusive, me ensinaram a preparar.
O recorte realizado tendo as jovens moradoras do assentamento deve-se,
predominantemente, pelo maior contato que estabeleci com elas, em virtude, das moças serem
16
o maior quórum em atividades realizadas na comunidade. A quantidade reduzida de rapazes
deve-se, como descobri posteriormente, devido a eles estarem trabalhando fora ou dentro do
assentamento nos horários em que chegávamos ao assentamento para iniciar as atividades de
pesquisa e extensão. Dentro dessas “limitações”, bem como, desde a pesquisa no período de
2015-2016, percebi que havia diferenças significativas nas formas que as moças e os rapazes
da comunidade se relacionavam com o urbano. O gênero, então, apresenta-se como fator
diferenciador de circulação dos sujeitos jovens entre os espaços (SCHWADE, 2009).
Para preservar o anonimato das jovens, seus nomes originais serão trocados por
letras, em especial, por letras do alfabeto espanhol, pois são sempre femininas aos olhos desse
idioma. A única jovem que aparecerá nominalmente será Gilmara, por ter me autorizado o uso
do nome sem qualquer receio. Não por acaso, ela simboliza a complexa interação rural-
urbano, tendo em vista, a relação que estabelece constantemente com os meios urbanos,
principalmente através de movimentos sociais relacionados a questões agrárias, como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Pastoral da Juventude Rural, assim como
a circulação pelo meio de formação política organizado por essas mesmas entidades.
No capítulo 1, “Ruralidades e juventudes: o que habita nas fronteiras?”,
encontraremos as bases teórico-metodológicas que fundamental este trabalho, como
localizando o assentamento Vale do Lírio num fluxo turvo entre o rural e o urbano, que por
sua vez, são categorias frágeis de enquadrar as realidades que estão em constantes
transformações e mudanças. Teremos, com isso, a apresentação da comunidade estudada; em
seguida, alguns esclarecimentos conceituais do que vem a ser o rural e o urbano, bem como,
as delimitações da categoria fundamental às reflexões que é a juventude. As elucubrações
sobre a produção de certa grupidade (WAGNER, 2010) local é substrato para refletir o teor
segmentado da juventude do Vale do Lírio.
No capítulo 2, “A dinâmica local”, temos análises de casos e situações envolvendo
algumas jovens as quais pude estabelecer contato, apresentando as formas de interação e as
distinções no contato com o urbano. Percebe-se como os jovens se organizam internamente,
tanto em relação ao engajamento religioso, quanto nas maneiras de deslocarem-se para as
cidades vizinhas.
No capítulo 3, encontramos questões sobre autonomia feminina e de resistência às
praticas tradicionais que limitam a agência das mulheres e sua circulação dentro da
comunidade e a imersão num fluxo externo ao assentamento como forma de fuga e elaboração
de planos de vida.
17
CAPÍTULO 1
RURALIDADES E JUVENTUDES: O QUE HABITA NAS FRONTEIRAS?
Em primeiro momento, acredito, devemos olhar onde pisamos. Ter a segurança de
um passo firme e iniciar a caminhada. Está imbricado no mainstream das ciências delimitar os
instrumentos de trabalho que serão utilizados no decorrer das reflexões. Este tópico não se
destina apenas a apresentar uma revisão conceitual do que vem a ser a categoria rural em
contraponto ao urbano, mas apresentar algumas concepções que, comumente, são acionadas
na identificação dessas categorias1. Devo também esclarecer que as elucubrações sobre
juventude deságuam num rio profundo e acabo por apenas expor possibilidades do que venha
a ser a(s) juventude(s) num ângulo especulativo, porémbastante concreto da vida cotidiana.
Nos momentos finais do capítulo, tento refletir a produção de certa grupidade dentro do
assentamento, baseando-se em concepções do antropólogo Roy Wagner (2010), fundamental
para o conjunto especulativo desse trabalho, além de possibilitar a compreensão da dinâmica
de circulação e organização juvenil local. Segundo Wagner (2010, p.244), a nossa tendência
em atribuir a denominação de grupo a qualquer tipo de coletividade deve-se ao “foco coletivo
deliberado, um sentido de participação e consciência comuns” que, basicamente usamos como
critérios para enfatizar o fator da coletividade na realidade observada. Outra maneira de
agrupar as pessoas, ainda segundo ele, é “com base em suas semelhanças compartilhadas,
sejam elas especificidades de residência comum ou contígua, cooperação ou envolvimento
econômico ou ecológico, genealogia ou comportamento político” (ibid.).
1.1 O LÍRIO À BEIRA DA ESTRADA
Poucos são os estudos sobre o assentamento Vale do Lírio no município de São José
do Mipibu/RN, embora possamos destacar os trabalhos de Grasielly Alves de Lima (2005) e
de Rosana Silva de França (2005), e sendo o mais recente de José Guilherme Magnani (2015).
Munidos desses estudos sobre organização econômica, social e cultural do assentamento
podemos arriscar dispor em um mapa os agentes que formam a comunidade, numa exposição
preliminar da comunidade.
Este assentamento pertence administrativamente ao município de São José do
Mipibu/RN, localizando-se entre as cidades de Monte Alegre, São José do Mipibu e 1 Ver Roni Blume (2004) para um aprofundamento teórico-metodológico das categorias sobre ruralidade e seus
usos na produção acadêmica brasileira.
18
Parnamirim, ou seja, dialoga intimamente com a região metropolitana de Natal (ver Imagem
1). De fácil acesso por estar às margens da RN 316 na direção de Monte Alegre/RN, tem o
fluxo de carros facilitado. Em período recente, os residentes do assentamento sinalizaram a
localização com uma pintura da caixa d’água que identifica a entrada da localidade, podendo
ser vista ao longe, em um fundo verde o nome do assentamento “VALE DO LÍRIO” (ver
Imagem 2).
Imagem 1 - Quadro de mapas. Relação do assentamento rural Vale do Lírio, São José do Mipibu/RN [de
cima para baixo] i) à região Nordeste do Brasil, ii) ao Estado do Rio Grande do Norte, e iii) à região
metropolitana de Natal/RN. Fonte: goo.gl/nwvbBS.
19
Vale do Lírio possui 62 famílias assentadas na Agrovila, cada qual com o seu
respectivo lote individual. O assentamento é organizado em três ruas sem calçamento que
cruzam uma avenida principal; não possui escola nem posto policial, e somente em período
recente passou a ter uma unidade de saúde, um pequeno prédio ao centro do assentamento
usado por médicos uma vez ao mês para prestação de atendimentos a comunidade. Tal posto
de saúde é fruto de articulações políticas locais, sendo bastante lembradas por alguns
assentados. O posto, mesmo pertencente à comunidade, fica sob a organização de uma das
residentes da comunidade, Dona E2, 53 anos, responsável por marcar horários e distribuir
senhas de atendimento médico; organiza as consultas e recebe os médicos e outros
profissionais que realizam assistência ao assentamento; é responsável, também, pelos
primeiros socorros ou atendimentos rápidos de emergência que ocorrem no assentamento3.
Percorrendo o assentamento observo que as casas, em sua maioria, são de alvenaria
algumas delas cercadas por altos muros; outras, com a presença de cerca elétrica. Encontrei
numa delas uma câmera de vigilância no portão de entrada. Numa ou noutra casa podemos
encontrar automóveis estacionados, tendo ao lado carroças na mesma situação. Das primeiras
impressões do assentamento,
Percebo pessoas se balançando em redes nas varandas, no repouso após o
almoço; quintais cheios de fruteiras das mais diversas (laranja, manga, caju,
acerola, coco, goiaba), touceiras de capim cidreira, ou o chamado capim
santo, de hortelã e outras ervas medicinais; pequenos chiqueiros/pocilgas
feitos/as artesanalmente de talos de carnaúba, ou sofisticados, com suas telas
metálicas; nos telhados, antenas parabólicas de TV e de rádio; gaiolas com
passarinhos penduradas às sombras das casas; um campinho de futebol; uma
boa quantidade de casas possuem carros estacionados em
garagem/alpendres; alguns bancos em frente ao recém construído posto de
saúde, formam a chamada praça, onde ao entardecer uma senhora inicia a
venda de churrasquinhos, gerando um local de encontro dos jovens
assentados4, assim é relatado por uma senhora sorridente a mim. Devo
apontar que, por estar muito próxima a cidade, muitos jovens preferem ir a
festas lá [na cidade], ao invés de se utilizar da praça local. Por se tratar de
um assentamento pequeno, possui poucas ruas, possibilitando um
reconhecimento mais rápido do local. Percebo os homens, como se é de
costume, indo em suas carroças para o roçado. Jovens montados em cavalos
em galopes que levantam poeira; crianças brincando em suas bicicletas;
outros jovens acelerando em suas motocicletas. (Diário de campo: Abr.
2014).
2 No decorrer deste trabalho, poderá ser percebido o uso coloquial de tratamento tais como dona e seu. Por tratar-
se da forma de referência em tratamento local preferi usá-lo pontualmente, denotando a observação do cotidiano. 3 Dona E., a partir de nossas conversas, não possui curso técnico ou superior na área de saúde, tendo, no entanto,
curso de assistência em primeiros socorros. 4 Ver Imagem 3 para melhor entender a distribuição espacial da comunidade.
20
Podemos encontrar a presença de três igrejas atuantes na comunidade, dispostas
próximas à entrada da comunidade. Uma delas é a Assembleia de Deus, logo na entrada à
direita; no lado oposto, sendo um pouco mais afastada, a igreja Adventista do Sétimo Dia e,
mais ao centro da comunidade, a igreja Católica (ver Imagem 3). As igrejas citadas acima
estabelecem frequentemente encontros locais, principalmente com os jovens, exigindo o
empenho em muitas horas de atividades realizadas, como percebi em uma visita ao
assentamento durante um encontro jovem da igreja Adventista do Sétimo Dia, ou até mesmo,
durante encontros realizados pela Pastoral Juventude Rural de vínculo católico. Tais
encontros serão detalhados numa reflexão mais adiante (capítulo 2).
Por não haver escola na comunidade, os jovens e crianças deslocam-se para escolas
em cidades próximas como São José e Monte Alegre, e até mesmo Parnamirim, variando em
públicas e privadas. A locomoção dependerá dos acordos estabelecidos entre a comunidade e
as prefeituras municipais, como por exemplo, a prefeitura de São José do Mipibu que cede
ônibus escolares para os estudantes do município mediante a rigorosa luta dos moradores para
que haja a circulação do transporte escolar na comunidade.
Imagem 2 - Caixa d’água referência da entrada do Assentamento Vale do Lírio - São José do Mipibu/RN.
Fonte: José Guilherme Magnani, Ago 2014.
21
Destaca-se na comunidade a relevante produtividade, tanto é que, em muitas falas de
residentes, é recorrente a expressão “ter sorte em possuir terras tão férteis”. A produção é
realizada em pequenos lotes individuais de cerca de quatro hectares por família, com destaque
para o feijão, o milho e a mandioca, como os principais cultivos, mas, há o plantio rigoroso de
frutas e legumes. Boa parte do que vem a ser produzido pelos assentados é vendido via
atravessador, responsável pela revenda no mercado consumidor, principalmente as
monoculturas de inserção do mercado local como a mandioca, milho e mamão. Numa das
minhas visitas, conversando com o seu P., residente do assentamento e bastante conhecido na
comunidade, pois já fora presidente da associação de assentados, viajou bastante pelo país e
militou em movimentos trabalhistas, sendo o principal o Movimento dos Trabalhadores Sem-
Terras (MST), destacou que pouco o que é produzido é consumido pelos próprios assentados,
boa parte é repassada para o comércio, vendido a atravessadores.
O Vale do Lírio possui características singulares em relação a outras formas de
assentamento, como aponta Lima (2005) em um trabalho que focou nos processos
modernizantes implantados via reforma agrária na fomentação do assentamento Vale do Lírio,
tendo desenvolvido uma complexa estrutura econômica e social dividida em a) uma produção
familiar modernizada, b) uma agricultura familiar e c) uma agricultura de tempo parcial.
É sobre o último ponto que podemos destacar a complexar organização juvenil local,
pois, devido à estruturação de uma agricultura de tempo parcial, os moradores precisam se
aventurar em empregos assalariados para completar a renda doméstica. E o segmento jovem é
o mais afetado, em virtude das poucas possibilidades de inserção das atividades rurais ou
oportunidade de capacitação para exercer atividades qualificáveis no campo. Temos, com
isso, um dos fatores que alavancam o contato com as cidades próximas em buscas de novas
formas de geração de renda e capacitação.
No decorrer do histórico recente da comunidade podemos destacar a formação da
parceria com a empresa agroexportadora Caliman Agrícola S.A., símbolo da mecanização na
produção agrícola, e que colocou o Vale do Lírio no patamar de projeto modelo de reforma
agrária estadual de desenvolvimento da agricultura familiar (FRANÇA, 2005).
Em momentos de conversas sobre o histórico do assentamento, principalmente no
que destaco como “parceria conturbada” com a empresa Caliman Agrícola S.A. produtora de
mamão, dona T., 50 anos, assentada desde a formação do Vale do Lírio, em apresentação do
assentamento expõe que:
22
Veio, então, uma empresa de Linhares que plantava mamão, a Caliman. Nós
entramos numa parceria com eles: eles entraram com a tecnologia, e nós
entramos com a terra, isso tudo era mamão - dona T. aponta para uma vasta
área, agora cultiva com milho e macaxeira -. Tinha trinta hectares, quinze
para um lado, e quinze para o outro. Então, depois que a gente trabalhou
cinco anos, e vimos que um grande para um pequeno num dava muita
vantagem. “O pessoal num diz que a corda quebra do lado do mais fraco,
né?” – sorriu meio de desdém -. Então pronto, a gente, caiu do nosso lado.
Acabou a parceria e eles foram embora, não deram satisfação, a gente tem
um sistema de irrigação aqui todo completo, aqui em baixo da terra. (Diário
de campo: Abr. 2014)
O episódio de parceria com a empresa citada é recorrente nas falas de muitos
moradores desse assentamento, causando, ainda, grande mal estar e estado de destreino diante
da situação. Com isso, há uma busca por intervenções, em específico, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ou seja, os próprios moradores articulam demandas
por projetos de extensão universitária para o assentamento, como forma de melhoria de vida
na comunidade. O direcionamento pela UFRN é posta pelos próprios jovens da comunidade
através da E., 24 anos, uma jovem estudante do curso de aquicultura na UFRN e filha de
moradores do Vale do Lírio. E. além de ser estudante participa de projetos de extensão
universitária, influindo para o maior contato e realização de atividades de extensão na
comunidade. Sua mãe, dona T., também é universitária, graduanda do curso de matemática na
mesma universidade. Ambas precisam deslocar-se para Natal/RN constantemente,
principalmente, para realizar atividades acadêmicas vinculadas aos seus respectivos cursos de
graduação.
A principal demanda dos moradores, na época do meu primeiro contato com eles no
início de 2014, fora a formação de uma associação de jovens e mulheres do assentamento, a
Associação de Jovens e Mulheres do Vale do Lírio (ASJOMVALE), a qual possibilitaria a
elaboração de projetos que fomentem a renda e a autonomia aos jovens e às mulheres da
comunidade, e seria uma alternativa à associação já existente no assentamento, a Associação
de produtores do Vale do Lírio (ASVALI). A batalha pela formação da associação será alvo
de análises mais adiante neste trabalho, contudo, é de suma relevância pontuar as situações
frente à formação das associações e seus fins, afinal, perceberá à frente o peso incidente sobre
as representações geradas sobre os jovens da comunidade. Por exemplo, em certa ocasião
dona T. relata-me que os jovens preferem ir para a cidade por não gostarem de “lidar com a
roça, com o trabalho pesado do campo”. Os jovens se distribuem em diversas atividades nas
cidades ou localidades próximas destacando: vendedor em loja de varejo, auxiliar
administrativo, mecânico, funcionário em fábrica de canos de PVC.O deslocamento para o
23
urbano seguido pela busca de emprego por parte dos jovens gera receios nos “mais velhos”
sobre o futuro do assentamento, acreditando que os jovens não estarão aptos a assumirem as
obrigações com o assentamento, dando continuidade ao “projeto”, como apontam alguns dos
entrevistados. O projeto, como é apareceu em boa parte das falas dos moradores da
comunidade, refere-se ao projeto agrícola de produção de mamão e articulado com a empresa
Caliman Agrícola S/A, já dito anteriormente.
Para compreender a heterogeneidade na organização e formação do grupo jovem
local, perpassa o entendimento sobre a formação organizacional do assentamento, uma vez
que, trata-se de um caso singular de formação de uma unidade rural que buscou acoplar a
modernização com a estrutura familiar tradicional, incidindo numa terceira via que é a
parcialidade na produção agrícola, nos quais os residentes se tornam assalariados, tendo que
enveredar por outros caminhos para conseguirem o sustento familiar (LIMA, 2005). Nessa
logística da produção econômica percebemos as representações que recaem sobre os jovens,
desenvolvendo o peso da responsabilidade em dar continuidade à estrutura social local
(WANDERLEY, 2000; 2000; CASTRO, 2005a).
A responsabilidade em continuar o projeto dos pais será mais bem tratada adiante
neste trabalho e refere-se aos projetos pré-estabelecidos para os jovens numa sequência
continuada dos projetos dos pais. A questão sobre a reprodução social dos assentamentos
rurais é uma problemática bastante complexa, uma vez que, demanda a compreensão do
contexto politico cultural do segmento jovem em relação à permanência no campo. A
juventude é primordial para entender a reprodução social dos assentamentos rurais, devido aos
conflitos e segmentação interna. Os autores, em sua maioria, usam-se do termo sucessão
geracional ou sucessão rural (CASTRO, 2005a). Neste trabalho, usar-me-ei apenas do termo
responsabilidade por possuir o peso semântico de uma moralidade remetida ao segmento
adulto que recai sobre os ombros dos jovens. A apropriação dessa responsabilidade por parte
dos jovens deve-se, em sua maioria, no sucesso de diálogo com o meio urbano em detrimento
do rural. Para tal, torna-se necessário entendermos como funciona a construção dessas
categorias ambíguas em sua raiz, mas enfática em sua aplicação.
1.2 ENTRE O RURAL E O URBANO
A separação entre o rural e o urbano é, antes de tudo, política, além de geográfica e
econômica; ter essa pontuação em mente é estar aberto para refletir as moralidades que
compõem as confluências entre as ruralidades e urbanidades componentes das diversas
24
formas de assentamentos humanos. Pensar em moralidades (WOORTMANN, 1990) é estar
aberta à construção conceitual que delimita o rural e o urbano, sendo tal divisão, nada mais
que, “formalismos nominalistas ou classificatórios de duas formas de utilização do espaço,
diferentes só na aparência, porque estruturalmente são complementares” (FERREIRA DOS
SANTOS, 1981, p. 21).
Peguemos o meio rural como foco de análise, por trata-se de um estudo em
assentamentos rurais. Dito, muitas das vezes, como uma categoria a-histórica encontrada em
todas as sociedades, o rural acaba por ser abordado como possuidor de uma essência imutável,
sem levar em consideração o caráter de construção histórica formadora de tal categoria como
aponta Maria de Nazareth Baudel Wanderley (2000; 2001). Se pensarmos nos estudos que se
dedicaram a acompanhar as transformações do meio rural, percebemos o esforço em
apreender, principalmente, os processos migratórios estabelecidos entre o campo e a cidade ao
longo da história (WILLIAMS, 2011).
O campo torna-se sinônimo de esvaziamento e precariedade, tendo em seu corpo
somente aqueles que teriam fracassado na odisseia rumo ao urbano, lar do desenvolvimento,
como prevalece no imaginário social. Os contatos com o meio urbano desenvolvem ondas de
esvaziamento rural em direção aos novos meios de viver ofertados pela cidade.
A primazia dos estudos rurais ou camponeses tomam contornos em concomitância
com os estudos sobre industrialização e urbanização, como forma de expor o teor agressivo
que a modernidade industrializante teria sobre meio rural. A modernidade apareceria como
um tsunami urbanizador que varre o rural, e com isso, a perda cultural camponesa. Em um
processo uniformizante iniciaria a perda das particularidades dos grupos locais tradicionais e
de seus espaços. Pode-se afirmar, no entanto, o que acorreu neste processo foi uma
redefinição dos limites antes existentes entre o rural e o urbano. As transformações ocorridas
no meio rural (WANDERLEY, 2000) estão longe de possuir força homogeneizadora, confluem
para uma heterogeneidade das relações, redesenhando as redes sociais, dentro e fora do meio
rural. Como bem colocou o sociólogo Raymond Williams (2011, p. 471), “o campo e a cidade
são realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas interrelações”.
O meio rural moderno tornou-se mais diversificado, sendo um diálogo entre o
tradicional e rústico com o moderno e sofisticado, fruto das transformações decorrentes das
novas formas de relações econômicas e políticas no interior do meio rural. Com a expansão
do tecido urbano a partir do processo de industrialização e a infiltração das atividades urbanas
no campo, desencadeiam-se expressivas transformações, em âmbito espacial e cultural,
25
transformando a própria relação que os sujeitos possuíam, não somente com a terra, mas
consigo mesmo (WILLIAMS, 2011). como será foco do próximo capítulo.
A ruralidade em nada pode ser tomada como obstáculo ao desenvolvimento de uma
sociedade, as regiões rurais são tão dinâmicas quanto às urbanas conforme apontado por
Ricardo Abramovay (2000). A relação estabelecida com as regiões metropolitanas são
características primeiras da consolidação de espaços rurais dinâmicos e que, por muitos, é
vista como desruralização do campo, esquecendo que “o rural não é definido por oposição e
sim na sua relação com as cidades” (Idem, p. 02). Isto se deve a grande mobilidade espacial
proporcionada pela modernidade (WANDERLEY, 2000; 2001), modificando as relações entre o
espaço e a vida social, entre o campo e cidade. As relações, antes, vistas pelos ângulos
antagônicos, agora, são trabalhadas enquanto interação e complementariedade; e as imagens
monolíticas atribuídas à cidade e ao campo apresentam-se como antiquadas e obsoletas
(WILLIAMS, 2011).
A modernização rural, no que tange as transformações efetivas da vida da população
local, impulsiona novas relações econômicas e políticas entre o rural e o urbano,
diversificando-os social e culturalmente. Para Wanderley (2000) alguns pontos podem ser
definidos como importantes para perceber a construção dessa nova ruralidade moderna,
destacando a) a paridade social, b) a modernização rural, e a c) implantação de certas políticas
com teor econômico-social-regional, que se expressam na permanência dos habitantes no
meio rural. Os fluxos migratórios são reduzidos por surgirem meios confiáveis de
permanência no campo. Todavia, os fatores apontados acima são decorrentes do que a autora
denominou de uma “crise dos modos de vida urbana” (Ibid., p. 98). O urbano já não é mais
visto com tanta perfeição e lócus da salvação terrena5.
Não se trata de observar o caminho inverso do deslocamento, antes sendo rural-
urbano para urbano-rural, mas encontramos experiências de novas formas de assentamentos
em zonas metropolitanas, como os estudados por Yamila Goldfarb (2011) e José Guilherme
Magnani (2015), sobre comunas de terras e/ou assentamentos urbanos, respectivamente, e
ambos no estado de São Paulo; experiências na formação de assentamentos diante do extremo
contato com cidades, senão, dentro da própria cidade.
A população rural, sob a seara desse contato, consegue certo grau de facilidade no
acesso a bens e serviços existentes nas cidades, desde produtos manufaturados no comércio
até serviços públicos, como saúde e educação. Para Wanderley (2000, p. 133):
5 Temos também discussões sobre o neo-ruralismo, pouco discutido no Brasil, mas bastante desenvolvido na
Europa (ver Gian Mario Giuliani, 1990).
26
O que parece mais importante a registrar é que estas diferenças se dão não
mais no nível do acesso aos bens materiais e sociais, que agora são, de uma
certa forma, similarmente distribuídos entre os habitantes do campo ou da
cidade, nem mesmo no que se refere ao modo de vida de uns e de outros. As
diferenças vão se manifestar no plano das identificações e das
reinvindicações na vida cotidiana, de forma que o rural se torna um ator
coletivo, constituído a partir de uma referência espacial e inserido num
campo ampliado de trocas sociais.
Temos, agora, uma reflexão da construção do rural enquanto ator coletivo, fruto de
infinitas combinações e possibilidades que se efetivam nos acordos e contatos com os
aparelhos urbanos de segurança, saúde, jurisprudência, por exemplo. Neste desvio de
trajetória, da polarização para a complementariedade que há na verdade, não é o fim do rural
como previa os estudos clássicos, e é resgatado por Roni Blume (2004), mas sim a
“emergência de uma nova ruralidade” (WANDERLEY, 2000, p. 96), a produção de uma
ruralidade capaz de construir a si mesma modernamente, que se apreende, não é mais uma
ruralidade produzida sob os efeitos urbanos, mas por suas próprias multiatividades, fruto de
iniciativas próprias de produção e reprodução de si.
Símbolo do constante diálogo entre campo e cidade, principalmente no Brasil, são os
assentamentos rurais de reforma agrária. Possuía, primeiramente, como objetivo a
consolidação de novas unidades de produção agrícola através de políticas governamentais,
numa busca pelo reordenamento do uso da terra em benefício dos trabalhadores rurais sem
terra; conquanto, posto como um complemento produtivo às cidades, como nota-se na obra de
Sônia Maria Bergamasso, O que são assentamento rural (1996). Percebemos, assim, o viés
produtivista na fomentação de assentamentos rurais com o foco na produção agrícola.
As formas dinâmicas às quais os assentamentos rurais se apresentam, desafiam os
limites antes rígidos das dicotomias já discutidas acimas. O assentamento rural Vale do Lírio
no município de São José do Mipibu/RN, que é foco desse estudo que se segue; exatamente
uma forma em contrastes do urbano e o rural, por existir uma aproximação acentuada com as
cidades circundantes, estando encrustada na região metropolitana de Natal/RN; e que, dentro
de nossas reflexões, apresenta-se enquanto exemplo de ressignificação das funções sociais dos
assentamentos rurais (GOLDFARB, 2011; WANDERLEY, 2000; 2001).
Ao discutimos relações estabelecidas entre o campo e a cidade, podemos dar
destaque às trajetórias dos residentes em assentamentos rurais, pois articulam com os espaços
urbanos a partir dessas constantes interações a produção espacial do assentamento e da
produção dos sujeitos que lá residem. O contato com o urbano estabelece a base dos diálogos
27
com o exterior dos assentamentos, que se efetivam no consumo, na formação, na militância,
na diferenciação de gênero e geração, construindo novas identidades sociais, como foi
abordado em pesquisas as quais fiz parte sob as orientações da profa. Dra. Elisete Schwade,
no assentamento Vale do Lírio.
Depois de apontamentos sobre o desmoronamento das barreiras entre o meio rural e
o urbano e a refiguração do rural a partir das políticas de reforma agrária, que se efetuam
basicamente através da criação dos assentamentos rurais, e em alguns casos urbanos; podemos
colocar que o assentamento Vale do Lírio não é possuidor de um caráter predominantemente
rural, posto que apresenta aspectos socialmente significativos atribuídos ao meio urbano, tais
como a incidência do discurso sobre a violência e seu combate como percebido nas falas
recorrentes dos residentes do assentamento. Em conversas com alguns deles, pontuações
sobre assaltos e incidências de uso de drogas surgem em meios os discurso sobre a mudança
dos hábitos dos moradores, em especial, a juventude que estabelece maior contato com o
urbano.
Conquanto, através os meios definidos e postos em prática, não somente pelas jovens
estudadas, mas pelos demais residentes do assentamento, demostram, em sua base
organizativa, a relação com a terra e a produção de significações diante dela, possibilitando a
caracterização de aspectos rurais. Neste caso, indica-se a possibilidade de outras vias de
significações e de mobilidade no que tange a relação com o espaço e a construção de
subjetividades para perceber o caso do Vale do Lírio.
Devo esclarecer que os recorrentes erros de polarização sustentam-se por pensarmos
os sujeitos/objetos focos de estudos enquanto ilhas, nos quais depositamos sempre
representações de isolamento perpétuo, porém, há algum tempo, superamos tal discussão com
novos olhares sobre a dinâmica do social: o que antes era dito como instável e homogêneo,
agora surge como inquieto e efervescente. Os assentamentos são pensados como borbulhas
dentro do meio rural, estabelecendo diálogos contínuos entre a política e a economia,
estabelecendo os complexos laços entre o rural e o urbano, como apontam Elisete Schwade e
Irene Paiva (2014) em estudos com jovens assentados.
Se refletirmos sobre o caráter estático que lançamos sobre as coisas, veremos os
enganos ao se analisar o meio rural. Continuamos nos baseando em um mito, como bem
colocou Wanderley (2000, p. 133):
O mito fundador da sociedade sedentária, na qual cidade e campo se opõem
num processo de ruptura, é questionado e substituído por um mito
28
andrógino no qual as características do campo e da cidade se misturam, ao
mesmo tempo que permite a afirmação identitária.
Se pensarmos no fluxo de interesses que movimenta o interior dos assentamentos,
olhando para as dinâmicas internas (Ibid.), poderemos estar nos direcionando para um
empreendimento na busca de interesses, não apenas no sentido material de conquista de
serviços e bens de consumo, mas, e acima de tudo, de construção de subjetividade e a
formação de si; de jovens que acabam por se empreenderem no meio urbano em busca de
emprego assalariado e se dedicarem às ocupações dentro da comunidade. E nessa repartição,
fazer a si mesmo, com metas e projetos para o futuro.
1.3 O QUE É A JUVENTUDE?
O termo jovem torna-se recorrente em reuniões com os residentes do assentamento
Vale do Lírio. O uso do termo bem designa um grupo delimitado de sujeitos detentores a
priori de características específicas. Por trata-se de um trabalho cuja ferramenta central é tal
termo, preciso delimitar as arestas e apontar o que vem a ser o jovem ou, em termos de
generalizações, o que venha a ser a juventude.
Para os que decidem estudar a temática da juventude, fica claro que esta se trata de
uma categoria complexa e densa. Vista, muitas das vezes, como autoevidente e
autoexplicativa, que designa comportamentos ou grupos sociais, basicamente uma fase do
desenvolvimento humano que varia de cultura para cultura, sendo acionada ou não, e se
estabelece enquanto um segmento da sociedade. Destarte, é de comum acordo a existência da
juventude enquanto realidade social, como apontam os autores Elisa Guaraná de Castro
(2005a; 2005b; et al, 2009a; 2009b), Regina Novaes (2012; 2014), Luiz Groppo (2004) e
John Durston (1995; 1996). Para esses autores devemos dar ênfase à existência concreta de
um segmento denominado juventude, uma vez que, define um setor de pura dinamicidade
social e que fomenta as transformações da sociedade.
Devido à complexidade na definição conceitual e sua instrumentalização efetiva, a
categoria deve ser considerada como uma categoria do pensamento, a qual aponta para a
formação de imagens e percepções sobre determinados sujeitos. Trata-se de uma categoria
social, pois percebe a configuração de identificações que culminam em ações de coletividades
(CASTRO, 2005a; 2005b; NOVAES, 2012). Existe, pois, uma impossibilidade do
desenvolvimento de categorias que abarquem a existência do fenômeno juventude ou em sua
construção enquanto objeto, gerando a incidência de termos como: jovem, juvenil,
29
adolescente e juventude encontradas no decorrer de textos que visam comportar a
multiplicidade inerente a essa instância do campo social (CASTRO, 2005a; 2005b). Devemos
entender que tal categoria deve ser correlacionada a outras categorias sociais, para que haja
uma análise mais concreta da juventude (GROPPO, 2004) como, por exemplo, etnicidade,
gênero e classe social.
Se pegarmos a via de uma análise histórica, veremos que a categoria juventude é
estabelecida no momento em que as sociedades modernas se voltam para suas próprias
dinâmicas no intuito de “classificar indivíduos, normatizar comportamentos, definir direitos e
deveres” (GROPPO, 2004, p. 11), sendo uma categorização que age tanto na esfera do
imaginário social, quanto passa a ser um dos elementos que estrutura as redes de sociabilidade
(SIMMEL, 2006).
O processo segregativo da modernidade além da estruturação da sociedade em
classes criou “grupos etários homogêneos” (Ibid., p. 17), baseados na faixa etária e que
compartilham um comportamento social semelhante. A correlação ou fusão que há entre a
juventude e a puberdade se dá neste movimento da modernidade, sendo a puberdade postada
enquanto categoria universal, não passando de um estágio do desenvolvimento humano, a
qual pode ser irrelevante de acordo com o contexto cultural local (DURSTON, 1995; 1996).
Segundo Pierre Bourdieu em sua famosa entrevista A juventude é apenas uma
palavra (1983), as categorias de jovem e geração estão a mercê das relações de poder, sendo
acionadas dependendo dos interesses, que por sua vez, apresentam-se como “objetos de
manipulação” (BOURDIEU, 1983, p. 155) dentro de um campo relacional. As categorias
juventude e velhice são construídas socialmente, e cada recorte de geração está sujeita as leis
impostas pelo campo de força, ou seja, o teor de manipulação que tais categorias são
submetidas depende do campo em que ela é acionada. Um ponto importante neste tipo de
argumentação é a crítica sobre a relação que é estabelecida entre os fatores biológicos (faixa
etária) e o compartilhamento de interesses ou sentidos semelhantes entre os sujeitos (habitus
de uma classe, por exemplo) a crítica gira em torno da errônea relação estabelecida entre esses
dois fatores, elementos biológicos e sociais.
Longe do empasse interno, a juventude é produzida por conflitos exteriores também,
como aponta Marialice Foracchi (1972). Para tal autora, há uma positividade no uso do termo
geração nas reflexões desenvolvidas acerca da juventude, pois, ao ser bastante trabalhado por
Karl Mannheim (1980), estabelece, além do recorte social etário, o conflito como fator
constituinte e fundamental para compreensão dessa segmentarização do social. Existe, pois,
30
um caráter de contestação inerente à juventude em embates pela própria “coexistência,
resgatando as diferenças” (FORACCHI, 1972, p.160).
O conflito pode ser entendido em atitudes de resistência ou oposição por parte dos
jovens diante de estilos socialmente estabelecidos e legitimados pelo segmento adulto. A
juventude estaria num entremeio da contestação política e a contestação cultural. Neste ponto,
a juventude se apresenta como um momento para a realização da pessoa, um projeto de
criação institucional, uma nova alternativa de existência social diante de padrões e costumes.
Como coloca Elisa Guaraná de Castro (2005a), a definição de juventude é trabalhada
enquanto oposição e não como aproximação de outras categorias como, por exemplo, em
relação à adulta. No processo de segmetarização social moderna, as categorias sociais são
construídas por oposição umas às outras, trata-se, nisto, de uma crítica a Mannheim (1980) e
Foracchi (1972), que em suas reflexões a categoria juventude está sempre construída em
contraposição ao segmento adulto e hegemônico. Estabelecem um segmento deslocado por
conflito de não aceitação diante da sociedade em geral adulta.
Juventude está sempre relacionada à transitoriedade, a não estabilização do estado
do ser, podendo sempre ser trabalhada do ângulo oposto ao adulto ou mais velho, porém é
recorrentemente associada a certo potencial de ação transformadora ou potencialidade de
inovação (CASTRO, 2005a; MANNHEIM, 1980; FORACCHI, 1972), apresentando um caráter de
novidade e experimentação diante da realidade.
Não obstante, muitas são as definições do que vem a ser a juventude ou o jovem
depende da cultura a qual o sujeito está inserido. O recorte jovem ainda é delineado pelo fator
biológico, mesmo que, incialmente, tivermos deixado claro tratar-se de um equívoco tal
estabelecimento baseia-se na correlação de comportamento social e fator biológico. O que há
atualmente é o recorte etário de 15 a 24 anos, com base em parâmetros aceitos pela OMS e
UNESCO, sendo no Brasil essa faixa etária de 15 a 29 anos (CASTRO et al, 2009a).
Contudo, quando o pesquisador está em campo e precisa delimitar seu objeto de
pesquisa, como estabelecer concretude em material fluído? Para Castro (2005b, p. 32, grifos
retirados) devemos “observar quem chamava quem de jovem, quem se autodenominava como
tal, em que situações e espaços, e que códigos estavam sendo acionados através do uso deste
termo”.Dessa forma, devemos estar atentos aos detalhes que produzem os contextos locais,
pois só assim conseguiremos apreender, a partir das categorias locais, as formas de
categorização e segmentarização da comunidade estudada.
Assim como muitas são as formas de definição e abarcamento do jovem e da
juventude, variadas são as formas de estudá-las. Uma delas é a proposta por Groppo (2004, p.
31
12) sobre a existência de uma “condição juvenil”, no que tange uma abordagem dialética. A
abordagem dialética da juventude está voltada para as mobilizações e organizações juvenis
que, em ciclos, integram e dissociam-se da sociedade em geral. Abordar a juventude a partir
de uma dialética, segundo este autor, é apontar para as contradições existentes neste campo
social, buscando em suas análises fugir das concepções funcionalistas que recaem na
naturalização da juventude. As análises voltam-se para a juventude ou condição juvenil como
possuidora de caráter experimental de valores sociais. É apreender o fenômeno em seus
desdobramentos presentes.
Esse tipo de proposta é interessante, principalmente, ao abordar o processo conflitivo
entre os segmentos da sociedade que se estabelece a partir das interações e discordâncias,
dialogando com a proposta deste trabalho no ponto de perceber a construção de uma categoria
e sua efetivação num espaço de entremeios, de conflitos entre campos como é a questão da
juventude rural.
Categoria analítica jovem rural possui contorno pouco delineado, por se tratar de uma
categoria, neste caso, entre meio, no que se refere aos campos da juventude e do rural. Ao se
trabalhar com a juventude rural, conforme Castro (2005a) a categoria relacionada a esse
campo são naturalizadas, substancializadas. Porém, ao que se percebe é o desenvolvimento de
uma disputa nos discursos e ações quanto a qual especificidade de jovem se pretende
delimitar “tanto na definição de agentes que atuam como “jovens”, quanto os que se auto-
identificam coletivamente como tal” (Idem, p. 31); por isso, o trabalho empírico de campo
apontará a qualificação do que vem a ser ou não o jovem.
Embora não utilizem o termo jovem rural, os que se autodenominam jovem
constroem sua identidade em diálogo com imagens de um universo rural e
espaços urbanos, em um bricolage que configura auto-percepções sempre em
movimento, através de um diálogo marcado pelo tempo e no espaço
(CASTRO, 2005a, p. 33).
Para Castro (2005a) ao se estudar a juventude rural ou camponesa, os teóricos
recorrem, em boa parte, para os estudos de migração entre o rural e o urbano, e por apontar os
jovens como os agentes de transformação no campo, criam uma insistência pela permanência
da juventude no meio rural, seguindo pelos preceitos do fim do rural ou de um projeto rural.
Erros são recorrentes ao estudar a juventude rural, dentre eles há o da generalização
de que todos os jovens são camponeses (DURSTON, 1996), sendo que em boa parte, os jovens
tornam-se assalariados, e passam a recorrer ao contexto fora do meio rural, tendo que
assalariar-se nas cidades mais próximas, como é a situação do Assentamento Vale do Lírio,
32
no qual uma parcela considerável desloca-se para as cidades próximas na busca de empregos
como alternativas de constituição de rendas.
Percebe-se esse movimento nos assentamentos rurais como já exposto
anteriormente, os quais despontam como símbolos de dinamicidade entre o rural e urbano. Na
população jovem do assentamento a busca por alternativas exteriores é constante, inclusive
naqueles contextos em que o investimento na produção agrícola no assentamento se consolida
como alternativa viável. Quando o projeto de assentamento tem êxito, apresenta-se a
justificativa da busca do consumo associado à vida na cidade, as buscas por emprego são mais
constantes. As imagens acionadas pelos jovens sobre a busca de alternativas outras no meio
urbano se dá pela própria construção política da estrutura dos assentamentos rurais, que se
configuram muito além das possibilidades de relação direta com a terra (SCHWADE; PAIVA,
2014).
Entretanto, observando a juventude em suas ações corriqueiras, do âmbito do
cotidiano, perceberemos que o fluxo de idas e vindas, a relação de saídas e permanências dos
jovens residentes do assentamento, não podem ser enquadrada numa reflexão extremista; ela
deve perpassar as dinâmicas estabelecidas nos processos de fluxo rural-urbano, uma vez que,
a circulação dos jovens fora do assentamento gera demandas e estabelece a produção de
novidades dentro da comunidade (SCHWADE; PAIVA, 2014).
1.4 ELICIAÇÃO DE UM GRUPO JOVEM6
Inserido em campo, o pesquisador articula a exposição dos “comos” e dos “porquês”
dos sujeitos ao se organizarem coletivamente. Nisto, admito que este trabalho em boa parte
destina-se a tentar entender os “comos”, num sentido mais voltado para pensar o agir, o
movimento de organização de um grupo jovem no assentamento Vale do Lírio/RN. Este
tópico direciona-se para as representações existentes e articuladas dentro do assentamento
Vale do Lírio sobre um grupo jovem, com a insistência de tratá-lo enquanto representação
acordada pelos moradores da comunidade e efetivada pelos próprios jovens.
Minha experiência no referido assentamento mostra a propagação de um discurso
sobre existência de um grupo jovem no interior da comunidade, e que tal grupo mobiliza
politicamente os demais jovens em prol de benefícios coletivos. Desde o primeiro encontro
com os residentes deste assentamento em abril de 2014, as falas são articuladas para
6 Elicitação é uma adaptação da palavra inglesa (to) elicit, significando resumidamente “fazer sair; provocar;
desencadear”, no sentido de trazer à tona. Para uma explicação mais detalhada ver nota do tradutor em Wagner
(2012, p. 220).
33
demonstrar a existência de tal grupo dentro da comunidade, e essa foi minha primeira
impressão durante um das reuniões que tive com as mulheres e os jovens do assentamento.
Sob o sol forte esperamos reunidos na calçada da pequena igreja católica da
comunidade – alguém se dispusera a pegar as chaves para abrir as portas -.
Um grupo de mulheres se formava ao nosso redor, com a presença de alguns
jovens – contei sete, entre rapazes e moças -. Entramos na igreja e nos
organizamos em círculo, movendo os bancos para que pudéssemos sentar e
olhássemos uns para os outros. Dona T inicia a reunião, deixando claras as
demandas do grupo: fomentar um projeto que beneficie jovens e mulheres,
os primeiros em especial. Os jovens se reúnem, são organizados. Esses são
os interessados – aponta para uns jovens -, pensam em montar uma
associação (Trecho do meu diário de campo, abr. 2014).
A constante ênfase atribuída à existência de um grupo jovem pode ser trabalhada por
muitos ângulos de análise, mas seguirei com uma reflexão sob influência do antropólogo Roy
Wagner, no que se refere a uma discussão simbólica da construção da cultura e seu processo
infindável de invenção e contrainvenção.
Ao pôr em prática um olhar mais clínico sobre os fenômenos, passamos a observar
detalhes antes despercebidos. Estar atento às pequenas reuniões e encontros com os residentes
do assentamento Vale do Lírio, possibilitou-me perceber que a formação/produção do grupo
juvenil surge mediante um discurso comum e coletivo, que ressoa no interior do assentamento
e é confirmado pelas ações dos jovens, ou seja, a quase insistência em localizar, delimitar e
pontuar a existência de um grupo jovem no interior dessa comunidade incita os jovens a
reivindicarem tal delimitação para si.
Os residentes “mais velhos” acionam a expressão grupo jovem e delimitam
aqueles abarcados por essa expressão; falando e apontado, os adultos desenvolvem um
discurso que se torna gestos e ganha objetividade. Aqueles apontados passam a pertencer ao
grupo jovem, delimitando-se, assim, o coletivo juvenil. Quando não é acionado o termo
grupo, é estipulado apenas como jovens no plural, buscando abrangência coletiva da
identificação.
Podemos pensar esse processo no patamar de uma invenção (WAGNER, 2012),
articulando a efetiva influência do discurso (plano simbólico, das subjetividades e das
metáforas) sobre o a ação concreta do jovem (plano material, das objetividades e das
convenções), e vice-versa, num processo cíclico ou quase-dialético no qual o grupo jovem se
instaura objetivamente e ganha status de existente.
Se pensarmos ao nível de construção social da realidade como proposta por Peter
Berger e Thomas Luckmann (2011), poderemos visualizar a esquematização do processo que
34
instaura a realidade, sob a qual a objetividade e a subjetividade incidem uma sobre a outra,
sempre na produção de uma nova etapa do processo. Não obstante, o processo não se conclui
numa síntese dialética, mas numa massa inacabada que será trabalhada e entrará no processo
novamente. O grupo jovem é acionado, criando-se limites e definições num processo de
resistência e aceitação; os jovens assumem para si a identificação, gerando, então, uma
realidade concreta. Há uma invenção concretizada no grupo juvenil por meio de
representações como encontradas nas falas de alguns residentes do Vale do Lírio sobre a
recorrência de reuniões e a elaboração de metas para projetos futuros por parte os jovens.
Bem coloca Wagner (2010, p. 60),
Os efeitos dessa invenção são tão profundo quanto inconsciente; cria-se o
objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo
se criam (por meio de extensão analógica) as ideias e formas por meio das
quais ele é inventado.
Em “Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?” (WAGNER, 2010),
podemos encontrar uma discussão sobre a produção de grupos social ou sua imposição diante
de determinadas “grupidades” (Ibid., p. 237) em culturas não-Ocidentais. Percebemos em
Wagner (2010) uma atenção dada aos erros cometidos por parte dos pesquisadores em atribuir
a existência de grupos sociais em sociedades outras que não a deles, ou a elaboração de
estudos “como se” existissem grupos sociais nessas sociedades, sendo a formação ou
organização social em grupos perpassada por concepções ocidentais do que venha a ser uma
organização coletiva que, por sua vez, são lançadas sobre outras formas de organizações
sociais diferentes da nossa.
As possibilidades de produção da realidade são ampliadas para além das fronteiras de
domínio do pesquisador, transmutando-se não apenas aos desejos do pesquisador e suas
necessidades práticas de cunho teórico-metodológico, mas são aplicadas para dar conta dos
processos inventivos dos sujeitos imersos em seus próprios contextos. Temos um discurso
gerando ação, gerando um ator social, ou seja, representações acordadas e postas em práticas
pelos próprios sujeitos inseridos do processo.
Pode soar como se a juventude do Vale do Lírio fosse apenas uma criação do
discurso coletivo em efetivação. No entanto, a função do discurso é de fazer surgir, trazer à
tona a juventude em sua concretude, não no sentido de a juventude existir como um material
in broto pronto para ser acionado pelo discurso, pelas falas dos moradores, mas no sentido de
35
uma singularidade que reivindica para si a existência. O grupo jovem pode ser posta como
resposta atuante diante de uma incitação exterior promulgada por um coletivo adulto.
Diante d a produção e a efetivação do grupo jovem e sua constituição enquanto ator
político, percebemos a imbricação da longa querela indivíduo/sociedade tão cara as ciências
sociais, mas que se perdem na seara de invenção e contrainvenção do grupo jovem. Temos,
até esse ponto, como esboçar o poder coercitivo do discurso reivindicado pelos jovens na
esfera de consolidação do grupo jovem. Explico: ao tomar para si o discurso sobre a
constituição de um grupo, o próprio grupo o utiliza como forma coercitiva de existência,
tornando sólida a representação do coletivo formado com pompas de existência sui generis. O
teor construído fica nebuloso até mesmo para aqueles que o constituem.
Discutir o processo de produção de realidade ou a formação de um grupo social têm
implicâncias sobre o modo de abordar o agir dos jovens diante da realidade instaurada, uma
vez que, proponho-me a trabalhar a juventude enquanto construída pari passu na busca de
legitimidade social e política dentro e fora do assentamento, sempre deixando clara a
constituição das identidades enquanto produção política de subjetividades.
Discutir identidade é discutir negociações políticas, negociações dentro de sistemas
de força que envolvem poder. A reivindicação de identidade é política, e por isso, a reflexão
sobre identidades é tão cara às ciências sociais (BERGER; LUCKMANN, 2011). O pesquisador
insere-se no campo levando consigo o dever ético de ser fiel ao objeto de estudo, numa
relação de apadrinhamento, no qual suas argumentações saem em defesa do que foi visto ou
ouvido em campo.
Com isso, se um ajuntamento de sujeitos se denomina enquanto grupo e possui uma
legitimação perante a comunidade em geral, esse ajuntamento deve ser tratado enquanto
grupo, mesmo que, para o pesquisador, esse ajuntamento não passe de um encontro fortuito
desses sujeitos ou não possuam características de grupo, pelo menos não as características que
o pesquisador acredite constituir um grupo. Se bem que, o esforço encontrado neste tópico é o
de apresentar o princípio de formação do grupo jovem do Vale do Lírio na esfera simbólica,
do discurso e de sua concretização na esfera da prática e da ação.
Posso, ao fim deste item, apresentar um das camadas no processo de produção de um
grupo e de muita importância tratada por Wagner (2010; 2012) em suas reflexões, que é o
peso e o impacto do pesquisador e de suas ciências perante o processo constituinte do
fenômeno. A invenção não se desloca apenas no polo dos sujeitos estudados, mas no processo
de consolidação de um trabalho científico como este, que acaba por entrar na miscelânea da
invenção de realidade. Acabo por auxiliar, em certo grau, o status de existente do grupo
36
jovem ao delimitar e descrever a emulsão que constitui a relação do discurso coletivo e da
estabilização em ações concretas por parte dos jovens.
O pesquisador instaura realidades ao escrever ou esboçar os fenômenos sociais numa
intensa ação criativa. Aparecendo como agente sistematizador dos fenômenos, expõe a
realidade, mas, e ao mesmo tempo, é levado pelos sujeitos estudados em sua produção da
realidade. Temos, com isso, a ação inventiva atuando duplamente (polo-pesquisador e polo-
pesquisado), estabelecendo um movimento inventivo se tomarmos inspiração wagneriana.
37
CAPÍTULO 2
A DINÂMICA LOCAL
O aqui e o agora são instâncias de uma realidade fluída. O dualismo entre arcaico e
moderno torna-se obsoleto num mundo de cultura global (HANNERZ, 1996), bem como o
longe e o perto se tornaram referências dos séculos anteriores. Se parássemos para analisar as
movimentações a nível globalcomo os múltiplos movimentos voltados às questões rurais,
perceberíamos a complexidade em tecer uma longa teia de interrelações e contato. Tomemos
como exemplo o grande guarda-chuva que é a Via Campesina e suas implicações em
localidades rurais das mais diversas espalhadas pelo mundo, poderemos perceber que os
eventos locais e globais são produzindo em concomitância um com o outro; Ou, até mesmo
movimentos como o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR),
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). Podemos, ainda, apontar para a influência
dos meios midiáticos sobre uma comunidade local, na qual os sujeitos possuem acesso à
televisão, internet, rádio. Os efeitos das muitas maneiras de circulação da informação de nível
global são incomensuráveis.
O contato que os assentamentos rurais estabelecem cotidianamente com as zonas
urbanas circundantes são chaves para entender a situação de pura interação entre os espaços
locais com fluxos globais de circulação da informação e de tendências. Podemos pontuar,
ainda, que as mudanças locais como, por exemplo, a modernização do acesso à informação
(uso de aparelhos celulares, computadores) faz parte da própria mutabilidade do local. Pode-
se dizer que o próprio local produz a si mesmo pela variação (TARDE, 2007) em contato com
correntezas modernizadas encontradas nos meios urbanos.
Outra esfera que merece destaque em nossa discussão é o campo religioso no que
tange a aglutinação dos sujeitos, dos jovens no caso dessa pesquisa, e os realocam em ações
dentro da comunidade ou fora dela. Émile Durkheim (1996) denotava que a religião, como
forma de conhecer o mundo, entraria em declínio no movimento de mudança da sociedade
racional. Em meio a toda modernização do rural, como apontamos no capítulo anterior, o
processo religioso surge como unificador do coletivo. No assentamento Vale do Lírio, três são
as religiões que se efetivam dentro da comunidade. Dessa forma, podem ser postas em duas
maneiras de ação no segmento jovem e, em consequência, a efetividade na produção de
coletivos e emancipação dos jovens em relação à família e à possibilidade de tornar o
assentamento rural enquanto meio para efetivação dos projetos de vida.
38
2.1 O GLOBAL NO CAMPO DE LÍRIOS
Em um dos meus retornos ao assentamento Vale do Lírio, direciono-me para a
quitanda que fica logo na entrada da comunidade. Pelo espaço pertencer à família da Gilmara,
é o primeiro local que tinha em mente para buscar informações, uma vez que, passados muito
tempo de minha última ida ao assentamento, pouco me lembrava da localização das casas e
onde moram as pessoas certas, as pessoas que preciso conversar.
Na quitanda, deparo-me com o sorriso de Gilmara, jovem de 25 anos. Feliz me
esperava, ou pelo menos, tinha a esperança que eu aparecesse naquele horário. Debulhava
feijão-verde, pois tinha uma encomenda feita para aquela manhã. Simpática, pediu que eu
puxasse uma cadeira próxima à parede e me sentasse. Perguntou-me se eu não me
incomodaria em conversar, enquanto ela debulhava feijão; como não queria atrapalhá-la, falei
que não haveria nenhum problema, e que poderíamos conversar ali mesmo. Estava naquela
função por que o irmão tinha ido a São José do Mipibu/RN fazer algumas compras e a
quitanda não poderia ficar fechada.
Minha admiração fora pela quantidade de tempo que eu não visitava o assentamento
e que, também, não via Gilmara. A última vez que tínhamos nos avistados foi em fins de
Maio de 2015 e as minhas visitas ao assentamento tinham se encerrado antes que isso. Tive,
pouco depois desse período, a felicidade em encontrá-la num evento estudantil em
Bananeiras/PB.
Com um sorriso empolgante, Gilmara se dispôs a responder e sanar muitas das
minhas inquietações. Buscá-la como ponto inicial para o desbravamento das teias de
sociabilidades criadas pelas jovens é crucial, uma vez que, ela pode ser colocada como tipo
ideal, um caso singular de sucesso na interação com a cidade e os meios metropolitanos, tais
como a educação formal e o engajamento político. No início de nossa conversa, revelou o
quanto eu estava com sorte de encontrá-la no assentamento naquele momento, pois, logo
realizaria uma viagem para a Argentina na semana que se seguia. Estaria num evento
internacional no qual representaria a Pastoral da Juventude Rural nacionalmente.
O evento estava sendo organizado pela Via Campesina e tinhapor intuito a formação
de lideranças rurais espalhadas pelo mundo, principalmente dentro do segmento jovem. Para
que a ida e permanência de Gilmara na Argentina se efetivassem, a Via Campesina
financiariaos gastos dela através da Pastoral da Juventude Rural/RN.
Neste ponto, fiquei intrigado pela grande relação global que, através da Via
Campesina, gera possibilidades de jovens em lugares tão particulares consigam circular por
39
espaços de diversidade a nível global. Acredito ser uma das facetas da Via Campesina: tornar
possível a relação entre as ações micro num sentido local, estabelecendo relação com as
campanhas mundiais num plano global. Além disso, perceber a complexa circulação de
capital por capilares até chegar ao fomento do deslocamento de uma jovem para um evento
internacional em um país estrangeiro.
A inserção da juventude e das mulheres em fluxos transnacionais é recorrente,
principalmente para quem pretende entender a complexidade estabelecida na formação de
coletivos jovens e feministas na atualidade. Como percebeu Schwade e Paiva (2014), a
inserção da figura feminina em movimentos sociais de vínculo rural perpassa uma resistência
diante das realidades locais, possibilitando experiências diversificadas às mulheres e aos
jovens que conseguem entrar nesses fluxos.
Obviamente que a formação de uma entidade como a Via Campesina perpassa um
processo histórico-social complexo de demandas locais dos mais diversos pontos do planeta
no que tange às questões rurais e suas implicações, e que se refletem numa condensação de
representatividade global. Nesse processo longo e potente, a infiltração em demandas locais é
perceptível quando observada no deslocamento transnacional de uma jovem para experiências
internacionais. O peso de trafegar transnacionalmente por entre os movimentos e segmentos
sociais realça a construção subjetiva dos sujeitos mediante o contato com a variedade de
experiências fora da comunidade de origem.
A participação em coletivos de formação política, por exemplo, são ações diretas de
instâncias transnacionais numa comunidade rural, bem como os eventos de cunho político que
arregimentam segmentos específicos, como a juventude e/ou as mulheres em prol de
emancipação dos sujeitos. O Intercambio e Feira Nacional de Saberes e Sabores da Juventude
Camponesa que ocorreu em Caruaru/PE em 2016, é um exemplo de aglutinação da juventude
em torno de um ponto em comum que é a preservação do conhecimento tradicional local
frente ao processo desenfreado da modernidade em estabelecer o fim do rural (BLUME, 2004).
Ao saber do deslocamento de Gilmara, questiono sobre o impacto que gerou nos
demais residentes do assentamento com a notícia de que ela estaria indo numa viagem
internacional representar os jovens rurais do Brasil. Ela comenta que houveram alguns boatos
e comentários sobre a viagem. Alguns questionamentos sobre o mérito dela ser a única
escolhida dentre os demais jovens. Todavia, o falatório e os discursos desconexos não
surtaram grandes impactos na busca por melhorias e oportunidade que tanto sonha essa
jovem.
40
Gilmara ganha realmente destaque entre os/as demais jovens. Há algum tempo, ela
conseguiu estabelecer um vínculo para além do assentamento e com muita perseverança
continua a mantê-lo. Depois da conclusão do ensino médio, que ocorreu todo em escola
pública na cidade de São José do Mipibu, ingressou no curso técnico de agropecuária pela
Escola Agrícola de Jundiaí – UFRN; ao concluir, prestou assistência técnica por dois anos a
um grupo de jovens que produziam agricolamente pela REDE GPR (Rede de Grupos de
Produção e Resistência) no estado da Paraíba. Atualmente, ela cursa a graduação em Ciências
Sociais da Terra pelo PRONERA/UFRN.Tal curso busca a formação de jovens rurais no
curso de Ciências Sociais sob a modalidade de licenciatura, gerando um segmento de
profissionais especializados em refletir criticamente a situação rural, bem como, a
permanência desse segmento no meio rural enquanto promulgador de transformações sociais
locais.
No final de 2011, ao ir a um dos encontros da Pastoral da Juventude Rural/RN,
Gilmara se identificou bastante com o lema que organiza a pastoralque é resumido por ela
como: “a luta para o jovem continuar no campo com dignidade sem precisar ir para cidade em
busca de emprego e ser explorado”. Engajou-se politicamente enquanto militante na causa da
juventude rural, tanto é que está à frente da Coordenação Nacional da Pastoral da Juventude
Rural do Rio Grande do Norte e representa a Pastoral da Juventude em diversos eventos.
Como representante de uma entidade, circulou por muitas localidades e enumera algumas
como: Bahia, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Pará, Goiás, Brasília e algumas dezenas de
cidades e recantos potiguares.
Enquanto me enumerava todos os lugares por onde passou, graças ao envolvimento
com os movimentos rurais, como o Movimento de Mulheres Camponesas, Movimento de
Trabalhadores Rurais e o Pastoral da Juventude Rural; Gilmara mexia em seu aparelho celular
atenciosamente, e me explica, abrindo um parêntese, que se tratava de um curso de idioma
que estava fazendo via aplicativos em seu aparelho android. Aprendia espanhol, numa
preparação para a viagem que realizaria em poucos dias. Animada, conta-me que estava
aprendendo também sobre os costumes argentinos, “precisava estar preparada para não
estranhar nada”, falou-me. Através de um instrumento de conexões com a internet, aprendia o
idioma e os costumes da cultura que logo estaria em contato.
O engajamento nos movimentos de vínculos com a terrapossibilitou à Gilmara um
leque de possibilidade de circulação entre os espaços, principalmente o acesso a uma
discussão progressista e inovadora com implicâncias direta sobre o cotidiano a juventude no
campo. A dinamicidade e organização introjetada pela participação de um segmento político
41
lhe ofertou um espírito de liderança, o qual o maneja muito bem na lida com as demandas de
sua comunidade e serve de inspiração para os demais jovens.
Refletindo a situação dela, relembro uma conversa com outro jovem no início de
minhas visitas ao assentamento. J. é um dos rapazes da comunidade, tem 26 anos e estava à
frente da organização dos jovem para a formação da associação7. Em meio à conversa surge a
afirmação de que não haveria a influência do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST) dentro da comunidade do Vale do Lírio. Na fala da jovem, “o MST não manda mais
aqui”. A ideia de “mandar” refere-se ao acompanhamento que o Movimento realiza em
algumas comunidades, prosseguindo com o processo de formação e politização dos
moradores de assentamentos rurais. Neste sentido, devo concordar com a ideia da jovem,
mesmo que em partes, pois, se pararmos para observar o assentamento Vale do Lírio, não há
qualquer referência a filiações ou vínculos com o MST8.
Todavia, tal observação é falha, uma vez que, dezenas são as maneiras do
Movimento de Trabalhadores Sem-Terra atuar numa comunidade rural, como por exemplo, os
muitos eventos de organização juvenil que são realizados na própria comunidade e que ficam
sob o guarda-chuva da Pastoral da Juventude Rural. Torna-se limitada a observação míope
sobre as influências do MST sobre a comunidade em questão. O exemplo de Gilmara é
fabuloso, se encarado como tipo ideal de entrosamento com as questões rurais sob a custódia
do MST em relação à igreja católica.
Até mesmo se pensarmos distante, longe dos eventos efetivos que congregam jovens
e adultos dentro e fora da comunidade, o MST age indiretamente sobre a produção e
permanência do assentamento enquanto uma comunidade autônoma e produtiva. Basta que
lancemos uma especulação sobre como funciona os muitos investimentos e liberação de
créditos fundiários para os moradores dos assentamentos rurais, de uma forma geral. Existe,
pois, negociações que estão intrinsecamente envolvendo o MST enquanto intermediador e
articulador de propostas que beneficiam de alguma forma os moradores de assentamento rural
junto às instituições fundiárias como, por exemplo, o INCRA. Tal situação é bastante
polêmica, cabendo desdobramentos em trabalho futuros e mais densos.
Quero assim apresentar que o próprio caminho trilhado por Gilmara, por intermédio
do envolvimento politizado com movimentos sociais, está sob a influência de correntezas
7 J. é um dos jovens que passou a residir na cidade, mora e trabalha na cidade de Parnamirim/RN.
8 Refiro-me aos símbolos físicos de relação ao MST, que podem ser encontrados com recorrência em alguns
assentamentos, tais como bandeiras, pinturas, um ou outro morador usando uma camisa ou boné. Pude perceber
esses símbolos em outros assentamentos que visitei, também sob a orientação e companhia da profa. Dra. Elisete
Schwade, a exemplos, Paulo Freire III em Pureza/RN e Aracati em Touros/RN.
42
maiores como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e por definição, com fluxos
transnacionais de lutas do e pelo campo.
2.2 RELIGIÃO E POLÍTICA EM AÇÕES LOCAIS
Muitas são as maneiras de o local ser perpassado por influências ou tendências
globais e, com isso, produzir o novo, a própria realidade. Nesse ponto, abarco o ângulo
religioso-político na formação ideológica da juventude local e o impacto sobre as jovens
mulheres. A influência religiosa dentro do assentamento Vale do Lírio está subdividido entre
as igrejas Católica, Adventista do Sétimo Dia e a Assembleia de Deus. Cada igreja produz
uma forma de organização dentro do segmento jovem, em consequência, uma ação efetiva no
interior do assentamento. Para fins de reflexão, distribuirei em dois momentos as formas
organizacionais produzidas por cada segmento religioso a partir da observação dos jovens,
principalmente das moças. A subdivisão será entre evangélicos9 e católicos, pois percebi que
entre as igrejas Adventistas de Sétimo Dia e Assembleia de Deus há semelhanças nas formas
que agem sobre o segmento jovem; nisto, serão agregadas no segmento evangélico,
contrapondo-se ao segmento católico.
Devo, antes de prosseguir, esclarecer que não me dedicarei a uma reflexão sócio-
teológica de cada religião, mas sim, apresentar observações de maneira distinta de como cada
religião dentro da comunidade estabelece o engajamento da juventude local, principalmente
em relação à organização coletiva e o contato com as cidades próximas. A escolha por
subdividir as jovens em dois segmentos de acordo com o impacto que suas congregações
religiosas possuem sobre elas é por perceber que a maneira como os jovens se aglutinam e
circulam por entre os espaços está intrinsecamente ligada ao pertencimento a algum segmento
religioso, no caso, evangélico (igrejas Adventistas de Sétimo Dia e Assembleia de Deus) e
católico (igreja Católica). Não posso deixar de colocar que, como defendeu Durkheim (1996),
é característica principal das religiões o desenvolvimento de um sentimento coletivo, que
possui a capacidade de agregar os sujeitos diante de um princípio comum.
As igrejas localizadas na comunidade produzem um entrosamento entre os jovens.
Um poder aglutinador pode ser definido em relação a esse entrosamento. A religião aglutina
para o local, ou seja, demanda ações mais efetivas de permanência e conformidade. Em
contrapartida, a ação política desaglutina, expandindo as fronteiras e empurra para contexto
fora do assentamento. Desaglutina, nesse caso, não está empregado no sentido de
9 As denominações que exponho sob o título de evangélicas são as de matriz protestantes.
43
desorganizar os jovens em contraposição ao efeito que as religião possuem sobre os jovens,
mas sim, como podemos perceber em Schwade e Paiva (2014), numa organização política
para além das fronteiras do assentamento e de suas localidades de moradia. Esse complexa
relação de contração e expansão, centralização e descentralização de forças dentro do
dualismo religião e política, será esmiuçado neste tópico, a partir de casos particulares.
2.2.1 Segmento evangélico: adventista e assembleiano
Certa vez, em uma das minhas visitas ao assentamento, conversava com E. na
varanda de sua casa, quando um grupo de jovens tendo à frente um senhor, aparentemente o
pastor daquele congregação, aproximou-se e nos convidou a se juntar ao grupo. Acontecia
naquele momento um encontro de jovens da igreja Adventista do Sétimo Dia. Era visível e
audível que estava acontecendo algum evento na comunidade, devido à circulação de jovens
saindo de suas respectivas casas em direção à igreja adventista, bem como, os muitos cânticos
que ecoavam pelas ruas da comunidade, todos vindos da própria igreja.
Os encontros de jovens adventistas acontecem periodicamente, não sendo a primeira
vez que eu tive a sorte de estar no assentamento num dia de evento. O encontro contava com a
presença de um pastor, residente da cidade de Parnamirim/RN e responsável por aquela
congregação no assentamento. A atuação local da igreja Adventista do Sétimo Dia possui
ramificação entre os jovens por meio de entidades como os “desbravadores”. Os
desbravadores podem ser assemelhados aos escoteiros, uma organização juvenil para fins de
emancipação e disciplinamento dos jovens em ações diversas, masque, geralmente volta-se
para a desenvoltura em situações que requer ação imediata, como estar perdido em uma
floresta. A diferenciação dos desbravadores é o vínculo religioso que aglutina os jovens numa
socialização de princípio religiosos. Os desbravadores são jovens evangelizadores, formados
dentro das diretrizes da própria igreja Adventista do Sétimo Dia. Seguem o princípio de
evangelizar os seus irmãos, os seus semelhantes, a princípio seria levar o evangelho aos
jovens, ou seja, a evangelização acontece por segmentos, dentro de uma coletividade
especifica por sujeitos específicos.
Uma das jovens que tive acesso e que faz parte do grupo dos desbravadores é a própria
E. Uma moça acanhada, de 24 anos, graduanda do curso em aquicultura pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Ela passa boa parte da semana fora, por questões de horários
de aula e, por isso, sua relação de permanência no assentamento é diferenciada. Sua mãe,
dona T. me esclareceu, em momentos anteriores, que E. passa apenas os fins de semana em
44
casa, no assentamento. O curso de graduação exigia o empenho de E. em permanecer na
cidade de Natal/RN, uma vez que ela tem que passar toda a semana fora do assentamento.
Segundo E., o período que precisa passar na capital, dorme na casa de uma amiga. Por
cursarem a mesma graduação, ela e a amiga, repartem experiências em relação ao curso, por
exemplo, atividade de pesquisa e extensão universitária.
Imagem 3 – Quadro de mapas 2: acima, temos apresentação do assentamento Vale do Lírio em sua
extensão territorial com as divisões i) agrovila de moradores e ii) lotes de produção individuais; abaixo, a
disposição dos principais locais referenciados dentro do assentamento, sendo i)acesso da RN 316,
ii)quitanda da família da Gilmara, iii) Caixa d’água, iv) Igreja Adventista do Sétimo Dia, v) Igreja
Assembleia de Deus, vi) capela Católica de Nsa. das Vitórias, vii) horta coletiva organizada pelos jovens,
viii) posto de saúde, ix) pracinha local, x) campo de futebol improvisado, e xi) início da área do lotes de
produção. Fonte: goo.gl/nwvbBS.
45
Pergunto a E. sobre a experiência de ter que passar tanto tempo longe da família
numa outra cidade. Segundo ela, “gosto bastante, não apenas por meu curso, mas por poder
ter contato com outras pessoas”, e continua com um sorriso lateral, “por aqui todo mundo me
conhece, sabem com quem ando e o que faço”. A fala de E. mostra como há um poder
observador que regula as ações dos sujeitos dentro da comunidade (CASTRO, 2005a). Todos
conhecem uns aos outros. O poder da informação circular por meio de boatos e/ou fofocas
(FONSECA, 2000), principalmente de assuntos privados, no que se refere aos assuntos pessoais
de cada um, é impulsionado pela pequenez da comunidade e a proximidade estrutural das
casas, bem como, a estrita relação fraternal dos moradores do assentamento. A tranquilidade
de E. em saber que numa outra cidade pode circular, agir, expressar-se de maneira menor
podada que em relação aos momentos dentro do assentamento, torna o sorriso lateral presente
em alguns momentos de nossa conversa, compreensível. Nossa conversa dura pouco, pois
com a chegada do pastor em sinal de arrebanhar os jovens, E. entra em casa e troca de roupa.
Veste-se com um uniforme verde lodo, característico do grupo de desbravadores, e decide
juntar ao grupo recém-chegado e partem juntos em retorna à igreja.
O ajuntamento dos jovens adventistas dar-se em reuniões de estudos bíblicos,
normalmente realizados aos domingos; e as reuniões dos jovens que participam do grupo dos
desbravadores. Os encontros possibilitam o desenvolvimento de sociabilidades entre os
jovens, principalmente, quando visto pelo ângulo do lazer dentro comunidade, uma vez que,
como me relatou E.: “acho os desbravadores bem legais. Temos algumas gincanas e
atividades de campo. Acampamos vez ou outra”. Pelo que me relatou, E. está no nível de
coordenação, uma vez que a gradação hierárquica dentro do grupo varia de acordo com a
idade, e E. possui 24 anos. Seu cargo desempenha um papel importante dentro do grupo de
desbravadores, pois é a responsável pela organização de atividades lúdicas e de ensinamentos
religiosos repassados diretamente aos mais jovens. Por ocupar uma posição de visibilidade
dentro do grupo, E. precisa assumir um posicionamento centrado com engajamento nas causas
de sua congregação e manter-se empenhada nos estudos universitários, certa de que, para o
grupo de desbravadores, é tida como exemplo.
Outro ângulo de ver a relação das jovens com suas respectivas congregações é a
observação das jovens que frequentam a Assembleia de Deus. A organização em grupos
lúdicos não existe no mesmo sentido que na igreja Adventista do Sétimo Dia. “Os jovens se
reúnem apenas para rezar”, falou-me J., uma jovens simpática de 19 anos e mãe de uma
miúda menina de 2 anos. Segurando a filha no colo, conversamos sob a proteção de um
cajueiro. Contou-me que é evangélica, pertencendo à congregação da Assembleia de Deus.
46
Passou a fazer parte da congregação há cerca de três anos, período que descobriu sua
gravidez. Falou-me que a maioria das jovens que se tornaram mães recentemente pertence a
“assembleia” como é denominada a igreja.
Enquanto conversávamos, J. aponta para uma moça que passava e conta-me que ela
era namorada do filho do pastor da “assembleia”. Essa jovem apontada por J. não destoa
muito da própria J., pois ambas estabeleceram um relacionamento com rapazes de fora do
assentamento. O companheiro de J. residia em Parnamirim/RN e no período de descoberta da
gravidez dela, decidiu mudar-se para a comunidade e passaram a morar com a mãe de J. num
quarto construído ao lado da casa dela. Duas inquietações me vêm à mente: a relação das
jovens grávidas em relação à comunidade e a relação amorosa das jovens com rapazes
exteriores ao assentamento, além da relação direta de vínculo com a igreja Assembleia de
Deus.
Estabelecer contato com alguma igreja na comunidade oferta conforto diante da
demanda de atividades dentro da comunidade, dialogando com as observações de Castro
(2005a), a qual apresenta a esfera religiosa, principalmente as igrejas cristãs protestantes
dentro de uma comunidade rural, como instituição primeira de liberdade individuais dos
sujeitos em relação à comunidade em que vive. Duas ou três jovens são apontadas por
namorarem rapazes de fora da comunidade, das cidades de Monte Alegre e São José do
Mipibu. O diálogo com o meio urbano na busca amorosa é fator decisivo para a construção de
um projeto próprio, mas que se desenvolve sob a resguarda da instituição religiosa.
Outra situação encontrada é a da jovem L. Simpática, de 26, de pouca abertura para
conversas, aparenta posicionamentos fortes e decididos. Está cursando a graduação em
serviço social numa faculdade particular em Natal, precisando deslocar-se com bastante
frequência para a capital no intuito de pagar os créditos das disciplinas periódicas de sua
graduação. Segundo relata-me, gosta em demasia do curso que escolheu, possuindo planos
para o futuro, nos quais a estadia no assentamento não está inclusa. Tanto é a firmeza de seus
planos que não se envolve nas atividades que a maioria dos jovens realizam na comunidade.
Como me relatou Gilmara, certa vez, “L. nunca participa das nossas atividades, segundo ela é
perda de tempo e não leva a nada”. Para L. não há utilidade algumas em ações
desempenhadas pelos jovens no local, a exemplo, as diversas formas de atividades de
formação política organizadas periodicamente na comunidade.
Os laços desse segmento com a cidade podem ser resumidos na busca por educação
enquanto fibra mais forte, mas não descarta o peso dos relacionamentos que acaba por
desaguar na produção do segmento das jovens-mães e a formação de novos grupos familiares
47
ou a ampliação dos já existentes. Na sequência, o grupo de jovens adventistas desenvolve uma
ação mais ativa, por articular atividades dentro do assentamento, mas que restringem aos que
dela fazem parte e comungam dos mesmos princípios religiosos. Ambas as congregações,
aglutinam o fluxo de jovens para dentro dos próprios grupos de sociabilidade religiosa,
desenvolvem-se dinâmicas dentro da comunidade que destoam em movimentação dos jovens
do segmento católico, por exemplo, quanto a agência política de vínculo com a terra.
2.2.2 Segmento católico
A organização dos jovens sob a guarda da igreja católica é a mais acessível aos que
observam externamente. A partir do ponto de vista que apresentei no capítulo 1, referente à
eliciação de uma grupidade juvenil, podemos perceber alguns movimentos específicos que
acabam por formar um grupo de jovens católicos, engajando-se em causas políticas e voltadas
ao benefício da própria comunidade.
A organização da festa da padroeira da comunidade, Nossa Senhora das Vitórias
celebrada no mês de Agosto, é um dos pontos observados. Os jovens são encarregados de
parte da organização: a elaboração de um bingo e da decoração da capela local. Distribuídos,
prosseguem arrecadando custos para a compra dos produtos necessários para ornar a capela
local. Mesmo os jovens católicos empenhando-se na organização, boa parte das funções e
direcionamentos são postos nas mãos das moças, responsáveis pela montagem e
ornamentação da capela no dia da celebração à padroeira.
O momento que percebi equidade nas ações e engajamento diante da organização
coletiva jovem, foi na articulação em prol da horta coletiva. O grupo responsável pela
produção da horta e sua manutenção (ver Imagem 4), é diretamente ligado à igreja católica e,
com isso, o processo de interação entre os jovens é diferenciado, pois, o espaço destinado à
horta por ser na lateral da capela católica, tornou-se um impedimento para os jovens de outras
congregações desenvolverem apreço à produção coletiva; Contudo, há a participação, mesmo
que mínima, dos jovens das demais igrejas da comunidade. Nisso, percebemos a separação
dos jovens em grupos que destoam por seus preceitos religiosos. A atuação de moças e
rapazes em atividades estabelecidas em cronogramas é seguida a finco. Uns são responsáveis
pela manutenção de limpeza do espaço, como a capina e a coleta do lixo local; outros se
responsabilizam pela irrigação e coletada e limpeza das hortaliças. Sobre a ligação com a
Igreja Católica, Gilmara explicou que o grupo dos jovens, o segmento que engloba a Pastoral
da Juventude Rural, é um grupo que tem uma proposta diferenciada, pois o grupo não vai à
48
igreja apenas realizar louvores. Na explicação da Gilmara, existe a discussão politica, o
envolvimento da igreja com as causas políticas. A temática que engloba os jovens do
assentamento na discussão sobre juventude.
Imagem 4 – Horta coletiva dos jovens elaborada no terreno ao lado da igreja de Nsa. Sra. Das Vitórias.
Fonte: Hayanne Barbosa, Dez. 2015.
Na ocasião de mais um tour pelo assentamento, acompanho um grupo em visita à
horta recém-produzida (ver Imagem 4, acima). Com muita empolgação os jovens mostram-me
as hortaliças e alguns legumes prontos para serem colhidos, além dos materiais comprados
com o dinheiro da venda das primeiras colheitas de hortaliças, como pás, enxadas e sacos de
sementes. Ao final, Gilmara falou-me que estavam planejando dividir o dinheiro que
ganhassem entre os jovens do grupo, bem como realizaralgumas atividades fora do
assentamento, atividades mais voltadas para o lazer como passeios à praia e idas ao cinema.
Um ponto que merece ser trabalhado é ação religiosa-política dentro do assentamento.
Uma pequena sistematizaçãoda estrutura da Pastoral da Juventude Rural ou denominada,
simplesmente, de PJR, é necessária para o entendimento da organização dos jovens católicos
dentro da comunidade. A Pastoral da Juventude Rural surge em 1983, enquanto demanda de
grupos de base para haver o fortalecimento dos coletivos jovens no meio rural sob a resguarda
da Igreja Católica. Sua ramificação é efetiva enquanto inserção dos jovens numa discussão
politizada sobre temáticas e demandas da juventude rural.
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Gilmara explica que a PJR está subdividida em três grupos: comunidade, vivência e
produção e resistência. Esse último tem influência direta sobre o projeto de uma horta
desenvolvida pelos jovens dentro da comunidade. O objetivo está sendo, segundo palavras de
C., jovem de 23 anos, que estava regando os canteiros:
incentivar os jovens a verem o campo como possibilidade de trabalho e não
precisem busca a cidade como alternativa para inserissem no mercado de
trabalho, ou seja, possibilita que os jovens fiquem no campo e não vá pra
cidade.
O grupo relata que tem a pretensão de melhorar e ampliar a horta para que mais
jovens possam se articular em prol da causa, da permanência dos jovens no campo. Relatam
que não recebem assistência técnica de nenhum órgão, mas que o grupo foi convidado a
participar da ferinha da EMATER-RN. A ação que ocorre em organização de grupos jovens
de base que podem ser desdobrados em: Grupos de Jovens, formados dentro de cada
comunidade e com ações locais; Grupos de Produção e Resistência, voltados para atividades
de permanência da juventude no campo; Ou grupos de vivência, que acontecem em cidades e
escolas em forma de eventos voltados para trocas de conhecimentos e experiências entre
as(os) jovens de muitas localidades.
A articulação é por via segmentada e hierárquica, em primeiro momento pelo menos.
Há uma organização municipal das(os) jovens de vínculos com as paroquias locais. Em
instância superior, as ações regionais de vínculo com as dioceses. E por fim, as ações a níveis
estaduais e nacionais, com coordenações de jovens estaduais e nacionais, respectivamente.
As(os) jovens que se envolvem na PJR estão imersos numa teia complexa de demasiado
contato com o urbano, em virtude da dinamicidade proporcionada pela movimento rural
jovem em constantes momento de formação política dentro do assentamento.
Um exemplo é a participação da Gilmara enquanto figura central na articulação dos
jovens diante de entidades como a Pastoral da Juventude Rural. Ela conta-me sobre a
participação em um curso sob o tema “Fé e Política”, ofertado pela Arquidiocese em Natal.
Tal curso volta-se para a juventude e, em especial, a juventude rural. Ocorrendo em três níveis
de desenvolvimento: estadual, regional e federal. Pelo que percebi, outras jovens estão sendo
inseridas em atividades políticas fora da comunidade. Nas palavras de Gilmara, “eu estou
tentando colocar elas em cursos e oficinas de discussão”. O segmento da juventude católica
possui o vínculo com o urbano por meio da interação com movimentos juvenis camponeses,
mas não somente, pois em muitos momentos percebemos o direcionamento para a busca do
lazer e a busca de bem de consumo.
50
A juventude enquanto um segmento em efervescência como apontei no capítulo
anterior, torna-se foco das ações e esforços de muitos movimentos de lutas agrárias. É
importante sublinhar que, nos diálogos sobre ativismos ou militâncias como fermento próprio
da juventude rural, ressaltam-seos aprendizados e vivências no contato com outras realidades
e possibilidades no proveito que as jovens tiram desse processo, em se tratando de construção
de subjetividade e elaboração de um projeto coletivo de melhorias da comunidade.
Temos, diante desse quadro subdivido em segmentos, como expus acima, duas
maneiras de dinâmicas dos jovens dentro do assentamento Vale do Lírio em relação ao
pertencimento a religioso. Como vimos no segmento evangélico segue, em linhas gerais, as
articulações que as congregações protestantes no Brasil desenvolvem, ou seja, estabelecem
uma forte divisão geracional, dividem-se os fiéis em diversos grupos, isso facilita o
aprendizado da religião em questão e reforça as posições sociais dos sujeitos na vida cotidiana
e dentro da comunhão religiosa. No entanto, reduzem as discussões e o sentimento de
mudança do contexto em que vivem os jovens para-dentro do coletivo da congregação local.
Enquanto, o segmento católico estabelece mais contatos e discussões sobre as formas de
mudança da realidade em que vive, investindo no sentimento coletivo de vínculo com a terra e
a comunidade.
51
CAPÍTULO 3
AS JOVENS MULHERES DO VALE DO LÍRIO
Este capítulo destina-se a reflexões voltadas para o aprofundamento da problemática
de gênero dentro do assentamento Vale do Lírio – São José do Mipibu/RN, no que tange a
relação das jovens com os demais moradores da comunidade, bem como dentro do próprio
segmento jovem. Delimitar uma parte do trabalho para tratar com uma conceituação mais
podada dentro da problemática de gênero, em um trabalho voltado para a área de gênero, é
como usar uma lupa para investigar a luz, ampliá-la. Por isso, neste capítulo busco refletir a
agência ou as maneiras de interação das jovens mulheres dessa comunidade estabelece com o
meio urbano, voltando-se para a dinamicidade das jovens mulheres no assentamento.
Se retomarmos a discursão apresentada no quarto tópico do capítulo 1, logo ao início
deste trabalho, teremos uma explanação sobre a formação de uma grupidade (WAGNER, 2010)
no interior da comunidade, tal problematização torna-se necessária se voltada para os sujeitos
que estabelecem contato com o urbano e pensados, a priori, enquanto grupo ou coletivo.
Observo que no assentamento Vale do Lírio encontramos, realmente, empreitadas individuais
de laços com o urbano e de elaboração de projeto de vida (DURSTON, 1996).
3.1 CONEXÕES DO FEMININO, OU SIMPLESMENTE UMA QUESTÃO DE AGÊNCIA.
Dentre os sujeitos que simbolizam o meio rural, a figura da mulher camponesa é a
mais específica e clara de se produzir na mente enquanto uma figura estereotipada. Mesmo
assim, a figura feminina se constitui enquanto símbolo de luta e resistência política e ganha
cada vez mais visibilidade dentro dos movimentos rurais como apresentado por Schwade e
Paiva (2014). Congeladas numa imagem que remete ao passado, as muitas mulheres rurais
inserem-se numa estrutura na qual prevalece o domínio do macho (SAFIOTTI, 1987), mas, que
aos poucos, está sendo alterada pela busca de emancipação e autonomia.
Sem sombra de dúvida, a realidade feminina rural é perpassada pela autoridade
masculina, no que se refere ao controle das ações e dos desejos. Podemos olhar para um
quadro no qual as mulheres ainda estão sob o julgo masculino em um lugar, como coloca
Millie Thayer (2001, p. 103), “por onde os ventos de uma civilização cada vez mais
globalizada ainda não sopraram”.
52
Existem aos montes espaços nos quais o imperativo masculino é lei. Contudo, focar
em análises que recorram apenas, e tão-somente, a este ângulo é limitar-nos em possibilidade
de desbravar as múltiplas realidades que o meio rural nos apresenta e dos muitos movimentos
de emancipação da mulher camponesa. O meio rural e o feminino que nele desabrocha é
constantemente alterado pelo contato das mulheres com o urbano. Este, a que podemos
colocar como um novo cenário para as mulheres rurais, no qual elas são as protagonistas,
dialoga com movimento de emponderamento feminino a nível global, fruto de movimentos
modernos de libertação da mulher (THAYER, 2001).
O contato intensivo com o urbano é um dos aspectos do movimento de quebra de
fronteiras e infiltração de tendências dinamizadoras do cotidiano dos assentamentos. Como
apontei no capítulo anterior, as barreiras que separam o rural do urbano são tênues e estão
obsoletas. As implicâncias dessa desintegração de distâncias entre o aqui e o acolá sobre as
ações das mulheres rurais são extremamente fortes se pensarmos no aumento de laços criados
por elas com as cidades próximas às comunidades onde moram. As mulheres do Vale do
Lírio, por exemplo, conseguem em sua maioria uma efetiva relação como a cidade por meio
de trabalhos assalariados e educação formal. Um afastamento parcial da realidade rural da
comunidade.
A existência de mulheres que conseguem estabelecer uma relação com o urbano de
uma forma mais completa e efetiva que as demais mulheres, produz uma dinamicidade no
interior do assentamento, principalmente na introspecção em outras mulheres de projetos
pessoais voltados para o sucesso no meio citadino. Isso fica claro quando presente em relatos
de uma das moradoras do assentamento Vale do Lírio, proprietária de um salão de beleza
numa cidade próxima à comunidade, convida uma das moças locais para auxiliá-la no serviço.
Percebo a felicidade da moça ao falar que iria trabalhar na cidade. A animação da jovem M.,
de 17 anos, no momento em que foi convidada foi de pura alegria, apenas em saber que se
deslocaria para a cidade vizinha cotidianamente. Começar a trabalhar como ajudante num
salão de beleza é mais um ângulo da intensa relação com o espaço urbano, uma vez que, a
relação antes limitada apenas aos estudos, passa a ter o teor de contrato de trabalho, ou de
outra forma, uma relação mais jurídica de manter o contato com a cidade.
Podemos, ainda, aprofundarmos nessa situação se pensarmos que M. será ajudante de
outra moradora da comunidade que conseguiu se firmar economicamente na cidade,
desenvolvendo uma autonomia significativa, tanto em relação à esfera financeira quanto as
liberdades individuais de circulação num ir-e-vir do assentamento.
53
As mulheres que mantém uma estrita relação com as cidades próximas, segundo
Gilmara, são mais independentes financeiramente. Dentre as mulheres residentes do
assentamento, boa parte delas já se firmou em algum emprego nas cidades vizinhas e, por
isso, conseguem manter um padrão de consumo diferenciado do restante das e dos moradores
do assentamento.
Uma das situações referenciada por Gilmara e outras moças, é a de que “certa vez,
procuravam fulana [a pessoa não é citada]. Ela não estava no assentamento. Quanto deram
conta, estava na timeline do Facebook a foto de um passeio num shopping center, numa das
ida ao cinema”, relatou Gilmara. A mulher a quem é referenciada, já trabalha há algum tempo
na cidade de Parnamirim e goza de certa autonomia financeira em relação às demais. Muitas
das maneiras de interação com o meio urbano (SIMMEL, 2013) se dá pelo consumo de bens
materiais, geralmente ofertados apenas no meio citadino, como idas ao cinema e praças de
alimentação em shopping centers.
Podemos observar que as mulheres jovens do assentamento Vale do Lírio podem ser
subdivididas em dois grupos: as mulheres jovens com ou sem filhos que já se estabeleceram
em empregos na cidade, possuem relativa autonomia econômica; e as mulheres que, ainda,
não se inseriram no mercado de trabalho, sendo dependentes da família, na qual a relação com
a cidade é mediada pela esfera familiar que impõe limites e estabelece normas para idas e
vindas das cidades, neste grupo a interação com o urbano é ligada basicamente na busca pela
educação ou vínculo religioso.
Em ambos os grupos, o lazer e o consumo são formas importantes e presentes, mas
que são estabelecidas de maneiras singulares. Se nos voltarmos para o grupo das mulheres
independentes, o consumo é autônomo e com consequências diretas sobre elas, ou seja, são
sujeitos da ação. As mulheres que possuem um poder aquisitivo maior, aquelas que
conseguiram se estabilizar economicamente na cidade, portam uma ação ativa na realidade
(ORTNER, 2006). Em outro ângulo, o segundo grupo, o consumo é atravessado e limitado pela
família, e as consequências estão ligadas diretamente a família. Autonomia pode ser sinônima
de agência positiva.
As mulheres mais maduras, “sabem o que querem”, argumentou A. certa vez. Elas
conseguem relativa autonomia, tanto na liberdade de circulação para cidade, quanto de manter
certo conforto dentro da comunidade, como a administração de um empreendimento próprio
e, com isso, a geração de renda.
Para Sherry Ortner (2006), a agência dos sujeitos pode ser definida enquanto uma
mescla de intencionalidade e relações de poder. A intencionalidade, dentro da “estrutura
54
elementar da agência” (Ibid, p.69), seria a propriedade imanente na elaboração de planos e
esquemas que efetivam algum propósito do sujeito. Ou seja, quais os anseios e afetos
impulsionam as mulheres a estabelecerem lutas cotidianas contra uma realidade ressequida
em limitar a ação feminina? Autonomia e realização pessoal? As perguntas são férteis, as
respostas as mais diversas.
Em contrapartida, temos a mesclagem da agência com o poder, uma correlação de
forças de dominação e resistência que estrutura o cotidiano. Muitas das vezes, tal correlação
de força encontra no gênero o ponto central (ORTNER, 2006).A generificação das atividades
produtivas pode ser realçada com facilidade no meio rural.A estrutura rural é esboçada no
encadeamento proposto pela Beatriz Heredia (1979), numa dicotomização dos espaços entre o
masculino e o feminino. A estrutura dual funciona em separar significativamente a unidade de
produção e a unidade de consumo. O masculino é definido em roçado- o trabalho- a produção,
enquanto o feminino como casa- o não trabalho- o consumo.
Nessa polarização, encontramos as resistências, principalmente de jovens que
desejam fugir da realidade estagnada que separa a ação masculina da feminina em detrimento
de limitar a liberdade de circulação entre as esferas. Os rapazes deslocam com maior fluidez.
Possuem a resguarda de seu gênero. Como apontou dona T., “os rapazes vão sempre às festas
na cidade”. Essa afirmação torna-se completa com entonação e as feições deixadas por dona
T. na frase. Um sorriso é o aceno de concordância com o contexto.
No lado inverso da moeda, temos o caso de K., uma jovem de 24 anos, bastante ativa
na comunidade, articula com Gilmara boa parte das ações jovens no interior da comunidade.
Segundo K., empenha-se em poder trabalhar ou exercer alguma atividade no lote familiar.
Contudo, encontra muitas barreiras definidas pelo pai, um impedimento em exercer qualquer
atividade na terra da família. Seu irmão, ao contrário, possui por obrigação a tarefa de auxiliar
nas atividades do campo, plantando, colhendo e vendendo o que é produzido no lote.
Como ela mesma comenta, “não posso ficar esperando pelo meu pai, tenho que fazer
um meio de vida”. K. empenha-se nos estudos. Está fazendo o segundo grau do ensino médio,
numa escola estadual da cidade de São José do Mipibu. As moças, em sua maioria, não
conseguem se inserirem nas atividades voltadas ao manejo da terra. Pelo menos esta é a
realidade encontrada na comunidade. Estudar na cidade tornou-se rota de fuga, uma
possibilidade de realização dos projetos individuais (CASTRO, 2005a).
Deslocar-se para as cidades próximas demanda um esforço significativo na busca da
realização pessoal. A intencionalidade e as grades de poder acionada por Sherry Ortner (2006)
ficam claras quando voltadas para ações individuais em suas demandas cotidianas. É claro
55
que podemos correr o risco de enrijecer a situação, dando a entender que por ausência de
inserção das moças na comunidade, principalmente no meio produtivo-econômico local, elas
acabam por se esvair para as regiões urbanas, situação a que devemos pontuar. Conquanto, as
exceções estão presentes também na realidade da comunidade. A jovem Gilmara que foi
apresentada anteriormente, ao conseguir formação especializada no campo de conhecimento
agrícola, voltou-se para o assentamento Vale do Lírio com o intuito de incentivar a juventude
local na geração de renda e permanência no campo.
A fofoca como desenvolvida por Claudia Fonseca (2000), é, nesse caso, uma
ferramenta de domínio sobre as ações das jovens que conseguem entra no fluxo rural-urbano.
A circulação das jovens pela cidade é fruto de comentários maldosos dentro da comunidade.
Como expôs certa vez seu P., numa de minhas visitas, “por aqui têm umas putas também,
como tem em todo o lugar”. Afirmações como estas dão indicativos de constantes
observações e mapeamentos dos próprios moradores da comunidade para com as atitudes e
ações das moças que circulam.“Ficar falada”, bem resumiu J., de 19 anos, uma das netas de
dona E., moradora do assentamento desde o acampamento. A circulação pelos espaços é
definida por prerrogativas morais do que é aceito ou não. Em sua maioria, a imagem feminina
é a mais resguardada.
Dona E. é um exemplo de contato e circulação com a zona urbana. Em uma de
minhas visitas a casa dela, sou bombardeado por muitas histórias das diversas viagens dela
pelo estado do Rio Grande do Norte, tanto é que na semana recente a minha visita, ela tinha
realizado uma formação política organizada pelo MST na cidade de Currais Novos/RN.10
Contou-me sobre como se sentia bem em viajar e conversar pessoas diferentes e aprender
muitas curiosidades. Insistiu que eu a acompanhasse para conhecer o diminuto plantio de
morangos dela. Três a quatros morangueiros eram o espetáculo que precisava para mostrar o
quanto ficava contente em aprender algo novo. Suas netas seguem outro caminho, comenta
dona E. Envolvem-se pouco nas atividades que os jovens realizam no assentamento, passando
a maior parte do tempo em São José do Mipibu/RN, pois além de frequentarem a escola
regular, participam de cursos pré-vestibulares. Almejam entrar na universidade pública.
A busca pela educação não está limitada aos cursos universitários. Os cursos
profissionalizantes também contribuem para que haja a circulação de moças pelos espaços.
Tem o exemplo de A., jovem de 25 anos, tímida em certos momentos, mas desenvolta quando
10
Neste ponto, podemos perceber mais uma forma de contato do Movimento dos Trabalhadores Rurais com os
moradores do Assentamento Vale do Lírio. A influência do MST é constante e sútil, oferecendo formação
política e possibilidade deslocamento dos sujeitos.
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se trata dos assuntos que gosta. Por volta do mês de Agosto de 2015, quando eu realizava
minha última visita ao assentamento naquele ano, A. tinha iniciado um curso de formação
para pedreiro na cidade de Parnamirim/RN através do Senac, que oferta cursos
profissionalizantes nas mais diversas áreas. Ela tinha decidido construir o muro da casa onde
mora, e assim o fez.“Ela trabalha melhor que qualquer homem”, afirmou dona T., em ocasião
a uma de minhas visitas.
A. frequenta a academia de ginástica na cidade de São José/RN. Segundo ela, prefere
ir à cidade, pois se sente mais à vontade. Consigo uma rápida conversa com ela, numa breve
passagem por sua casa. Sob a pressa, tinha planos de construir um pequeno quarto na lateral
de sua casa. Deixou claro que se tratava da busca de privacidade e conforto para ela, que em
suas palavras foram resumidas em “quero um canto só meu”. A tal busca por um recanto de
autonomia e privacidade fica expressa no jeito tímido de falar, mas firme na assertiva: “eu
preciso de um lugar para dizer que é meu”, declarou no meio da conversa.
Com muita pressa, mas sem demonstrar deselegância, fala que estava de saída
naquela ocasião. Estava de saída para Parnamirim. Sua ida era em virtude de um passeio que
ela e as amigas tinham agendado para aquele dia. Conta-me que, possivelmente, voltaria para
casa apenas no dia seguinte. Estava programando dormir na casa de uma amiga. Com um
sorriso, confessa-me que prefere estar na cidade, no caso em Parnamirim, pois gosta bastante
de andar pela praça à noite “com a galera”. A circulação pelo urbano “com a galera” é
sinônima de liberdade em relação ao cotidiano da comunidade. Poder perambular abertamente
por outras esferas para além do assentamento é tido como alegria.
Podemos, a essa altura, saliente uma tensão em relação aos projetos de vidas
(DURSTON, 1996) entre, por exemplo, a jovem A. e a jovem L. Como apresentado no capítulo
anterior, enquanto A. deixa claro que possui planos para adquirir autonomia em relação aos
demais membros da família e sua permanência na comunidade encaminha-se fortalecida, pois,
construindo um “quartinho” só para ela, conseguirá estabilidade e autonomia dentro da
comunidade. Em outro ângulo, o jovem L. deixa-nos claro que sua permanência na
comunidade é temporária, afinal, aposta todas as fichas no empenho que possui no curso que
realiza, pretendendo inserir-se no campo de trabalho do Serviço Social.
Em ambos os casos, o contato com o urbano é laço comum, mas as consequências ou
a utilidade para a qual o contato é usufruído são distintas. De um lado, o contato é usado
como fortalecimento da estadia no assentamento; do outro, usado enquanto instrumento de
saída do assentamento. Temos, então, maneiras distintas de negociações de cada jovem ao
estabelecerem contato com o meio urbano. O fio de Ariadne que interliga as muitas mulheres,
57
jovens ou não, que residem no assentamento Vale do Lírio, é a imersão no fluxo entre o rural
e o rural e o urbano. O contato com as cidades vizinhas. Suas narrativas e projetos são
construídos sobre tal fluxo.
3.1.1 Uma anedota para o feminino
Contou-me K. que, acompanhando Gilmara, decidiram ir juntas à secretaria
municipal de agricultura da cidade de São José do Mipibu. Precisavam de algum tipo de
veículo que pudesse transportar uns jovens da comunidade para um evento organizado pela
Pastoral da Juventude Rural na época. Decidiram conversar com o secretário de agricultura. O
pedido foi negado com justificativas de ausência de verbas. A história ganha ares de epopeia
nos momentos seguintes. Gilmara armando-se com uma navalha usada para abrir
correspondência e, mirando o secretário municipal de agricultura, dá início a um discurso.
Explica a situação hipócrita que permeia os períodos eleitorais, nos quais os candidatos
circulam pelas localidades em busca de coletar possibilidade de votos para sua candidatura.
Porém, no momento de exercer a função enquanto administrator público e auxiliar nas
necessidades dos cidadãos, o que há são barreiras e empecilhos.
A reação de Gilmara ao ter o pedido negado foi inconsciente, argumentou ela em
meio à fala de K. “Armando-se” instintivamente com um abridor de cartas, foi de longe uma
reação que ela esperava ter. Melindroso, o secretário pede calma e voltando atrás nas
justificativas concede o veículo às jovens, que prontamente se contentam e retornam para o
assentamento contar a recente peripécia em afronta ao secretário municipal. Essa situação
entra para o imaginário dos jovens locais.
Contada e recontada, torna-se cômica o encurralamento de um secretário por uma
jovem rural. A força ativa de Gilmara frente à situação é realçada pela perseverança em
conseguir beneficio em prol da juventude local. Situações como estas, na qual a imposição da
presença feminina em determinada situação, torna-se objeto de destaque na produção de uma
memória coletiva juvenil, e apontam para o forte posicionamento que as jovens mulheres têm
que desenvolver para conseguirem se estabelecer ou realizar projetos.
3.2 UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE CORPOS QUE CIRCULAM
O rural é estruturado para ter a força de trabalho masculina como motriz de
desenvolvimento das atividades locais. O “filho homem” é direcionado ao fatídico destino de
58
produzir e sustentar a perspectiva do pai ou da família em geral, na ausência deste.
Direcionado pela ideologia de ação ativa, da agência produtiva, o rapaz já tem o caminho
delimitado pelo preceitos definidos ao seu gênero. A moça, por outro caminho, possui as
formas de agência podadas pelas mesmas instâncias que lhe atribuem o poderio da casa ou do
espaço doméstico. O meio doméstico é o seu reinado, bem como a pequena roça ou horta
próxima a casa.
A circulação do corpo feminino pelo meio rural é limitada pelas circunstâncias da
ação masculina. E a utilidade desse corpo também é regida por tais circunstâncias. O corpo é
vigiado. O corpo tem sua liberdade observada à distância por olhares ávidos e ferozes em
críticas morais. Escapadelas dos patrões não são permitidas, principalmente em locais onde os
vínculos extrapolam a proximidade entre as moradias e são firmadas por laços de amizade e
confiabilidade através do tempo (FONSECA, 2000). Numa comunidade de baixa
expressividade demográfica, as especulações sobre a vida privada da(o) vizinha(o) tornam-se
substrato para os assuntos em coletivo.
Como articula Castro (2005a), existe uma gradação de controle familiar, ou da figura
masculina sobre as ações femininas. Tal gradação de controle possui o assentamento enquanto
ponto referencial. Internamente, os corpos são observados de perto por laços de sociabilidade
mais densos (SIMMEL, 2006). O corpo da jovem (moça) é alvo primeiro de boatos. Um corpo
feminino jovem sofre dentro de um campo de disputa envolvendo fofocas e ataques diretos,
como chamadas de atenção sobre atitudes, possivelmente irregulares para os padrões morais
locais. O olhar do vizinho chega até a esquina e, com ele, a observação cerrada do ato de
outrem.
Externamente, as ações das jovens estão camufladas. Abertamente, agem. Sob a
liberdade da indiferença e da impessoalidade urbana. Sob a ausência do contato com os
grupos da comunidade criam-se barreiras que auxiliam na circulação desinibida das jovens
pelos meios citadinos. Na cidade, a jovem respira ares de liberdade, antes não pensados. Os
olhares não lhe resguardam vigília. O urbano transpira impessoalidade e oferta possibilidade
de experiências esperadas. A educação e o trabalho assalariado são caminhos quase definidos
e prontos de interação com a esfera urbana. A sociabilidade construída com
colegas/amigas(os) que moram em cidades vizinhas são marcas da ampliação do contato das
jovens segmentos para além da comunidade na qual mora.
O lazer, que não poderia deixar de ser listado, é recanto do consumo refinado de
produtos que um assentamento não pode oferecer. O acesso ao cinema, lojas de departamento,
passeio na praia. O consumo é um caminho complicado, pois é perpassado por investimentos
59
ou demanda financeira. A jovem precisa apresentar os valores para gasto, bem como,
conseguir lidar com a regulação por parte dos familiares.
Aprofundando a esfera rural, encontramos mais dois caminhos de escoamento das
possibilidades de efetivação juventude em estabelecer um contato mais efetivo com o urbano:
a religião e a política. Cada qual com sua capacidade organizativa de uma juventude ansiosa
por agir, por fazer “os próprios caminhos”. Cada jovem define, individual ou coletivamente,
as maneiras de efetivar os projetos de vida. O sucesso dependerá na satisfação em viver o
processo, ou seja, a construção da ideia de galgar as alternativas necessárias para o sucesso
futuro. A jovem que consegue se inserir no trânsito e consegue êxito, ganha a possibilidade de
efetivação dos seus projetos de vida que não possuem vínculo direto com o assentamento
rural, como por exemplo, moradia na zona urbana; que não é conciso, uma vez que, uma
parcela das jovens tem em seus projetos pessoais a permanência no assentamento ou no meio
rural de uma forma geral.
Os corpos-femininos ao circularem deixam marcas e questionamentos. São avistados
ao longe. Sofrem comentários por sua autonomia. Buscam meios de efetivar projetos.
Engendram-se em movimentos sociais, resguardam-se sob o manto da igreja, qualquer que
seja, brigam para fazer parte da esfera produtiva da comunidade. A luta enfadonha,
possivelmente, só acabará quando o produto final for a autonomia e a segurança que suas
decisões e escolhas não serão rechaçadas.
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À GUISA DE CONCLUSÕES
Este experimento, tanto quanto possível, buscou apresentar as vias outras de
escoamento de subjetividades, construções de alternativas e possibilidades, diálogos e
enfrentamento estabelecidos pela juventude, principalmente as jovens mulheres do
Assentamento Vale do Lírio, num processo contínuo de contato com o meio urbano.
Apresenta-se, com isso, uma contribuição aos estudos de gênero e rurais, demonstrando como
as mulheres jovens circulam e constroem estratégias para alcançar seus projetos de vida,
lidando, ainda, com conflitos e relações de poder requerem suas posições diante da
comunidade local.
Mostrar e descrever jovens engajadas militantemente em questões rurais ou que se
deslocam para fora do assentamento em busca de emprego, educação e lazer, é o raso para o
entendimento da complexa teia do cotidiano local de uma juventude que resiste para não
perecer num fluxo que expulsa a juventude rural periodicamente do campo. Bem mais que
subdividir os jovens em grupos, percebi que múltiplas são as formas de relações estabelecidas
entre eles. O estudo do assentamento Vale do Lírio apresentou-se como fonte importantíssima
para situar um contingente populacional do estado que se insere numa rede complexa de
fluxos com diferentes espaços sociais. Nisto, as diferentes gerações lidam com cobranças,
também, diversas, e com projetos que tem muito a ver com as posições nas quais se dispõem
em relação à comunidade.
Noto uma juventude que se constrói em circuitos capilares e articulam ferramentas
disponíveis ao redor de forma a possibilitar maneiras diferenciadas de construção e
reconstrução de si e da comunidade em que vive, guiando os pesquisadores que se dediquem a
tais lócus de estudo a repensarem suas próprias ferramentas teórico-metodológicas.
Ferramentas capazes de abarcar, mesmo que sorrateiramente, a extensa potencialidade que o
campo oferece.
O contato com o urbano apresenta-se como instrumento de conquista e possibilidade
de projetos pessoais (DURSTON, 1995). Planos para o futuro e melhoria de vida. A luta diária
das moças que buscam se inserirem da esfera produtiva local, mas que são rechaçadas por
suas condições femininas. As resistências cotidianas são constantes, e o caminho da educação
torna-se promissor em liberdade e independência pessoal.
Não poderia, por ventura da finalização deste trabalho, deixar de pensar em
generalizações. Parece-me estranho não poder realizar explanações sobre a situação juvenil
61
rural no sentido de uma ausência de politicas públicas que favoreçam o desenvolvimento do
campo. Noto que o caminho seguido por este trabalho, mediante a investigação das estratégias
inventivas produzidas pela juventude local em seu movimento oceânico de vai-e-vem
(CASTRO, 2005a), desembocou no campo de reflexão de implantações de projetos que
possibilitem a articulação das pluralidades juvenis e suas potencialidades na construção de
novas possibilidades de vida.
Aprender com os jovens as novas formas de relação com a terra, com as tecnologias de
aprendizado e comunicação, com as novas formas de moralidades. Refletir alternativas de
políticas de desenvolvimento rural (DURSTON, 1995) que permitam aos jovens a
implementação efetivas de projetos de vida, sem o enclausuramento juvenil no campo,
tornando-o atrativo e com opções de conquista.
Realço a importância das discussões sobre o feminino na esfera rural, principalmente,
nos empenhos diários de inserção nas atividades rurais que estão além da esfera doméstica,
das relações familiares e de influência da figura masculina. Inserem-se em movimentos
sociais, constituem pequenos grupos sob o véu de alguma igreja ou em aventuras pessoais,
desbravando outros contextos em busca de educação ou lazer, em sua maioria, são alternativas
de lutas diárias para efetivar projetos pessoais e conquistar de metas de um futuro mais livre e
feliz.
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EPÍLOGO
UM CAUSO NOS BASTIDORES DA PESQUISA
Toda pesquisa em seu processo possui percalços, empecilhos ou imponderáveis os
quais o pesquisador nada pode fazer, apenas desenvolver “jogo de cintura” e lidar
estrategicamente com os problemas que surgem. O trabalho de campo, tão articulado pelas
ciências humanas, realça-se com caráter especial de implicações. Devemos lidar com os
encontros mal fadados que eventualmente surgem em nossos caminhos. Se, levarmos em
consideração que a pesquisa tem seu início no momento em que saímos de casa, ou até antes
que isso, nos momentos que acordamos e iniciamos o dia de ida a campo.
Em uma de minhas idas ao Assentamento Vale do Lírio, a qual realizei acompanhado
por uma colega de pesquisa, Hayanne Barbosa, tivemos situações interessantes de serem
compartilhadas. De início, nosso translado para o assentamento Vale do Lírio foi bastante
complicado. Sairmos de Natal/RN, pegamos um ônibus com destino a São José do
Mipibu/RN. Partimos do pressuposto que tal ônibus passaria pelo assentamento que
precisávamos, uma vez que, em nossa mente geograficamente estruturada, o assentamento
Vale do Lírio estaria bem próximo da cidade a qual pertence, São José do Mipibu.Porém, ao
conversarmos com uma das passageiras do ônibus, descobrimos que o percurso que leva a
cidade de São José do Mipibu, não é o mesmo que leva ao assentamento, que no fim das
contas fica no sentido de outra cidade, Monte Alegre/RN, ou seja, ônibus seguia pela BR 101,
enquanto a via pra Monte Alegre e, consequentemente, o assentamento Vale do Lírio seguia
pela RN 316, à direita da via a qual pegamos.
Pedimos parada ao motorista do ônibus no qual estávamos. Chegamos até um posto
de gasolina à beira da estrada e nos informamos sobre como realmente chegaríamos ao
referido assentamento. Informam-nos, os frentistas, que havia uma parada de ônibus à direita
dali na qual passavam carros via Monte Alegre e que possivelmente passaria no assentamento
desejado. Na parada indicada, temos a garantia da direção correta e do carro o qual
pegaríamos, tudo sob a palavra de um senhor simpático que apenas sorria para nós.
A falta de conhecimento de localização da comunidade que culminou no erro na
escolha do carro, leva-me a pensar em como é cômodo ir a campo acompanhado de sua
coordenadora em carro da Universidade. Sair só, no sentido de ausência de outros
responsáveis que lhe deixe exatamente no local desejado num translado tranquilo, que lhe
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auxiliem a acessar determinados espaços sob a justa autoridade de um pesquisador mais
experiente, é produzir a ociosidade do pesquisador ante os imprevistos do campo de pesquisa.
Penso também como é alienante não realizar esse percurso de chegada por “conta
própria” ao local de pesquisa, pois acaba criando a ideia de um objeto isolado, de um contexto
hermético. Deslocar-se até um local é montar o quebra-cabeça que aponta a produção
doobjeto de estudo. É remontar, penso eu, também os percursos e trajetos que os próprios
residentes do assentamento realizam para acessar as cidades próximas diariamente.
Circulando em transportes precarizados e super lotados, conseguem diariamente manter
relações com todas as cidades circundantes.
A incerteza da chegada à comunidade cessa ao avistarmos a caixa d’água, referência
da entrada do assentamento Vale do Lírio. Sob passos largos entramos, minha colega e eu,
pela entrada da comunidade e seguimos pelas ruas a fora. Um grupo de pessoas, todos da
mesma família, vendia salgados (pastéis e outras frituras) e caldo de cana protegidos por um
cajueiro bem ao centro do assentamento. Buscando estabelecer contato, realizamos o
cumprimento de praxe: damos um bom dia ao grupo. Devo salientar que sorrimos também,
afinal, estávamos realmente felizes por termos chegados à comunidade. Como resposta,
ganhamos indiferença. Não houve qualquer som de retorno, mesmo acreditando que o grupo
chegou a olhar-nos. Decidimos seguir. Reconhecemos uma senhora que caminhava em nossa
direção, pois, ela estava em uma das reuniões na qual fizemos parte anteriormente no
assentamento, e a cumprimentamos sorridentemente. A senhora nos olha e segue o trajeto
estipulado como que não tivesse nos visto no final das contas.
Achamos estranho, pois, não havia qualquer tipo de expressão nos rostos das pessoas
as quais cumprimentamos. Rostos pintados de neutralidade. Seguimos para a casa de dona T.,
e somos recebidos afetuosamente. Demoramo-nos na casa dela, mas seguimos visitando
outras residências no assentamento, as quais tínhamos agendado anteriormente. O dia passou
tranquilamente, com exceção dos moradores que nos receberam em suas casas, os demais
residentes que andavam fortuitamente pelas ruas e que chegávamos a cumprimentar,
ganhávamos em retribuição o silêncio.
Dentro do ônibus retornando da visita ao assentamento, minha colega e eu, ríamos
apenas. Não por tal situação soar engraçada, apenas por não termos outras ação para expressar
aquele momento. Ficamos invisíveis para algumas pessoas. Viam-nos, mas não estávamos ali.
A situação pela qual passamos de longe é tão exorbitante quanto o passado por Clifford
Geertz e sua esposa em uma aldeia balinesa, no período de suas pesquisas de campo, e
descrita em sua obra A Interpretação das Culturas (1978). As “notas sobre a briga de galo
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balinesa” tornaram-se consagradas por apresentar o ângulo da pesquisa na qual os sujeitos
sobre os quais os pesquisadores direcionaram seus estudos, são em si estudiosos desses
sujeitos que os observa, os pesquisadores. O vetor é redirecionado e o pesquisador percebe
que sempre esteve sendo observado e analisado por seus “nativos”. Porém, o que me chama a
atenção é que pude sentir a dita “barreira de sombra moral ou metafísica” que se ergue em
volta do pesquisador fazendo com que assuma um caráter parcial de invisibilidade diante da
comunidade, ou pelo menos, diante de grupos específicos.
O estranhamento da minha parte fora, acima de tudo, por em semanas anterior o
mesmo grupo de moradores realizavam banquetes para recepcionar o grupo de estudantes que
chegavam por ali no intuito de realizar atividades de extensão. E os sorrisos eram sempre
retribuídos. Acreditamos, por algum momento, que tínhamos sorrido demais para as pessoas
e, com isso, causado algum tipo de intimidação, mas afinal, qual a explicação? A indiferença
e a mudança drástica causou-me forte estranhamento. Possivelmente as respostas fiquem
apenas no campo da especulação e nunca cheguemos a saber o real motivo da indiferença
drástica. A única certeza que tenha é a de não deixar de sorrir, afinal, haverá sempre um
alguém disposto a retribuí-lo.
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