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NOTAS SOBRE O PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DO BRASIL EM MATÉRIA DE EXECUÇÃO Humberto Theodoro Júnior Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association of Procedural Law. Advogado. SUMÁRIO: I – Introdução. II – A execução forçada no Projeto do Novo Código de Processo Civil. III – Pequenas novidades do cumprimento de sentença. IV – Início do cumprimento da sentença por impulso oficial do juiz. V – Execução provisória, com ou sem caução. VI – Rol dos títulos autorizadores do cumprimento de sentença. VII – O regime sucumbencial do Projeto. VIII – Multa legal no cumprimento de sentença por quantia certa. IX – O cumprimento da sentença em matéria de obrigação de fazer e não fazer. X – Algumas inovações interessantes no âmbito da execução dos títulos extrajudiciais (Livro III do Projeto). I – Introdução A grande novidade do ano recém findo, em termos de direito processual, foi a submissão ao Congresso do Projeto nº PL 166 destinado a implantar no País um novo Código de Processo Civil. É bom lembrar, no entanto, que o sistema civil de execução forçada passou por ampla reforma muito recentemente. A Lei nº 11.232, de 22.12.2005 completou a abolição da ação autônoma de execução de sentença, generalizando, no processo civil, a chamada ação executiva lato sensu, em que uma única relação jurídica processual se presta ao acertamento do direito violado e ao cumprimento da sentença que o define e tutela. Fala-se, agora, em processo sincrético e em execução imediata da sentença como parte do mesmo ofício do juiz que o leva a pronunciar o julgado. A prestação jurisdicional não acaba com a prolação da sentença, mas só se completa e exaure quando a condenação se torna real e efetiva por meio dos atos de seu

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NOTAS SOBRE O PROJETO DO NOVO

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DO BRASIL EM MATÉRIA DE EXECUÇÃO

Humberto Theodoro Júnior Professor Titular Aposentado da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association of Procedural Law. Advogado.

SUMÁRIO: I – Introdução. II – A execução forçada no Projeto do Novo Código de Processo Civil. III – Pequenas novidades do cumprimento de sentença. IV – Início do cumprimento da sentença por impulso oficial do juiz. V – Execução provisória, com ou sem caução. VI – Rol dos títulos autorizadores do cumprimento de sentença. VII – O regime sucumbencial do Projeto. VIII – Multa legal no cumprimento de sentença por quantia certa. IX – O cumprimento da sentença em matéria de obrigação de fazer e não fazer. X – Algumas inovações interessantes no âmbito da execução dos títulos extrajudiciais (Livro III do Projeto).

I – Introdução

A grande novidade do ano recém findo, em termos de direito processual, foi a

submissão ao Congresso do Projeto nº PL 166 destinado a implantar no País um novo Código de

Processo Civil.

É bom lembrar, no entanto, que o sistema civil de execução forçada passou por

ampla reforma muito recentemente. A Lei nº 11.232, de 22.12.2005 completou a abolição da

ação autônoma de execução de sentença, generalizando, no processo civil, a chamada ação

executiva lato sensu, em que uma única relação jurídica processual se presta ao acertamento do

direito violado e ao cumprimento da sentença que o define e tutela. Fala-se, agora, em processo

sincrético e em execução imediata da sentença como parte do mesmo ofício do juiz que o leva a

pronunciar o julgado. A prestação jurisdicional não acaba com a prolação da sentença, mas só se

completa e exaure quando a condenação se torna real e efetiva por meio dos atos de seu

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cumprimento. Somente quando o bem da vida a que tem direito o credor lhe é transferido é que

a tutela jurisdicional estará realizada, de fato e de direito.

Por outro lado, a Lei nº 11.382, de 06.12.2006, reduziu o Livro II do Código de

Processo Civil à regulamentação da ação executiva autônoma, cuja aplicação restou,

praticamente, limitada aos títulos executivos extrajudiciais. Apenas subsidiariamente suas regras

procedimentais passaram a ter aplicação aos atos de cumprimento de sentença (CPC, art. 475-

R).

II – A execução forçada no Projeto do Novo Código de Processo Civil

O Projeto conserva o regime executivo do Código atual, segundo o qual a

realização material do direito do credor não é mais objeto exclusivo do processo de execução. O

processo de conhecimento quando atinge o nível da condenação não se encerra com a sentença.

Prossegue, na mesma relação processual, até alcançar a realização material da prestação a que

tem direito o credor e a que está obrigado o devedor. O cumprimento da sentença é ato do ofício

do juiz que a profere (executio per oficium iudicis).

Processo de execução, como relação processual instaurada apenas para realização

ou satisfação de direito subjetivo já acertado, é remédio processual que apenas se aplica à

execução de títulos executivos extrajudiciais.

Em síntese: a) para a sentença condenatória (e títulos judiciais equiparados), o

remédio executivo é o procedimento do “cumprimento da sentença”; b) para o título executivo

extrajudicial, cabe o processo de execução, provocável pela ação executiva, que é independente

de qualquer acertamento prévio em processo de conhecimento.

Diante das recentes a profundas remodelações da execução forçada levada a cabo

pelas Leis 11.232/2005 e 11.382/2006, o Projeto de Novo Código de Processo Civil, ora em

tramitação no Congresso Nacional (PL 166/2010) não pretendeu introduzir alterações

substanciais fosse no regime do cumprimento de sentença fosse na execução dos títulos

extrajudiciais. Mesmo porque o sistema atual ainda se acha, praticamente, em fase de

implantação prática.

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Como se pode deduzir da Exposição de Motivos da Comissão de Juristas

encarregada da elaboração do Anteprojeto, nada de relevante foi inovado no âmbito da

execução. Apenas se procurou afastar pequenas controvérsias ainda não solucionadas de

maneira definitiva pela jurisprudência posterior às Leis 11.232/2005 e 11.382/2006, como, por

exemplo, as relativas à aplicação da multa do atual art. 475-J e ao procedimento da penhora on

line.

III – Pequenas novidades do cumprimento de sentença

a) Impropriedade de divisão de matérias

De início, se vê que, no Título II do Livro II do Projeto, a atual Seção IV,

destinada a regular a execução de sentença relativa a obrigações de fazer e não fazer, está mal

colocada como parte do Capítulo II, pertinente ao “cumprimento da obrigação de pagar quantia

certa”. Não há como subordinar “cumprimento de obrigação de fazer e de não fazer” ao capítulo

das “obrigações por quantia certa”. Para correção do evidente equívoco, impõe-se a abertura de

um novo capítulo, qual seja: o “Capítulo III – Do cumprimento de obrigação de fazer e não

fazer”, que compreenderia os artigos 502 e 503.

b) Intimação pessoal do devedor

Da sentença que impuser cumprimento de obrigação, será o devedor

pessoalmente intimado, antes que se expeça o mandado executivo – é o que se prevê no art. 490,

§ 1º, do Projeto, como regra geral.

O dispositivo já foi criticado, sob o argumento de conter um retrocesso em face

do regime do Código atual, que, na jurisprudência do STJ, teria abolido a intimação pessoal e se

contentado com a intimação do advogado, para a abertura do cumprimento de sentença relativa a

obrigação de quantia certa1.

É bom lembrar que o Projeto, em seu artigo 490 não está cogitando apenas da

execução de obrigação por quantia certa, mas de toda e qualquer obrigação.

É oportuno consignar que na execução de obrigações de fazer, não fazer e

entregar coisa certa, a intimação pessoal sempre foi a regra deduzida da natureza das ações

1 O Min. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO sugere a revogação do § 1º do art. 490 e a explicitação no art. 495, caput, de que a intimação nele mencionada será feita na pessoa do advogado do executado.

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mandamentais ou executivas. Basta lembrar que, em matéria de obrigação de fazer e não fazer

existe até súmula do STJ exigindo a intimação pessoal do obrigado, antes de considerá-lo sujeito

à multa (astreinte) por descumprimento da condenação judicial2. Igual entendimento é de se

aplicar também em relação ao cumprimento das obrigações de entrega de coisa, já que o atual

art. 461-A, § 3º, do CPC, manda observar em relação a essa modalidade obrigacional o mesmo

regime executivo das obrigações de fazer, inclusive no tocante à multa por retardamento na

prestação devida.

A posição do STJ, que se contenta com a intimação do advogado, e dispensa a da

parte, diz respeito apenas ao cumprimento de sentença que verse sobre pagamento de quantia

certa (CPC, art. 475-J). Além disso, a intimação pessoal de que cogita genericamente o art. 490,

§ 1º, do Projeto, não procrastinará o andamento da execução, porque será feita por carta, para

pura ciência daquele que irá sujeitar o peso da condenação e da multa de retardamento.

Bastará que a correspondência seja encaminhada ao endereço declarado pela

parte em juízo. Se não for encontrado lá ou se for revel, nem mesmo a tentativa de intimação

será necessária, como se acha ressalvado no § 2º do mesmo art. 490. Note-se que não exige o §

1º que a correspondência seja expedida com aviso de recepção. Trata-se de expediente simples

como aquele em que o escrivão dá notícia ao réu de sua citação feita com hora certa (CPC, art.

229)3.

Talvez fosse realmente mais prático e econômico dispensar a intimação pessoal

do devedor, logo após a sentença relativa às obrigações de quantia certa, a que alude o § 1º do

art. 490 do Projeto, para manter-se a orientação atual do Superior Tribunal de Justiça, que

preconiza, na espécie, apenas a intimação do advogado da parte, após a apresentação da

memória de cálculo atualizada do débito exequendo.

A intimação pessoal, nessa perspectiva, ficaria limitada aos cumprimentos de

prestações de fazer ou não fazer e de entregar coisas.

2 Súmula nº 410/STJ. 3 “A jurisprudência do STJ, nas hipóteses de citação por hora certa, tem se orientado no sentido de fixar, como termo inicial do prazo para a contestação, a data da juntada do mandado de citação cumprido, e não a data da juntada do Aviso de Recebimento da correspondência a que alude o art. 229 do CPC” (STJ, 3ª T., REsp 746.524/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. 03.03.2009, DJe 16.03.2009; no mesmo sentido: STJ, 3ª T., REsp 180.917/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, ac. 06.02.2003, DJU 16.06.2003, p. 332.

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IV – Início do cumprimento da sentença por impulso oficial do juiz

Prevê o art. 490 do Projeto, em seu § 1º, que o efeito imediato da sentença

condenatória, é a intimação pessoal do devedor. Cumprida essa diligência, aguardar-se-á o prazo

assinado na sentença para o seu cumprimento voluntário. Não ocorrido este, a execução terá

início, pela expedição do competente mandado, independentemente de requerimento do credor.

A diligência é uma conseqüência automática do comando lançado na sentença. O

pronunciamento de natureza condenatória não é mais o fim do processo, já que este mais surge

como ato de um processo de conhecimento puro. A parte sabe que, tendo direito de exigir um

bem da vida que o demandado lhe deve, a tutela jurisdicional somente se completará quando tal

bem lhe for efetivamente entregue. Daí que à sentença de procedência do pedido hão de seguir,

sem solução de continuidade, as providências de cumprimento do comando sentencial.

Uma vez, porém, que o direito material se apresenta como disponível por seu

titular, e que, por isso mesmo, pode deliberar não mais exigi-lo, por ora ou em caráter definitivo,

o Projeto lhe garante a faculdade de evitar a deflagração da fase executiva do processo,

mediante manifestação expressa, fundada na impossibilidade ou inconveniência de sua

realização (art. 491, § 3º).

Dessa forma, o início dos atos de cumprimento forçado ocorre sem depender de

provocação do credor e pode essa atividade satisfativa prosseguir até as últimas conseqüências

por impulso oficial. A interferência do credor pode, no entanto, fazer cessar ou suspender essa

atividade, já que toda execução se desenvolve no seu exclusivo interesse.

O art. 701 do Projeto, repetindo norma que já consta do art. 569 do Código atual,

proclama que “o credor tem a faculdade de desistir de toda a execução ou de apenas algumas

medidas executivas”. Nisso consiste o clássico princípio da livre disponibilidade da execução

pelo credor.

A diferença de orientação entre o Código vigente e o Projeto registra-se no

seguinte ponto: No sistema atual, o cumprimento forçado da sentença, principalmente nas

condenações a pagar quantia certa, depende de requerimento do credor (CPC, art. 475-J). Já no

Projeto, essa providência independerá de provocação de sua parte, muito embora lhe seja

facultado opor-se a ela, segundo sua conveniência particular.

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Na execução de condenação a cumprir prestação de quantia certa, porém, há

necessidade, senão de requerimento, pelo menos de cooperação do credor. A ele o art. 495 do

Projeto atribui o encargo de organizar e apresentar “demonstrativo de cálculo discriminado e

atualizado do débito”, do qual o devedor será intimado para pagamento em quinze dias, “sob

pena de multa de dez por cento”.

Sem este levantamento do quantum debeatur, a penhora, ato inaugural da

execução por quantia certa, não será promovida e o procedimento de cumprimento da sentença

ficará inibido.

V – Execução provisória, com ou sem caução

A execução provisória é permitida, como sempre foi no direito brasileiro, quando

a sentença se acha sob impugnação de recurso desprovido de efeito suspensivo (Projeto, art.

491, caput). O que mereceu um tratamento novo foram os casos em que a caução, em regra

necessária, pode ser dispensada.

O § 2º do art. 491 elenca quatro casos em que a execução provisória pode

alcançar suas últimas conseqüências (levantamento de depósito em dinheiro e transferência da

propriedade), sem que o exequente tenha de prestar caução. São eles:

I – crédito de natureza alimentar;

II – credor em situação de necessidade e impossibilidade de prestar caução;

III – pendência de agravo de instrumento no Supremo Tribunal Federal ou no

Superior Tribunal de Justiça;

IV – sentença proferida com base em súmula vinculante ou em conformidade

com julgamento de casos repetitivos.

As duas novidades mais significativas são as dos incisos II e IV, isto é, a do

credor em “situação de necessidade” e a da sentença apoiada em “súmula vinculante” ou em

“julgamento de casos repetitivos”.

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A hipótese do inciso II não se contenta com o estado de necessidade do credor

pois exige, também, a concomitância da impossibilidade de prestar caução. Caberá ao exeqüente

provar tanto a necessidade inadiável (premente) do objeto da condenação, como a falta de

recursos para caucionar a execução provisória.

No caso do inc. IV é necessário, para a liberação da caução, que a súmula

vinculante seja o fundamento determinante do julgado. Se o recurso cogitar de impugnação a

fatos e outras questões de direito que ultrapassem a súmula vinculante, não será o caso de

dispensar a caução para a execução provisória.

Quanto às causas repetitivas, não é a existência de causas iguais já julgadas que,

por si só, autoriza a dispensa da caução. Para tanto, é necessário que tenha ocorrido o

julgamento em instância superior do incidente regulado pelos artigos 895 a 906 do Projeto, sob

o título de “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”. É esse julgamento coletivo que,

sendo acolhido na resolução de demandas singulares posteriores, tornará dispensável a caução

para a execução provisória.

VI – Rol dos títulos autorizadores do cumprimento de sentença

Os casos em que o cumprimento forçado da sentença é autorizado constam do art.

475-N do Código vigente. O Projeto em seu art. 492 não cria, propriamente, novos títulos

executivos judiciais. Apenas desdobra as hipóteses já existentes, facilitando a compreensão dos

títulos que, de alguma forma, já se achavam no elenco do Código de 1973.

Assim, o caput do art. 492 refere-se ao padrão básico do título executivo judicial,

qual seja a sentença condenatória. Sem usar esse nomen iuris, o dispositivo fala em “sentença

proferida em ação de cumprimento de obrigação”, isto é, sentença que acolhe o pedido de

cumprimento de obrigação, que outra coisa não é que a clássica sentença condenatória.

Já no inciso I, a hipótese é de sentença que não tenha cogitado imediatamente do

cumprimento da obrigação, mas que tenha procedido ao acertamento ou certificação de todos os

seus elementos. É o que pode acontecer em certas sentenças declaratórias ou em algumas

sentenças constitutivas.

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No Código vigente a definição de título executivo judicial já havia se afastado do

vínculo do instituto com a sentença condenatória (CPC, art. 475-N). O Projeto ressalta essa

concepção, separando as hipóteses de título condenatório de outros títulos judiciais que também

definem obrigações exeqüíveis, embora sem expedir o comando típico da condenação judicial.

Os incisos II e III, que cuidam da transação e da conciliação em nada alteram o

que constava dos incisos III e V do vigente art. 475-N. Houve apenas a aproximação de incisos

que tratam de matéria correlata.

O inciso V do art. 492 do Projeto, é um desdobramento do inciso VII do art. 475-

N do Código atual. De longa data já se reconhecia que a força executiva da partilha, prevista

expressamente para a divisão hereditária, manifestava-se igualmente na extinção do condomínio

comum. O inciso V do art. 492 do Projeto acata essa concepção ao considerar título executivo

judicial também a sentença homologatória “de divisão e de demarcação”.

Sem dúvida, as sentenças condenatórias, ao definirem o direito da parte a uma

prestação do adversário é o exemplo típico de título executivo, para legitimar a atividade

coercitiva da jurisdição a que se atribui o nomen iuris de execução forçada. Mas não são, na

moderna visão do processo civil, apenas as condenatórias que tem o poder de constituir título

executivo, e, além disso nem toda sentença condenatória ostenta a força de título executivo,

bastando lembrar aquelas que acolhem pedido genérico, já que, sem embargo da condenação

que veiculam, não atendem às exigências de certeza, liquidez e exigibilidade impostas pelos

arts. 586 e 475-J do CPC. Há também aquelas que, pela natureza da obrigação, não autorizam

senão medidas coercitivas, mas nunca uma execução forçada propriamente dita, como v.g., a

condenação a emitir declaração de vontade, a perder o sinal pago, a perder as benfeitorias

realizadas de má-fé , ou a cumprir obrigação de fazer infungível, entre outras4.

4 Numa exata compreensão da tutela condenatória, Proto Pisani divisa nela uma duplicidade de funções – repressiva e preventiva. Daí que a atuação dos efeitos da condenação tanto pode transitar pela execução forçada como pelas medidas coercitivas (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di diritto processuale civile. 3.ed. Napoli: Jovene, 1999, p. 161). Também Barbosa Moreira aponta vários exemplos de sentença condenatória que não correspondem a título executivo e, portanto, não desencadeiam o processo de execução, como a que condena à perda do sinal pago, a relativa à prestação futura de alimentos a serem descontados em folha de pagamento, as referentes a prestações de obrigações de fazer infungíveis; em todas elas o credor poderá apenas utilizar medidas coercitivas em face do obrigado, mas nunca terá como realizar a execução forçada para obter a prestação objeto da condenação (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 135).

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Já o Código de Processo Civil atual, ao ser reformado pela Lei nº 11.232, de

22.12.2005, passara a não mais restringir o título executivo judicial básico à sentença

condenatória, pois desde então considera como tal toda “sentença proferida no processo civil

que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”.

Alargou-se, desta forma, a força executiva das sentenças para além dos tradicionais julgados de

condenação, acolhendo corrente doutrinária e jurisprudencial que, mesmo antes da reforma do

CPC, já vinha reconhecendo possibilidade, em certos casos, de instaurar execução por quantia

certa também com base em sentenças declaratórias5.

VII – O regime sucumbencial do Projeto

Prevê o § 4º do art. 495 do Projeto que até o final do prazo para cumprimento

espontâneo da obrigação de pagar quantia certa, objeto de execução de título judicial, não

haverá acréscimo aos honorários de advogado impostos pela sentença. Ultrapassado, porém,

aquele termo, “sobre o valor da execução incidirão honorários advocatícios de dez por cento,

sem prejuízo daqueles impostos na sentença”.

Naquela altura, portanto, dar-se-á a soma das duas verbas sucumbenciais, a da

fase cognitiva e a da fase executiva. Esta última incide, de início, sob a forma de alíquota legal

única de dez por cento. Há, todavia, possibilidade de sua ampliação, conforme o volume de

esforço ou trabalho exigido do advogado do credor durante a fase de cumprimento forçado da

sentença. A majoração poderá ir até o teto de 20% do valor da execução (Projeto, art. 495, § 5º).

5 Significativo foi o papel da jurisprudência em torno do reconhecimento da força executiva das sentenças declaratórias, como se pode ver do seguinte acórdão do STJ: “1. No atual estágio do sistema do processo civil brasileiro não há como insistir no dogma de que as sentenças declaratórias jamais têm eficácia executiva. O art. 4º, parágrafo único, do CPC, considera admissível a ação declaratória ainda que tenha ocorrido violação do direito, modificando, assim, o padrão clássico da tutela puramente declaratória, que a tinha como tipicamente preventiva. Atualmente, portanto, o Código dá ensejo a que uma sentença declaratória possa fazer juízo completo a respeito da existência e do modo de ser da relação jurídica concreta. 2. Tem eficácia executiva a sentença declaratória que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não há razão alguma, lógica ou jurídica, para submetê-la, antes da execução, a um segundo juízo de certificação, até porque a nova sentença não poderia chegar a resultado diferente do da anterior, sob pena de comprometimento da garantia da coisa julgada assegurada constitucionalmente. E instaurar um processo de cognição sem ofertar às partes e ao juiz outra alternativa de resultado que não um, já prefixado, representaria atividade meramente burocrática e desnecessária, que poderia receber qualquer outro qualificativo, menos o de jurisdicional”(STJ, 1ªT., REsp 588.202/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, ac. un. 10.02.2004, DJU 25.02.2004, p. 123. O caso decidido pelo acórdão referia-se a uma sentença declaratória que reconheceu direito de crédito oriundo de pagamento indevido para fins de compensação tributária, a qual, todavia, veio a inviabilizar-se na prática. Daí ter o contribuinte optado por executar a sentença para haver o montante de seu crédito, em dinheiro. Já outros procedentes do STJ haviam adotado igual entendimento: REsp. 207.998/RS, 1ª T. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, ac. 18.11.1999, RSTJ 134/90; REsp. 551.184/PR, 2ª T. Rel. Min. Castro Meira, ac. 21.10.2003, DJU 01.12.2003, p. 341).

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VIII – Multa legal no cumprimento de sentença por quantia certa

Na interpretação do art. 475-J do CPC atual, o Superior Tribunal de Justiça,

depois de muito debate entre as Turmas, assentou pela Corte Especial que a multa legal de 10%

não seria de aplicação automática após apenas o trânsito em julgado da condenação. O prazo de

quinze dias para cumprir espontaneamente a sentença, in casu, haveria de fluir a partir da

intimação do advogado do devedor acerca de juntada aos autos da memória de cálculo preparada

pelo credor6.

O Projeto acompanhou a orientação afinal preconizada pelo Superior Tribunal de

Justiça, tendo estatuído no art. 495 que, após a apresentação do demonstrativo de cálculo pelo

exeqüente, o executado “será intimado” para o pagamento em quinze dias, “sob pena de multa

de dez por cento”.

Prevê o Projeto, ainda, uma intimação pessoal, por carta, logo após a sentença,

mas não é dela que corre o prazo para pagar, mas sim da intimação da memória de cálculo.

Nessa altura a intimação é de ato do processo já em andamento na fase executiva. A intimação,

portanto, será do advogado do devedor.

Se este for revel, ou tiver abandonado o processo após a condenação, o seu

prosseguimento até o final se dará sem intimação, como se acha previsto no art. 322 do CPC e

no art. 344 do Projeto. A regra é de aplicação geral, alcançando, inclusive, a intimação da

memória de cálculo que precede à penhora no procedimento de execução da sentença.

IX – O cumprimento da sentença em matéria de obrigação de fazer e não fazer

Mantém-se o emprego das astreintes como o principal instrumento de coerção

nas execuções das obrigações de fazer e não fazer.

6 STJ, Corte Especial, REsp 940.274/MS, Rel. p/acórdão Min. João Otávio de Noronha, ac. 07.04.2010, DJe 31.05.2010. Precedentes: REsp 954.859/RS, da 3ªT.; DJU 27.08.2007, p. 252; REsp 1.039.232/RS, da 3ªT., DJe 22.04.2008; Ag 965.762/RJ, da 3ªT., DJe 01.04.2008; Ag 993.387/DF, da 4ªT., DJe 18.03.2008; e Ag 953.570/RJ, da 4ªT., DJU 27.11.2007.

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O Projeto deixa claro que a multa de coerção (medida de apoio para forçar o

cumprimento da prestação pelo próprio devedor) independe de requerimento do credor e pode

ser cominada em liminar, na sentença ou na execução (art. 503).

Sua exigibilidade pode acontecer tanto em execução definitiva como em

execução provisória, seja esta da sentença ou de decisão interlocutória. Vale dizer: mesmo que a

decisão proferida na fase cognitiva não mencione a multa de coerção, o juiz não fica inibido de a

ela recorrer na fase executiva (Projeto, art. 503, caput). Cabe-lhe, ainda, o poder de revê-la, para

alterar o seu valor ou a periodicidade de sua incidência (art. 503, § 3º).

Tem, ainda, o poder de excluí-la, se julgar que, na situação atual da demanda a

medida se tornou inadequada ou descabida, quando, por exemplo, houver, “justa causa para o

descumprimento da obrigação” (art. 503 § 3º ).

Prevê o Projeto dois casos de alteração da multa:

I – quando esta se tornar insuficiente ou excessiva; ou

II – quando se demonstrar o cumprimento parcial superveniente da obrigação (art.

503, § 3º).

O Projeto não limita o teto de incidência da multa. Prevê, no entanto, que

atingido o valor da obrigação exeqüenda, o excedente não reverterá mais em favor do credor, e

será destinado ao Estado ou à União (art. 503, § 5º).

A totalidade da multa, mesmo acima do teto legal, reverterá ao exeqüente se o

devedor for a Fazenda Pública.

Duas grandes novidades:

a) na execução provisória é possível exigir a multa, mas ela permanecerá

depositada em juízo, podendo o credor levantá-la somente após o trânsito em

julgado, ou durante a tramitação de agravo contra a decisão denegatória de

seguimento de recurso extraordinário ou especial (art. 503, § 1º);

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b) em casos de medidas cujo descumprimento possa prejudicar diretamente a

saúde, a liberdade ou a vida, o juiz poderá dar conteúdo mandamental à sua

decisão, de maneira a sujeitar o devedor a cumpri-la sob pena da prática do

crime de desobediência (art. 503, § 8º).

X – Algumas inovações interessantes no âmbito da execução dos títulos extrajudiciais

(Livro III do Projeto)

a) Fraude à execução

O art. 716 do Projeto, que ocupa o lugar do art. 593 do Código atual,

omitiu, entre os casos de fraude à execução, a hipótese de alienação de bens que,

na pendência de demanda, fosse capaz de reduzir o devedor à insolvência.

Em seu lugar, colocou-se a previsão de fraude cometida por meio de

alienação de bens que, em ação pendente, estejam submetidos à constrição, desde

que esta se encontre assentada em registro público, ou quando o adquirente tenha

agido de má-fé (Projeto art. 716, II). Tal dispositivo, à evidência, não

corresponde ao que prevê o inc. II do art. 593 do CPC em vigor, já que este não

cuida de transferência de bens constritos, mas de alienação de quaisquer bens,

cuja saída do patrimônio do devedor o reduz à insolvência. A fraude à execução,

de tal sorte, estaria, no regime atual, não na disposição de bens constritos

judicialmente, mas na frustração da futura penhora que haveria de recair sobre os

bens desviados, uma vez que inexistiriam outros bens para sustentar a execução.

O que o Projeto ataca no inciso II do art. 716 é a alienação do bem

penhorado ou submetido a qualquer outra forma de constrição judicial (arresto,

sequestro, depósito, caução, arrolamento etc.). E, sendo assim, não mais será

considerada fraude à execução o ato alienatório que provoque ou agrave a

insolvência do demandado. Se não houver constrição judicial, a fraude à

execução, nos termos do Projeto, não se configurará, e os bens transferidos pelo

insolvente só serão recuperados para responder pelas dívidas do demandado por

meio de ação pauliana (Código civil, arts. 158 a 165).

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Em síntese: o Projeto atrelou a fraude à execução às situações de desvio

de bens objeto de ações reais ou reipersecutórias (inc. I) ou de medidas de

constrição judicial (inc. II). A insolvência provocada ou agravada pelo devedor

foi relegada à apuração pelas vias ordinárias da fraude contra credores.

Há, no entanto, propostas de emenda para que seja restabelecida a

hipótese de insolvência provocada pelo devedor, na pendência de demanda em

juízo, como caso de configuração de fraude à execução, como, aliás, é da tradição

de nosso direito positivo.

b) Desconsideração da personalidade jurídica

O Projeto enfrenta o problema da desconsideração da personalidade

jurídica, de modo a permitir o redirecionamento da execução iniciada contra a

sociedade, a fim de alcançar bens particulares dos sócios.

O fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica é,

originariamente, de direito material, porque é nele que se estabelece a distinção e

autonomia da pessoa jurídica em face das pessoas físicas que a integram e

administram.

O que cabe ao direito processual, in casu, é estabelecer o procedimento

por meio do qual se pode definir a ocorrência do fenômeno de direito material, no

caso concreto.

Assim, o ponto de partida no campo processual é a afirmação de que “os

bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos

casos previstos em lei” (CPC, art. 596). É entre as regras do direito material que

haverão de ser encontradas as exceções que levam os sócios a responder, em

determinadas circunstâncias, por obrigações contraídas pela pessoa jurídica.

Nessa ordem de idéias, é que o Código Civil estabelece: “Em caso de

abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela

confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do

Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de

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certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens

particulares das administradoras ou sócios da pessoa jurídica” (art. 50).

É bom lembrar que, a execução forçada é o meio que, em processo, se

presta à realização da responsabilidade patrimonial, sendo certo que é, do

inadimplemento da obrigação que nasce a responsabilidade patrimonial, ou seja a

sanção a ser aplicada ao devedor. É este, não qualquer outro, que em regra haverá

de suportar em seus bens a sanção correspondente ao descumprimento da

obrigação. É o que diz o art. 391 do Código Civil: “Pelo inadimplemento das

obrigações respondem todos os bens do devedor”7.

Para o deslocamento da responsabilidade, no caso de desconsideração da

personalidade, o juiz não pode agir discricionariamente. Deve, antes de tudo,

proceder à verificação de que se acham comprovados nos autos os requisitos

enumerados no art. 50 do Código, o que terá de acontecer, a requerimento do

credor, em incidente no qual se cumpra adequadamente o contraditório.

No Código de Processo Civil atual inexiste procedimento específico para

o caso, o que, com frequência, enseja conflitos nem sempre conduzidos e

solucionados a contento.

Uma das novidades do Projeto do Novo Código de Processo Civil é,

justamente, o estabelecimento da forma procedimental a ser observada na

tramitação do pedido de aplicação da responsabilidade extraordinária prevista no

art. 50 do Código Civil. Em primeiro lugar, estatui que não se pode admitir a

responsabilidade do sócio senão depois de observado o procedimento legal,

editado para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (Projeto,

art. 719, § 4º). Por sua vez, os arts. 62 a 65, colocados na Parte Geral da

codificação projetada, prevêem o cabimento do incidente “em qualquer processo

ou procedimento”, deixando clara sua admissibilidade tanto no processo de

conhecimento como no de execução. Fica, também, evidenciada a desnecessidade

de uma ação separada para a definição da possibilidade de ser desconsiderada a

7 O CPC repete a mesma regra: “O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei” (art. 591).

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personalidade jurídica. Tudo se resolve em mero incidente instaurado dentro do

processo já existente, antes ou depois da sentença.

Provocado o incidente, pela parte ou pelo Ministério Público (quando este

tiver legitimidade para intervir no processo) (Projeto, art. 62), serão intimados o

sócio ou o administrador a que se pretenda estender a responsabilidade

patrimonial, bem como a pessoa jurídica interessada, conferindo-lhes o prazo

comum de quinze dias, para “se manifestar e requerer as provas cabíveis” (art.

64).

Concluída a instrução probatória, quando necessária, o incidente será

resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento

(Projeto, art. 65).

De tal forma, o contraditório e a ampla defesa são assegurados, e a

penhora dos bens particulares do sócio somente acontecerá após o julgamento do

incidente. Não há necessidade, porém, de aguardar-se o trânsito em julgado, visto

que o recurso manejável não é provido de efeito suspensivo.

Pode ocorrer perigo de desvio de bens e frustração da medida, caso se

tenha de aguardar a decisão do incidente para efetivar a constrição executiva.

Isto, contudo, não será motivo para realizar de imediato a penhora, já que esta

pressupõe a citação e o transcurso do prazo para pagamento voluntário, e o sócio

não pode ser citado ou intimado a pagar sem que antes sua responsabilidade

extraordinária seja definida. O perigo de dano, in casu, se contorna mediante a

medida cautelar de arresto, deferível de imediato, a exemplo do que se passa

quando o executado não é encontrado para a citação (CPC, art. 653; Projeto, art.

755). É de se recordar, também, que se confere ao exeqüente, ao propor qualquer

execução, o direito de requerer cumulativamente as “medidas acautelatórias

urgentes”, acaso cabíveis (CPC, art. 615, III), inclusive “a indisponibilidade de

ativos financeiros existentes em nome do executado, para posterior penhora”

(Projeto, art. 723, III).

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Enfim, para mais ampla tutela dos interesses do exeqüente, permite o

Projeto, mesmo antes da citação e penhora, a averbação em registro público para

conhecimento de terceiros, do ato de ajuizamento da execução e dos eventuais

atos de constrição (Projeto, art. 723, IV).

c) Ordem legal de preferência para a penhora

Ainda na execução por quantia certa, o Projeto contém dispositivo que, de

forma expressa, esclarece não ter caráter absoluto a ordem legal de preferência

para a penhora, de modo a permitir sua alteração pelo juiz “de acordo com as

circunstâncias do caso concreto” (art. 760, § 1º).

d) Penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira

O Projeto disciplina de forma mais detalhada o procedimento da apelidada

penhora on line, assim entendida aquela que recai sobre saldo de depósito

bancário ou sobre aplicação financeira.

Faz, de início, a necessária distinção entre (i) a medida cautelar de

bloqueio ou indisponibilidade dos ativos financeiros do executado, que serão

atingidos sempre no limite do “valor indicado na execução” (art. 778, caput), e

(ii) a medida constritiva principal ou definitiva, que é a penhora (art. 778, § 5º).

O procedimento a ser cumprido é o seguinte:

(1) o juiz, a requerimento do credor, decidirá fundamentadamente a

decisão de bloqueio, transmitindo-a, de preferência por meio eletrônico, à

autoridade supervisora do sistema bancário (art. 778, caput);

(2) previamente, o juiz deverá requisitar informação sobre os ativos

financeiros do executado, devendo a autoridade supervisora limitar-se a

informar a existência de valores iguais ou inferiores ao constante da

requisição judicial (art. 778, § 1º);

(3) de maneira alguma, poderá a autoridade supervisora realizar bloqueio

sem a determinação do juiz (Projeto, art. 778, § 2º);

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(4) consumado o bloqueio, o executado será imediatamente intimado na

pessoa de seu advogado, ou, não o tendo, pessoalmente (Projeto, art. 778,

§ 3º);

(5) antes de converter-se o bloqueio em penhora, o devedor terá cinco dias

(art. 778, § 4º) para:

I – comprovar que as quantias depositadas em conta corrente são

impenhoráveis;

II – indicar bens à penhora para substituir os ativos financeiros

bloqueados, mediante demonstração de que a substituição não trará

prejuízos ao exeqüente e será menos onerosa ao executado.

No primeiro caso, poderá, v.g., comprovar que a conta bancária é

alimentada apenas por salários, vencimentos e outras verbas remuneratórias

legalmente impenhoráveis.

Na segunda hipótese, poderá, por exemplo, o devedor empresário

demonstrar que, no saldo bancário bloqueado, está todo o seu capital de giro (ou

grande parte dele), de sorte que a sua penhora virá a impedir a solução de seus

compromissos inadiáveis com a folha de pagamento dos empregados, com os

recolhimentos dos tributos e encargos sociais do mês, com os fornecedores etc.

Existindo outros bens penhoráveis, será o caso de preferi-los, para não

inviabilizar a continuidade da empresa. Poder-se-á, entre outras penhoras, optar

pela de parte do faturamento, em proporção que não prive a empresa dos recursos

necessários para mantê-la em funcionamento, segundo o regime previsto no art.

789 do Projeto; ou até mesmo poder-se-á dirigir a penhora para toda a empresa,

dentro das cautelas do art. 786 do Projeto. Em face da função social atribuída à

empresa, a execução haverá de preservá-la em atividade, sempre que possível,

zelando assim pela realização forçada do direito do exeqüente pela maneira

menos onerosa para o executado (CPC, art. 620).

Urge lembrar que a Lei de Falências foi totalmente remodelada com o

propósito primordial de proporcionar, sempre que possível, a recuperação da

empresa, levando-a à liquidação apenas quando não houver meio de salvá-la (Lei

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nº 11.101/2005)8. Se é assim no caso do concurso universal, onde se manifesta

com evidência o interesse social na preservação da empresa, não há razão par ser

diferente na execução singular. Afinal, o interesse individual do credor não

merece tratamento superior ao da sociedade como um todo. Há, pois, de se

promover a execução sem aniquilamento da empresa, sempre que tal esteja ao

alcance da justiça, tanto nos processos coletivos como nos individuais.

e) Abolição do usufruto como meio expropriatório e o aprimoramento das

formas de alienação dos bens penhorados

(1) Atribuído à execução por quantia certa o objetivo de expropriar bens

do devedor para satisfação do direito do credor (CPC, art. 646; Projeto,

art. 749), o Código vigente prevê quatro modalidades de expropriação

(art. 647)9.

O Projeto refaz esse elenco, reduzindo-o a três:

I – adjudicação;

II – alienação;

III – apropriação de frutos e rendimentos de empresa ou estabelecimento e

de outros bens.

(2) A adjudicação, como forma de transferência forçada do bem

penhorado ao exeqüente ou outras pessoas, não sofreu maiores alterações

no Projeto. Merece destaque, porém, alguns acréscimos relativos à

observância do contraditório e à oportunidade para se requerer a

adjudicação:

(2.1) O § 1º do art. 799, nesse sentido, ordena que, após o

requerimento de adjudicação por algum legitimado (o executado é

o primeiro deles, mas não o único), “será dada ciência ao

executado, na pessoa de seu advogado”. Proceder-se-á, também à 8 “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (Lei nº 11.101, de 09.02.2005, art. 47). 9 O art. 647 do CPC fala em (i) adjudicação; (ii) alienação por iniciativa particular; (iii) alienação em hasta pública; e (iv) usufruto de bem móvel o imóvel.

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intimação dos demais interessados na forma da lei, segundo o

mesmo dispositivo.

Os demais interessados são os mesmos mencionados no art.

807 do Projeto, quando se cogita da alienação forçada em leilão ou

por iniciativa particular. Ou seja: I – o executado; e II – o senhorio

direto, o co-proprietário de bem indivisível do qual tenha sido

penhorada fração ideal, o credor com garantia real ou com penhora

anteriormente averbada.

O executado, como já se dispôs no art. 799, § 1º, é

ordinariamente intimado na pessoa de seu advogado. Sendo revel,

será intimado por carta no endereço constante dos autos, por

mandado, edital ou outro meio idôneo, a critério do juiz (art. 807,

I).

Serão intimados pessoalmente, pelas vias indicadas para

ciência do executado, os titulares de direito real ou de penhora

sobre o bem a ser adjudicado, desde que haja assento ou averbação

no registro público ou tenha o interessado feito a devida

comunicação no processo da execução.

Outro caso de intimação de terceiro interessado na

adjudicação ocorre quando o bem penhorado seja quota de sócio.

Nesse caso a sociedade será intimada, “ficando responsável por

informar aos sócios a ocorrência da penhora, assegurando-se a

estes a preferência, na adjudicação (Projeto, art. 799, § 5º).

A intimação, em todos os casos, deverá ser promovida de

modo a permitir tempo hábil à manifestação do interessado.

Observar-se-á, após a intimação, a exemplo do leilão ou da venda

por iniciativa particular, o prazo mínimo de cinco dias, antes de se

deferir a adjudicação (Projeto, art. 807, caput).

(2.2) Um dispositivo interessante e esclarecedor do Projeto consta

de seu art. 801, segundo o qual não ocorre preclusão do direito do

exequente a requerer a adjudicação. Mesmo que, de início, tenha

optado pelas formas expropriatórias de alienação do bem

penhorado, se estas afinal se frustrarem “será reaberta

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oportunidade para requerimento de adjudicação”. Em tal caso será

lícito o pedido de nova avaliação, se se suspeitar que o preço da

oferta pública está defasado com o de mercado (Projeto, art. 801,

in fine).

(3) Finalmente, o Projeto procura superar as dificuldades técnicas e

práticas do usufruto judicial, como forma expropriatória, substituindo-o

pela figura da “apropriação de frutos e rendimentos de empresa ou

estabelecimento e de outros bens” (art. 750, III).

Essa modalidade de satisfação forçada do direito do exeqüente

ocorrerá naquelas hipóteses em que a penhora não atinge necessariamente

o bem constrito, mas se volta apenas, ou predominantemente, para os

frutos e rendimentos que ele tem aptidão de produzir. Quando isto se dá, o

depositário-administrador procede à transferência periódica dessas

receitas para o credor até que o seu direito seja inteiramente satisfeito. É o

que se passa com a penhora de empresa e de outros estabelecimentos

(Projeto, arts. 786 e 787), com a penhora de percentual de faturamento

(art. 789) e com a penhora em geral de frutos e rendimentos de coisa

móvel ou imóvel (art. 790).

É fácil compreender que é muito mais prático e menos oneroso

fazer incidir a penhora diretamente sobre os frutos, do que constituir em

direito real de usufruto, para que o credor, como usufrutuário, possa

extrair a renda que irá resgatar o crédito exequendo. Foi essa a

simplificação expropriatória idealizada pelo Projeto, com o fito de ocupar

o lugar do usufruto judicial, que, na verdade, nunca se logrou aplicar, com

eficiência, na vida forense.

f) Eliminação da praça como meio expropriatório

O Código em vigor, segundo longa tradição do direito processual

brasileiro, prevê duas modalidades de hasta pública para praticar a expropriação

executiva: (i) a praça, para os bens imóveis, e (ii) o leilão, para os móveis (CPC,

art. 686, IV). O Projeto elimina essa dicotomia, para adotar apenas o leilão, que

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se pretende seja praticado de forma eletrônica ou presencial (art. 802, II).

Aponta, outrossim, para o caráter preferencial do meio eletrônico (art. 804, § 1º).

Aos Tribunais é atribuído o detalhamento do procedimento da alienação

com o concurso de meios eletrônicos (art. 803. § 3º), de modo que apenas quando

as condições da sede do juízo não permitirem o uso de tal técnica, é que o leilão

será presencial (art. 804, § 1º).

g) Objetivação do “preço vil” na arrematação

Tal como já prevê o Código em vigor (art. 692), o Projeto não permite que

na hasta pública o bem penhorado seja arrematado por “preço vil” (art. 809,

caput). Entretanto, sempre foi um problema de difícil definição jurisprudencial o

de conceituar e estimar, in concreto, quando o lance formulado no leilão deva ser

qualificado como representativo de preço vil.

Optando por uma solução pragmática, o Projeto qualifica como vil “o

preço inferior a cinquenta por cento do valor de avaliação” (art. 809, parágrafo

único). Reconhecendo, contudo, que circunstâncias particulares do caso concreto

podem aconselhar a adoção de outro parâmetro, o dispositivo aludido ressalva a

hipótese de o juiz fixar outro limite de preço mínimo a ser observado na alienação

judicial. É claro, portanto, que o padrão de cinquenta por cento funcionará apenas

como regra geral, que, por isso mesmo, poderá ser alterado para mais ou para

menos por decisão judicial. A deliberação, porém, haverá de ser tomada antes do

leiloamento e figurará no respectivo edital, para que não haja surpresa para os

interessados.

h) Eliminação dos embargos à arrematação

As nulidades ou vícios da execução que possam comprometer a eficácia

da arrematação serão arguídas e solucionadas como incidente processual dentro

do próprio procedimento executivo, sem necessidade de instauração de uma ação

própria, como são os atuais embargos à arrematação. Mas, segundo o Projeto,

esta forma sumária do incidente somente prevalecerá “enquanto não for expedida

a carta de arrematação ou a ordem de entrega” (art. 826, § 2º). Lembre-se que a

carta de arrematação é necessária quando o bem licitado é imóvel para servir de

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título a ser transcrito no Registro Imobiliário. Para as coisas móveis, há apenas

uma ordem judicial, endereçada ao depositário, para que entregue ao interessado

o bem arrematado (Projeto, art. 803, § 2º). Igual regime se observa também em

relação à adjudicação (Projeto, art. 800, § 1º).

Quando a carta de arrematação ou a ordem de entrega já houverem sido

expedidas, não será mais admitida sua invalidação dentro do processo executivo.

O vício invalidante terá de ser argüido em ação autônoma, “na qual o arrematante

figurará como litisconsorte necessário” (Projeto, art. 826, § 3º).

i) Embargos do devedor

O Projeto, entre outras medidas, simplifica a defesa do executado, quando

esta verse sobre “incorreção da penhora ou da avaliação”. Essas arguições podem

ser incluídas nos embargos do devedor, conforme prevê o art. 838, inc. II. Não é,

porém, obrigatório que tal defesa só se faça por meio da referida ação incidental.

A situação é a mesma da nulidade do título executivo, que tanto pode figurar nos

embargos (art. 838, I), como em arguição avulsa (art. 727, parágrafo único). A

respeito da nulidade, o juiz está, até mesmo, autorizado, a pronunciar-se de

ofício, como esclarece o último dispositivo. Não há necessidade de embargos

nem mesmo de requerimento da parte.

Nessa perspectiva, o art. 838, § 4º, do Projeto dispõe que “a incorreção da

penhora ou da avaliação poderá ser impugnada por simples petição”. Aliás, é

muito frequente que tais vícios ocorram quando já ultrapassado o prazo de

manejo dos embargos. Assim, necessariamente, teriam que ser enfrentados em

incidente de impugnação interna do próprio procedimento executivo.

j) A ação anulatória e os embargos á execução

No § 2º do art. 839 do Projeto ficou estatuído que o devedor, que não

embargar a execução nos quinze dias da lei, perderá o direito de recorrer a uma

ação autônoma contra o credor para “discutir o crédito”.

O texto que havíamos sugerido, durante os debates da Comissão

encarregada da redação do anteprojeto, era justamente no sentido oposto, visto

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que já se achava o tema tranquilamente assentado, tanto na doutrina como na

jurisprudência.

Como ficou, o dispositivo atenta, de forma sumária e radical, contra o

direito da parte de ver apreciado seu direito em juízo, sem nunca tê-lo submetido

ao julgamento do Poder Judiciário.

É importante lembrar que os embargos não são simples resistência do réu

a pedido do autor. São uma ação de conhecimento que o devedor pode ou não

manejar, segundo suas conveniências pessoais.

Além do mais, são os embargos apenas uma das ações de que o devedor

pode lançar mão, e nunca uma única via de que se possa valer o litigante para

obter o acertamento de sua eventual controvérsia com o credor.

Enquanto não prescrita a pretensão do devedor, não pode a lei processual

privá-lo do direito fundamental de postular a tutela jurisdicional de cognição. Daí

porque, à luz da garantia constitucional, não pode a ausência da ação de

embargos representar a perda de um direito fundamental, como é o direito de

ação que nunca chegou a ser exercitado e que sequer foi transformado em objeto

de solução dentro do processo de execução.

É por demais sabido que o processo de execução não é palco de

acertamento de controvérsia alguma quanto à existência ou inexistência do direito

do credor ou da obrigação do devedor. Ele se sustenta apenas na existência de um

documento que – mesmo sem o prévio acertamento judicial – ,a lei considera

suficiente para a prática de atos forçados de pagamento.

Como, então, perder o direito de discutir uma questão não trazida a juízo

em momento algum?

O próprio Projeto reconhece a autonomia da execução perante as ações de

impugnação ao crédito constante do título executivo, segundo o disposto no § 1º

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de seu art. 710, in verbis: “A propositura de qualquer ação relativa ao débito

constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”.

É ainda de ressaltar que a incongruência do anteprojeto não é apenas com

a garantia constitucional do acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV)10. Há

contradição interna com a Parte Geral do próprio anteprojeto, onde se acha

solenemente proclamado que o processo civil “será ordenado, disciplinado e

interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na

Constituição” (art. 1º). E não foi por outra razão que, repetindo o disposto no art.

5º, XXXV da CF, o Projeto proclama que “não se excluirá da apreciação

jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Está, portanto, em contradição com esse

enunciado fundamental, que o anteprojeto incorporou de maneira expressa, o

estranho e injustificável preceito do § 2º de seu art. 839.

k) Antecedentes históricos do concurso de ações na visão jurisprudencial

Foi pela inconteste autonomia tanto da execução como da ação de

impugnação ao negócio causal subjacente ao título executivo – autonomia que o

CPC de 1973 reconhece em seu art. 585, § 1º, em termos idênticos ao do art. 711,

§ 1º, do Projeto – , que a jurisprudência mansa e pacífica do STJ fixou, de longa

data, o entendimento de que:

“Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja por outra ação declaratória ou desconstitutiva”11(grifamos).

Em outras palavras:

“Em curso processo de execução, não há impedimento a que seja ajuizada ação, tendente a desconstituir o título em que aquele se fundamenta. Inexistência de preclusão, que essa opera dentro do processo, não atingindo outros que possam ser instaurados, o que é próprio da coisa

10 C.F., art.5º, XXXV : “ A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” . 11 STJ, 1ª T., REsp 741.507/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, ac. 02.10.2008, DJe 17.12.2008. No mesmo sentido: STJ, 3ª T., REsp 817.829/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. 25.11.2008, DJe 16.12.2008.

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julgada material”12 (grifamos), fenômeno que – acrescentamos – inocorre no seio da execução não embargada13.

Para a jurisprudência do STJ, nem mesmo o encerramento por sentença da

execução não embargada é empecilho a que o devedor demande a declaração

judicial, em ação posterior, da nulidade ou inexistência da obrigação executada:

“A execução não embargada, e assim também aquela em que os embargos não foram recebidos ou apreciados pelo mérito, é simples sucedâneo do adimplemento, de molde a resguardar ao executado o direito de acionar o exequente sob alegação de enriquecimento sem causa e repetição do indébito”14.

O que merece destaque no posicionamento do STJ em torno da matéria

em foco é a circunstância de que suas raízes não estavam plantadas sobre normas

meramente processuais, mas em fundamentos constitucionais. Por isso, não se

pode introduzir na reforma do Código regra que o contradiga, sob pena de

incorrer em grave inconstitucionalidade.

Ademais, se a execução correr à revelia do executado, e se este não for

realmente devedor (a dívida já foi paga, já houve remissão ou compensação, ou

título é falso ou nulo), que defesa teria o devedor contra o resultado ilícito da

execução? Tudo culminará num pagamento indevido, sem embargo de realizado

pelas vias judiciais. A não se permitir a ação ordinária para discutir, repetir ou

impedir essa desastrosa ilicitude, o executado não contraria com nenhuma forma

de tutela jurisdicional, não obstante tenha sido vítima de enorme e inaceitável

esbulho judicial.

É que, sem que a relação obrigacional tivesse sido definida por sentença,

não se poderia recorrer à ação rescisória, que só se presta a atacar julgamentos de

mérito (CPC, art. 485; Projeto, art. 884). A prevalecer a regra preconizada pelo

art. 839, § 2º, do Projeto, mesmo sendo evidente a ilegalidade cometida por meio

do locuplemento ilícito perpetrado pelo falso credor, o executado não teria como

sair da injustiça que lhe foi imposta com a conivência da própria justiça. É que

12 STJ, 3ª T., REsp 135.355/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, ac. 04.04.2000, DJU 19.06.2000, p. 140. 13 Cf. nossos “Processo de Execução”, 25ª. ed. , São Paulo : LEUD, 2008, nºs 437 a 443, p. 509-522; e “Curso de Direito Processo Civil”, 45ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, v. II, nºs 963 e 964, p. 482-484. 14 STJ, 4ª T., AgRg no Ag 8.089/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, ac. 23.04.1991, DJU 20.05.1991, p. 6.537.

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não teria acesso à rescisória, porque não tem contra si sentença de mérito. E não

pode usar a ação ordinária, porque a esdrúxula regra do § 2º, do art. 839 do

Projeto, o impede de fazê-lo.

A regra proposta, data venia, não se sustenta quer no plano lógico, quer

dentro do próprio sistema do Projeto, onde se encontra a regra segundo a qual são

anuláveis pelas vias ordinárias, e, pois, fora do âmbito da rescisória, os atos de

disposição praticados pelas partes dentro do processo e homologados pelo juiz

(art. 894), assim como os “atos homologatórios praticados no curso do processo

de execução” (parágrafo único do art. 894).

Vale dizer: sempre que inexista sentença de mérito a respeito do

acertamento de uma relação jurídica de direito material, os atos processuais

praticados a seu respeito não se submetem à coisa julgada material. E se assim é,

continuam livres das amarras da res iudicata e, portanto, passíveis de discussão e

julgamento em ação anulatória ou qualquer outro tipo de ação compatível com a

natureza e os vícios da relação controvertida.

Por fim, escudar-se no fenômeno da preclusão gerada pelo decurso do

prazo fatal ou decadencial previsto para os embargos do devedor, retrata duplo

equívoco: primeiro, porque a preclusão é fenômeno interno do processo, não

projetando seus efeitos para alcançar outros processos. Eficácia externa somente

a tem a coisa julgada material, fenômeno que jamais ocorre na execução forçada

não embargada; segundo, porque a fatalidade ou decadência, quando ocorrida,

dirá respeito à faculdade de manejar os embargos, visto que quando a lei

estabelece o exíguo prazo de quinze dias, o faz para uma ação especial somente

admissível no curso da execução forçada. Portanto, nenhuma eficácia negativa

pode ter a perda de uma faculdade interna da execução sobre ações cognitivas

outras que nunca sequer chegaram a ser esboçadas enquanto se esgotava o prazo

processual dos embargos à execução.

Deixar, então, fluir in albis o prazo interno de defesa no processo de

execução gera a perda da faculdade de manejar os embargos, mas em nada pode

prejudicar o acesso da parte em juízo por meio de ações autônomas cujo prazo

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legal de manejo jamais teria sido afetado por qualquer espécie de decadência ou

prescrição.

Belo Horizonte, outubro de 2.010.

Humberto Theodoro Júnior