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Betty Milan O CLARÃO (ficção)

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Betty Milan

O CLARÃO( ficção)

O PEDIDO

1

Quemnão estásujeito

à crença?

1414

João mudo? Da noite para o dia... Não, isso não.

Resta chorar. Ou recorrer à Mãe d’Água, fazer um pedido.

Possa João me telefonar.

Diz isso para si mesma, pega a rosa do vaso e sai de

casa. Atravessa a rua com os olhos postos no mar.

Verdade que ele não pode falar, como está escrito

no fax? Ou terá sido uma piada de mau gosto? Impossível.

Quem ia fazer isso no último dia do último ano do milê-

nio? Para que, Deus meu?

Não querendo acreditar no fato, Ana caminha duvi-

dando do que sabe. Já no calçadão se lembra de uma frase de

João enviada aos conhecidos todos no ano anterior:

Penso nos outros logo existo

A frase não é penso logo existo, e sim penso nos ou-

tros logo existo. O que é bem diferente. João não concebe

a sua existência sem levar em conta a dos outros e por isso é

querido. Ele não é só um publicitário, é um filósofo popu-

lar. A sua verdadeira estrela é a generosidade. Nunca mais

ouvir João? Ficar sem o Por que você não faz isso Ana, se é isso

que você de fato quer? Ou então Você está certa de que o caminho

é este? O caminho talvez seja outro.

15

Ana não suporta a ideia da mudez. O amigo faz por

ela o que ela não pode fazer por si. Tanto vê quanto ouve o

que ela não é capaz de ver nem de ouvir.

Por isso mesmo, aliás, ele é um amigo. Quem me-

lhor para clarear as ideias e iluminar o caminho quando a

paixão cega?

Assim, na esperança de que Iemanjá receba a f lor e

atenda ao pedido, desce até a praia, que está vazia. Move os pés

de um lado para o outro, acariciando-os na areia. Com o mo-

vimento, afunda-se um pouco, e daí, implantada, olha o sol que

nasce no horizonte e vai eliminando uma a uma as nuvens.

Até o urubu que plana voando em círculos fica ra-

dioso neste céu. E a orla de Copacabana evoca a lua. Talvez

esta praia seja mágica por isso. Talvez pela cadeia de mon-

tanhas que a bruma torna irreal. Copacabana é a lua e a

bruma. A paisagem velada, o mar que cintila… Como um

céu molhado de estrelas. Uma piroga que passa, um homem

na proa e outro na popa. E a gaivota como uma letra no céu,

um V que se abre e se fecha e tchum mergulha para pescar.

Não há uma só nuvem neste primeiro de janeiro e

a esperança de Ana cresce. O seu pedido não há de ser feito

em vão. A presença da estrela da manhã disso a certifica.

Não sabe explicar o porquê e não se importa. Quem não

prefere a certeza da cura à incerteza da doença?

16

Alguns passos e ela está diante de uma cova de areia,

duas palmas vermelhas no centro. Olhando para a frente, vê

que o chão até o mar é feito das mesmas covas, todas elas

abertas ao som dos atabaques ainda agora, madrugada do

dia 31.

O meu pedido vai ser um entre os outros. O pedido

de Ana, que diz eu não acredito em nada e agora espera socor-

ro da fé. Mas como não esperar? Além de inacreditável, a

mudez de João não é concebível. Nem uma só palavra para

quem sempre disse não à censura e ensinou que, na falta

de saída, a gente escapa pela entrada! Agora, o silêncio, a

clausura. E quem está enclausurado é o amigo da liberdade,

é João.

Sim, o amigo de Ana, a que também se quer livre e,

por isso, nele se espelha.

2

A graçadepende

do pedido

18

Precisa fazer o pedido logo, entregar a rosa para Ie-

manjá. Por que não subir na Pedra do Leme e de lá jogar a

oferenda? Lá de cima, lá do alto?

Caminha ouvindo o marulho e observando o raio

de sol que segue os seus passos. Já na base da Pedra se detém

porque vê nela um seio monumental.

O seio da Mãe Terra que a Mãe d’Água acaricia.

É a força, a cura de João. Ele falando e eu com a certeza

de que ele vai telefonar. Para cima Ana, pelo Corredor

dos Pescadores. Um cacto. Mais um. Outro. Todos eles

como serpentes... A mesma arrebentação de sempre. Vem,

bate e volta. Dois pés fora da água? Sim. Um morto será?

Uma criança que mergulha, um menino negro com sau-

dade de Iemanjá. Sau-da-de.... Saudade, Deus meu! Mas

e a baiana o que faz? Turbante, duas argolas nas orelhas

e uma saia de babados até o chão. Branco da cabeça aos

pés. A praxe é estar de branco para o pedido. E eu aqui

de verde. Iemanjá pode não me dar ouvidos. Mas voltar

já não é possível.

No fim do corredor, Ana enxerga o mar aberto,

deixando-se tomar pelo azul-marinho que é feito da noite

das águas e da luz. Marinho, azul, azul-marinho, repete.

Para que faz isso?

Para invocar a Mãe d’Água?

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Sabe como é grave o momento; sabe que do pedido

depende a graça. Pode a atriz ignorar a força da palavra?

Não, e ela não quer que a fala lhe escape.

Porém, é isso que acontece e Ana se ouve dizendo:

— João não é mudo, ele está mudo.

Murmura a frase até se dar conta de que expressa

o desejo de ver o amigo restabelecido. Não, não é mudo.

Apenas está. Vai se curar. E o que restaria de nós se ele per-

desse a fala definitivamente? Agora que eu estou no Rio e

ele em São Paulo. E, ainda que nós estivéssemos na mesma

cidade, o que restaria? Verdade que a só presença do amigo

pode bastar. Não quando um dos dois se encontra impossi-

bilitado de falar e a impossibilidade é um tormento.

Iemanjá, acrescenta ela, antes de possa João se curar.

Daí, abrindo a mão, entrega a rosa ao mar.

3

Oamormoveo céue as

estrelas

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Descendo a Pedra, vê uma libélula que passa e re-

passa continuamente. Observa as asas. Tão transparentes

que são quase imateriais. Não fosse o corpo, seria só forma

e movimento. Não fosse o volume cor de ocre.

A borboleta azul é da cor do céu. Celestial é a libé-

lula que é imaterial, considera Ana antes de vê-la se sacudir

no ar e dizer:

— Que tristeza é essa que torna tão longa a tua hora?

Uma dor desesperada só com outra dor se cura...

Ela fala, Deus meu!, ela fala. A libélula sabe da dor

desesperada... E por que ela me fala? O que pretende com

essas duas frases?

Antes que Ana possa encontrar a resposta, a libé-

lula recomeça:

— Mulher nenhuma é mais bela do que a amada. O

sol que tudo vê nada vê que possa a ela se igualar.

— Por que isso agora?

— Para você lembrar que o amor move o sol e

as estrelas.

Ana percebe que a voz é a do amigo quando a libé-

lula se distancia voando na horizontal.

A voz dele, de João, me envolvendo como uma

onda. Uma voz sem aresta. Tão redonda quanto a do pai

me dizendo: “Não esqueças que eu te amo”.

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O mistério da aparição da libélula é tamanho que

não há como descartar as suas palavras. Concentra-se por

isso em cada uma delas. Sabe a causa da própria dor.

Ignora qual outra dor a poderia curar e não entende o

porquê da referência à amada. Lembra que as frases são

de Romeu e Julieta, de Shakespeare, mais de uma vez ci-

tado por João.

Acaso gosta do amigo porque ele gosta do amor?, se

pergunta Ana, enxergando agora o azul no céu.

Ainda descendo, vê um homem idoso que pesca e

o cumprimenta:

— Bom-dia.

Ele só responde quando Ana acrescenta:

— O senhor aí pega o quê?

— De dia, peixe-espada. À noite, linguado.

Está menos interessado em conversar do que em

ficar silenciosamente à espera, e ela se afasta. Leva na

cabeça o pescador.

Será que ele pesca porque gosta de esperar? Gosta

como quem ama? Talvez o peixe interesse ao homem pre-

cisamente porque pode ser esperado... E o Cristo de braços

sempre abertos espera o quê? Olhos de índio e boca de mu-

lato. Um Redentor que é um mestiço... Cuja boca agora se

multiplica. Uma, duas, três. Ilusão, pura ilusão.

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Ana fecha os olhos, mas não tem como se livrar da

imagem da multiplicação das bocas, que ela relaciona à mu-

dez de João e à sua própria dificuldade de falar desde que

o telefone tocou na véspera e a má notícia chegou pelo fax.

4

Oamadobrilhamais

do queo sol

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Do Corredor dos Pescadores para o calçadão, Ana

corre porque a areia queima os pés. Senta-se aliviada à som-

bra de uma das tantas barraquinhas do Leme. Bem na frente

de uma penca verde-amarela de coco.

Beber o quê? Uma água de coco olhando o Pão de

Açúcar, estranhando o nome Pão de Açúcar... E os turistas

para que tomam o bondinho que desce e sobe desce e sobe

até o topo? Querem ver o Rio lá de cima ou estar suspensos

por um fio no céu? Querem o sentimento de ter escapado

por um fio, de ter renascido...

A água de coco chega trazida por Maria, a dona da

barraca, que fala cantando:

— Geladinha. Pode tomar que está boa.

— Obrigada, responde Ana, voltando-se para a praia

onde há mais de uma mulher estendida de bruços, como a

ilha sobre o mar.

Nenhuma quer nada, só estar. Elas e as meninas que

se enrolam na areia e rolam para dentro da água. Ou os

meninos que jogam futebol empurrando a bola com os de-

dos do pé. Tudo em Copacabana rola, a menina e a bola,

e há tudo de que a gente precisa para se eternizar na praia.

Especialmente quando em casa ninguém está para te ouvir.

“Porque não há homem, minha filha, que possa suportar as

tuas oscilações. Porque o casamento não é feito para o teu

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desassossego, ele é feito para durar. Porque, queira ou não,

foi para ele, Ana, que você nasceu”.

No chão ao lado uma pomba ora cisca, ora mostra as

penas fosforescentes do peito.

O dia inteiro assim ciscando? Ciscando ou andan-

do... O dia inteiro e a pomba não se pergunta se está per-

dendo tempo, como eu na companhia de João. Eu com ele

só ganhei perdendo tempo. Horas inesquecíveis. Sem elas a

amizade não existiria. Sem a conversa desinteressada, que só

visa o contentamento.

O simples contentamento, repete quando Maria

se aproxima:

— Vai sair no bloco hoje?

— Hoooje?

— Primeiro de janeiro, ora, o Bloco do Ano-Novo.

— O quê?

— Do Ano-Novo, diz Maria surpreendida.

Ana retoma a conversa com outra pergunta:

— E no Carnaval você sai?

— Fantasiada de Julieta.

— Verdade?

— Para encontrar o meu Romeu.

Pelo menos no Carnaval, Maria, que vive se quei-

xando dos homens, é como a heroína de Shakespeare, ela

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é a amada, aquela a que nada pode se igualar. Viva a festa.

Maria é Julieta que é Maria, Julieta-Maria. Para a Julieta de

Shakespeare o amado brilha mais do que o próprio sol. O

que é mesmo que ela diz? Noite da testa negra, me dá o meu

Romeu. Quando ele estiver morto, corta-o em estrelinhas.

Com ele, a face do céu será tão esplêndida que o universo

inteiro deixará de cultuar o sol e se apaixonará por você.

A história de Maria faz Ana pensar na sua, lembrar

do marido, Marco, que não é de dizer eu te amo ou de se co-

mover com juras de amor e faz pouco de Romeu. Te amo, te

amo, te amo, repete ele, para ridicularizar o sentimentalismo

barato. Quando não comenta que jura é coisa de adolescen-

te, desqualificando a paixão.

Ana sempre estranha, mas não se opõe. De que lhe

valeria a briga? Ficaria o marido ainda mais apegado ao

próprio ponto de vista. Pode ele falar o que quiser, ela sim-

plesmente não ouve.

Seja como for, não é para encontrar o seu Romeu

que, neste primeiro do ano, ela quer trocar de pele. Não é.

Ou pelo menos é o que ela pensa.

Tanto poderia se fantasiar de egípcia quanto de

gueixa. O importante é se transfigurar. O porquê disso ela

ignora. Por temer que Iemanjá não atenda o seu pedido e o

amigo nunca mais possa falar?

5

Quemnão quertrocar

de pele?

30

O Bloco do Ano-Novo toma o calçadão. Ana paga

a água de coco e se aproxima da festa. Na frente, vestido de

palhaço, um anão ora dá cambalhotas, ora zomba dos pas-

sistas imitando a coreografia.

A gente aqui ri esquecido de todo e qualquer se-

não... O anãozinho, o velho e o aleijão.

Sa-saçaricando

A viúva... o brotinho... e a madame...

Quer? Pode, o Carnaval responde... Momo não dis-

crimina e não deixa ninguém escapar. Rebola que eu quero

mais. O que conta é o samba no pé.

O grupo se afasta e Ana apressa o passo. Precisa ir ao

encontro do marido. Na véspera, ele já havia perdido a festa

por sua causa. Mas podia ela ter gritado Feliz Ano-Novo

depois da notícia da doença de João? Apesar dos anos de

palco, não teria conseguido dissimular o desalento.

Atravessa a rua e entra no prédio onde mora. No

apartamento, a televisão está ligada e Marco se encontra

diante do tabuleiro de xadrez, tão indiferente às imagens

quanto ao sol do lado de fora.

— Bom-dia.

— Até que enfim, responde ele.

31

— Quebrando a cabeça já no dia primeiro? Você pas-

sou o ano inteiro resolvendo um problema de matemática...

— Pois é. E agora, para não variar, eu estou às voltas

com um probleminha de xadrez. E você?

— Na praia.

Marco estranha:

— Desde cedo?

— Fui fazer um pedido.

— O quê?

— Por João...

— Nós aqui só falamos de João. No dia 31, no dia

primeiro, acrescenta ele, procurando briga.

Ana não responde. Ou por estar desconcertada ou

por não acreditar na possibilidade de ser ouvida. Permanece

quieta e imóvel até enfim se aproximar do marido e acari-

ciar a sua cabeça. Só o que ela quer é a paz, mas logo sabe

do seu corpo pela mão que desliza por dentro da saia, pelo

ziguezague contínuo da mão.

Teria se afastado, não fosse a ponta dos dedos aper-

tando o seu ventre delicadamente. São dedos que dão a li-

berdade de recusar e fazem Ana imaginar que está nua. De-

dos que a fazem estar em desacordo consigo mesma, porque

deseja o gozo sem querer se entregar. Com Marco, ela pode

satisfazer o corpo, o coração, não.

32

O fato é que depois de ter contrariado Ana com a

sua irritação ele a seduz e ela se oferece:

— Por que não agora?

— Já, diz Marco, levando-a pela mão.