o clarÃo - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/livros/pdf/o-clarao.pdf · imagem...
TRANSCRIPT
1414
João mudo? Da noite para o dia... Não, isso não.
Resta chorar. Ou recorrer à Mãe d’Água, fazer um pedido.
Possa João me telefonar.
Diz isso para si mesma, pega a rosa do vaso e sai de
casa. Atravessa a rua com os olhos postos no mar.
Verdade que ele não pode falar, como está escrito
no fax? Ou terá sido uma piada de mau gosto? Impossível.
Quem ia fazer isso no último dia do último ano do milê-
nio? Para que, Deus meu?
Não querendo acreditar no fato, Ana caminha duvi-
dando do que sabe. Já no calçadão se lembra de uma frase de
João enviada aos conhecidos todos no ano anterior:
Penso nos outros logo existo
A frase não é penso logo existo, e sim penso nos ou-
tros logo existo. O que é bem diferente. João não concebe
a sua existência sem levar em conta a dos outros e por isso é
querido. Ele não é só um publicitário, é um filósofo popu-
lar. A sua verdadeira estrela é a generosidade. Nunca mais
ouvir João? Ficar sem o Por que você não faz isso Ana, se é isso
que você de fato quer? Ou então Você está certa de que o caminho
é este? O caminho talvez seja outro.
15
Ana não suporta a ideia da mudez. O amigo faz por
ela o que ela não pode fazer por si. Tanto vê quanto ouve o
que ela não é capaz de ver nem de ouvir.
Por isso mesmo, aliás, ele é um amigo. Quem me-
lhor para clarear as ideias e iluminar o caminho quando a
paixão cega?
Assim, na esperança de que Iemanjá receba a f lor e
atenda ao pedido, desce até a praia, que está vazia. Move os pés
de um lado para o outro, acariciando-os na areia. Com o mo-
vimento, afunda-se um pouco, e daí, implantada, olha o sol que
nasce no horizonte e vai eliminando uma a uma as nuvens.
Até o urubu que plana voando em círculos fica ra-
dioso neste céu. E a orla de Copacabana evoca a lua. Talvez
esta praia seja mágica por isso. Talvez pela cadeia de mon-
tanhas que a bruma torna irreal. Copacabana é a lua e a
bruma. A paisagem velada, o mar que cintila… Como um
céu molhado de estrelas. Uma piroga que passa, um homem
na proa e outro na popa. E a gaivota como uma letra no céu,
um V que se abre e se fecha e tchum mergulha para pescar.
Não há uma só nuvem neste primeiro de janeiro e
a esperança de Ana cresce. O seu pedido não há de ser feito
em vão. A presença da estrela da manhã disso a certifica.
Não sabe explicar o porquê e não se importa. Quem não
prefere a certeza da cura à incerteza da doença?
16
Alguns passos e ela está diante de uma cova de areia,
duas palmas vermelhas no centro. Olhando para a frente, vê
que o chão até o mar é feito das mesmas covas, todas elas
abertas ao som dos atabaques ainda agora, madrugada do
dia 31.
O meu pedido vai ser um entre os outros. O pedido
de Ana, que diz eu não acredito em nada e agora espera socor-
ro da fé. Mas como não esperar? Além de inacreditável, a
mudez de João não é concebível. Nem uma só palavra para
quem sempre disse não à censura e ensinou que, na falta
de saída, a gente escapa pela entrada! Agora, o silêncio, a
clausura. E quem está enclausurado é o amigo da liberdade,
é João.
Sim, o amigo de Ana, a que também se quer livre e,
por isso, nele se espelha.
18
Precisa fazer o pedido logo, entregar a rosa para Ie-
manjá. Por que não subir na Pedra do Leme e de lá jogar a
oferenda? Lá de cima, lá do alto?
Caminha ouvindo o marulho e observando o raio
de sol que segue os seus passos. Já na base da Pedra se detém
porque vê nela um seio monumental.
O seio da Mãe Terra que a Mãe d’Água acaricia.
É a força, a cura de João. Ele falando e eu com a certeza
de que ele vai telefonar. Para cima Ana, pelo Corredor
dos Pescadores. Um cacto. Mais um. Outro. Todos eles
como serpentes... A mesma arrebentação de sempre. Vem,
bate e volta. Dois pés fora da água? Sim. Um morto será?
Uma criança que mergulha, um menino negro com sau-
dade de Iemanjá. Sau-da-de.... Saudade, Deus meu! Mas
e a baiana o que faz? Turbante, duas argolas nas orelhas
e uma saia de babados até o chão. Branco da cabeça aos
pés. A praxe é estar de branco para o pedido. E eu aqui
de verde. Iemanjá pode não me dar ouvidos. Mas voltar
já não é possível.
No fim do corredor, Ana enxerga o mar aberto,
deixando-se tomar pelo azul-marinho que é feito da noite
das águas e da luz. Marinho, azul, azul-marinho, repete.
Para que faz isso?
Para invocar a Mãe d’Água?
19
Sabe como é grave o momento; sabe que do pedido
depende a graça. Pode a atriz ignorar a força da palavra?
Não, e ela não quer que a fala lhe escape.
Porém, é isso que acontece e Ana se ouve dizendo:
— João não é mudo, ele está mudo.
Murmura a frase até se dar conta de que expressa
o desejo de ver o amigo restabelecido. Não, não é mudo.
Apenas está. Vai se curar. E o que restaria de nós se ele per-
desse a fala definitivamente? Agora que eu estou no Rio e
ele em São Paulo. E, ainda que nós estivéssemos na mesma
cidade, o que restaria? Verdade que a só presença do amigo
pode bastar. Não quando um dos dois se encontra impossi-
bilitado de falar e a impossibilidade é um tormento.
Iemanjá, acrescenta ela, antes de possa João se curar.
Daí, abrindo a mão, entrega a rosa ao mar.
22
Descendo a Pedra, vê uma libélula que passa e re-
passa continuamente. Observa as asas. Tão transparentes
que são quase imateriais. Não fosse o corpo, seria só forma
e movimento. Não fosse o volume cor de ocre.
A borboleta azul é da cor do céu. Celestial é a libé-
lula que é imaterial, considera Ana antes de vê-la se sacudir
no ar e dizer:
— Que tristeza é essa que torna tão longa a tua hora?
Uma dor desesperada só com outra dor se cura...
Ela fala, Deus meu!, ela fala. A libélula sabe da dor
desesperada... E por que ela me fala? O que pretende com
essas duas frases?
Antes que Ana possa encontrar a resposta, a libé-
lula recomeça:
— Mulher nenhuma é mais bela do que a amada. O
sol que tudo vê nada vê que possa a ela se igualar.
— Por que isso agora?
— Para você lembrar que o amor move o sol e
as estrelas.
Ana percebe que a voz é a do amigo quando a libé-
lula se distancia voando na horizontal.
A voz dele, de João, me envolvendo como uma
onda. Uma voz sem aresta. Tão redonda quanto a do pai
me dizendo: “Não esqueças que eu te amo”.
23
O mistério da aparição da libélula é tamanho que
não há como descartar as suas palavras. Concentra-se por
isso em cada uma delas. Sabe a causa da própria dor.
Ignora qual outra dor a poderia curar e não entende o
porquê da referência à amada. Lembra que as frases são
de Romeu e Julieta, de Shakespeare, mais de uma vez ci-
tado por João.
Acaso gosta do amigo porque ele gosta do amor?, se
pergunta Ana, enxergando agora o azul no céu.
Ainda descendo, vê um homem idoso que pesca e
o cumprimenta:
— Bom-dia.
Ele só responde quando Ana acrescenta:
— O senhor aí pega o quê?
— De dia, peixe-espada. À noite, linguado.
Está menos interessado em conversar do que em
ficar silenciosamente à espera, e ela se afasta. Leva na
cabeça o pescador.
Será que ele pesca porque gosta de esperar? Gosta
como quem ama? Talvez o peixe interesse ao homem pre-
cisamente porque pode ser esperado... E o Cristo de braços
sempre abertos espera o quê? Olhos de índio e boca de mu-
lato. Um Redentor que é um mestiço... Cuja boca agora se
multiplica. Uma, duas, três. Ilusão, pura ilusão.
24
Ana fecha os olhos, mas não tem como se livrar da
imagem da multiplicação das bocas, que ela relaciona à mu-
dez de João e à sua própria dificuldade de falar desde que
o telefone tocou na véspera e a má notícia chegou pelo fax.
26
Do Corredor dos Pescadores para o calçadão, Ana
corre porque a areia queima os pés. Senta-se aliviada à som-
bra de uma das tantas barraquinhas do Leme. Bem na frente
de uma penca verde-amarela de coco.
Beber o quê? Uma água de coco olhando o Pão de
Açúcar, estranhando o nome Pão de Açúcar... E os turistas
para que tomam o bondinho que desce e sobe desce e sobe
até o topo? Querem ver o Rio lá de cima ou estar suspensos
por um fio no céu? Querem o sentimento de ter escapado
por um fio, de ter renascido...
A água de coco chega trazida por Maria, a dona da
barraca, que fala cantando:
— Geladinha. Pode tomar que está boa.
— Obrigada, responde Ana, voltando-se para a praia
onde há mais de uma mulher estendida de bruços, como a
ilha sobre o mar.
Nenhuma quer nada, só estar. Elas e as meninas que
se enrolam na areia e rolam para dentro da água. Ou os
meninos que jogam futebol empurrando a bola com os de-
dos do pé. Tudo em Copacabana rola, a menina e a bola,
e há tudo de que a gente precisa para se eternizar na praia.
Especialmente quando em casa ninguém está para te ouvir.
“Porque não há homem, minha filha, que possa suportar as
tuas oscilações. Porque o casamento não é feito para o teu
27
desassossego, ele é feito para durar. Porque, queira ou não,
foi para ele, Ana, que você nasceu”.
No chão ao lado uma pomba ora cisca, ora mostra as
penas fosforescentes do peito.
O dia inteiro assim ciscando? Ciscando ou andan-
do... O dia inteiro e a pomba não se pergunta se está per-
dendo tempo, como eu na companhia de João. Eu com ele
só ganhei perdendo tempo. Horas inesquecíveis. Sem elas a
amizade não existiria. Sem a conversa desinteressada, que só
visa o contentamento.
O simples contentamento, repete quando Maria
se aproxima:
— Vai sair no bloco hoje?
— Hoooje?
— Primeiro de janeiro, ora, o Bloco do Ano-Novo.
— O quê?
— Do Ano-Novo, diz Maria surpreendida.
Ana retoma a conversa com outra pergunta:
— E no Carnaval você sai?
— Fantasiada de Julieta.
— Verdade?
— Para encontrar o meu Romeu.
Pelo menos no Carnaval, Maria, que vive se quei-
xando dos homens, é como a heroína de Shakespeare, ela
28
é a amada, aquela a que nada pode se igualar. Viva a festa.
Maria é Julieta que é Maria, Julieta-Maria. Para a Julieta de
Shakespeare o amado brilha mais do que o próprio sol. O
que é mesmo que ela diz? Noite da testa negra, me dá o meu
Romeu. Quando ele estiver morto, corta-o em estrelinhas.
Com ele, a face do céu será tão esplêndida que o universo
inteiro deixará de cultuar o sol e se apaixonará por você.
A história de Maria faz Ana pensar na sua, lembrar
do marido, Marco, que não é de dizer eu te amo ou de se co-
mover com juras de amor e faz pouco de Romeu. Te amo, te
amo, te amo, repete ele, para ridicularizar o sentimentalismo
barato. Quando não comenta que jura é coisa de adolescen-
te, desqualificando a paixão.
Ana sempre estranha, mas não se opõe. De que lhe
valeria a briga? Ficaria o marido ainda mais apegado ao
próprio ponto de vista. Pode ele falar o que quiser, ela sim-
plesmente não ouve.
Seja como for, não é para encontrar o seu Romeu
que, neste primeiro do ano, ela quer trocar de pele. Não é.
Ou pelo menos é o que ela pensa.
Tanto poderia se fantasiar de egípcia quanto de
gueixa. O importante é se transfigurar. O porquê disso ela
ignora. Por temer que Iemanjá não atenda o seu pedido e o
amigo nunca mais possa falar?
30
O Bloco do Ano-Novo toma o calçadão. Ana paga
a água de coco e se aproxima da festa. Na frente, vestido de
palhaço, um anão ora dá cambalhotas, ora zomba dos pas-
sistas imitando a coreografia.
A gente aqui ri esquecido de todo e qualquer se-
não... O anãozinho, o velho e o aleijão.
Sa-saçaricando
A viúva... o brotinho... e a madame...
Quer? Pode, o Carnaval responde... Momo não dis-
crimina e não deixa ninguém escapar. Rebola que eu quero
mais. O que conta é o samba no pé.
O grupo se afasta e Ana apressa o passo. Precisa ir ao
encontro do marido. Na véspera, ele já havia perdido a festa
por sua causa. Mas podia ela ter gritado Feliz Ano-Novo
depois da notícia da doença de João? Apesar dos anos de
palco, não teria conseguido dissimular o desalento.
Atravessa a rua e entra no prédio onde mora. No
apartamento, a televisão está ligada e Marco se encontra
diante do tabuleiro de xadrez, tão indiferente às imagens
quanto ao sol do lado de fora.
— Bom-dia.
— Até que enfim, responde ele.
31
— Quebrando a cabeça já no dia primeiro? Você pas-
sou o ano inteiro resolvendo um problema de matemática...
— Pois é. E agora, para não variar, eu estou às voltas
com um probleminha de xadrez. E você?
— Na praia.
Marco estranha:
— Desde cedo?
— Fui fazer um pedido.
— O quê?
— Por João...
— Nós aqui só falamos de João. No dia 31, no dia
primeiro, acrescenta ele, procurando briga.
Ana não responde. Ou por estar desconcertada ou
por não acreditar na possibilidade de ser ouvida. Permanece
quieta e imóvel até enfim se aproximar do marido e acari-
ciar a sua cabeça. Só o que ela quer é a paz, mas logo sabe
do seu corpo pela mão que desliza por dentro da saia, pelo
ziguezague contínuo da mão.
Teria se afastado, não fosse a ponta dos dedos aper-
tando o seu ventre delicadamente. São dedos que dão a li-
berdade de recusar e fazem Ana imaginar que está nua. De-
dos que a fazem estar em desacordo consigo mesma, porque
deseja o gozo sem querer se entregar. Com Marco, ela pode
satisfazer o corpo, o coração, não.