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1 O Código ISSeneheim Henrique Moura Costa

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Um assassinato é cometido em 1941. Em 1969, durante a ditadura militar, o filho do morto descobre entre seus pertences um caderno de música com anotações que lhe parecem suspeitas. Ao investigar descobre que o seu pai havia sido assassinado por pessoas ligadas ao nazismo. As anotações eram um código, baseado em partituras musicais e em um quadro. Descobre também que os assassinos ainda estão atuantes e outras pessoas envolvidas em suas investigações são mortas. Entre as diversas partes, as “notas de um repórter” (fictício) situam o contexto político das diversas épocas, ilustradas ainda por notícias publicadas no Estado de São Paulo.

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1

O Código ISSeneheim

Henrique Moura Costa

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2

`A Clarice

Com Amor...

É, com muito amor...

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3

refácio do Autor

Em 1941 fui trabalhar na a Gazeta Carioca, na Lapa, jornal fundado no inicio do

século e que agora não mais existe. Chegado de uma bolsa na Europa, minha “promissora” carreira

musical fora interrompida por uma simples razão: dinheiro. Não sendo de família de posses, aos 25

anos de idade precisava me sustentar.

Na Gazeta, que já sofria grandes dificuldades financeiras, eu cobrira as notícias

internacionais, mas na realidade fazia de tudo, pra ganhar mais uns trocados. Foi assim que conheci

Honório Ramos, quando o entrevistei no hospital onde se recuperava de dois tiros que havia

recebido em um incidente jamais apurado pela policia. Da entrevista nasceu uma amizade, passei a

encontrar-me com Honório vez ou outra. Honório era comunista ativo e, possivelmente confiado em

minhas posições de esquerda e também por ser judeu, e mais possivelmente ainda por não ter

ninguém a quem contar, confiou-me a sua versão do que realmente acontecera na noite de 19 de

Junho de 1941. Embora obviamente eu não pudesse publicar, o relato impressionou-me vivamente.

Quase 30 anos depois, vim a conhecer Mário Soares Filho. Contei-lhe sobre o relato de Honório que

se ligava intimamente a morte de seu pai. Não escondi meu interesse em saber pelo filho qualquer

informação adicional que pudesse dar a respeito. Eram tempos novamente muito difíceis no Brasil,

em plena estação de caça aos comunistas, esquerdistas, simpatizantes, economistas e liberais. Foi

quando passei a saber toda a sequência de um espantoso incidente. Durante semanas anotei

cuidadosamente os “depoimentos” (detesto esta palavra) de Mário. Entrevistei também sua tia

Celeste, que apesar de bem idosa forneceu-me preciosas informações. O relato de Honório, a

narrativa de Mário e as informações de Celeste me permitiram reconstituir os incidentes abaixo

narrados.

Na minha condição de ex musico, ex jornalista e ex comunista, achei -me, na velhice, na

obrigação de dar a público esta história, menos pelo seu lado de “Romance de Mistério”, mas pelo

que contém de fatos reais sobre alguns períodos sombrios de nossos tempos. Assim, introduzi

algumas notas sobre o contexto brasileiro e europeu, com sumárias explicações dos fatos e

personagens citados, para ilustração do leitor mais jovem que não viveu aquela conturbada época.

Por motivos óbvios tive que alterar os nomes dos personagens que de uma ou outra forma

possam ser prejudicados pela sua divulgação. Aqueles porém que são de domínio público bem

como os fatos históricos mencionados foram, dentro do meu melhor conhecimento e lembrança,

rigorosamente mantidos.

Rio de Janeiro, Outono de 1999

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RELÚDIO

Europa, Verão de 1941

Naqueles dias de junho, os anexados, os cúmplices, os conquistados, os neutros os

pusilânimes e os pactuados estavam de uma ou outra forma sob a égide gamada da águia teutônica.

A façanha fora meticulosamente planejada e eficazmente executada, baseada em quatro pilares da

germânica sabedoria:

1) A aliança militar com o terror, idealizada por Von Clausewitz que defendia em 1818 em

seu Tratado de Guerra o terror contra a população civil como método eficaz e rápido de terminar

uma guerra.

2) A grosseira e primária diplomacia comandada pelo arrogante e truculento ex comerciante

de champanhe a quem chamavam de Joaquim ‘extra seco’ Ribbentropp, a boca pequena

naturalmente. Muito pequena.

3) A propaganda, levada a limites nunca ousados até então, orquestrada com precisão

cientifica pelo Dr. Goebbels. Esta arma, até então desconhecida, não conhecia limites de qualquer

espécie, atingindo países e continentes sob uma plêiade de aspectos políticos, tecnológicos e

culturais.

Na indústria, a Krupp, a Siemens e a I. G. Farben significavam, entre outras, um modelo da

técnica e eficiência. A Graff Zeppelin mantinha linha regular de suas maravilhas voadoras com o

Estados Unidos (interrompidas depois do desastre do Hindemburg) e o Brasil.

Na filosofia, Martin Heiddeger, pensador existencialista e eminente professor não escondia

seu entusiasmo pela Nova Ordem.

Até mesmo a música, a mais abstrata das artes, foi amplamente utilizada. Walter Gieseking,

excelente pianista aliás, fazia sua tournée pelo mundo como embaixador cultural do Terceiro Reich.

Seu famoso colega francês, Alfred Cortot fazia lá também o que podia. Wilhelm Furtwangler,

talvez o maestro mais conhecido e apreciado no ocidente não se negou a reger para o cabo

Schicklgruber1 no templo wagneriano de Bayreuth. Em Saltzburg, a encantadora cidade onde

nascera Mozart e as Bodas de Fígaro, um jovem e talentoso maestro, Herbert Von Karajan

1 Alois Schicklgruber, nome de batismo de Adolf Hitler.

P

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5

engrossara as fileiras das SS trocando o Exultate Jubilate pelo Horst Wessel Lied2. Até mesmo o

genial criador de Electra e Assim Falou Zaratustra, Richard Strauss, dava sua colaboração para a

divulgação universal da Raça dos Senhores, a Herrenvolk.

Figuras proeminentes em seus países eram convidadas para verificar, in loco, as excelências

da nova ordem e espalhar as boas novas pelo mundo, como Charles Lindenberg, o herói americano

pioneiro da travessia aérea do Atlântico em seu Spirit of St. Louis e Lady Astor, a petulante e ativa

feminista, da família homônima dos magnatas americanos, (que, ao provocar Winston Churchill em

uma festa pela ameaça de envenenar sua bebida, recebeu imediata resposta: “eu mesmo o faria se

fosse seu marido”).

Até mesmo o ex Rei abdicado, Eduardo VII frequentava com sua mulher a americana

Wallys Simpson os salões da Chancelaria em Unter der Linden, encantado com o Reich Milenar, o

que lhe valeu um virtual banimento do solo britânico pelo severo Churchill, que acabou lhe

concedendo o humilhante posto de governador das Bermudas.

4) E, last but not least, a força oculta, a Quinta Coluna, termo já consagrado na vizinha

Espanha, no cerco de Madri, quatro anos antes. Aqueles que conspiraram em seu próprio pais para a

hegemonia nazista.

Em toda a Europa. Com uma única exceção: apesar de uma esplêndida coleção fracassos,

retiradas, e vexames de toda a espécie – França, Noruega, Grécia, Creta, Iugoslávia, Norte da África

- a Inglaterra ainda mantinha seu território e sua teimosia. A Operação Leão Marinho, para a

conquista da ilha pelo ar, tão entusiasticamente empreendida por Goering havia abortado menos de

um ano antes, pela obstinação da RAF na Batalha da Inglaterra. Ali, Oswald Mosley não teve maior

chance, ao contrário dos demais colegas continentais.

Dos anexados, na Áustria o nazista oficial fora Arthur Seyss Inquart. Na Tchecoslováquia,

abandonada em nome da “paz para os nossos tempos” foi o Dr. Konrad Heilen.

Cúmplice, a Itália não precisava de traidores. O fascismo já imperante desde 1922 teria

sido, para alguns filósofos o exemplo real das teorias de Gobinau, Chamberlain (o Huston, não o

Neville) e do “ideólogo” do partido Rosemberg. Benito Mussolini, confiante de seu “heroico” feito

na Etiópia, resolveu invadir a Grécia, obrigando Hitler a vir em seu auxilio, tamanha fora a surra.

Dos conquistados, a Polônia, esmagada logo de inicio em 1 de Setembro de 1939 foi

sabotada entre outros por Wiesner. Já em 1940, na rota da conquista, a neutralidade da Bélgica foi

facilmente esquecida pelos boches, para se pouparem do incomodo da grotesca Linha Maginot.

Leon Degrelle foi o herói desta proeza.

2 Horst Wessel Lied. A canção de Horst Wessel, “herói” nazista por ter morrido recusando uma transfusão de sangue de um judeu. A música era um hino do partido.

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A França não constituiu maior obstáculo, minada que estava pelos nazistas locais, Laval,

Doriot, Deat, Marquet, e pelo desanimo derrotista do herói da primeira guerra, o marechal Henri

Phillipe Petain, agora presidindo em Vichy sua França amputada em Compiége. Enquanto no exílio

londrino, De Gaulle irradiava pela BBC a Grandeur de la France, seu povo estratificou-se

rapidamente em cinco classes: os resignados, os indiferentes, os que colaboram, os OBF (Oeuf

Beurre et Fromage)3 que enriquecem no mercado negro, e os resistentes de Jean Moulin.

Na Noruega, Quisling, cujo nome ficou sendo sinônimo da felonia, foi o Judas de plantão.

Nos neutros Suécia e Suíça, a cruz gamada não medrou. Sabiamente, estes países

verificaram ser mais lucrativa a posição neutral que a opção ideológica. A Suécia entesourando o

aço. A Suíça entesourando o ouro.

A Espanha, fortemente fascista mas depauperada pela guerra civil e prudentemente

ambígua, cujo esperto caudilho4, depois de apoiado pela Legião Condor5, encontrou-se enfim com

seu benfeitor. Na fronteira...

Portugal, também depauperado pela “recente” invasão napoleônica do século XIX cujo

herói de Santa Comba Dão6 namorava com o ouro das SS extraídos dos falecidos judeus, mas

preferia manter seu pais como confortável ninho de espiões que iam ouvir os melancólicos e

doentios fados na mansão dos Espirito Santo, em Cascais. Compreensível: foi preciso a intervenção

dos ingleses para expulsar as tropas napoleônicas de Juneau. Os Ingleses resistiam. Roosevelt os

apoiava. Nunca se sabe....

Havia mais um. Ah sim. O Vaticano. Mas este não conta

Sobrava a Rússia. A sangrenta paranoia de Stalin eliminou intelectuais como Zinoviev,

Kamenev, Kirov e muitos outros, além de privar o exercito da maior parte de seus mais experientes

generais, no brutal expurgo de 1938. O pacto de 24 de Agosto de 1939, o “Pacto Ribbentropp” era

para a Rússia como uma blindagem contra quaisquer pretensões germânicas de invadir suas

fronteiras. Ruim de memória, esquecia-se seu signatário Molotov, de Bethmann Hollweg,

(chanceler da Alemanha em 1914), ao classificar o tratado de neutralidade da Bélgica (que ele

acabara de romper) como “um simples pedaço de papel”.

Barbarrossa7 ia começar.

3 Ovos manteiga e queijos 4 Generalíssimo Francisco Franco 5 Divisão da Luftwaffe enviada á Espanha em 1936, responsável pelo bombardeio de Guernica 6 Antônio de Oliveira Salazar, professor de economia e ditador 7 Operação Barbarrosa: Invasão da Rússia

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aquele inverno de 41, o Brasil mimetizava tropicalmente o Velho Mundo. A farsa

do incêndio do Reichstag foi macaqueada pelo Plano Cohen, pretexto para o

golpe de 37.

O aniquilamento das SA, os “camisas pardas” teve seu sucedâneo brasileiro na repressão e

desmantelamento dos “camisas verdes”, os integralistas de Plinio Salgado.

Os comunistas, brutalmente reprimidos desde o frustrado levante de 1935, estavam

escondidos, cassados ou nos porões da Rua da Relação.8

O Estado Novo imposto pelo Dr. Getúlio Vargas em 1937 garantia ao Terceiro Reich uma

sólida representação. (Nota 1, abaixo)

No Exército, O Generais Gois Monteiro e Eurico Dutra lideravam uma corrente pró eixo que

contava com alguns importantes oficiais. Assimétrica da vizinha Argentina, a influencia na

formação moderna das forças armadas brasileiras não havia sido alemã. A missão militar chefiada

por Gamelin a convite de Pandiá Calogeras, então Ministro da Guerra de Epitácio Pessoa (aliás, o

único ministro da guerra civil, em toda a história do país) havia consolidado no exército brasileiro

as bases da organização militar francesa. A deterioração política da França após a primeira guerra,

aliada á propaganda (veraz) da magnifica organização da Wehrmacht e das SS foram os

responsáveis pelo fenômeno.

Na Rua da Relação, a policia, o Filinto Muller, assessorado por uma malta de “consultores”

provindos dos sinistros laboratórios da Gestapo na Alexander Platz.

Na Justiça, o Tribunal de Segurança, que condenara Prestes a 16 anos e oito meses de prisão.

(Nota 2)

No DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, o Dr. Lourival Fontes.

No Cassino da Urca, os espiões, os simpatizantes, os entreguistas e os colaboradores.

Notas

(1) Getúlio Vargas assumiu o poder com a revolução da Aliança Liberal de 1930. Politico

gaúcho, matreiro e discreto, já havia sido Ministro da Fazenda no governo de Washington Luiz,

(mais tarde deposto e exilado pelo próprio Getúlio). Na oportunidade, Getúlio teria dito ao

presidente que o convidava: “ Mas Presidente, eu nada entendo de finanças !” obtendo a resposta::

“Não precisa, entendo eu.. ”.

8 O Partido Comunista Brasileiro fora fundado em 1922 por Astrogildo Pereira

N

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8

Devido a um lapso de memória, deixou de promulgar a nova Constituição prometida, o que

resultou na Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, com um saldo de mais de

quatrocentas mortes.

Reprimiu violentamente a intentona comunista de 1935. Em Novembro de 1937, a pretexto

de um plano fictício de tomada do poder pelos comunistas denunciado em um documento forjado,

(o plano Cohen) fechou o Congresso e passou a governar ditatorialmente. Em 1938 aniquilou

o“putsch” integralista de Plinio Salgado.

(2) Luiz Carlos Prestes, oficial engenheiro também do Rio Grande do Sul, chefiou a coluna

revolucionária criada por Miguel Costa em 1924, conhecida como Coluna Prestes, em protesto

contra o governo “oligárquico e reacionário” de Artur Bernardes, tendo circulado durante quatro

anos por treze estados brasileiros.

Cooptado pelo Komintern, foi para a União Soviética para doutrinação e treinamento. Lá,

casou-se com Olga Benário e retornou ao Brasil clandestinamente, via Buenos Aires.

Assumiu inteira responsabilidade pela intentona frustrada de 1935, sendo preso juntamente

com Olga, após longa caçada policial em uma casa na rua Honório, no Méier, pelo delegado Bellens

Porto.

Julgado pelo Tribunal de Segurança (criado em 1936), foi condenado a dezesseis anos e oito

meses de prisão. por dois crimes: pela intentona e pela responsabilidade pelo assassinato de Elza

Fernandes, acusada (injustamente) de ter traído o partido.

Olga Benário, judia alemã, embora grávida, foi entregue pelo Getúlio, via Filinto Muller aos

nazistas, sendo embarcada a em 1936 em um navio italiano, o La Coruña para Hamburgo.

Já nas prisões nazistas, após o parto de uma menina, Anita Leocádia que fora entregue á sua

avó, D. Leocádia, Olga foi transferida para o campo de concentração de Ravensbruck e

posteriormente para Bernburg onde foi morta na Páscoa de 1942.

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Rio de Janeiro,

19 de Junho de 1941,

8:30 da noite

Um taxi parou na porta da casa, na rua Álvaro Ramos, um sobrado típico do bairro de

Laranjeiras.

Uma mulher corpulenta, já com alguma gordura que o casaco preto não consegue esconder, saltou e

pediu ao motorista que ficasse aguardando. Dirigiu-se apressadamente ao portão, levando um

pacote sob o braço direito e tocou insistentemente a campainha. Sons de violoncelo, meio abafados

pela janela fechada, espalham-se pela rua deserta, junto com o cheiro de bifes sendo preparados.

“Graças a Deus ele está em casa”, murmurou para si mesma.

Ao fim de alguns segundos, sai da cozinha uma moça com a aparência de uns trinta e poucos

anos, que poderia ser bonita, se alguém se dispusesse a lhe dar um bom banho de loja. Tinha um ar

meio desleixado e uma fisionomia bastante tristonha, com o nariz um pouco comprido e

sobrancelhas grossas que lhe davam um certo ar de fuinha. Ainda enxugando as mãos no avental e

resmungando mal humorada como sempre “quem seria àquela hora”, abre a porta e diz secamente.

- Boa noite.

A outra responde, de modo igualmente seco:

- Boa noite. Vim entregar uma encomenda para o Sr. Mário. O táxi está aí fora me

esperando.

- Entre.

Os olhos claros, os cabelos grisalhos que haviam sido louros, (agora palha debotada), e

principalmente o sotaque inconfundível, mostram a origem alemã da recém chegada.

Mário estava guardando a partitura de Concerto para Cello e Orquestra em Re menor de

Dvorak e preparando –se para tomar banho antes do jantar. Havia ensaiado a tarde inteira apenas

doze compassos do primeiro movimento. Não que tivesse alguma pretensão de tocar com orquestra,

mas ouvira falar que nos Estados Unidos já havia gravações do “minus one”, na qual a orquestra

PRIMEIRO ATO

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tocava concertos sem solista. Devia ser fantástico, embora difícil de entender como faria a troca dos

discos sem interromper a performance.

Aos trinta e sete anos, Mário Soares dividia seu tempo em ler e ensaiar cello em seu

escritório e receber aulas de música na casa de sua professora Annelise, na rua Cândido Mendes, na

subida do bairro de Santa Teresa. Vivia confortavelmente, porem sem qualquer luxo, de dividendos

das ações de Banco do Brasil, herança do avô, alugueis de 4 apartamentos no Meier, também

herança do avô e principalmente da pensão vitalícia que sua irmã Celeste recebia do Exército,

herança do pai.

Nunca trabalhara. Afora breves momentos em sua vida de alguma atividade pouco lucrativa

(o inventário da biblioteca do Instituto dos Surdos Mudos por exemplo) e outras queijandas

parecidas, Mário vivia para seus livros, discos, e encontros ocasionais com Honório, seu único

amigo merecedor de tal título. Relações tinha várias, mas que não privavam de sua intimidade

porque, como a irmã Celeste, seu temperamento era bastante introvertido. Limitavam-se ambos a

cumprimentar algum vizinho, quando eventualmente cruzavam com eles. Apesar disto, não eram

antipatizados, por serem pessoas extremamente bem educadas e polidas.

Seu filho, Mariozinho, neste momento no quarto ao lado, dividia também seu tempo em ler

pela trigésima vez os quadrinhos do Almanaque do Globo Juvenil e vãs tentativas de desenhar

(escondido) a forma (provável) de uma mulher nua.

Ao ouvir a campainha, Mário olha do andar de cima. Vê D. Clara desce correndo as escadas.

Sua presença era para ele auto explicativa. Dispensava perguntas e apresentações. Silenciosamente

ela lhe entrega o pacote que trouxera - um caderno de música branco, com uma clave de Sol em

dourado na capa. Automaticamente, como se tudo estivesse ensaiado, Mário sobe e tranca-se no

escritório.

Enquanto D. Clara espera no andar de baixo, Celeste oferece-lhe um café que tomam juntas

na cozinha mantendo sempre o silêncio. Pouco depois Mário desce e devolve o caderno a D. Clara,

que parte imediatamente sem nenhuma pergunta. A cena muda não durou mais que alguns minutos.

Nenhuma palavra foi proferida entre eles.

Na cozinha, Celeste termina o preparo do jantar. Solteira, meio apática, passou a morar na

casa do irmão desde que sua cunhada, uma trotskista zangada mandou-se, alegando que o marido

era um vagabundo imprestável. A presença da irmã foi providencial para Mário. Com seu

temperamento reservado e sem nenhuma reivindicação de vida própria, Celeste dedicou-se

totalmente aos cuidados da casa e, acima de tudo, ao sobrinho Mariozinho. Quando a cunhada

(aquela víbora, como dizia Celeste) abandonou a família, ele era apenas um bebê. Celeste desvelou-

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se em seus cuidados. Mariozinho foi para ela o maior, se não o único, objeto de amor duradouro na

vida.

Desprezando o jantar, para indignação de Celeste, Mário sobe para o escritório, fecha a porta

e telefona para Honório. Honório Ramos, 48 anos (solteiro?) era ativista do Partido Comunista,

vivia na clandestinidade. Mário, visivelmente nervoso, deixa o clássico recado para ele chamar de

volta. Por sorte, não precisou esperar muito: Honório telefona quase imediatamente.

__Que é que foi, comp... - Honório policiou-se a tempo –

__Que foi homem, pela voz te achei meio aflito.

__Honório, é urgente. Preciso falar com o Hugo. Agora.

__Calma, deixa comigo que eu resolvo. Eu nunca te falhei.

__Não, desta vez eu mesmo preciso falar com ele. E muito rápido.

Desliga. Honório telefona novamente em poucos segundos:

- Te apanho as nove e meia.

9:25

Honório buzina o Chevrolet 1936, em condições meio precárias, “aparelho” do partido.

Mário, que esperava ansiosamente junto à janela, sai de casa e entra apressadamente no carro.

Dirigem-se ao Hotel Novo Mundo, na praia do Flamengo. Honório estaciona na transversal.

atravessam a portaria um tanto sombria, com seu chão de mármore rosado e lambris de madeira

escura. Dirigem-se ao balcão de madeira também escura e envernizada, comunicando ao

recepcionista:

- Queremos falar com o Sr. Hugo, ele está nos aguardando.

O porteiro, como já tinha sido avisado, desde a hora do telefonema de Honório, diz

simplesmente:

– Quarto 505, elevador á esquerda.

Sobem até o terceiro andar pelo elevador e os outros pela escada. (deformação profissional de

Honório, para despistar possíveis seguidores). Batem à porta. Abre um homem baixo, forte moreno,

cujos olhos azul piscina denunciam uma ascendência germânica ou saxônica. Honório apresenta:

- Este é Mário, que você já conhece de nome. Viemos aqui porque ele precisa falar com você

urgente.

O homem faz sinal com a cabeça para Mário entrar. Sem uma palavra, fecha a porta, deixando

Honório irritadíssimo esperando de pé no corredor. Afinal, era sempre ele que costumava falar com

Hugo, não compreendia o porque desta discriminação, a seu ver sem o menor sentido. Dez minutos

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depois a porta se abre e saem os dois. Hugo murmura para Honório algo como “até mais ver

companheiro. ” Honório apenas acena com a cabeça, sem disfarçar a raiva e frustração de Ter sido

excluído da conversa cujo teor conhecia perfeitamente pois lhe havia sido relatado em detalhes por

Mário, durante a viagem de carro.

10:45

Mário sente-se aliviado por já ter se desincumbido da tarefa. A tensão das últimas 2 horas o

deixara exausto e faminto. Pede ao ainda irritado Honório para parar no Lamas, cujo ambiente

descontraído viria mesmo a calhar, depois dos últimos acontecimentos. Embora mal humorado pelo

desprestígio de Ter sido alijado da conversa, permanecendo no corredor como um subalterno,

Honório se anima diante da perspectiva de um jantar, pois sabia que Mário pagava. Ele próprio não

poderia dar-se a nenhuma espécie de luxo com a minguada mesada que recebia do Partido.

O Lamas, um dos lugares mais tradicionais do Rio, ficava aberto 24 horas por dia, sendo

célebre pelos seu filé a francesa (com batata palha, presunto, ervilhas e cebola frita) e outras

maravilhas culinárias, servidas sempre em generosas porções que podiam ser facilmente divididas

por duas pessoas. No seu grande salão, sem qualquer tipo de luxo, jornalistas, costumavam se

encontrar de madrugada, depois de sair da redação, dividindo as mesas cobertas por toalhas

imaculadamente brancas, com artistas e boêmios em geral, que bebiam chopes noite a dentro, às

vezes até o raiar do dia. Os freqüentadores do Lamas exerciam uma atração irresistível sobre a

classe média, que ia jantar na esperança de encontrar alguma celebridade o que tornava o local

eternamente lotado. Quando a boêmia se retirava, chegava a turma de moradores locais que vinham

de manhã para comprar frutas no enorme balcão situado na entrada.

11:03

Honório dá partida ao carro e dirige pela praia do Flamengo, sem se aperceber de um Ford

V8, preto, 1937, que o segue. Vira à direita pela Machado de Assis depois novamente à direita,

entrando no Largo do Machado. Estaciona á esquerda, na calçada da praça. Os dois saltam e

dirigem-se para o Lamas, que fica do outro lado junto à estação de bondes e à Confeitaria Francesa,

fechada àquela hora. Atravessam a rua conversando, tentando relaxar da tensão anterior.

O Ford para atrás, sem qualquer ruído.

Mário sentia-se eufórico. Pela primeira vez em sua vida tomara uma decisão e a executara

ágil e eficazmente. Saíra enfim de sua casca e fizera algo para além de si mesmo.. Algo importante.

Era tempo de tomar outras decisões e mudar sua vidinha insossa. De dar maior atenção á

Mariozinho, mudar-lhe inclusive o ridículo diminutivo. Conversar mais com a irmã, ajudando a em

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sua crônica depressão. Mas principalmente, declarar á Annelise seu amor há muito sopitado e livra-

la daquele grotesco casamento. Faria tudo isto, logo ao acordar daquele sono, daquele sonho,

daquele son...

Os homens guardam as armas entram novamente no Ford que partiu em disparada pela Rua

do Catete. Pouco a pouco garçons e fregueses do restaurante se aproximam. Na calçada

anteriormente quase vazia vai-se formando um círculo de pessoas perplexas. Os jornalistas tentam

compreender o que estava se passando para avisar suas redações. Alguém, finalmente, resolve

chamar a policia e o pronto socorro.

Honório é levado ao hospital.

Mário teve que esperar três horas para ser removido para o Instituto Médico Legal.

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NTERLÚDIO

A Noite Européia terminou em 8 de Maio de 1945, com a devastação de grande parte do

continente.

As faturas em perdas humanas foi enorme. Somente a Rússia pagou 20 milhões de almas, a

Polônia 4 milhões, a Alemanha e Áustria e Itália 4 milhoes. A França e a Inglaterra contribuíram

com 535 000 e 400 000 vitimas respectivamente.

Independentemente da guerra, a “Raça Superior” ariana exterminou 6 milhões de judeus ou

1/3 de sua população mundial;

Em 9 de Dezembro de 1941, dois dias após o ataque japonês á frota Americana em Pearl

Harbour, a Alemanha declarou guerra aos Estados Unidos.

Em 14 de Fevereiro de 1942, o navio mercante Cabedelo sumiu em alto mar, afundado por

submarinos alemães. De Fevereiro a Julho de 1942, mais 13 navios mercantes do Brasil seriam

afundados. Em 15 de Agosto, o primeiro ataque foi realizado em águas territoriais brasileiras: nesse

dia, o submarino alemão U-507 afundou o Baependi, matando seus 270 tripulantes. Nos quatro dias

seguintes, o mesmo submarino afundaria mais 4 navios brasileiros, Araraquara, Anibal Benevolo,

Itagira e Arara todos no litoral entre Sergipe e Bahia. Ao todo 36 navios foram postos a pique,

matando quase mil pessoas.

Os ataques causaram grande comoção nacional e nem mesmo os simpatizantes do nazismo, que

faziam parte do governo Vargas, especialmente os generais Dutra e Gois Monteiro) conseguiram

impedir dezenas de passeatas de estudantes e do povo, todas favoráveis à declaração de guerra.

Em 31 de Agosto de 1942, o "Estado de Guerra" foi finalmente declarado em todo território

nacional.

Entre Julho de 44 e Fevereiro de 1945 Brasil enviou á Itália 25. 344 soldados. Lá perdemos

450 brasileiros, os “Pracinhas” da FEB, Força Expedicionária Brasileira comandados pelo

Marechal Mascarenhas de Morais.

Adoph Hitler suicidou-se a 30 de Abril de 1945, em seu “bunker” juntamente com a sua

recém casada esposa Eva Braun. Está sentado á mão direita de Joseph Stalin todo poderoso (morto

em 1953) no Paraíso dos Monstros.

Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista, suicidou-se juntamente com seus cinco

filhos e sua mulher naqueles mesmos dias.

O sinistro Heinrich Himmler, ex professor primário e chefe das SS, conseguiu também se

matar, quando tentava fugir em uma ridícula vestimenta de tirolês.

I

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Von Ribbentropp, o criminoso Chanceler, Seyss Inquart o traidor da Áustria e

posteriormente o “Açougueiro da Holanda” e Hermann Goering, o poderoso chefe da Luftwaffe,

juntamente com mais dez criminosos de guerra, foram condenados á forca pelo Tribunal de

Nuremberg em 1946. Goering conseguiu suicidar-se horas antes das execuções.

Werner Von Braun, o jovem cientista de Peenemunde criador das famosas V1 e V2, bombas

foguetes responsáveis pela morte de milhares de civis na Inglaterra, foi carinhosamente acolhido

pelos Estados Unidos para ali desenvolver seus engenhos aeroespaciais, antes que a Rússia, agora

inimiga, o fizesse.

Malgrado suas importantíssimas contribuições, um na filosofia e outro na música, Martin

Heidegger e Richard Strauss tiveram seus finais de vida reduzidos a um merecido ostracismo.

Morreram em 1976 1949 respectivamente.

Herbert von Karajan tornou-se um famosíssimo maestro, talvez o mais aclamado da

atualidade. Jamais no entanto conseguiu reger a Filarmônica de Israel.

Charles Lindemberg foi impedido de alistar-se para combater seus antigos admirados.

Conseguiu porém, após muita luta, um cargo de instrutor aeronáutico, que desempenhou adequada e

dignamente tendo sido por isto condecorado.

Jean Moulin, o herói da Resistência francesa foi morto pelo “Carrasco de Lion”, Klaus

Barbie, que após a guerra foi servir... na CIA. !!

Pierre Laval, o nazista francês, não foi perdoado. Reanimado de uma tentativa de suicídio

poucas horas antes da execução, foi conduzido ao pelotão e fuzilado.

Henri Phillippe Petain, o ancião derrotista e chefe do governo “livre” da França em Vichy,

apesar de herói da primeira guerra, foi condenado a morte. A gritaria internacional que se seguiu ao

julgamento foi a responsável pela comutação da pena para prisão perpétua.

No entanto grande numero de criminosos nazistas conseguiu escapar á justiça.

Surgiram então organizações privadas, ostensivas e legais, como a de Simon Wiesenthal,

com séde em Viena, que passaram a se dedicar á investigação de seus paradeiros.

Apesar disto, muitos deles ainda estão vivos e impunes, alguns tendo se utilizado da rota de

fuga que a organização Odessa propiciava.

Assim a Argentina foi o refugio para Eichmann, o executor da “solução final para o

problema judaico” (depois sequestrado para Israel, onde foi julgado e enforcado), o Paraguai para

Dr. Mengele o sinistro médico das experiências com cobaias humanas, e o Brasil para o terceiro

homem do Reich, Martin Bormann.

Outros menos votados encontraram em seus lares adotivos oportunidades de oferecer seus

talentos aos mecanismos de repressão em regimes ditatoriais...

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16

etulio Vargas foi deposto pelo exército em 1945. Terminada a guerra, o espaço político

para as “ditaduras vitoriosas” fora eliminado. Pouco antes de sua deposição, Getúlio

recebeu o então Secretário de Estado Americano Stettinius que o presenteou com um

aparelho de rádio Hallicrafters e o convidou a deixar o governo. No exílio em São Borja, Getúlio foi

eleito Senador da Republica, sem nunca ter comparecido ao Senado. Eleito por vasta maioria em

1950, acabou cometendo suicídio em 1954.

Assumiu então o vice Presidente Café Filho, que infartado em Novembro de 1955 passou o

cargo para o Presidente do Senado, Carlos Luz. A 11 de Novembro de 1955, Carlos Luz foi deposto

pelo então Ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, que entregou o governo em Janeiro de 1956

ao Presidente eleito Juscelino Kubitscheck de Oliveira.

O Brasil deve a Juscelino, além de quatro anos de perfeita democracia e tolerância, um

fantástico período de desenvolvimento, com a criação das industrias automobilística e naval,

estradas e hidroelétricas e a controversa criação da nova capital em Brasília.

E um vigoroso surto inflacionário.

Em 1960, o presidente eleito, Jânio da Silva Quadros viria a governar apenas sete meses,

tendo renunciado em Agosto do mesmo ano.

Apesar da enorme resistência das Forças Armadas, assumiu o Vice Presidente, João- Jango-

Goulart, ex ministro do trabalho de Getúlio, de quem herdou o lendário populismo. A inabilidade

política de Jango fez com que seu governo fosse execrado pelas classes conservadoras, culminando

pela sua deposição em 31 de Março de 1964 por um movimento liderado pelo governador de Minas

Gerais, o banqueiro Magalhães Pinto, pelo governado do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda e

pelo comandante do II Exercito sediado em São Paulo, Amaury Kruel..

Os militares assumindo, entregaram o governo ao general Castelo Branco. Foi (mal)

sucedido pelo General Costa e Silva.

O ano de 68 havia sido prenhe de contradições. Na França, o movimento estudantil do Cohn

Bendit eclodira com algum sucesso e muita bagunça. No estado Unidos, Lindon Johnson acenava

um acordo de paz para por fim a guerra do Vietnam. Em compensação foram assassinados Martin

Luther King e Robert Kennedy.

No Brasil no entanto, havia uma esperança de um processo de distensão política. A

“Primavera de 1968” era por vezes aludida, embora com alguma cautela, pois a de Praga, em 67

tivera trágico desfecho menos de um ano depois.. Além disto, tratava-se de tempo muito louco,

onde retórica libertária compreendia tudo, inclusive o sexo e a Cannabis sativa.

No entanto o perigo espreitava. Fraco e inepto e agora doente, o presidente-general Costa e

Silva era comandado pelo general Jaime Portela, que representando uma larga facção das forças

G

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17

armadas da estava descontente e irritado com o enfraquecimento da chamada linha dura. As

manifestações libero-esquerdistas eram toleradas, o “VEM VAMOS EMBORA “ do Vandré ecoava

pelas ruas, inimigos do Sistema andavam soltos, passeatas se multiplicavam, enfim, todo um clima

de provocação imperava no país. Além disto, embora totalmente escondido da imprensa e da

população, havia um preocupante movimento de guerrilhas no Araguaia. Faltava apenas um

pretexto para desencadear um retorno ás ordens vigentes.

O pretexto foi dado a 3 de Setembro.

Na denúncia da invasão pelos militares da Universidade de Brasília, o deputado Márcio

Moreira Alves fez um discurso no qual exortava os jovens a não desfilar na parada de sete de

Setembro e as moças para absterem-se de namorar os cadetes. À imprudente alocução, de gosto

aliás discutível, respondeu o Procurador da Republica com um pedido à Câmara para processar o

eminente parlamentar. A 12 de Dezembro de 1968, o pedido foi negado.

No dia seguinte, Sexta Feira 13, o Ato Institucional n. º 5 fora decretado. O Congresso fora

fechado e as garantias civis e constitucionais dos brasileiros suspensas. Com exceção do Estado de

São Paulo de do Pasquim, que não aceitaram a auto censura, toda a imprensa fora amordaçada.

No intervalo de poucas horas, as prisões e quartéis encheram-se de presos políticos. Os

comunistas, os esquerdistas, os liberais, os jornalistas, os artistas, todos enfim, que mesmo

longinquamente pudessem não aplaudir a façanha verde oliva eram sumariamente encarcerados ou

simplesmente sumiam sem que ninguém soubesse como. A técnica do “ Nacht und Nagel” – noite e

neblina- inventada por Himmler, para aterrorizar as populações ocupadas teve sua correspondente

cabocla na policia e nas Forças armadas. As organizações para-policiais como o CCC passaram a

agir livremente.

Começara a Noite Brasileira, que, para muitos, ia ser longa e escura.

O ESTADO DE S. PAULO Domingo, 14 Dezembro 1968

JULIO DE MESQUITA FILHO

Costa e Silva impõe Ato Inconstitucional No 5 Congresso já encontra-se em recesso

“Artigo 10 – a garantia de “Habeas Corpus” é suspensa em casos de crimes políticos

cometidos contra a segurança nacional ou contra a ordem econômica e social e a economia nacional”

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EGUNDO ATO

Verão de 1969

Sábado 4 Janeiro

10:30 da manhã

O calor, já aquela hora era insuportável. Mário pensou em ir a praia, seu amigo Jorge tinha

ficado de apanhá-lo em seu Vemaguete para irem a Barra, apanhar um solzinho e, quem sabe umas

coisinhas lindas, mas não telefonou. Sentia-se angustiado. Desde do mês passado, todos viviam em

algum sobressalto.

No trabalho, alguns colegas de leves tendências exóticas haviam sumido. Presos? Fugidos?

Ainda ontem 2 caras apareceram lá. Jovens, polidos, camisa esporte e a indefectível marca de

meganhas, que os tornavam inconfundíveis à distância - mocassins brancos..

Fizeram algumas perguntas e foram embora

A trajetória de Mário Soares Filho desde a morte do pai no dia 19 de Junho de 1941 fora

igual à da maior parte dos jovens da classe média no Rio de Janeiro. Terminara seus estudos no

Pedro II, que embora não fosse um colégio da classe abastada, por ser público, era reputado como

um dos melhores ensinos da cidade. Completara seu curso e passara sem maiores dificuldades no

vestibular, formando-se em direito na Rio de Janeiro. Nunca exercera. Após oito anos dentro de um

cartório na Rua do Rosário, entrou na Petrobras, por obra e graça do tio Luiz

Hoje, com trinta e sete anos Mário em nada se distinguia de ninguém.. Acomodara-se. Era

absolutamente igual. Já com algum excesso de peso e alguma barriga, não era o que se poderia dizer

um modelo de atraência masculina.

Tivera no passado algumas namoradas, alguns casos fortuitos, mas continuava solteiro e

sem muito entusiasmo de se comprometer. Sua vida se alternava entre o trabalho e chopes noturnos

nos bares de Ipanema. No Bar Lagoa, bebia com os bem intencionados de movimentos de casais

organizados pela igreja e discutia superficial mas apaixonadamente Teilhard de Chardin.

Ocasionalmente bebia também com alguns arquitetos liberais, que, com um sorriso superior e uma

indumentária displicente, cuidadosamente estudada, discutiam a salvação da humanidade através da

organização de espaços. No Jangadeiros bebia com a esquerda festiva e discutia Régis Debray,

Norman Mailer e Herbert Marcusse. No Alpino, bebia com o comum dos mortais e não discutia

nada.

S

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19

Não era particularmente ligado no futebol, embora fosse aos jogos no Fluminense, porque

podia ir a pé para as sociais. Como aprendera natação quando garoto, ainda no tempo do treinador

Caximbau, torcia vagamente para o clube, por força do habito e comodismo.

No entanto, dentro de sua aparente mediocridade, Mário era sensível, razoavelmente

informado, e, sem ser exatamente erudito sabia que a cultura existia, não a menosprezava,

procurando até adquiri-la sob diversos aspectos, o que o colocava afinal em um nível mais elevado

que a maioria de sua geração. Lia bastante, entre romances e poesia, principalmente brasileira e

francesa. Gostava de música. Sem ser um expert era antes um ouvinte atento e curioso. No toca

discos portátil, adquirido em prestações na Cassio Muniz, ouvia uns poucos LP que possuía. Mas

escutava a Ministério da Educação, no rádio do carro. Frequentava concertos, no Municipal onde

penetrava, e na Cecília Meireles, onde pagava. Começara a aprender piano já adulto. Desistiu

depois de tentar inutilmente, durante dois anos, comer a professora.

Sem qualquer compromisso, considerava-se de esquerda, muito menos por ideologia mas

pela ojeriza que nutria pelo entusiasmo militarista que grassava no país. Em 1964 dera

inadvertidamente abrigo a um amigo que estava sendo procurado. Ficou apenas uma noite, dormiu

em seu quarto, apesar da cara contrafeita da tia. Dois dias depois, bateram na casa dele dois

homens, a paisana. Muito educados, pediram a Mário para acompanhá-los ao DOPS, a Delegacia de

Ordem Política e Social. Aparentando com grande esforço uma calma e naturalidade que estava

longe de sentir, Mário foi conduzido á Ra Frei Caneca. Esperou duas horas intermináveis no

corredor, durante as quais viu passar um sujeito que parecia o Cecil Borer, Secretário de Segurança

do Estado e notório caçador de comunistas, o que aumentou sua aflição. Depois foi conduzido a

uma pequena sala no segundo andar, respondeu a algumas perguntas, assinou um depoimento e foi-

se embora. Mais nada. Mas durante meses, Mário ficou paranóico..

Há muito, Mário já sabia que o pai fora assassinado por motivos políticos. Celeste

habilmente foi pouco a pouco passando a ele a informação. Primeiro, foram os “bandidos”, quando

receberam chocados a visita de policiais notificando o assassinato. Mariozinho, com apenas 10

anos, não conseguia compreender como alguém poderia matar um homem como seu pai, que não

incomodava ninguém e vivia tocando música. Mais tarde a versão de que teria sido assassinado pelo

que queriam se livrar dele por ser contra a ditadura Getuliana. Finalmente, quando já passara no

vestibular, por ser amigo de comunistas. Nunca lhe foi dito que o pai era comunista, mas não era

preciso. Para o mutismo de Celeste, estas explicações já eram um prodígio de eloquência.

Mário havia reprimido tanto o abandono da mãe, da qual não se lembrava, quanto a morte do

pai. Do pai, se lembrava bem, mas sua ligação com ele era extremamente superficial. O pai era

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gentil mas totalmente ausente, vivendo apenas para sua música e seus livros, quase sempre trancado

no escritório. Sua única referencia afetiva era a tia.

Quase.

Havia mais alguém.

Dr. Luiz

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uiz Rosenbaum. Aos seus 62 anos, alto, enxuto. elegante, com sua vasta cabeleira branca

era o que se chamava de coroa boa pinta. Casado, viúvo, ninguém sabia. Nunca falava

sobre isto. Mas, com seu charme e dispondo de uma grande fortuna, devia ter tido e na

verdade ainda tinha muitas aventuras.

Bastante culto, apreciador de música e literatura, poliglota, além de razoável pianista,

evidenciava uma rafinada educação européia

Embora jamais falasse de sua vida pregressa, esta já constava como quase uma lenda em

certos meios.

Filho imigrante alemão e mãe brasileira, Luiz, em 1919, foi viver com os avós paternos que

resolveram adotá-lo após a morte do pai e da loucura da mãe. Em Zurique, completou seus estudos,

formando-se em direito. Em 1930 o avô resolveu retornar á sua terra natal, a Alemanha para

retomar seus negócios. Em Berlim, Luiz ligou-se a uma banca advocatícia onde passou a trabalhar.

Mas a partir de 1933, seu sobrenome passou a ser progressivamente um empecilho ao exercício de

sua profissão. Foi quando um tio materno o convidou a voltar para o Brasil. Aqui, não teve maiores

dificuldades em revalidar seu diploma e, em 1934 já estava advogando. Sem dinheiro nem prestigio.

passou a dedicar-se á nem sempre possível defesa de presos políticos.

Em Novembro de 1941, Luiz recebeu a notícia de que os avós estavam, como todos os

judeus na Alemanha, sob grande perigo. Como cidadão brasileiro, conseguiu então voltar a Berlim,

onde, usando seus conhecimentos e habilidades logrou contrabandear os velhos para a Suíça. Mas a

declaração de guerra do Brasil, em Agosto de 1942, o surpreendeu em Marselha, a espera de um

navio para a América do Sul. Sabe-se que Luiz Rosenbaum juntou-se á Resistência francesa até

1945, quando enfim retornou ao Brasil.

Esta sua atuação lhe granjeou certa fama, sobretudo nas comunidades judaicas e anti nazistas

na Europa, pelo que, já em 1946 finda a ditadura getuliana, foi procurado por várias empresas

alemãs, antes confiscadas e agora devolvidas aos antigos proprietários, que desejavam estabelecer

filiais ou associações no Brasil, o que lhe valeu uma merecida prosperidade material.

Naquela época, Luiz tomou conhecimento do “Caso Mário Soares” e procurou Celeste

tomando a si, generosamente, a segurança física dos dois, inclusive, segundo Celeste, ajudando-os

objetivamente nos problemas legais do inventário e da vida prática, que tia e sobrinho enfrentavam,

passando a telefonar regularmente e manter um relacionamento que dura até hoje. Mário passou a

chama-lo de “tio” e a ele recorre periodicamente para conselhos.

Hoje, em 1969, embora representando interesses estrangeiros no Brasil, continua liberal e

defensor de perseguidos políticos que ainda a ele recorrem. Apesar da idade, marchou na passeata

dos cem mil, em junho, junto com todos os intelectuais, artistas e estudantes e respectivas mães que

L

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22

protestavam contra a violência policial. É muito apoiado pelos órgãos liberais internacionais de

direitos humanos, inclusive entidades judaicas ativistas contra o fascismo. Viaja muito a

congressos, tem prestigio no exterior, o que lhe garante tolerância pela Redentora apesar de sua

conotação “ cor de rosa”.

11:30h

Pensou em telefonar ao tio, para falar sobre a visita dos policiais ao seu trabalho. Naqueles

dias, as conversas com seu tio eram o refugio que precisava. Sua presença calma e experiente era

sempre tranqüilizadora.

Mas ele não estava. Mário decidiu comprar jornais para ver se conseguia algumas pistas

sobre os acontecimentos. Alguns deles, embora fortemente censurados deixavam sempre

transparecer alguma coisa nas entrelinhas. O Correio da Manhã por exemplo, que havia sido

invadido e presos seus diretores, inclusive o Osvaldo Peralva e a Niomar Muniz Sodré, deixava

passar algumas “dicas”, por culpa ou negligencia do censor.

A tia serviu-lhe um rápido café. Sempre na mesma casa desde a morte do irmão, há vinte e

sete anos. Celeste não havia mudado, continuava apática e indiferente e cada vez mais descuidada e

lacônica, se isto fosse possível. No entanto fora ela quem criara Mário, cuidando competente e

zelosamente de sua alimentação, saúde e educação. Mário sabia que lhe devia muito e até mesmo

gostava dela. Mas era sempre tão chata que ele não conseguia aguentar, por mais que se esforçasse.

Distraído,, Mário atravessou a Rua da Laranjeiras para a banca de jornais em frente ao

Instituto de Surdos Mudos. Por traz de um ônibus. não viu a bicicleta...

11 de janeiro de 1969

ario irrita-se dentro de casa. Depois de breve passada pelo Souza Aguiar onde foi

engessado, após horas intermináveis de espera, numa maca no corredor, foi na segunda feira para o

trabalho, no Edifício Ultramarino, na Praça Pio X para arranjar licença médica. De lá foi

encaminhado ao serviço médico da empresa. Com um calor infernal foi andando com uma muleta

alugada e amparado pelo Horácio, da contabilidade, até o Detran na Presidente Vargas, onde

funcionava provisoriamente um posto de atendimento. Evidentemente teve que esperar quase uma

hora para ser atendido pelo Dr. Freitas. Mas o Freitas era legal. Dispensou-o por trinta dias, com a

promessa de mais trinta. Na hora achou ótimo se ver livre do trabalho por um bom período. Mas

agora, apenas uma semana depois, estava de saco cheio

M

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23

Desce as escadas com dificuldade (no inicio descia sentado, agora já consegue de pé),

esquenta um café, evitando chamar a tia que não deixaria de fazer uma de suas inevitáveis lamurias,

sobe as escadas, prepara-se para a complicadíssima operação do banho, indispensável naquele calor.

Primeiro tirar o pijama. Depois envolver o gesso com um enorme plástico, colando com durex. Em

seguida berrar para a tia não subir, pois está pelado. Por fim entrar no banheiro, escalar a banheira e

o chuveiro abençoado. Voltar e desfazer a operação. Desce pro almoço, come em demasia,

respondendo monossilabicamente às tentativas de conversa, ou seja, reclamações lacônicas de

Celeste, sobe e tenta dormir ao som de um ventilador. Acorda embrutecido, desce para um café e

continua nesta rotina, ainda pior do que a da burocracia da Petrobrás e que já vinha acontecendo há

uma semana.

Naquele dia para mudar um pouco as atividades cotidianas, resolveu entrar no escritório do

pai. Curiosamente, em todas as andanças, Mário tangenciava a porta do escritório e nunca entrava.

Por associação de idéias, lembrou-se do Anjo Exterminador de Buñuel onde as pessoas ficavam

paralisadas, sem nenhuma razão aparente, no umbral de uma porta, tentando sair de uma festa

durante vários dias. O quarto estava na penumbra, com as venezianas cerradas e por isto mais fresco

que o resto da casa. Havia um cheiro peculiar de coisa velha, embora o escritório fosse

imaculadamente limpo a cada semana por Celeste. Aquela peça havia sido ignorada por 27 anos por

tácita aquiescência da tia e dele. Abre as janelas e o quarto foi inundado pela luz e calor. Mário deu-

se conta que tudo ali estava como seu pai tinha visto pela ultima vez, quando saíra em direção á

morte. Como para exorcizar o ambiente falou alto:

__Estou ciente que tudo aqui está exatamente como meu pai deixou, há 27 anos atrás

Os móveis eram escuros, pesados, estilo manuelino. Ocupando toda uma parede, uma

enorme estante. Nas prateleiras de cima, muitos livros de literatura, poesia e filosofia, além de um

bom número de partituras, tanto de obras para violoncelo, quanto consertos e óperas diversas,

principalmente alemãs. O pai, decididamente, não era apreciador das óperas italianas. As prateleiras

de baixo abrigavam enorme coleção de discos de 78 RPM, em surpreendente bom estado.

Em frente, um sofá de couro preto, meio decrépito. Um Pleyel de parede, as notas

amareladas, bastante desafinado. Um móvel horrível, que destoava do resto da mobília abrigava a

Radio Vitrola. A tampa de cima cobria um toca discos Thorenz, de 78 RPM, e muitas caixinhas

metálicas com agulhas. A parte frontal, o rádio com um grande mostrador para as estações e o “olho

mágico”, com sua luzinha verde para sintonia fina. Contra a janela, ao lado da mesa, um balde cheio

de rolos de reproduções de quadros famosos que seu pai tentava copiar quando estudava desenho.

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13 de janeiro

Tendo exorcizado o quarto, Mário começa a refugiar-se no escritório, onde passa longas

horas lendo e remexendo nos discos e livros. Só agora, tantos anos depois, começa a interessar-se

pela personalidade do pai, que se revela aos poucos através de seu gosto literário e musical nos

discos e livros.

A mesa sólida estava atulhada de papéis, algumas fotos de pessoas desconhecidas (nenhuma

da mãe) e uma que reconheceu: colorida, tamanho maior, com seu pai ao lado de sua professora de

cello que ele conhecera naqueles tempos, quando em companhia do pai encontraram-se por acaso

na Confeitaria Colombo, na rua Gonçalves Dias.. Comendo uma coxinhas de galinha que eram a

especialidade da casa, divertia-se em observar, em vários ângulos, a figura da moça através dos

enormes espelhos que revestiam a parede. Foi a única vez que Mário a viu, mas a reconheceu na

fotografia. Ela era bastante bonita, com seus olhos azuis e cabelos louros, embora num penteado

nojento com dois rolos grandes sobre as orelhas e outro maior ainda no alto da testa. Parecia o

Mickey...

Não se lembrava mais do encontro, mas ficara com uma sensação de antipatia, talvez

porque ela (e o pai) não lhe tenham dado a menor atenção, ocupados que estavam em conversar

coisas que ele não entendia

Na foto, o pai em terno branco e sapatos de duas cores, posava ao lado da moça, vestida num

tailleur meio masculinizado, com grandes ombreiras, como então se usava. A professora segurava

um caderno de música.. Ao fundo via-se um piano tipo apartamento encimado por um quadro.

Devia ser na casa dela, onde o pai tinha lições de musica.

Numa destas incursões, resolve organizar a mesa de trabalho que Celeste deixara exatamente

do modo que ficara desde a morte do irmão, como uma espécie de respeito póstumo. Encontra

debaixo da pilha de papéis um caderno de música ou álbum de capa branca com uma clave de Sol

em dourado.

Mesmo revestido da blindagem emocional de que se munira ao longo dos anos, em relação

àquele dia Mário leva um susto. Era o caderno de música que estava na fotografia e o mesmo (ou

muito parecido), que a velha D Clara havia levado a sua casa na noite em que o pai morrera. Ele

vira tudo do andar, mas bloqueara a cena em sua memória, como era seu costume em relação a tudo

que significava problema ou sofrimento emocional, desde que a mãe saíra de casa.

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16 de Janeiro

Depois de vários dias sem coragem de entrar no escritório, Mário resolve encarar de frente

as lembranças.

Não fora nada fácil para ele ver a polícia chegando, dizendo que o pai estava morto, a tia

saindo aflita para o reconhecimento no Instituto Médico Legal. Voltou à sua mente o dia do enterro,

Celeste toda de preto, uns poucos amigos. A volta para casa, agora sem a presença do pai, o silêncio

no escritório, de onde não vinham mais os sons dos ensaios e as músicas que seu pai costumava

ouvir.

Entra no escritório, abre as janelas, pega o caderno sobre a mesa onde o deixara dias antes,

senta-se no sofá e começa a folheá-lo. A cada pagina, pautas manuscritas para exercício de

harmonia. Eram exercícios onde a professora escrevia a linha melódica (melo dado) ou a base

harmônica (baixo dado). Cabia ao aluno completar o resto, dentro das rígidas regras da harmonia

tradicional.

As paginas eram datadas, a primeira de 4 de Abril de 1941 e es outras com espaço de mais

ou menos 7 dias. Devia ser o caderno de suas lições de casa. Em cada rodapé vinha observações

dela: “muito bem” “regular, repita” etc.

Chegou na pagina, datada de 21 de Junho. Era uma folha pautada, igual ás outras, com

notas escritas mas no rodapé, em tipos maiúsculos e miúdos, quase escondidos algumas letras que

não faziam sentido. De inicio não deu muita bola, mas à medida que olhava começou a sentir a

desagradável impressão de que havia algo errado. Fechou o caderno e foi tomar um café.

Notas de 18/1

a) Meu pai recebeu o caderno de música na noite de 19.

b) Correu pro escritório e pouco depois saiu pra não voltar.

c) Saiu por alguma coisa escrita no caderno, um recado urgente ou um chamado.

d) A ultima anotação do caderno datava de 21/6

e) A data, como em todas as outras páginas estava escrita na mesma tinta,

ostensivamente no canto direito superior, no mesmo estilo que as outras. As letras sem

sentido estavam escritas em tamanho miúdo no rodapé.

Mário ficou matutando, tentando perceber qual poderia ser o sentido daquilo. De repente

concluiu: a data inexplicável e as letras eram o próprio recado. Em código!

Naquela tarde não foi ao Fluminense.

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19 de Janeiro

Péssima noite. Levantou-se várias vezes para consultar suas notas, voltava para a cama e não

conseguia conciliar o sono. Neste processo de idas e vindas, seu estado de espirito foi mudando.

Apercebeu-se de repente que, sem querer, estava com a chave do mistério da morte do pai, As

versões de Celeste sobre os bandidos, a oposição à ditadura de Getúlio Vargas ou a amizade com

comunistas não eram satisfatórias nem suficientes. Seu assassinato deveria ter conotação com coisa

muito mais séria daquela época. Até como um tributo á memória do pai, Mário achou-se obrigado

a esclarecer o mistério.

Decide então conversar com Celeste coisa que evitava sempre que podia. Após o café,

cercou-a na cozinha, seu habitat preferido.

Como nunca havia antes conversado mais profundamente com a tia sobre a morte do pai,

Mário ensaiou varias vezes uma abordagem. No entanto, quando abriu a boca, saiu curto e grosso:

- Tia, meu pai saiu com alguém no dia de sua morte?

- Saiu.

- Com quem?

Como estivesse informando as horas, Celeste responde:

__Provavelmente o Honório. Era o único amigo dele que eu conhecia o único que aparecia

por aqui.

__Como é que eu acho o Honório?

__Não sei. O que é que você quer com ele?

__Quero saber exatamente o que aconteceu com o meu pai. __Não sei, não. Aliás acho

melhor você não mexer nisto.

__Vou mexer.

__Bom, ele tinha uma irmã que dava os recados. Eu tinha seu telefone para casos de

necessidade. Nunca usei. Não sei mais onde está.

__Procure, tia.

Contrafeita, Celeste acaba cedendo:

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__Tá bem vou procurar.

Durante toda aquela tarde sentou-se na sala, para as investigações que ia fazer. A ideia de

telefonar para Honório, da extensão do telefone que seu pai tinha usado na noite fatídica, de alguma

forma o incomodava. Na primeira tentativa, o primeiro desapontamento - o número que a tia havia

dado, escrito em um pedacinho de papel de pão, havia sido mudado. Tenta informações, sem

nenhum sucesso. Claro. Vinte e sete anos depois, mesmo em uma companhia telefônica eficiente,

seria muito difícil descobrir. No fim da tarde subiu desanimado para um banho. Sem animo de ir ao

Fluminense. Desconfia que a tia está escondendo mais alguma coisa mas é impossível saber.

As sete horas desceu para comer. Na obscuridade das sala, cujas janelas estavam fechadas

para não entrar sol, notou que não estava sozinho.

Sentado em uma poltrona, tranquilamente, estava um Visitante.

Como havia entrado não sabia.

Mário sobressaltou-se.

__Quem é você ? Como entrou aqui ? O que você quer?

Para todas as perguntas, o visitante limitou-se a sorrir e dar de ombros. Devia ter uns trinta

anos, moreno, cabelo grande, vestido de Jeans suja, camiseta idem, sandálias idem, uma bolsa ou

saco a tiracolo, um sorriso tranquilo um ar vagamente ausente, enfim a figura típica daquele pessoal

intelectuoide que abundava nos filmes de arte do cinema Paissandu.

Embora intrigado e agora um pouco irritado, Mário contra qualquer lógica não se assustou.

__Responde, porra!

O Visitante levantou-se lentamente. Estendeu para Mário um papelzinho dobrado. Ao

aproximar-se Mário notou que por baixo da camiseta ele usava uma correntinha com a estrela de

David. Antes que Mário pudesse desdobrar o papel, o Visitante saiu pela porta, tão silenciosamente

quanto entrara.

No papel estava escrito:

Honório

(e um número na Rua Bela em São Cristóvão)

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28

Quem era o cara? Como sabia ? Quem o havia mandado ? Seria uma armadilha ? Seria um

terrorista ?

Ainda perplexo, Mário se lembrou de Shakespeare: Há muito mais coisas entre o céu e a

terra do que supões nossa vã filosofia. Curiosamente Mário não se preocupou. Apesar do ar

desdenhoso com que o tratara, o Visitante possuía algo que lhe inspirou confiança. Além do mais, o

importante era ter conseguido o endereço.

20 de Janeiro,

9:00 h

O telefone do ponto de taxis não respondia. De muletas, seria muito penoso ir até a Pinheiro

Machado ou a Rua das Laranjeiras. Mário já estava se sentindo impaciente, maldizendo a

companhia telefônica, os motoristas de taxi, a cidade e o mundo. As 10:20 conseguiu afinal. O taxi

toma o túnel Catumbi- Laranjeiras acaba chegando a rua Bela.

Decepção: O que seria uma casa era agora um prédio de após guerra, modesto, de 3 andares,

onde funcionava uma loja de tintas. No térreo um galpão com balcão de vendas. Nos andares

superiores, os escritórios. Pede ao taxi para esperar. Ninguém conhecia o antigo proprietário da casa

que virou prédio. Com dificuldade, Mário caminhou até o botequim da esquina. Um rapaz estava no

balcão.

__Sei não, mas talvez meu pai...

O pai, mulato gordo, simpático, vem de camiseta mostrando visível satisfação em entabular

o papo sobre seu conhecimento do bairro..

__O senhor deve estar se referindo a Lucinda.

__O senhor conhecia ela ?

__Ela mudou-se de bairro quando o prédio foi vendido.

__Quer dizer que perdeu o contato com ela?

__Ela vem as vezes aqui, para lembrar dos velhos tempos.

Parece que em sua primeira incursão ia conseguir alguma coisa.

__O amigo sabe como posso chegar até ela?

__Não, mas dê seu telefone que quando ela vier eu aviso.... ”

Page 31: O Código ISSenheim

29

Mário voltou pra casa um pouco desapontado com a evolução de sua pesquisa, que não

estava correndo com a rapidez que ele desejava mas esperançoso. Se dona Lucinda costumava ir ao

botequim, o dono ia descobrir um jeito de contactá-la.

22 de Janeiro

Diante da dificuldade de encontrar Honório, Mário resolveu pesquisar os jornais antigos, na

esperança de encontrar alguma notícia esclarecedora.

Vai ao Correio da Manhã e consulta os jornais dos dias 20 e 21 de junho de 1941. Acha uma

pequena notícia, na sessão policial, sobre um latrocínio ocorrido em frente ao Lamas. Um dos

homens, Mário Soares havia morrido no local e o outro, Honório de Tal, fora removido em estado

grave para o Miguel Couto.

Naquela noite, Mário resolveu ir ao Lamas, que não costumava frequentar., para tentar

visualizar os acontecimentos. Várias coisas haviam mudado no Largo do Machado, mas o velho

restaurante continuava lá. O mesmo balcão de frutas, na entrada, ao lado do qual ficavam as pessoas

aguardando mesas. Na entrada do salão o caixa para o pagamento do que é vendido nos balcões.

Mário entrou no salão já bastante cheio, com um zumbido altíssimo de conversas

entrecortadas por sonoras gargalhadas. Sentou-se numa mesa pequena, junto à parede e ficou

observando o movimento.. Encomendou um filé à francesa e um chopp. Comendo vastas porções de

pão com manteiga, à espera do filé, fica se perguntando como foi que ninguém viu nada, ninguém

reconheceu os atacantes. Conclui que em época de ditadura quem tem c.. tem medo.

24 de Janeiro

Nesta manhã, Mário acordou com muita dor. Talvez pelo esforço da véspera, a perna devia

ter inchado. Em uma clinica ortopédica, bem perto de casa o médico troca o gesso. A clinica tinha

convênio, Mário bastou assinar. Telefona em seguida para o Dr. Freitas. Mais 30 dias “no mínimo”

de repouso. Bendito Freitas...

Agora, mais aliviado, volta ao caderno.

vinte e um de junho de 1941

DC, HHHC, DEFE, C

(A, AGCBA, GFGA-A, AGCBAGAGF)

, AH, A, AHC, DA, CHA, HCD, A

Page 32: O Código ISSenheim

30

Ali estava a chave de tudo. mas era inútil. Não tinha jeito para adivinhações ou criptografia.

Lembrou-se do Justino, seu colega de escola, que adorava anagramas, tinha vários livros sobre os

hieroglifos egípcios e seu herói, Jean François Champolion, que os havia decifrado. Isto mesmo o

Justino! Mas como achá-lo ?

Lembrou-se do ultimo aniversário da turma. Tinham almoçado na Gaúcha a churrascaria em

que se comemorava a maior parte destas efemérides. Procurou o álbum de retratos e lá estava o

Justino. Sempre sério, óculos espessos, muito delicado, a figura clássica do menino criado pela avó.

Na fotografia estava também o organizador dos eventos: o Meireles. Este sim, dava o seu telefone, e

tinha os de todos os colegas, porque seu maior interesse era saber como estavam vivendo, quais os

casamentos, separações, sucessos e fracassos profissionais.

Na mesma noite, depois de ouvir um chatíssimo relatório sobre o estado civil e profissional

de cada ex colega, Mário conseguiu enfim do Meireles o telefone do Justino, para o qual ligou

imediatamente.

Justino não estava. Só ia chegar as 10h pois estava fazendo um curso, informou uma voz

feminina. Provavelmente a avó. Deixou o telefone.

Ao receber o chamado e depois de repassar o relatório sobre o estado civil e profissional de

cada ex colega, que ouvira do Meireles, Mário conseguiu explicar a Justino que havia desencantado

cartas antigas de sua avó para o noivo, nas quais apareciam códigos amorosos que ele estava

interessado em desvendar, pois estava elaborando um livro de família. Como o Justino também

tinha avó e gostava de códigos, resolveu consultá-lo. Desta vez escuta uma interminável arenga

sobre a beleza da iniciativa e o quanto o Justino se sentia honrado em ser participe e confidente dos

segredos amorosos da avó etc. Mário consegue enfim ditar as letras, descrevendo sua disposição.

__Tudo bem prezado amigo, vou pensar, vou estudar e vos telefono assim que lograr algum

resultado. Oxalá consigamos.

Oxalá... Só Justino mesmo... Com o ouvido doendo Mário enfim desliga.

Minutos depois, Justino telefona

__É estranho, só tem 8 letras. Deveria ser muito fácil, mas não e´. Deve estar ser ligado a

algum contexto independente de criptografia, como um livro, uma poesia. Neste caso é

quase impossível decifrar.

Que contexto ?

Page 33: O Código ISSenheim

31

3 de Fevereiro

As 6:45 da madrugada acorda sobressaltado com o telefone tocando:

__Mário, desculpe incomoda-lo a esta hora, mas como se diz na gíria, acho que matei a

charada

__E ai ?

__O contexto cultural da senhora sua avó compreendia por acaso a musica?

__Sim...

__Neste caso são as notas musicais.

__Mas as notas são sete, você tem oito letras

__Cáspite! Desculpe....

Mário voltou pra cama, p. da vida.

Mais Tarde.

Sem noticias de Lucinda. sem desvendar o código, Mário resolveu começar a examinar os

discos do pai. Devia haver centenas, em álbuns, cada um com quatro, cinco ou seis discos de 78.

Columbia, Decca, RCA Victor, Odeon. Alguns comprados na Palermo, no Largo da Carioca.

Outros em lojas européias. Bach. Mozart. Brahms, Beethoven. Stravinsky. Mahler. Prokofieff.

Schuman. Schubert....

lembrou-se da Missa de Bach. Era uma das favoritas do pai e se lembrava ainda de trechos

que, mesmo aos dez anos, mais o impressionavam. A tranquilidade que emanava do Christie,

cantado por um dueto feminino. A grandiosidade do final do Credo, “ expecto... venturi secula

amen”.

Procurou a Missa. Eram seis álbuns grandes, fazendo um total de trinta discos. Na lombada

de cada um lia-se

JOHANN SEBASTIAN BACH

HOHE MESSE IN H MOLL

BWV 232

******

BRUNO WALTER Conductor

Page 34: O Código ISSenheim

32

Abriu o álbum e apanhou o primeiro disco. Estava coberto por uma camada pegajosa, misto

de poeira e umidade, mas aparentemente em bom estado. Lembrou que o pai era extremamente

cuidadoso com seus discos, preocupado sempre em trocar agulhas depois de cada audição. Leu

novamente o selo onde estava:

Johann Sebastian Bach

Messe In H Moll

(Mass in B Minor)

Ficou olhando burrificado para o selo. Messe In H Moll (Mass in B Minor)

Eram realmente sete notas, mas oito letras.

Em alemão o H Moll deveria significar Si menor

Justino é um bosta...

O código havia sido aberto. Era sem duvida ingênuo. Nem seu pai, nem a professora

deveriam ser especialistas em criptografia. Provavelmente os dois improvisaram uma linguagem

bastante original comum a eles e que de qualquer forma demandaria algum tempo para ser

decifrada.

Pega um lápis, procura papel quadriculado, só acha na cozinha. (Ah, Celeste...).

DC, HHHC, DEFE, C

(A, AGCBA, GFGA-A, AGCBAGAGF)

A, AH, A, AHC, DA, CHA, HCD, A

A frase 2 continha um B e a frase 3 continha um H. Ambos eram Si ?. Se o H significava da

escrita alemã um Si natural, então o B, que vinha depois do A (La) tinha que ser Si alguma coisa.

Como Si sustenido não existe (é o Do natural), então B só poderia ser Si bemol. Bom. Presume que

as virgulas devam representar a separação de compassos. Escreve então as frases.

re do / si si si do / re mi fa mi / do

la/ la sol do sib la / sol fa sol la / la

la / la si / la / la si do / re la / do si la / si do re /la

Page 35: O Código ISSenheim

33

Dedilhou varias vezes as três frases. Nada. Como não havia indicação do andamento nem da

duração das notas ficava muito difícil reconhecer o tema. Precisaria de alguém com bastante

conhecimento, alguém que realmente ouvisse muita música para poder identificar.

A única pessoa que lhe veio á cabeça foi o Tio Luiz.

As oito da noite, cansado mas cheio de adrenalina, telefonou para o tio. Estava saindo para

uma reunião, mas marcou com Mário no Sábado as 16 horas.

Sábado, 8 de Fevereiro

Após quatro dias, pontualmente, as 4 da tarde Mário, muleta em punho, tocava a campainha

do luxuoso edifício da Avenida Rui Barbosa

Uma empregada jeitosa (o tio não perde tempo...), impecavelmente uniformizada o recebe e

convida-o a sentar.

__Dr. Luiz virá logo...

Enquanto espera, Mário ficou observando a enorme sala e a vista sobre o mar, a Urca e o

Pão de Açúcar ao fundo. Do lado esquerdo além de um Steinway meia cauda havia um espetacular

conjunto de som, toca discos Garrard, enormes caixas especiais inglesas e um amplificador

estereofônico Fisher de 300 W (150 por canal) além de uma grande estante, cheia de livros e LPs.

A mobília, os quadros, tudo ali transmitia um clima de cultura e refinado bom gosto. O

ambiente era moderno e confortável, com sofás e poltronas claras, combinando com alguns móveis

antigos e objetos de valor – abat-jours e jarras de opaline, algumas pratas, algumas pequenas

esculturas - além de quadros de alguns dos mais importantes pintores brasileiros – Guinard,

Portinari, Volpi, entre outros. Là, toute est paix e beauté, et luxe et calme et volupté lembrou-se

Mário de Baudelaire. E´ bom ser rico, pensou. Ainda entretido com a vista, não viu o tio chegar por

traz e colocar a mão no seu ombro, dizendo

__E´ bonito isto aqui.

Jovial como sempre, tio Luiz estava de calças brancas e um blazer azul, parecendo mais um

comodoro do Yate Clube.

__O que vai beber, Scotch ? Vodca ?

Page 36: O Código ISSenheim

34

Optam por um café, que vem servido pela mesma empregada bonitinha, num bule de prata e

canequinhas de porcelana horríveis. Mário conta do acidente, do Souza Aguiar, do incomodo em

tomar banho.

Após o café, Mário, medindo as palavras, conta apenas a descoberta que fizera no caderno

de música do pai. Estava interessado em conhecer os gostos musicais dele, mas tinha esbarrado com

aquelas anotações de solfejo que não conseguia identificar. Sabia que o tio iria tentar dissuadi-lo

caso ligasse a descoberta á morte do pai.

__Cheguei a um impasse, tio. As notas estão aqui, mas não sei quais são as musicas.

Dr. Luiz senta-se ao piano e dedilha várias vezes as três frases. Diz a Mário que uma vez que

não havia indicação da duração das notas nem do andamento ia dar um trabalho danado. Ia tentar,

mas precisava de tempo. Telefonaria depois.

Após o que atacou com certo brilhantismo o primeiro movimento da Patética de Beethoven,

sob os olhares e ouvidos invejosos de Mário.

__Puxa, tio como você consegue ? Além de tudo o que faz ?

__Não te iludas garoto, o Heinrich Heindrich, era um excelente violinista.

__Quem ?

__Heindrich. Era o terceiro homem da hierarquia nazista. Foi Gauleiter, uma espécie de

interventor, na Tchecoslováquia, um verdadeiro monstro. Foi assassinado por resistentes vindos da

Inglaterra. Como represália os alemães destruíram completamente uma pequena cidade chamada

Lidice, sendo seus habitantes homens fuzilados, as mulheres levadas para campos de concentração e

as crianças sumidas. E agora vá para casa que eu tenho que sair. O dever me chama !!!

Piscou maliciosamente o olho, levantou-se e foi embora encontrar-se com o “dever”.

Na volta para casa, Mário achou que é altura pra conversar novamente com a tia. Desta vez

seriamente. Após a janta, foi pra cozinha a pretexto de ajudar a lavar a louça.

__Tia, preciso de sua ajuda. Agora.

__Que é ?

__Quero saber tudo sobre a morte do pai

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35

Silencio. Celeste continuou a enxugar os pratos, a guarda-los e dar um jeito na cozinha com

uma lentidão enervante. Mário estava quase desistindo quando ela tirou o avental e sentou-se afinal.

Monocórdica e inexpressivamente, como se recitasse uma lição de história geral, Celeste começou a

falar:

__Seu pai era comunista. Fui eu quem o levou ao partido, mas ele nunca se filiou. Preferiu

ficar na linha auxiliar. Eu era do partido desde 1935, onde conheci um companheiro com quem

passei a viver. Conheci o Berger e a Elisa através dele, la na Rua Paul Redfern, no Leblon. Ewert

era o nome dele. Arthur Ewert. Mas era conhecido por Harry Berger. Tanto ele como ela foram

presos depois da intentona de 35. Elisa foi torturadíssima e depois mandada pra Alemanha, assim

como a Olga, mulher do Prestes. O Harry foi tão torturado que ficou louco. Naquela época fomos

perseguidos mas nunca fomos presos. Um dia, já em 37, meu companheiro sumiu. Pouco depois,

verifiquei que outros companheiros me evitavam. Fiquei muitos meses sem saber porque, até que

me contaram que ele era da policia, ou ajudava a policia, tendo entregado muitos de nós.

Desconfiara que o partido sabia e desapareceu. Eu estava gra...

__Estava o que tia?

__Nada. Fiquei muito desmotivada. Quando em 1939 a Rússia fez aquele pacto com Hitler

resolvi abandonar tudo.

__E aí, e o pai ?

__Seu pai atuava como elemento de ligação entre sua professora de música, Annelise e

agentes especiais da Rússia, por intermédio de Honório.

Inusitadamente, Celeste tem uma expansão de temperamento:

__Não gosto de Honório porque ele estava com seu pai e não o defendeu. É verdade que foi

baleado também. Além disto tinha tentado me cantar por diversas vezes.

Mário sorriu por dentro. Cantar a tia !!

__Pera aí, Annelise, espiã?

__Era. Ela foi cedo para Alemanha onde estudou música e tornou-se professora de Cello.

Parece que entrou no P.C. Alemão em 1934 e depois foi mandada para o Brasil para se infiltrar

na comunidade alemã e transmitir informações para o Komintern. Naquela ocasião, devia ter

uns trinta e poucos anos, bonita, do Paraná, Conheceu Otto, casou-se com ele. O Otto era um

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36

alemão rico, dono de uma tecelagem em Friburgo, onde aliás tinha também uma casa de

veraneio. Era alemão mas não era nazista. Herói da Primeira Guerra, recebeu a Cruz de Ferro.

Vivia recebendo em sua casa, grande parte da colônia alemã, inclusive o Cônsul e nazistas

disfarçados. Parece que adorava Annelise. Annelise ouvia todas as conversas na casa, nas

diversas reuniões que Otto, seu marido fazia com a nata da colônia alemã e provavelmente com

muitos espiões.

__E o pai ?

__Espere.

__Ela passou a dar aulas de música na casa dela, lá em Santa Teresa, onde seu pai ia.

Sabendo que seu pai era também comunista, criou-se a situação ideal. Passava, durante as aulas

informações para ele que as fazia chegar aos agentes estrangeiros.

Celeste calou-se por um longo período. Quando Mário já ia desistir, voltou a falar.

__Um tempo (não me lembro) antes de sua morte seu pai chegou preocupado.. Sentou-se e

me disse que não iria mais voltar a casa dela. Foi a única vez que falou no assunto. Disse que havia

perigo..

Depois, você já sabe...

E mais não disse nem lhe foi perguntado.

Mário ouviu todo o relato da tia com bastante tranquilidade, até mesmo com certa

indiferença.

Mas ao deitar, toda aquela calma desmoronou-se. Seu pai, aquela figura pacifica e meio

alienada, sua tia, aquela irritante pessoa acomodada em sua depressão e em seus mesquinhos

afazeres, ambos tinham realmente participado em um processo, arriscado suas vidas e pagos por

isto.

Enquanto ele, Mário, como tantos outros, considerando-se seres superiores, praticava suas

atividades revolucionarias em heróicos périplos nos bares cariocas.

Um grande sentimento de culpa, de vergonha, de frustração o invadiu. De repente estava

chorando, coisa que não fazia desde a derrota do Brasil pelo Uruguai em 1950

De madrugada, seu ato de contrição terminou. Estava, querendo ou não, comprometido,

apesar do desconforto que isto poderia significar.

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37

14 de Fevereiro

Tio Luiz telefona dizendo que tinha estado muito ocupado, por isto demorara tanto em dar a

resposta, mas achava já ter descoberto. Iria mandar no dia seguinte, pelo chofer um bilhete com seu

comentários. Assim evitaria ao Mário o incomodo de ir lá, de muletas.

Ao meio dia, um motorista conspicuamente fardado saltou de um não menos conspícuo

Willys Itamarati e entregou á Celeste um envelope branco. Dentro, o bilhete, manuscrito em papel

timbrado

Mário, aí vai o resultado de minhas “pesquisas”. Foi difícil descobrir e escrever a

partitura, mas aqui vai:

Temos 3 temas. Os 2 primeiros se referem a 2 movimentos da mesma peça, Alexander

Newski, escrita por Prokofiev para o filme de mesmo nome produzido por Eisenstein. Esta

peça fala do da defesa da Rússia contra a invasão dos hunos, por volta do ano de 1042 e

seu herói Alexander Newski. O primeiro tema é o do coral, cuja letra fala da grande

campanha da Rússia na guerra.

O segundo é o tema principal da Batalha do Gelo, que é outra parte da mesma peça.. Este

tema é muito mais conhecido que o primeiro, deve ser por isto que foi colocado entre

parêntesis para melhor identificar a peça.

O Terceiro são os 3 primeiros compassos de uma das 5 canções compostas por Gustav

Mahler sobre poemas de Ruckert. Esta foi chamada de Um Mitternacht – Á Meia Noite.

Boa sorte e um abraço.

Page 40: O Código ISSenheim

38

rokofiev Mário conhecia e bem. Respeitava e gostava do compositor da Sinfonia Clássica,

do Romeu e Julieta e Amor por Três Laranjas e a deliciosa “Abertura em um Tema

Hebreu”. Supreendia-se de como um compositor tão obediente ao Partido, (não por

subserviência, mas por convicção) tivesse tanta latitude criativa.

Houve época em que se entusiasmara com Mahler. “A Canção da Terra” e as sinfonias,

sobretudo a Segunda – Ressurreição- haviam sido fervorosamente ouvidas no “Circulo Mahler”, um

grupo de amigos intelectualoides. Agora porém, ouvia-o com dificuldade. Mahler exsudava em suas

obras um clima obscuro, mórbido, meio doentio, fruto de sua ambígua identidade. Tanto que em

carta sua a Freud, (que foi seu analista em apenas uma sessão) ele confessava não saber ainda se era

um compositor erudito ou de Café Concerto..

Do Eisenstein, só tinha visto no Paissandú o “Encouraçado Potenkin”, que achara muito

chato. Aliás, aqueles filmes do Paissandú, sobretudo os franceses da chamada “Nouvelle Vague”

eram pedantes e insuportáveis, com todos aqueles intermináveis silêncios entre os personagens que

viviam em permanente mau humor. Cultura tudo bem, mas cinema é diversão. Bom mesmo era “O

desafio das Águias”, que vira em uma pré estreia.

Aquela hora de um dia de Sábado seria difícil encontrar uma loja de discos aberta. Mas

precisava ouvir as músicas. Descobre sem dificuldade os dois álbuns na estante do pai.

Metodicamente tira os livros dos álbuns, leva ao banheiro e lava um por um com sabão de coco, que

era o procedimento que conhecia para discos velhos. Seca pacientemente e somente ás 3 horas se

dispõe a ouvi-los.

A vitrola seria um desafio. Sem ser usada há quase 30 anos, oferecia pouca chance de

sucesso. Mas obedeceu lindamente. O auto falante, embora roufenho reproduziu fielmente os 30

minutos da peça de Prokofiev, regida por Leopold Stokowski. Mário lembrava-se vagamente da

Batalha no Gelo, um tema empolgante. Já do coral, traduzido em inglês como “ In a great campaign

Rússia went to war”9 ele não se lembrava. Tomou nota mental para comprar uma gravação em um

civilizado LP.

O álbum seguinte era intitulado “ Five Ruckert Songs”, cantado por um tenor. O “Um

Mitternacht” (à meia noite) tinha o mesmo clima mahleriano com um final brega..

La pela 6 horas, Mário fez um inventário de todas as informações:

Notas de 14/2

1) a data insólita de 21 de junho de 1941, escrita no alto da página

9 “Numa grande campanha (militar) a Rússia entrou em guerra”

P

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39

2) a Meia Noite

3) a invasão da Rússia pelos Hunos

1+2+3= A invasão dos hunos (alemães) iria acontecer a meia noite do dia 21 de junho

de 1941

Vai á Enciclopédia Britânica, edição de 1960, comprada em 12 módicas prestações.

.... ás 3:00 horas da manhã de 21 de junho, sem quaisquer aviso prévio, as tropas da

Wehrmacht transpuseram as fronteiras da Rússia, dando início á chamada Operação

Barbarrossa.

O aviso estava errado por 3 horas...

O ESTADO DE S. PAULO

ABNER MOURÃO DIRETOR INDICADO PELO CONSELHO NACIONAL DE IMPRENSA

CHANCELER HITLER DECLARA GUERRA `A UNIÃO SOVIÉTICA

WINSTON CHURCHILL DEFINE POSICÃO BRITÂNICA

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40

10 de Março, 9:00h

Às sete e meia da manhã, o telefone toca.

__Dr. Mário, aqui é Lucinda. O Mailson aqui do bar disse que o Sr. estava me procurando e deu seu

telefone.

__Até que enfim a senhora telefonou. Estou procurando saber do Honório, que foi muito

amigo de meu pai.

__O Honório mora comigo agora. O Sr. gostaria de visitá-lo? Ele ficaria contente...

Deu um endereço no Meier, uma transversal da Carolina idem..

Era um prédio de apartamentos populares, construído pelo BNH lá pra traz, quatro andares,

inúmeros ou mais apartamentos por andar, sem elevador, muito modesto porém limpo. Lucinda

mora no segundo andar, para alivio de Mário que sobe com dificuldade.

O apartamento tinha uma salinha pequena e um quarto, além de pequena cozinha e banheiro

que Mário não viu. Na salinha, uma televisão preto e branco, uma geladeira com um pinguim de

louça em cima, um sofá- cama, uma mesa e cadeiras baratas, um pequeno aparador. Honório,

sentado no sofá-cama o recebe de bermudas e chinelo. Fica muito contente com a visita. Embora

envelhecido, desleixado, a barba por fazer, Mário descobre que ainda era uma pessoa inteligente e

com grande memória da historia daquele tempo.

__Foi um tempo muito duro. Naquela época a barra era muito pesada. Parece que agora

também. No tempo do Castelo, ele dizia que não tinha tortura, Não tinha uma porra! Mandou o

Geisel, o Orlando investigar. O milico ia a cada quartel e perguntava:

“Aí tem tortura ?”

“Tem não general ! tortura não.”

__O milico anotava em um caderninho e ia pra outra. Voltando, lá pra traz o Getúlio

namorava ostensivamente com o Hitler. Tínhamos o nosso nazismo domestico, o integralismo, mas

parece que ele gostava mais da suástica importada do que do Sigma tupiniquim do Plinio Salgado.

O filho do Getúlio, o Lutero tinha até fotografia fardado de nazista. Ao lado do Ribentropp imagine.

No exercito uma porrada deles. O Dutra e o Gois Monteiro por exemplo... O Prestes estava preso.

Incomunicável. Somente o Dr. Sobral Pinto podia falar com ele. E para isto teve que invocar a lei

de proteção aos animais. Apanhamos muito. Depois que o GeGe caiu, o Partido voltou á legalidade.

Tivemos até uma candidato pra presidente, o Yedo Fiúza, chamavam ele de Rato. Ele não era rato

não coitado, era um engenheiro de Petrópolis. Meio burro mas gente séria. Mas durou pouco. O

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41

Dutra depois de eleito jurou que ia acabar conosco e não descansou enquanto não conseguiu. La

pros fins de 46 inventaram que o PCB era inconstitucional porque tinha dois estatutos. Um fajuto e

outro secreto que filiava o Partido á Internacional Comunista. Em maio de 47, o Supremo ia decidir.

Sete de Maio, me lembro bem. Afinal, o meu estava na reta. Haviam cinco juízes, dois, o Sa Filho e

o Ribeiro da Costa a gente achava que ia votar corretamente, contra a cassação. Os outros três a

gente não sabia. Na véspera do julgamento o Prestes foi avisado que o Rocha Lagoa votaria contra

se pagássemos de dez mil cruzeiros. O Rocha ainda vive no Rio, é um pervertido sádico, corrupto,

um bom filho da puta. Mas não é que o Prestes recusa? Resultado, três a dois contra nós. Em janeiro

de 48 voltamos pra ilegalidade. Ai fiquei chateado. O Prestes podia ter dado aquele dinheiro e a

gente continuava a luta dentro da Câmara e do Senado. Afinal, tínhamos naquela época um senador,

o próprio Prestes e quatorze deputados como o Marighela, o João (Amazonas), o Grabois, o

Gregório Bezerra, o Jorge Amado !!! Mas não. Queria bancar o mártir mais uma vez. Tudo bem pra

ele, mas nós estávamos levando porrada há tanto tempo já estávamos cansados. Saí do Partido

menos de um ano depois. Arranjei um emprego, depois uma aposentadoria e cá estou. Moro com a

mana você quer uma cerveja ?

Tudo de chofre, Mário não entendeu.

__Hãã ?

__Quer uma cerveja menino ?

__Ah, sim, quero.

Bebem uma cerveja meio morna porque a geladeira estava com defeito.

__O caso de teu pai foi chato. Muito chato mesmo. A moça contava a seu pai o que ouvia dos

chucrutes. Ele me telefonava eu as passava para o Hugo. Só informações. Sem nomes. O Hugo era

do Komintern, encarregado de fazer passar informações para a URSS. Naquela noite porém, seu pai

insistiu pra falar diretamente com ele. Foi o que o perdeu. Quando saí do hospital, um mês depois,

fui procurar o Hugo, mas nunca mais o encontrei. Hoje estou convencido que ele pertencia a algum

grupo paramilitar que colaborava com a policia. Existiam muitos. Ouvi dizer que ainda existe....

__Nunca aconteceu nada com você antes?

__Não. Acho que as informações não eram relevantes, era mais importante manter os

informantes ativos. Mas o mais triste é que tudo aquilo teria sido inútil, mesmo que o aviso tivesse

sido enviado pros russos, o que duvido. A Rússia havia sido avisada meses atrás, por várias fontes e

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42

não acreditou. O embaixador russo nos Estados Unidos foi pessoalmente avisado pelo Summer

Wells. O Embaixador Cripps, da Inglaterra avisou pessoalmente Stalin. Stalin achava que era

armação dos ingleses. Houve até um agente comunista alemão, o Richard Sorge, que foi informado

na Embaixada da Alemanha em Tóquio, onde se fazia passar por nazista. Sorge informou Moscou

mas ninguém deu bola. No fim, seu pai estava passando a informação certa para a gente errada....

Honório ficou longo tempo em silencio. Depois falou:

__Sinto-me culpado pela morte deles.

__Culpado ?! Porque culpado?

__Nunca devia ter deixado eles agirem. Eles eram amadores, nunca haviam sido treinados,

nós fomos muito irresponsáveis, vê no que deu....

__Você falou eles ?

__Seu pai e a moça...

__Annelise?

__Sim, quem mais? Ela foi assassinada na mesma noite. Na própria casa. Nunca se soube por

quem, mas não é difícil imaginar.

FIM DO SEGUNDO ATO

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43

Da perna quebrada até o encontro com Honório, Mário tinha vivido uma experiência única

em sua vida. Mas estava acabada. Restava voltar ao dia a dia de sua existência. Mas embora tivesse

consciência de um dever cumprido, Mário sentia-se melancólico e frustrado.

Resolveu voltar ao grupo de análise, que ia regularmente duas vezes por semana já há dois

anos, mas que interrompera com o acidente pretextando dificuldade de locomoção.

O consultório do Dr. Daniel ficava no sexto andar de um prédio antigo na Rua Santa Clara

cujo térreo era habitado por enorme loja de roupas femininas. Ás seis e cinco Mário entrou, mas a

Glória já estava falando. Glória era gorda, seus quarenta e cinco anos, casada com um industrial que

não lhe dava bola. Monopolizava quase todo o tempo da seção com intermináveis angustias

existenciais sobre sua relação com o marido, os filhos e principalmente com a empregada.

Mário estava apertado nas calças para falar, e só faltavam quarenta minutos para o Daniel

consultar o relógio e murmurar “estamos terminando”.

Pediu delicadamente:

__Gente, por favor, preciso falar!

Mas Glória continuava imperturbável.

Mário não se conteve:

__Porra! Nunca falei aqui e agora já disse que tenho uma coisa urgente e importante

continua esta mulher a encher o saco com estas merdas!

Glória murmurou, com lágrimas nos olhos:

__Pode falar.

Mário então, falou tudo, de um chofre. O grupo ouviu em silencio e o próprio doutor atrasou de sete

minutos o “bem, estamos terminando”.

Terceiro Ato

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44

10 de Abril

O gesso fora retirado, mas Mário continuava ainda sob licença médica, cortesia do Dr.

Freitas. Resolveu voltar ao trabalho. Pelo menos para se distrair. Achou bom a seção de análise.

Fizera sua catarse e sentia-se melhor. As seis em ponto estava novamente no consultório do Dr.

Daniel.

Estavam todos, provavelmente para fazer perguntas sobre tudo o que Mário dissera na

ultima sessão.

Glória, a inefável Glória, tomou imediatamente a palavra.

Mas surpreendeu a todos.

__Mário, fiquei pensando muito sobre o que você disse. Tem uma coisas que não entendi.

__O que ?

__Você disse que na noite de 19 de junho de 1941 seu pai recebeu da D. Clara? é D. Clara,

um caderno de música, onde se encontrava, codificado, um aviso da invasão da Rússia pela

Alemanha.

__Disse

__Você disse também que viu o caderno ser entregue, seu pai subir apressado as escadas e se

fechar no escritório provavelmente para decifrar a mensagem e telefonar para o cara.

__O Honório. Disse isto também. Não, espere! Ele só telefonou depois de devolver o caderno

á velha.

__Então, meu querido, se foi devolvido, como é que você achou o caderno??

Mário levantou-se de súbito. Sob os olhares perplexos do grupo avançou para Glória e a

beijou na boca. Ato continuo, deu um beijo na careca do Dr. Daniel e saiu ventando pela porta.

Naquela sessão, ninguém falou mais nada.

Page 47: O Código ISSenheim

45

ão mais voltaria ao trabalho. Havia muito mais coisas a serem vistas. Estava

profundamente enraivecido. Chegando em casa, Celeste tinha ido ao supermercado.

__Filha da puta!! disse alto, se apercebendo depois que a puta seria a própria avó.

Esperou a tia na porta, tentando se acalmar. Surgiu Celeste bufando, com duas sacas de

compras. Mário nem esperou ela entrar direito:

__Porra tia..

__Que é meu Deus ?

__Você não foi honesta comigo, sua... sua.. Explique como a merda do caderno está aqui se

D. Clara o levou de volta.

__Eu hein...

__Vamos, explique

__Como ? Pensei que você soubesse: Na mesma noite em que seu pai morreu, Annelise foi

também assassinada. D Clara esteve aqui uns dias depois e entregou-me o caderno e mais

uma coisas que teu pai havia deixado, rolo de partituras, sei mais o que., botei lá no

escritório, onde você achou.... Eu te contei isto...

__Não contou nada sua..

Celeste estava quase chorando. Mário ficou com pena e a abraçou desajeitadamente. Ah tia.

Mário voltou ao caderno de música folheia-o mais uma vez. Havia parado na pagina datada

de 21 de junho. Não tinha ido além. Mas havia um além: a ultima página.

Decepção: em branco!

Quase fechando notou pelo tato que era mais grossa que as outras. Eram duas paginas

coladas! Com infinito cuidado, Mário as descolou.

Não havia data.

(0, 0, 0) (0, 1, ½) (-½, -1, -½)

(0, 1½) (2, 1½) (-4½, 4) (- ½, -½) (- ½, -½) (0, -½ - ½, -½)

(-1, -1, -1, -1) (2, 5)

0 (0, ½, 0, 2, 5) (-½, 0, 1,) (0, ½, 0, +2, 5, -½)

Pânico!

N

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46

Parecia uma equação matemática. Tinham alterado o código !!E agora?

Acalmou-se. Como o pai não tinha conhecimentos matemáticos, aquele código devia ser

também relacionado com algum aspecto musical. Fez um esforço de memória para se lembrar de

todos os fundamentos de música que aprendera. Não foi difícil. Afinal conseguira, após anos, tocar

por inteiro o “Fur Elise”, cuja lembrança ainda provocava náuseas.

A base deveria ser a mesma, a de notas musicais. Logo os números deviam representar os

intervalos entre as notas. Os números sem sinal deviam ser os intervalos cromáticos, de meio tom, a

ser somado á a nota precedente e o sinal de (–) a ser diminuído.

Mas a nota inicial ?? Não importava. Qualquer que fosse, a sequência melódica seria a

mesma, só que em outro tom. Como se fosse uma modulação.

Porque modificaram o código? Lógico, porque se a primeira mensagem fosse decifrada, a

segunda demoraria mais tempo. Introduzia mais um elemento de confusão.

Voltou ao papel quadriculado: Na primeira linha escreveu as sete notas, a partir do Dó e seus

cinco bemóis Escolheu o Dó para a nota inicial. Era mais familiar. Na segunda os intervalos

semitonais que as separavam. Na terceira os intervalos em relação ao Dó.

do reb re mib mi fa solb sol lab la sib si do

0 ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½ ½

0 ½ 1 1, 5 2 2, 5 3 3, 5 4 4, 5 5 5, 5 6

Em seguida concluiu:

Primeira frase

(0, 0, 0) (0, 1, ½) (-½, -1, -½) ½ (do do do) (do re mib) (re do si) si

Segunda frase

(0, 1½) (2, 1½) (-4½, 4) (- ½, -½) (- ½, -½) (Do Mib)(Sol Lab) (Si Sol) (Solb Fa) (Mi Mib)

(0, -½ - ½, -½) (-½ -1, -1, 2½)

(Mib Re Reb Do) (Si La Sol Do)

Terceira frase

0 (0, ½, 0, 2 ½) (-½, 0, 1) (0, ½, 0, 2 ½, -½) Do (Do Reb Reb Solb) (Fa Fa Sol) (Sol Lab Lab Reb Do)

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47

Desta vez, Mário hesitou em perguntar ao tio. Aquilo poderia ficar meio suspeito. Sentou-se

ao piano e começou com a primeira frase.

De inicio assumiu um compasso ternário. Nada significava para ele. Passou para

quaternário,

Neste compasso começou a se esboçar uma vaga lembrança. Não era completamente

estranho, mas não havia jeito de lembrar.

Resolveu passar para a segunda frase. Depois voltaria a primeira. Agora sentiu o quanto o

tio deveria ter trabalhado da primeira vez.

Mesmo sem ter acabado de dedilhar, Mário sentiu uma súbita euforia. Claro ! Era um dos

poucos discos que possuía em LP. Sabia tudo sobre esta obra, que considerava uma obra prima de

Bach.

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a primavera de 1747, quando em visita a Postdam, Bach encontrara-se com o Rei

Frederico o Grande da Prússia, que lhe propusera um tema improvisado no teclado de

um “piano al forte”10(1) para o mestre desenvolver. O que resultou foi um magistral

conjunto de Fugas, Canons, Ricercares e uma prodigiosa sonata em 3 movimentos, nos quais o tema

aparece de alguma forma. A peça fora composta para flauta transversa, violino, viola cello e cravo.

Bach intitulou a peça de Oferenda Musical – Musikalishes Opfer- e dedicou-a ao Rei:

“Com a mais profunda humildade dedico aqui a Sua Majestade a Oferenda Musical, cuja

parte mais nobre provém da Própria Augusta Mão de Sua Majestade... ”

Com adrenalina a mil, Mário colocou o Lp em seu conjuntinho portátil. No verso da capa do

disco estavam indicadas as diversas partes da composição e em um Canon havia uma anotação:

“Quaerendo invenietis” e a tradução: “Procure e encontrarás”.

Mário não procurou pensar muito. Era uma instrução para procurar, provavelmente já

anteriormente usada entre os dois, bem ao gosto daquela dupla romântica de espiões improvisados,

aqueles maravilhosos porra loucas que pagaram com a vida seu amadorismo.

Meio deprimido, Mário retornou à segunda frase..

Depois de novamente dedilhar ao piano, passou a assobia-la. Ele conhecia!! A música

evocava toda uma atmosfera muito familiar mas profundamente enterrada em sua memória. Sentia o

ambiente, os sons e até os cheiros.

Mas não foi antes de uma noite tumultuada, cheia de falsas lembranças e imagens muito

difusas que Mário se lembrou: o pai ensaiava irritante e obsessivamente aquelas notas ao Cello,

alternando os ensaios com audições do disco, ad nauseam. Era obviamente uma peça de câmera,

uma sonata, um trio ou um quarteto. Não foi difícil. Além das peças para piano solo, corais,

orquestrais e vocais, havia a Sonata Kreutzer de Beethoven, (que era para violino e piano, logo não

servia) e um quarteto de Schubert... Escolheu o primeiro disco dele pois intuía que a frase deveria se

referir ao começo da obra. Mesmo sem o ritual de lavagem colocou na ancestral vitrola. Logo de

inicio para. Volta o disco e escuta mais uma, duas três vezes. Era aquilo mesmo. O chiado do disco

10 “Do fraco ao forte”. Sendo o cravo um instrumento que tange as cordas, é impossível controlar a intensidade do som. A tecnologia da época desenvolveu um instrumento que percutisse as notas, facultando assim tocá-las com maior ou menor intensidade. Daí o “piano al forte”, precursor do piano.

N

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49

não conseguia esconder o tema principal do primeiro movimento do quarteto de Schubert, Der Tod

und das Madchen, ou A Morte e a Donzela !!!.

Mário se permitiu ouvir toda a obra. A plangência do segundo movimento o impressionava

vivamente. E o deprimia também.

Depois, fez as anotações de hábito:

Notas de 10/4

1º Tema – A Morte E A Donzela –

2º Tema - Procure e Encontrarás –

O QUE?

Estava quase completa a mensagem. O primeiro tema relacionava-se com a morte anunciada

de Annelise. O segundo era uma instrução de procurar. O objeto da procura certamente estava na

terceira musica.

Mas o dia 10 de Abril terminou sem que Mário, exausto, pudesse identificá-la.

No dia seguinte Mário acordou cedo, la pelas seis horas, decidido a procurar novamente o

Honório. Não podia continuar sua pesquisa “acadêmica” sem o auxilio de dados mais reais. Sem

pensar sobre as horas, saiu de casa sem nem tomar café, chegando ao Meyer ás sete e meia. Pelo

tom do “quem é ?” Honório devia estar dormindo. Quando abriu a porta já estava vestido. Sorriu.

__A gente adquire o habito para não ser levado preso de cuecas...

Mário explicou que Annelise tinha enviado uma mensagem informando quem seria (como

de fato o foi) seu assassino. Existia um nome ou um documento escondido em algum lugar. O

paradeiro do Hugo devia ser urgentemente achado.

Honório pensou um pouco.

__Posso investigar...

__Veja bem, Honório, sem levantar a lebre...

__Menino, se você tivesse mais alguma coisa na cabeça além de merda, saberia que sou um

profissional, porra!... ou pelo menos era...

__Então venha, vamos tomar café no boteco, eu pago...

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__Mário, preste atenção: isto pode ser perigoso, muito perigoso. Esta gente deve estar

metida com os gorila...

Já em casa, Mário voltou ao escritório depois de outro café tomado com calma. Decidiu que

podia descobrir, mas precisava de método e calma. Em uma primária associação de ideias, lembrou-

se de Emmanuel Kant.

Há cerca de uns dois anos, movido menos pelo interesse filosófico do que pelos atrativos de

Fernanda, Mário fora assistir, como ouvinte a um seminário sobre a Critica da Razão Pura, na PUC.

Fernanda era o seu affair do momento, ou melhor, o seu projeto de affair, cujas magnificas

pernas eram exponenciadas pelas mini saias, providencial invenção de Mary Quant, então em plena

moda. O belo bosque da Marquês de São Vicente adquiria à noite aspectos menos universitários e

nada católicos, um poético abrigo para belas sacanagens. No entanto Mário interessou-se pelo

genial mestre de Koenigsberg (hoje Kaliningrado) em particular pela sua epistemologia. Embora

não mais se lembrasse dos imperativos categóricos e categorias a priori, recordava-se ainda de que o

sujeito busca no objeto os atributos que ali previamente colocou. Logo o objeto seria irreconhecível

pelo sujeito caso ele não tivesse colocado ali os atributos. Ou algo parecido.

Partiu assim do principio que seu pai deveria possuir a gravação. Seria muito improvável

que, em sendo parte de uma mensagem urgente, seu pai tivesse que conseguir a gravação fora de

seu escritório, caso precisasse urgentemente conferi-la. A menos que fosse um tema muito obvio..

Não era. Os intervalos da música eram estranhos, de difícil memorização, sugerindo um estilo

moderno.

Mais fácil.

Mário riscou da lista que fizera todos os clássicos, barrocos e românticos. Sobraram o

Prokofiev, Stravinski, Richard Strauss (para espanto de Mário, como seu pai tinha composições de

um nazista?!), Schoenberg, Hindemith e Darius Milhaud. Começou por Schoenberg. O Verklarte

Nacht, a Noite Transfigurada. Embora as notas dos primeiros compassos em nada coincidissem com

as que tinha, Mário ficou impressionado pela obra e a ouviu inteira. Após uma hora, estava derreado

pela trágica suntuosidade do “ultimo uivo do romantismo”, onde o autor se despedia

magnificamente das formas harmônicas conhecidas e partia para a ambiciosa aventura do

dodecafonismo.

Após o almoço, Mário decidiu-se pelo Hindemith. Havia duas obras apenas, as

“Metamorphoses sobre um tema de Carl Maria Von Weber” e “ Mathis der Mahler. ” Escolheu o

“Mathis”. Bingo! Mário conferiu por diversas vezes os nove compassos, repetindo-os ao piano e

comparando com o disco.

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As notas eram aquelas. Mas e daí? Quem era Mathis der Mahler. ??

O “Dicionaire” era de uma edição de 1935. Nada continha sobre o assunto. Mas a

Enciclopédia Britânica tinha tudo.

Paul Hindemith era um compositor alemão morto em 1963. A obra em questão versava

sobre o pintor do século 16 Mathis Grunwald. Fora composta inicialmente como ópera, e transcrita

para forma sinfônica a pedido de Wilhelm Furtwangler. Pouco depois de sua apresentação em 1934

Hindemith, mal visto pelos nazistas, teve suas obras proibidas na Alemanha. Furtwangler vindo em

sua defesa, perdeu o cargo de diretor da Orquestra Filarmônica e da Opera de Berlim cargos que

viria a recuperar mais tarde, em imperdoável concessão. Hindemith fugiu para a Suíça e depois para

os Estados Unidos.

Mathias, o pintor. Então Mahler significava pintor, em alemão. Bom. Vivendo e

aprendendo. Tinha agora que verificar o que o Mathis tinha pintado. Mário deu os tramites por

findos e exausto foi para o Fluminense beber uma Brahma.

Mais tarde, preparando-se pra dormir, Mário desceu pra tomar um copo de água. Ao entrar

na sala abafada sentiu novamente a presença silenciosa do Visitante. Não acendeu a luz. Sem uma

palavra, o Visitante estendeu um papelzinho.

Desta vez Mário agradeceu. Já estava sentindo uma certa simpatia por aquela misteriosa e

irritante figura, uma certa cumplicidade mesmo.

Mas antes que se desse conta estava novamente só, o Visitante já tinha se esgueirado tão

sub-repticiamente quanto entrara. Mário não se apressou. Tomou sua água e voltou para o quarto.

Na cama, abriu uma engordurada folha de bloco pautado, escrita em caligrafia infantil:

o Hugo chamava-se Klaus, mas era apenas um executor. Tinha gente mais graúda em cima. Gente

que ainda está por aí...

O Honório estava certo. Era preciso tomar cuidado agora com estas pesquisas.

Mário alterou seus planos. Tinha programado investigar no dia seguinte o pintor, mas algo

dizia que deveria esclarecer coisas, mais importantes. A visita que programara a D. Clara tinha

prioridade.

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12 de Abril

Fora uma noite estranha. No calor sufocante, apesar do ventilador, Mário passou a noite em

um torpor, meio sonhando, meio acordado. Por uma vez acordou sobressaltado, achando que não

estava sozinho no quarto. Acendeu a luz, desceu as escadas e verificou a porta de entrada. Estava

trancada. Decidiu procurar de manhã o Dr. Freitas para pedir um tranquilizante. Ao acordar porém,

notou um bilhete dobrado em sua mesa de cabeceira. Não fora sonho...

No bilhete estava um numero de telefone e por baixo

Clara Vogel

Para espanto de Mário, que tinha ensaiado toda uma história para pedir a D. Clara que o

recebesse, esta não demonstrou qualquer espanto com o telefonema dado assim que terminou o café

da manhã. Com algum sotaque germânico diz que ele pode vir a qualquer hora, e deu o endereço.

Qualquer hora quer dizer agora. Um providencial taxi está quase na porta.

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53

Rua Aarão Reis é uma transversal da Almirante Alexandrino em Santa Teresa.

Por alguma obscura razão, o bairro há muito tornara-se o habitat de grande

número de alemães e suíços. A casa, fora construída em estilo Normando

estilizado, como estilo preferido dos muitos alemães e suíços que ali habitavam. Devia ter sido

muito boa, pois era grande, sólida, com aquele conforto sóbrio muito germânico. No momento

porem parecia fantasmagórica. Todos os móveis estavam cobertos de capas brancas,

imaculadamente limpas. Todo o andar de cima estava desocupado. O que fora uma saleta de visitas

era agora o quarto de Otto, que alternava o leito com uma poltrona, absolutamente mudo, ausente

do mundo. A velha habitava o quarto de empregada, como sempre o fez.

Com seus setenta e muitos anos era bastante lúcida e informada.

__Nunca tinha ido antes em casa do Sr. Mário. Até um ou dois meses antes ele frequentava

regularmente esta casa para tomar aulas com Annelise. De repente nunca mais veio. Sumiu. Eu

entregava o caderno de música na padaria que havia aqui perto e dois dias depois apanhava de

volta... Todas as semanas. Até aquela noite, quando Annelise me procurou muito nervosa pedindo

que levasse o caderno de música, esperasse e o trouxesse de volta. O Sr. Mário saberia o que fazer.

Foi o que fiz.... Quando voltei, entreguei o caderno a ela, que pareceu aliviada.

Fui dormir. Lá pela meia noite, bateram em minha porta. Era o Sr. Otto, ainda sem se trocar,

de terno e gravata. Entregou-me um pequeno.. vamos dizer médio envelope pardo, colado e pediu-

me para entrega-lo á Annelise. Como eles dormiam em quartos separados eu disse ao Sr. Otto que

ela já devia estar dormindo. Ele parecia muito perturbado. Disse-me para acorda-la e entregar o

envelope. Depois se virou para dizer-me alguma coisa, mas desistiu. Foi para seu quarto. Lá de

dentro ouvi uma música tocando. Era o Deutschland Uber Alles, o hino alemão. Ele tinha uma

vitrola no quarto.. Fiquei arreiada, não, arrepiada, mas entrei no quarto de Annelise e acordei ela.

Ela abriu o envelope de costas para mim e ficou lendo um grande tempo. Eu ia me retirar

mas ela falou que ficasse. Quando se voltou estava lívida, sabe, muito branca. Pediu-me para ficar

no meu quarto, que ela chamaria depois. Desceu para o porão e mais ou menos uma hora depois me

chamou. Pediu-me que guardasse o caderno de em lugar seguro, junto com outras coisas, uns rolos

de papeis, um casaco. Disse então que se alguma coisa, qualquer coisa acontecesse com ela eu

deveria imediatamente levá-lo escondida ao Senhor Mário. Imediatamente. Tive então aquele

pressentimento, sabe?

Foi a ultima vez que a vi, viva. Custei muito a dormir, mas acabei pegando no sono. Por

volta das cinco da manhã eles entraram aqui pela porta, veja só. Não arrombaram. Foram direto ao

quarto da menina. Quando ouvi os tiros vesti-me com o roupão e corri para lá; Annelise estava

A

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caída na cama de camisola, o senhor Otto, ainda todo vestido, com a cabeça ensanguentada caído no

chão.

Annelise já estava morta. O senhor Otto ficou assim como você vê. Acho que ele entende as

coisas as vezes. Mas é só. Somente no dia seguinte consegui sair para entregar á senhora Celeste o

caderno e as outras coisas.

Mário fez perguntas sobre a época.

__Recebiam muito. Industriais, representantes de firmas, banqueiros, ex funcionários da

Zeppelin, já extinta. corpo diplomático, adidos... Gente de cá, inclusive alguns militares do Brasil.

Não me lembro mais das visitas. Só de um. Vinha sempre acompanhado de um outro, um tal de

Klaus que não ficava na sala. Uma vez ouvi o outro o chamar pra ir embora. Ficava na cozinha

olhando pela janela. Vai ver que vigiando... Um tal de Klaus! O Hugo!

Mário mal conseguiu esconder o susto. Para se controlar pediu para ver a sala de música,

onde seu pai tomava lições. Lá estava como imaginava, o piano, as estantes.. tudo muito

empoeirado. Na parede do fundo um pôster colorido anunciando um festival de música em Colônia

em 1960. D. Clara explicou que depois da morte de Annelise, uma sobrinha do Otto tinha há alguns

anos utilizado a sala para dar também lições de musica. Ficou alguns meses...

Já em casa, Mário retorna ao seu caderninho de notas e comparando com as notas anteriores

escreve:

1) Meu pai recebeu de Annelise e forneceu ao Partido um aviso de que a Rússia ia ser

invadida.

2) No processo, foi descoberto e assassinado.

Por quem ?

Por alguém infiltrado no Partido.

3) A Segunda mensagem evidenciava que Annelise previa seu assassinato (A Morte e a

Donzela,)e mandava procurar (“Quaerendo invenietis” -“Procure e encontrarás”) alguma

coisa ligada a um quadro de Mathis Grunwald. Logo o alguém infiltrado no partido também

a conhecia, devia ser um dos visitantes de sua casa.

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4) Após o envio da primeira mensagem e após receber de Otto um envelope, preparara uma

segunda mensagem, com outro código, que deveria ser entregue caso alguma coisa

acontecesse a ela. Como de fato o foi.

5) O envelope deveria conter a identidade do assassino.

6) O envelope estaria ligado ao quadro de Mathis.

7) Mas porque então não revelar logo o nome ?

8) Codinomes, claro.

9) Como um nome nada significava, o importante era fornecer uma prova, um documento,

que havia um nazista infiltrado no partido.

10) O Hugo era certamente um dos personagens.

11) Os outros eram a “gente graúda em cima”

16 de Abril,

7:30 da manhã

__Mário, telefone para você, atende ai em cima.

Era Celeste, tendo atendido o telefone lá em baixo. Mário ouviu a zoeira típica de um

telefone público.

__E´ Lucinda Dr. Mário.. Honório quer falar urgente com o senhor.

Pelo tom da voz Mário se assustou. Vestiu-se e saiu sem mesmo tomar café. Com

dificuldade, pois não podia se firmar muito na perna, foi andando até a Pinheiro Machado. O

tráfego estava pesado aquela hora com os carros dirigindo-se pelo Santa Bárbara para a Tijuca.

Demorou uns 20 minutos até que um parou a uns 50 metros para alguém descer. Mais que depressa

ergueu a bengala que substituíra a muleta para sinalizar. Quase caiu, mas o motorista respeitou o

direito de prioridade.

Com o transito lento, só conseguiu chegar as 10:30. Subiu as escadas até o segundo andar.

Parou ofegante. bateu na porta de Honório.

A porta cedeu. Estava apenas encostada. Na sala, nada. Foi até o quarto. Honório deitado na

cama. Lucinda de bruços no chão.

Mortos.

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56

ario nunca tinha visto sangue. Nem cadáveres, porque não teve duvida que estavam

mortos. Sentiu uma vertigem e pensou que ia cair. Mas o pânico foi mais forte. Se

desmaiasse ali estaria perdido. Naquele momento ele soube que não haveria nada a

fazer. A não ser fugir. Mas de quem? Como souberam? o Honório devia ter levantado a lebre.

Descendo as escadas estava perfeitamente lúcido, com a cabeça a mil. De certo estariam esperando

ele la fora. Mas não poderia permanecer no prédio. Da soleira da entrada espreitou a rua. Tudo

aparentemente normal, mulheres com sacas de feira, crianças, nenhum carro suspeito.

Manquitolando, parou em um ponto de ônibus. Tomou o primeiro, para a Praça Mauá. Estava cheio,

mas uma adolescente com uniforme escolar educadamente se levantou e cedeu-lhe o lugar.

Ninguém o seguira, mas com toda a certeza Honório já estava sendo vigiado e fora o telefonema de

Lucinda que precipitara os assassinatos. Ao chegar na Praça Mauá, concluiu o óbvio:

Seu telefone fora grampeado!

Parado na calçada pensou longamente no que faria. Fugir? Para onde ? Poderia ir para

Campos, lá tinha uma antiga namorada. Mas comprometer outras pessoas ? Decidiu afinal voltar

para casa. Estava em um caminho sem volta.

De novo, nada havia na Soares Cabral que parecesse suspeito. Pagou o taxi e entrou.

Aquece um café. Em toda sua vida nunca esteve metido em qualquer situação perigosa. De

repente estava envolvido, mais que envolvido, com duas mortes. Poderia ter parado antes. Talvez

agora Lucinda e Honório estariam vivos. Mas era tarde. Mário sente um súbito e enorme cansaço.

Sobe para o quarto para deitar-se um pouco. Quase instantaneamente pega no sono. Só acorda ás

nove horas. Celeste entrega um bilhete deixado durante a tarde:

Mário:

Parto amanhã para N. York, onde vou ser

homenageado. Depois vou para Frankfurt, ver clientes. Boa Sorte e juízo.

As ultimas palavras indicavam que o tio suspeitava do que ele estava fazendo. Como o tio

nunca se dera ao trabalho de avisa-lo de suas viagens, o bilhete era um sutil aviso de que Mário

estaria sozinho. Era justo. O tio tinha já vários envolvimentos e não poderia nem deveria estar

ligado a um caso como este, pondo em risco suas atividades menos ao gosto do atual sistema.

Mesmo assim, sentiu-se golpeado. Mesmo não querendo recorrer a ele, o tio representava

segurança, tanto psicológica quanto física.

M

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57

17 de Abril

Acorda lúcido, a cabeça funcionando como um relógio.

Mataram o Honório para impedir que ele revelasse alguma coisa a Mário relacionada com

alguém que estava vivo e atuante.

Por outro lado não o mataram, embora sabendo que ele estava procurando aquele alguém. Só

havia uma resposta: Honório descobrira um atalho para as pesquisas de Mário, porem Mário era

necessário para descobrir alguma prova ou documento comprometedor para o assassino, e sua

organização. Caso Honório fornecesse este atalho, Mário descobriria o assassino e abandonaria a

busca.

Portanto era o documento que importava! Mas. como eles sabiam que havia um

documento?.

Certamente o “profissionalismo” do Honório não fora tão profissional. Na ânsia de descobrir

o Hugo, levantara afinal a lebre. Dissera mais que devia a quem não devia.

Mas porque um documento antigo teria importância agora?

Certo, as pessoas envolvidas nele ainda estavam vivas. Logo este documento as

prejudicariam seriamente. A ponto de justificar um assassinato.

De qualquer forma, enquanto ele não fosse encontrado, Mário estaria seguro.

Tinha agora duas alternativas, parar, esquecer de tudo e esperar que o esquecessem.

Ou descobrir o documento.

No complexo processo de decisão da natureza humana, existem certos “buracos negros” que

se sobrepõem a toda uma estrutura lógica de pensamento. Embora o bom senso o aconselhasse a

abandonar a empreitada, Mário sentia uma força fora de seu controle a o impelir para frente. Era o

resultado de seu “ato de contrição”, quando se deu conta que o pai e a tia foram heróicos em suas

atividades.

Era um preito á memória de Honório, que pagara com a vida a tentativa de ajuda-lo. Mas era

também um motivo menos nobre, mas muito humano:

A curiosidade.

Aquela que matou o gato.

Achar o telefone da Biblioteca Nacional na Lista Telefônica revelou-se um árduo trabalho.

Menos árduo porem do que telefonar para lá.

__Não senhor, aqui é do gabinete, vou transferir.... desculpe senhor, transferiram para a

administração, fique na linha.

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58

A linha cai. De novo... Consegue enfim falar com Dona Silvia, que vai procurar um certo

pintor alemão. Pede para telefonar no dia seguinte.

18 de Abril

Em vez de telefonar, Mário decide ir pessoalmente a Biblioteca Nacional, na Av. Rio

Branco.

A bibliotecária era jovem e bonita, com leve e agradável sotaque nordestino, para espanto

de Mário que esperava uma vetusta e empoeirada senhora.

__Oi,

__Oi. Você é que é a Silvia ?

__Sou. Posso ajudar ?

__Meu nome é Mário. Silvia, estou procurando alguma coisa sobre um pintor, um tal de

Mathias Grunewald. Onde posso achar ?

__Gozado Nunca ninguém procura este nome. Ontem tive uma consulta. Hoje você..

__Era eu mesmo..

__Não tive muito tempo, mas encontrei neste livro. Tome a ficha, é lá no fundo.

History of European Art, Oxford Press. Folheia o livro. Acha o texto, que embora em inglês

consegue compreender:

Mathis Nithart ou Gothart, conhecido como Matthias. Pintor alemão morto em Halle

em 1528. Por ocasião da Revolta dos Camponeses em 1524 na Alemanha abandonou a

pintura e juntou-se àqueles contra a opressão da nobreza. Desiludido no entanto pela visão

das atrocidades dos libertários, retornou á arte e terminou sua obra prima é a pintura de

um conjunto de três painéis (tríptico) para a Igreja de Sto. Antônio em Issenheim, na

Alsacia, hoje no museu de Colmar.

Havia uma pequena reprodução da obra. Nada havia porém que pudesse ser uma pista.

Ao chegar em casa foi direto pro escritório. Instintivamente procurou a foto que já tinha

visto com seu pai e Annelise segurando um caderno de música.

O caderno de música.

Ao fundo via-se um piano e na parede um quadro.

Page 61: O Código ISSenheim

59

Mas não era o pôster do festival de Colônia. !

Embora desfocado, era perfeitamente possível notar um detalhe: a pintura era encimada por

três pontas como uma ao lado de outro, como vitrais de igreja. Tentou visualizar o que tinha visto

na biblioteca.

Burro, deveria ter levado papel e copiado pelo menos o perfil.

A biblioteca deveria fechar logo. Só amanhã...

19 de Abril 10:00h

De volta á biblioteca, na Av. Rio Branco. Mesmo nas circunstancias dramáticas em que se

encontrava, Mário não resistiu á tentação de um charminho:

__Oi querida, eu aqui de novo....

__Meu nome e´ Silvia.

__Tá bem Dona Silvia.

Ela riu.

__Seu colega já esteve aqui. Vocês estão fazendo alguma pesquisa para escola ?

Poiiing.

Mário procurou manter a calma

__Que pena, ele já foi ?

__Saiu há uns 15 minutinhos...

O livro estava no mesmo lugar.

A página fora arrancada.

Silvia apavorada foi alertar o diretor.

Mário apavorado se arrancou. Alguém já estava na pista. Mas como? Em todas suas saídas,

Mário verificava com cuidados de amador, se estava sendo seguido.

Estúpido! O telefone grampeado!!

A pagina arrancava confirmava que o quadro era O Tríptico de Issenheim, do estúdio de

Annelise.

Page 62: O Código ISSenheim

60

O inimigo sabia.

Tinha que chegar antes.

10:30 h

Àquela hora foi fácil arranjar um taxi. Desceu a Avenida, passou o Passeio Público, virou a

direita subindo a Cândido Mendes. Pra casa de Otto, de D. Clara. Precisava achar o quadro. Tomou

a Rua Almirante Alexandrino e, já na esquina com a Aarão Reis percebeu que havia algo errado.

Duas Joaninhas estavam paradas e um camburão. Algumas pessoas na calçada. Com o coração aos

pulos pagou e saltou do taxi. Um guarda estava na porta. Perguntou o que houve.

__Latrocino doutor. Os elemento viraro casa toda.... Mataro os velho, coitados.

FIM DO TERCEIRO ATO

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INALE

3 de Maio

Mário voltou ao trabalho no dia 20 de Abril. Esgotado, deprimido, frustrado, não conseguia

se concentrar em nenhum dos seus afazeres.

Embora fosse impossível que alguém ali tivesse a mais pálida noção do que lhe tinha

acontecido, todos pareciam solidários com ele, inclusive o chefe, o Arruda, normalmente

impaciente e exigente.

Nenhuma pergunta, nenhum comentário, pareciam agir todos de comum acordo em respeitar

seu alheamento.

Naqueles dias pouco falou, mal se alimentou, sentindo que estava sendo progressivamente

envolvido por uma crise séria de depressão.

Resolveu procurar o Dr. Daniel, fora do grupo. Embora fosse contra os hábitos, o doutor

acedeu.

Foi um desconhecido Dr. Daniel que o recebeu, totalmente despido da tão conhecida posição

distante e profissional.

__Mário, você resolveu enfrentar quem era muito mais forte. Como médico eu diria que você

deu uma de onipotente. Como homem acho que você foi heroico. Dizem que é preferível ser um

covarde vivo do que um herói morto. Mas você está vivo! Vamos olhar a coisa desta maneira. Você

está vivo porra! Podia tranquilamente ter sido morto! Mas fez o que achava que devia fazer.

Agora sentado em sua mesa, tentava afastar as recentes lembranças e concentrar-se no que

tinha que fazer. Mas ainda não conseguia.

Jamais descobriria o quadro. Os assassinos já o tinham. Todas as mortes, Honório, Lucinda,

Clara Vogel e Otto, pagaram por sua insensata curiosidade infantil e não menos infantil

omnipotência de pretender disputar com assassinos profissionais um assunto tão letal.

__Mário, o Silva voltou... Tá ali na mesa.

Era o Kurt, gaúcho legal, doente pelo Grêmio.

F

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__Hãa?

__O Silva home..

__E daí ?

__Havia sumido, lembras ??

Mário foi até a mesa do Silva Pinto, um baiano loquaz, que de fato estava desaparecido

desde os primeiros dias de Janeiro. Silva, um baiano loquaz e expansivo o cumprimentou com um

sorriso ausente. Com o olhar perdido, não diz nada. De repente se levantou e saiu. Com passinhos

miúdos, de um velho.

Não saiu para almoço, sem saco de ficar papeando com os colegas na lanchonete. Pediu um

sanduíche ao boy e, força do habito, voltou a raciocinar.

Lápis e papel, escreveu pela undécima vez, como este exercício pudesse resolver alguma

coisa:

Notas de 21 /4

A) Annelise tinha o quadro

B) Sua ultima mensagem instruía para procura-lo, pois ali estava a prova que precisava

enviar.

C) A mensagem só seria entregue á Mário pai “se alguma coisa, qualquer coisa

acontecesse com ela ” segundo D. Clara

D) Ergo: caso morresse.

E) Neste caso ela sabia que, em sua casa meu pai não poderia procurar.

F) Onde estaria então?

G) O que mais fora entregue por D. Clara além do caderno?

Rasgou subitamente o papel. Um ataque de taquicardia quase o fez pedir socorro.

As “outras coisas”, o “rolo de partituras”.

PARTITURAS NÃO SÃO ENROLADAS!!!!

17:20

Consultou o relógio: faltavam apenas 10 minutos até fechar o expediente, embora ansioso

preferiu esperar para não levantar suspeitas.

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Foi diversas vezes ao banheiro, urinar só um pouquinho, até que alguém perguntou se ele

estava sentindo alguma coisa.

Estava.

Totalmente paranoico.

18:30

Chegou em casa e correu para escritório. Os rolos de desenhos! Havia uns dez. Todos muito

empoeirados, alguns amarrados com elásticos, que se desfizeram quando tentou tirar, espalhando

um monte de poeira e desenhos de seu pai. Outros embrulhados em papel grosseiro. Dentro destes,

reproduções baratas de telas, algumas conhecidas, que deviam ser os modelos para serem copiados.

No terceiro pacote.

Lá estava em tamanho grande e a cores a reprodução do quadro que tinha visto na biblioteca

e na fotografia.

Ao pé, em letras miúdas:

Mathis Grunewald: Le Retable d´ Issenheim, ”

e o nome de uma gráfica em Paris. Observou-se á observar o quadro, como em câmara lenta.

O quadro em sua grandeza trágica.

No painel esquerdo, a Virgem Maria desfalecendo. No direito as profecias de S. João. Mas o

painel central, o mais alto, um Cristo na cruz, deformado, horrível, repugnante mesmo, totalmente

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diferente da figura atlética geralmente representada. Somente a evocação política do autor poderia

justificar a ornamentação de qualquer parede com aquele horror.

De repente sentiu que não estava sozinho. Curiosamente sentiu um alivio. Virou-se devagar.

Lá estava o Visitante. Havia entrado, silenciosamente como de costume. Olhava por cima do ombro

de Mário.

Com ele estava Celeste, com a fisionomia completamente alterada. Naquele momento, era

toda autoridade e determinação Sem qualquer hesitação afastou Mário e examinou a reprodução.

Apertou a ponta entre os dedos Era mais grossa que as demais. Havia outro papel colado nas costas.

Sem muita dificuldade descolou o papel e segurou um envelope pardo. Ainda agachada, abriu o

envelope e retirou uma carta, e um outro papel. A carta, escrita em papel fino, que, mesmo sem ler

estendeu por traz dos ombros, Mário a apanhou, desdobrou e leu.

Liebchen:

O documento em anexo prova que uma das pessoas que aqui frequentam é membro ativo da

Gestapo. Somente hoje vim a saber que ele é infiltrado no grupo de seus amigos.

Avise eles.

Não, não se espante.

Eu sempre soube das suas atividades.

Sou um bom alemão, não sou, nunca fui nem serei comunista. Mas estou convencido de que

minha Vaterland será aniquilada por aquele austríaco insano e por aquele regime odioso.

Por vezes é preciso ir contra a própria pátria para salvá-la de um mal maior.

Corremos imenso perigo.

Mas não vamos fugir.

Deus te abençoe

Não havia assinatura, somente um rabisco.

Deviam ter fugido afinal...

Olhou em torno. Celeste tinha se levantado e, no canto do escritório conversava baixinho

com o Visitante, olhando o outro papel. Mário apenas viu o que parecia ser a reprodução de um

documento oficial, provavelmente uma ficha de arquivo, amarelado, provavelmente o resultado de

uma microfilmagem. Mas mesmo de relance era indisfarçável o cabeçalho, encimado pela águia

trepada na suástica e as palavras sinistras:

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GEHEIM STATZ POLITZEI

GESTAPO

Em baixo, uma fotografia, um nome e outras informações, que Mário não conseguiu ver.

Mas não precisava. Já sabia o conteúdo. Celeste colocou o papel de volta no envelope e entregou ao

para o Visitante dizendo:

__Vá agora, filho.

O Visitante colocou o papel na bolsa a tiracolo. Foi então até a janela. La em baixo, do outro

lado da rua estava estacionando uma Rural Willys branco e azul. Dois homens saíram, camisas

esporte por fora das calças, mocassins brancos....

O Visitante apenas sorriu. Deu um beijo rápido na mãe e saiu. Desceu as escadas e saiu. Pela

janela Mário viu o filho de sua tia atravessar o jardinzinho da frente, abaixar-se rapidamente no

portão, e sair pra rua. Os homens atravessaram e barraram seu caminho. Seu primo então ensaiou

uma fuga sem muito entusiasmo, mas foi agarrado e posto dentro da Rural que partiu em direção a

Álvaro Chaves e depois Pinheiro Machado.

Mário viu então um vulto emergir das sombras do pequeno pátio levantar-se

sorrateiramente, apanhar a bolsa largada e sair calmamente em direção oposta..

Celeste segurou-o pelo braço.

__Venha

Não era um pedido, não era um convite, era uma ordem.

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Desceram até a cozinha. Celeste colocou o bule de café no fogo, mas logo o apagou. Foi á

pequena despensa e, para estupefação de Mário, tirou uma garrafa escondida. Era um Johnny

Walker, rótulo preto, cheia pelo meio. Serviu duas doses.

__Agora ouça, disse. Quando fiquei sozinha, estava gravida, uma companheira a Rosa,

ofereceu-se para ficar com o filho. Era judia, era casada e tinha algumas posses. Depois da guerra

foi com o marido para Israel, logo depois que virou Estado, em 46. La ficaram 15 anos e voltaram

quando o filho tinha 23 anos. Ele sempre soube que era adotado, mas não sabia quem era a mãe.

Nunca o tinha visto, seria muito difícil para todos.

Quando você começou estas pesquisas achei que precisaria de alguma proteção. Fui então

procurar a Rosa e pude então conhecer meu filho. Seu primo é um profissional ligado a uma causa e

a outras pessoas. Foi treinado em Israel. Você, embora não soubesse, sempre esteve vigiado e

protegido desde que começou com aquela loucura.

__Você não disse o nome.

Pausa.

__É Mário também...

__E o pai dele ?

__Ele sempre achou que tínhamos a prova que ele era um agente nazista. Se esta prova

viesse a tona agora ia arrebentar com a vida dele. Por isto, há anos que nos vigia de perto. Eu vim

aguentando porque tinha medo. Nunca ter contei para sua própria proteção

Mas ai você resolveu desenterrar tudo.

Mário ignorou a censura velada.

__Filho da puta este Hugo.

Lentamente, Celeste meneou a cabeça.

__Não Mário, não era o Hugo.

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aquela mesma noite, foi discado um numero de uma embaixada em Brasília. Ato

continuo, duas ligações internacionais foram feitas da Embaixada.

Somente um mês depois, um zeloso terceiro secretario encarregado das contas veio a

saber, pela fatura da Cia Telefônica, que duas ligações internacionais haviam sido feitas sem previa

autorização.

A primeira foi facilmente identificada. Era para uma notória e legal organização com sede

em Viena, empenhada na localização e denuncia de criminosos nazistas.

A segunda, ele não identificou, pois era para outra menos notória e nada legal organização

de sobreviventes de um assassinato em massa de cidadãos não arianos em 1944, na cidade de

Eindhoven, Holanda.

Um mês depois, Mário recebe no trabalho, um envelope. Dentro um Exemplar do

FRANKFURTER ZEITUNG datado de 15 dias atrás. No verso da primeira folha, uma noticia

enquadrada a lápis vermelho. Não sabendo alemão recorre ao Kurt, gaúcho legal, que traduz:

Frankfurt, 5/5/69

Encontrado esta manhã em um quarto do hotel Frankfurterhof o corpo de um homem

identificado como Ludwig Rosenbaum. A policia constatou ter sido alvejado durante a noite

por desconhecidos

O Hotel declina toda a responsabilidade porque o hospede devia ter recolhido a chave na

portaria, o que não fazia. A policia não tem ainda nenhuma pista dos assassinos.

Segundo informações dadas esta manhã á este jornal, a vitima, cujo verdadeiro nome é

Ludwig Baum é responsabilizado por crimes cometidos entre 1943 e 1945 contra a

população civil da Holanda. De 1938 até 1941 esteve no Brasil como agente da então

policia secreta (GESTAPO). Retornou ao Brasil em 1945 onde vivia sob o nome de Luiz

Rosenbaum, como advogado de interesses alemães. Fonte não identificada informou ainda

que Rosenbaum, aliás Baum chefiava no Brasil as atividades da organização nazista

Odessa supostamente colaborando informalmente com os órgãos de repressão daquele

país.

N

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PÍLOGO

A 18 de Junho de 1969 o Homem pisou pela primeira vez na lua.

Francisco Franco, o generalíssimo, caudilho sanguinário da Guerra Civil Espanhola, morreu

em 1975, após ter conseguido entronar o Rei Juan Carlo de Bourbon, do qual era tutor. A famosa

tela de Picasso, evocativa do massacre de Guernica pode enfim retornar á Espanha depois de trinta e

sete anos de exílio em Paris e Nova. York. A pátria agradecida deve á Franco. além dos quarenta

anos de trevas, um expressivo desenvolvimento material.

Antônio de Oliveira Salazar, obscurantista ditador português, passou seus últimos anos

inconsciente, após ter sofrido uma queda em 1969. O odioso regime foi continuado por Marcelo

Caetano, até 1975 quando a “Revolução dos Cravos” terminou com quatro décadas da mais

estúpida e medíocre experiência totalitária da Europa

A década de 70 presenciou na Argentina e no Chile sangrentos e brutais regimes.. A “guerra

suja” dos Masseras Videlas e outras obscenidades, e o golpe militar de Pinochet com o apoio da

CIA candidatam-se á galeria das grandes barbáries da História Moderna.

A noite brasileira de fato durou mais quinze anos.

No período, toda uma geração foi educada sob a égide autoritária de um boçal maniqueísmo

e sobretudo de uma melancólica mediocridade.

As Forças Armadas, dantes um exemplo de dignidade, deixou-se, ativa ou passivamente,

enlamear-se nos desvãos da tortura e brutalidade.

A vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970, no México, e o “milagre brasileiro” de

1971/72 propiciaram ao regime a exploração exaustiva de uma euforia ufanista.

Mas o “ Brasil, ame-o ou deixe-o”, caiu em descrédito quando um menos iludido pichou

nas paredes do Santos Dumont a frase “ o ultimo a sair apague a luz do Aeroporto”.

Não é porém objeto destas notas o aprofundamento da historia recente do Brasil. O leitor

interessado encontrará nos livros do historiador Hélio Silva e do jornalista Carlos Castelo Branco

obras definitivas sobre o assunto.

Durante os “Anos de Chumbo, o povo brasileiro foi governado por uma junta militar e uma

sucessão de três generais. No limiar da mudança para o governo civil em 1985, o ultimo deles, cuja

tirada mais brilhante fora a de que preferia o cheiro dos seu cavalos ao cheiro do povo, despediu-se

melancolicamente dos brasileiros pedindo que o esquecessem.

Fizemos Sua vontade.

E

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