o contrato social, segundo rousseau filefaculdade de sÃo bento - sp paulo rogério haüptli o...
TRANSCRIPT
FACULDADE DE SÃO BENTO
O Contrato Social, segundo Rousseau
Paulo Rogério Haüptli
São Paulo / 2016
FACULDADE DE SÃO BENTO - SP
Paulo Rogério Haüptli
O Contrato Social, segundo Rousseau
Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da
Faculdade de São Bento, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Professor orientador: Joel Gracioso
São Paulo / 2016
Agradecimentos
Ao Mestre e Doutor Djalma Medeiros por acreditar neste mestrado, bem como, por
lutar muito para manter o curso de Mestrado em Filosofia da Faculdade de São Bento, que
merece estar entre os melhores da América Latina, pelo excelente corpo docente.
Ao Doutor Professor Joel Gracioso, meu orientador, que se dispôs gentilmente a
aceitar meu tema e a me levar pelo caminho da verdade através da obra de Rousseau e de seus
antecessores, bem como por nunca desistir deste subscritor.
Ao Doutor Franklin Leopoldo e Silva que conseguiu inserir na minha vida a Filosofia,
despertando a paixão por filósofos que até então eu sequer os conhecia.
À minha mãe, Ivone Romão Haüptli que, antes de falecer, sonhava com a minha
formatura.
À minha avó, Maria de Freitas Haüptli, por ter me matriculado na pré-escola primária,
base e início para tudo, o que me foi de tamanha importância, porque àquela época, era um
privilégio estudar.
À minha esposa, Eliana Mara Cantuário Haüptli, a qual confiou e me apoiou
incondicionalmente desde a graduação, as pós-graduações este mestrado, bem como outros
cursos que estão por vir.
Aos meus três filhos Paulo Rogério Haüptli Junior, Isabella Haüptli e Letycia Haüptli,
os quais, com certeza vão se inspirar e lutarão para seguir com os estudos até a mais alta
graduação, o que já começaram e com muito esmero.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo principal a exposição e análise da obra Do
Contrato Social, escrita no século XVIII pelo filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau. Este
compêndio ímpar, assim como outras teorias contratualistas que serão esboçadas aqui
sucintamente – pretende estabelecer critérios para a organização da sociedade, de modo que
esta seja justa para todos os homens, tornando-os iguais em direitos e deveres.
No decurso da análise percorreremos os principais conceitos inerentes ao
estabelecimento do contrato proposto por Rousseau, partindo do conceito de estado de
natureza – o homem nasce bom – para chegar ao resultado do contrato que é a liberdade moral
de todos os cidadãos e a igualdade. O filósofo oferece essa obra para uma época de mudanças
sociais radicais – nascente capitalismo frente a um feudalismo jazendo – onde a monarquia e
o absolutismo do poder estavam sendo questionados, no entanto, percorrer seu pensamento
pode nos trazer importantes reflexões para os hodiernos dias, e isso é o que tentamos realizar.
Palavras-chave: Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social, Estado de Natureza, Liberdade
Natural, Liberdade Moral, Igualdade, Direitos, Deveres, Função Social do Contrato.
Abstract
This present study has as its main goal the exposure and analysis of the book Of the
Social Contract, written in the 18th century by the Genevan philosopher Jean-Jacques
Rousseau. The book – as well as other contractualist theories that will be succinctly sketched
here – intends to establish criteria to the organization of society, in order that it would be fair
to every man, making them equal in rights and duties. In the course of the analysis we will
cover the main concepts inherent to establishing the contract proposed by Rousseau, from the
concept of state of nature – the man is born good – until reaching the result of the contract
which is the moral freedom of all citizens and equality. The philosopher offers this book to a
time of radical social changes – emerging capitalism in front of a lying feudalism – where the
monarchy and the power of absolutism where being questioned, however, going through his
ideas can bring us important reflections to the contemporary days, and that is what we try to
accomplish.
Keywords: Jean-Jacques Rousseau, Social Contract, State of Nature, Natural Freedom, Moral
Freedom, Equality, Rights, Duties, Social Function of the Contract
Sumário
Intodução 07
Capítulo 1 – Rousseau e o contexto filosófico de sua época 11
1.1 – Vida e obra de Jean-Jacques Rousseau 11
1.2 – Contextos históricos e filosóficos 16
1.3 – Iluminismo de Rousseau (França) 19
Capítulo 2 – Corrente Contratualista e filósofos que influenciaram Rousseau 24
2.1 – Contratualismo 24
2.2 – Thomas Hobbes 27
2.3 – John Locke 31
2.4 – Hobbes, Locke e Rousseau 34
Capítulo 3 – Contrato Social de Rousseau 38
3.1 – Do estado natural ao estado civil 38
3.2 – Vontade geral 42
3.3 – A necessidade de legisladores 47
3.4 – Sobre as regras para tratar a coisa pública 49
3.5 – Sobre a tolerância religiosa 51
Capítulo 4 – A função social do contrato social 53
4.1 – Liberdade e igualdade 53
4.2 – Ordenamentos legais 58
Considerações finais 60
Bibliografia 63
7
Introdução
Este estudo apresenta como tema uma análise da obra Do Contrato Social, de Jean-
Jacques Rousseau, filósofo genebrino que – motivado pelas más administrações públicas da
sua época – pretendeu propor normas sociais para que os homens convivessem em sociedade
de maneira equilibrada e justa, com foco no bem coletivo.
Trata-se de um pensador único e claro, adjetivos esses que fazem jus à profícua
tradição de leituras secundárias sobre seus pensamentos, que se multiplicam desde o século
XVIII até os hodiernos dias.
Visamos mostrar também como Rousseau dialogou com seus contemporâneos –
muitas vezes inspirando-se nos antigos – e como inseriu-se na corrente contratualista para
tentar fornecer soluções às questões políticas de sua época – de um capitalismo nascente e um
feudalismo jazendo –, onde o poder absoluto e o direito natural ao governo estavam em foco.
Rousseau não fugiu de nenhuma das questões e, muito embora tenha se contradito em
muitas das questões, foi corajoso ao respondê-las de maneira como vinham em seus
pensamentos, o que lhe custou perseguições, queima de livros e anos de exílio.
Para responder a tais questões, o filósofo genebrino escreveu algumas primorosas
obras, sendo que as mais importantes são: Discurso sobre as artes e ciências, Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Do Contrato Social, Emilio, ou,
Da educação e Confissões. Neste trabalho focamos a investigação no Do Contrato Social,
contudo, este subscritor não se absteve de consultar as supracitadas e outras quando isso se
mostrou necessário.
A obra foi publicada em 1762 e levantou muitas polêmicas, as quais envolveram seu
autor até o fim de sua vida. Um exemplo desse problema foi o fato de o Parlamento de Paris,
em meados do mesmo ano da publicação dessa obra, tê-la condenado – reação repetida
posteriormente em Genebra. Em Berna, o autor foi considerado persona non grata.
Do Contrato Social, ao discorrer a respeito de um governo republicano e esclarecer o
que é a vontade geral do povo soberano, provocou grande inquietação na monarquia francesa
e na aristocracia de Genebra.1
1 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques; tradução de Lourdes Santos Machado e introduções e notas de Paul Arbousse-
Bastide e Lourival Gomes Machado – 2ª Edição, São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores)
– p. 07
8
O pensamento político de Rousseau é tão denso e atual, que sempre oferece novos
rumos e novas ideias, contudo, esse fato não significa pensar que, do seu pensamento, pode-se
tudo derivar, inferir ou concluir para um contrato social reconhecido e aceito por todos.
É uma obra clássica da Filosofia e seu texto discute hipoteticamente questões sobre a
origem, formação e manutenção das sociedades, entendidas sobre a base da celebração de um
acordo ou contrato entre os homens.
A modernidade, com as transformações científicas e epistemológicas pelas quais
passou, instituiu um modelo interpretativo da realidade social e política que determina novas
bases à legitimidade do poder. Mas, na sociedade do século XVIII, ainda havia fagulhas do
sistema organicista aristotélico, segundo o qual a sociedade era considerada como algo
natural, ou seja, como uma continuação da natureza, onde homens nasciam para mandar
enquanto outros para obedecer.
O conceito de poder endossado divinamente ainda justificava, de forma
inquestionável, “o poder dos príncipes”. Assim, Rousseau, ao propor seu Contrato,
estabeleceu o indivíduo como fonte de todo poder, o que é legitimado por uma convenção –
um corpo social e político, um corpo moral baseado na questão do dever cívico.
O genebrino faz uma crítica ao sistema absolutista – tal como explicado por Thomas
Hobbes – e a todo poder centralizado na figura de uma pessoa. O pacto em sua essência visa
fundar a base do poder político no consenso.
Em Rousseau, esse pacto se realiza quando todos abdicam igualmente de sua liberdade
natural – que para ele é uma liberdade instável. Nesse sentido uma questão pertinente é: como
Rousseau, em Do Contrato Social, se propõe à árdua tarefa de discutir um pacto que, mesmo
alienando-se de sua liberdade garante que o indivíduo continue livre?
Rousseau investiga se é possível viver em uma sociedade referendada por bases
legítimas, a partir do ideal de soberania vinculada ao povo, além de averiguar o paradoxo
entre a vontade individual e a vontade geral.
Com esse propósito, o filósofo destaca o papel do governo como um intermediador
entre os súditos e o soberano – com vistas à preservação – para a manutenção da liberdade
civil e política, fazendo com que os homens – desiguais em estado de natureza devido às
diferenças das potencialidades naturais – tornem-se iguais em direitos e deveres.
O problema analisado neste estudo tem como foco a função social do contrato, tanto
para esclarecer regras de convívio entre os homens em sua vida social, como também, para o
estabelecimento de contratos com fins econômicos e políticos, visando a certa equidade para
as partes envolvidas e um bem social maior.
9
Para tanto, se definiu como objetivo geral desta Dissertação de Mestrado a análise das
regras dos contratos e suas consequências à luz Do Contrato Social de Rousseau.
A justificativa para este estudo decorre da relevância da obra Do Contrato Social, que
é fundamental para todo estudo sociológico, filosófico, econômico e jurídico até o presente. À
época de sua publicação, a Europa tomava conhecimento das ideias em relação ao
Iluminismo, as quais contribuiriam para que se chegasse à queda de regimes monárquicos
absolutistas.
Rousseau pôde verificar como funcionava a vida política quando trabalhava como
secretário do conde, em Veneza, por volta de 1743. Nesse período, o filósofo refletiu a
respeito das formas de exercício do governo e da política.
A partir de então, deu início à elaboração da obra Do Contrato Social, na qual
considera a possibilidade de um sistema político baseado em um pacto social estabelecido
entre os cidadãos.
Rousseau concebe uma sociedade igualitária, legislada pela soberania
popular, que garantiria a dignidade moral de todos e a observância da
vontade geral do grupo. Não se trata de um trabalho de intervenção direta na
realidade, mas do desenvolvimento de uma situação ideal, cuja análise
permitiria compreender e questionar as formas de governo existentes.2
Rousseau foi considerado por filósofos, juristas, legisladores e escritores como um dos
maiores expoentes do Iluminismo. Esse fato lhe vale a fama de ter sido o deflagrador
intelectual da Revolução Francesa, movimento burguês ocorrido no fim do século XVIII, que
buscou encerrar o regime absolutista da França – à época sob os auspícios do reinado de Luiz
XVI.
O filósofo propôs, em suas obras, a transformação do convívio dos homens em um
meio social, num momento em que todos necessitavam muito de novas regras para se viver
em sociedade.
Este estudo adota como técnica a pesquisa bibliográfica. O referencial teórico que o
norteia é constituído pela própria obra do autor e por autores que já analisaram os escritos de
Rousseau, cujas abordagens oferecem subsídios para este estudo, na abordagem do tema a que
se propõe.
2 SIMPSON, Matthew. Compreender Rousseau; tradução de Hélio Magri Filho; revisão da tradução por Andréa
Drummond – Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009 – p. 34
10
No capítulo 1 são apresentados alguns aspectos da vida e da obra de Jean-Jacques
Rousseau, antecipando o que, logo após, será exposto a respeito de sua influência no mundo
contemporâneo. Também será apresentado brevemente o contexto filosófico que influenciou
Rousseau e no qual estava imerso, além de um pequeno esboço do Iluminismo francês.
Sua vida, enquanto menino, as obras que leu desde a infância – muitas que o
influenciaram profundamente, sua conversão e reversão religiosa, os problemas de saúde, as
idas e vindas entre França e Genebra, a austera educação que recebeu não só do pai, mas
também de seu empregador etc. Esse e outros importantes aspectos da vida do filósofo nós
procuramos esboçar nesse primeiro capítulo, para que haja uma pequena compreensão de
quem foi Jean-Jacques Rousseau. Um homem de teorias muitas vezes controversas – às vezes
beirando à loucura, mas que deixou marcas no pensamento de sua época e nas ações e
administrações políticas até hoje.
Em seguida no capítulo 2 a atenção foi voltada aos filósofos políticos modernos que
desenvolveram teorias baseadas na concepção de um contrato que estabelecesse normas para
o convívio social, sendo eles: Thomas Hobbes, John Locke e o objeto deste estudo, Jean-
Jacques Rousseau. Faremos um breve relato sobre a doutrina contratualista e exporemos
alguns traços das semelhanças e diferenças entre o pensamento desses três grandes e
polêmicos pensadores.
Já no capítulo 3 – principal objeto deste trabalho – foram analisadas as questões mais
importantes presentes no Do Contrato Social de Rousseau, sendo que em cinco subcapítulos
foram analisados os principais conceitos, isto é, estado de natureza, estado civil e vontade
geral, e como eles se entrelaçam no pensamento do genebrino. Também procuraremos
mostrar a diferença entre vontade particular e vontade geral, assim como o porquê se faz
necessário a atividade de um legislador no Estado. Nesse capítulo foi exposto ainda sobre as
regras e normas que devem reger o Estado, bem como acerca da questão da tolerância
religiosa da maneira como foi exposta por Rousseau.
No quarto e último capítulo foi demonstrando a função do Estado, de um contrato
social, apontando a diferença hipotética de uma sociedade com e sem contrato, o que implica
a discussão dos conceitos de liberdade e igualdade, e como tais conceitos se coadunam.
Nas Considerações Finais, foi feito um breve relato do decurso do trabalho e uma
sucinta avaliação das transformações ocorridas na sociedade contemporânea, as quais
consolidaram o atual modelo de contrato social, tendo como base a obra e o autor já citados,
Do Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau.
11
Capítulo 1
Rousseau e o contexto filosófico de sua época
1.1 - Vida e Obra de Jean-Jacques Rousseau
Os acontecimentos foram tão variados, senti paixões tão vivas, vi tantas
espécies de homens, passei por tantos tipos de estados que, no espaço de
cinquenta anos, pude viver vários séculos se soube aproveitar de mim
mesmo. Tenho, pois, tanto no número dos fatos quanto em suas espécies,
tudo o que é necessário para tornar minhas narrativas interessantes.3
Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra4 em 1712, filho de Isaac Rousseau e de
Suzanne Bernard, nosso autor perdeu sua mãe, que era descendente de uma das mais
proeminentes famílias da cidade, logo após vir à luz. O pai era um relojoeiro extremamente
conhecido e reconhecido como muito habilidoso, no entanto, não descendia da alta sociedade
como sua esposa e depois da morte desta, foi obrigado a ir embora da moderna casa na qual
residiam. O pai parecia culpar o pequeno Rousseau pela morte da mãe e encontrava sempre
uma desculpa para bater no menino e também gastar o dinheiro da herança que a mãe deixara
a ele. O genial filosofo genebrino herdou da família de sua mãe algo mais importante e que
foi valioso para a sua formação, ou seja, uma pequena biblioteca de clássicos em grego, latim
e francês.5
Aos seis anos, Plutarco caiu-me nas mãos, aos oito sabia-o de cor; lera todos
os romances, eles me fizeram derramar baldes de lágrimas antes da idade em
que o coração se interessa pelos romances. Formou-se assim, no meu, este
gosto heroico e romanesco que até hoje não fez outra coisa senão aumentar,
e que acabou por desgostar-me de tudo, exceto do que se assemelhava às
minhas loucuras.6
3 ROUSSEAU, JEAN JACQUES. Textos autobiográficos e outros escritos; tradução, introdução e notas Fúlvia
M. L. Moretto – São Paulo: Editora UNESP, 2009 – p. 98 4 Na época em que Rousseau nasceu e viveu, Genebra não havia ainda sido anexada à França – o que só ocorreu
em 1798 após a Revolução Francesa e também não fazia parte da Suiça – o que só ocorreu em 1815. 5 Cf. SIMPSON, 2009 – pp. 14-15 6 ROUSSEAU, 2009 – p. 26
12
Além de Plutarco, Rousseau leu antigos como Platão (427-428 a.C / 347-348 a.C) e
Aristóteles (384 a.C / 322 a.C)7 – para falar dos mais célebres; leu Hobbes (1588 / 1679) os
modernos como Descartes (1596 / 1650), Locke (1632 / 1704), Leibniz (1646 / 1716),
Marlebranche (1638 / 1715) e dialogou com contemporâneos como Montesquieu (1689 /
1755), Diderot (1713 / 1784) e também Condilacc (1715 / 1780)8, além de ter também
influenciado muitos pensadores posteriores e, dentre eles, Immanuel Kant (1724 / 1804).
Também em sua formação erudita foi influenciado pela leitura de obras como História
da Igreja e do Império (de Le Suer), Discurso sobre a História Universal (de Bousuet),
Homens Ilustres (de Plutarco), Metamorfoses (de Ovídio), Os Mundos (de Fontenelle), além
de algumas peças de Molière.
Aos dez anos de idade, porém, o jovem Rousseau teve que passar por uma brusca
mudança em sua vida: foi mandado para a casa de um tio rico, pois seu pai Isaac precisou
fugir da cidade após agredir com uma espada um soldado francês. Logo seu tio o enviara para
a casa de um pastor – que ficava num vilarejo – onde recebeu sua educação formal, e essa
ocasião também colaborou muito para a formação psicológica e o pensamento do filósofo
genebrino.9 O contato com a natureza inspirou muito toda a sua obra e também seu
desencanto pelos homens.10
Quantos preconceitos, erros e males comecei a perceber em tudo o que
produz a admiração dos homens! Essa visão causava-me dor e inflamava
minha coragem; acreditei sentir-me animado por um zelo mais belo do que o
do amor-próprio, tomei a pena e, resolvido a esquecer de mim, consagrei as
produções a serviço da verdade e da virtude.11
Enlevado com a vida simples, Rousseau afirmava veementemente que o homem nasce
bom, mas acaba sendo corrompido quando inserido em sociedade, por causa de sentimentos
tais como a ambição e a inveja. E, por essa razão, é preciso estabelecer regras para regerem
sua vida. É daí que vem seu estímulo para escrever suas principais obras: Do Contrato Social,
7 Rousseau cita – para falar de apenas duas – Platão no Emílio e Aristóteles no Do Contrato Social. 8 Cf. PRADEAU, Jean-François. História da Filosofia; tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo
Sobrinho, 2ª edição – Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012 (PUC-Rio) – p. 321. 9 SIMPSON, 2009 – pp. 14-16. 10 Parece que desse contato com a natureza e a tranquilidade encontrada na vida simples do campo é que
Rousseau tira o seu conceito de “estado de natureza”, pois ele supunha que se o homem vivesse só com o básico
de que precisa não teria necessidade de outros homens. E não tendo necessidade também não teria ambições
maiores do que aquelas que são suficientes para sua subsistência. 11 ROUSSEAU, 2009 (Fragmento biográfico) – p. 57
13
publicado em 1762 – que é objeto desta dissertação – e também Emílio ou Da Educação,
publicado no mesmo ano e que muitas vezes é visto como um mero manual de educação, mas
esta obra também faz parte de sua filosofia política, pois a formação e saúde do Estado
dependem da formação dos indivíduos.
Depois de uma vida simples do vilarejo ele fugiu de casa com apenas dezesseis anos
de idade em seguida foi para a França, onde passou a viver com Madame Warens, deixando
de ser protestante e convertendo-se ao catolicismo. Para poder se sustentar, Rousseau
começou a trabalhar como preceptor, músico e escritor, primeiro em Lyon e, depois, em Paris,
onde viveu com Thérèse Levasseur, com a qual teve cinco filhos, os quais foram abandonados
em um orfanato.12
Em Paris, conheceu figuras importantes das letras e da intelectualidade européia, os
denominados “philosophes”, ou filósofos iluministas, dentre os quais se destacam Diderot e
Condillac; teve contato também com Descartes, mas só em 1648, ano em que embarcou para
a Suécia, dois anos antes de morrer. Nessa época, foi convidado Diderot para ser colaborador
na elaboração da Encyclopédie, dirigida por este, na qual colaborou principalmente com o
verbete de música, e para qual serviço não recebeu absolutamente nada. Outros pensadores
consagrados da época, como Voltaire e Montesquieu, também colaboraram para a elaboração
dessa grande obra, composta de trinta e cinco volumes e com mais de 70 mil artigos/verbetes.
A partir da publicação dessa Encyclopédie, que ele ajudara a redigir, sua visão de
mundo se abriu, fortalecendo ainda mais sua vida literária, quanto ao seu aprofundamento no
Iluminismo e o ajudando em sua jornada como filósofo político. Posteriormente, se
desentendeu com Diderot por questões religiosas e foi também criticado fortemente por
Voltaire, a quem teve como desafeto por grande parte de sua vida.
Em 1750 graças a um dos seus discursos a respeito das ciências e das artes, Rousseau
ganhou um prêmio da Academia de Dijon, ao responder à pergunta formulada em um
concurso: “O estabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os
costumes?”. Em consequência do que ele próprio considerou uma iluminação, Rousseau
12 Frequentemente condena-se Rousseau e também sua obra – principalmente Emílio ou Da Educação – por
causa desse episódio da vida do autor, no entanto, é muito simplista o julgamento intelectual de um grande
pensador por aquilo que ele foi particularmente ou por algum desvio moral que tenha cometido. Nada justifica o
abandono dos filhos, mas vale lembrar que ele próprio diz que um preceptor não deve cuidar de mais do que um
aluno; e também diz que é incapaz de ser preceptor, a não ser hipoteticamente como faz com seu fictício aluno
Emílio. Pode ser que ele tenha abandonado seus filhos por achar-se incapaz de dar-lhes uma formação digna,
mas isso é só hipótese.*
*Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou, Da educação; tradução de Roberto Leal Ferreira, 3ª edição – São
Paulo: Martins Fontes, 2004 – (Paideia) – Livro I, pp. 7-68.
14
escreveu o Discurso Sobre as Ciências e as Artes, tratando da maioria dos temas importantes
em sua filosofia e respondendo negativamente àquela pergunta.
Cinco anos depois, publicou seu Discurso Sobre a Origem da Desigualdade entre os
Homens – parte do artigo Economia Política.
Em 1760, publicou A Nova Heloísa – antes do prefácio desta, só redigido em 176113 –
romance de sucesso, que antecipou parte dos seus pensamentos acerca da pedagogia e que
viriam a ser publicados em Emílio, ou Da Educação, obra que aponta seu cuidado com a
preparação de sua obra seguinte, Do Contrato Social.
Depois de dois anos em 1762 o autor publicou suas duas principais obras: Do
Contrato Social – que foi impresso na Holanda e proibido na França – e Emílio ou Da
Educação – impresso na França e denunciado pela Sorbonne. Este último foi condenado a ser
queimado pelo Parlamento e, seu autor, preso. Sem alternativas, Rousseau voltara para a terra
natal, de onde também foi expulso porque também lá suas obras foram condenadas.14 É
também em 1762 que ele escreveu suas Quatro Cartas a Malesherbes, nas quais faz um
sincero e sensível desabafo sobre a sua situação pessoal e também expõe os motivos pelos
quais prefere a solidão.
Rousseau tenta, em 1764 – com as Cartas escritas da Montanha e em resposta a
Tronchin – defender as suas obras, mas sem êxito, pois em 1765 suas Cartas escritas da
Montanha são também condenadas, em Haia, e posteriormente em Paris. Sofre com
apedrejamentos em sua casa localizada em Môtiers e é expulso do território de Berna, sendo
obrigado a partir – em 1766 – à Inglaterra, em companhia de David Hume, com o qual logo se
desentendeu.
Também em 1764 iniciou suas Confissões – que só foi concluída em 1770-1771 –, sua
autorreflexão, já deixando antever seu subjetivismo, característica do estilo romântico, que
iria influenciar o mundo todo no século seguinte.
Logo depois de concluir seu objetivo principal, isto é a publicação de suas principais
obras, já combalido por doenças, perseguições e medo, Rousseau afasta-se da convivência
social e “volta a ser feliz” ao recolher-se de novo ao campo, tranquilo consigo e satisfeito com
sua obra.
13 Cf. ROUSSEAU, 2004 – p. XXIX (página em números romanos porque a editora numerou com estes as
páginas iniciais do livro que antecedem o texto do próprio Rousseau). 14 Idem – p. XXVIII
15
Enfim, enquanto minhas forças mo permitiram, ao trabalhar para mim, fiz de
acordo com minha capacidade tudo o que pude, pela sociedade; se pouco fiz
por ela, dela exigi ainda menos, e acredito-me tão quite para com ela na
condição em que estou que, se pudesse doravante repousar completamente e
viver apenas para mim, eu faria isso sem escrúpulos. Pelo menos, afastarei
de mim, com todas as minhas forças, o importuno do ruído público.15
O filósofo foi um grande pensador que refletiu sua época e não se eximiu de dizer o
que pensava, muito embora tenha sofrido as consequências; influenciou o Romantismo do
século XIX e acreditava realmente – como desejava de todo o coração – que poderia haver
uma sociedade ideal.
Em suma, Rousseau foi filósofo, escritor, músico, amante das artes, precursor do
romantismo, defensor e um dos idealizadores e críticos do Iluminismo. Graças a tantos
talentos, segue sendo estudado até hoje em escolas – do ensino médio à pós-graduação –,
devido às suas ideias em filosofia, pedagogia, sociologia e, em especial, nos cursos de
ciências jurídicas e políticas.
No fim de sua vida, Rousseau dedicou-se a escrever trabalhos autobiográficos a fim de
transmitir ao público uma verdadeira imagem de si, em face às outras construídas por
terceiros. A linguagem desses escritos é profunda e extremamente sensível, o que leva muitos
intérpretes a caracterizar essa época do autor como um momento de desespero e, por vezes, de
loucura. Sua última mudança foi em maio de 1778, para uma pequena cabana nos arredores de
Paris – em Ermenonville – onde morreu solitário a dois de julho desse mesmo ano.
Em síntese, eis sua obra no que diz respeito aos principais escritos16, segundo a
cronologia de sua criação:
- 1755: Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens;
- 1760: A Nova Heloísa, romance de sucesso;
- 1762: Do Contrato Social, Emílio ou Da Educação e As Quatro Cartas;
- 1764-1770: As Confissões;
- 1776: Os Devaneios de um Caminhante Solitário – não concluído devido à sua morte.
15 ROUSSEAU, 2009 (As Quatro Cartas – IV) – p. 48. 16 DENT, N. J. H. Dicionário de Rousseau; tradução de Álvaro Cabral – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996 – p.
13 usque 127
16
1.2 - Contextos históricos e filosóficos
Os séculos XVII e XVIII são o meio no qual os contratualistas modernos estavam
imersos, e é preciso compreender as modificações – sociais, religiosas etc. – que ocorreram
nessa conturbada época para que possamos falar sobre o contexto filosófico no qual tais
pensadores estavam envolvidos, inclusive Rousseau. E as mudanças ocorridas nesses dois
séculos podem ser resumidas em uma única sentença: uma nova ordem social surgia.
Os fatos mais significativos dessa nova ordem social se mostraram mais intensamente
na Inglaterra, e dentre tantos, dois nos parecem mais expressivos: o capitalismo nascente –
impulsionado pelas navegações e a intensificação das relações marítimo-comerciais – e a
expansão da visão de mundo e pensamento protestante – sobretudo o de Calvino. No que
tange ao Calvinismo, eles negavam a mediação da Igreja para a salvação do homem e
afirmavam que todo indivíduo, por si só – mediante a própria interpretação da Bíblia – era
capaz de obter a salvação e, junto a isso, também era capaz de ser dono de seu destino na
Terra, ou seja, cada homem era responsável por seu sucesso material e também espiritual; já
com relação ao Capitalismo – que coloca, grosso modo, o dinheiro como meio para obtenção
de todas as necessidades do homem – e seu modus operandi da obtenção de lucro a todo
custo, podemos dizer que as relações entre os homens tornaram-se mais utilitaristas e, com
isso, houve um exacerbamento do individualismo. Ou seja, tanto o Calvinismo como o
Capitalismo colocam o homem individual como o centro.
O cenário social inglês do século XVII resume-se como a consolidação de
uma sociedade moderna, urbana, burguesa, individualista, antropocêntrica e
mercantilista que se sobrepunha cada vez mais sobre uma sociedade
medieval, rural, aristocrática, corporativista, teocêntrica e feudal, embora tais
rupturas com o passado não necessariamente signifiquem que não viessem a
sobrar, no presente, resquícios do mesmo.
Um outro fator que causou mudanças sociais não somente na Inglaterra, mas
na Europa em geral, foi a já mencionada expansão marítimo-comercial
iniciada no século XVI, pois ela fez com que as diversas sociedades
europeias passassem a enxergar o mundo sob novas perspectivas,
alimentando esperanças no sentido de, ao encontrarem novas terras, nelas
poderiam construir um novo mundo << assim como esboça ficcionalmente o
romance Robinson Crusoé, de Defoe >>; foi assim que muitos, cansados da
vida europeia, ou mesmo sem maiores perspectivas na Europa, arriscaram a
própria sorte emigrando para a América, para a África, para a Ásia e para a
17
Oceania, em busca de riquezas, principalmente, e em busca da construção de
uma nova Europa.17
Com essa ideia de crescimento pessoal e, principalmente, a possibilidade de
ascendência social – o que era impensável em uma sociedade aristocrática, como a anterior –
o indivíduo passa a ter novas esperanças e, com isso, novas ambições. Diante disso, tudo o
que não caminhava nessa direção ou não defendia essa visão de mundo, devia ser questionado
ou exterminado. Por isso, as principais teorias e questionamentos dos grandes pensadores
tinham como principais alvos a Igreja – o clero – e a monarquia; que tinham suas razões
fortalecidas por causa da corrupção do clero – devido à venda de indulgências e à simonia18 –
e a falta de capacidade da monarquia em manter a ordem social.
Diante de tais reviravoltas sociais, religiosas e intelectuais que ocorreram nos séculos
XVII e XVIII, os pensadores debruçaram-se principalmente sobre as questões políticas, éticas
e pedagógicas – pois era preciso estabelecer novos princípios e maneiras para se viver e reger
a sociedade, afinal, o modelo antigo já não dava mais conta do novo cenário que nascia –, e as
duas principais correntes da época podem ser divididas em naturalismo – doutrina que
defendia a primazia da natureza e, portanto, que as leis civis não poderiam contrariar as leis
naturais – e contratualismo – que tem por fundamento o contrato, cuja função é a de mediar as
relações entre os homens.
Dentre essas correntes distribuíam-se os filósofos ditos empiristas ou racionalistas, no
entanto, muito embora discordassem em muitos pontos, a visão de homem continuava a ser
antropocêntrica.
A visão de mundo empirista adotada por Locke e iluminista adotada por
Rousseau fazem com que ambos coloquem o ser humano, sobretudo em seu
aspecto individual, como o centro da realidade; nesse sentido, verifica-se, em
ambos, uma postura antropocêntrica e individualista; antropocêntrica pelo
fato de que cabe ao ser humano apropriar-se da realidade, organizando-a a
fim de servir-se a si próprio; individualista pelo fato de que, para isso, terá
de contar principalmente consigo mesmo, sem qualquer recurso a uma
instância sobrenatural ou divina, pois: “Não se poder tirar do homem a tarefa
de ordenar seu mundo – e nesta sua configuração e comando, ele não pode e
não deve contar com uma ajuda de cima ou com uma assistência
17 BATISTA, Gustavo Araújo. O naturalismo e o contratualismo em John Locke e em Jean-Jacques Rousseau.
1ª edição – Curitiba-PR: Editora CRV, 2010 – p. 29 18 Compra ou venda ilícita de coisas espirituais (como indulgências e sacramentos) ou temporais ligadas às
espirituais (como os benefícios eclesiásticos); cf. Houaiss, Instituto Antônio (org.); Dicionário Houaiss Conciso;
editor responsável: Mauro de Salles Villar. 1ª edição – São Paulo: Editora Moderna, 2011.
18
sobrenatural. A tarefa está colocada para ele – e deve ser solucionada com
seus recursos, com recursos puramente humanos”19.20
E, como a responsabilidade agora estava nas mãos do homem – e não mais no destino
ou na “cor do sangue” – era preciso repensar as instituições e o modo de organizar a
sociedade e, como necessidades inerentes a tais projetos, pensar uma nova política, as
implicações morais de tal visão de mundo e também uma pedagogia que tornasse possível um
modelo de homem que viveria em tal sociedade e, esse homem – impulsionado pelo aumento
da atividade manufatureira através das artes e dos ofícios – é o homem burguês.
No entanto, apesar de as transformações terem pululado na Inglaterra – principalmente
no século XVII – com o aquecimento do mercantilismo e com a Reforma Protestante, é,
sobretudo na França do século XVIII que ocorreu a consolidação desse novo modelo de
homem que hoje chamamos de homem moderno.
O Século XVIII é também um período de grandes e intensas transformações
sofridas pela Europa, transformações essas que atingiram principalmente a
França, que se tornou, consequentemente, o maior exemplo das mais
diversas agitações que fizeram com que a civilização ocidental europeia
sacudisse sob o jugo de conflitos cujo escopo era a implantação de
mudanças, conflitos tais que foram tanto pacíficos (tais como as disputas
intelectuais entre os enciclopedistas e os demais intelectuais dessa época)
quanto violentos (tais como a Revolução Americana de 1776 e a Revolução
Francesa de 1789), o que implica afirmar que refletir sobre o microcosmo
setecentista francês significa, ainda que parcialmente, refletir sobre o
macrocosmo europeu setecentista.21
E é justamente na França setecentista – encabeçado pelos enciclopedistas – que surgiu
o movimento chamado de Iluminismo – ou Ilustração. Esse nome, assim como também os
epítetos “século das luzes” ou “do esclarecimento” tornaram-se característicos ao falarmos do
século XVIII; um século de efervescência social, mas também, intelectual.
19 CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau. – São Paulo: Editora UNESP, 1999. (Biblioteca básica) –
p. 109. 20 BATISTA, 2010 – p. 156 21 Idem – p. 50
19
1.3 - Iluminismo de Rousseau (França)
Esclarecimento ou << ilustração >> [Aufklärung] é a saída do homem de sua
menoridade da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de
fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é
o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta
de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si
mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tenha coragem e ousadia de
fazer uso de teu próprio entendimento, tal é a palavra de ordem do
esclarecimento.22
Essa pequena epígrafe supracitada, embora tenha sido escrita por um alemão em 1784
– Immanuel Kant – reflete muito bem o pensamento dos intelectuais do século das luzes, que
é denominado Iluminismo.
O Iluminismo foi um conjunto de ideais que foi gerada através de pensadores do
século XVIII – o chamado Aufklärung (iluminação, ou esclarecimento como é mais
conhecido) –, teoria que pregava a tese de que a razão poderia esclarecer todos os possíveis
erros, tirando assim, o homem das trevas da ignorância. Com o advento das importantes
descobertas científicas da época, os gênios se maravilharam e achavam que por meio da razão
o homem poderia alcançar o seu pleno desenvolvimento. Para a maioria dos filósofos
iluministas o processo de desenvolvimento da história e também da humanidade é um
progresso linearmente contínuo. Ideia que foi contestada – e ainda hoje é – após o banho de
sangue da Revolução e, muito depois, pelo Nazismo ocorrido já no século XX em uma das
nações mais intelectualizadas, a Alemanha.
O texto de Kant é importante porque nos mostra o que estava por trás das ideologias
vigentes, todas em ligação com as posteriores; ou seja, desde a Reforma na Inglaterra e os
questionamentos em relação ao poder absoluto, o homem foi colocado no centro do mundo –
antropocentrismo – e, somente ele, poderia ser responsável pelo seu destino intelectual, moral
e espiritual. A Igreja, o rei, os tutores, ninguém poderia mais ditar os parâmetros a serem
seguidos, mas tão somente o indivíduo, que, ao fazer uso de sua capacidade racional, deve
refletir criticamente as suas atitudes e também o meio ao qual está imbuído. O individualismo
já estava sacramentado e, a visão de mundo medieva, jazida. Tudo deveria ser questionado,
tudo deveria ser transformado. No entanto, vale lembrar que esse modo de colocar a razão
22 KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
20
sobre o pedestal não é uma ideia que nasce nos séculos XVII e XVIII, mas que permeia toda a
história da Filosofia, desde Platão.
A tradição filosófica, desde os seus primórdios, tem comparado a faculdade
racional do ser humano à luz que o ilumina para o verdadeiro conhecimento
da realidade. Impregnados de tal pensamento, os filósofos ilustrados
propunham que a razão é o que pode esclarecer a humanidade, libertando-a
das trevas da ignorância, do engano, do erro, da superstição, do fanatismo e
do vício, instaurando, pois, para a humanidade uma era de sabedoria, de
conhecimento – << e autoconhecimento >> –, de veracidade, de tolerância,
de esclarecimento, de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Suas ideias
foram simpáticas principalmente à burguesia em ascensão, uma vez que os
iluministas criticavam e combatiam as instituições do Antigo Regime,
estimulando mudanças políticas, econômicas, sociais, religiosas e
pedagógicas, preparando, consequentemente, a conjuntura para a
Revolução.23
No entanto, o Iluminismo do século XVIII e, principalmente na França, é marcado por
um criticismo tão acentuado que a crítica era também uma autocrítica, ou seja, era preciso
constantemente voltar-se a si mesmo para o exercício de um ininterrupto refletir. Era um
tempo de turbulências várias e de desconfiança, de suspeita geral, um terreno fértil para as
tendências céticas, o relativismo e a intolerância.
As luzes da razão, que deveriam retirar os homens das trevas do fanatismo e da
ignorância, parecem os ter colocado num obscurantismo muito maior de individualismo,
hedonismo e soberba. E muitos filósofos perceberam esse problema – o olhar sobre si torna o
homem mais corrupto.
Dentre esses críticos, estava Rousseau, que, embora pertença à filosofia do
Iluminismo, segue o caminho dos racionalistas e utilitaristas, e sua maior contribuição a essa
escola é a sua posição crítica. Para ele, o desenvolvimento humano não é contínuo e muito
menos linear – num constante progresso – mas sim, dialético, num processo de antinomia
dentro de si mesmo, ou seja, a natureza humana está em constante modificação, pois o homem
está constantemente relacionando-se com outros homens, mas ao mesmo tempo, está
condicionado pelas relações que mantém com a natureza. E se o seu progresso depende
também dessa sua relação com o meio material, é de se esperar que não só a Reforma do
Entendimento seja capaz de iluminar o homem. Devido a essas posições, Rousseau é um
iluminista que combate o Iluminismo. 23 BATISTA, 2010 – p. 55
21
É um filósofo do Iluminismo que se opõe à ideologia do Iluminismo do
interior da filosofia do Iluminismo. É um inimigo interno. Donde o fundo
teórico, e não apenas psicológico, de seus conflitos pessoais com Voltaire,
Diderot, Hume, Barão de Holbach etc., em suma, com os Enciclopedistas e
os “filósofos”. A razão dessa posição crítica reside justamente na origem
nova de sua inspiração, no tom plebeu de suas concepções e
reivindicações.24
Segundo a visão de Rousseau, o problema dos filósofos iluministas era a concepção de
que a razão seria por si só a responsável – o motor – do desenvolvimento humano, mas para o
genebrino, existem outros fatores imbricados nesse processo, e que – ao contrário do que
pensavam os iluministas – a razão é na verdade um produto da sociedade, afinal, o próprio
Rousseau diz que em estado de natureza o homem não reflete, apenas tem desejos e
necessidades sensuais – principalmente a de autoconservação. Inclusive, em seu Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, o filósofo afirma que ao
invés de as artes e as ciências terem melhorado o homem, elas o corrompeu.
Filho de artesão, Rousseau viveu numa França que passava por períodos muito difíceis
– internos e externamente – com os conflitos mantidos com Inglaterra, com a manutenção e
também envio de tropas para colônias africanas, assim como o apoio à libertação dos
estadunidenses do Governo inglês; estes ônus ficaram diretamente ao cargo do povo, que
pagava mais impostos para sustentar um Estado cada vez mais deficiente e um governo
corrupto. Por seu descontentamento e ideias contrárias às instituições de sua época, o filósofo
genebrino foi considerado como o maior influenciador da Revolução Francesa, apesar de não
ter participado ativamente da mesma e tampouco ter defendido explicitamente em suas obras
algo como o que aconteceu na Revolução Francesa; suas ideias – principalmente as expressas
no seu Do Contrato Social – e seus estudos, motivaram a população – orquestrada pela
burguesia que tinha seus próprios interesses – à revolução. Interpretado à revelia – ao modo
como convinha aos defensores da insurgência –, o Do Contrato Social foi considerado por
muitos como a bíblia da revolução francesa.25
(...) Rousseau pertencia ao terceiro estado (povo). No entanto, << com outros
filósofos de sua época >>, tinha algo em comum: transformar, através de
24 ALTHUSSER, 2007 – p. 102 25 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; tradução de Paulo Neves – Porto Alegre: L&PM, 2010
22
suas ideias, a ordem social vigente no Antigo Regime, razão pela qual foram
extremamente úteis aos revolucionários de 1789, que souberam reconhecer-
lhes os méritos, sobretudo os de Rousseau, que era uma referência constante
no discurso revolucionário. Embora a relação entre “Os Filósofos”26 e a
Revolução não seja uma relação de causa e efeito daqueles em relação a esta
(pois poderia acontecer sem eles), os mesmos constituíram um referencial
teórico para que os revolucionários pudessem concretizar as transformações
que ansiavam colocar em prática.27
Mas Rousseau jamais expressou de maneira categórica que fosse por meio de
revoluções que as instituições seriam purificadas, mas, ao contrário, defende em seus escritos
– não só nos considerados políticos, mas também no Emílio ou Da Educação – que uma
sociedade justa só poderia ser construída por bons homens – lapidados longe da corrupção
social – e, consequentemente, bons cidadãos. Tal projeto só seria possível mediante uma boa
educação, formando homens capazes de boas relações com os outros homens e também com a
natureza, trazendo assim, o homem o mais próximo possível de sua condição inicial de estado
de natureza. Para tanto, dois conceitos – diferentemente dos iluministas que colocavam a
razão no pedestal – são extremamente caros a Rousseau: o amor e a piedade.
A piedade é “o puro movimento da natureza anterior à reflexão”. Essa
qualidade é comum a homens e animais. No estado de natureza, ela possui as
funções da lei natural da qual é substituta. “Dela decorrem todas as
virtudes sociais”: ela é o fundamento das virtudes que a razão descobrirá.
Seu desenvolvimento é antagônico à razão que a abafa, mas ela não
desaparecerá totalmente: a virtude ressurge às vezes, por exemplo, numa
“grande Alma cosmopolita”.
No Emílio, essa teoria é central. A verdadeira iniciação à moralidade ocorre
por meio do amor. (...) A piedade é a verdadeira origem da moralidade.28
Ao lermos erroneamente Rousseau, pode parecer que o autor defenda uma espécie de
individualismo – pois pretende que todo homem seja igual a outro e com plenos direitos –, no
entanto, a nosso entender, ele chama cada indivíduo a participar e se responsabilizar pela
constituição de uma sociedade justa. Bons homens serão bons cidadãos e, consequentemente,
esses bons cidadãos construirão instituições mais justas a todos. Seu iluminismo é
pedagógico, tendo em vista criticar o absolutismo injusto e também a falsa ideia de que o
26 “Os Filósofos” é a maneira como os “Enciclopedistas” se autodenominavam. 27 BATISTA, 2010 – p. 57 28 ALTHUSSER, 2007 – p. 347
23
progresso técnico e artístico possa fazer do homem um ser humano melhor. Vale lembrar que
Rousseau não foi inimigo da razão, mas tão somente que essa razão não pode salvar um
homem que já está doente socialmente. Por isso o homem deve ser inicialmente educado para
ser um bom homem – que esteja primeiramente bem consigo mesmo –, para só depois ser um
bom cidadão – bom para os outros indivíduos da sociedade. No entanto, a importância de
Rousseau com relação ao pensamento revolucionário “cresce com a preocupação sobre o
aspecto social da igualdade e pela extensão da cidadania a uma parcela muito mais ampla
da população”.29
(...) Daí os Jacobinos terem colocado, em 1794, seus restos mortais ao lado
dos de Voltaire, já homenageado três anos antes, numa fase de predomínio
liberal na Revolução. Simbolizadas pelas duas homenagens, eram propostas
que se digladiavam, eram definições de “revolução” que se enfrentavam e
distinguiam.
Formaram-se assim os diversos partidos ou grupos de opinião, cada qual
com seu programa, que se burilava à medida que era criticado pelos rivais.30
29 GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo – A crítica radical do “Espírito das Luzes”; Críticos,
céticos e românticos; Uma nova ordem social. 2ª edição, 2ª reimpressão – São Paulo: Editora Contexto, 2016. –
p. 105. 30 Ibidem – pp. 105-106
24
Capítulo 2
Corrente Contratualista e Filósofos que influenciaram Rousseau
2.1 – Contratualismo
Contratualismo é o nome que foi dado à doutrina que reconhece o fundamento do
Estado – sociedade civil – e o seu mantenemento numa espécie de convenção entre os seus
membros, sendo que tal convenção recebe o nome de contrato. Esse contrato – de um modo
geral – é uma espécie de organização político-social fundamentada no pacto – seja explícito
ou implícito – realizado entre os indivíduos que formam, a partir daí, um corpo político que
detém o poder – soberania. A partir disso, esse corpo político-social então delega a um ou
vários indivíduos o direito de governar, instituir e proteger as leis, e também administrar os
meios para se garantir o fim último que é o mantenemento da ordem, da paz, da segurança na
sociedade e as liberdades individuais dos cidadãos. Para os filósofos defensores de tal
doutrina – os jusnaturalistas – os homens teriam direitos naturais que só podem ser garantidos
pela força quando não há um poder que possa os regular e, sendo assim, deveriam abrir mão
de tais direitos para se associarem a uma comunidade mais justa e igual.31 Os principais
conceitos que estão em jogo são: estado de natureza – o homem bom ou em estado de guerra,
estado civil – possível mediante o contrato social – e rompimento do contrato, sendo que tais
conceitos não possuem a mesma significação para os principais filósofos contratualistas.
O interesse primeiro dos principais contratualistas – muito embora atribuam o epíteto
de filósofo da guerra a Hobbes – é o convívio pacífico entre os homens, ou seja, uma
condição de vida em comum onde não haja conflitos que coloque em risco a integridade e
nem a posse das pessoas e, juntamente a essa problemática, surge a questão da legitimidade
do poder, afinal, na época a burguesia ascendia devido ao capitalismo nascente e a monarquia
era cada vez mais desacreditada devido aos abusos cometidos por monarcas e a fragilidade em
manter a ordem. Com cada vez mais homens ascendendo socialmente, mais iguais eles se
tornam – frente à desigualdade natural aceita pelos sistemas e pensamentos anteriores – e
31 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia – edição revista e ampliada; tradução da 1ª edição
brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho
Benedetti – 5ª edição: Martins Fontes, 2007, São Paulo – pp. 239-240
25
mais direitos requerem diante de seus iguais. A humanidade composta por homens desiguais
por natureza passa então a ser vista como um conjunto de indivíduos únicos – mas iguais em
direito –, de maneira racional e mecanicista. E com esse tipo de visão, já não admite-se mais
que algum homem tenha nascido exclusivamente para ser senhor enquanto outros para serem
escravos. No entanto, como viver em paz mediante tal visão? Por meio de um pacto – contrato
– através do consentimento dos indivíduos.
(...) o consentimento (explícito ou implícito) leva ao acordo (isto é, ao
contrato social) que, por sua vez, leva à sociedade política, em cujo seio se
estabelece o Estado, entidade cujo governo faz-se pela elaboração e pelo
cumprimento das leis civis feitas por aqueles membros do corpo político
encarregados de tais tarefas. O consentimento torna-se, pois, o fator
primordial pelo qual a sociedade política passa a existir, uma vez que esta é
resultado de um pacto ou contrato que só tem origem se houver disposição
de cada indivíduo em fazer parte dessa mesma sociedade ou corpo político,
disposição essa que constitui o consentimento, que pode ser tanto expresso
ou explícito quanto tácito ou implícito; quando o consentimento é feito de
maneira que o indivíduo declare perante aos demais sua pertença ao corpo
político, trata-se do consentimento explícito; quando o consentimento não é
feito de forma que o indivíduo se expresse abertamente como parte da
sociedade política, mas de forma que seu comportamento revele sua
aceitação de viver nessa mesma sociedade, trata-se do consentimento
implícito.32
De um modo geral, os contratualistas são defensores do estado civil frente ao estado
de natureza porque, neste, as condições de preservação da vida e também da propriedade são
inferiores àquele, ou seja, uma vida isolada – no estado de natureza – é muito mais difícil ao
homem – que está somente sob sua conta e risco – do que uma vida conjunta no estado civil,
onde ocorre a união das forças. No entanto, isso não quer dizer que os autores consideram o
estado civil um paraíso, mas tão somente que as limitações e os malefícios trazidos por tal
estado são inferiores aos benefícios. E exatamente por não achar que os problemas dos
homens estão necessariamente resolvidos só pelo fato de eles viverem em um estado civil, que
os contratualistas – assim como fizera também Comênio, apesar de possuir um propósito
diferente – preocupavam-se em desenvolver – junto às suas teorias políticas – alguma teoria
pedagógica que pudesse atenuar os malefícios – exacerbação das paixões, por exemplo –
advindos do convívio em sociedade.
32 BATISTA, – pp. 128-129
26
Defendendo que a educação moral é a parte mais importante da educação,
Comênio antecipa-se tanto a Locke quanto a Rousseau (para os quais a
educação moral é também aquilo que mais importa na educação), apesar de
terem objetivos diferentes em relação à mesma, pois Comênio defende que a
finalidade da educação repousa, em última instância, no alcance da vida
eterna, cujo mérito consiste em uma conduta moral de acordo com os
desígnios divinos, razão pela qual a educação deve propiciar os melhores
meios possíveis para que o educando adquira uma conduta virtuosa na vida
terrena presente para que, finda esta, torne-se digno do prêmio que é a vida
celestial no porvir; em contrapartida, Locke e Rousseau alegam que a
finalidade da educação moral repousa, em última instância, na formação do
ser humano virtuoso a ponto de tornar-se o exemplo mais digno de cidadão,
ou seja, enquanto a finalidade da educação moral comeniana vincula-se a
questões não apenas sociais mas, principalmente, religiosas, a finalidade da
educação lockeana e rousseauniana liga-se a critérios estritamente civis.33
Como foi dito acima – no tópico Contexto Filosófico –, a Europa dos séculos XVII e
XVIII estava passando por diversas modificações – sociais, religiosas etc. – e isso, teve
influência determinante no pensamento dos contratualistas. Em um mundo no qual não se
tinha mais uma visão de mundo “homogênea” – onde o coletivo prevalecia frente ao
individualismo, como na Antiguidade e Idade Média –, no qual os horizontes foram
expandidos pelas navegações, as relações entre os homens se diversificaram e era preciso
estabelecer novas maneiras e regras para reger esse novo mundo. Em um mundo cada vez
mais individualista, cada homem sente-se mais tentado a usufruir de sua liberdade individual,
e isso acarreta um conflito de liberdades entre os indivíduos. Ao pensar no crescimento
pessoal, o homem já não mais valora o todo, a família, as relações coletivas e, com isso, a
palavra oral já não cabia como garantia em um mundo tão grande e antropocêntrico, daí a
importância crucial do contrato como tentativa de restabelecer a união social que fora abalada
devido a essas novas transformações. O contrato traz para as relações – principalmente se ele
for escrito, e não só um conceito abstrato – de volta a confiança recíproca entre os homens;
traz garantias maiores a cada homem que abre mão de sua liberdade frente a outro homem –
muito embora existisse a possibilidade de que fosse rompido o pacto. Por ser um exercício
livre34 da vontade, o homem sente-se moralmente obrigado por sua própria consciência e – no
caso de ser algo escrito – também juridicamente perante as instituições.
33 Idem – p. 37 34 A vontade de aderir ou não ao contrato é livre, mas nem sempre a motivação que nos leva a uma relação
contratual é livre, ou seja, podemos nos comprometer a determinado contrato meramente por medo, ou também
por interesses, movido por nossas paixões, por exemplo.
27
A essência do contrato é versar sobre o futuro; donde a necessidade do
raciocínio e da linguagem, de signos que indiquem o futuro, vinculando os
homens para o futuro. Isso implica que não se deve estabelecer contrato com
aqueles que não falam: os animais, as crianças, Deus. Todas as formas de
contrato especificam essa forma original que é limitação formal de duas
liberdades. Donde:
- O contrato é apenas um ato da pura vontade abstrata, que se exerce na
submissão ao temor, móbil do contrato. Entra-se em acordo por temor de,
ou seja também, mais positivamente, no interesse de...
- O contrato formado sob violência também é válido (cf. contrato de
escravidão): o escravo consentiu para salvar a vida. O contrato de
escravidão, efeito direto da coação da morte, é mesmo o contrato-tipo.
- O contrato tem limites: o contrato cessa quando tem como efeito a morte
do indivíduo.35
2.2 - Thomas Hobbes
Thomas Hobbes ( 5 de abril de 1588 – 4 de dezembro de 1679), inglês, foi
influenciado por Francis Bacon – assim como teve contato com a obra de Galileu –,
Aristóteles e Maquiavel; influenciou Rousseau, Locke, Spinoza, Montesquieu e Nietzsche.
Sua obra-prima foi Leviatã. Veio de uma escola racionalista, mecanicista e nominalista.
Influenciou as ideias de que haveria necessidade de se formular um contrato social a respeito
do estado da natureza dos homens e da soberania das leis – Hobbes é considerado, por muitos,
como o pai do contratualismo moderno.
Na base da filosofia de Hobbes, assim como nas obras da maioria dos pensadores dos
séculos XVII e XVIII, quatro conceitos fundamentais estavam sempre presentes e em
discussão: estado de natureza, estado civil, contrato e rompimento do contrato.
De acordo com o pensamento do filósofo inglês, o homem, em seu estado de natureza,
existe mediante uma condição de guerra de todos contra todos36. No entanto, muito embora
seja atribuído a Hobbes um pensamento pessimista diante da humanidade, ele não condena
veementemente todo gênero humano e muito menos faz generalizações. Mas sim, ele parte da
ideia de que boa parte dos homens não consegue controlar as suas paixões e, por isso, seria
necessário um poder superior que pudesse regular tais paixões.
35 ALTHUSSER, 2007 – p. 295 36 A guerra de todos contra todos geralmente é entendida como uma guerra de fato, com homens lutando entre si,
no entanto, o que está em jogo em Hobbes é mais o temor do que o terror, ou seja, só o fato de eu temer um
ataque de um outro homem já me faz antecipar o meu ataque contra ele – a guerra é uma guerra preventiva.
28
Assim como fará depois Rousseau, Hobbes parte do conceito de estado de natureza
para justificar sua teoria, porém, ao contrário do que irá propor o filósofo genebrino – que
afirma que o homem é bom em estado de natureza –, Hobbes afirma que no estado de
natureza o homem vive num constante estado de luta devido à sua própria natureza corrupta e,
mesmo que um homem seja mais forte do que outro, é impossível que ele consiga evitar o
ataque alheio – preservar sua vida e seus bens por todo tempo de vida que a natureza lhe
permite –, pois um homem mais fraco pode vencer um mais forte por astúcia. Esse estado
conflituoso é proveniente do fato de que a natureza deu tudo a todos, e logo um homem
quererá algo pertencente a outro.
(...) se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é
impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho
para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes
apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.37
Sendo assim, partindo da análise de suas próprias paixões – assim como Hobbes fez
para desenvolver sua metodologia – cada homem passa a ter medo dos outros homens por
poder ser subjugado a qualquer momento e, com isso, perder suas posses, sua liberdade e
possivelmente sua vida. Então, por desconfiança em relação aos outros – e por perceber em si
e nos outros homens o espírito de competição e a mesquinhez –, o homem se antecipa ao
ataque como uma maneira de se defender, até que consiga subjugar todos os que possam
atacá-lo, por isso o estado de guerra.
Devido a esse estado de desconfiança e o constante perigo de morte que ronda cada
um dos homens, faz-se necessário um acordo – um preceito emitido pela razão que os faça
buscar pela paz – e um poder superior a todos, que faça com que cada um abra mão de sua
liberdade – ausência de obstáculos – para com isso privar seu oponente também da liberdade
de atacar, pois, segundo Hobbes, no estado de natureza nada limitava a liberdade dos homens,
sendo que todos tinham direito a tudo, no entanto, essa condição leva à guerra de todos contra
todos justamente porque uma liberdade excessiva leva à não-liberdade – a liberdade de um
entra em conflito com a liberdade do outro e, assim, todos passam a não ter liberdade. Se tudo
é de todos, não há nada que seja de alguém.
37 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil; tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. – 4ª edição – São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção os
Pensadores) – pp. 74-75
29
A liberdade natural se volta contra si mesma, e todas as determinações do
direito natural se voltam contra si mesmas: o direito de todos a tudo é
desapossamento. A realização da liberdade humana produz sua negação: o
estado de guerra se nega, numa contradição mortal.38
Esse suposto acordo seria para estabelecer regras, ou seja, leis – que limitassem as
aparentes liberdades absolutas e fornecessem liberdades civis duradouras – e, nessas
condições, o povo deveria se reunir em assembleia, elegendo um representante para criar
essas normas de sobrevivência em sociedade e tentando, por sua vez, alcançar a
sobrevivência, caso contrário, haveria um caos sem fim. Nesse pacto os indivíduos adeririam
por livre e espontânea vontade para obter a sua segurança contra os outros. Para que possa ser
estabelecido tal acordo, cada indivíduo deve abandonar o direito de poder fazer tudo para que
– ao transferir esse direito ao um superior ou a uma assembleia – tenha garantida a sua
liberdade e a sua vida. “A transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato”.
(HOBBES, 1988 – p. 80).
Porém, do pacto – contrato – só fazem parte os indivíduos, mas não o soberano, pois o
soberano não poderá estar submetido a nenhuma lei – ele tem o direito à guerra, o poder à
justiça e a obrigação de legislar, sendo que legislar também é educar, no sentido de infundir
novos e melhores costumes em seus súditos. Tal poder deve ser absoluto para que cada
indivíduo seja submetido e mais fraco do que ele, afinal, se não houver nada mais forte –
superior – aos indivíduos particulares, nada os fará manter suas promessas de que não
utilizarão suas liberdades aos seus bel-prazeres. Se não houver uma força ou autoridade que
iniba os súditos – que devem alienar-se de maneira total – de agirem de acordo com suas
paixões desenfreadas, não há condições para um contrato válido.
Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte, e
uns confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma
condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor
suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum
situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu
cumprimento, ele não é nulo.39
38 ALTHUSSER, 2007 – p. 290 39 HOBBES, 1988 – XIV, p. 82
30
Contudo, vale lembrar que o soberano – superior a todos – seria o responsável por
manter a paz interna – controlando as paixões dos súditos – e externa, mas também aquele
capaz de proporcionar um bem estar a todos – como hoje chamaríamos de Welfere State –,
sem exceção, pois senão o seu governo tornar-se-ia nulo e, nesse caso em particular, o direito
à revolução é válido para os indivíduos porque cada um deve utilizar-se de qualquer meio
disponível para manter a sua preservação e tudo o quanto acha necessário para o seu bem-
viver, inclusive as armas. Ou senão, não faria sentido abrir mão de sua liberdade e viver de
uma maneira mais perigosa do que cada um encontraria em seu estado de natureza.
O soberano é primordial porque ao ceder minha liberdade e comprometer-me com ele,
deixo de comprometer-me com outro indivíduo particular que poderia quebrar sua promessa a
qualquer momento, e assim, passo a ter – assim como cada indivíduo passa a ter perante outro
– uma força maior, e com isso uma garantia maior, da minha segurança e preservação, pois o
soberano ou assembleia de homens é mais forte do que qualquer indivíduo. Ou seja, se os
homens não podem – em sua totalidade – cumprir suas promessas ou respeitar seus contratos
apenas por um caráter íntegro, é preciso que tenham medo – do Céu ou de um soberano – para
que assim façam.
Dado que a força das palavras (conforme acima assinalei) é demasiado fraca
para obrigar os homens a cumprirem seus pactos, só é possível conceber, na
natureza do homem, duas maneiras de reforçá-la. Estas são o medo das
consequências de faltar à palavra dada, ou o orgulho de aparentar não
precisar faltar a ela. Este último é uma generosidade que é demasiado raro
encontrar para se poder contar com ela, sobretudo entre aqueles que
procuram a riqueza, a autoridade ou os prazeres sensuais, ou seja, a maior
parte da humanidade. A paixão com que se pode contar é o medo, o qual
pode ter dois objetos extremamente gerais: um é o poder dos espíritos
invisíveis, e o outro é o poder dos homens que dessa maneira se pode
ofender. Destes dois, embora o primeiro seja o maior poder, mesmo assim o
medo do segundo é geralmente o maior medo.40
40 Ibid. – p. 84
31
2.3 - John Locke
John Locke ( 29 de agosto de 1632 – 1704) nasceu em Wrington – Somerset –,
formou-se em medicina pela Universidade de Oxford, frequentou por um bom tempo o
ambiente intelectual holandês e teve como projeto – pode-se dizer que seja a unidade
sistemática de seu pensamento – o estabelecimento de um método de investigação do espírito
e de sua relação com o corpo, para que se descubra o quão capaz é a racionalidade em cada
setor do saber e, assim, levá-la ao seu maior grau.
Como filho do século XVII, Locke teve seu pensamento extremamente influenciado
pelas enormes transformações por quais passava a Europa e, principalmente, a Inglaterra, e
também pelas sangrentas Guerras Civis Inglesa – 1642 a 1651 – e a Revolução Gloriosa41 que
findou em 1689, ano em que o filósofo de Somerset retornou à Inglaterra após permanecer
algum tempo em Montpellier – onde fora morar, muito provável, por causa de sua frágil
saúde. Imerso em turbulentos acontecimentos, não é de se estranhar que boa parte – talvez a
maioria – de suas reflexões e seus escritos fosse direcionada à política. “É possível recolher
indícios sobre as opiniões de Locke a respeito de política e sociedade em praticamente tudo o
que ele escreveu”.42 No entanto, o Segundo Tratado sobre o Governo é considerado como a
obra mais importante no que tange às questões políticas e sociais concebidas pelo filósofo
inglês.
Assim como fizera Thomas Hobbes e, posteriormente, fez também Jean-Jacques
Rousseau, John Locke desenvolveu suas concepções políticas com fundamento na ideia de um
contrato e também de soberania – magistrado, na acepção do filósofo inglês –, sendo essa
soberania um poder absoluto sobre todos os membros, a fim de manter a ordem e a paz na
sociedade.
Toda confiança, todo o poder e toda a autoridade do magistrado são nele
investidos com o único propósito de serem empregados para o bem, a
preservação e a paz dos homens na sociedade da qual ele se incumbe, e,
portanto, só isso é e deve ser o padrão e a medida de acordo com os quais ele
deve regular e ajustar suas leis, moldar e estruturar seu governo. Pois se os
41 Invasão da Inglaterra pelo príncipe Guilherme de Orange e fuga de Jaime II. E o termo Revolução Gloriosa –
1688-1689 – deve-se ao fato de que a maior parte da revolução foi não-violenta, inclusive, o outro epíteto para o
fato é “Revolução sem sangue”. 42 LOCKE, John. Ensaios políticos; organizado por Mark Goldie; tradução de Eunice Ostrensky. – São Paulo:
Martins Fontes, 2007 (Clássicos Cambridge de filosofia política) – p. XLI
32
homens pudessem viver juntos em paz e tranquilidade, sem se unirem sob
certas leis e ingressarem numa república, não haveria necessidade de
magistrados ou políticas que são criadas apenas para preservar os homens,
neste mundo, da fraude e da violência mútuas; por isso, a única medida de
seu procedimento deveria ser a finalidade pela qual se erige o governo.43
Para Locke, a legitimidade do magistrado era dada por Deus e, sendo assim, o poder
desse deveria ser supremo, ilimitado. Porém, a supremacia desse poder só é legítima quando o
seu exercício é lícito e direciona-se ao bem público, ou seja, cabe ao magistrado somente
impor aos seus súditos – subordinados – aquilo que ele julga ser necessário para o bem-estar
de toda a sociedade e sobre aquilo que Deus não impôs leis, não intervindo na liberdade das
pessoas com relação às especulações e ações que não dizem respeito ao governo e à
sociedade. O seu papel é garantir a liberdade, a paz e as propriedades dos cidadãos, não
devendo impor seu poder às coisas que sejam indiferentes a esse propósito. O máximo que o
magistrado pode fazer com relação às coisas indiferentes é dar exemplo.
(...) é ótima medida do príncipe ensinar ao povo o serviço a Deus por meio
do próprio exemplo, e é bastante provável que as sendas da virtude e da
religião serão trilhadas por muitos, se conduzirem ao crédito e à promoção, e
o príncipe decerto terá uma longa fila de seguidores por onde quer que vá.
Mas nem todos os homens vivem sob a influência da corte, nem se vivessem
seriam todos tão engenhosos para ser assim tão facilmente conquistados à
causa da bondade. Esse é um, porém não o único, modo de atrair os homens
a seu dever, e tampouco proíbe ao magistrado o rigor das leis e a mais severa
aplicação de sua autoridade quando a obstinação e impertinência do povo
não puderem ser corrigidas de outra maneira.44
Locke diz, em seu ensaio Poder civil e eclesiástico45, que a maioria dos homens, por
fazer parte de uma sociedade duplicada – sendo uma civil e outra religiosa –, buscam dois
tipos de interesses: a felicidade terrena e a felicidade além-vida. Sendo que é de
responsabilidade do magistrado – na medida de suas possibilidades e no exercício de sua
vontade para que assim seja – apenas a felicidade e o bem estar terreno, não sendo de
competência dele a interferência nos assuntos que dizem respeito à outra existência. Logo, a
única interferência na vida privada dos indivíduos deve ser única e exclusivamente a de
43 Ensaio sobre a tolerância in LOCKE, 2007 – pp. 167-168 44 Ibidem – p. 67 45 Poder civil e eclesiástico in LOCKE, 2007 – pp. 266-272
33
proteger cada indivíduo contra os outros homens. “Para além dos interesses desta vida, esta
sociedade não tem absolutamente nada a fazer”.46 Tudo o que o magistrado ordena deve ser
lícito e não deve jamais contrariar os preceitos divinos, pois o acordo que todo homem faz
quando submete-se ao contrato é um acordo entre homens e, sendo assim, somente no que diz
respeito às relações entre homens é de competência do magistrado intervir, ficando excluída
dessa intervenção qualquer relação que cada homem faça com o seu Deus. Porém, Locke
defende que os súditos devem obedecer – sem pegar em armas para contrariar – todas as
ordens do magistrado, mesmo as que sejam ilícitas, muito embora este peque se assim
proceder. No entanto, o filósofo inglês acreditava que para cada povo e cada época seria
necessário um modo de governo, ou seja, deve-se entender o ânimo do povo para que se possa
governar de maneira adequada e satisfatória.
Os interesses do magistrado sempre lhe ensinarão a não usar de mais rigor
do que pedem o temperamento do povo e a necessidade da época, pois ele
sabe que obstáculos muito grandes, bem como rédeas demasiado frouxas,
podem fazer esse animal indomável arremessar o cavaleiro. Quem se
recusaria a embarcar porque só o piloto tem a direção do navio, temendo que
ele seja demasiado buliçoso e impertinentemente aborrecido ao leme, e
perturbe a viagem com o mau desempenho de sua tarefa? Quem preferiria
governar o navio com sua mão suave, e não com mão firme, se as ondas e os
ventos permitissem? O piloto somente aumentaria suas forças e violência
com o aumento da tormenta e do tumulto; os meneios e variados
movimentos do navio viriam de fora, não se originando na direção ou no
leme. De quem é mais racional temer o maior perigo: das cabeças ignorantes
ou das sábias? De um conselho organizado ou de uma multidão confusa? De
quem é mais provável nos tornarmos presa: daqueles a quem as Escrituras
chamam de deuses ou daqueles a quem os sábios sempre consideraram e por
isso intitularam animais? Quem não sabe que não é possível estabelecer
sobre a multidão – sempre ansiosa e jamais satisfeita – nada que ela não
se empenhe e se esforce constantemente em derrubar?47.
A relação entre o povo e o magistrado – assim como a relação entre um homem e
outro que estão sob as determinações de um pacto acordado entre si – deve ser uma relação de
confiança, ou seja, os indivíduos – quando abrem mão de sua liberdade individual – confiam
que o magistrado irá proteger a sua vida e a sua propriedade. Cada indivíduo deve ceder
plenamente sua liberdade natural – independentemente do grau que esta seja – ao magistrado
para que esse faça leis que sejam válidas a todos. O poder do magistrado – legitimado por
46 Idem – p. 267 47 Idem – p. 50 (Os grifos são meus)
34
Deus –, mesmo quando cause algumas inconveniências, deve ser supremo e, por isso,
respeitado, pois, por ser algo legitimado por Deus, somos obrigados a obedecer devido à
nossa própria consciência.
(...) se a autoridade do magistrado é retirada, mesmo em parte, de uma, entra
em colapso na outra. Mas, brevemente, respondo: na natureza das coisas não
há nada completamente perfeito e inofensivo de que não possa ou costume
resultar, ou ao menos temer-se, algum mal; e para alguns, muitas coisas
justas e legítimas são regularmente insensatas e onerosas. Mas, na verdade,
essas inconveniências que me sobrevêm ou me podem sobrevir do direito de
outro, de maneira alguma impedem o direito dele.48
2.4 - Hobbes, Locke e Rousseau
As principais teorias modernas a respeito do contrato social – presente nos três
grandes pensadores – se difundiram principalmente durante os séculos XVI a XVIII, como
forma de explicar ou postular a origem legítima dos governos e, portanto, seria uma obrigação
política dos governantes e dos governados.
Para Rousseau, o homem é bom em seu estado de natureza, mas é corrompido pela
sociedade. A propriedade, quando surge, escraviza os homens e aumenta a desigualdade
natural, proporcionando a guerra e levando ao "falso" contrato social. Para ele, portanto, os
contratos são construções artificiais, criadas para subordinar e sem relação com a natureza
humana. Sua finalidade é superar o estado civil, e não, o estado de natureza.
O filósofo francês afirmava, então, que o corpo político é formado a partir das coisas
que as pessoas comungam e que somente haveria liberdade quando existisse esse consenso. A
lei não oprime quando é vontade de todos. No entanto, esse consenso só pode ser construído
horizontalmente, ou seja, quando há igualdade de condições e, então, se atinge uma vontade
de todos.
Assim, percebe-se que o contrato social é elemento frequente nas teorias políticas
modernas. E esse fato explica a busca por uma explicação para o surgimento da sociedade.
48 Idem – p. 97
35
São apontados os mais variados argumentos para corroborar essa teoria, mas todos
com o fim de explicar porque o homem saiu de seu estado de natureza e resolveu associar-se,
depositando na mão de um soberano o poder, esperando obter sua sobrevivência como única
recompensa.
Cada um desses pensadores apresenta propostas e definições diferentes para os
conceitos de “estado de natureza”, contrato social, subordinação política e estado civil.
Hobbes considera que os homens decidem selar o pacto social para evitar o estado de
“guerra de todos contra todos” – gerado pelo fato de que todos os homens se consideram
iguais e, portanto, têm os mesmos direitos – criando, assim, a estrutura soberana –
o Estado absoluto – que controlaria e reprimiria os conflitos.
Verifica-se, assim, que se tratava de um pacto de submissão, para preservar vidas, em
que se troca a liberdade pela segurança do Estado.
Locke, apesar de ter elaborado sua teoria antes de Rousseau, era mais conservador e
acreditava na vida e na liberdade, talvez porque tenha passado por uma revolução inglesa que
fê-lo exilar-se na Holanda, por defender seus ideais modernos de separação do Estado em
relação à Igreja. Ao voltar, as condições de viver em sociedade e a noção de propriedade já
eram mais modernas que na França, apesar de ainda viver sob um regime de monarquia.
O que diferencia Locke de Hobbes é o fato de que o último acreditava que a vida é um
caos e que o homem vivia em guerra, em uma sociedade que, para ser regida de forma
civilizada, necessitava de uma autoridade única, que não se submetesse aos regimes e leis
criadas em assembleia.
Para Locke, todo homem tem naturalmente direitos – o quanto lhe for necessário –,
todavia, o ato que o faz proprietário de um bem o afasta de tudo que não lhe pertence e, uma
vez investido na posse de sua parte, não lhe é permitido ter mais do que já tem, pois, a posse
como o mando, deve legitimar-se para torna-se direito, que é atribuição da sanção coletiva.
Já para Rousseau, a igualdade é aparente e ilusória sob governos que servem tão-
somente para que o rico fique mais rico e o pobre, mais pobre. E, nesse caso, as leis são
sempre úteis aos que têm, em detrimento dos que nada têm.
No estado social, só é vantajoso aos homens quando todos têm algo e nenhum tem
demais. A partir desse princípio, a vontade geral torna o interesse comum em consciência
pública, cuja vontade geral dirige as forças do Estado na direção do interesse do bem-comum.
O contrato social é formado pelo que existe de mais íntimo nos interesses dos
membros da sociedade civil, segundo a qual a soberania – o exercício da vontade geral –
impossibilita sua alienação pelo sentido de que o soberano é um ser coletivo.
36
É possível que uma vontade particular não coincida com a vontade geral, só que, em
tal situação, é impossível que o modelo perdure por muito tempo, pois as vontades
particulares tendem a predileções, ao passo que a vontade geral se inclina à igualdade:
Por qualquer via que se remonte ao princípio, chega-se sempre à mesma
conclusão, a saber: o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal
igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições e devem
todos gozar dos mesmos direitos. Igualmente, devido à natureza do pacto,
todo o ato de soberania, isto é, todo o ato autêntico da vontade geral, obriga
ou favorece igualmente todos os cidadãos...49
Tanto Locke como Rousseau, assim como muitos jusnaturalistas, construíram seus
modelos a partir do direito natural – esse tende à liberdade; aquele, à propriedade – para
justificar suas respectivas concepções políticas.
Seus modelos são abstratos, ao mesmo tempo em que ensejam alternativas sóbrias e
concretas, acenando para a possibilidade de uma ordem político-jurídica, insistentemente
preocupada em satisfazer os interesses dos indivíduos. Essa ordem nasceria de um contrato
em que se colocaria tudo a termo com o fim de propiciar o livre curso das disposições naturais
existentes nos indivíduos, fato que, de alguma forma, possibilitaria a sociabilidade.
O direito natural estaria intrinsecamente atrelado ao direito positivo por lhe ser
supostamente superior em razão de sua racionalidade universal e necessariamente válida. Se o
jusnaturalismo resgata a concepção ético-política dos estóicos, partindo do lógos como
instância determinante, o faz porque necessita construir uma concepção política válida
universalmente, acreditando, para isso, que todos os homens estariam inteligentemente a salvo
das intempéries arbitrárias dos interesses que animam as associações não-jurídicas.
Nesse caso, as sociedades políticas almejariam edificar estruturas legais que
comporiam racionalmente os conflitos de interesses, livrando os indivíduos de uma violência
absolutamente desnecessária.
O jusnaturalismo é a primeira expressão teórica burguesa consistente que engendra, ao
mesmo tempo, o liberalismo, o contratualismo e o constitucionalismo.
Ao buscar a universalização da ordem pela razão, no mesmo instante em que solapa as
pequenas ordens culturais, o jusnaturalismo, como um movimento de ideias, reflete a
49 ROUSSEAU, JEAN JACQUES. Do Contrato Social; tradução de Louders Santos Machado; introduções e
notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado; editor Victor Civita – São Paulo: Abril S.A.
Cultural e Industrial, 1973 (Coleção Os Pensadores – História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental) – p. 56
37
expectativa burguesa que justifica a existência do direito como primado científico, ora pela
física de Galileu, ora pela física de Newton. Não importa, hoje, se as teorias científicas
estavam erradas, o fundamental é assinalar que o pensamento moderno estava ávido por uma
ordem natural-imanente iluminado pelas luzes da razão, longe da revelação e o mais próximo
da racionalidade matemática que buscava o equilíbrio do mundo para o mundo do mercado.
Seja como for, entendemos que o jusnaturalismo continua como uma força viva, mesmo que,
pessoalmente, a ele não nos filiemos.
38
Capítulo 3
Contrato Social de Rousseau
O interesse comum – direitos e deveres iguais –, a liberdade, a igualdade e o
mantenemento da justiça são os objetivos do contrato de Rousseau, porque ele defende que
todos deveriam abrir mão de sua liberdade natural – presente no estado de natureza – para
possuir uma liberdade mais estável e duradoura e, com isso também, o direito assegurado de
tudo o que é seu. Ideais que o socialismo e o comunismo vieram a pregar mais tarde,
entretanto, esses modelos de sociedade não prosperaram.
3.1 - Do estado natural ao estado civil
Para Rousseau, o início desse contrato social ocorreu no momento em que os
indivíduos se uniram, visando superar obstáculos que não conseguiam em seu estado natural.
Portanto, o ponto essencial para existência desse contrato é o fato de o homem ter escolhido
passar do estado natural para o estado civil, a fim de preservar os direitos naturais de
igualdade e liberdade.
Para explicar a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau parte inicialmente
da suposição da existência do estado de natureza, e, posteriormente, ocorre o surgimento da
civilização, a sociedade. Assim, para ele, possivelmente, aconteceu a transição do homem
natural para o homem social.
Entretanto, o conceito de estado de natureza gera muita confusão quando se lê
superficialmente a obra de Rousseau, como se o autor acreditasse na existência de um “nobre
selvagem”, porém, esse epíteto para predicar o estado de natureza de Rousseau nem existe em
sua obra. O estado de natureza nada mais é do que o homem despido de toda a corrupção
social que as instituições imprimem nele. Como não acredita que existiu, exista ou existirá tal
homem assim, Rousseau defende justamente a reforma das instituições para que tais não
corrompam os homens que “nascem bons”.
39
O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê
senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio
tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta
questão?50
O fato é que Rousseau sabe ser impossível evitar que os homens se socializem, e o seu
conceito de estado de natureza nada mais é do que uma análise hipotética de como seria os
homens sem as corrupções institucionais, para que a partir desse conceito de homem
purificado possa pensar uma sociedade ideal. Nesse hipotético estado de natureza os homens
possuiriam suas liberdades individuais absolutamente ilimitadas, e podiam servir-se do todo
necessário à sua auto-preservação.
No entanto, houve um momento em que os recursos tornaram-se escassos e também as
intempéries forçaram os homens a se juntarem para se ajudarem, e às relações conflituosas
que começam a surgir desse agregado, faz-se necessário um pacto para estabelecer regras de
convivência.
Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse
estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse
de modo de vida, pereceria.51
Mas para tanto, o homem deve abrir mão de sua “liberdade incondicionada” por uma
liberdade civil, que ao modo de ver de Rousseau é uma verdadeira liberdade, pois no estado
de natureza não há nada que proteja a minha vida ou as minhas posses a não ser a força, mas o
filósofo descarta a força como garantia de preservação ou de propriedade, pois, afinal, sempre
poderá haver alguém mais forte do que eu. Então, preciso abrir mão de minha liberdade de
fazer tudo que os meus desejos pedem para que também um outro não possa ter uma liberdade
ilimitada. Preciso abrir mão de prejudicar alguém para que também alguém não me
prejudique. E essa opção sim é liberdade, pois é uma decisão racional de fazer aquilo que
devo, e não somente aquilo que quero, o que na opinião de Rousseau é escravidão ao invés de
liberdade.
50 ROUSSEAU, 1973 – p. 28 51 Idem – p. 37
40
Para que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade
natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil que é limitada pela liberdade
geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do primeiro ocupante – da
propriedade – que só pode ser baseada num título positivo.
A propriedade, segundo o filósofo francês, foi umas das principais responsáveis dessa
passagem do homem para o estado civilizado, tendo a sociedade, nesse novo estado civil, a
obrigação de obedecer somente aos poderes legítimos.
Por meio do contrato social, os indivíduos fariam um pacto social e se
autoestabeleceriam como povo, transferindo os direitos naturais, para que fossem
transformados em direitos civis.
Rejeitando a força como garantia de algo ao indivíduo, em Do Contrato Social
Rousseau propõe que no estado civil o poder político seja entendido como fruto do povo e,
dessa forma, o poder do soberano não perpassa os limites das convenções gerais e não podem
existir interesses particulares. Desse modo, é no pacto social que existe e se dá vida ao corpo
político, às leis dinâmicas e à vontade, pois as convenções e as leis são necessárias para
estabelecerem a união entre direitos e deveres, redirecionando a justiça ao seu objetivo. No
entanto – embora muito se criticasse Rousseau por isso – o autor não defende uma tirania à
qual o povo deva submeter-se calado, o que ele tenta é uma equidade entre a liberdade
individual e o interesse coletivo.
(...) o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo
contrário, a substitui por uma igualdade moral e legítima àquilo que a
natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que podendo
ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção52 e
direito.53
Para obtenção de tais objetivos, Rousseau apresenta os conceitos de vontade geral e de
soberania, que privilegia o coletivo sobre o individual. Outro importante aspecto a se destacar
na relação de Rousseau com os liberais é, então, o da sua crítica à possibilidade de o homem
52 Segundo Rousseau, a primeira sociedade – antes de qualquer outra – é a família, a única que é natural e de
onde começam as convenções: “(...) só se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a própria
conservação. Desde que tal necessidade cessa, desfaz-se o liame natural. (...) Se continuam unidos, já não é
natural, mas voluntariamente, e a própria família só se mantém por convenção”.*
*ROUSSEAU, 1973 53 Idem – p. 45
41
emancipar-se a partir da posse – propriedade – e viver como um indivíduo que, finalmente,
encontrou um lugar onde possa viver consigo mesmo e desfrutar da paz e da liberdade que ele
um dia perdeu. Desse modo, ele teria a seu favor o Estado com a função de legislar e operar
em defesa do indivíduo, não o concebendo essencialmente como cidadão, mas sim,
proprietário. E Rousseau defende o direito a uma área de terra ao primeiro ocupante – desde
que haja labor e somente aquilo que é necessário para a sua subsistência – senão, as leis são
úteis somente àqueles que possuem terras, mas prejudicam aqueles que nada têm.
O Estado deve existir para o bem comum, e a vontade geral deve dirigi-lo para esse
fim. Seguindo seu pensamento em relação ao tema, a vontade geral é um ato de soberania que
atende ao povo. Esse é o princípio que deve ser obedecido, mas nem sempre é assim que
ocorre.
Os diversos compromissos do pacto social e sua função social devem ser mútuos e
todos devem não só trabalhar para si, mas também para os outros, já que trabalhar para si
mesmo não faz parte da soberania social de igualdade e liberdade, pois o individualismo
prejudica o todo.
Norberto Bobbio diz o seguinte do contrato:
Faz a sociedade não mais um fato natural, a existir independentemente da
vontade dos indivíduos, mas um corpo artificial, criado pelos indivíduos à
sua imagem e semelhança e para a satisfação de seus interesses e carências e
o mais amplo exercício de seus direitos.54
O homem, apesar das suas vontades individuais, tem o dever de entender que o todo
prevalece; que o direito coletivo se sobrepõe ao direito individual, princípio oriundo de
Rousseau e que é utilizado no Direito até os tempos atuais. Apesar de tudo, o homem nunca
vai deixar de ter suas vontades particulares, mas existe a vontade geral que deve ser o cerne
de cada sociedade, para que o caos não seja estabelecido.
Mas o que é vontade geral? O que é soberania? Discutiremos a seguir.
54 BOBBIO, Norberto apud PITZ, G. A vontade geral segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentação
moral da política. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e
Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2004.
42
3.2 - Vontade geral
Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral.
Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e
não passa de uma soma das vontades particulares.55
Quando Rousseau fala em vontade geral – que ele mesmo afirma não ser
simplesmente a “soma de todas as vontades particulares” –, ele pensa em um contrato
estabelecido desde um pensamento que considera o homem como um indivíduo que necessita
de convivência social.
Mas por que necessita de uma convivência social?
Segundo o pensador genebrino, se não houvesse perturbações quando o homem vivia
em seu estado de natureza56, jamais desejaria sair de tal estado onde gozava de total liberdade
para viver apenas sob seus sentidos e instintos, buscando somente o que necessitava para sua
autoconservação.
(...) é impossível imaginar por que, nesse estado primitivo, um homem
sentiria mais necessidade de um outro homem do que um macaco ou um
lobo de seu semelhante...57
Mas os recursos foram ficando escassos e as intempéries tornaram cada vez mais essa
tarefa difícil, tendo o homem somente a sua força para garantir-se, porém, para Rousseau, a
55 ROUSSEAU, 1973 – pp. 52-53 56 O conceito de estado de natureza de Rousseau não deve ser entendido como um evento histórico*, ou seja, o
filósofo não defende que tenha existido ou que possa existir tal homem; o estado de natureza é apenas uma
conjectura metodológica. Diz o autor em seu Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre
os Homens: “(...) falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil. Não chegou mesmo a surgir, no
espírito da maioria dos nossos, a dúvida quanto a ter existido o estado de natureza...”. (ROUSSEAU, 1973 – p.
242)
* “Não chegou mesmo a surgir, no espírito da maioria dos nossos, a dúvida quanto a ter existido o estado de
natureza, conquanto seja evidente, pela leitura dos livros sagrados, que tendo o primeiro homem recebido
imediatamente de Deus as luzes e os preceitos, não se encontrava nem mesmo ele nesse estado e que,
acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhe deve todo filósofo cristão, é preciso negar que, mesmo antes
do dilúvio, os homens jamais se tenham encontrado no estado puro de natureza, a menos que não tenham
tornado a cair nele por causa de qualquer acontecimento extraordinário – paradoxo bastante difícil de defender
e completamente impossível de provar”. In ROUSSEAU, 1973 (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens) – p. 242 (Os grifos são meus). 57 ROUSSEAU, 1973 (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens) – p. 256.
43
força e o gênio dos homens são distribuídos de maneira desigual pela natureza, o que faz com
que também sejam desiguais em direitos, inclusive, mesmo para o mais forte, a garantia de
autoconservação não é eterna, afinal, poderá sempre surgir um mais forte que ele, por isso a
necessidade de associar-se a outros.
Então, há uma necessidade que é a necessidade de todos, e deve ser respeitada não
apenas como pertencente a uma maioria, cujo contrato social protege, mas também, como um
indivíduo que compartilha uma vontade geral sobre a qual o contrato encontra sua base sólida.
Quando abrem mão de uma liberdade plena – porém instável e perigosa – por uma
liberdade civil – mais estável e segura – os homens acabam por ter o mesmo interesse, e esse
interesse – natural e de caráter pessoal, pois cada homem quer preservar a si mesmo – é o que
primeiro os unem a um mesmo interesse, ou seja, para preservar o seu interesse individual –
que é a autoconservação e a posse do que é seu – cada homem precisa defender o interesse de
todos, pois o interesse de todos é o seu interesse particular também. Mas não se pode dizer
que esse interesse particular seja um interesse de “um homem” em particular, mas sim, que há
em cada homem interesses particulares que são comuns entre si.
Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, <<particulares>>, os a-
mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente, resta, como soma das
diferenças, a vontade geral.58
Encontrando-se o bem comum para todos os homens, encontra-se assim o fundamento
da vontade geral e, a partir desse conceito, Rousseau funda o conceito de soberania, que é o
corpo político que será detentor de todo o poder do Estado, sendo essa soberania indivisível e
inalienável.
A soberania é indivisível pela mesma razão por que é inalienável, pois a
vontade ou é geral, ou não o é; ou é a do corpo do povo ou somente de uma
parte. No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e faz
lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de
magistratura, quando muito, de um decreto.59
58 ROUSSEAU, 1973 – p. 53 59 Idem – p. 50
44
Fica claro que Rousseau quer chamar a atenção de que para ser soberana a vontade
deve emanar como um todo, como um verdadeiro corpo, pois há comumente a ideia de que a
maioria deve ditar as regras, mas, segundo o filósofo genebrino, o próprio ato de achar que a
voz da maioria é a voz do todo já foi uma convenção anteriormente estabelecida, e a formação
de associações, clubes e outros agregados coletivos é na verdade um problema, pois apesar de
tais agregações representarem uma vontade geral dentro da instituição, no entanto,
representam frente ao Estado uma vontade particular. A vontade geral não é um simples
agregado de vontades particulares – sejam maiorias ou minorias –, mas sim, aquilo que há de
comum em todos esses particulares que participam do todo.
(...) menos do que o número de votos, aquilo que generaliza a vontade é o
interesse comum que os une, pois nessa instituição cada um necessariamente
se submete às condições que impõe aos outros: admirável acordo entre o
interesse e a justiça, que dá às deliberações comuns um caráter de equidade
que vimos desaparecer na discussão de qualquer negócio particular, pela
falta de um interesse comum que uma e identifique a regra do juiz à da
parte.60
Essa equidade da qual fala Rousseau, nada mais é do que a concordância entre as
vontades particulares e a vontade geral, pois quanto mais distância houver entre esses dois
quereres, mais doente será o Estado; e este será saudável e bem governado quando mais
subordinada a vontade particular estivar à vontade geral, ou seja, quanto mais perto das leis
estiverem os costumes.61 Mudando as palavras: quanto mais a ética estiver longe da justiça,
mais problemas haverá no Estado e, nessa circunstância, Rousseau diz que deve-se aumentar a
força repressora.
Então, a vontade geral representa assim – segundo o filósofo – o mais alto grau de
liberdade possível, pois cada particular escolhe a si mesmo aquilo que será infligido ao outro;
em troca de uma liberdade natural – que na verdade é escravidão porque segue os impulsos
sensíveis – o indivíduo obtém uma liberdade civil – que é moral porque é racional, e por isso
mesmo, livre.
60 Idem – p. 56 61 Cf. ROSSEAU, 1973 – p.82
45
Com o ideal de vontade geral, Rousseau tenta recuperar, sob certo aspecto62, o
conceito de democracia direta grega, radicalizando-o como um ideal que, no entanto, ele não
concebia apenas como ideal, mas sim, como uma proposta a ser praticada.
Pitz critica o pensamento de Rousseau, baseando-se na filósofa alemã Hannah Arendt:
Segundo Hannah Arendt, o erro cometido por Rousseau foi o de ter derivado
sua ideia de liberdade a partir do princípio da vontade humana, sustentada no
valor da consciência. Consequentemente, derivam também, na essência, suas
ideias políticas não de um princípio identificado essencialmente com a ação
humana externa, e sim, de um ideal que só pode ser considerado em sua
significação substancial como sendo acionado e sustentado por uma causa
motivadora interna.63
Portanto, ao considerar a ideia de vontade geral, em termos de realização concreta, tal
como proposta por Rousseau, o problema da democracia direta e das liberdades individuais,
de acordo os críticos do conceito de vontade geral, parece ser uma questão insolúvel, pois não
é possível, de acordo com os termos de Rousseau, conciliar o seu ideal de democracia direta
com sua efetiva realização, sem recorrer a qualquer tipo de imposição que obrigue o indivíduo
a preferir o público em detrimento de sua individualidade, isto é, sem interferir de forma
direta no espaço de atuação do ser individual.
No entanto, como supracitado, por ter o indivíduo uma liberdade civil, ele não precisa
ser coagido por nada externo a ele – apenas pode ser punido se descumprir o contrato – pois o
que determina o seu agir correto é o seu próprio interesse particular na medida em que ele
próprio esteja submetido às suas escolhas. Não é a vontade geral que obriga o ser particular,
mas sim, dos particulares – pelo interesse que todos partilham – surge a vontade geral.
Pitz conclui que essa contestação significa que o contrato social é:
(...) a causa e a consequência de uma elaboração cuidadosa, preocupada não
somente com a justiça e a equidade, como já mencionado anteriormente, mas
62 Sob certo aspecto porque, dependendo do tamanho do Estado, Rousseau acredita que o melhor governo seja a
Aristocracia eletiva – o que hoje nós chamamos de Democracia, diferentemente do que era para os antigos –
porque segundo ele, o povo nem sempre sabe o que é o bem comum para si mesmo, e também, o fato de
nomearmos ricos – abastados – para governar é algo mais plausível porque, aqueles que não precisam se
preocupar com a subsistência, dispõem de mais tempo disponível para dedicarem-se às coisas do Estado. Embora
ele não exclua a possibilidade de ora ou outra haver exceções, doces exceções. Rousseau sabe que raramente o
povo poderá reunir-se em assembleias como faziam os gregos. 63 PITZ, 2004 – p. 70
46
também, como a realização do bem enquanto essência originada do íntimo
de cada homem.
Desta forma, o contrato é um processo permanente de construção com a
preocupação de se ir até as entranhas, isto é, até o limite último para uma
compreensão real e coerente da vontade geral de cada sociedade. Este é o
esforço no sentido de buscar ‘aquilo’ e que, talvez, já seja o aquilo
equivalente à vontade geral. A partir desta essência, qualquer contrato e
qualquer forma de direito pode progredir e se complexificar, tornando-se um
sistema abrangente, amplo, porém sólido, uma vez que foi construído sobre
uma base sólida e a esta base se mantém fiel. Todo contrato elaborado
conforme esta concepção não privilegia uma maioria, mas a unânime
vontade de todos os cidadãos contratantes.64
No momento em que emana do povo um interesse comum que Rousseau define como
vontade geral, essa emanação torna-se um ato de soberania que detém o poder, no entanto,
segundo o filósofo, aquele que detém o poder não pode ser o mesmo que legisla e tampouco o
que executa tal poder, pois como foi dito na nota 27, o povo não tem condições físicas para
poder reunir-se e definir as regras, como também nem sempre tem condições intelectuais para
tanto, porém, é a ele – povo – e ao seu bem que se destinam as regras.
Conclui-se do precedente que a vontade geral é sempre certa e que tende
sempre à utilidade pública; donde não se segue, contudo, que as deliberações
do povo tenham sempre a mesma exatidão. Deseja-se sempre o próprio bem,
mas nem sempre se sabe onde ele está. Jamais se corrompe o povo, mas
frequentemente o enganam e, só então, é que ele parece desejar o que é
mau.65
Então, se a vontade geral – que é a força que vem do povo e também objeto ao qual se
destinam as regras – não pode deliberar, faz-se necessário um legislador.
64 Idem – p. 45 65 ROUSSEAU, 1973 – p. 52
47
3.3 - A necessidade de legisladores
No Do Contrato Social, Livro II (Da lei) Rousseau volta a dizer – assim como já havia
dito antes – que a vontade não pode cindir-se, pois por mais que uma das partes seja maior
que a outra, aquela não pode ser mais geral que esta, pois quando a vontade geral se divide ela
já não representa algo geral, mas sim, particular. Não pode haver distinção entre direitos e
deveres, pois a vontade que quer é a mesma que respeita. Já quando falou de vontade geral, o
genebrino deixou bem claro que tal vontade geral – emanada do corpo político que é detentor
do poder devido à sua soberania – não pode ser legisladora porque o povo nem sempre sabe
aquilo que é bom para si, por isso faz-se necessário um legislador para executar tal tarefa. No
entanto, um legislador não deve fazer leis a seu bel-prazer, como se seguisse a sua vontade
particular – do povo e para o povo são as leis –, ou seja, um legislador deve conhecer a
natureza humana – inclusive suas paixões – para que saiba do que os homens precisam.
Porém, o filósofo alerta sobre o perigo que há quando se concentram no mesmo homem os
poderes legislativo e executivo. Um príncipe não deve legislar e um legislador não deve
executar.66 E o legislador deve fazer com que a vontade geral enxergue o que é bom para si,
embora esta permaneça sempre soberana.
A vontade geral é sempre certa, mas o julgamento que a orienta nem sempre
é esclarecido. É preciso fazê-la ver os objetos tais como são, algumas vezes
tais como eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o caminho certo que procura,
defendê-la da sedução das vontades particulares, aproximar a seus olhos os
lugares e os tempos, pôr em balanço a tentação das vantagens presentes e
sensíveis com o perigo dos males distantes e ocultos. Os particulares
discernem o bem que rejeitam; o público quer o bem que não discerne.
Todos necessitam, igualmente, de guias.67
Sendo assim, o trabalho do legislador – acima de tudo – é conduzir os homens à
maneira como devem viver; deve fazer com que a natureza do homem – corrompida pelas
instituições – se purifique em pró do coletivo, no entanto, o bem do coletivo visa ao final o
bem do indivíduo. Mas convencer os homens a agirem de tal forma não é fácil, afinal, nem
todas as leis que devem ser implementadas possuem justificações naturais e também nem
66 Cf. ROUSSEAU, 1973 – pp. 59-60 67 ROUSSEAU, 1973 – p. 62
48
todos os homens conseguem apreender os princípios racionais daquilo que deve ser feito. E é
aí que se encontra a grandeza do legislador. Por isso, Rousseau diz que em todos os tempos os
grandes legisladores recorreram ao céu para endossar suas leis.68
No entanto, o legislador não deve arbitrariamente sair criando leis que pareçam ser
boas em si mesmas e para todas as nações, ele deve – assim como um bom engenheiro analisa
o solo antes de iniciar as fundações de uma obra – examinar o povo ao qual se destinam tais
leis. É preciso primeiro saber se os destinatários poderão e quererão cumpri-las. E assim como
no indivíduo, as virtudes devem ser cultivadas na juventude.
A maioria dos povos, como dos homens, só são dóceis na juventude;
envelhecendo tornam-se incorrigíveis. Desde que se estabelecem os
costumes e se enraízam os preconceitos, constitui empresa perigosa e vã
querer reformá-los. O povo nem sequer admite que se toque em seus males
para destruí-los, como aqueles doentes, tolos e sem coragem, que tremem em
presença do médico.69
E Rousseau acrescenta duas importantes coisas: a primeira é que nem toda nação que
está corrompida não pode ser recuperada, ou seja, a degradação pode chegar a tal ponto que a
destrua ao ponto de fazê-la retornar à juventude após renascer das cinzas; segundo, a
juventude de um indivíduo ou de um Estado não significa infância – o filósofo diz que há de
se esperar o momento certo – de maturidade – para dar leis aos povos, assim como para dar
alimentos sólidos aos indivíduos.70
Outra preocupação clara e justa de Rousseau é a relação entre o tamanho do território
e o número de habitantes, pois segundo ele, quanto maior for o Estado, maior será a
dificuldade em governá-lo. Porque em um território muito grande as pessoas acabam por se
distanciar muito umas das outras, e com isso passam a ter costumes e interesses muito
diferentes, o que torna mais complicada a formação de uma vontade geral. Outro problema
relacionado ao tamanho do Estado é a proporção entre as necessidades dos indivíduos e as
porções de terra disponíveis, pois se for o território grande demais em relação ao povo, a
defesa daquele será difícil e onerosa; já se, ao contrário, for pequena demais, o povo terá
68 Cf. ROUSSEAU, 1973 – p. 64 69 ROUSSEAU, 1973 – pp. 66-67 70 Faço referência de quando em vez em relação ao desenvolvimento do indivíduo para problematizar a possível
relação que há entre Emílio ou Da Educação e o Do Contrato Social; muito embora alguns comentadores
insistam que as duas obras são totalmente díspares – pois são escritas em estilos diferentes e referem-se a
assuntos diferentes – o próprio Rousseau admite que as duas obras formam um corpo único.
49
sempre uma existência curta e incerta: buscará sustento através de guerras ofensivas ou
sucumbirá por não conseguir sustentar-se. No entanto, Rousseau não apresenta uma relação
exata entre o tamanho do povo e do território, mas acrescenta que a condição indispensável
para formar um povo é
(...) o gozo da abundância e da paz, pois o momento em que se forma um
Estado, como aquele em que se forma um batalhão, é o instante em que o
corpo se mostra menos capaz de resistência e mais fácil de ser destruído.
Resistir-se-á melhor numa desordem absoluta do que num momento de
fermentação, no qual cada um se preocupa com sua dignidade, e ninguém
com o perigo. O Estado subverter-se-á inevitavelmente se sobrevier a guerra,
a fome ou a sedição.71
Logo, o legislador deve observar todas as relações que possam levar ao povo o maior
grau de bem estar possível, e para tanto, as leis precisam garantir aos indivíduos associados ao
contrato dois objetivos indispensáveis: a liberdade civil e a igualdade perante as leis, porém,
não se deve identificar em Rousseau um germe comunista, pois sobre a igualdade ele diz o
seguinte:
(...) não se deve entender por essa palavra que sejam absolutamente os
mesmos os graus de poder e riqueza, mas quanto ao poder, que esteja
distanciado de qualquer violência e nunca se exerça senão em virtude do
posto e das leis e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja
suficientemente opulento para poder comprar um outro e não haja nenhum
tão pobre que se veja constrangido a vender-se...72
3.4 - Sobre as regras para tratar a coisa pública
Rousseau defende que, para que se possa regular da melhor maneira a coisa pública,
torna-se necessário considerar algumas relações: a primeira é a ação do corpo inteiro sobre si
71 ROUSSEAU, 1973 – p. 71 72 Idem – p. 72
50
mesmo, isto é, a relação do soberano com o Estado, de onde surgem as leis que regulamentam
a relação do soberano com o Estado, as quais são denominadas leis fundamentais.
A segunda relação é a dos membros entre si ou com o corpo inteiro. Nessa relação, o
cidadão tem independência diante dos outros e dependência diante do Estado. E, dessa
relação, nasce a lei que administra a relação entre os cidadãos, denominadas leis civis
propriamente ditas.
A terceira relação é aquela que existe entre o homem e a lei, a qual abarca a
desobediência à lei e que dá a oportunidade para o surgimento das leis criminais e para a
pena.
Por fim, essas três se juntam numa quarta que, conforme Rousseau:
(...) faz a verdadeira constituição do Estado, que assume todos os dias novas
forças que, quando as outras leis envelhecem ou se extinguem, as reanima ou
as supre [...]. Falo das práticas, dos costumes e, sobretudo, da opinião. (1978,
p. 70).
Nesse contexto, o governo é considerado por ele como um corpo interposto entre os
súditos e o soberano, em que há reciprocidade entre as partes, sendo ele responsável pela
exclusão das leis e por manter a liberdade, tanto no âmbito civil como no político.
Portanto, Rousseau chama de governo “(...) ou suprema administração, o exercício
legítimo do poder executivo; e de príncipe ou magistrado, o homem, o corpo encarregado
dessa administração”.73
Ressalta-se, porém que, para o filósofo genebrino, há uma significativa distinção entre
estado e governo: o primeiro só existe por si só; e o segundo só existe por meio do soberano.
Dessa forma, o governo só pode ter por vontade o que está na lei – determinada pela
vontade do soberano – e sua força só pode ser a pública. E mais: seu interesse é somente
aquele que represente o interesse geral, comum a todos. Portanto, segundo esse pensamento,
percebe-se que a lei é de suma importância neste Estado idealizado por Rousseau. Essa lei é
um ato da vontade geral e a declaração da soberania, determinando o destino do estado e
mostrando que, nesse contrato social, o legislador tem um papel significativo.
De acordo com Rousseau, “O legislador é, sob todos os aspectos, um homem
extraordinário no Estado” (1978, p. 56), pois é por meio dele que o cidadão conhecerá sua
73 ROUSSEAU, 1978 – p. 72
51
forma de viver, a partir do qual deverá sempre objetivar ter uma fidelidade às necessidades
essenciais da natureza humana.
3.5 - Sobre a tolerância religiosa
Outro ponto do pensamento de Rousseau que nos chama atenção é o fato de ele achar
que seria bom para o Estado que ele fosse tolerante com todos os tipos de religiões e, que
essas, fossem tolerantes umas com as outras – no entanto, não devem ser admitidas religiões
ou crenças que prejudiquem a atividade do indivíduo como cidadão. Em outros termos, o
filósofo já defendia uma liberdade de crença – pelo menos de forma parcial –, prevista
presentemente no Artigo quinto da nossa Constituição. Porém, vale ressaltar que Rousseau
não defendeu a liberdade de crença porque explicitamente era crente em algo, mas sim,
porque as questões particulares que nada prejudiquem o bem comum não têm – para o
genebrino – nada a ver com o Estado, ou seja, as coisas privadas dizem respeito somente ao
indivíduo particular – vontade particular – ao passo que os interesses comuns estão
submetidos à vontade geral.
Logo, liberdade de religião se faz parcial em Rousseau, devido à sua crença de que o
Estado deveria usar a lei para banir qualquer religião que fosse socialmente prejudicial, dessa
forma tolhendo a liberdade de religião aos interesses do Estado, já que as doutrinas de uma
religião não poderiam estar, em nenhum momento, contrariando os ideais do próprio Estado.
Em especial, Rousseau critica duas crenças: o Cristianismo e o ateísmo. O
Cristianismo é criticado porque, segundo Rousseau, os seguidores de Cristo estão
exclusivamente preocupados com um mundo transcendente, tendo está vida só como uma
passagem – como peregrinos – e, com isso, serão pouco preocupados com a vida presente –
terrena – e com o bem público.
O Cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, preocupada
unicamente com as coisas do céu, não pertencendo a pátria do cristão a este
mundo. É verdade que ele cumpre o seu dever, mas o faz com uma
indiferença profunda quanto ao bom ou mau sucesso de seus trabalhos.
Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, pouco lhe importa se tudo
vai bem ou mal cá embaixo. Se o Estado está florescente, dificilmente ousa
52
gozar da felicidade pública, teme orgulhar-se da glória de seu país; se o
Estado perece, bendiz a mão de Deus que pesa sobre seu povo.74
Outra crítica em relação ao Cristianismo e também às instituições organizadas é que,
tendo o crente – ou membro – um outro líder a dizer-lhe o que deve fazer, surge uma
dicotomia em sua vontade, deixando-o dividido entre dois comandos: o do líder – o papa, por
exemplo – e o soberano. Uma vontade que é particular – uma instituição ou associação – entra
em conflito com a vontade geral e o interesse público.
74 ROUSSEAU, 1973 – p. 148
53
Capítulo 4
A função social do contrato social
O contrato social tem como função principal, orientar as práticas das instituições civis
para que sejam mais sadias e não corrompam os corações dos homens, tornando as relações
mais equitativas com relação aos direitos e deveres do cidadão – indivíduo. E, para
compreendermos um pouco melhor como devem ser essas relações, neste capítulo são
apresentados os conceitos de liberdade e igualdade segundo a teoria proposta por Jean-
Jacques Rousseau.
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens
de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se
a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre
quanto antes.75
4.1 Liberdade e Igualdade
Em Rousseau, os princípios de liberdade e igualdade são fundamentais para que o
homem consiga viver bem em sociedade – em sua relação com os outros cidadãos e também
com os governantes.
Mas como os conceitos de liberdade e igualdade se aliam em Rousseau?
Partindo do princípio hipotético de estado de natureza, Rousseau define o homem
desse estado como tendo uma liberdade “absoluta”, ou seja, nada o impede de atender as suas
necessidades e os seus desejos, porém, nesse estado o homem tem o que Rousseau chama de
liberdade natural, numa situação de amoralidade, pois não deve nada a ninguém que não tenha
prometido. Mas essa liberdade natural, aparentemente absoluta, possui um enorme problema:
os outros homens também desfrutam de uma liberdade para ter tudo e, sendo assim, as
liberdades se conflitam. Para a resolução desses conflitos, os homens possuíam somente a
força, e como a força não é igual em todos os homens – assim como também não são as outras
75 Idem – p. 38
54
potencialidades naturais – isso gera uma desigualdade entre os homens. Por isso deve-se
haver um contrato que permita o exercício das liberdades individuais e ao mesmo tempo torne
os homens iguais em direitos e deveres.
Seguindo o pensamento de Rousseau vemos que, para ele, a liberdade natural é
somente aparente, ou seja, é algo instável do qual não se tem garantia alguma. E essa garantia
somente é possível no estado civil, pois abrindo-se mão de todos os direitos – inclusive de
fazer mal ao próximo – o cidadão tem a certeza de que os outros também abrirão mão de
poder agredi-lo, logo, as forças individuais formam uma força pública – maior e mais
poderosa do que qualquer força individual – que protege os direitos de todos ao mesmo
tempo. Já não sou eu quem sou responsável por minha proteção – contra os vizinhos ou contra
o estrangeiro – mas sim, o Estado. Todos que antes possuíam uma liberdade amoral e apenas
sensível – vivendo de acordo com as sensações e desejos – tornam-se, no estado civil, seres
racionais e morais. Já não se pode fazer o se quer, mas o que deve ser feito.
A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem
uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela
justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É só então
que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do
apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se
forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes
de ouvir suas inclinações.76
Os conceitos de liberdade e igualdade são abordados em todas as obras de Rousseau,
mas sua elucidação está mais presente em dois textos, Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade entre os homens e em Do Contrato Social.
Para ele, o homem nasce bom, livre e igual em relação aos meios físicos mas, ao
associar-se, surgem as desigualdades – com isso a vaidade e a inveja – e depois a perca das
garantias de suas posses. E para obter a garantia de que nada lhe será tomado o homem
necessita de um acordo que limite a sua liberdade e também a liberdade alheia, tornando-se
novamente iguais, só que agora em direitos e deveres.
76 Idem – p. 42
55
O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito
ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a
liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. A fim de não fazer um
julgamento errado dessas compensações, impõe-se distinguir entre a
liberdade natural, que só conhece limites nas forças do indivíduo, e a
liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e mais, distinguir a posse,
que não é senão o efeito da força ou o direito do primeiro ocupante, da
propriedade, que só pode fundar-se num título positivo.77
A relação de liberdade e igualdade, por se fazer presente em todas suas obras, torna-se
o cerne do seu pensamento filosófico, até chegar às regras, normas, leis e ao contrato social.
Assim pensando, do mesmo modo como o concebia Hobbes, o homem precisa de
regras e normas, ou seja, necessita de leis para definir seus direitos e deveres. Em outras
palavras, é necessário um contrato para se viver melhor, pois há homens que não conseguem
se controlar. E, além disso, é preciso definir o direito à propriedade, para que não seja apenas
uma lei do mais forte, ou do poder do rei para dominar todo o povo.
Segundo Rousseau, a desigualdade pode ser de dois tipos: a que se deve às
circunstâncias sociais; e uma segunda causa devida ao surgimento do ciúme nas relações
amorosas; ou até por causa da institucionalização da propriedade privada como pilar do
funcionamento econômico.
Ele acreditava também que, quando o homem estiver em sociedade e sob regras
claras, poderá viver em harmonia e paz, voltando a ser bom, mas já não será uma bondade
natural, porque lhe foi imposta por meio de um contrato, já que o homem só é bom quando
vive sozinho na natureza. Caso contrário, é mau e busca seus interesses pessoais, que só são
contidos por meio de leis.
O homem, ao renunciar à liberdade, segundo Rousseau, abre mão da própria qualidade
que o define como humano. Ele não está apenas impedido de agir, mas privado também do
instrumento essencial para a realização do seu espírito. Para recobrar a liberdade perdida nos
descaminhos tomados pela sociedade, o filósofo preconiza um mergulho interior por parte do
indivíduo rumo ao autoconhecimento.
Para Rousseau, a liberdade de cada homem deve ser protegida e defendida por alguma
forma de associação, que também proteja e defenda toda força comum e os bens de cada
associado.
77 Ibidem
56
Enfim, cada um dando-se a todos, não se dá a ninguém e, não existindo um
associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre
si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para
conservar o que se tem.78
Rousseau busca o conhecimento para explicar uma sociedade justa com liberdade e
igualdade, com base em um contrato e em regras de cunho social.
As cláusulas contidas no contrato social podem ser sucintamente resumidas numa
única, segundo Rousseau: “(...) a alienação total de cada associado, com todos os seus
direitos, em favor de toda a comunidade”.79 Isto é, deve haver uma condição igual disponível
para todos. É o que hoje chamamos de bem comum. Assim, pode-se afirmar que o contrato
social tem por objetivo a conservação dos contratantes e uma relação de justiça – equidade –,
que é a sua finalidade social.
Na obra Do Contrato Social, percebe-se que o autor genebrino teve como base que as
pessoas vivem em uma sociedade preconceituosa, egoísta, sem liberdade nem igualdade, e faz
uma análise histórica do papel do Estado e de como surgem suas leis.
Segundo Rousseau, a sociedade como um todo também precisa de uma convivência
harmoniosa de uns com os outros, num combate à desigualdade. Para tanto, deve ser pensado
e criado um corpo político para a melhor organização social, a qual possa garantir o direito à
propriedade com o cultivo da terra – também princípio da função social do contrato –, no
entanto, o homem deve ter somente a terra de que precisa, e que nessa terra deva haver labor.
Essa ideia de ter só aquilo de que precisa é transposta do estado de natureza para o estado
civil, pois quando um homem tem muito – inclusive do que não precisa – e outro não tem
nada, surgem as desigualdades.
Essas diferenças são de várias espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou a
condição, o poder e o mérito pessoal sendo, em geral, as distinções
principais pelas quais as pessoas se medem na sociedade, provarei que o
acordo ou o conflito dessas forças diversas são a indicação mais certa de um
Estado bem ou mal constituído; mostrarei depois que, entre esses quatro
tipos de desigualdade, constituindo as qualidades pessoais a origem de todas
as outras, a riqueza é a última a que por fim elas se reduzem, porque, sendo a
mais imediatamente útil ao bem-estar e a mais fácil de comunicar-se,
servem-se dela com facilidade para comprar todo o resto. Essa observação
permite julgar com bastante precisão como cada povo se distanciou de sua
78 ROUSSEAU, 1973 – p. 39 79 ROUSSEAU, 1978 – p. 30
57
instituição primitiva e do caminho que percorreu até o termo extremo da
corrupção.80
Esse acúmulo desenfreado e maléfico do qual fala Rousseau, passa pela questão da
terra, afinal, a terra é uma fonte de riqueza. Então, para o filósofo genebrino, o contrato social
não pode ser um documento que suprima a vontade humana, mas, ao contrário, deve
concorrer para outros fins, inclusive a regulação da distribuição equitativa da terra. Tal
contrato tem uma única condição: a alienação total de cada associado, com todos os seus
direitos, em favor da comunidade, de forma igualitária e a ser seguida por todos, tendo o
mesmo fim. Contudo, não poderá haver valor oneroso aos que nele se inspiram, sob pena de
desvirtuar o proposto.
Esse preceito, sem reservas, conceberia uma convivência tão harmoniosa que nenhum
membro da coletividade careceria de exigir isso ou aquilo. Portanto, apenas com a supressão
das particularidades é que a tirania pode ser aniquilada, promovendo o verdadeiro bem-estar
social.
A esse contexto e ao corpo moral e coletivo formado pela totalidade dos indivíduos
que constituem o pacto social, Rousseau chama de República. Nela, o cidadão não está
obrigado consigo mesmo, como nas máximas do direito civil, mas sim, com os demais,
coobrigado ao todo do qual faz parte.
Vale ressaltar que, em suas ideias, Rousseau não jamais pretendeu desconsiderar a
dignidade do homem e os bens por ele conquistados, mas conferir a tais atributos uma função
social, dos quais a liberdade civil é o atributo que entrega ao homem o poder sobre si mesmo,
desvencilhando-o da escravidão e do poder opressor.
O contrato social dá forma e voz ao corpo político, mas é necessária a edição de leis
para regulamentar e conservar tal corpo.
Teles destaca que, já para Hobbes, um contrato social deve seguir determinadas regras,
que podem ser resumidas em:
o Um contrato é realizado sempre entre duas ou mais pessoas capazes de
expressar por linguagem ou sinais claros e evidentes a aceitação voluntária do
contratado. Por conseguinte, não se pode firmar contrato com animais ou com
Deus (salvo no caso de revelação);
80 ROUSSEAU, 1978 (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens) – p. 284
58
o A transferência do(s) direito(s) deve ocorrer por meio de evidente aceitação,
tanto daquele que transfere o direito quanto daquele que o recebe;
o A transferência de direitos é sempre mútua entre os contratantes;
o O contrato é um ato da vontade e, portanto, pressupõe um bem e/ou um
benefício para o contratante;
o O contratante fica obrigado apenas àquilo que lhe é possível, ou seja, nenhum
contrato pode obrigar mais do que o maior esforço possível do contratante em
realizar o acordado. “(...) não se pode esperar que nenhuma convenção
obrigue mais além do que o nosso melhor esforço, seja pelo cumprimento da
coisa prometida, seja por uma coisa equivalente”;
o Cumprir aquilo que é acordado é uma obrigação do contratante;
o Quebrar ou descumprir um contrato é injúria ou injustiça;
o A matéria do contrato precisa ser algo possível de ser cumprido pelo
contratante;
o Em se tratando do contrato social, o fim pelo qual os homens renunciam ao
direito de proteger e defender a si mesmos, a partir de sua própria capacidade,
em favor de uma pessoa (o soberano), a qual passa a proteger e defender os
contratantes, é a proteção e, “(...) sem essa proteção, não existe razão para que
um homem se prive das suas próprias vantagens e faça de si mesmo uma presa
dos demais”;
o É impossível abandonar ou transferir alguns direitos por meio de contrato;
o Aquele que cumpre primeiro sua parte no contrato merece que o outro cumpra
sua parte, e esse tem o dever de cumprir.81
4.2 - Ordenamentos legais
De acordo com Rousseau, os ordenamentos legais devem convergir para uma
associação que traga equidade firmada sob o prisma da justiça natural, fundamentada pela
vontade de cada indivíduo – pois essa possui liberdade natural advinda unicamente de Deus –
81 Cf. TELES, 2012 – p. 84
59
e constituída por um corpo racional criador da República, sendo soberano e regido por leis
para condição de associação civil.
Existe uma única lei que, pela sua natureza, exige consentimento unânime –
é o pacto social, por ser a associação civil o mais voluntário dos atos deste
mundo. Todo homem, tendo nascido livre e senhor de si mesmo, ninguém
pode, a qualquer pretexto imaginável, sujeitá-lo sem o seu consentimento.
Afirmar que o filho de um escravo nasce escravo, é afirmar que não nasce
homem.82
Posto isso, vale lembrar que, muito embora Rousseau defendesse a instituição de leis
como uma forma de garantir a liberdade e a igualdade, ele jamais pretendeu instituir uma
igualdade absoluta como se todo mundo devesse ter tudo na mesma proporção, mas sim, que
devesse se evitar os extremos no que diz respeito à distribuição dos bens, ou seja, o genebrino
acreditava que se um homem tivesse muito e outros não tivessem absolutamente nada, seria
impossível a constituição de um Estado sadio, afinal, quem não tem nada é tentado a utilizar-
se de quaisquer meios – inclusive os espúrios e violentos – para garantir sua existência e
subsistência; enquanto que, quem tem muito, é tentado a utilizar-se dos outros homens para
favorecer-se.
Então, outra importância das leis – visto que é impossível uma igualdade absoluta
entre os homens e que também é impossível modificar a natureza humana para que os homens
não sigam suas paixões ora ou outra – é garantir que um indivíduo não exerça seu poder e
tampouco aja com violência sobre outro. As leis impõem de fora o que, em alguns, a moral –
inscrita por Deus no coração dos homens – não faz, ou seja, coage aquele pretende desviar-se
do bem-viver coletivo para atender a seus interesses pessoais. Torna os homens iguais perante
uma força superior.
Tal igualdade, dizem, é uma quimera do espírito especulativo, que não pode
existir na prática. Mas, se o abuso é inevitável, segue-se que não precisemos
pelo menos regulamentá-lo? Precisamente por tender a força das coisas a
destruir a igualdade, a força da legislação deve sempre tender a mantê-la.
(...) pois só a força do Estado faz a liberdade de seus membros.83
82 ROUSSEAU, 1973 (Do Contrato Social) – p. 126 83 Idem – p. 75
60
Considerações finais
Longe de esgotar a questão, procuramos analisar a função social do contrato na obra
Do Contrato Social do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, e a partir das análises aqui
expostas, demonstramos que o interesse do filósofo – descontente com as instituições sociais
de sua época – era a idealização de um pacto que fosse capaz de tornar as relações entre os
homens em relações mais justas.
Para tanto, Rousseau partiu de uma concepção hipotética de um possível estado do
homem no qual esse se encontrava totalmente despido das corrupções sociais das instituições
e, tal conceito – que não foi inventado por ele e tampouco somente por ele utilizado –, é
chamado de estado de natureza. Nesse possível estado – no qual o homem vive isolado e feliz
– o indivíduo só tem a preocupação de se autopreservar e atender suas necessidades sensíveis,
numa liberdade absoluta – do ponto de vista de que não há nenhum outro indivíduo que limite
sua liberdade e nem a sua posse. Porém, no momento que os homens tornaram-se gregários,
essa liberdade foi ameaçada pela presença de outros homens que também possuíam desejos e
necessidades.
Posto isso, o que Rousseau pretendia quando idealizou seu contrato era a purificação
das instituições – fonte de corrupção dos homens – para tornar possível – na vida social – a
volta da liberdade que um dia o homem perdeu.
Pode-se supor que Do Contrato Social tenha sido baseado na vida do seu autor, pois
Rousseau, desde criança até sua formação – por ausência de liberdade e de igualdade em meio
ao sobrepujamento das liberdades individuais – fez uma profunda reflexão acerca da melhor
forma de satisfação dos interesses da coletividade sem que os interesses individuais fossem
totalmente suprimidos.
A concepção de homem, em Do Contrato Social, é a de que ele sacrifica sua própria
liberdade, por ser um indivíduo natural que, por vezes, abdica de sua vontade pessoal em
nome da vontade da maioria. Porém, nessa organização social, denominada Estado, como foi
demonstrado, tem-se o objetivo de manter a ordem social e defender os interesses individuais,
naturalmente concedidos aos indivíduos.
O homem, por sua vez, por ser capaz de raciocinar, naturalmente é um ser social e
político e, graças a essas características e à adesão que faz ao contrato social, ele abdica do
gozo da sua liberdade natural para viver em sociedade.
61
O Estado Civil, na perspectiva de Rousseau, é a forma mais bem elaborada, e não
contraditória, de valorizar a herança natural do homem – quanto à bondade e à liberdade – em
sentido mais amplo, dentre os demais membros de uma dada sociedade. Por isso ele é
naturalmente um animal social.
A partir de um novo Contrato Social, Rousseau empenhou-se em investigar a
possibilidade de uma vida em sociedade, referendada por bases legítimas, expostas em Do
Contrato Social. Nessa obra, pode-se identificar claramente a proposta rousseauniana de uma
nova vida em sociedade a partir do ideal de soberania vinculada ao povo. É também possível
averiguar em sua obra o paradoxo entre vontade individual e vontade geral. Sendo aquela
somente relacionada à vida privada do homem, enquanto esta ao interesse coletivo, ou seja, as
vontades particulares do indivíduo não devem ser exclusivamente visadas no meio social, e o
Estado não deve interferir na vida privada dos indivíduos se não for do interesse público. O
indivíduo – diferentemente de quando vivia em estado de natureza – já não pode fazer tudo e
somente o que quer, mas deve observar suas ações para orientá-las – ou reorientá-las – de
acordos com seus deveres, ou seja, cada um só pode agir até onde sua ação não prejudique
outrem.
Com esse propósito, o genebrino destacou a intermediação do governo entre os
súditos, com o soberano responsabilizando-se pela preservação e manutenção da liberdade
civil e política, quando todos abdicam igualmente de sua liberdade particular.
O filósofo destacou também a problemática e a solução para a criação de uma religião
civil unificada no culto do coração e no dever para com o Estado – quando se diz respeito ao
interesse coletivo, o Estado deve ser adorado acima de qualquer coisa. Por isso, considerava
que a principal condição para a existência de uma nova sociedade, pautada em um Estado
legítimo, não era de ordem econômica ou política, e sim, de ordem moral ou religiosa. Daí o
motivo de abordar a importância da religião no último capítulo de seu Do Contrato Social.
Para ele, o respeito de todos à lei deve ser incondicional.
Outro fator constitutivo desse pacto social é o elemento capaz de afastar desigualdades
sociais e injustiças oriundas de um organismo sem regras, caso contrário, haveria imposição
de subjetivismos e vontades alheias ao interesse coletivo.
Rousseau defende que a sociedade opera modificações sobre os homens que podem
ser positivas ou negativas. E, a partir do contrato social, as ações individuais devem respeitar
as leis que levam em consideração a vontade geral. Dessa forma, há normas que regulam e
limitam aquilo que os cidadãos podem ou devem fazer.
62
Esses aspectos explicitam a visão de Rousseau acerca dos impactos que a vida social
exerce sobre os indivíduos que participam da organização social.
A teoria de Rousseau encerra uma fase no pensamento de filósofos com tendências
variadas sobre a origem da sociedade. Em seguida, após a Revolução Francesa, a sociedade
não é mais pensada como um produto exclusivo da vontade humana ou como resultado de um
contrato social, mas passa a ser vista como um processo histórico.
Desse modo, o que interessa não é mais explicar o passado, relegado ao
republicanismo, como anacrônico e escravocrata e, até então, pouco produtivo
economicamente, mas devem-se preparar o futuro e o crescimento econômico. Esse futuro é
inicialmente visto segundo o interesse da nação, e não baseado inicialmente no cidadão
individualmente que, eventualmente, se beneficiará dessa nação numa fase posterior.
A liberdade e a igualdade são o cerne de todos os escritos de Rousseau que, por sua
vez, trazem à baila sempre a função social do contrato social, o qual deve ser regido por leis
elaboradas e fiscalizadas pelos homens nomeados numa assembleia do povo.
Para entender mais completamente Rousseau, foi feita uma análise da sua obra, dos
seus críticos, dos seus antecessores Hobbes e Locke e de outros estudiosos de suas obras, até
se chegar à conclusão de que o Do Contrato Social ratifica a ideia de Rousseau ter sido o
fundador da democracia moderna.
Essa opção teórica possibilita reforçar o princípio da vontade geral como
possibilidade de uma atualização de seu pensamento e das possíveis heranças que a pedagogia
moderna vai ter a partir da sua obra.
63
Bibliografia
Bibliografia Principal:
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil;
tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. – 4ª edição – São Paulo:
Nova Cultural, 1988. (Coleção os Pensadores);
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. –
São Paulo: Martins Fontes, 2003;
LOCKE, John. Ensaios políticos; organizado por Mark Goldie; tradução de Eunice Ostrensky.
– São Paulo: Martins Fontes, 2007 (Clássicos Cambridge de filosofia política);
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Os Pensadores. Trad. João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. – São Paulo: Abril Cultural, 1974;
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; tradução de Louders Santos Machado;
introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado; editor Victor
Civita – São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973 (Coleção Os Pensadores – História
das Grandes Ideias do Mundo Ocidental);
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; tradução de Lourdes Santos Machado e
introduções e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado – 2ª Edição, São
Paulo: Abril S.A. Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores);
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; tradução de Paulo Neves – Porto Alegre:
L&PM, 2010;
64
ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou, Da educação; tradução de Roberto Leal Ferreira, 3ª
edição – São Paulo: Martins Fontes, 2004 – (Paideia);
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Textos autobiográficos e outros escritos; tradução, introdução e
notas Fúlvia M. L. Moretto – São Paulo: Editora UNESP, 2009;
SIMPSON, Matthew. Compreender Rousseau. Petrópolis: Vozes, 2009;
Bibliografia Complementar:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia – edição revista e ampliada; tradução da 1ª
edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos
novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 2007;
ALTHUSSER, Louis. Política e História – de Maquiavel a Marx (Curso ministrado na École
Normale Supérieure de 1955 a 1972); tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2007 – (Coleção Tópicos);
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972;
AYERS, Michael. Locke; tradução de José Oscar de Almeida Marques – São Paulo: Editora
UNESP, 2000 (Coleção Grandes Filósofos);
BATISTA, Gustavo Araújo. O naturalismo e o contratualismo em John Locke e em Jean-
Jacques Rousseau. 1ª edição – Curitiba-PR: Editora CRV, 2010;
CASSIRER, E. A questão Jean-Jacques Rousseau. – São Paulo: Editora UNESP, 1999.
(Biblioteca básica);
DENT, N. J. H. Dicionário de Rousseau; tradução de Álvaro Cabral – Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996;
65
DUNN, JOHN. Locke; tradução de Luiz Paulo Rouanet. – São Paulo: Edições Loyola, 2003;
DURKHEIM, Émile. Montesquieu e Rousseau (Pioneiros da Sociologia); tradução de Julia
Vidili. – São Paulo: Madras, 2008;
FILHO, Clovis Barros. Ética na Comunicação; atualização de Sérgio Praça – 6ª edição, São
Paulo: Summus, 2008;
FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia Filosófica;
tradução de Paulo Neves. 3ª edição – São Paulo, Martins Fontes, 2006. (Ferramentas);
GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo: A crítica radical do “Espírito das
Luzes”; Críticos, céticos e românticos; Uma nova ordem social. 2ª edição, 2ª reimpressão –
São Paulo: Editora Contexto, 2016. – p. 105;
HOUAISS, Instituto Antônio (org.); Dicionário Houaiss Conciso; editor responsável, Mauro
de Salles Villar. 1ª edição – São Paulo: Editora Moderna, 2011;
KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011;
LIMA, Rômulo de Araújo. 10 Lições sobre Rousseau – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 (Coleção
10 Lições);
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano; tradução de Anoar Aiex. – São
Paulo: Nova Cultural, 1988 (Coleção Os pensadores);
MAGALHÃES, Fernando. 10 Lições sobre Hobbes – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014 (Coleção
10 Lições);
MELLO, Leonel. Os clássicos da Política. Volume 1, 12ª. edição. In: WEFFORT, Francisco
C. Capítulo 4. John Locke e o individualismo liberal, pp. 81-89;
66
PITZ, G. A vontade geral segundo Jean-Jacques Rousseau: Uma fundamentação moral da
política. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis,
2004;
POZZEBON, Paulo Moacir Godoy (org.). Mínima Metodológica; com colaboração de
Germano Rigacci Júnior, João Miguel Teixeira de Godoy, Paulo André Anselmo Setti. 2ª ed.
Revisada – Campinas: Editora Alínea, 2006;
RIBEIRO, Renato J. Os clássicos da Política. Volume 1. 12ª. ed. In: WEFFORT, Francisco
C. Capítulo 3, Hobbes: O modo e a esperança, pp. 53-77;
TELES, I. Contrato social de Thomas Hobbes: Alcances e limites (Tese de Doutorado em
Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, 2012.