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O DEVER DE MOTIVAR E O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Raquel Melo Urbano de Carvalho 1 1. Introdução Um dos objetivos do Direito Administrativo moderno tem sido buscar mecanismos aptos a substituir o arbítrio no exercício das competências estatais pela sujeição às normas do ordenamento jurídico, interpretado sistêmica e teleologicamente. Na perseguição de tal escopo, observa-se a íntima relação entre o princípio da motivação e o controle da legalidade pública. Com efeito, a atuação do administrador no cumprimento da lei é um ato de inteligência da ordem jurídica anterior e, em alguns casos, de vontade política exercida segundo critérios de conveniência e oportunidade. O exercício de tal competência em nenhum momento se confunde com o exercício puro e imotivado da vontade pessoal do agente público, donde resulta clara a necessidade de fundamentação fática e jurídica de cada conduta administrativa. Observando tais premissas, entende-se que o motivo – evento do mundo empírico que permite ou exige a prática do ato administrativo – e a fundamentação jurídica que embasa sua realização são indicações às quais o administrador público encontra-se adstrito antes de qualquer comportamento estatal. Neste sentido, a simples ausência de motivação do ato administrativo, discricionário ou vinculado, implica caracterização de ato ilegal, submetido ao controle pelo Judiciário. Cumpre registrar que não se trata de entendimento pacífico sobre a matéria. Uma análise detida dos diversos posicionamentos permite a identificação de quatro correntes na espécie, senão vejamos. 2. Correntes doutrinárias e jurisprudenciais: análise evolutiva 2.1. Posição Clássica: do dever de motivar somente os atos vinculados e da impossibilidade do Judiciário controlar os atos discricionários Conforme um primeiro posicionamento, não há a obrigatoriedade de enunciar os pressupostos de fato do ato administrativo, salvo na hipótese de ato vinculado ou em face de expressa exigência legal. Para esta corrente, o fato de a discricionariedade outorgar ao administrador uma margem de liberdade dentro da 1 Procuradora do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Administrativo. Professora de Direito Administrativo.

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O DEVER DE MOTIVAR E O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Raquel Melo Urbano de Carvalho1

1. Introdução

Um dos objetivos do Direito Administrativo moderno tem sido buscar

mecanismos aptos a substituir o arbítrio no exercício das competências estatais

pela sujeição às normas do ordenamento jurídico, interpretado sistêmica e

teleologicamente. Na perseguição de tal escopo, observa-se a íntima relação

entre o princípio da motivação e o controle da legalidade pública.

Com efeito, a atuação do administrador no cumprimento da lei é um ato de

inteligência da ordem jurídica anterior e, em alguns casos, de vontade política

exercida segundo critérios de conveniência e oportunidade. O exercício de tal

competência em nenhum momento se confunde com o exercício puro e imotivado

da vontade pessoal do agente público, donde resulta clara a necessidade de

fundamentação fática e jurídica de cada conduta administrativa.

Observando tais premissas, entende-se que o motivo – evento do mundo

empírico que permite ou exige a prática do ato administrativo – e a

fundamentação jurídica que embasa sua realização são indicações às quais o

administrador público encontra-se adstrito antes de qualquer comportamento

estatal. Neste sentido, a simples ausência de motivação do ato administrativo,

discricionário ou vinculado, implica caracterização de ato ilegal, submetido ao

controle pelo Judiciário.

Cumpre registrar que não se trata de entendimento pacífico sobre a

matéria. Uma análise detida dos diversos posicionamentos permite a identificação

de quatro correntes na espécie, senão vejamos.

2. Correntes doutrinárias e jurisprudenciais: análise evolutiva

2.1. Posição Clássica: do dever de motivar somente os atos vinculados e da

impossibilidade do Judiciário controlar os atos discricionários

Conforme um primeiro posicionamento, não há a obrigatoriedade de

enunciar os pressupostos de fato do ato administrativo, salvo na hipótese de ato

vinculado ou em face de expressa exigência legal. Para esta corrente, o fato de a

discricionariedade outorgar ao administrador uma margem de liberdade dentro da

1 Procuradora do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Administrativo. Professora de Direito Administrativo.

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qual lhe é lícito escolher segundo sua conveniência e oportunidade evidencia a

desnecessidade de que sejam explicitadas as razões empíricas e teóricas da

opção realizada.

Neste sentido, Cretella Júnior aduzia que “Ao contrário da decisão

judiciária, que exige fundamentação – é a regra –, o pronunciamento

administrativo de modo geral dispensa justificativa, a não ser expressa norma

legal o determine”.2 Para o citado autor, dispensa-se a motivação nos atos

discricionários em que a lei faculta à autoridade administrativa a apreciação da

oportunidade e da conveniência, bem como nos atos precedidos de parecer

fundamentado de órgão consultivo.3

Além de afastar a obrigatoriedade de motivação como regra vinculante dos

atos discricionários, a impossibilidade de o Judiciário analisar o mérito

administrativo surge como um limite ao controle do Poder Público neste primeiro

momento. Entende-se não ser lícito ao Judiciário apreciar atos discricionários

cujos interesses relativos à conveniência e oportunidade são privativos do

administrador público.

Seguindo tais paradigmas, tem-se decisões do Superior Tribunal de

Justiça, tais como:

“A cessão de servidor público, sendo ato precário, confere à

Administração, a qualquer momento, por motivos de conveniência e

oportunidade, a sua revogação, sem necessidade de motivação, cujo

controle escapa ao Poder Judiciário, adstrito unicamente a questões de

ilegalidade.”4

2.2. Teoria dos Motivos Determinantes

No final da década de 70, identifica-se uma inversão na tendência de

flexibilizar o dever de motivação em relação aos atos administrativos, surgindo

esta exigência nos atos restritivos de direito, sobretudo os de natureza disciplinar.

Neste panorama, ganha espaço a Teoria dos Motivos Determinantes,

segundo a qual, em princípio, não há o dever de motivar os atos discricionários,

2 JÚNIOR, José Cretella. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. Rio de Janeiro, Forense, p. 276. 3 JÚNIOR, José Cretella. Curso de Direito Administrativo, op. cit., p. 276. 4 ROMS nº 12.312-RJ, rel. Min. Vicente Leal, 6ª Turma do STJ, DJU de 09.12.2002, p. 390. No mesmo sentido: Apelação Cível nº 1998.01.00.007270-6/BA, rel. Juiz Manoel José Ferreira Nunes, 1ª Turma Suplementar do TRF, DJ de 15.08.2002, p. 244.

3

mas as razões de fato e de direito, se apresentadas, passam a condicionar a

validade do pronunciamento administrativo, sujeitando-se ao controle judicial de

legalidade.

Denota-se claramente que, nesta fase, ainda não se postula a

obrigatoriedade de motivar o ato discricionário. Ao contrário, reconhece-se ao

administrador público a opção de não indicar as razões de fato e de direito que

fundamentaram sua escolha. Contudo, se embora não adstrita ao dever de

motivação, a autoridade motivar sua conduta, os pressupostos fáticos e jurídicos

explicitados integram a legalidade da sua atuação. Se inverídico o pressuposto

fático (motivo) ou divorciado do ordenamento o fundamento jurídico (motivo legal),

lícito é ao Judiciário, uma vez provocado, reconhecer a invalidade do ato em tese.

Isto porque os motivos de fato e de direito indicados como fundamento da

atuação estatal, sempre que inexistentes, inverídicos ou equivocadamente

qualificados, submetem-se aos efeitos do controle decorrente do artigo 5º, XXXV

da Constituição.

Confira-se, a propósito, a lição de Odete Medauar:

“Segundo essa teoria, os motivos apresentados pelo agente como

justificativas do ato associam-se à validade do ato e vinculam o próprio

agente. Isso significa, na prática, que a inexistência dos fatos, o

enquadramento errado dos fatos aos preceitos legais, a inexistência da

hipótese legal embasadora, por exemplo, afetam a validade do ato, ainda

que não haja obrigatoriedade de motivar.”5

E o seguinte julgado do STJ:

“Ao motivar o ato administrativo, a Administração ficou vinculada aos

motivos ali expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tem aí aplicação a

denominada teoria dos motivos determinantes, que preconiza a

vinculação da Administração aos motivos ou pressupostos que serviram

de fundamento ao ato. A motivação é que legitima e confere validade ao

ato administrativo discricionário.”6

Um dos principais problemas decorrentes da teoria sub examine é o fato

de, ao afastar a obrigatoriedade de motivação do ato discricionário, incentivar o

silêncio da autoridade competente para sua prática. Afinal, se a autoridade não

5 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 168. 6 ROMS 10165-DF, LexSTJ, v. 152, p. 38.

4

indicar as condições fáticas e jurídicas das quais se utilizou, impedido estará o

controle jurisdicional. Ao contrário, se motivar sua decisão, estará jungida aos

elementos denunciados, que se submetem à apreciação judicial.

Como meio de contornar o incentivo à não motivação decorrente da Teoria

dos Motivos Determinantes conforme concebida em sua origem, os doutrinadores

passaram a invocar os princípios constitucionais da moralidade (artigo 37, caput

da CF) e do acesso ao Judiciário (artigo 5º, XXXV da CF), ambos concretizáveis

apenas em face de motivação expressa dos comportamentos administrativos

vinculados ou discricionários. Referido raciocínio serviu de fundamento para

decisões que buscaram exatamente harmonizar a teoria em exame e a exigência

de que sejam motivados os atos administrativos em geral:

“Magistério Municipal. Possibilidade de remoção de professor, de uma

escola para outra, não gozando da garantia da inamovibilidade.

Necessidade, porém, de motivação do ato. Em nome da teoria dos

motivos determinantes. Ausente a devida motivação. Nulo se ostenta o

ato impugnado.”7

2.3. Posição Majoritária: do dever de motivar todo ato administrativo e da

legitimidade do Judiciário controlar os aspectos vinculados do ato

discricionário e os contornos da discricionariedade

Certo é que as próprias questões resultantes da Teoria dos Motivos

Determinantes conduziram à evolução da doutrina no tocante ao dever de motivar

os atos administrativos. Não se pode admitir que qualquer conduta da

Administração, independentemente da sua natureza vinculada ou discricionária,

possa tornar-se realidade sem a indicação do seu suporte fático e jurídico,

principalmente em se tratando de um Estado que se pretende Democrático de

Direito. Neste contexto, mesmo diante da omissão legislativa de exigência

expressa de motivação, decorre tal obrigatoriedade do modelo de Estado traçado

na Constituição em vigor.

Florivaldo Dutra de Araújo leciona, com habitual percuciência, que se deve

reconhecer a existência da regra geral da obrigatoriedade de motivação:

7 Ap. nº 70003495314, 3ª Câmara Cível do TJRS, rel. Luiz Ari Azabuja Ramos, julgada em 14.03.02

5

“A dispensa de motivação nos atos vinculados não deve ser cogitada, por

duas razões principais: a necessidade de se conhecer a interpretação

dada pelo administrador à lei, e a de tornar possível a verificação da

correta incidência do ato na situação fática que o tenha motivado.

(...) Quanto à motivação para os atos discricionários, sua dispensa é de

tal inconveniência, que quase não há quem não ponha exceções a tal

afirmação, reportando-se a algumas daquelas hipóteses em que a

fundamentação se impõe pela natureza do ato.”8

Sem dúvida, é exatamente nos atos discricionários, em que há maior

espaço de ação para o administrador, que se mostram indispensáveis melhores

instrumentos de controle, destacando-se a fundamentação como um dos mais

eficientes mecanismos de aferir a legalidade administrativa. Não é equivocado

afirmar que, na verdade, quanto maior a discricionariedade outorgada ao

administrador, maior a necessidade de motivação da atuação estatal.

Com o advento da Lei de Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784 –

inseriu-se no ordenamento a regra do artigo 50, a qual impõe o dever de motivar

aos atos que: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham

ou agravem deveres, encargos ou sanções; III - decidam processos

administrativos de concurso ou seleção pública; IV - dispensem ou declarem a

inexigibilidade de processo licitatório; V - decidam recursos administrativos; VI -

decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada

sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios

oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato

administrativo.

O professor José dos Santos Carvalho Filho afirma que a relação do artigo

50 da Lei 9.784 é taxativa (numerus clausus), “o que significa dizer que os atos

não constantes da enumeração da lei dispensam a referência expressa da

justificativa”, sob pena de se causar grave dano à celeridade que se deseja

implantar na Administração.9 Para o autor, a obrigatoriedade de motivação

inexiste como regra, uma vez que a Lei Magna não incluiu qualquer princípio de

que decorresse tal dever. A expressão “decisões administrativas”, do art. 93, X da

8 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e Controle do Ato Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, p. 114-115. 9 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 227-228.

6

CF, seria restrita às decisões exaradas em processos administrativos, sendo

possível considerar a motivação obrigatória somente se houver norma legal

expressa nesse sentido.10

Malgrado induzir à concordância com tal posicionamento o simples fato de

defendê-lo o ilustre doutrinador José dos Santos Carvalho Filho e em que pese a

premissa segundo a qual na lei não existem palavras inúteis, ouso, cum maxima

venia, discordar de tal entendimento. Em face da Constituição de 1988, não

remanesce a possibilidade de se falar em ato administrativo desprovido de

fundamentação. Na medida em que o contraditório e a ampla defesa encontram-

se erigidos como garantias no artigo 5º, LV da Lei Maior, inadmissível que a

atuação administrativa surja desacompanhada das razões fáticas e jurídicas que

a justificaram, sob pena de, ausente a motivação, afigurar-se impossível o

exercício democrático das citadas garantias constitucionais.

A motivação surge, ainda, como meio necessário à caracterização do

devido processo legal, insculpido no artigo 5º, LIV da Constituição. Um ato que

não ostente as razões pelas quais foi praticado não atende a norma fundamental

que consagrou o due process of law. Referido princípio não se limita às garantias

formais, mas dele decorrem atualmente garantias substanciais, dentre as quais se

destaca a motivação. É ela quem legitima o exercício do poder e impede o uso

arbitrário das competências públicas, conciliando os padrões jurídicos do Estado

Democrático de Direito11.

Ademais, como bem observa Fábio Medina Osório,

“(...) se o chamado ‘princípio da proporcionalidade’ é, hoje, no Direito

brasileiro, amplamente admitido, não se pode ignorar que um dos pilares

de controle desse princípio é, exatamente, a motivação. Sem esta, como

se pode exercer o juízo de ponderação? Um discurso jurídico desprovido

de argumentos, de razões, de fundamentos, não é, em realidade, um

discurso jurídico, mas sim um discurso puro e bruto da autoridade, do

10 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 102-103. 11 OSÓRIO, Fábio Medina. O princípio constitucional da motivação dos atos administrativos: exame de sua aplicabilidade prática aos casos de promoção e remoção de membros do Ministério Público e magistratura por merecimento nas respectivas carreiras. Revista dos Tribunais, v. 774, p. 46.

7

autoritarismo, da força. Que proporcionalidade se pode esperar e exigir de

um ato imotivado?”12

Por fim, embora a celeridade decorra do princípio da eficiência proclamado

no artigo 37 da Lei Magna, resulta clara do texto constitucional a intenção de

prestigiar o controle como premissa fundante do Estado Democrático de Direito.

Referido controle somente é possível na hipótese de o administrador evidenciar,

mediante indicações claras, congruentes, exatas e suficientes, ter adotado o

comportamento adequado em face das normas de regência. De nada adiantaria a

previsão de inúmeros instrumentos de controle, se os órgãos competentes para o

seu exercício não tiverem acesso às razões de atuação estatal, aptas a

demonstrar a legalidade e efetividade do direito na espécie. Neste contexto, não

se pode admitir que a celeridade sirva como justificativa para inviabilizar que

sejam concretizados instrumentos indispensáveis à plena consecução das formas

de controle estatais. Como a motivação é indispensável à realização do controle –

garantia constitucional –, impõe-se a mesma como comportamento vinculado da

Administração.

Assim sendo, o fato de o artigo 50 da Lei Federal nº 9.784/99 enumerar

atos administrativos que devem ser necessariamente motivados em nada afeta a

obrigatoriedade de motivação, que decorre dos princípios expressos e implícitos

da Constituição. Independentemente de um ato estar elencado no rol do artigo 50

da Lei nº 9.784, o mesmo deve ter indicados os fatos e fundamentos jurídicos que

serviram de base à sua prática.

Em conformidade com decisão do TFR:

“Na remoção ex-officio, o interesse da Administração deve ser

objetivamente demonstrado, pois só assim poderá o ato ser constatado

pelo Judiciário. Não basta a referência ao interesse da Administração in

abstracto, sem motivação concreta.”13

Fixada a indispensabilidade da motivação, por se tratar de instrumento

democrático necessário à transparência na Administração, à proteção da

moralidade, à garantia da ampla defesa e do contraditório e à interdição à

12 OSÓRIO, Fábio Medina. O princípio constitucional da motivação dos atos administrativos: exame de sua aplicabilidade prática aos casos de promoção e remoção de membros do Ministério Público e magistratura por merecimento nas respectivas carreiras, op. cit., p. 46. 13 Revista de Direito Administrativo, v. 159, p. 41.

8

arbitrariedade, imperioso analisar os limites do controle judicial do ato

administrativo.

A este propósito, não se pode ignorar que o princípio da inafastabilidade do

controle jurisdicional constitui direito e garantia fundamental prevista no artigo 5º

da Constituição Federal. Na consecução desta competência reservada ao

Judiciário mostra-se indispensável ao Estado decidir, diante de um conflito de

interesses, nos termos da ordem jurídica vigente, a que se encontram submetidas

as pessoas físicas e jurídicas.

A compreensão dos limites do controle a ser realizado pelo Judiciário,

neste contexto, implica, em primeiro plano, o correto entendimento do princípio da

legalidade. Se inicialmente se considerava atendido referido princípio com o

simples cumprimento de regras legais isoladas, a idéia ampliou-se com a inserção

do princípio da moralidade no artigo 37, caput da Constituição. Passou a se

entender que não bastava à ação administrativa a legalidade estrita, sendo

imprescindível a sua legitimidade, a saber, o atendimento simultâneo das normas

legais e do padrão ético de conduta interna vigente na estrutura estatal, de acordo

com os critérios de honestidade e lealdade administrativa.

Não se ignore, contudo, a insuficiência de apenas se inserir a moralidade

como fundamento basilar da atuação pública. Atualmente, entende-se a

legalidade como o princípio que vincula a Administração ao Direito, no qual se

inserem os princípios constitucionais explícitos (moralidade, impessoalidade,

publicidade, eficiência, isonomia) e implícitos (razoabilidade, proporcionalidade,

boa-fé objetiva, supremacia do interesse público), as normas constitucionais e

legais vigentes, bem como a imprescindibilidade de atendimento às necessidades

sociais em questão.

Assim sendo, tanto a eficiência, expressa no artigo 37 da CF, como o

princípio da razoabilidade, são critérios eficientes inseridos no controle de

legalidade da conduta administrativa, indispensáveis à caracterização da

juridicidade da ação estatal, independentemente da sua natureza vinculada ou

discricionária.

Com efeito, parâmetros como a moralidade e a proporcionalidade, antes

entendidos como insertos no mérito da ação administrativa, hoje se enquadram

no domínio da juridicidade ou legalidade em sentido amplo. Como registra

Carmem Lúcia Antunes Rocha, a transformação não foi apenas do nome do

9

princípio, mas do seu significado e, em especial, do seu conteúdo. A este foram

agregadas todas as regras e princípios do ordenamento jurídico, principalmente

os Constitucionais.14

Não se confunda tal evolução com a possibilidade de o Judiciário,

substituindo o administrador, reavaliar o mérito do ato administrativo, para o fim

de modificar a conveniência e a oportunidade que informaram a Administração ao

editar o ato em tese. Afinal, nem sempre é possível definir objetivamente qual a

única ação admitida pelo ordenamento jurídico. Neste contexto, inadmissível que

o magistrado pretenda, no exercício de juízo de valor, definir aquela que seria a

escolha ótima, penetrando em um espaço de gestão privativo da Administração.

Isto porque a discricionariedade permanece circunscrita à esfera administrativa,

malgrado a legitimidade do controle de juridicidade reconhecido ao Judiciário.

Há que assinalar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello ao definir o

mérito como o campo de liberdade suposto na lei e que efetivamente venha a

remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de

conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis

perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade

legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a

única adequada.15

Malgrado algumas controvérsias doutrinárias pertinentes aos conceitos da

discricionariedade e do mérito administrativo16, persiste a imunidade judicial de

determinada área da atuação administrativa, a saber, o espaço de atuação

subjetiva do administrador, que permanece como aspecto indevassável pelo

magistrado.

Com efeito, ao Judiciário incumbe manter o administrador dentro dos

limites da juridicidade delineada no sistema normativo. Assim sendo, pode

controlar todos os aspectos do ato vinculado, cujos elementos e pressupostos

encontram-se fixados na lei, sendo identificáveis mediante atividade interpretativa

levada a efeito diante da realidade em questão. No tocante aos atos

14 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, p.69. 15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 823. 16 Confira-se, sobre o conceito de mérito e discricionariedade administrativa, o posicionamento divergente de Germana de Oliveira em Controle Jurisdicional da Administração Pública, São Paulo, Editora Dialética, 1999.

10

discricionários, não se pode imiscuir no núcleo da conveniência e oportunidade

administrativas, o que em nenhum momento significa a exclusão de qualquer

controle jurisdicional como classicamente já se defendeu.

No que concerne aos atos discricionários, pode o Judiciário aferir os seus

aspectos vinculados. Um ato discricionário quanto ao conteúdo pode ter o sujeito,

a finalidade, o motivo e a forma fixados de modo vinculado na lei. Neste caso,

incumbe ao magistrado verificar os pressupostos (subjetivo, teleológico e fático) e

o elemento formal vinculado da atuação administrativa. Outrossim, no tocante à

discricionariedade, impõe-se uma interpretação sistêmica do ordenamento

constitucional, das normas legais e administrativas de regência, de modo a definir

qual é a margem de liberdade que, de fato, remanesce naquele caso concreto.

Com efeito, deve o Judiciário delimitar os contornos da discricionariedade

(ação dentro dos limites da lei) a fim de evitar que, com base nela, possa o

administrador resvalar em comportamento arbitrário (ação fora dos limites da lei).

Para tanto, é indispensável o exercício de atividade interpretativa que observe,

concomitantemente, a juridicidade e a independência e harmonia dos poderes,

compatibilizando tais princípios informadores da sua atuação em cada realidade

objeto de análise.

O controle judicial, destarte, é possível para aferir a juridicidade que

condiciona os limites da liberdade outorgada à Administração. Não se legitima a

invasão do espaço de decisão política reservado ao Poder Público, sob pena do

magistrado transmutar-se indevidamente em administrador, substituindo, por seus

próprios critérios de escolha, a opção feita pela autoridade competente com base

em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode

decidir diante de cada caso concreto. Este é o ensinamento de Celso Antônio

Bandeira de Mello:

“Assim como ao Judiciário compete fulminar todo comportamento ilegítimo

da Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica,

compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo

que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária,

ultrapassar as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites da liberdade

que lhe assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos que

assinalam os confins da liberdade discricionária.

11

(...) Finalmente, este proceder do Judiciário não elimina a

discricionariedade e nem pode fazê-lo, pena de agravo à própria lei.”17

O pleno do STF já assentou que “os juízes e Tribunais somente não podem

examinar nesse tema, até mesmo como natural decorrência do princípio da

separação de poderes”, acrescendo que “o que se lhe veda, nesse âmbito, é, tão-

somente, o exame do mérito da decisão administrativa, por tratar-se de elemento

temático inerente ao poder discricionário da Administração Pública”.18

Confira-se, ainda, a seguinte decisão:

“1. O Poder Judiciário, no exercício de sua competência constitucional

(Carta Magna, art. 5º, XXXV), ao invalidar o ato administrativo

inconstitucional ou ilegal, não invade a esfera de competência do Poder

Executivo, inexistindo violação ao disposto no artigo 2º da Constituição.

Precedentes do STF.”19

Conclui-se, por conseguinte, que, para a presente corrente, além de

obrigatória a motivação de todo e qualquer ato administrativo, cabe ao Judiciário

controlar irrestritamente o ato vinculado. Outrossim, lhe é lícito analisar os

requisitos vinculados do ato discricionário, dentro os quais insere-se a

juridicidade, paradigma basilar à verificação da observância dos limites da

liberdade outorgada ao administrador pela ordem jurídica. Tais premissas não

significam legitimar o controle do mérito administrativo. Se da lei resulta um

espaço reservado à conveniência e oportunidade administrativa, vedada é a

intervenção judiciária nessa seara discricionária, sob pena de ofensa ao princípio

da independência e harmonia dos poderes.

2.4. Quarta posição: da ausência de limites ao controle judicial do ato

administrativo discricionário ou vinculado

Alguns autores entendem que o fato da moralidade e da eficiência

administrativas estarem consagradas no artigo 37, caput da CF, como princípios

informadores de toda atuação da Administração Pública impede que qualquer

agente possa adotar outro comportamento senão o melhor à proteção do

17 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 837 e 850. 18 MS 20.999, rel, Min. Celso Mello, Pleno do STF, DJU de 25.05.90, p. 4.605. No mesmo sentido, confira-se as seguintes decisões do STJ no ROMS nº 129-PR, AGRMS 8.130-DF, ROMS 15.331-SP e ROMS nº 13.298-MS.

12

interesse público. E a “melhor” conduta ou a conduta “ótima” à defesa dos

interesses sociais seria identificável objetivamente, mediante simples processo

cognitivo de descoberta da vontade prévia do legislador, conforme fixado na

ordem jurídica.

Assim sendo, como haveria sempre um único comportamento ótimo para a

Administração, jamais teria a autoridade administrativa uma “margem de

liberdade” dentro da qual poderia escolher. A conduta admitida pelo Direito de

regência seria uma só, identificável após mera atividade interpretativa. Neste

contexto, não existem limites à revisão judicial, estritamente limitada à

interpretação das normas incidentes na espécie.

Corroborando este entendimento, José Augusto Delgado assevera:

“A extensão do princípio da moralidade conduz ao entendimento de que

a administração pública tem o dever de melhor administrar, que

ultrapassa o conceito de bem administrar. Isso representa que, em face

de quatro ou cinco hipóteses boas, o administrador público, ao contrário

do particular, não tem o direito de escolher qualquer uma delas. É do seu

dever adotar a melhor. Se não fizer, em face de como está posto na

Constituição Federal o princípio da moralidade administrativa, o juiz tem

mais do que o poder jurisdicional, tem o dever de, no exercício do controle

da referida atividade administrativa, desfazer a decisão, por ser reflexo de

uma ação que infringiu a obrigação de ‘melhor administrar’.” 20

Acrescenta o doutrinador que “o controle da moralidade administrativa

permite que o Poder Judiciário avalie e julgue o mérito do ato administrativo”,

concluindo que “O amplo controle da atividade administrativa se exerce, assim, na

atualidade, não só pelos administrados diretamente, como, também, pelo Poder

Judiciário, em todos os atributos do ato administrativo”.21

Referido posicionamento, que mantém a obrigatoriedade de motivação

como dever do administrador público, põe fim à discricionariedade administrativa

e viabiliza o enquadramento de qualquer ato como vinculado, já que é possível

apenas um comportamento em cada situação específica.

19 AMS 1999.01.00.102190-7/DF, rel. Juiz Federal Leão Aparecido Alves, 3ª Turma Suplementar. do TRF da 1ª Região, DJU de 18.09.2003, p. 89. 20 Revista Trimestral de Direito Público, v. 1/1993, p. 214-215. 21 Revista Trimestral de Direito Público, v. 1/1993, p. 214-215.

13

Permissa venia, embora seja certo que a intenção de ampliar o controle

jurisdicional sobre a Administração Pública inspira-se no propósito de coibir

excessos nessa seara, não se pode olvidar dos riscos de se atribuir ao

magistrado a palavra final sobre todas as escolhas pertinentes à atuação

administrativa. Com efeito, a autoridade administrativa, por se encontrar próxima

à realidade em questão, por conhecer a estrutura estatal disponível e por lhe ser

exigível conhecimento técnico específico de gestão pública, é o agente, em tese,

melhor qualificado para eleger dentre as opções que lhe outorga o Direito.

Não se admite seja levado a extremo o raciocínio desenvolvido por esta

quarta corrente, uma vez que não se concebe que, em toda e qualquer hipótese,

é sempre determinável, objetivamente, qual é a melhor e única opção a ser eleita

pelo administrador. Existem inúmeros casos em que remanescem opções

igualmente legítimas para o ordenamento. O procedimento que se impõe é o de

interpretar sistematicamente as normas principiológicas, constitucionais, legais e

administrativas diante da realidade administrativa, de modo a limitar que opções

de fato são admitidas perante o Direito vigente. Com tal atividade, reduz-se o

âmbito da ampla discricionariedade – teórica e inicialmente suposta –, mas

preserva-se eventual núcleo intangível que venha realmente remanescer na

espécie.

Sendo assim, embora se entenda limitada a prática de ato discricionário

pelo princípio da juridicidade com os contornos explicitados supra, é indispensável

não reduzir a discricionariedade à vinculação com livre acesso ao irrestrito

controle jurisdicional. Consoante já se ressaltou, em alguns casos tem o

administrador um espaço de mérito administrativo insindicável pelo Judiciário.

3. O Silêncio na Administração, o Controle do Ato Político e a Cláusula da

Reserva do Possível.

Um dos aspectos que mais tem desafiado os estudiosos do Direito

Administrativo é a identificação das medidas possíveis quando se trata da

omissão do Poder Público em agir, seja no tocante aos denominados atos

políticos ou de governo, seja em relação aos atos administrativos propriamente

ditos.

No Direito Comparado, não é raro que legislação específica preveja um

lapso temporal dentro do qual a Administração está obrigada a agir, atribuindo

14

efeitos positivos ou negativos à omissão pública, após ultrapassado o prazo legal.

No Brasil, uma das principais dificuldades surge, ainda, na caracterização da

ilicitude do silêncio administrativo, uma vez que raros são os diplomas que, de

modo específico, estabelecem um prazo dentro do qual a Administração está

obrigada a tomar decisões ou a editar um ato. Nos poucos casos onde há

previsão do período em que se impõe a ação administrativa, a lei não estabelece

conseqüência expressa à sua inobservância. Em outras palavras, mesmo quando

a lei fixa um prazo ao fim do qual o Poder Público está obrigado a adotar

determinado comportamento, a norma não confere à omissão estatal o sentido

positivo ou negativo, de acolhimento ou de indeferimento da pretensão em tese.

Se o sistema legal não fixa conseqüências substanciais para o silêncio,

deveria, ao menos, garantir o início da contagem do prazo da mora administrativa,

atribuindo-lhe efeitos formais. Para Georghio Alessandro Tomelin, “o silêncio

configura mais uma das inúmeras ficções legais de nosso sistema: é o nada

conseqüente”, ao que acresce:

“Toda a conseqüencialidade da ausência de manifestação deve, assim,

estar esculpida na lei, para que do silêncio se extraiam efeitos

substantivos. Neste ponto, o silêncio se equipara aos atos omissivos e na

omissão a causalidade é sempre normativa sob pena de estarmos diante

do nada, do vazio normativo. Se não existir a ‘fattispecie normativa’, a

omissão não deve ser tratada nem como silêncio-negativo, nem como

silêncio-positivo, mas formalmente como silêncio-inadimplemento (vazio

de conteúdo).”22

Qualquer que seja a hipótese, é imperioso, preliminarmente, identificar o

momento a partir do qual se tem caracterizada a ilicitude da omissão

administrativa. À obviedade, se se localiza na lei o prazo dentro do qual estava o

administrador obrigado a agir, ultrapassado esse período, tem-se o início da mora

administrativa. Na hipótese freqüente de o ordenamento não estabelecer, de

modo expresso, o referido prazo, Celso Antônio propõe a adoção analógica dos

120 dias em que se admite a impetração de mandado de segurança. Vale dizer,

uma vez provocada a Administração, teria o agente competente 120 (cento e

vinte) dias para adotar o comportamento cabível, sob pena de ofensa ao direito de

22 Revista de Direito Administrativo, v. 226, p. 283.

15

petição consagrado no art. 5º, XXXIV, ‘a’ da CF23. Ultrapassados os 120 dias,

aplicáveis analogicamente, caracterizado estaria o silêncio ilícito, capaz de

justificar o acesso ao Judiciário, com fulcro no artigo 5º, XXXV da Lei Magna.

Embora o prazo de 120 (cento e vinte) dias se mostre adequado a alguns

casos específicos, em outras hipóteses o lapso temporal somente se definirá a

partir da interpretação norteada pelos princípios da razoabilidade e da

proporcionalidade. Com efeito, em determinadas situações o prazo de 120 dias

pode se mostrar inadequado, por consistir em período excessivo, incompatível

com o eventual interesse público cuja proteção se mostre urgente na espécie. Em

outras circunstâncias, a inadequação pode resultar da insuficiência do período de

quatro meses para que a Administração tome a medida necessária à proteção do

fim público. Em ambas hipóteses, a definição do prazo exige equilíbrio e

comedimento por parte do aplicador da lei, de modo a salvaguardar, ao mesmo

tempo, o interesse do terceiro, de ver agir o Poder Público, e o interesse estatal,

de lhe ser reconhecido o prazo razoável de atuação.

Definido, segundo critério legal, analógico, de razoabilidade ou eqüidade, o

momento a partir do qual a Administração está silente ilicitamente, cumpre

reconhecer que, se a lei atribui dado efeito ao silêncio, este deverá ser observado.

Se o efeito legal era concessivo, o administrado está atendido. Se era

denegatório, considera-se indeferida a pretensão e poderá o interessado

demandar judicialmente que a Administração se pronuncie. De acordo com Celso

Antônio, o recurso ao Judiciário se justifica “se o ato omitido era de conteúdo

discricionário, pois faz jus a uma decisão motivada; se, pelo contrário, o ato era

de conteúdo vinculado e o administrado fazia jus a ele, demandará que o juiz

supra a omissão administrativa e lhe defira o postulado”24. Neste último caso,

deverá o interessado comprovar em juízo o atendimento dos requisitos essenciais

ao deferimento da pretensão que, em razão do efeito negativo atribuído pela lei à

omissão estatal, considerou-se por ficção indeferida.

Mesmo nos casos em que a lei não fixa conseqüências ao silêncio,

também se assegura ao prejudicado com a omissão administrativa o direito de

provocar o controle previsto no artigo 5º, XXXV da Carta Magna, sendo mister

analisar as possibilidades de pronunciamento jurisdicional presentes na espécie.

23 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 380. 24 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 380.

16

Se o ato em relação ao qual a Administração se omitiu tem natureza

vinculada, pode o interessado recorrer ao Judiciário, requerendo que o

magistrado supra a inércia do administrador, deferindo-lhe a pretensão diante da

prova levada a efeito na via judicial. Note-se que os elementos e pressupostos

condicionadores da atuação administrativa, neste caso, estão previstos no

ordenamento, sendo identificáveis mediante atividade interpretativa e aplicáveis

na realidade em questão. O descumprimento, pela Administração, do seu dever

de atuar, decorrente do direito de petição assegurado na Lei Magna, legitima não

só a declaração judicial da ofensa ao artigo 5º, XXXIV da CF, mas autoriza que o

magistrado analise a prova apresentada pelo interessado e, aplicando as normas

jurídicas de regência, defira, ou não, a pretensão cujo exame foi recusado na via

administrativa.

Destarte, em se tratando de ato vinculado, o julgador, diante da ilícita

inércia do administrador em reconhecer direito amparado no ordenamento,

substitui o pronunciamento administrativo, prestando a tutela requerida.

Se o ato omitido tem natureza discricionária, inadmissível é ao magistrado

exercer o juízo de conveniência e oportunidade privativo do administrador. Pode o

Judiciário condenar o Poder Público a agir, assinalando-lhe prazo razoável, após

o qual é lícito fixar multa diária pelo descumprimento da ordem judicial. Surge a

astreinte como instrumento capaz de induzir a autoridade administrativa ao

cumprimento da determinação judiciária de atuação positiva.

Se a jurisprudência orientava-se, inicialmente, no sentido de que “Mero

silêncio da Administração não constitui ato administrativo e sua inércia, no caso,

não ofende direito subjetivo do recorrente”25, os Tribunais Superiores vêm

recentemente assentando que “Configura-se ofensiva ao princípio da eficiência a

conduta omissiva da autoridade competente, que deixa transcorrer longo lapso

temporal sem processar pedido de autorização de funcionamento de rádio

comunitária”26.

Outro não é o posicionamento dos demais Pretórios:

“É de se lamentar, entretanto, a postura da Administração, pois, à dista do

princípio da eficiência, hoje inscrito no art. 37, caput, da Constituição

25 AC 89.01.21155-6, rel. Juíza Orlanda Ferreira, 2ª Turma do TRF da 1ª Região, DJU de 27.11.89. 26 MS 7.765-DF, rel. Min. Paulo Medina, 1ª Seção do STJ, DJU de 14.10.2002, p. 183

17

Federal, não pode o administrador deixar de se manifestar, positiva ou

negativamente, em prazo razoável, sobre pedidos feitos pelo

administrado. A espera sem fim, desnecessária, é motivo de angústia e

sofrimento e não pode mais ser tolerada no âmbito de convivência entre

Administração e administrados.”27

Saliente-se, no tocante aos atos discricionários, que a jurisprudência tem

recusado ao magistrado a competência substitutiva do administrador:

“Impõe-se, assim, conceder em parte a ordem para que a autoridade

impetrada, no prazo da Lei de 60 (sessenta) dias desta decisão, ao seu

alvitre e independência, profira decisão no procedimento administrativo

retromencionado.”28

Mostra-se irrepreensível tal entendimento em relação à atividade

administrativa não vinculada, uma vez que o fato do julgador poder, na

observância do princípio da juridicidade, verificar a ilicitude da omissão,

determinando o dever da Administração se pronunciar na espécie, não exclui a

necessidade de pronunciamento administrativo expresso. Após a decisão

administrativa poderá seguir-se novo controle, este, sim, incidente sobre os

aspectos vinculados do ato discricionário previamente exarado, bem como sobre

os limites da discricionariedade.

Especificamente no tocante aos atos políticos, de condução dos negócios

públicos, certo é que classicamente se os entendia fora dos limites do controle

judicial, em virtude da maior discricionariedade reconhecida aos agentes

competentes à sua prática. O fato de o seu fundamento encontrar-se na

Constituição, reconhecendo às autoridades o exame político das conveniências

públicas, terminava excluindo os atos de governo da apreciação do Judiciário,

quer na hipótese em que eram praticados, quer na hipótese em que o Poder

Público se omitia no tocante à sua realização.

No entanto, denota-se que parte da doutrina e da jurisprudência tem

assentado que, a despeito da natureza política e não administrativa de tais atos,

os mesmos encontram na Constituição vários parâmetros cuja observância se

impõe de forma inarredável. Na medida em que tais critérios constitucionais

27 AMS 1997.01.00.017724-3/DF, rel. convocado Juiz Ricardo Machado Rabelo, 1ª Turma do TRF 1ª Região, DJU de 27.11.2000, p.22. No mesmo sentido: Remessa Ex Officio, rel. convocada Juíza Mônica Neves Aguiar Castro, 1ª Turma do TRF da 1ª Região, DJU de 29.06.2000, p. 31. 28 MS nº 9.190-DF, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Seção do STJ, DJU de 15.12.2003, p. 175.

18

vinculam a sua prática, o próprio princípio da juridicidade – condutor dos limites

do controle judicial – deixa evidente a legitimidade da intervenção jurisdicional na

espécie.

Em artigo publicado na Revista dos Tribunais, Flávia de Almeida Viveiros

de Castro assevera:

“Assim, a questão da controlabilidade dos mesmos não decorre da

conformidade destes com a lei – ela própria um ato político – mas de

conformidade que devem ter com a Constituição. (...) De qualquer forma,

jamais lhes seria lícito substituírem-se às instâncias políticas, sob pena de

violarem a CF.

Contudo, se os atos de governo são inconstitucionais, não haverá como

excluí-los do controle dos tribunais, mormente dos tribunais

constitucionais.

Quando o Estado utiliza a legislação não só para criar uma ordem geral e

abstrata que regule as relações entre as pessoas, mas também como um

instrumento de ação, as leis deixam freqüentemente de ter caráter geral e

abstrato para adquirir feição específica e concreta, de acordo com a

singularidade e temporalidade do caso a regular ou o objetivo a alcançar.

O ato, tenha caráter normativo ou não, encontra-se sujeito a um controle

de constitucionalidade, desde que para tanto se apresente como

suscetível de conformação normativa, ou seja, desde que se apresente

como uma questão jurídica e, como tal, justiciável. (...)

Os atos governamentais são contrastáveis judicialmente se ferirem

direitos individuais, coletivos ou difusos e se atentarem contra os

princípios fundantes do Estado Democrático de Direito.”29

Ao apreciar a liminar requerida na ação popular 2003.34.00.029866-8,

processada na 21ª Vara da Justiça Federal, Seção Judiciária do Distrito Federal, o

Juiz Federal Guilherme Jorge de Resende Brito entendeu cabível o controle de

ato político, qual seja, a nomeação para o cargo de Ministro do Tribunal de

Contas da União, invocando decisão anterior do STF30:

29 Revista dos Tribunais, v. 760, p. 61. 30 RE nº 167.137-TO, rel. Min. Paulo Brossard, DJU de 25.11.94, p. 32.312.

19

“Nesse prumo, a primeira consideração que se faz é acerca da

possibilidade de o Poder Judiciário aferir a presença ou, ao contrário, a

ausência dos requisitos previstos no citado § 1º do art. 73 da CF/88.

Sendo ato vinculado, o Judiciário, quando provocado, inclusive por ação

popular, não só pode, como deve aferir a existência dos requisitos

expressamente exigidos por norma constitucional. Essa exigência, por

expressa, é vinculada e deve ser obrigatoriamente observada pelos

envolvidos no processo de escolha.

Repita-se: outro não pode ser o comportamento dos agentes envolvidos

no processo de escolha que não indicar alguém que detenha todos os

requisitos exigidos no referido dispositivo constitucional.”

Concluiu o magistrado que a escolha e nomeação de Ministros do TCU é,

quanto aos requisitos do artigo 73, § 1º da Lei Maior, ato vinculado, e a sua

inobservância, além de poder ser contratastada judicialmente, configura ofensa ao

princípio da moralidade administrativa. Aduziu que o requisito da “reputação

ilibada” consiste em elemento objetivo, ausente naquela hipótese, em razão das

provas colacionadas. Com base em tais razões, suspendeu, liminarmente, o

processo de indicação da autoridade. Referida decisão interlocutória foi cassada,

em razão de efeito suspensivo atribuído pelo TRF da 1ª Região ao Agravo de

Instrumento nº 2003.01.00.029.237-2. Embora não mais eficaz, o citado decisum

monocrático evidenciou, de forma irrepreensível, a legitimidade do controle de ato

político, inclusive no tocante aos contornos da discricionariedade inerente.

Destarte, legítimo é o controle judicial do ato de natureza política no que

pertine à sua constitucionalidade, observados os aspectos vinculados fixados no

ordenamento. Não se admite que o Judiciário invada o cerne político das escolhas

governamentais, aspecto reservado à autoridade estatal competente. Contudo, é

cabível o controle judicial de eventual ofensa aos parâmetros dispostos na ordem

jurídica relativamente à sua edição.

A doutrina brasileira, inspirada na affirmative action – adotada

principalmente pela Suprema Corte norte-americana –, vem definindo a ação

afirmativa como “a expressão democrática mais atualizada da igualdade jurídica

promovida na e pela sociedade, segundo um comportamento positivo normativa

20

ou administrativamente imposto ou permitido”.31 Trata-se, assim, de um

instrumento capaz de retirar da igualdade o caráter de conceito estático e

negativo, atribuindo-lhe aspecto dinâmico e positivo,

“vale dizer, de um momento em que por ele apenas se proibia a

desigualação jurídica a uma fase em que por ele se propicia a promoção

da igualação jurídica. O princípio constitucional da igualdade deixou de

ser um dever social negativo para tornar-se uma obrigação política

positiva”.32

A repercussão positiva de princípios constitucionais, de modo a vincular a

execução de políticas públicas, consiste em um postulado que se espera

imperativo a toda atuação estatal, mesmo porque se trata de entendimento

presente em recentes e significativas decisões dos Tribunais Superiores.

Ao julgar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45, o

Supremo Tribunal Federal invocou precedente em que reconhecera que, nesta

seara, o desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal

quanto mediante inércia governamental:

“A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento

ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o

que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os

princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que

importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por

ação. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização

concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos,

operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o

dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação

negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare,

resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando

é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a

medida efetivada pelo Poder Público.

(...) A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor

extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como

31 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 15, p. 98. 32 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. Revista Trimestral de Direito Público, v. 15, p. 98.

21

comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que,

mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição,

também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por

ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos

postulados e princípios da Lei Fundamental." 33

Restou assentado na ADPF 45 que, malgrado não se inclua,

ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário, a

atribuição de formular e de implementar políticas públicas, por se tratar de

domínio residente, de forma primária, nos Poderes Legislativo e Executivo, tal

incumbência poderá lhe ser atribuída em situações. A excepcionalidade de se

atribuir tal função ao Judiciário ocorreria “se e quando os órgãos estatais

competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles

incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a

integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura

constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo

programático”.34

Ao assinalar a impossibilidade de normas constitucionais programáticas

converterem em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder

Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, o

Ministro Celso Mello não deixou de conferir significativo relevo ao tema pertinente

à "reserva do possível", utilizando-se como referenciais doutrinários Stephen

Holmes e Cass R. Sunstein (The Cost of Rights, 1999, Norton, New York),

notadamente em sede de efetivação e implementação dos direitos de segunda

geração (direitos econômicos, sociais e culturais).

Em relação a tais prestações estatais relativas aos direitos econômicos,

sociais e culturais, assinalou a dependência, em grande medida, de um

inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do

Estado,

“de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade

econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá

razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata

efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se

33 Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 185, p. 794-796. 34 Informativo 345 do STF.

22

mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante

indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-

administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e

censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o

estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de

condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, deste modo,

que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo

motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com

a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações

constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental

negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos

constitucionais impregnados de um sentido de essencial

fundamentalidade”.35

Valeu-se o julgador, ainda, do ensinamento doutrinário de Ana Paula de

Barcellos:

"Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não

se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que

algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao

determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode

esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida,

gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra

política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da

Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de

1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do

bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as

condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos

direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar

os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-

se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos.

Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos

recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O

mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de

35 Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 185, p. 794-796.

23

prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a

reserva do possível."36

Neste caso, não obstante tenha sido explicitado que a formulação e a

execução de políticas públicas dependem de opções políticas a cargo daqueles

que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, admitiu-

se a intervenção judicial diante de uma injustificável inércia estatal ou de um

abusivo comportamento governamental. Considerou-se que a ofensa pela inércia

governamental ao núcleo intangível de um conjunto irredutível de condições

mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência

do indivíduo autoriza ao próprio Judiciário viabilizar, a todos, o acesso aos bens

cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.

Contudo, de modo a impedir que o magistrado usurpe competência

governamental, empregou-se a Cláusula da Reserva do Possível, traduzida em

um binômio que compreende, “de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão

individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência

de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações

positivas dele reclamadas”.37

Entendimentos como o exarado pelo Ministro Celso Mello representam a

revisão indispensável do prisma sob o qual se harmonizam o princípio da

separação de poderes e o princípio da juridicidade, evitando o esvaziamento no

exercício das funções legislativa e administrativa.

4. Conclusão

As considerações levadas a efeito evidenciam a evolução da doutrina e da

jurisprudência administrativa relativamente à motivação dos comportamentos

públicos, entendendo-se como obrigatória a indicação dos pressupostos de fato

e fundamentos jurídicos que servem para embasar as condutas estatais.

Restou ultrapassada a Teoria dos Motivos Determinantes, uma vez que

não se admite a premissa segundo a qual, em princípio, não há o dever de

motivar os atos discricionários, condicionando à validade do ato administrativo

somente as razões de fato e de direito apresentadas por liberalidade

administrativa. Ao contrário, entende-se que o dever de motivar vincula qualquer

36 A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, p. 245-246. 37 Informativo 345 do STF.

24

comportamento administrativo e resulta da própria Lei Magna que prevê, de modo

expresso, os princípios da ampla defesa, do contraditório, do devido processo

legal, ao que se acresce o princípio da proporcionalidade. Considerando que tais

princípios, assim como o controle da Administração, somente são concretizáveis

se a autoridade pública indica as razões que serviram de suporte à sua conduta,

entende-se amplo e irrestrito o dever de motivar as atuações estatais.

Outrossim, manifesta é a mutação no enfoque pelo qual se entende a

legalidade, hoje compreendida não como mero culto às regras isoladas de

diplomas legais, mas como princípio que impõe à atividade administrativa o

cumprimento dos princípios gerais de Direito, expressos ou implícitos na

Constituição, das normas legais e administrativas do ordenamento, bem como o

atendimento das necessidades sociais. Para tanto, exige-se do aplicador da lei

atividade interpretativa ampla do Direito, comprometida com o Estado e com a

sociedade, de modo a instrumentalizar a garantia de melhores condições de vida

aos cidadãos.

Ao Poder Judiciário cumpre o controle da juridicidade relativamente aos

atos administrativos vinculados e discricionários, assim como no tocante aos atos

políticos ou de governo. Referido controle judicial afigura-se cabível, tanto na

hipótese de omissão no tocante à sua prática, como no caso de, praticado o ato

comissivo, restar evidente o descumprimento do citado princípio da juridicidade.

Quando se está diante de vinculação, em se tratando de “ato praticado

pela Administração”, legítimo é o amplo controle jurisdicional. Cabe ao

magistrado, uma vez provocado, analisar os elementos e pressupostos

condicionadores da conduta administrativa, de modo a verificar o atendimento das

normas jurídicas reguladoras da atuação estatal.

Em se tratando de “omissão administrativa”, impõe-se ao magistrado

caracterizar a ilicitude do silêncio da autoridade, pelo descumprimento do prazo

expressamente fixado na lei para sua atuação ou, diante da ausência de prazo

legal, pela inobservância do lapso temporal dentro do qual seria exigível, pelos

critérios da razoabilidade e proporcionalidade, a manifestação administrativa.

Diante do silêncio ilícito, ofensivo ao direito de petição consagrado no artigo 5º,

XXXIV, ‘a’ da CF, pode o julgador analisar a prova apresentada pelo interessado

e aplicar as normas de regência, deferindo, ou não, diante do referido contexto, a

pretensão cujo exame foi recusado na via administrativa.

25

Quando se está diante de discricionariedade, em se tratando de “ato

praticado pela Administração”, o controle judicial ficará restrito aos aspectos

vinculados do ato, bem como aos contornos da discricionariedade administrativa,

vedada a análise do mérito da atuação estatal.

Na hipótese de “omissão administrativa” no tocante à prática do ato

discricionário, caracterizado o silêncio ilícito da Administração, legítimo é que o

interessado recorra ao Judiciário que, contudo, não poderá, segundo os seus

critérios de conveniência e oportunidade, realizar a escolha reservada ao

administrador público. Neste caso, cabe ao magistrado determinar um prazo

dentro do qual está a autoridade obrigada a agir, fixando multa na hipótese de

desobediência à ordem judicial.

Em relação aos atos políticos, legítimo é o controle judicial pertinente à

sua constitucionalidade e aos aspectos vinculados fixados no ordenamento.

Embora não se admita que o Judiciário invada o cerne político das escolhas

governamentais, pode o magistrado reconhecer eventual ofensa aos parâmetros

dispostos na ordem jurídica relativamente à sua edição. Outrossim, tem-se

entendido cabível a intervenção judicial diante de uma injustificável inércia estatal

ou de um abusivo comportamento governamental, notadamente em sede de

efetivação e implementação dos direitos de segunda geração (direitos

econômicos, sociais e culturais).

Observe-se que, em nenhuma das hipóteses, é admitido ao Judiciário, no

exercício do controle, usurpar competências reservadas ao agente público, seja

no exercício da atividade administrativa discricionária, seja na prática de atos

políticos ou de governo.

Como critérios aptos a contornar os riscos de tal prática equivocada, tem-

se a insindicabilidade da discricionariedade, bem como a Cláusula da Reserva do

Possível, postulados capazes de harmonizar o princípio da separação de poderes

e o princípio da juridicidade. Estes são os mecanismos que, empregados,

ampliam consideravelmente o espectro do controle da Administração. Sem levar à

negativa de vigência do artigo 2º da Constituição Federal, viabilizam eficácia e

eficiência no seu exercício, como é indispensável a um Estado Democrático de

Direito.