o diagnóstico psicopedagógico da criança com dificuldade

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5 O Diagnóstico Psicopedagógico da Criança com Dificuldade de Aprendizagem na Língua Escrita Graciete Maria de Oliveira 1 DOI: 10.15601/2237-0587/fd.v7n1p5-23 Resumo A avaliação diagnóstica da linguagem escrita possui uma relevância especial por constituir uma das intervenções mais frequentes entre os profissionais da psicopedagogia. Isso ocorre pelo fato da aprendizagem escolar apoiar-se de forma quase exclusiva na linguagem escrita. O objetivo proposto neste artigo é discutir o processo do diagnóstico psicopedagógico da linguagem escrita e descrever técnicas e orientações de caráter preventivo que ajudem na intervenção educativa. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica. Os autores escolhidos, além de abordar alguns recursos de grande relevância nesse processo diagnóstico, refletem sobre as especificidades que promovem a interação entre o psicopedagogo e o seu cliente. Conclui-se no artigo a relação direta entre a clareza conceitual e rigor metodológico no processo diagnóstico mostrados pelo psicopedagogo e o êxito da intervenção terapêutica junto à criança que apresenta dificuldades de aprendizagem. Palavras-chave: Diagnóstico psicopedagógico. Linguagem escrita. Dificuldades de aprendizagem. The Psycho-pedagogical Diagnosis of Children with Learning Disabilities in Language Writing Abstract The diagnostic evaluation of written language has a special significance because it represents one of the most frequent interventions among practitioners of Psycho-pedagogy. This occurs because of school learning rely almost exclusively on written language. The goal in this paper is to discuss the process of psycho-pedagogical diagnosis of writing and describe techniques and preventive guidelines that help in the educational intervention language. The methodology used was the literature research. The authors chosen, besides addressing some features of great relevance in this diagnostic process, reflect on the specifics that promote interaction between the psycho-pedagoge and his client. We conclude the article direct 1 Pedagoga, Psicopedagoga e Mestre em Teologia, na área “Religião e Educação”. Docente no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH) e Coordenadora Geral do Colégio Metodista Izabela Hendrix. E-mail: [email protected]

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Page 1: O Diagnóstico Psicopedagógico da Criança com Dificuldade

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O Diagnóstico Psicopedagógico da Criança com Dificuldade de Aprendizagem na Língua Escrita

Graciete Maria de Oliveira1

DOI: 10.15601/2237-0587/fd.v7n1p5-23

Resumo

A avaliação diagnóstica da linguagem escrita possui uma relevância especial por constituir uma das intervenções mais frequentes entre os profissionais da psicopedagogia. Isso ocorre pelo fato da aprendizagem escolar apoiar-se de forma quase exclusiva na linguagem escrita. O objetivo proposto neste artigo é discutir o processo do diagnóstico psicopedagógico da linguagem escrita e descrever técnicas e orientações de caráter preventivo que ajudem na intervenção educativa. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica. Os autores escolhidos, além de abordar alguns recursos de grande relevância nesse processo diagnóstico, refletem sobre as especificidades que promovem a interação entre o psicopedagogo e o seu cliente. Conclui-se no artigo a relação direta entre a clareza conceitual e rigor metodológico no processo diagnóstico mostrados pelo psicopedagogo e o êxito da intervenção terapêutica junto à criança que apresenta dificuldades de aprendizagem.

Palavras-chave: Diagnóstico psicopedagógico. Linguagem escrita. Dificuldades de aprendizagem.

The Psycho-pedagogical Diagnosis of Children with Learning Disabilities in Language Writing

Abstract

The diagnostic evaluation of written language has a special significance because it represents one of the most frequent interventions among practitioners of Psycho-pedagogy. This occurs because of school learning rely almost exclusively on written language. The goal in this paper is to discuss the process of psycho-pedagogical diagnosis of writing and describe techniques and preventive guidelines that help in the educational intervention language. The methodology used was the literature research. The authors chosen, besides addressing some features of great relevance in this diagnostic process, reflect on the specifics that promote interaction between the psycho-pedagoge and his client. We conclude the article direct

1 Pedagoga, Psicopedagoga e Mestre em Teologia, na área “Religião e Educação”. Docente no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH) e Coordenadora Geral do Colégio Metodista Izabela Hendrix. E-mail: [email protected]

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relationship between conceptual clarity and methodological rigor in the diagnostic process shown by educational psychologist and successful therapeutic intervention with the child with learning difficulties.

Keywords: Psycho-pedagogical diagnosis. Written language. Learning difficulties.

Introdução

Entre o conjunto de competências ou capacidades que podem ser objeto da avaliação

psicopedagógica na clínica, os relacionados à linguagem escrita possuem uma relevância

especial e constituem uma das intervenções mais frequentes entre os profissionais da

psicopedagogia. A aprendizagem escolar apoia-se quase de forma exclusiva na língua escrita.

As dificuldades de aprendizagem se convertem, consequentemente, em dificuldades de

aprendizagem.

Quando as crianças não conseguem atender às expectativas da professora supõe-se que

elas têm problemas. A escola constrói um modelo de bom aluno, mas nem todas as crianças se

adaptam dentro desse modelo. Esse momento os professores recorrem às muletas para

explicar tal situação: “estas crianças não podem aprender porque não há ajuda familiar falta

maturidade, suposta lesão cerebral mínima ou transtornos do tipo: psicomotora, na fonação,

percepção” (FERREIRO, 1989, p.73).

O chamado fracasso escolar guarda uma relação muito direta com as dificuldades e o

domínio insuficiente da linguagem escrita. Suas consequências negativas não só afetam o lado

intelectual, mas também o desenvolvimento emocional e social da criança, colocando esta

numa situação de desvantagem. As pessoas nunca são hábeis ou competentes em todos os

momentos de sua vida. Porém, quando a carência afeta de forma importante a capacidade de

ler e escrever adquire em nossa sociedade uma conotação distinta, pois pode impedir – ou

pelo menos dificultar – a plena incorporação à cultura letrada em todas as suas manifestações

do sujeito. O fato de ser letrado não necessariamente garante o êxito social, mas não sê-lo

certamente reduz as oportunidades e limita as possibilidades de enriquecimento pessoal. Para

Magda Soares (2010, p.37) “a pessoa letrada já não é a mesma, ela passa a ter uma outra

condição social e cultural”. O sujeito muda de “lugar social”, isto é, muda seu modo de viver

em sociedade, inserção na cultura, relação com os outros, com o contexto e com os bens

culturais.

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Assumida, pois a importância desta aprendizagem compreende-se que a escola tem

diante de si o compromisso de conseguir que seu alunado aprenda a ler e escrever. É

necessário que a aprendizagem lhe permita acender conhecimentos diversos (a linguagem

escrita como utensílio de aprendizagem), para chegar a converter-se em sujeito alfabetizado

de pleno direito, participando de todos os usos e funções que a cultura escrita tem em nossa

sociedade. Este processo é para algumas crianças um caminho repleto de dificuldades para

aprender a ler e escrever ou, iniciado o processo de alfabetização, na compreensão e

expressão escrita que acabam atrapalhando seu desempenho escolar geral.

Avaliar este saber é uma tarefa certamente complexa. Uma das causas dessa

complexidade fundamenta-se na grande diversidade de componentes que a integram,

independentes, mas interconectados entre si e em constante relação com fatores como a

inteligência, a memória e a aprendizagem. Uma segunda causa se encontra na tomada de

decisões que gera a avaliação diagnóstica da escrita: Que aspectos concretos avaliar? Com

que instrumentos? Que decisões pedagógicas tomar baseadas nos resultados da avaliação?

Conscientes da complexidade e amplidão do tema o artigo definiu o seguinte roteiro:

definição dos objetivos e os critérios do processo de diagnóstico psicopedagógico da

linguagem escrita; descrição dos passos a seguir a partir da demanda do diagnóstico a fim de

confirmar ou descartar determinadas hipóteses; exposição do procedimento e metodologia

para diagnosticar as competências da criança na compreensão leitora e na expressão escrita,

descrevendo técnicas específicas; análise dos diversos tipos e graus de déficit que nós

podemos encontrar sobre a base das hipóteses do resultado do diagnóstico; e, finalmente,

orientações de caráter preventivo que ajudem na intervenção educativa.

Marco conceitual

A avaliação diagnóstica da linguagem escrita pode responder a demandas e objetivos

diversos. Pode se incluir dentro de um diagnóstico global da criança que apresenta

necessidades educativas especiais. Em tal caso, as dificuldades de aprendizagem da língua

escrita que a criança em questão apresenta fazem parte de um quadro de dificuldades mais

amplo e, em consequência, será também global a abordagem posterior. Para a pesquisadora

Sara Paín (1996) às vezes também é preciso avaliar o contexto escolar e assessorar o centro

educativo a respeito de decisões relativas à promoção de série ou de ciclos de certos alunos,

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ou também a respeito da adaptação mais adequada segundo as suas características e

competências. Este tipo de decisão costuma elevar sempre implícita uma valorização do nível

do domínio da linguagem escrita.

Diante de finalidades diversas a avaliação diagnóstica será também diferente. O foco

deste artigo é a criança que preocupa por causa de suas dificuldades para compreender e/ou

expressar-se por escrito. Especificamente diferenciamos dois níveis: por um lado, o aluno que

mostra dificuldade ou demora em adquirir a alfabetização inicial (aprender a ler e escrever);

pelo outro, o aluno para o qual ler e/ou escrever, mesmo havendo adquirido o código, se

converte em uma tarefa tão árdua e difícil que pode chegar a comprometer seriamente sua

aprendizagem geral (dificuldades para usar a linguagem escrita). Os dois tipos de

problemática nem sempre se encontram relacionadas e afetam à mesma criança.

Os conteúdos da avaliação nunca são neutros, pois detrás de uma atuação avaliadora

há implícitas as concepções pedagógicas e éticas específicas. Sendo assim é importante

explicitar os pressupostos dos que partimos neste trabalho:

a) A linguagem escrita é entendida desde uma perspectiva comunicativa e global.

b) O modelo de leitura utilizado é interativo: entre o texto e o leitor e entre as estratégias

de compreensão e as habilidades de decodificação, entre o “saber” e o desejo de

conhecer do aprendiz e sua necessidade de “dar sentido” ao que o rodeia e a si mesmo.

c) A avaliação das dificuldades é situada dentro do processo educativo da criança.

d) São contempladas conjuntamente as variáveis da criança e de seus contextos familiar,

social e escolar.

e) A leitura e escrita comportam procedimentos e mecanismos de aquisição específicos.

São processos diferentes, porém indissociáveis. Há que ter presentes estas diferenças

no momento de analisar e situar concretamente as dificuldades da criança.

f) O processo de avaliação diagnóstica foca-se em observar o que a criança faz quando lê

e escreve, mas tem caráter aberto e “dinâmico” (VYGOTSKY, 1984). Isto significa

que vai além da constatação da deficiência da criança para indicar em quais condições

e com que tipo de ajuda poderá superá-la.

g) Os instrumentos e as técnicas deveram são preparados em função do que nos interessa

observar de forma a escolher técnicas que sejam suficientes para extrair a informação

necessária e evitar análises e interpretações precipitadas ou superficiais.

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h) A competência linguística é considerada uma aprendizagem circular que se amplia. A

ênfase na avaliação das diferenças ligadas ao desenvolvimento da criança não está nos

conteúdos, mas nos instrumentos concretos e na complexidade demandada pelas

crianças: compreensão de textos progressivamente mais complexos em tema e

tipologia e produções escritas com um progressivo aumento da precisão léxica,

adequação a situações de comunicação, coerência e estruturação textual.

Os processos da avaliação diagnóstica

Quando nos pede a avaliação diagnóstica de uma criança que não aprende a ler e

escrever desconhecemos as causas do problema e as possíveis interferências de outros fatores

cognitivos, socioculturais, pedagógicos ou emocionais. Determinar isso será um dos objetivos

do processo de avaliação diagnóstica.

O habitual é que as dificuldades já tenham sido detectadas previamente pela professora

em sua relação educativa diária. No início do processo diagnóstico esta informação prévia

deverá ser recolhida para ser contrastado com outros dados complementares como nos sugere

Sara Paín (1985) com a entrevista da “História Vital”. Ela nos permite levantar dados

relativamente objetivos vinculados às condições do problema e detectar o grau de

individualização que a criança tem em relação à mãe, a conservação de sua história nela e

possíveis fraturas no seu desenvolvimento.

É usual que ao detectar dificuldades na criança no âmbito da linguagem escrita o

professor utilize algumas estratégias de ajuda. É ao não observar melhoria ou não

compreender o que ocorre que procuram uma avaliação mais específica e exaustiva. Convém,

pois, conhecer que estratégia utilizou e quais foram os resultados, assim como observar

diretamente questões como o estilo de aprendizagem da criança, a interação com o adulto, a

ajuda que este lhe proporciona, a significação das tarefas que lhe propõe, se parte dos

conhecimentos prévios, etc. Também é útil analisar trabalhos escritos da própria criança

(textos, ditados, produções...) e recolher informações relativas à sua competência em outras

áreas como a matemática. Igualmente importante é averiguar qual o enfoque que se dá a

linguagem oral e escrita na aula e o projeto linguístico da instituição escolar. A experiência

nos mostra a diferença qualitativa que existe na resposta das crianças que trabalham a língua

numa perspectiva significativa e funcional, menos centrada nos aspectos gramaticais e mais

nos comunicativos.

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Estas informações iniciais relativas à criança e a seu contexto nos permitirá elaborar as

hipóteses iniciais e começar a discernir se as dificuldades são específicas, ou se formam um

quadro de dificuldades mais gerais, no qual suporia repensar tanto a avaliação diagnóstica

como as decisões posteriores. Porém a de se ter claro que a coleta de informações tem um

caráter cíclico, quer dizer, que se poderá ir ampliando e reconduzindo as bases das hipóteses

que vamos elaborando ao longo de todo o processo de avaliação diagnóstica. De acordo com

Weiss (2004, p.28) “busca-se do clínico exatamente a unidade, a coerência, a integração que

evitaram transformar a investigação diagnóstica numa ‘colcha de retalhos’[...]”.

As condições em que se realiza a avaliação diagnóstica também influência em seus

resultados. A necessidade de estabelecer um bom vínculo com a criança com dificuldades na

língua escrita, é fundamental. Tal como citamos na introdução, a conotação de fracasso

existente por trás de suas dificuldades nesta área do conhecimento – mais acentuada quanto

maior for à criança – faz com que qualquer pedido supõe para ele mostrar a alguém este

fracasso gerando uma resposta de angustia, a qual devemos ser muito sensíveis.

Há que estabelecer, pois, um bom vínculo com a criança, dar-lhe confiança, valorizar

seus pontos mais fortes. Para que a aprendizagem ocorra, há necessidade da participação de

dois personagens: quem ensina e quem aprende. Além do vínculo que se estabelece entre

ambos. Dar-lhe uma explicação – adequada a sua idade – do porque se encontra ali, e para

fazer o quê. Sempre que possível, permitir-lhe escolher atividade por qual vai começar: isso

lhe dá confiança e aumenta seu nível de implicação na tarefa. Quando em uma situação de

avaliação diagnóstica se consegue este clima e este vínculo positivo, a criança o vive de modo

incluso gratificante: a prática nos permite constatar como a grande maioria das crianças

abandona qualquer resistência inicial e aceita de muito bom grado que alguém interesse por

eles de uma forma tão personalizada.

Metodologia

Alguns anos atrás, as dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita se

detectavam ao final do ciclo inicial. Tampouco se podiam detectar antes essas dificuldades em

alguma área do conhecimento. Faz pouco tempo, na Educação Infantil e primeiro ano do

Ensino Fundamental essas dificuldades eram restringidas por não dizer ignoradas, já que as

atividades chamadas pré-requisitos (pré-leitura, pré-escrita) que se realizavam nestas etapas

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pouco tinham a ver com a aprendizagem da linguagem escrita tal como a entendemos na

atualidade.

Hoje sabemos que a aquisição do sistema alfabético é um processo cognitivo. Foi

descrito (FERREIRO; TEBEROSKY, 1979; FERREIRO; GOMEZ, 1982), e se inicia

precocemente e se constrói mediante o estabelecimento de relações e diferenciações

progressivas. Emília Ferreiro (1996, p.66) afirma que:

A construção de um objeto de conhecimento implica muito mais que mera coleção de informações. Implica a construção de um esquema conceitual que permita interpretar dados prévios e novos dados (isto é: que possa receber informações e transformá-la em conhecimentos) um esquema conceitual que permita processos de inferência acerca de propriedades não-observadas de um determinado objeto e a construção de novos observáveis, na base do que se antecipou e do que foi verificado.

A identificação deste processo tem produzido inovações na prática educativa, já que

não se restringe apenas em oferecer contato das crianças com a linguagem escrita e seus usos

reais, sendo preciso proporcionar situações e atividades diversas para ajudá-los a avançar

pelos sucessivos níveis deste processo de alfabetização. No QUADRO 1 descreveremos

resumidamente os níveis mencionados.2

Quadro 1 - Níveis de aquisição da linguagem escrita

Nível pré-silábico

� Inicialmente, a escrita é indiferenciada (garatujas) � Posteriormente, vão se modificando e utilizam letras

convencionais, com um repertório mais ou menos amplo dentro de cada palavra e que se modifica para produzir palavras distintas. Não existe correspondência sonora.

Nível silábico � Começam a relacionar partes sonoras da fala com partes escritas

(um signo ou uma letra por cada sílaba pronunciada).

Nível silábico-alfabético � A representação da linguagem oral é feita alternadamente sendo

mesclada por signos que representam as sílabas ou com signos que representam fonemas.

Nível alfabético � A representação é feita correspondendo um signo para cada

fonema. Quando o signo escrito corresponde com o fonema oral, falamos de escrita com “valor sonoro convencional”.

Fonte: Ferreiro (1996)

Em condições normais, este processo que conduz a aquisição do sistema de escrita

alfabética inicia-se nos primeiros anos e se desenvolve ao largo de toda a etapa infantil e no

começo da educação básica. Dizemos “em condições normais” porque a variabilidade entre os

2 Dentro de cada um dos níveis, se podem encontrar diferentes subníveis que surgem gradativamente. Na bibliografia que citamos, detalha-se amplamente todo este processo, com exemplos ilustrativos.

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sujeitos é bastante ampla, de modo que é habitual que coexistam em um mesmo grupo de

crianças níveis de aquisição distintos, no qual exige planejar situações e atividades de

aprendizagem adaptadas para tal diversidade. Em todo caso, acostumamos a nos preocupar

que determinadas crianças sigam uma progressão relativamente mais lenta que outras e

quando isto vai perdurando.

Quando começa, pois, a preocupar o desenvolvimento de uma criança? No momento

em que, apesar de dispor de um potencial cognitivo normal, de pertencer a um meio familiar

alfabetizado e de participar de situações de ensino e aprendizagem em que tem todos os

elementos ao alcance para adquirir este conhecimento não progride como era desejável.

Crianças que demoram muito, primeiro em reconhecer e escrever seu próprio nome, ou em

adquirir a correspondência sonora, o que demora mais do que previsto no nível silábico, o que

não relaciona os sons com as grafias correspondentes...

Estas são crianças que podem requerer uma avaliação diagnóstica. O processo de

avaliação será, em princípio, para levantar as hipóteses do não aprender. Permitindo-nos

ampliar aspectos, e, sobretudo, descobrirmos melhor em que e por que não aprende, quais são

suas respostas e que informação específica nos passa. Não podemos duvidar que as

concepções infantis sobre o que se escreve, como se escreve o que produz em determinado

texto, etc. Seguem uma lógica que, especialmente no início do processo, se assemelha a do

adulto alfabetizado. Portanto, não podemos classificar como erros o que são ideias

particulares e próprias do pensamento infantil.

Na concepção de Fernandez (1991) não há aprendizagem que não esteja registrada no

corpo. Para que o ser humano aprenda há necessidade de presença de quatro fatores

constitutivos do sujeito: seu organismo individual herdado; seu corpo constituído

especularmente (a partir do desejo do outro); sua inteligência construída na interação com

outros seres humanos; e seu desejo que está relacionado ao desejo do outro ser humano.

Somente na integração destes fatores é que a aprendizagem ocorre e se adquire o saber.

A aprendizagem inclui sempre o corpo, porque inclui o prazer a este; sem o corpo o

prazer desaparece. Sem uma boa matriz de aprendizagem (representada em sua maioria pela

mãe), o vínculo com as aprendizagens futuras estará prejudicado, pois se encontra fraturas em

suas origens.

Os aspectos concretos a que convém trabalhar dependeram das dificuldades detectadas

na avaliação diagnóstica. Um novo método não resolve os problemas, é necessário reanalisar

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as práticas e compreender o sujeito cognoscente, que pensa que constrói interpretações, que

age sobre o real para fazê-lo seu. Explicar detalhadamente todas e cada um das técnicas

possíveis sobrepassaria as exigências deste artigo, de modo que nos centraremos em algumas,

uma vez que nos remeteremos à bibliografia colocada.

a) Técnica de análise da escrita

Para conhecer qual o nível de conceitualização da escrita em que uma determinada

criança se encontra, podemos fazer a técnica do ditado de palavras como a qual se especifica

(QUADRO 2).

Quadro 2 - Exemplo de uma técnica de escrita (etapa infantil – começo da educação básica)

� Ditar para a criança, de uma em uma, palavras de um campo semântico determinado (animais, brinquedos, alimentos, etc.) que tenham 4, 3, 2 e 1 sílaba respectivamente, e logo uma frase na qual apareça uma das palavras anteriores.

� Exemplo: mariposa, esquilo, gato, peixe; o gato bebe leite.

Fonte: Ferreiro e Teberosky (1979)

O objetivo desta técnica é observar como a criança realiza esta tarefa. Convém anotar

as perguntas feitas, a fim de diferenciar claramente o que é capaz de fazer sozinha e o que

pode realizar com ajuda, e com que tipo de ajuda. Logo podemos pedi-la que leia (se assinala

com o dedo) cada uma das produções realizadas, a fim de observar de que modo relaciona sua

produção oral com os signos escritos, com que conflitos se encontram ao tentar resolver um

ou outro que coincida.

Esta técnica pode nos dar uma série de informações importantes. Por exemplo:

a) O nível que se situa dentro do processo de aquisição (indiferenciado, diferenciado,

silábico, silábico-alfabético, alfabético...)

b) O tipo de repertório de grafias que utiliza (pseudoletras, letras convencionais) e se

este repertório é amplo ou reduzido.

c) Como domina as diferentes grafias: pelo nome, pelo som e se lhes ortoga o seu

valor sonoro convencional.

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d) A separação de palavras em frases, tendo em conta que ao ditar não se devem

marcar as separações.

e) Em que aspectos relacionados com o anterior apresentam conflitos: se é de

segmentação fonética, falta de repertório (desconhecimento das grafias

convencionais de nosso alfabeto), etc.

A análise destes aspectos nos informará sobre a importância das dificuldades e o seu

grau com relação ao que seria esperado para sua idade no contexto escolar e social. Também

nos pode conduzir a contemplar outras questões: se diferencia as letras de outros signos (por

exemplo das cifras); se é mais competente com letra maiúscula ou com a cursiva; se conta

com um repertório limitado de grafias porque tem dificuldades na sua realização, porém

quando lhe são mostradas pode reconhecê-las; como é a realização gráfica: o alinhamento, a

direcionalidade...

b) Técnica de análise da leitura e interpretação de textos

Antes de ler, no sentido convencional do termo, as crianças pequenas também

constroem hipóteses próprias sobre o significado das palavras e dos textos escritos. Este

processo de interpretação também foi escrito pelas autoras citadas anteriormente.

Para avaliar em qual dos distintos níveis de interpretação de textos se situa determinada

criança se pode fazer de diversas formas. Uma delas é mediante a observação de como

interpreta sua própria produção escrita (por exemplo, as palavras e a frase que lhes foram

ditadas antes) ou também outros escritos que tenhamos ao alcance. Porém obteremos uma

informação mais precisa sobre como solucionar os conflitos de interpretação se utilizarmos o

material que contempla diferentes tipos de correspondência entre um texto e a ilustração ou

imagem que o acompanha. Ferreiro e Teberosky (1979) propõem a seguinte prova (QUADRO

3):

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Quadro 3 - Exemplo de técnica de leitura e interpretação de textos com suporte de imagem (etapa infantil – começo da educação básica).

� Procedimento: mostra-se a criança uma série de textos (palavras e frases), cada uma delas acompanhada de uma imagem relacionada com seu significado, e lhe pergunta: “O que estás vendo aqui?”. Logo, que tenha emitido uma resposta: “Como se lê?”.

� O material específico que se utilizará está formado por distintas combinações: - Imagem com um único objeto e texto com uma só palavra. - Imagem com um único objeto e texto com várias palavras ou uma frase. - Imagem com vários objetos e textos com uma só palavra. - Imagem com vários objetos e texto com uma frase ou várias palavras.

Fonte: Ferreiro e Teberosky (1979)

A técnica pode ser desenvolvida com este material específico ou com outros mais

informais (logotipos, título de contas com apoio da imagem, etc.), observaremos em que nível

se encontra entre a progressão seguinte (QUADRO 4):

Quadro 4 - Progressão na leitura de um texto acompanhado de ilustração ou imagem Níveis evolutivos de interpretação

1. A interpretação está totalmente regida pela imagem ou ilustração que acompanha o texto. A criança nomeia a imagem sem ter em conta nenhuma das propriedades ou características do texto em si.

2. A imagem segue prevalecendo, porém começa a considerar alguns elementos do texto, sejam quantitativos (por exemplo, sua longitude) ou qualitativos (busca das letras que acredita que deve ter) a fim de ajustar sua leitura a hipóteses sugerida pela imagem.

- A interpretação se rege pelo texto. A imagem serve para antecipar o significado, porém esta antecipitação é confrontada e, se for preciso, modificada, segundo a informação que o texto aponta. Mediante o decifrado – e ao princípio das dificuldades lógicas de integração – se chega de forma progressiva a extrair o significado literal do texto, quer dizer, a leitura convencional.

Fonte: Ferreiro e Teberosky (1979)

Seja qual for a estratégia que se use, teremos que levar em conta o esforço da criança

na busca do significado (compreensão) mesmo que acerte ou erre. Segundo Japiassu (1977, p.

57), é assim que se estrutura o conhecimento, “na dialética dos ensaios e dos erros, nas

retificações que introduzem as diferenças, nos fracassos que fazem surgir às contradições e

nas sínteses que promovem os progressos”. Chegar ao último nível supõe saber aprendido a

ler no seu sentido convencional, e é precisamente neste ponto que pode aparecer dificuldades.

Por isso é importante observar como a criança realiza a decodificação (se o faz pelo som, por

sílaba, se o faz corretamente ou com alterações ou substituições de fonemas...) e, sobretudo

estar atento às estratégias que as crianças põem em jogo para autocorrigir-se durante o

processo de leitura.

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c) Avaliação diagnóstica da leitura

Para entender as dificuldades de uma criança, precisamos conhecer em que nível de

leitura se encontra e quais são seus pontos fortes e fracos frente um texto escrito. Dado aos

componentes que a leitura apresenta relacionada com a decodificação e o reconhecimento de

letras, sílabas e palavras e outros que se referem à compreensão propriamente dita. Teremos

que discriminar em qual dos níveis está o problema (ou talvez em ambos) e se interferem

entre si e em que medida.

A leitura pode ser avaliada mediante procedimentos diversos, tanto na forma

(silenciosa, oral...) como nas demandas referidas a compreensão (reconto, interpretação oral,

ordenar textos, classificar, relacionar, dramatizar...). O uso de diferentes formas de avaliação

nos permitirá extrair dados distintos e complementares: em um dos casos nos apontará uma

informação relacionada mais com o produto (a compreensão do que havia lido) e nos outros

nos informará sobre os aspectos da forma e mais relacionados ao processo, quer dizer, como

lê e decifra um texto: a velocidade, a fluidez, a entonação, o respeito aos signos de

pontuação...

Para começar, situaremos especificadamente na compreensão. Sabemos que na leitura

de um texto interrelacionam (sua facilidade ou complexidade, a intencionalidade do autor,

etc.) e o que o leitor aporta (conhecimento do assunto, experiências prévias, e também

habilidades linguísticas como vocabulário, construção sintática, etc). A compreensão é, pois

um processo complexo na qual se interrelacionam diferentes subprocessos: entender o

significado das palavras e das frases, conectar estas frases entre si, integradas dentro de um

significado global e de uma estrutura textual determinada, relacionada com o próprio

conhecimento. Esta complexidade faz com que ao iniciarmos um processo de avaliação da

compreensão leitora precisaremos ter presente duas questões prévias:

1. Em primeiro lugar, é preciso analisar muito bem o texto que propusermos para ser

lido, a fim de prever as dificuldades do assunto do qual se trata e também as

existentes quanto a sua estrutura, porque diferentes modalidades textuais requerem

distintas exigências cognitivas. Se tomarmos como exemplo duas das tipologias

mais usuais (a narrativa e a expositiva), observaremos que a estrutura da narração

apresenta um caráter sequencial, e uma organização muito convencional que as

crianças incorporam desde muito pequenas e facilita a compreensão; os textos

Page 13: O Diagnóstico Psicopedagógico da Criança com Dificuldade

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expositivos, apresentam a informação de modo hierárquico, mais difícil de

ordenar; também contém informações novas ou desconhecidas e, portanto

oferecem geralmente mais dificuldade para sua compreensão.

2. Em segundo lugar, se deve avaliar o conhecimento prévio que a criança tem do

tipo de texto e de um assunto determinado, como elemento fundamental da

compreensão da leitura. Esta sondagem nos apontará assim informações sobre seu

nível de linguagem, sua habilidade para responder perguntas e, em geral, uma

estimativa dos conhecimentos prévios que possui.

Em qualquer caso, devemos ter claro que os resultados de compreensão da leitura

estarão sempre sujeitos aos assuntos e a tipologia concreta do texto com que utilizamos para

avaliar. Embora isto nos permita forjarmos uma hipótese sobre o grau de compreensão leitora

da criança, não podemos tirar conclusões sem avaliar esta compreensão através de um suporte

de textos mais amplos.

Quando uma criança mostra dificuldade de compreensão, resulta necessário observar a

sua maneira de ler. Embora a leitura silenciosa ofereça alguns elementos observáveis (se

move só à vista ou toda a cabeça para seguir a linha, se move os lábios ou vocaliza, se

acompanha com o dedo...) em geral nos informa pouco sobre esta questão. Frente as

dificuldades de compreensão é imprescindível observar a competência da criança na leitura

expressiva, quer dizer: como decifra, de que modo acessa o léxico, pois este é o primeiro

passo que conduz a compreensão. Recordemos que a decifração do léxico conduz ao

significado das palavras e das orações, e estas, ao significado global do texto, como um todo,

e se vai relacionando com o conhecimento prévio, tal como apontamos antes.

Ler em voz alta costuma trazer um nível de ansiedade mais elevado que fazê-lo

silenciosamente. Porém para fins de diagnóstico, também é útil observar com a criança se

comporta numa leitura oral. Assim, pois, podemos combinar ambas as modalidades mediante

a um texto em que uma parte pode ser lida silenciosamente e outra em voz alta. Deste modo,

obteremos informações sobre a competência da criança frente às duas situações.

Com isto, a leitura oral nos permite observar vários aspectos: como decifra os códigos

escritos, se efetua repetições, substituições, omissões ou adições de palavras, sílabas ou

fonemas, se perdem ou salta de linha; se respeita os signos de pontuação, que ritmo e

velocidade mantêm (impulsivo, lento, vacilante...) e se esta forma de ler tem a haver ou não

Page 14: O Diagnóstico Psicopedagógico da Criança com Dificuldade

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com sua capacidade de compreensão; valorizaremos se usar sinais contextuais, quer dizer, se

as substituições que realiza têm ou não significado no contexto da frase; que tipo de palavra o

leva a entalar, e também quais lê bem; outros elementos que é aconselhável observarem: se

move a cabeça ou não, se vai seguindo as palavras com o dedo, se se mostra nervoso,

inseguro, etc.

Quando entalar ao ler, lhe ajudaremos a seguir, porém não imediatamente, pois o que

interessa observar é se utiliza por si mesmo estratégias de autocorreção. Como sabemos, o

leitor vai construindo o significado de um texto enquanto o está lendo; em consequência, um

dos principais indicadores de competência leitora é precisamente a capacidade de regular a

própria compreensão, porque muitas das dificuldades na leitura são devidas a falta de tal

estratégia de regulação.

Uma vez realizada a observação sobre como lê a criança, poderemos contrastá-la com

sua compreensão leitora e avaliar a correlação que há entre um e outro aspecto. Compreensão

e destreza leitora se influem mutuamente, porém pode existir certa defasagem entre elas: há

crianças que decifram bem, porém não compreendem, enquanto que outras são capazes de

gerar compreensões mesmo mostrando uma decifração dificultosa. Precisamente – e como

comentamos antes – os fatores que intervém na capacidade de ler são tantos e tão complexos

que é possível estas contradições.

Avaliação diagnóstica da escrita

Como no caso da leitura, os âmbitos da escrita, encontram também muitos e diferentes

componentes que podem ser avaliados. A criança pode apresentar dificuldades de tipo gráfico,

ortográfico, morfológico sintático, semântico, etc. E deveremos centrar mais em uma ou outra

função do caso. E logicamente, as dificuldades se avaliam também de diferentes formas

segundo a idade e a etapa que se encontra.

Em grande parte, a avaliação diagnóstica da expressão escrita pode acontecer de forma

indireta, através de produções escritas pela criança – textos, ditados, reescritos... Que o

psicopedagogo pode propor. Porém além destas avaliações de produção, também convém

analisar o processo que segue a criança para escrever, tanto nos aspectos mais propriamente

cognitivos (generalização e planificação das ideias, estruturação das informações...) como

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motores e sensoriais (a realização das grafias, a organização do espaço gráfico, a

decodificação da informação auditiva, etc.).

Na realidade, existem tantas formas de avaliar a expressão escrita como diferentes

formas de trabalhar um texto: resumindo-o, transformando-o, completando ou continuando

um texto – atividade que permite a reescrita e a criação – implica gerar ideias e expressá-las

respeitando a coerência com a parte do texto e a escrita.

Por outro lado, se propusermos diferentes tipologias textuais, poderemos observar à

capacidade de adequação a estrutura e a linguagem própria de cada um. Observaremos, pois

em qual destes componentes a criança apresenta dificuldades e em que se mostra mais

competente. Porém também nos interessa analisar sobre a forma como escreve. Por exemplo,

se:

a) há planejamento a priori (pensa, aponta ideias, elabora algum esquema...) ou se vai

gerando o discurso sobre a elaboração.

b) revisa e introduz modificações enquanto escreve, e que tipo (sintáticas, léxicas,

ortográficas, ...) e também se efetua ou não revisão final.

c) o ritmo como escreve: se é lento, se se precipita se para e por que (para pensar

sobre o tema? Por bloqueio?).

d) quando escreve: se mostra tensão, se cansa, de que modo usa o lápis, o controle da

letra...

Finalmente e tendo em conta a relação que existe entre as diferentes capacidades

linguísticas, assim como entre a linguagem e o pensamento, na avaliação diagnóstica da

expressão escrita devemos contrastá-la com a capacidade de a criança expressar-se oralmente.

Este contraste se pode obter de modo mais ou menos informal, através das conversações que

tenhamos mantido ao longo do processo ou pedindo-a para verbalizar previamente o texto que

vai escrever.

Este contraste é necessário por vários motivos: a pronúncia incorreta de determinados

fonemas pode repercutir – embora nem sempre - na escrita das palavras. A falta ou pobreza de

vocabulário, ou um discurso sintaticamente desorganizado ou pouco estruturado se

manifestará sem dúvida na redação de um texto e pode ter relação com certas dificuldades

para estruturar o pensamento. Porém também se dá em caso inverso: crianças e adultos que

escrevem melhor do que falam, porque o fato de escrever ajuda a organizar as ideias, e

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também permite conter a impulsividade, ou a ansiedade. Assim, pois, quando confluem as

dificuldades em ambas as formas de expressão (oral e escrita), podemos pressupor a

existência de um déficit subjacente mais global.

Os resultados da avaliação diagnóstica: hipóteses interpretativas

Seja mediante os instrumentos e as técnicas de avaliação diagnóstica que temos

descrito ou mediante outras, uma vez aplicadas, teremos o nível de competência da criança

em relação às tarefas de compreensão e expressão escrita com as quais se depara

habitualmente. Seus resultados, e as informações recolhidas sobre o contexto familiar e

escolar, deveram nos permitir determinar uma série de hipóteses:

a) Confirmar – ou descartar – que a criança apresenta dificuldades para aprender ou

usar a língua escrita, e em que grau. Isto implica ter clara a diferença entre um

leitor ou escritor competente e de um que não lê.

b) Distinguir se estas dificuldades vêm associadas a outros sintomas de aprendizagem

e, portanto, se afetariam a outras áreas não propriamente linguísticas (por exemplo,

a matemática) ou se são específicas da linguagem escrita, e as relações com a

linguagem oral o que se pode fazer.

c) Encontra-se mais centrado na leitura, que na escrita ou em ambas, e que aspectos

concretos há nesta situação.

d) Se existe causas não propriamente linguísticas na base das dificuldades, o que está

interferindo de forma importante.

Quando os problemas de compreensão ou expressão não são atribuídos à forma como

a criança lê escreve, o primeiro procedimento a fazer é confirmar ou descartar as causas que,

incidem na leitura e na escrita, sobrepondo este conhecimento, configurando um quadro de

“dificuldades de aprendizagem” mais generalizado. Nestes casos, é preciso aplicar uma

avaliação ampla, que contemple todos os aspectos que consideramos que pode estar

comprometendo: capacidade cognitiva – concretamente o consciente intelectual – aspectos

sensoriais – visão, audição – motores, neurológicos, psicológicos, socioculturais, história

escolar... e, por pressuposto, a competência linguística oral.

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Se as dificuldades em algum ou vários destes aspectos se confirmam, teremos que

intervir neles na medida do possível, de forma paralela a intervenção concreta sobre as

dificuldades para ler e escrever. Falaremos neste caso de uma intervenção interdisciplinar

como cita Alícia Fernandez no livro “A inteligência aprisionada” (1991).

Considerações finais

Mesmo que a finalidade deste artigo seja a avaliação diagnóstica e não a intervenção,

nos parece pertinente sugerir algumas orientações de caráter geral que se desprenderam no

que foi exposto até aqui.

Em primeiro lugar, não resta a menor dúvida que a influência familiar no processo de

alfabetização das crianças é fundamental. Cremos que o tratamento que se faz da língua na

escola e nas aulas é um fator determinante para evitar muita das dificuldades apresentadas.

Segundo Parente (2000, p. 43) “a instituição escola a rigor, tem a função de preparar a criança

para ingressar na sociedade, promovendo as aprendizagens tidas como importantes para o

grupo social ao qual esse sujeito pertence”. Por esta razão convém que, a etapa infantil, as

aulas se impregnem de um ambiente alfabetizador que, unido às interações orais, permitam as

crianças familiarizarem-se com a escrita e seus usos, mediante uma reflexão sobre a

linguagem que surge nas situações comunicativas e funcionais.

Conforme aponta Fernandez, “não pode haver construção do saber se não se joga com

o conhecimento” (1991, p. 165), pois o saber é a incorporação do conhecimento pessoal

relacionado com fazer. Isto requer, pois, condições e formas de ensinar que se adaptem as

dificuldades e ritmos das crianças, priorizando textos funcionais e significativos assim como

atividades mais abertas e globais com outras mais estruturadas, destinadas a melhoria de

déficits concretos.

Haverá casos que, por suas especialidades, vão requerer alguma técnica educativa

específica. Assim, a relação psicopedagogo-cliente é medida por atividades bem definidas,

cujo objetivo é “solucionar rapidamente os efeitos mais nocivos do sintoma para logo depois

dedicar-se a afiançar os recursos cognitivos” (PAIN, 1986, p.77). Apontaremos algumas

recomendações que vão nesta linha: a) motivá-los para ler e escrever será um dos objetivos

fundamentais na relação com a criança, posto que suas dificuldades a conduzam ao abandono

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e a curto prazo a rejeição total. Há que ajudá-las a encontrar leituras que lhes interessem e

constituem para elas desafios quanto a sua complexidade. Convém ter sempre presente que,

quanto menos competência leitora mostra uma criança, mais conhecimento prévio necessitará

para compreender o significado do texto; b) quando planejarmos atividades mais específicas

ou estruturadas, destinadas a melhorar o déficit concreto, o faremos de forma mais

contextualizada ou lúdica possível. Referimos-nos, por exemplo, a atividades relacionadas

com a segmentação fonética quando os problemas se encontram na consciência fonólogica, ou

atividades de aproximação global das palavras (memorização visual das palavras) em crianças

cujas dificuldades se encontra na via ortográfica ou léxica. Todas estas atividades podem-se

realizar através de jogos de linguagem (jogo da memória, caça-palavras, trilha, etc.); c)

potenciaremos o uso de toda classe de apoio ou instrumentos de aprendizagem que resultem

facilitadores, compensadores ou alternativos (uso de esquemas, gráficos, computador, vídeos,

televisão...); d) temos que ter especial cuidado com os aspectos relacionados ao afetivo e

emocional que podem estar interferindo: interesse, motivação, autoestima... Devemos

proporcionar muita segurança e confiança, e, animá-los a pedir ajuda sempre que necessitem;

e) não devemos forçá-los a viver situações comprometidas (como por exemplo, ler em voz

alta) se não se sentem capazes. Devemos potencializar publicamente tudo que pode fazer com

êxito; f) o papel da família é fundamental, tanto pela ajuda que pode proporcionar como pelo

tipo de reação que mostra frente ao problema da criança. As atitudes de excessiva proteção

ou, ao contrário, de demasiada exigência, a negação das dificuldades, um elevado nível de

ansiedade, etc. nos ajudam a situar o problema – sintoma PARA a família, isto é, as reações

comportamentais de seus membros ao assumir a presença do problema; e NA família ou, com

maior precisão, articulação funcional do problema de aprendizagem. Portanto, dar espaço para

a família enfrentar o problema de forma construtiva é imprescindível.

Seguindo estratégias deste tipo, gerando – e transmitindo – as expectativas de

progresso “num nível em possa integrá-los ao seu repertório intelectual” (PAIN, 1986, p.85)

as dificuldades de aprendizagem da língua escrita talvez não desapareçam completamente,

porém poderão sem dúvida melhorar e diminuir em grande medida. Porque se todas as

crianças aprendem, os que têm dificuldades também o podem conseguir. Conforme Silva

(1998, p. 57) “é o modo de agir do eu cognoscente frente ao objeto, no processo

psicopedagógico, que permite que ele re-signifique como sujeito capaz, criativo, interessante

e autônomo”.

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Portanto, a avaliação psicopedagógica é uma ferramenta para tomar decisões que

melhore a resposta dos problemas de ensinar e aprender das crianças, porém também deve

promover aos indivíduos trocas e o desejo de “enfrentar o desconhecido para descobrir o

novo, enfim suportar a dor de não-saber para chegar ao prazer de saber”.

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