o diário de azizah (milleny dubiel)

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Nem todas as garotas querem uma boneca ou roupas de presente. Azizah Krisgman, por exemplo, teve uma vida cheia de preconceito e repressão durante sua luta e resistência contra o poder Nazista e Varguista. Ela sacrificou muitas coisas para conseguir seu único presente: ter seus direitos e sua liberdade para poder viver em paz. Mas antes disso teve que passar por muitos obstáculos em sua vida. Começando pelo fato de ter tido que sair com a família de sua terra natal, Munique, na Alemanha, quando era uma criança. E tudo isso pelo simples fato de ser discriminada por ter nascido em uma família judaica. Vir para o Brasil foi o que deu início a toda a sua história de heroína e refugiada, e também de seu amor pelo jovem Daniel Jasinski. Será que, ao longo do tempo, ela conseguiu viver uma grande história de amor naqueles tempos difíceis? Será que realmente venceu todos esses obstáculos ao longo da sua vida? Talvez nem ela pudesse lhe afirmar se conseguiu...

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Page 1: O Diário de Azizah (Milleny Dubiel)

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AutoraMilleny Dubiel

RevisãoFranciele Becher

Capa, projeto e editoraçãoRafael Cividini

Canoas, RS2015

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AzizahDo hebraico, "ser forte".

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Quando nossos alunos são maiores do que os nossos sonhos

“O Diário de Azizah” surgiu de uma atividade da disciplina de História, no 9º ano da EMEF Carlos Drummond de Andrade, escola da periferia da cidade de Canoas (RS). Como em outros anos letivos, sugeri como trabalho avaliativo do terceiro trimestre um exercício de “escritas de si”, através de diários ambientados na Segunda Guerra Mundial. Os alunos poderiam construir relatos de soldados no front, kamikazes japoneses, pessoas perseguidas durante o Holocausto, familiares que aguardam a volta de seus entes queridos, pessoas atin-gidas pelas cidades ocupadas, vítimas de bombardeios e da bomba atômica, etc. As regras gerais eram: escrevam em primeira pessoa; criem o enredo e a história; descrevam os personagens e as situações que eles estão vivenciando; expressem suas próprias opiniões e sentimentos; mantenham a coerência e a contextualização histórica. Ah, tinha mais uma regra: façam com que, visualmente, o material dos diários pareça ter sido produzido na década de 1940: deveria ser escrito à mão, com folhas envelhecidas, sem o uso de materiais muito modernos. E, como em outros momentos, recebi muitas respostas positivas: trabalhos incríveis, bem escritos, com histórias criativas e emocionantes. Quando a Milleny me questionou se poderia burlar uma das regras, não escrevendo o diário do próprio punho, mas im-primindo as folhas, eu pensei em dizer não. Mas, quando em seguida ela afirmou que era porque a escrita já tinha “muitas páginas” e que

ApresentAção

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ela ainda teria muito à escrever, eu autorizei. Conhecendo a aluna há três anos, sabendo da sua voracidade pela leitura e empenho impe-cável na escola, eu sabia que algo de muito bom sairia de toda essa história. Et voilá, aqui está “O Diário de Azizah”, uma história que começa no início do governo nacional-socialista de Hitler na Alema-nha, percorre o drama dos refugiados judeus, finalizando (ou não...) na luta pela liberdade durante a ditadura do Estado Novo no Brasil, sob o comando de Getúlio Vargas. Azizah é um pouco Anne Frank; tem muito das libertárias da Guerra Civil Espanhola; se parece com os estudantes de maio de 1968; é também um pouco Edson Luís lutando contra a ditadura civil-militar brasileira. Mas Azizah também é muito Milleny, uma menina brilhante e idealista, que também se encantou com o valor da liberdade e da História.

Se é possível afirmar que existem momentos em que os educadores ficam plenamente realizados, esse é um deles. Quando nossos alunos já têm asas para alçar seus próprios e incríveis voos, quando entendem que a liberdade é o nosso maior bem, podemos ter a certeza de que estamos trilhando o caminho certo.

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”- Cecília Meirelles

Franciele Becher, uma orgulhosa e saltitante professora de História da

Rede Municipal de Ensino de Canoas (RS), que ao findar essa apresentação possuía lágrimas nos olhos.

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P.S. - A correção do diário original foi feita de forma conjunta com a autora, dando-se ênfase sobretudo às adaptações ortográficas e gramaticais. Algumas situações históricas foram redimensionadas, esclarecidas e parcialmente reescritas, mas, em se tratando de uma obra de ficção, foi resguardado o direito à ficção, à criatividade e às possibilidades insólitas que o período histórico da Segunda Guerra Mundial infelizmente proporcionou para milhões de pessoas. (F.B.)

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Só agora percebo como a vida e a morte têm coisas em comum, as duas vivem traçando o objetivo de me fazer sofrer, a vida quer me ver viva, sentindo o prazer da minha dor e medo, e a morte... bom... ela quer me matar com estas sensações. Mas mesmo assim gosto da “querida acolhedora de almas”, ela pode ser a causa de dor e sofrimento, mas também é a libertação deles. Sei que parece meio mórbido o que escrevo, mas quando se está fugindo da vida, a única saída é se agarrar no invisível e nublado véu da morte.

Tudo bem, entendo que você não compreenda minha depres-são... Para falar a verdade, nem eu entendo como uma garota de apenas quatorze anos pode ser assim. ERRADO! Quando uma pessoa vive uma maldosa e insana discriminação, nada mais faz sentido para ela. Meus pertences, minha vida, até meus livros e meu comportamento, TUDO era controlado por olhares rígidos e cruéis dos Nazis, “arianos”. Não entendo como meus papas aceitam viver com todas essas restrições e maldades que fazem conosco, para falar a verdade não entendo muito por que fazem isso com a gente. Minha mãe disse que eles falam que é por que somos judeus. Die juden sind an allem schuld 1 , de tudo de ruim que aconteceu com a nossa nação.

1. “Os judeus são os culpados por tudo”, em tradução livre do alemão.

29 de Setembro, Brasil de 1934

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Agradeço por ter você, e espero poder desabafar contigo tudo que nunca desabafei com ninguém, é só com você que consigo derramar o mundo sobre as suas páginas e contar toda a minha história até aqui. Vou contar como tudo aconteceu até eu vir parar aqui, num país totalmente diferente, com temperaturas estranhas e palavras que desconheço. A minha história não é um conto de fadas, nem tem princesas e príncipes, pelo contrá-rio, nela existem monstros capazes de tirar tudo o que você tem de mais precioso. Então vamos lá para minha terra, a Alemanha, onde tudo começou.

Até um certo momento sempre vivi bem e feliz em Munique, em minha Straße Himmel. Eu e minha família tínhamos vários amigos e pessoas que simpatizavam com nossos costumes e tradições sagradas. Meus amigos Miriam Schneider, Ruth Lösch e Tom Goldanski adoravam minha kippa, e a forma como eu e minha família seguíamos o judaísmo com respeito e simplici-dade. Miriam era judia como eu, ela tinha cabelos castanhos e olhos da cor da terra, era muito agressiva, às vezes mesmo sendo minha amiga costumava criar apelidos bobos sobre meus olhos grandes demais. Ruth era uma garota nojenta e metida, que se dizia ser uma alemã pura com seus cabelos ruivos e sua cara sardenta, eu a detestava, ela só dizia ser minha amiga para ficar perto de Liesel. E Tom era de longe um dos meninos mais bonitos da escola, mas eu adorava flertar com ele só para vê-lo

31 de setembro, Brasil de 1934

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ficar vermelho. E tem a Liesel Dubiel, a minha confidente antes de você chegar na minha vida. Ela era a garota mais linda da escola com seus olhos da cor da água e sua pele que era mais branca que a neve. Liesel era até bem alta para a idade, e seus cabelos caíam numa cascata de cachos dourados. Eu amava o seu jeitinho delicado de falar com as pessoas e de acreditar de que no mundo todos são bons, mas me irritava quando ela caía nas conversas infantis da Ruth-sardenta. Ah, e tem a talvez menos importante Azizah Krisgman, essa garota não tem nada de especial, tinha cabelos compridos e ondulados num tom de castanho escuro sem graça, e tinha grandes olhos azuis escuros como se fosse a noite. Tinha 13 anos mas sempre foi a mais alta da turma (não tanto quanto Liesel), mas ela sempre teve um brilho no olhar, o brilho das palavras que ela adquiriu com sua paixão, seus livros. Essa menina era eu!

No dia 10 de maio de 1933, quando estava indo para a escola, estranhei a movimentação nas ruas pelo caminho do Propyläen 1 , havia várias pessoas que se empurravam para ver alguma coisa, parecia estar saindo fumaça. Quanto mais chegava perto, menos acreditava no que via: os soldados do partido vencedor da última eleição estavam queimando livros em espaço público. E muitas pessoas, por incrível que pareça, estavam gritando elogios a eles, só consegui entender o que falavam depois que me aproximei e prestei atenção no que o homem dizia:

“O Império é tudo, o grande tempo recém começou, a Alemanha acordou! Nós con-quistamos o poder, agora devemos conquistar

1. Local emblemático da cidade de Munique.

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o povo alemão! Eu sei meus camaradas, foi difícil! Quando vocês desejavam mudanças, elas não vieram. Então, de tempos em tempos este apelo tem que ser feito, para continuar a luta. Vocês não devem agir por si mesmos, devem obedecer e se entregar, se submeter a este esmagador dever de obediência! Temos de ser cruéis, temos de recuperar a consciência tranquila para sermos cruéis! Todas as coisas que vieram dos impuros serão extintas, tudo que os juden criaram com seus pensamentos e vidas imundas será queimado, nenhum deles terá direito de se esconder entre nós, porque eles são os culpados da nossa des-graça, da nossa dor e sofrimento! Enquanto lutávamos para sobreviver à Grande Guerra, eles escancaravam para a nossa Alemanha suas atividades horrendas e manipuladoras para se manterem perto do nosso Reich (...)”.

Só me lembro de ter corrido no momento em que o homem que estava discursando me achou no meio da multidão, havia raiva nos seus olhos por eu estar apenas ali, naquele dia. Não sabia porque aquele homem tinha tanto ódio em seu olhar, mas com o tempo eu aprendi o motivo. Cheguei na escola, mas não me deixaram entrar, disseram que eu não podia e nem merecia receber a educação de um Ariano. Tentei resistir, mas a mulher que me impedia era extremamente gorda, e me empurrava com força para fora do portão. Quando me dei conta, avistei Miriam chorando no meio-fio da calçada junto com muitas crianças tris-

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tes, outras tantas com raiva, tentando entrar na escola, mas que não também conseguiram. Lembro que caminhei até Miriam e a abracei.

“–Não chore Miri, eles estão loucos, espere para ver quando nos-sos papas chegarem, eles queimam livros, não são normais, quem queimaria uma fonte de alegria tão poderosa quanto um livro?!”

“–Você não entende Azi, nem eu compreendo o que está acontecendo. Meus papas disseram que isso ia acabar vindo à tona logo após as eleições, e que nós íamos para a Polônia visitar alguns parentes e assim ficaríamos por lá. Mas não, agora papa falou que está tudo sobre controle, que temos direitos porque somos iguais a todos, mas eu e mamãe sabemos que não é bem assim, e você também sabe, todos os que são como NÓS sabem”.

Detestava quando Miriam falava dos deveres e tradições que devíamos saber sobre os judeus, me sentia como se não me encaixasse em nenhum dos dois lados, não me sentia uma alemã e muito menos judia. Alguns papas foram chegando para buscar seus filhos e não gostaram de saber que teriam que retirá-los da escola. Muitos começaram a brigar com a coordenadora da nossa escola, a Frau Vandelth Belarsk, uma mulher grossa que puxava saco do governo só para ganhar seus bônus mensais, e em troca passava informações para eles sobre nosso aprendizado e comportamento, fazendo com que a cada mês nos dessem uma matéria nova sobre nosso Führer. Acho que no fundo eu sabia que aqueles olhos cheios de ódio podiam ser dele. Eu nunca o vi pes-soalmente, mas aprendia a cada semana coisas sobre sua vida, sua luta pela ordem e pela prosperidade da Grande Alemanha. Aprendia que a nossa nação era vítima da Grande Guerra, e que todos os países que nos por aquele horror mereciam ser punidos e castigados.

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Meus papas chegaram, e minha mãe não se conteve de raiva e foi para cima da nossa coordenadora, dando milhões de motivos para que a Frau Belarsk pensasse melhor no que estava fazendo. Porém, ela só repetia o tempo todo para todos ouvirem:

“–Suas crias são sujas e imundas, sua raça envergonha nossa nação. Vocês não merecem nada que venha de nós! Vão embora, se não chamarei o governo para resolver isto!”. Meu papa, por mais indignado que estivesse, não podia fazer nada. Eu percebia sua aparência triste e cansada, e ele me olhava. Senti que era hora de ir embora. Quando cheguei em casa, lembro de ter me deparado com nossas malas no chão, e várias outras coisas sendo guardadas. Não entendi o que estava acontecendo. Minha mãe começou a chorar, e meu papa a beijou na testa e disse:

“–Chorar não vai mudar esta injustiça Esther, devemos ser fortes e começar tudo de novo, será mais seguro”. Eu comecei a chorar por ver meus papas tão infelizes, queria entender o porquê de tanta dor. Meus papas me olharam, minha mãe se recompôs e começou a me explicar o que eu tinha medo de saber.

“–Azizah querida, tem coisas que precisam ser contadas por mais difíceis que sejam, minha filha. Ficamos sabendo ontem por carta que a nossa família foi vítima de uma horrível e triste perda... Sua prima Hannah morreu. Se eu lhe contar como foi, talvez agora você não entenda. Então lhe contarei do começo. Existem monstros nos nossos pesadelos não é verdade?”, solu-çando afirmei com a cabeça. “Bom, na vida real eles também existem, essas pessoas vivem com um ódio acumulado dentro de seus corações por não conseguirem acreditar e ter fé יהוה

2. Não ter fé faz com que a sua alma perca a luz e sua paz interior

2. “Criador”, em tradução livre do hebraico.

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nunca se acenda, sentimentos ruins ficam mais intensos, e eles fazem os humanos cometerem atos cruéis, como matar. Sua prima foi vítima de um ato cruel de uma pessoa sem fé, que não acredita no Criador, que acha que tem o poder divino de tirar a vida de uma pessoa”. Chorava sem parar, só conseguia pensar na minha priminha de sete anos, morta de alguma forma cruel, isso doía demais. Meu papa interferiu na conversa:

“–Filha, sabe por que estes monstros não conseguem esconder essa raiva que eles têm de nós? Porque eles têm preconceito, pre-conceito por sermos diferentes, por sermos especiais. Nós não somos iguais aos outros, acreditamos nas palavras do Criador de que há um lugar prometido para todos nós, e isso nos dá esperança. E a esperança é a única coisa que a vida pode te dar de melhor além do amor. Sabe... Hoje eles me demitiram do meu cargo no governo, falaram que não precisavam mais das minhas mãos sujas acabando com o trabalho deles de anos, me senti humilhado e inútil, mas eu fui determinado e não me rebaixei a eles”. Perguntei indignada para o papa porque essa palavra existe, PRECONCEITO, e porque não podemos ter raiva dos que praticam esta palavra conosco.

“–Azizah, eu já te contei o significado do seu nome?” Fiz um não com a cabeça. “Significa ser forte, ser forte para aguentar qualquer tipo de maldade e desrespeito neste mundo, ser forte para praticar sempre o bem mesmo vivendo sob o mal, e ser forte para conseguir amar o próximo mesmo sabendo que ele pode se-mear o ódio”. Aquelas palavras me tocaram tão profundamente que comecei a compreender os judeus, mas isso não quer dizer que eu tinha que ser como eles.

Em 14 de maio de 1933, logo após lermos a carta de minha avó Amélia Krisgman falando do velório da pequena Hannah, que

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havia acontecido um mês atrás, minha mãe começou a me ajudar a guardar as coisas. Quando não aguentei mais, resolvi ir até a casa de Liesel para desabafar, porque só ela me entendia naquele tempo. Conversamos bastante sobre tudo o que havia acontecido e de como isso estava afetando todos nós. (Diário, para você já ficar sabendo, Liesel era filha de um dos ministros do nosso Führer Adolf Hitler). Ela conseguia se manter calma mesmo sabendo que a nossa amizade agora podia prejudicar a família dela, pois ser amiga de uma judia ou judeu geraria um falatório enorme. Por fim contei a Liesel que iria para a Polônia passar as férias e acalmar os ânimos até que esta ‘pequena discriminação’ passasse. Ela ficou triste, mas me apoiou, e para que eu lembrasse dela, me deu uma de suas coroas de flores de orquídea azul (...ela tinha ganhado nos prêmios de aluna exemplar, como sempre!). Nos despedimos.

Era 20 de maio, na Alemanha de 1933. Achava que estávamos indo de férias para a casa da vovó. Errado! Quando chegamos ao porto, minha mãe disse que seria muito perigoso ficar aqui e esperar que eles percam a fé de vez, ela disse que viu como tudo ia acontecer se nós ficássemos, disse que se fossemos embora eu poderia crescer e ser feliz em paz. Então comecei a lutar com todas as minhas forças para não abandonar Munique, o lugar onde eu nasci e vivi treze anos da minha vida, não queria ir em-bora, mas não podia ir contra meus papas. Acabei encontrando Miriam e Tom que vieram se despedir de mim pois ficaram sa-bendo do assassinato da minha prima pela Liesel, que também veio me dar muitos abraços e chorar nos meus ombros. Mama e papa me apressaram para eu entrar no navio antes que os ho-mens do Führer percebessem. Meu papa havia conseguido com seus contatos no governo um lugar em um navio brasileiro que

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estava atracado naquele porto há alguns anos desde a Grande Guerra, e que estava “quase em boas condições”. Ele chegaria até as águas brasileiras sem problemas, pois este seria o nosso destino, onde começaríamos tudo de novo, do zero, num país que eu nunca tinha ouvido falar (como se soubesse de muitos além do meu...), o Brasil, na América do Sul.

Não me recordo quantos meses fiquei dentro do navio sem ver a luz do dia, trancada no porão para que não nos vissem, pois agora éramos imigrantes, refugiados como mama dizia. Sei que muito tempo passei naquele navio, tempo suficiente para me lembrar de todas as noites de todos os meus treze anos feli-zes em Munique com meus amigos e minha família, a pequena Hannah, Liesel, Miriam, Tom, Frau Belarsk, os olhos transbor-dados, cheios de ódio daquele monstro queimador de livros. E foi assim que passei longos meses da minha vida, a bordo de um navio escuro e fedido, mas sempre com a esperança de que chegaria a luz no fim do túnel.

Eu me lembro de que na minha cabeça havia se passado meses, só não sei dizer em qual estava, sentia fome, fraqueza e pena pelos meus papas também sentirem tudo isso, e ainda conseguirem ser fortes para me consolar e dizer que tudo ia ficar bem.

Queria ter saído dali. Se fosse possível, me jogaria do navio para o mar se soubesse nadar, mas provavelmente iriam me matar antes de eu tentar dar uma braçada. Estava ficando louca vivendo no escuro absoluto, então decidi esperar meus papas adormecerem para poder ver a luz. Eles só iam descansar depois que todos os soldados que havia a bordo já estivessem de barriga cheia por causa do jantar, isso deixava eles cansados e mais fracos, e era aí que entrávamos para roubar a comida ou o que

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restava dela. Então, logo após os soldados se empanturrarem dos bratkartoffeln deliciosos da janta, fui escondida pelos corredores escuros à procura de luz ou de algum soldado de tocaia, mas não achei nenhum dos dois, apenas um corredor tapado pela escuridão da noite. Eu fiquei triste por ser noite e não poder ver o sol, mas quando vi a lua e suas servas brilhantes preenchendo o céu, me alegrei novamente. Todas as tristezas se foram, e o vazio dentro do meu coração que há minutos me dava medo, se preencheu de esperança e vontade de querer viver, foi aí que soube que tinha mais força do que pensava.

Logo que fui adiante na escuridão, escutei passos que vinham de um cômodo onde se acendeu uma luz. Resolvi voltar para a cozinha para não chamar atenção, então furtei discretamente a comida que restou (que era quase nada), mas sabia que meus papas precisariam e eu também.

Desde então, foi assim que descobri como sobreviveríamos naquele cômodo imundo de um barco que desconheço de quem era, furtando os restos dos tripulantes a bordo. Sei que no início minha mama pirou quando soube o que fiz, mas depois reve-zamos para que cada dia um de nós fosse furtar a comida. E foi assim que eu e minha família sobrevivemos por longos meses naquele barco.

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1º de outubro, Brasil de 1934

Em 16 de Janeiro de 1934 chegamos ao Brasil. Bom, essa foi a minha história até eu chegar aqui. Lembro-me que cheguei num domingo de sol quente, pois a luz quase havia me cegado, o calor me abraçava com tanta força que me fazia suar intensamente. Logo que descemos no porto, saímos de fininho para os homens do navio não nos verem. Encontramos na estrada que saía do porto um homem que abraçou meu papa e lhe disse:

“–Bom te ver, meu bruder, sua família é muito linda, vai ser um prazer te mostrar a minha também. Vamos rápido antes que estranhem verem pessoas com estes trajes em pleno verão do Rio de Janeiro”.

Ao longo do caminho para sua casa, eu ficava espantada com cada lugar em que passávamos, a diferença que tinha de Munique era imensa, sem falar no calor que fazia e no cheiro salgado que vinha do mar, era nauseante. Quando chegamos, meu papa nos apresentou a família Vicentin Krisgman, parentes da nossa família. Descobri que aquele homem que nos guiara até sua casa na verdade era meu tio Max Krisgman, que há uns dois anos foi para o Brasil por causa de difamações maldosas

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que estavam fazendo de sua família na Itália, seu antigo país. Conheci também sua mulher, Franchesca Vincentin Krisgman, ela tinha lindos olhos verdes. Também me apresentou seus três filhos, uma menina chamada Abriana de treze anos, um menino chamado Benjamin de quatorze anos, e Daniel Jasinski, também com quatorze anos. Todos tinham um sotaque italiano engraçado (meu papa me disse que era italiano), mas Daniel não, pois tio Max disse que o salvou na Itália quando mataram seus pais comunistas. Quase teriam conseguido matar Daniel se não fosse por ele ter achado o garoto antes dos assassinos. Tio Max foi bondoso e disse que para nos instalarmos num acoplado que mais parecia um galpão debaixo de sua casa, enquanto as coisas se acalmassem. Perguntei para papa se não correríamos perigo aqui nesse país onde nada sabíamos, e ele disse que aqui poderíamos ser livres, poderíamos ser quem nós somos, pois as pessoas aqui são diferentes, então eu acreditei.

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2 de outubro, Brasil de 1934

Vou contar como ganhei você. Foi no meu aniversário de quatorze anos, em 27 de setembro de 1934, logo após um jantar de comemoração por ter evoluído uma série a mais na minha nova escola no Rio. A escola conseguiu me ensinar em apenas onze meses e meio quase todo o Português na teoria e orató-ria, os Vicentin me deram um lindo vestido azul de presente e Daniel faz um lindo poema para mim sobre os meus olhos grandes e azuis demais. Fiquei brava com ele no início por ter achado que era um deboche, mas no fundo adorei o versinho. Eu ultimamente estava reparando muito nele e ele também em mim, acho que estou crescendo, mas sei que não devo pensar

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nestas coisas. Me senti muito feliz naquele dia, estava tudo indo bem e estávamos todos felizes. Meu papa havia conseguido um emprego de contador na casa de pessoas ricas do governo brasileiro graças aos novos cargos de trabalho criados pelo presidente, que diziam apoiar os trabalhadores com suas leis constitucionalistas. Minha mãe fazia bicos de confeiteira para padarias perto da Lapa. No dia seguinte, mostrei você a meus novos amigos, Nathalia Silva e Thainá Rodrigues, as meninas que mais gostava da escola por serem engraçadas e gostarem do meu sotaque. Quando cheguei em casa não sabia como po-deria usar você, estava confusa por não ter o que escrever, então Daniel viu minha frustação e veio me ajudar:

“–Você sabia que é só pegar uma caneta e escrever né?!”, ele ria como se estivesse louco para me ver brava.

“–Porque você não vai amolar a Abriana ou o Benji, por que gosta tanto de me irritar, por que você é tão burro e infantil? Já não basta aquele seu deboche do poema?”. Ele ficou sério e pensou no que falar, mas não falava, então apenas se sentou ao meu lado e disse:

“–Você deve escrever o que sente, o que pensa, o que acha do mundo, das pessoas, das coisas... e talvez de mim, mesmo sendo coisas ruins. O poema não foi um deboche, Azi. Seus olhos são de um azul mais lindo que a noite mais estrelada”. Não pude deixar de corar ao ver aqueles olhos verdes falando aquelas palavras.

Então se passou apenas três dias e já estava escrevendo em você, e agora não consigo mais viver sem escrever tudo o que penso nas suas páginas em branco. Naquele tempo acreditava que podia crescer e amar como uma garota normal, viver feliz, ter meus filhos. Um dia, quem sabe, conhecer o príncipe dos meus sonhos. Tão ingênua eu era...

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10 de dezembro, Brasil de 1934

Não consegui dormir hoje, tive pesadelos horríveis, sonhei que estava em Munique e que aqueles olhos estavam me derretendo com seu ódio e maldade. Acho que minha mama tinha razão, talvez todo aquele ódio que as pessoas que não nos suportavam tinham nos seus corações explodirá, e isso fará com que cometam o pior dos pecados... NÃO... Eu tenho que ter esperança, pelos meus amigos, pelos meus conhecidos, por todos aqueles que ficaram para trás e por todos aqueles que estão comigo.

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27 de setembro, Brasil de 1940

Como vai, Diário? Hoje eu comemoraria o meu aniversário, se não fosse pela minha mãe. Resolvi desenterrar você da gaveta, faz três anos que não te conto o que está acontecendo na minha trágica vida. Pois bem, agora que sou uma mulher, tenho todas as reponsabilidades do mundo. Minha mãe não me deixa em paz porque ela teima em me vigiar para eu não tentar fugir de novo. Sim, eu fugi, mas por motivos de força maior.

Alguns dias atrás Vargas (nosso presidente do Brasil, Getúlio Vargas), fez seu discurso “inspirador” via rádio, como faz sem-pre desde que cheguei ao Brasil, porém já faz um ano que o povo brasileiro está em alerta por saber que o continente europeu está

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em plena guerra, e a principal culpada disso é a Alemanha. Pelo menos fiquei mais tranquila ao saber que era ela a ganhadora no momento, mas depois me senti culpada por querer que meu país, que sempre fez coisas ruins, ganhasse só para proteger meus amigos em Munique.

Então, continuando: ele começou informando da situação dos países em guerra e de como a guerra não afetava o Brasil por nós sermos imunes a todo tipo de inimigos desconhecidos, depois começou o seus decretos ridículos de controle de tudo que se referisse a censura. Pessoas que publicassem livros, filmes, mú-sicas, peças teatrais e propagandas que criticassem a porcaria do governo seriam punidas e presas. Na minha opinião, Vargas é um hipócrita mentiroso, que apoia em tudo o Führer Adolf Hitler e todos os homens odiosos desse mundo. Como não nos atacaram ainda, não temos o porquê de entrar na guerra, e ele só quer saber de ser o presidente, ele deixou de se importar com o povo há muito anos, um verdadeiro babaca egoísta. Para falar a verdade, todo o povo brasileiro já sabia que há tempo Vargas simpatizava com as ideias, modo de governar, e com os “geniais feitos” de Hitler na Alemanha.

Além disso, mal pude acreditar no que fiquei sabendo na fa-culdade. Um amigo, também judeu refugiado, me contou que na Alemanha a situação estava cada vez pior. As leis que impediam os judeus de viverem como seres humanos normais foram ainda mais impostas, já há tempo eles tinham que usar o nosso símbolo de fé para serem identificados nas ruas, e o governo agora está fa-zendo campos de concentração para judeus e para todos aqueles que se opõe a Hitler serviriam como mão-de-obra escrava.

Fiquei com tanta raiva dessas notícias e do discurso do pre-sidente que não pude deixar de fazer alguma coisa. Convoquei

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amigos da faculdade, conhecidos e pessoas que não suportam o governo de Getúlio para fazer um pequeno protesto contra o “apoio” do governo na questão de “amizade” do Brasil em relação a Alemanha, e contra ao “Estado Novo”. Fiquei feliz, pois cada vez que tinha ideias para ajudar meus amigos em Muni-que, acabava tendo compaixão com todas as outras na mesma situação deles. Daniel que agora também estava mais velho e crescido, e muito esbelto e charmoso, arrancava sorrisos de todas as mulheres, principalmente o meu, mas odiava admitir isso. E Benji também ficou vigoroso e forte, porém era muito burro e não chamava minha atenção. Só que eu não queria gostar de Daniel, mas cada vez que tentava me afastar dele ele se botava a disposição para colocar em prática qualquer ideia minha para “revolucionar o mundo”, como ele sempre dizia para mim.

Depois do protesto, que havia sido um sucesso a ponto de falarem no rádio, muitos foram presos. Quase me pegaram! Se não fosse por Benji ter acabado com aqueles caras na briga... Fiquei assustada por ter chegado e não ter encontrado Daniel, mas logo quando ele chegou, eu o abracei e perguntei porque havia demorado tanto. Ele me disse que estava ajudando Natha-lia e Thainá a se libertarem dos guardas, eles estavam punindo elas com cassetetes, não podia deixar elas feridas daquele jeito. A coragem dele me espantava, via os dois irmãos sangrando e arfando pela batalha que enfrentaram, e eu apenas suando de nervosa por estar com medo da luta. Me senti culpada por todas aquelas pessoas presas e feridas, eu dei voz a elas e essas vozes se cessaram por culpa minha.

Minha mãe ficou uma besta por eu ter fugido e ter desacatado suas ordens, Daniel e Benji ficaram de castigo por um mês por serem meus cúmplices. Para dizer a verdade, eu me senti melhor

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por ter feito isso quando Daniel me falou que muitas pessoas estavam comentando que queriam lutar mais ainda depois deste protesto e, claro, depois de ver o hipócrita do Vargas falando:

“Estes jovens irão pagar pela difamação e calúnia que fazem contra minha pessoa, por serem levianos e não terem a visão de como será prospero para o Brasil”.

Hahahaha! ...Azizah, A DENFENSORA DE CAUSAS INJUS-TAS, seria um ótimo nome para um livro, quem sabe... Boa noite Diário, tenho que dormir pois este mês será ainda mais longo, terei dias de castigo sem poder ler nenhum livro. Bom, tenho que me preparar para não fazer nada... ou fugir de novo.

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4 de outubro, Brasil de 1940

Como vai Diário, sabe o que é se sentir apaixonada? Ou beijar um homem? Bom, eu finalmente sei o que é amar. Ontem eu e Dani fomos buscar comida no armazém com sempre fazíamos, só que desta vez Benji foi junto, eu estava distraída procurando frutas enquanto Dani perguntava os preços para a atendente, que esbanjava sorrisos para ele. Não estava gostando do que vi, então resolvi chamar atenção com Benji (péssima ideia minha). Fui até Benji, que estava parado na porta, dei um beijo no seu rosto e disse que Daniel podia se virar sozinho nas compras. Daniel percebeu, mas não fez nada, então eu e Benji saímos para passear nas ruas da Lapa enquanto Daniel fazia as compras. Benjamin disse que ficou surpreso por eu estar dando atenção a ele já que eu o achava um burro. Disse que não o achava burro,

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apenas um pouco “impensante demais”, e ele acreditou. Estava cansada de esperar Daniel na porta do armazém e ele não vinha, estava tão distraída que nem percebi quando Benjamin se gru-dou em mim e tentou me beijar. ECA!... Tentei me soltar dele e gritei, mas não adiantou nada.

“–Me larga Benji, está louco? Nunca dei a entender que queria isso com você”. E ele continuou a me agarrar e disse:

“–Não se faça de santinha, Krisgman, eu sei que você quer isso tanto quanto eu”. Gritei mais alto até que Daniel ouviu, e quando viu a cena fez melhor do que ficar irritado com o irmão: ele me soltou dos braços de Benji e deu um soco de esquerda na cara daquele imbecil.

“–Nunca mais se atreva a tocar essa sua boca suja na da Azi, você não ouviu que ela não quer nada com você?’. Não pude dei-xar de ficar nervosa com a situação que tinha gerado em público, correndo o risco de expor todos nós e acabarem nos descobrindo.

“–Pelo menos eu faço alguma coisa Daniel, não fico aí dando atenção para todas, e para aquela que importa nunca faço nada”. Percebi que Daniel esta perdendo a paciência, então intervi:

“–Meninos, vocês estão chamando atenção demais, acho me-lhor pararem com isso. Vão pegar as compras e levem para casa, eu vou embora, pois não quero ficar aqui ouvindo uma palavra sequer de duas crianças que acham que sou um brinquedo!”.

Saí correndo e não pude deixar de ouvir vozes dizendo: “Aquela é a menina que liderou o protesto, não é?!”. “Sim, é ela mesmo!”. “Quem é ela?”. “Nunca a tinha visto!”. Corri mais de-pressa ainda, com raiva e chorando, queria que soubessem meu nome, queria que se lembrassem do meu ato de coragem, mas não, eles apenas se tocavam que eu existia, no momento mais constrangedor da minha vida.

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Cheguei em casa chorando, e meus papas, tio Max e tia Fran-chesca me encheram de perguntas que não foram respondidas. Me tranquei no sótão, o único lugar no qual podia ficar sozinha e pensar vendo a imagem do Cristo Redentor pela janela, na qual os católicos achavam ser a imagem do Criador. Fiquei lá pensando nas palavras de Daniel e de como fui burra em apaixonar por ele nesse momento de tensão. Foi aí que vi Daniel entrando no sótão, me olhando com um olhar culpado, seus cabelos pretos estavam sobre as sobrancelhas e seus olhos verdes refletiam sua culpa.

“–Azi, nunca quis machucá-la, é que eu não consigo me ex-pressar perto de você, você é tão linda e inteligente e suas ideias são brilhantes e... eu te amo desde que a conheci... Jamais tive a intenção magoá-la”.

“–Você nunca beijou uma mulher, nunca amou antes Dani? Como sabe que isso é amor? Por que acha que posso te amar também?”

“–Eu não acharei que você me ama até o momento em que dizer isso da sua boca, e quando você disser isso eu poderei fazer o que sempre sonhei”.

“–Eu... Eu...Eu, é tão difícil falar o que eu não sinto. Está bem, tá... EU TE AMO, DANIEL!”.

Depois destas palavras, não me recordo de nada, só do gosto doce do beijo de Dani, ele me abraçava forte e parecia que eu ia voar de tão bem que me senti. Ficamos nos beijando até ouvir-mos vozes se aproximando, quando me soltei dele e corri para meu quarto. Passei atravessada por tio Max com vergonha do que fiz, deitei na cama é só conseguia pensar no desejo insano de beijar Dani novamente. Será que é ele o meu príncipe? Só sei que o desejo, mesmo sabendo dos riscos, eu apenas o quero.

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15 de dezembro, Brasil de 1940

Olá, Diário. Tenho noticias que não são agradáveis, a guerra continua ainda mais agressiva, e os nazis estão cada vez mais fortes... POR QUÊ? Vivo me perguntando isso desde que cheguei aqui, por que fazem isto conosco? Por que os judeus são maus? O que fizemos para eles nos odiarem tanto?

Tenho andado sozinha ultimamente, escrevendo e pensando no perigo que corro a cada instante. Daniel e Benji já voltaram a se falar, porém Abriana não se conforma com minha relação com Dani, sempre soube que ela sentia algo por seu “irmão”, e agora temo que ela conte para tio Max sobre nosso romance. Tenho medo também de que as pessoas do governo comecem a me perseguir novamente, pois há um mês atrás, após mais um protesto meu contra os nazistas e contra ao governo de Vargas, eu e Dani fomos para casa feito vento para que os guardas não nos prendessem. Quando chegamos em casa, subimos ao nosso lugar favorito, o sótão, e ele aproveitou para falar novamente dos nossos beijos que ficaram apenas em ações, mas não nas palavras.

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“–Você está com duvidas do que sente por mim? Por favor Azi, me diga, preciso saber o que você sente em palavras por mim”. Respirei fundo e o olhei de forma brincalhona, e ele abriu seu lindo sorriso e disse:

“–Não consigo falar sério com você se você ficar sorrindo, sinto que a qualquer momento que você me olhar dessa forma travessa irei te beijar”. Ele falou de um jeito muito sério que achei melhor parar de rir.

“–Daniel, o que você quer que eu diga? Você é a única pessoa que me entende, que me conhece de verdade. Me sentia tão sozinha depois que saí de meu país, você não sabe o que é ficar um tempão escondida dentro de um navio sujo, sobrevivendo a base de água e pão. Eu não gosto de relembrar isso, acabo me lembrando dos meus amigos, da minha straße, de Munique e dele... o homem cheio de ódio em seu olhar”.

“–Azi, eu sei que a sua vida até aqui não foi fácil, mas a de ninguém daqui foi, inclusive a minha. Por perder meus pais muito cedo tive que fazer sacrifícios, e um deles foi aceitar ao longo da minha vida meu lado comunista de herança, e você sabe como são vistas pessoas como eu pela sociedade”. Revirei os olhos indignada por ele fazer eu me sentir uma idiota.

“–Sim, eu sei muito bem Daniel Jasinski, e sabe como eu sei disso? Porque eu sou judia, eu vi a alegria e esperança de crianças como eu sendo transformadas em ódio e dor por pessoas cruéis que só pensam em poder”. Comecei a chorar, não queria lembrar de Munique, era doloroso demais, mas algo me comoveu mais: ver Daniel bravo por me ver assim.

“–Você não tem direito de chorar Azizah Krisgman, você é uma lutadora, força é seu sobrenome... que dizer... seu nome. Você lutou por todos até aqui para ficar como uma coitadinha

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chorando? Claro que não, é por você ser assim que eu me apaixo-nei, seu jeito de acreditar e ter esperança até quando não se tem mais em quem ou no que ter fé... Eu só quero ouvir o que você sente... Quero saber o que te fez me escolher”.

Então eu me abri para ele, deixei todos os meus medos serem libertados e falei tudo o que sentia, raiva, dor, ódio, compaixão e tristeza, mas ao mesmo tempo muita alegria e desejo de viver. Só queria que Dani soubesse que tinha medo de amar por achar que muitas pessoas não teriam ou não tiveram essa oportuni-dade que estávamos tendo.

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20 de dezembro, Brasil de 1940

Depois de ter deixado meus medos para trás e me acolhido nos braços de Daniel, nada mais era importante. Decidimos con-tar a nossa família sobre nós, mas já era tarde demais: Abriana e Benjamin haviam contado para eles antes. Meu papa não aceita nosso romance, Tio Max implorou para que ficássemos, mas papa não quer que eu e Daniel fiquemos na mesma casa, então ele decidiu que iríamos para um esconderijo perto dali.

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30 de setembro, Brasil de 1941

Como vai, Diário? Gostaria de contar como está sendo minha estadia aqui nesse pequeno esconderijo em que me encontro: um tédio! Não posso mais sair pois estão a minha procura depois que descobriram que sou a líder dos protestos. Não posso nem ver mais os Vicentin porque muito seria perigoso. Sinto que cada vez mais estou perdendo minha vida para a solidão, só apenas quando estava lutando pelas pessoas e nos braços de Daniel me sinto completa. Alguns dias atrás, no meu aniversário, Daniel veio me visitar no momento em que papa e mama tinham ido às escondidas roubar verduras do armazém (papa havia perdido o emprego e quase foi preso por o acusarem de ser comunista, e mama também perdeu toda a sua clientela por causa do aumento da pobreza). Daniel me deu de presente um livro com a capa mais linda que eu já vi na vida, era toda vermelha com traços dourados, eu sabia que era roubado, mas não me importava mais. Cada um de nós contou sua versão dos últimos meses como “pri-sioneiro”, e Daniel fez piadas dizendo que ficar presa me fez bem, e que estava já com cabelos brancos. Juro que queria dar um soco no rosto dele nessa hora. Antes de ir embora, nós nos beijamos como se nunca estivéssemos separados. Foi a melhor e a única alegria que tive nesse dia.

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16 de novembro, Brasil de 1942

Olá Diário, sabe o que é viver sem medo das consequências? Não, você não sabe, na verdade ninguém sabe. Porque o ser humano está programado para ficar atento ao perigo, às coisas que o rodeiam e que podem ser uma ameaça. E por que isso? Porque somos como os animais, sabemos quando estamos sendo caçados e quando temos que caçar.

Estou escrevendo isto porque meu ultimo protesto, em agosto, foi deveras marcante, não só para mim, mas para o país inteiro. Vou contar exatamente como aconteceu. Você deve estar se perguntando por que eu fiz mais um protesto sabendo que já descobriram que eu sou a líder deles. Simples. Uma líder pensa como uma guerreira, e eu sou guerreira e não vou fugir da luta só porque descobriram minha identidade. O que mais me lem-bro daquele momento foi de ficar cara a cara com as tropas desse governo ordinário, de olhar seus olhos e ouvir suas palavras fazendo a promessa de que eu iria morrer do pior jeito possível.

Tudo isso aconteceu porque já não aguentava mais ficar trancada naquele cubículo sujo, não via quase mais ninguém. Daniel havia parado de me visitar a pedido meu (pois estava me sentindo deprimida e fraca para lhe dar a devida atenção). Queria ver o mundo, poder viver, ver Daniel, saber o que estava acontecendo lá fora. Foi então que tive a ideia de pedir para meus papas para eu ir no lugar deles buscar a comida, pois eles já estavam se arriscando demais e poderiam acabar sendo

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reconhecidos, e eles acreditaram. Fui sorrateiramente pela manhã até o mercado que tinha há

duas quadras do nosso esconderijo, pois eles só abriam à tarde. Estranhei que não havia sinal de pessoas na rua, apenas o vento levando a poeira. Quando estava pegando maçãs, avistei um rádio e liguei para saber as noticias do governo hipócrita que comandava o Brasil, e que agora estava fazendo sua guerra na Europa. Aumentei o volume do rádio, e comecei a prestar mais atenção no que estavam dizendo. Fiquei espantada ao ouvir que o Brasil declarou guerra aos alemães.

Indignei-me com todo aquele discurso, não podia aceitar que as pessoas ainda acreditavam em Vargas, mesmo ele sendo um grande manipulador e dissimulado. Elas não percebiam que ele estava se contradizendo, estava sendo falso e louco de querer entrar na guerra, para ter o mesmo resultado que outros países tiveram. Nada.

O que mais me deu raiva foi perceber que o presidente não faria isso sem o apoio do povo brasileiro. Contudo, deduzi que ele tinha, não só o apoio, mas também tropas para atacar. Me dei conta de que ainda estava no mercado, então peguei um saco de batatas e o estoquei de comida até a boca, e saí de lá como uma tempestade, rápida, furiosa e levando tudo. Novamente com meu papas, lhes dei a enorme quantidade de comida que havia pego, e comecei a contar o que descobri pois eles precisavam entender a gravidade da situação para que me deixassem fazer algo que impedisse essa insanidade. Depois de contar-lhes tudo eles ficaram sem chão, e não sabiam o que fazer ou onde esconder o grande medo estampado nos seus olhos. Nós havíamos fugido de um país para evitar a guerra e o sofrimento, mas adiantou de quê? Por que fugir se ela vem atrás de nós trazendo sua adorável

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amiga, Dona Morte? Quando finalmente chegamos num acordo, meus papas e eu fomos até a casa dos Vicentin, na qual nunca havíamos entrado, mas fomos muito bem recebidos ao chegar lá. Se não fosse por Abriana me olhando com olhar de raiva...

Não imaginava que minha primeira conversa com tio Max, depois de tudo que aconteceu, seria sobre este fato odioso. Quando contei a ele e à sua família que aconteceu algo estranho, não ficaram surpresos, e disseram que já sabiam pois Daniel estava liderando um grupo de judeus que apoiavam a ideia de NÂO À GUERRA. Benjamin me explicou que não só Daniel, mas ele também havia conseguido reunir um grupo de refugiados políticos que estavam escondidos no Brasil. Então, por fim, tio Max me deu a explicação completa: eles estavam reunindo não só pessoas que apoiavam a causa para fazer um protesto, mas também aquelas que eram vítimas da guerra e de seus feitos horrorosos, porque só assim o governo veria como a guerra iria trazer desgraça para o Brasil. Fiquei perplexa por ver como eles mudaram, estavam mais fortes e esperançosos, pareciam guerreiros. E depois de tudo que fizeram por nós, é isso mesmo que eles são, guerreiros. A porta foi aberta com força e todos nós ficamos alarmados, era Daniel, ele estava com um menino que parecia ter uns nove anos de idade, tinha machucados e chorava.

! ֲאדֹונָי , אדני– “

1 O que aconteceu com ele? Daniel me diga para eu poder ajudar... Daniel ... Danieeeeeel!”. Ele não me olhava e não dizia uma palavra sequer, estava com raiva de mim, eu acho.

“–Tia Franchesca me traga alguns panos úmidos e uma bacia de água, e se tiver álcool, traga também”. Franchesca fez que sim com a cabeça e correu para pegar os objetos, enquanto isso

1. “Meu senhor!”, em tradução livre do hebraico.

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Daniel colocou o menino no sofá e o beijou na testa, se afastou e olhou nos meus olhos de um jeito que me fez sentir mal.

“–O menino se chama Caleb, ele ficou de tocaia no Palácio do Catete como sempre fazia para nos ajudar, mas desta vez os guardas o descobriram e, como punição, pisaram em cima dele”. Não consegui conter a raiva naquele momento, estava a ponto de sair dali e esmurrar cada um desses cretinos.

“–Não adianta ter raiva Azizah, você mesma sabe que o que precisamos fazer para eles pagarem, é usar a nossa voz e força de vontade. É só com elas que conseguiremos fazer as coisas mudarem, mas acho que esqueceu-se disso no momento em que se escondeu no seu ‘casulo’”. Foi então que percebi o porquê de Daniel estar daquele jeito comigo, ele estava se sentindo deixado de lado por mim, bravo por ter o abandonado neste momento difícil. Franchesca chegou com os utensílios para a limpeza dos ferimentos, comecei a limpar o sangue, pelo peito que estava bem machucado, e o menino gritou de dor.

“–Ei Caleb, é esse seu nome, certo? Vai ficar tudo bem, acre-dite. Eu jamais faria mal a uma pessoa que teve a grande cora-gem que você demonstrou, se considere meu herói, ou melhor, nosso herói”. Caleb apenas sorriu e deixou que eu continuasse a cuidá-lo. Depois disso o fiz adormecer e voltei para a sala onde todos estavam a minha espera. Tio Max começou a me agrade-cer e dizer que ainda continua uma mulher com um enorme coração, disse que não fiz nada mais que ajudar, e então meu papa interviu e guiou a conversa para o verdadeiro motivo que nos tinha levado ali.

“–Minha filha, eles querem que você faça parte do protesto, mas não acho que deva”. Ele tinha um olhar pidão para mim, como se soubesse que eu já estava decidida a aceitar (e eu es-

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tava), então Benjamin disse coisas tão inteligentes e espertas que nunca pensei ouvir de sua boca:

“–Não acho que seja por dever que Azizah tenha que estar no protesto, mas porque precisamos de esperança, de uma imagem que mostre força e fé no que acreditamos, agora mais do que nunca. E todos sabemos que foi ela que deu início a isso tudo e as pessoas já a conhecem, isso faria com que conseguíssemos mais gente e assim poderíamos fazer o protesto na próxima come-moração que o governo fizer”. Concordei, e admirei Benjamin por ter mudado tanto também. Daniel deu a sua opinião sobre minha participação comandando todo o protesto, eu achei que ia ficar bravo porque até o momento ele era o líder.

“–Não concordo com que Azizah participe do protesto! Mas eu só mudarei minha opinião se ela me provar que pode é capaz de voltar a ser aquela Azizah Krisgman que tinha forças para lutar até com um Dragão”. Me senti provocada e decepcionada por ele achar que eu não era mais a mesma pessoa, mas sempre fui e nunca mudei, contudo sei que tive medo, e o medo impede as pessoas de lutar. Foi isso o que aconteceu comigo.

“–Eu não preciso provar nada, seu mandão! Eu continuo a mesma pessoa impaciente, que detesta seus poemas infantis sobre meus olhos grandes, e que não vê a hora de chutar algumas bundas do governo. E quer saber, se você quer ser o líder o pro-blema é seu, não faço questão de liderar, mas quero participar”.

E assim, todos concordaram que eu participaria como líder e representante do grande protesto NÃO À GUERRA. Depois de me por à disposição da organização de tudo, me aproximei mais de Daniel e recuperei sua confiança, era tão bom voltar a tê-lo por perto! Estávamos fazendo cartazes e treinando para falar (ou gritar...), sabíamos também que tentariam nos impedir

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de chegar perto do Palácio do Catete. Então tivemos a ideia de entrar como faxineiros e ficar até a o momento do discurso.

Quando chegou o dia, conseguimos passar pelos guardas do Palácio sem que desconfiassem. Lá dentro, procuramos por uma porta atrás das sete salas do hall principal, como Caleb havia nos informado. Conseguimos encontrar a que dava para um túnel que terminava na outra quadra. Contávamos com que ninguém utilizasse essa saída naquela noite. Foi por lá que fize-mos a passagem para outros três grupos entrarem, outros iriam cercar o Palácio salão no momento em que todos os convidados já estivessem dentro.

O protesto começou logo após as palavras de Vargas sobre como seria a entrada na guerra, e com o comandante da esqua-drilha azul, Fortunato Câmara de Oliveira, afirmando que iria mostrar que o lema deles, “Senta a pua!” era para ser levado a sério.

Depois disso, ouve o grande acontecimento, marchamos, gritamos, mostramos nossos rostos para o governo presente e deixamos nossas vozes ecoarem por todo salão. Vinham vozes de fora também, já haviam cercado o local, estávamos fortes, gri-tando e debatendo nossos direitos, afirmando que não deveria haver guerra. Os soldados que estavam lá dentro começaram a bater nos manifestantes com cassetetes, mas muitos deles foram derrubados pela incrível quantidade de pessoas que estavam a nosso favor. Daniel vinha logo atrás de mim fazendo barreira para que ninguém tentasse me atacar enquanto falava. Foi então que começamos a ouvir os tiros lá fora, haviam chamado reforços das Forças Armadas, e todos os soldados começaram com poder de fogo. As pessoas gritavam e tentavam fugir, mas os guardas estavam atirando sem piedade, eu tentei me soltar de um soldado que havia me puxado para baixo da mesa onde

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estava, mas ele era forte. Gritei por Daniel, mas ele não estava em lugar algum. Foi então que o soldado começou a me chutar e a me bater, vieram em muitos para cima de mim, só me lembro de querer morrer naquele momento. Percebi que a dor aumentava, e quanto mais os guardas me batiam eu ia perdendo os sentidos. Só depois que estava quase desmaiando vi Daniel tentando me puxar e me pegar nos seus braços. Aí apaguei.

Quando acordei, estava na casa dos Vicentin novamente e sentia dor e frio, mas não tanto como aquela que há horas quase me matava. Estava deitada no quarto de Abriana e ela me olhava com ironia, sentada em sua cadeira.

“–Que engraçado Krisgman! Deve ser ruim sentir a dor de apanhar, não é? Mas acho que é pior saber que muitas pessoas morreram por uma única mulher tão insignificante e inútil como você. Bom, acho que agora nesse momento eu teria mais chances com o Daniel que você, mas ele é tão tapado que não percebe a garota desqualifica que você é, essa pessoa que não entende nada da vida”. Sentia tanta dor naquele momento que não tinha forças para ficar brava com as palavras nojentas de Abriana.

“–Não sei por que me odeia tanto, mas eu sinto pena em relação a você. Enquanto você diz que eu não sei nada da vida, eu estava lutando pela vida de muitas pessoas, e que eu saiba Abriana, você sempre teve medo de lutar até pela sua”. Então ela saiu assim que Daniel entrou no quarto.

“–Você está melhor?... Sei que quer saber o que ocorreu, mas ainda está muito fraca para ouvir essa história.” Me levantei com muito esforço e implorei para que ele me contasse o que tinha acontecido depois que desmaiei.

“ –Tudo bem, vou lhe contar tudo. Há milhares de pessoas presas, feridas e mortas neste momento. Algumas conseguiram

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escapar, mas Azi... metade dos manifestantes desapareceram de-pois do protesto. Estão falando do protesto nos jornais e na rádio, o governo está louco de raiva de todos nós, eu consegui sair vivo de lá por muito pouco. Quando estava levando você nos meus braços até a passagem do túnel, com um pequeno grupo que havia restado dos manifestantes, alguns guardas nos seguiram e estavam atirando... só eu e você saímos de lá vivos”.

Chorei muito e não conseguia assimilar a crueldade que fizeram com todas aquelas pessoas, estava com ódio mais do que nunca no coração. Foi então que me lembrei de Caleb e Benjamin e todos os outros.

“–Por favor Daniel, me diga que eles estão bem! Que estão vivos e à salvo!”. Daniel me olhou triste e começou a chorar.

“–Mataram o Caleb, Azi... eu queria muito ter trazido o corpo dele conosco para dar-lhe um velório digno... mas quando encon-trei você à beira da morte, soube que ainda podia salvar a sua vida pelo menos”. Enquanto Dani chorava fui até ele mancando para lhe abraçar. Ele continuou:

“–Benjamin levou um tiro na perna... Está dormindo agora pois o ferimento foi muito sério... Não podemos nem levar ele ao hos-pital. Ele não pode morrer! Não posso perder meu irmão!”. Beijei Daniel e chorei junto com ele, e ficamos lá até adormecermos na nossa tristeza.

Passaram-se dias, e todos os Vicentin e Krisgman decidiram se mudar para o nosso esconderijo, onde ficaríamos lá para nos refugiarmos desse mundo cruel. E aqui estou eu. Viva e trancada, mas junto da minha família, lugar onde sempre quis estar. E ao lado de Daniel, claro!

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10 de dezembro, Brasil de 1943

Passou-se um longo e doloroso ano, o pior de ficar trancada e não poder sair para ver o mundo, é saber que ficar trancada é melhor do que estar lá fora. Sinto saudade de tudo, sinto dor, sinto fraqueza, às vezes acho que vou desistir, mas fico pensando em tudo o que aguentei para estar viva aqui até agora.

Sinto que o mundo está perdido, que o Brasil entrando na guerra não vai fazer diferença, mas eu estava errada. Agora os países perdedores estão começando a virar a guerra para outro rumo, um rumo em que homens como Hitler não têm o direito de existir. Espero que quando essa guerra acabar eu possa voltar para Munique com Daniel e todos os Krisgman, para podermos viver novamente felizes. Acho que seria incerto afirmar que o futuro será outro, que mulheres terão novamente seu direito de votar, que todos possam ser livres sem controles e ordens de ninguém, que o amor possa ser maior do que o ódio e que possa prevalecer até o fim com as pessoas. E que esses valores se espalhem por todo o mundo para que crianças e adultos como eu não precisem mais perguntar “Por que eu? Por que a culpa é minha? Por que eu nasci assim?”. Eu demorei para perceber que a culpa não era minha nem das pessoas que nos causaram dor. A culpa é dele que sempre cultivou o medo, a raiva, a maldade, a dor e o sofrimento: o ÓDIO, o pior sentimento de todos, pois

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ele corrói todos os seus sonhos e esperanças, mas eu nunca vou deixar que ele faça isso co...

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epílogo

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22 de março, Polônia de 1945

Meu nome e Daniel Jasinski, você provavelmente vai me re-conhecer pela história da Azizah, ela contou tudo o que pensava e sentia por mim ao longo dos anos, infelizmente ela não teve tempo de contar nosso futuro. É difícil dizer e pensar que as famílias Krisgman e Vicentin não estão mais entre nós.

Nossas famílias foram descobertas no Brasil, por denúncia de minha meia-irmã Abriana, que achava que nos denunciando estaria a salvo daqueles monstros, mas ela também deve de ter sido morta por aqueles nazistas imundos. O governo de Vargas nos deportou a mando de Hitler para a Polônia, onde fomos separados e levados para campos de concentração. Não sei

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o que aconteceu com os outros além de mim, Azizah e Tio Max. Nós fomos para o campo de Auschwitz-Birkenau, na Po-

lônia, onde tudo era representado com a visão do inferno, tinha cheiro de morte, onde não se via saída a não ser a própria morte. Logo que chegamos, Tio Max foi levado para uma das câmaras de gás, onde foi morto. Chorei por semanas até que percebi que Azizah ainda estava viva e precisando de mim.

Mas se você estivesse lá, veria como ela aguentava firme, como era um lutadora, inúmeras vezes vi ela indo para o consul-tório de um médico que tinha o apelido de “Anjo da Morte”, ela sempre voltava machucada, e me dizia que eles faziam alguns experimentos com ela, e que a cena que se via naquele lugar era assustadoramente cruel, pessoas sendo exploradas como se fossem experimentos científicos e castigadas por serem o que são, brutalmente.

Ela aguentou por muito tempo essas torturas, me dizia que tinha planos pro nosso futuro, e que iríamos ter uma grande família novamente... Mas foi morta. Foi num dia que tentou fugir dos soldados que a traziam de volta para o campo, ela lutou, debateu-se e fincou em um deles um objeto que havia furtado do consultório do tal médico monstruoso, fez tudo para se soltar e saiu correndo até o portão, mas a mataram, antes mesmo dela conseguir sentir as grades.

Nunca duvidei que ela pudesse fazer isso, Azizah era forte e lutava pelo que queria e pensava, tenho orgulho dela ter sido assim.

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25 de maio, Polônia de 1945

Não acreditei quando finalmente fui salvo daquele lugar horrível, a Alemanha havia perdido a guerra e os soviéticos tomaram posse junto com todos os países que faziam parte dos Aliados, os russos ficaram espantados com nosso estado esque-lético e sem vida. Quando eu estava finalmente saindo daquele lugar, um dos soldados russos me entregou um caderno com capa de couro onde se lia “Diário de Azizah Krisgman”, ele disse que talvez eu conhecesse a mulher, pois tinha o mesmo sobre-nome que eu. Não pude conter minha felicidade e emoção em saber que Azizah tinha guardado esse diário por tanto tempo. Ele estava meio destruído, mas ainda assim dava para entender.

Grande mulher foi Azizah Krisgman, eu a amava. Só você estando no meu lugar para saber o tamanho do meu amor por ela. Mas depois de ler todo o diário eu soube que ela também me amou e que eu deveria ir para Munique, onde Azizah sonhou estar novamente um dia comigo e com nossa família para vivermos em paz, e para talvez encontrar novamente seus antigos amigos.

Eu sei que Azizah deixou uma coisa que muitos não con-seguiram deixar nessa triste e sanguinária guerra. Foram suas lembranças e histórias de quem ela amou e de quem a amou.

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sobre A AutorA

Milleny Dubiel

É uma leitora voraz de 14 anos, que adora livros de ação, aventura, romance, com fatos reais ou fictícios. Estudou na Escola Municipal de Ensino Funda-mental Carlos Drummond de Andrade durante 9 anos. Ela mora em Canoas, no Rio Grande do Sul, com seus pais.

Sua paixão por história vem desde pequena. Sempre teve o incentivo à lei-tura vindo de sua família. Sua estante de livros foi um dos seus primeiros presentes que ganhou quando tinha meses de vida, pois sua mãe a usava para por suas roupas na época. A partir dali, ela nunca mais usou aquela estante para por roupas, apenas para seus livros e suas histórias.

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Nem todas as garotas querem uma boneca ou roupas de presente. Azizah Krisgman, por exemplo, teve uma vida cheia de preconceito e repressão durante sua luta e resistência contra o poder Nazista e Varguista. Ela sacrificou muitas coisas para conseguir seu único presente: ter seus direitos e sua liberdade para poder viver em paz. Mas antes disso teve que passar por muitos obstáculos em sua vida. Começando pelo fato de ter tido que sair com a família de sua terra natal, Munique, na Alema-nha, quando era uma criança. E tudo isso pelo simples fato de ser discriminada por ter nascido em uma família judaica.

Vir para o Brasil foi o que deu início a toda a sua história de heroína e refugiada, e também de seu amor pelo jovem Da-niel Jasinski. Será que, ao longo do tempo, ela conseguiu viver uma grande história de amor naqueles tempos difíceis? Será que realmente venceu todos esses obstáculos ao longo da sua vida? Talvez nem ela pudesse lhe afirmar se conseguiu...

“O Diário de Azizah” é uma obra fictícia. Foi o resultado de um trabalho escolar do 9º ano do Ensino Fundamental realizado na disciplina de História da EMEF Carlos Drummond de Andrade, do município de Canoas (RS). Contou com a orientação e o incentivo da professora Franciele Becher.