o efeito de real

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  • 7/23/2019 O Efeito de Real

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    ROLAND BARTHES o rumor da lingua

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    Esta obra foi publicada originalmente em francs com o ttuloLE BRUISSEMENT DE LA LANGUE por ditions du Seuil. Paris.

    Copyright ditions du Seuil, 1984.Copyright 2004. Livraria Marlins Fontes Editora Ltda..

    So Paulo, para a presente edio.

    ,,fraduo

    tt flO LARANJEIRA

    Reviso da traduo

    Andra Stahel M. da SilvaAcompanham ento editorial

    Luzia Aparecida dos SantosRevises grficasLeticia Braun

    Mauro de BarrosDinarte Zorzanelli da Silva

    Produo grfica

    Geraldo AlvesPaginao/Fotolitos

    Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Banhes, Roland, 1915-1980.

    O rumor da lngua / Roland Barthes : prefcio Leyla Pcrrone-

    Moiss ; traduo Mario Laranjeira ; reviso dc traduo AndrcaStahel M. da Silva. - 2ed. - So Paulo : Martins Fontes, 2004. -

    (Coleo Roland Barthes)

    Ttulo original: Le bruissement de la langue.

    Bibliografia.

    ISBN 85-336-1986-3

    1. Anlise do discurso - Discursos, ensaios, conferncias 2. Filo

    logia - Discursos, ensaios, conferncias 3. Semitica - Discursos,

    ensaios I. Perrone-Moiss, Leyla. II, Ttulo. III. Srie.

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramaiho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil

    Tel. (11)3241.3677 Fax (11 ) 3105.6867e-mail: [email protected] http://tvvcw,martinsfontes.com.br

    Is edio

    04-3942 CDD-401.41

    ndices p ara catlogo sistemtico:1. Filologia : Lingustica 401.41

    mailto:[email protected]://tvvcw%2Cmartinsfontes.com.br/mailto:[email protected]://tvvcw%2Cmartinsfontes.com.br/http://tvvcw%2Cmartinsfontes.com.br/http://tvvcw%2Cmartinsfontes.com.br/http://tvvcw%2Cmartinsfontes.com.br/mailto:[email protected]
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    O EFEITO DE REAL

    Quando Flaubert, descrevendo a sala onde se encontra a se

    nhora Aubain, patroa de Felicite, diz-nos que um velho piano su

    portava, sob um barmetro, um monte piramidal de caixas1;

    quando Michelet, contando a morte de Charlotte Corday e rela

    tando que, na priso antes de o carrasco chegar, recebeu a visita

    de um pintor que lhe fez o retrato, acaba por dizer que ao cabo

    de hora e meia batem suavemente pequena porta que estava

    atrs dela2; esses autores (entre muitos outros) produzem nota

    es que a anlise estrutural, ocupada em extrair e sistematizar asgrandes articulaes da narrativa, ordinariamente e at agora, tem

    deixado de parte, quer por excluir do inventrio (no falando de

    les) todos os pormenores suprfluos (com relao estrutura),

    quer por tratar esses mesmos pormenores (o prprio auto r destas

    1. G. Flaubert, Un coeur simple,Trois Contes

    , Paris, Charpentier-Fasquelle, 1893, p. 4.2. J. Michelet, Histoire de France,La Rvolution>t. V, Lausanne, Rencontre, 1967, p. 292.

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    linhas tentou faz-lo3) como enchimentos (catlises), afetados dc

    um valor undo na l indireto, na medida em que, somando-se uns

    aos outros, constituem algum ndice de carter ou de atmosfera,

    e assim podem finalmente ser recuperados pela estrutura.

    Parece, entretanto, que, se a anlise se quer exaustiva (e que

    valor poderia ter um mtodo que no desse conta da integralidade

    de seu objeto, isto , no caso presente, de toda a superfcie do te

    cido narrativo?), buscando atingir, para designar-lhe um lugar na

    estrutura, o detalhe absoluto, a unidade insecvel, a transio fu

    gitiva, deve fatalmente encontrar notaes que nenhuma funo(mesmo a mais indireta que seja) permite justificar: essas notaes

    so escandalosas (do ponto de vista da estrutura), ou, o que mais

    inquietante, parecem concesses a uma espcie de luxoda narra

    o, prdiga a ponto de dispensar pormenores inteis e elevar

    assim, em algumas passagens, o custo da informao narrativa.

    Porque, se na descrio de Flaubert , a rigor, possvel ver na no

    tao do piano um ndice do padro burgus da sua proprietria

    e, na das caixas, um sinal de desordem e como que de deserana

    prprias a conotar a atmosfera da casa Aubain, nenhuma finali

    dade parece justificar a referncia ao barmetro, objeto que no

    nem descabido nem significativo e no participa, portanto, pri

    meira vista, da ordem do notvel; e, na frase de Michelet, mesma

    dificuldade para dar conta estruturalmente de todos os detalhes: ocarrasco sucede ao pintor, s isso necessrio histria; o tempo

    que durou a pose, a dimenso e a posio da porta so inteis

    (mas o tema da porta, a suavidade da morte que bate tm valor

    simblico indiscutvel). Mesmo que no sejam numerosos, os por

    3. Introduction lanalyse structurale du rcit, Communications, n? 8, 1966, pp. 1-27.

    (Retomado na col. Points Essais, Ed. du Seuil, 1981.)

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    menores inteis parecem pois inevitveis: toda narrativa, pelo me

    nos toda narrativa ocidental de tipo corrente, possui alguns.

    A notao insignificante4 (tomando-se a palavra no sentido

    estrito: aparentemente subtrada estrutura semitica da narrati

    va) aparenta-se com a descrio, mesmo que o objeto s parea

    denotado por uma nica palavra (na realidade, a palavra pura no

    existe: o barmetro de Flaubert no citado em si; ele situado,

    tomado num sintagma ao mesmo tempo referencial e sinttico);

    assim fica sublinhado o carter enigmtico de qualquer descrio,

    a respeito da qual preciso dizer uma palavra. A estrutura geralda narrativa, aquela, pelo menos, que at agora tem sido analisada

    aqui e ali, aparece como essencialmentepreditiva; esquematizando

    ao extremo, e sem levar em conta numerosos desvios, atrasos, revi

    ravoltas e decepes que a narrativa impe institucionalmente a esse

    esquema, pode-se dizer que, a cada articulao do sintagma narrati

    vo, algum diz ao heri (ou ao leitor, pouco importa): se voc agir

    de tal modo, se escolher tal parte da alternativa, eis o que vai obter(o carter relatadodessas predies no lhes altera a natureza prti

    ca). Bem diferente a descrio: no tem qualquer marca preditiva;

    analgica, sua estrutura puramente somatria e nao contm esse

    trajeto de escolhas e alternativas que d narrao um desenho de

    vasto dispatching, dotado de uma temporalidade referencial (e nao

    mais apenas discursiva). Essa uma oposio que, antropologica-

    mente, tem a sua importncia: quando, sob a influncia dos traba

    lhos de Von Frisch, comeou-se a imaginar que as abelhas pudessem

    ter uma linguagem, imps-se o fato de que, se esses animais dispu

    nham de um sistema preditivo de danas (para reunir o alim ento),

    4. Nesse breve apanhado, no se claro exemplos de notaes insignificantes, pois o insigni

    ficante no pode denunciar-se seno no nvel de uma estrutura muito vasta: citada, uma no

    tao no nem sgnificante nem insignificante; -lhe necessrio um contexto j analisado.

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    nada a se aproximava de uma descrio1.A descrio aparece assim

    como uma espcie de prprio das linguagens ditas superiores, na

    medida, aparentemente paradoxal, em que ela no se justifica por

    nenhuma finalidade de ao ou de comunicao. A singularidade

    da descrio (ou do pormenor intil) no tecido narrativo, a sua so

    lido, designa uma questo da maior importncia para a anlise es

    trutural das narrativas. a seguinte questo: tudo, na narrativa, seria

    significante, e seno, se subsistem no sintagma narrativo alguns in

    tervalos insignificantes, qual , definitivamente, se assim se pode

    dizer, a significao dessa insignificncia?Primeiro preciso lembrar que a cultura ocidental, num a de

    suas correntes maiores, no deixou de modo algum a descrio

    fora do sentido e a dotou de uma finalidade perfeitamente reco

    nhecida pela instituio literria. Tal corrente a retrica e a fina

    lidade o belo: a descrio teve, por muito tempo, uma funo

    esttica. A Antiguidade bem cedo juntara aos dois gneros expres

    samente funcionais do discurso, o judicirio e o poltico, um tercei

    ro gnero, o epidtico, discurso de aparato, destinado admira

    o do auditrio (e no sua persuaso), que continha em germe

    - fossem quais fossem as regras rituais de seu emprego: elogio de

    um heri ou necrologia - a prpria idia de uma finalidade est

    tica da linguagem; na neo-retrica alexandrina (no sculo II d.C.)

    houve um gosto pronunciado pela kphrasis>trecho brilhante, destacvel (com finalidade em si mesma, portanto, independente de

    qualquer funo de conjunto), com o objetivo de descrever luga

    res, tempos, pessoas ou obras de arte, tradio que se manteve atra

    vs da Idade Mdia. Nessa poca (conforme sublinhou Curtius56),

    5. F. Bresson, La signification,Problmes depsycho-linguistijueyParis, PUF, 1963.

    6. E. R. Curtius, La littrature europene et le Moyen ge latin,Paris, PUF, 1956, cap. X.

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    a descrio no est subordinada a nenhum realismo; pouco im

    porta a sua veracidade (ou mesmo a sua verossimilhana); nao h

    nenhum acanhamento em colocar lees ou oliveiras numa regio

    nrdica; s conta a injunlo do gnero descritivo; a verossimi

    lhana aqui no referencial, mas abertamente discursiva: so as

    regras genricas do discurso que fazem a lei.

    Se dermos um salto at Flaubert, observa-se que a finalidade

    esttica da descrio ainda fortssima. Em Madam e Bovary>a des

    crio de Rouen (referente mais real impossvel) est submetida s

    injunes tirnicas do que se deve chamar de verossimilhana esttica, como do prova as correes feitas nesse trecho no decorrer

    de seis redaes sucessivas7. V-se primeiro que as correes nao

    procedem de modo algum de uma considerao mais acurada do

    modelo: Rouen, vista por Flaubert, permanece sempre a mesma,

    ou, mais exatamente, se muda um pouco de uma para outra ver

    so unicamente por ser necessrio ajustar uma imagem ou evitar

    uma redundncia fnica reprovada pelas regras do belo estilo, ou

    ainda encaixar uma contingentssima expresso feliz8; v-se em

    seguida que o tecido descritivo, que parece primeira vista dar

    uma grande importncia (pela dimenso, pelo cuidado com o por

    menor) ao objetoRouen, na realidade no passa de um fundo des

    tinado a receber as jias de algumas metforas raras, o excipiente

    neutro, prosaico, que veste a preciosa substncia simblica, comose, em Rouen, s importassem as figuras de retrica a que se pres

    ta a vista da cidade, como se Rouen s fosse notvel por suas subs-

    7. As seis verses sucessivas desta descrio so dadas por A. Aibalat, Le travail du style, Pa

    ris, Armand Colin, 1903, pp. 72 ss.

    8.Mecanismo bem localizado por Valry, em Littrature, quando comenta o verso de Bau

    delaire: La servante au grand coeur... (Este verso vetoa Baudelaire... E Baudelaire con

    tinuou. Enterrou a cozinheira num gramado, o que contra o costume, mas conforme rima, etc.)

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    cia de Cereais. Eu espero, desejo ardentemente a Abstinncia das

    Imagens, pois toda Imagem m. A boa Imagem sub-repticia-

    mente m, envenenada: ou falsa, ou discutvel, ou inacreditvel,

    ou instvel, ou reversvel (at os elogios so para mim um ferimen

    to). Por exemplo: toda honraria que lhe conferem instituio de

    imagem; devo, portanto, recus-la; mas, fazendo isso, instituo uma

    imagem, a de aquele-que-recusa-as-honrarias (imagem moral, estoi

    ca). Logo, no se trata de destruir as imagens, mas de descol-las,

    distanci-las. Na Meditao Tao, h uma operao inicitica, que

    o Wang-Ming: perder a conscincia do Nome (digo: da Imagem).A Abstinncia do Nome o nico problema real desse Colquio.

    Imagino o Wang-Ming sob a forma de duas vias possveis, a que dou

    nomes gregos: Epokh,a Suspenso,Acolouthia>o Cortejo.

    * * *

    A Epokh, noo cptica, a suspenso do julgamento. Eu

    digo: suspenso das Imagens. A suspenso no a negao. Essa

    diferena era bem conhecida pela teologia negativa: Se o inef

    vel aquilo que no pode ser dito, ele cessa de ser inefvel pelo

    fato de se dizer alguma coisa a respeito nomeando-o assim. Se

    recuso a Imagem, produzo a imagem daquele que recusa as Ima

    gens, santo Agostinho recomendava evitar essa aporia pelo siln

    cio. Seria preciso obter de si mesmo um silncio das Imagens. Isso

    no significa que tal silncio seria uma indiferena superior, a

    serenidade de um a dominao: aEpokh, a suspenso, permanece

    umpthos: eu con tinuaria a ficar comovido(pelas imagens), mas

    no atormentado.

    i f . i f . i t .

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    Eis aqui uma forma espontnea dessa Epokh: sinto-me in

    capaz de indignar-me contra idias. No h dvida de que pos

    so irritar-me, excitar-me - ou talvez me apavorar - com idias es

    tpidas; as idias estpidas formam uma dxa, uma opinio

    pblica, no uma doutrina. Na intelligentsia, por definio, no

    h idias estpidas; o intelectual faz profisso de inteligncia (os

    seus procedimentos que por vezes so pouco inteligentes). Essa es

    pcie de equanimidade com relao s idias compensada por

    um a forte sensibilidade, positiva ou negativa, para com os homens,

    as personalidades: Michelet opunha o esprito guelfo (mania da Lei,

    do Cdigo, da Idia, m undo dos Legistas, dos Escribas, dos Jesu

    tas, dos Jacobinos - eu acrescentaria: dos Militantes) ao esprito gi-

    belino, nascido de uma ateno para o corpo, os laos de sangue,

    ligado a um devotamento do homem para o homem, segundo um

    pacto feudal. Sinto-me mais gibelino do que guelfo.

    * * *

    Um meio de eludir a Imagem , talvez, corromper as lingua

    gens, os vocabulrios; a prova de que se chega a isso suscitar a in

    dignao, a reprovao dos puristas, dos especialistas. C ito os outros,

    aceitando deform-los: fao deslizar o sentido das palavras (reme

    to aqui ao Montaigne, de Antoine Compagnon). Assim, para a se

    miologia, que ajudei a constituir, fui o meu prprio corruptor, passei para o lado dos Corruptores. Poder-se-ia dizer que o campo

    dessa Corrupo a esttica, a literatura: catstrofe uma pala

    vra tcnica em matemtica, em R. Thom; posso empregar mal a

    palavra Catstrofe, que se torna ento algo belo. S h His

    tria porque as palavras se corrompem.

    Falei do combate das linguagens, do Combate das Imagens

    (Mkhe). Disse que a principal deriva para longe desses combates

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    era a suspenso: Epokh. H outra perspectiva de libertao: Aco-

    louthia.Em grego,Mkhedesigna o combate em geral, mas tambm,

    num sentido tcnico, que diz respeito lgica: a contradio nos

    termos (reconhece-se a a armadilha em que, combatendo pelalinguagem, tenta-se prender o outro); nesse sentido, M khetem

    um antnimo,Acolouthia: a superao da contradio (interpreto:

    a retirada da armadilha). Ora, Acolouthia tem um outro senti

    do: o cortejo de amigos que me acompanham, me guiam, aos quais

    me abandono. Gostaria de designar por essa palavra o cam po raro

    em que as idias se penetram de afetividade, em que os amigos,

    pelo cortejo com que acompanham a nossa vida, permitem-nos

    pensar, escrever, falar. Esses amigos: eu penso por eles, eles pensam

    na minha cabea. Nessa cor do trabalho intelectual (ou de escri

    tura) existe algo de socrtico: Scrates mantinha o discurso da Idia,

    mas o seu mtodo, o passo-a-passo de seu discurso, era amoroso;

    para falar, ele precisava da cauo do amor inspirado, do assenti

    mento de um amado cujas respostas marcavam a progresso do

    raciocnio. Scrates conhecia aAcolouthia; mas (a isto eu resisto)

    mantinha nela a armadilha das contradies, a arrogncia da ver

    dade (no de espantar que ele tenha, para terminar, sublima

    do recusado Alcibades).

    1977, Colquio de Cerisy-la-Salle.

    Extrado de Prtexte: Roland Banhes,

    col. 10/18. U.G.E., 1978.

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