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O EVANGELHO DE LUCAS
frei Carlos Mesters, carmelita
1ª PARTE: O LIVRO 1. Quem era Lucas e para quem escreveu o seu evangelho? 2. O que levou Lucas a escrever o seu evangelho? 3. Divisão do Evangelho de Lucas
2ª PARTE: O CONTEÚDO PRÓLOGO: Lucas 1,1-4): Verificar a solidez dos ensinamentos 1º BLOCO: Lucas 1,5-2,52: Nascimento e Infância de João e de Jesus 2º BLOCO: Lucas 3,1-4,44: De João Batista para Jesus 3º BLOCO: Lucas 5,1-9,50: Jesus forma uma nova comunidade 4º BLOCO: Lucas 9,50 a 19,27: A longa caminhada da Galileia até Jerusalém 5º BLOCO: Lucas 19,29 a 21,38: A última semana de Jesus em Jerusalém 6º BLOCO: Lucas 22,1 a 24,53: Paixão, Morte e Ressurreição
3ª PARTE: OS DESTAQUES 1. As preferências de Lucas 2. O que Lucas informa sobre Maria, a Mãe de Jesus 3. A Transfiguração de Jesus 4. A Missão que recebemos de Jesus 5. A Parábola do Filho Pródigo
4ª PARTE: PESSOAS E FATOS QUE SÓ APARECEM NO EVANGELHO DE LUCAS
5ª PARTE: PARÁBOLAS QUE SÓ APARECEM NO EVANGELHO DE LUCAS 1. O Bom samaritano (Lc 10,25-30) 2. O Filho Pródigo (Lc 15,11-32) 3. O rico e o pobre Lázaro (Lc 16,19-31) 4. O juiz iníquo e a viúva persistente (Lc 18,1-8) 5. O fariseu e do publicano (Lc 18,9-14)
EMAUS: O PRIMEIRO CÍRCULO BÍBLICO (Lc 24,13-35).
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1ª PARTE O LIVRO
autor, destinatários, motivo, divisão
1. Quem era Lucas e para quem escreveu o seu evangelho?
O terceiro Evangelho e os Atos dos Apóstolos são do mesmo autor (At 1,1). São dois volumes
de uma única obra, ambos escritos com o mesmo objetivo para o mesmo Teófilo (Lc 1,3; At 1,1). Os
dois volumes não têm assinatura. Mas desde o início, a Tradição das Igrejas os atribui a Lucas.
Quem era Lucas?
Lucas era companheiro de viagem de Paulo. Foi durante a segunda viagem missionária que
ele se juntou ao grupo de Paulo e começou a acompanhá-lo (At 16,10). Pois durante a segunda
viagem, na hora de Paulo embarcar para a Europa, o texto dos Atos dos Apóstolos, de repente,
passa a ser o relatório de alguém que estava participando da viagem. Eis o que diz o texto: "Então
eles atravessaram a Mísia e desceram para Trôade. Durante a noite, Paulo teve uma visão: na sua
frente estava de pé um macedônio que lhe suplicava: "Venha à Macedônia e ajude-nos!" Depois
dessa visão, procuramos imediatamente partir para a Macedônia, pois estávamos convencidos de
que Deus acabava de nos chamar para anunciar aí a Boa Notícia. Embarcamos em Trôade" (At
16,8-11). Daqui para a frente até o fim da viagem, Lucas faz parte da equipe de Paulo.
Provavelmente, ele é o "querido médico Lucas", mencionado na carta de Paulo aos Colossenses (Cl
4,14).
A tradição informa que Lucas nasceu em Antioquia, grande cidade de quase meio milhão de
habitantes. Era um cristão convertido do paganismo ou, talvez, como Timóteo, filho de mãe judia e
pai pagão (At 16,1). Não sabemos o certo. Antes de entrar na comunidade cristã, Lucas deve ter
convivido com a comunidade dos judeus. Fazia parte do grupo que ele mesmo chama de "tementes
a Deus" (At 10,2.22; 13,16.26) ou “adoradores de Deus” (At 16,14; 17,4.17).
Estes “tementes a Deus” eram pagãos que se sentiam atraídos pela seriedade da moral e da
religião dos judeus e pela promessa de salvação feita por Deus a Abraão (Gn 12,1-2). Nos sábados,
eles enchiam as sinagogas. Gostavam de ouvir as leituras da Lei e dos Profetas. Lucas deve ter sido
um destes tementes a Deus. Ele deve ter estudado muito a Sagrada Escritura, pois pelo seu
Evangelho e pelos Atos dos Apóstolos a gente percebe que ele tinha um vasto conhecimento do
Antigo Testamento.
O que impedia a ele e aos outros de aderirem plenamente à religião dos judeus eram a
obrigação da circuncisão e a observância das normas da lei da pureza legal. A pregação de Paulo
trouxe para eles a boa notícia dizendo: o acesso à salvação não se faz através da circuncisão e da
observância das leis da pureza, mas sim através da fé em Jesus Cristo que morreu e ressuscitou por
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nós. Aí, a porta se abriu e muitos pagãos "tementes a Deus" aderiram à Boa Nova de Deus que
Jesus nos trouxe. Lucas foi um deles. Tornou-se um cristão fervoroso.
A partir dos anos 70, este grupo era cada vez mais numeroso nas comunidades cristãs das
grandes cidades do império romano. Lucas escreve em torno do ano 85 e dedica os dois volumes da
sua obra, Evangelho e Atos dos Apóstolos, ao "excelentíssimo Teófilo" (Lc 1,3; At 1,1). Muito
provavelmente, ele não se refere a uma pessoa determinada, mas sim aos tementes a Deus,“para
que vocês possam verificar a solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc 1,4).
2. O que levou Lucas a escrever o seu evangelho?
1. A tensão entre cristãos vindos do paganismo e cristãos vindos do judaísmo
A abertura do anúncio da Boa Nova para os pagãos, iniciada por Paulo, aprovada por Pedro
(At 10,44-48; 11,15-17) e confirmada pelo Concílio de Jerusalém (At 15,7-29), continuava sendo
uma fonte de tensões entre os cristãos vindos do paganismo e os cristãos que vinham do judaísmo
(cf. At 15,1-2.5; Gl 2,11-14). Alguns cristãos do judaísmo invocavam a autoridade de Tiago, irmão de
Jesus, para dizer aos cristãos do paganismo: "Se vocês não forem circuncidados, como ordena a Lei de
Moisés, vocês não poderão salvar-se" (At 15,1; Gl 2,12). E diziam ainda que a abertura para os pagãos,
iniciada por Paulo, não vinha de Jesus, mas era uma "invenção humana" (Gl 1,11). Esta discussão
foi causa de muita confusão nas comunidades (Gl 1,6-12; At 15,1-2). Até Pedro se deixou envolver e
"começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles" (Gl 2,12). Por isso, muitos cristãos do
paganismo se perguntavam: “Será que o ensinamento que nós recebemos é sólido mesmo?"
Este problema levou Lucas a escrever o seu Evangelho "para que vocês possam verificar a
solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc 1,4). Delicadamente, para não ofender os irmãos judeus,
mas com firmeza, Lucas dá o seu recado. É como se dissesse: Querido Teófilo! Você não está
errado! A abertura para os pagãos está de acordo com as profecias do Antigo Testamento. Ela já
tinha sido iniciada pelo próprio Jesus. Portanto, o ensinamento que você recebeu quando aderiu à
Boa Nova de Jesus tem solidez! (Lc 1,4)
2. A tensão entre ricos e pobres nas comunidades vindas do paganismo
Alem disso, a entrada de um número cada vez maior de pagãos nas comunidades cristãs
criou o novo problema da tensão entre ricos e pobres (cf. Tg 2,1-9; 1Cor 1,26). O sistema do
império romano estava todo inteiro baseado na escravização dos povos. Através de taxas, tributos,
impostos e outros roubos legalizados, drenavam a riqueza dos povos para Roma, o centro do
império. O acúmulo imenso de riqueza e de poder na capital contrastava com o empobrecimento
dos povos nas periferias. O endividamento progressivo obrigava muitas pessoas e famílias a se
tornaram escravos dos seus credores para assim poder pagar suas dívidas. Este esquema
escravagista, aplicado na capital do império, se reproduzia nas províncias, sobretudo na Ásia
Menor, cuja capital era Éfeso e onde moravam os destinatários do evangelho de Lucas.
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No início, em torno dos anos 50, após a abertura das comunidades para os pagãos, a maior
parte dos cristãos era da camada dos pobres e escravos. Paulo até escreve para os cristãos de
Corinto: "Irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são vocês: entre
vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos de alta sociedade" (1Cor
1,26). Pouco a pouco, porém, foram entrando também pessoas de classes mais ricas e, de repente,
os cristãos se davam conta de que entre eles começava a existir o mesmo conflito social entre ricos
e pobres que marcava o império romano, causando os mesmos conflitos e a mesma confusão (cf.
Tg 2,1-7; 1 Cor 11,20-21; Ap 3,17).
Este é o outro motivo que levou Lucas a escrever o seu Evangelho. E também neste ponto o
recado dele é claro e radical. Ele quer ajudar as pessoas vindas do paganismo a perceber que é
impossível uma pessoa manter a ideologia do império e continuar a ser cristão. Com vigor profético
ele lembra as frases mais duras de Jesus neste ponto: "Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino
de Deus lhes pertence. Felizes de vocês que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes de vocês
que agora choram, porque hão de rir. Mas, ai de vocês, os ricos, porque já têm a sua consolação!
Ai de vocês, que agora têm fartura, porque vão passar fome! Ai de vocês, que agora riem, porque
vão ficar aflitos e irão chorar!" (Lc 6,20-21.24-25).
3. Divisão do Evangelho de Lucas
O Evangelho de Lucas é grande. Tem 24 capítulos. A divisão em seis blocos ajuda a captar
melhor a mensagem central e a perceber o jeito próprio de Lucas em apresentar a Boa Nova de
Deus que Jesus nos trouxe:
Prólogo: Lucas 1,1-4: O motivo que levou Lucas a escrever
1º Bloco. Lucas 1,5-2,52: Nascimento e Infância de João e de Jesus
2º Bloco. Lucas 3,1-4,44: Passando de João para Jesus, do AT para o NT
3º Bloco. Lucas 5,1-9,50: Jesus vai formando uma nova comunidade
4º Bloco. Lucas 9,51-19,28: A longa viagem desde a Galileia até Jerusalém
5º Bloco. Lucas 19,29-21,38: Última Semana da vida de Jesus: o confronto final:
6º Bloco. Lucas 22,1-24,53: Paixão, Morte e Ressurreição
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2ª PARTE O CONTEÚDO
PRÓLOGO
Lucas 1,1-4) Anunciar quem é Jesus para nós
Verificar a solidez dos ensinamentos
1. Lucas decide escrever sobre as coisas que Jesus fez e ensinou
“Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se passaram entre
nós” (Lc 1,1). Assim começa o Evangelho de Lucas. Ele informa que muita gente já tentou descrever
as coisas que Jesus tinha feito e ensinado. Por isso, ele decidiu fazer o mesmo. Por de trás desta
decisão de Lucas estão os problemas das comunidades. Havia várias tendências entre os cristãos:
“Eu sou de Paulo. Eu sou de Apolo. Eu sou de Pedro. Eu sou de Cristo” (1Cor 1,12). Havia muita
confusão, pois cada um apresentava "as coisas que Jesus fez e ensinou" conforme o seu próprio
gosto (Gl 1,6-10). Por isso, Lucas resolveu, ele também, escrever a história dos acontecimentos
relacionados com Jesus.
2. O objetivo de Lucas: mostrar a solidez do ensinamento recebido
No prólogo dos Atos dos Apóstolos, Lucas diz que escreveu o Evangelho para "relatar todas
as coisas que Jesus fez e ensinou, desde o início até o dia em que foi arrebatado" (At 1,1-2). E o fez
com muita pesquisa e critério. Consultou pessoas que, “desde o princípio, foram testemunhas
oculares e ministros da palavra” (Lc 1,2), e fez “um estudo cuidadoso de tudo que aconteceu desde
o princípio” (Lc 1,3). Por quê tanto esforço e cuidado na apresentação do Evangelho?
Lucas era companheiro de Paulo. Paulo tinha sido criticado por ter acolhido pagãos nas
comunidades sem exigir deles a circuncisão nem a observância das leis da pureza. Alguns judeus
achavam que isto não era correto, e diziam que todos deviam ser circuncidados para poder salvar-
se (At 15,1). Através do seu evangelho, Lucas quer mostrar que o ensinamento de Paulo era sólido
e que a abertura para os pagãos era o rumo certo, fiel a Jesus e às promessas do Antigo
Testamento. Foi Jesus que iniciou esta abertura.
Além disso, ao longo do seu evangelho, Lucas também mostra que a discriminação dos
pobres pelos ricos, tal como estava acontecendo em algumas comunidades, era a negação do que
Jesus tinha ensinado.
Assim, no fim do Prólogo, Lucas diz: “Desse modo, excelentíssimo Teófilo, você poderá
verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu” (Lc 1,4). Em que consistia a “solidez dos
ensinamentos recebidos” que Lucas vai transmitir para Teófilo?
3. Querido Teófilo
Lucas dedica o seu livro a uma pessoa chamada "excelentíssimo Teófilo". Alguns acham que
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Teófilo seja a pessoa que ajudou Lucas com dinheiro para ele poder escrever e editar o livro.
Naquele tempo não havia gráficas nem editoras. Os livros eram escritos a mão. Para alguém poder
escrever um livro precisava de muito dinheiro para comprar papel (papiro) e tinta e para contratar
copistas que soubessem escrever. Teófilo teria sido uma pessoa de posse que contribuiu com
dinheiro para que Lucas pudesse escrever o seu livro. O mais provável é que Teófilo seja um nome
simbólico para designar os destinatários do livro de Lucas. A palavra Teófilo significa Amado de
Deus. Muito provavelmente, Lucas não se refere a uma pessoa determinada, mas sim aos cristãos
convertidos do paganismo, aos tementes a Deus, todos eles pessoas muito amadas de Deus. Todos
nós estamos incluídos nos destinatários do evangelho, pois todos e todas somos Teófilos, amados
de Deus.
1º BLOCO Lucas 1,5-2,52
Nascimento e Infância de João e de Jesus Saindo do Antigo Testamento para o Novo que vem chegando
* Passar do Antigo para o Novo Testamento
Nestes dois primeiros capítulos do seu evangelho Lucas imita o estilo dos escritos do Antigo
Testamento. É como se fossem a última parte do Antigo e a primeira parte do Novo Testamento.
Parece a dobradiça entre o Antigo e o Novo. Lendo os capítulos 1 e 2 do, você faz a transição: sai do
Antigo e vai entrando no Novo. Faz o Antigo ficar Novo!
Lucas quer mostrar a Teófilo que as profecias dos antigos profetas estão se realizando em
Jesus. Este é o tema dos dois cânticos de Maria (Lc 1,46-55) e de Zacarias (Lc 1,68-79). Maria diz:
“Deus socorre Israel, seu servo, lembrando-se da sua misericórdia, conforme prometera a nossos
pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre!” (Lc 1,54-55). Zacarias diz: “Deus fez
aparecer a força de salvação na casa de Davi seu servo, conforme tinha anunciado desde outrora
pela boca dos seus santos profetas” (Lc 1,69-70). Tanto Zacarias como Maria, ambos cantam e
proclamam a bondade de Deus que veio realizar as suas promessas.
* Duas crianças: João e Jesus
Neste 1º Bloco, tudo gira em torno de duas crianças: João e Jesus. Lucas descreve o anúncio
do nascimento tanto de João (Lc 1,5-25) como de Jesus (Lc 1,26-38). Em seguida, traz a descrição
do nascimento de ambos: de João (Lc 1,57-80) e de Jesus (Lc 2,1-20). Os dois capítulos fazem sentir
o perfume do Evangelho de Lucas. O ambiente é de ternura e de louvor. Do começo ao fim, se
louva, se reza e se canta. Zacarias (Lc 1,8.13.68-79), Isabel (Lc 1,25), Maria (Lc 1,46-55), os pastores
(Lc 2,10), os anjos (Lc 2,14), Simeão (Lc 2,25) e Ana, a profetisa (Lc 2,37), todos louvam e cantam!
Lucas faz a gente sentir que, finalmente, após séculos de espera, a misericórdia de Deus se revelou
e, em Jesus, estão se cumprindo as promessas de Deus feitas aos pais. E Deus as cumpriu em favor
dos pobres (anawim) como Isabel e Zacarias, Maria e José, Ana e Simeão, os pastores. Estes
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souberam esperar pela sua vinda e descobrir a sua chegada.
* História e espelho
Os dois capítulos trazem as cenas do nascimento e da infância de Jesus. São capítulos muito
conhecidos, mas pouco aprofundados. Não são histórias só no sentido em que nós hoje
entendemos a história. Funcionavam também como espelho, onde os cristãos vindos do paganismo
descobriam quem era Jesus para eles. Os dois capítulos estão cheios de alusões e citações do
Antigo Testamento que os ajudavam a entender que Jesus tinha vindo realizar as profecias. Por
exemplo, João Batista é como o profeta Elias (Lc 1,17). Jesus é o Filho do Altíssimo que receberá o
trono de Davi (Lc 1,32). O cântico de Maria (Lc 1,46-55) se parece com o Cântico de Ana, a mãe de
Samuel (1Sm 2,1-10), e assim por diante. A Bíblia de Jerusalém informa que os três cânticos de
Maria (Lc 1,46-55), de Zacarias (Lc 1,68-79) e do velho Simeão (Lc 2,29-32), juntos, tem mais de
trinta alusões ou citações do Antigo Testamento.
Sim, as comunidades cristãs vindas do paganismo são a realização das profecias do passado,
mas não uma simples repetição do passado. Representam um passo para a frente. O Novo que
aparece não correspondia ao que o antigos imaginavam e esperavam. Por isso, logo no início já
aparece a perseguição e as críticas. Na atitude de Maria, a mãe de Jesus, os cristãos perseguidos
encontravam o modelo de como perseverar no Novo, como ser "sinal de contradição" (Lc 2,34),
sentir muita dor no coração (Lc 2,35), sem ser infiel ao Antigo.
Quando se diz que Jesus é a realização das promessas, isto não diz respeito só às promessas
dos profetas do Antigo Testamento dos judeus. Jesus é a realização de todas as promessas que
existem em todos os povos e em todas as pessoas. Ou seja, ele é a resposta de Deus às aspirações
mais profundas do coração humano.
4. Sugestões de leitura
Quem quiser ver mais de perto o assunto, sugerimos quatro leituras:
(1) Lucas 1,26-38: A visita do anjo a Maria. As surpresas de Deus.
(2) Lucas 1,39-56: A Visita de Maria a Isabel. A alegria no Espírito.
(3) Lucas 2,8-20: A Visita do anjo aos pastores. Paz aos excluídos.
(4) Lucas 2,51-52: Jesus, aluno e aprendiz. A escola que Jesus frequentou.
2º BLOCO
Lucas 3,1-4,44 De João Batista para Jesus
Saindo do Antigo entrando no Novo Testamento
1. O Novo chega com firmeza e ternura
Nos dois capítulos deste 2º Bloco, tudo gira em torno da pregação e da proposta dos dois
grandes mensageiros: João Batista (Lc 3,1-20) e Jesus (Lc 3,4,14-21). Os dois agem com firmeza e
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decisão. Dizem com clareza a que vieram. E já desde o início, os dois correm perigo: João é preso
por Herodes (Lc 3,20) e Jesus é ameaçado de morte pelo povo de Nazaré (Lc 4,28-30). Nos dois
transparece a força da ação do Espírito de Deus (Lc 3,16; 3,22; 4,1; 4,14; 4,18).
João é o último grande profeta do Antigo Testamento. Em nome de todo o passado do seu
Povo, ele aponta o Novo chegando em Jesus (Lc 3,15-17). Deste modo, Lucas mostra como o Antigo
Testamento ia terminando, cedendo o lugar ao Novo que vinha chegando. Mostra a continuidade e
a ruptura que existem entre os dois Testamentos. Com as palavras de João Batista ao povo, Lucas
mostra que a partilha e a prática da justiça eram a condição de se poder passar do Antigo para o
Novo. Ao povo dizia: "Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem. E quem tiver comida, faça
a mesma coisa" (Lc 3,11) Aos cobradores de impostos dizia: "Não cobrem nada além da taxa
estabelecida" (Lc 3,13). Aos soldados dizia: "Não maltratem ninguém; não façam acusações falsas,
e fiquem contentes com o salário de vocês." (Lc 3,14)
2. João: o último grande profeta do Antigo Testamento, precursor de Jesus
Lucas dá uma atenção muito grande à atividade e à pregação de João Batista. É que na época
em que ele escreve, em torno do ano 85, havia muita discussão nas comunidades em torno do
significado da missão de João Batista. O próprio Lucas dá notícia desta discussão no livro dos Atos
dos Apóstolos. Ele diz que lá em Éfeso, mais de 30 anos depois da morte e ressurreição de Jesus,
ainda havia pessoas que não conheciam o batismo de Jesus nem tinham ouvido falar do dom do
Espírito Santo. Só conheciam o batismo de João (At 19,1-7). Sinal de que João continuava tendo
uma grande popularidade e autoridade. Muitos o consideravam o Messias. Nos dois capítulos deste
2º Bloco, Lucas procura trazer uma luz para ajudar as comunidades no discernimento. Ele deixa
bem claro que João não era o Messias e traz as palavras do próprio João que dizia a todos: "Eu
batizo vocês com água. Mas vai chegar alguém mais forte do que eu. E eu não sou digno nem
sequer de desamarrar a correia das sandálias dele. Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e
com fogo" (Lc 3,16).
Lucas mostra também os limites de João. A imagem que João se fazia do Messias não
correspondia bem ao que Jesus era e fazia. Por isso, João até mandou perguntar: "É o senhor, ou
devemos esperar por outro?" (Lc 7,19). O Antigo não pode querer controlar o Novo. Deve, ao
contrário, abrir-se para acolhê-lo. O Antigo Testamento deve ser lido e interpretado a partir da
nova experiência de Deus que chegou até nós em Jesus. Foi o que João fez. Ele não se agarrou nas
suas ideias nem se fechou em si mesmo, mas apontou Jesus como o mais forte, "do qual não sou
digno de desamarrar a correia das sandálias (Lc 3,16).
3. “Quando o Espírito de Deus soprou...!”
Neste 2º Bloco, Lucas mostra vários aspectos do Novo que aparece em Jesus:
(1) Em Jesus se manifesta o dom do Espírito Santo, prometido no Antigo Testamento. O
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Espírito Santo está presente em tudo que Jesus diz e faz, desde o batismo (Lc 3,21-22) até à hora da
sua morte quando entrega o Espírito ao Pai, (Lc 23,46). Ele o recebeu em plenitude na ressurreição
para poder entregá-lo a nós (At 1,2).
(2) Em Jesus o projeto de Deus ultrapassa a raça de Abraão e se abre para a humanidade
toda, pois Jesus é filho não só de Abraão (Lc 3,34), mas também de Adão (Lc 3,38). Esta abertura de
Jesus para os pagãos transparece na apresentação do seu programa na comunidade de Nazaré. Sua
mensagem vai para além dos limites da sua raça. (Lc 4,26-27).
(3) Jesus é o novo começo do povo de Deus. O antigo povo foi tentado no deserto e caiu.
Jesus é tentado no deserto e, pela força do Espírito, vence a tentação (Lc 4,1-13). Ao longo dos dois
capítulos deste 2º Bloco, aparece a semente da novidade de Jesus. Nos outros blocos, esta semente
irá crescendo, provocando muitos conflitos com o Antigo que se fecha.
4. Sugestões de leitura
Quem quiser ver mais de perto o assunto, sugerimos duas leituras deste 2º Bloco:
(1) Lucas 3,1-18: A pregação de João: insiste na partilha e na prática da justiça
(2) Lucas 4,14-30: A pregação de Jesus Boa Nova para os pobres
3º BLOCO
Lucas 5,1-9,50 Jesus forma uma nova comunidade
O novo abre o caminho e a transformação acontece
Neste 3º Bloco, aparece com clareza toda a novidade da mensagem de Jesus. Ele chama
pessoas para segui-lo (Lc 5,1-11), acolhe os marginalizados (Lc 5,12-16), perdoa os pecados (Lc
5,20), critica a hipocrisia (Lc 5,27-32), diz que o evangelho não cabe nos esquemas antigos (Lc 5,33-
39), transgride normas que não têm nada a ver com a vida (Lc 6,1-5), e afirma que ele veio para
salvar e fazer o bem (Lc 6,6-11). Constitui o grupo dos doze (Lc 6,12-15) e proclama a nova Lei de
Deus (Lc 6,20-49). Jesus ultrapassa o tradicional (Lc 7,1-10), acolhe a moça pecadora que lhe beija
os pés, e a defende contra o fariseu que a condenava (Lc 7,36-49). Assim, através de muitas ações e
palavras, a novidade do Evangelho vai abrindo caminho, a transformação vai acontecendo. O jeito
de falar e de agir de Jesus deve ter estranhado a muita gente. O povo gostava dele, mas as
autoridades o criticavam e começam a persegui-lo. A cruz aparece no horizonte (Lc 9,22; 9,31; 9,44)
e Jesus decide ir para Jerusalém, onde será morto (Lc 9,51).
1.“Deus chama a gente prá um momento novo”
No 2º Bloco, Jesus atuava sozinho, dando continuidade e complementação às promessas que
vinham do Antigo Testamento. Agora, no 3º Bloco, na medida em que a missão se abre, ele vai
chamando outras pessoas para segui-lo. Chama Pedro, Tiago e João (Lc 5,1-11), chama Levi (Lc
5,27-31), escolhe os doze (Lc 6,12-15). Pouco a pouco, estas e outras pessoas, homens e mulheres
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(Lc 8,1-3), vão sendo envolvidas na missão, chamadas a ir na frente de Jesus para anunciar a Boa
Nova do Reino ao povo (Lc 9,1-6). Forma-se, assim, uma comunidade de homens e mulheres, em
igualdade de condições. Uma amostra do Reino!
2. O novo abrindo caminho, a transformação acontecendo
No 2º Bloco (3,1-4,44), já dava para ver as diferenças entre o Antigo e o Novo. Já dava para
ver a universalidade da missão de Jesus. Agora, no 3º Bloco, esta semente desabrocha. O Novo vai
abrindo caminho e a transformação vai acontecendo. As linhas de força da mensagem de Jesus vão
aparecendo com maior clareza. Aparecem também os conflitos que a Boa Nova provoca quando
entra em contato com a mentalidade antiga que se fecha. Pois Jesus acolhe todo tipo de pessoas,
sobretudo as que, em nome da lei de Deus, eram excluídas do convívio na comunidade: leprosos
(5,12-16), paralíticos (5,13-26), publicanos (5,26-32), os pobres (6,20-23), estrangeiros (7,1-10).
Para o bem das pessoas, Jesus transgride as normas de jejum (5,33-39), do sábado (6,1-10), da
pureza (5,13) e amplia a comunhão de mesa (5,30). Num longo discurso, ele denuncia a injustiça
dos ricos que gera a pobreza (6,20-26) e manda ter uma atitude diferente para com os inimigos
(6,27-38). Toda esta prática de Jesus desnorteia até a João Batista, mas Jesus não volta atrás. Ele
manda João olhar os fatos e compará-los com as profecias (7,18-30). Critica os que não sabem ler
os sinais dos tempos (7,31-35), e defende a moça do perfume contra o fariseu (7,36-50). É assim
que o novo vai abrindo caminho e que a transformação vai acontecendo. Em Jesus aparece um
poder maior: ele acalma a tempestade (8,22-25), expulsa demônios (8,26-39), vence a impureza e
ressuscita os mortos (8,40-56). Afinal, quem é este Jesus que age e fala desta maneira?
3. "Quem dizem os homens que eu sou?"
No fim, Jesus faz uma avaliação da caminhada e pergunta: “Quem sou eu no dizer da
multidão?” (9,18-21). O resultado é fraco. O povo não sabe quem é Jesus. Os discípulos
reconhecem nele o Messias, mas eles o entendem conforme a propaganda do governo e da religião
oficial, que esperavam um Messias glorioso nacionalista. Jesus anuncia que o Messias vai ser
morto, e quem quiser segui-lo no mesmo compromisso com os pobres e excluídos vai ter que
carregar a mesma cruz (9,22-27).
É o momento da crise, tanto para Jesus como para os discípulos. Jesus sobe a montanha para
rezar. Lá em cima, ele se transfigura. De Moisés e Elias recebe a confirmação de que deve realizar o
seu "êxodo" em Jerusalém (9,28-36). Nem assim, os discípulos entendem o anúncio da cruz (9,44-
45). Eles continuam brigando entre si para saber quem é o maior (9,46-48) e pensam ter o
monopólio sobre Jesus (9,49-50). A ideia do Messias glorioso, divulgada pelo pessoal do Templo de
Jerusalém, impedia a eles de verem em Jesus o Messias Servidor, anunciado por Isaías (cf. Is 42,1-9;
49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). Diante desta conjuntura, Jesus decide ir para Jerusalém e enfrentar o
problema (Lc 9,51). Começa a longa caminhada da Galileia até Jerusalém, da periferia até o centro.
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4. Sugestão de leituras:
Sugerimos quatro leituras que podem ser feitas em comunidade ou em família:
(1) Lucas 5,1-11: A vocação dos primeiros discípulos: Envolver outras pessoas na missão
(2) Lucas 6,17-26: Felizes os pobres! Ai dos ricos! A luz do Evangelho muda o olhar
(3) Lucas 7,36-8,3: Jesus defende a moça do perfume. Discípulos e discípulas seguem Jesus
(4) Lucas 9,28-36: A Transfiguração. Nova maneira de realizar a profecia
4º BLOCO
Lucas 9,50 até 19,27 A longa caminhada da Galileia até Jerusalém
A difícil passagem do Antigo para o Novo Testamento
Este 4º Bloco ocupa quase dez capítulos: de Lucas 9,51 até 19,27. Para fazer o seu evangelho
Lucas seguia a ordem do evangelho de Marcos, mas ele mesmo conseguiu juntar muitas outras
informações sobre Jesus que não estavam no evangelho de Marcos. Todo esse material próprio
dele, Lucas o ajeitou nestes dez capítulos (Lc 9,51 a 19,28) na forma de uma viagem, que vai desde
a Galiléia até Jerusalém. Lucas 9,51 descreve o início da viagem: "Estava chegando o tempo de
Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém". Em Lucas
19,29, se diz que "Jesus se aproximou de Betfage e de Betânia, perto do chamado monte das
Oliveiras". É o longo caminho da periferia até o centro. Conscientemente, Jesus assume a Cruz que
o espera em Jerusalém. Por meio desta maneira de apresentar os fatos em forma de uma longa
viagem, Lucas envolve seus leitores e nos convida a acompanhar Jesus em direção Jerusalém,
sabendo que ele vai ser morto. É como se Jesus nos dirigisse um convite: “Você quer vir comigo?”
No fim do 3º Bloco, a cruz apareceu no horizonte (Lc 9,22; 9,31; 9,44) e Jesus decidiu ir para
Jerusalém, onde seria morto (Lc 9,51). Neste 4º Bloco veremos de perto o significado desta longa
caminhada da Galileia até Jerusalém (Lucas 9,51 até 19,27).
Para compor o seu evangelho Lucas seguia a sequencia do evangelho de Marcos. Aqui e
acolá, ele introduzia pequenas diferenças ou mudava algumas palavras, para que os tijolos tirados
de Marcos se adaptassem ao novo quadro que ele, Lucas, imaginou para o seu livro. Além do
evangelho de Marcos, Lucas teve acesso a outras fontes, pesquisou outros livros e consultou
testemunhas oculares e ministros da Palavra (Lc 1,2). Ora, todo este material sem paralelo no
Evangelho de Marcos, Lucas o organizou na forma de uma longa viagem de Jesus, desde a Galiléia
até Jerusalém. A descrição desta longa viagem é o assunto deste 4º Bloco que vai de Lucas 9,51 até
19,28.
Peregrino nas estradas de um mundo desigual
Esta longa viagem de Jesus desde a Galiléia no Norte até Jerusalém no Sul ocupa quase dez
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capítulos, uma terça parte de todo o Evangelho de Lucas! Logo no início desta viagem, Jesus
ultrapassa os limites da raça dos judeus, pois sai da Galiléia e entra no território dos samaritanos
para anunciar ali a Boa Nova do Reino.
Ao longo desta viagem aparecem com maior clareza alguns temas e motivos que
caracterizam o Evangelho de Lucas. Por exemplo: a ternura e a misericórdia de Deus ( ); o seu
amor pelos pobres e excluídos ( ); a radicalidade das exigências do evangelho com relação à justiça
social ( ); o relacionamento de Jesus com as mulheres ( ); a oração na vida de Jesus ( ); o
seguimento de Jesus e suas exigências ( ).
Aparecem também com maior frequência os conflitos com as autoridades religiosas ( ). Pois
a experiência que Jesus tinha de Deus como Pai amoroso levava-o a acolher como irmão e irmã as
pessoas que eram excluídas como impuras e pecadoras pela religião oficial: leprosos, doentes,
pagãos, mulheres, crianças, deficientes físicos, prostitutas, publicanos, etc. Esta acolhida fraterna
sem preconceito era o motivo dos conflitos. Por isso as autoridades religiosas e civis decidiram
matá-lo. A cruz aparece no horizonte e o aguarda lá em Jerusalém. Jesus sabe que vão matá-lo, mas
ele não volta atrás. Continua fiel ao Pai e aos pobres e excluídos. Ele assume a Cruz que o espera na
capital. A cruz é a marca da longa caminhada até Jerusalém ( ).
Constantemente, por quinze vezes, ao longo da viagem, Lucas lembra ou sugere que Jesus
está a caminho de Jerusalém. (Lc 9,51.53.57; 10,1.38; 11,1; 13,22.33; 14,25; 17,11; 18,31; 18,38;
19,1.11.28). E mesmo depois que Jesus chegou em Jerusalém, Lucas mantém a caminhada de Jesus
em direção ao centro que é o Templo (Lc 19,29.41.45; 20,1; 22,1.7.14). Assim, do começo ao fim,
aparece com clareza o objetivo da viagem: Jesus está indo para Jerusalém para mostrar que a sua
maneira de interpretar o Projeto de Deus é diferente da interpretação dada pela religião oficial. A
ida para Jerusalém é vista como o êxodo de Jesus (Lc 9,31). No Antigo Testamento, é Moisés que
conduziu o primeiro êxodo tirando o povo da opressão do Faraó (Ex 3,10-12). A ida para Jerusalém
é vista como êxodo de Jesus (Lc 9,31) e também como a assunção ou arrebatamento de Jesus (Lc
9,51). No Antigo Testamento, é o profeta Elias que foi arrebatado para o céu (2 Rs 2,11). Por isso,
Moisés e Elias aparecem com Jesus na Transfiguração. Para Lucas, Jesus é o novo Moisés que vem
tirar o povo da opressão da Lei; é o novo Elias que vem preparar a chegada do Reino.
A longa e dura caminhada da periferia para a capital
Por meio desta apresentação dos fatos em forma de uma longa viagem, Lucas envolve seus
leitores e nos convida a acompanhar Jesus em direção Jerusalém, sabendo que ele vai ser morto. É
como se Jesus nos dirigisse um convite e nos dissesse: “Você quer vir comigo?” Como diz o nosso
canto: “Eu vim de longe procurando meu caminho. Foi difícil a viagem até aqui, mas eu cheguei!”
A descrição da longa viagem de Jesus para Jerusalém não é só um recurso literário de Lucas
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para introduzir o material que ele tinha de próprio. Ela reflete também a caminhada concreta das
comunidades da Grécia, para as quais Lucas escrevia o seu evangelho. O problema das
comunidades era o seguinte. O Evangelho, a Boa Nova que Jesus nos trouxe, nasceu no mundo
rural da Palestina e cresceu inicialmente ao redor das sinagogas da Terra de Jesus, marcadas pela
cultura semita do povo hebreu. Mas as comunidades vivem na Grécia, onde a cultura é outra. Nelas
havia muitos cristãos, tanto judeus como gregos, que no dia-a-dia da sua vida estavam fazendo
uma longa e difícil viagem, a saber, passar da cultura do mundo rural da Palestina para o mundo
cosmopolita da cultura grega; sair de comunidades que surgiram ao redor da sinagoga, espalhadas
pela Palestina, para comunidades que se organizavam nas casas do povo nas periferias das grandes
cidades da Ásia Menor e da Europa. Esta passagem da Palestina para a Europa era marcada por
uma forte tensão entre os cristãos vindos do judaísmo e os novos que vinham chegando de outras
etnias e culturas.
A descrição da longa viagem de Jesus para Jerusalém reflete o doloroso processo de
conversão que as pessoas tinham de fazer: sair do mundo da observância da lei que acusa e
condena, para o mundo da gratuidade do amor de Deus que acolhe e perdoa; passar da consciência
de pertencer ao único povo eleito, privilegiado por Deus entre todos os povos, para a certeza de
que em Jesus todos os povos foram fundidos num único povo diante de Deus. Numa palavra, neste
4º Bloco, Lucas apresenta a atividade de Jesus como um espelho da conversão ou da travessia que
as Comunidades estavam fazendo. Jesus fez a mesma longa e dolorosa travessia: sair do mundo
fechado da raça para o território da humanidade.
Uma sugestão de leituras, acompanhando Jesus até Jerusalém
É para cada um poder verificar como está sendo a sua e nossa caminhada junto com Jesus em
direção a Jerusalém e ver como vivemos os temas tão caros a Jesus:
1. Lucas 9,51-62: Jesus decide ir a Jerusalém Seguir Jesus sem dar volta atrás
2. Lucas 10,1-9: A missão de todos nós As recomendações de Jesus aos discípulos
3. Lucas 10,17-24: Amor do Pai pelos pequenos Rever e avaliar a missão
4. Lucas 10,25-37: O bom samaritano Solidariedade e ecumenismo
5. Lucas 11,1-13: “Jesus, ensina-nos a rezar!” Aprender a abrir-se para Deus
6. Lucas 12,13-34: Não acumular O Reino de Deus em primeiro lugar
7. Lucas 13,10-17: Jesus faz a mulher ficar de pé Libertar e devolver a dignidade
8. Lucas 14,15-24: Na mesa lugar para todos Partilha e confraternização
9. Lucas 15,11-32: A parábola dos dois filhos Ternura e misericórdia de Deus
10. Lucas 16,19-31: Pobre tem nome! Não há salvação para o rico que se fecha em si
11. Lucas 17,1-10: O ambiente da educação Viver se aprende convivendo
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12. Lucas 17,11-21: Viver em gratidão Sinal da presença do Reino
13. Lucas 18,1-14: A verdadeira oração O avesso é o lado certo
14. Lucas 19,1-10: Zaqueu: a visita de Deus Acolhimento e ternura sem preconceito.
Boa Viagem até Jerusalém! Que Jesus o acompanhe! Fale com a Mãe de Jesus. Ela também
acompanhou Jesus até a Cruz e pode ajudar a gente na hora das dificuldades.
5º BLOCO
Lucas 19,29 - 21,38 A última semana de Jesus em Jerusalém
O confronto final: O grito do povo incomoda o poder
Neste 5º Bloco, Lucas retoma o fio de meada de Marcos e descreve as atividades da última
semana da vida de Jesus em Jerusalém, desde a solene entrada no domingo de Ramos (Lc 19,28-40)
até à véspera da sua morte (Lc 21,38). Você vê Jesus chorar sobre a cidade (Lc 19,41-44) e expulsar
os comerciantes do templo (Lc 19,45-48). Você assiste ao doloroso confronto com as autoridades e
às duras críticas que ele dirige aos chefes dos sacerdotes, aos doutores da lei, aos anciãos, aos
fariseus, aos saduceus (Lc 20,1-47). Em tudo isto você sente a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai.
Por causa desta sua fidelidade ao Pai, Jesus vai ser preso e condenado à morte;
A viagem está quase no fim. Saindo de Jericó, onde se encontrou com Zaqueu (Lc 19,1-10),
Jesus subiu pelo deserto de Judá e chegou ao pé do Monte das Oliveiras. Faltava passar por Betfage
e Betânia e alcançar o topo do Monte das Oliveiras, para que pudesse contemplar a beleza da
capital do seu povo. Como no início da viagem (Lc 9,51), também agora quase no fim, Jesus vai na
frente e continua andando decididamente para Jerusalém. Seus discípulos seguem atrás. Desde o
momento, em que Jesus tomou a decisão de ir a Jerusalém, já estava claro que a viagem terminaria
num confronto. Naquela ocasião, Lucas já dizia que a caminhada para a capital seria como que o
êxodo de Jesus (Lc 9,31). Agora, finalmente, Jesus está chegando. Ele sabe que vai ter um duro e
doloroso confronto com as autoridades.
Preparativos para a solene entrada na capital
Jesus sabe que, ao entrar em Jerusalém, vai ser aclamado como Messias. Para evitar
qualquer mal-entendido, ele prepara a sua entrada. Deve ficar claro para todos qual é o seu jeito
de assumir a missão que o Pai lhe deu. Jesus quer ser o Messias humilde e servidor que, montado
num jumentinho, vem trazer a Paz para Jerusalém, conforme tinha sido anunciado pelo profeta
Zacarias (Zc 9,9-10). Ele manda alguns discípulos na sua frente para trazer um jumentinho. Os
discípulos fizeram como Jesus tinha mandado e tudo aconteceu conforme o previsto. Eles
encontraram o jumentinho e o levaram até Jesus. Todos nós somos como o jumentinho, animal de
carga, para Jesus poder realizar o Reino de Deus no meio do nós.
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Jesus entra na cidade aclamado pelo povo como Messias. O povo da capital esperava um
messias nacionalista, rei glorioso! Jesus, sentado no jumentinho evoca a profecia de Zacarias que
dizia: “Teu rei vem a ti, humilde, montado num jumento. O arco de guerra será eliminado” (Zc
9,9.10). Jesus aceita ser o Messias, mas não o messias rei, da propaganda do governo e da religião
oficial. Ele se mantém no caminho do serviço, simbolizado pelo jumentinho, animal de carga.
Reclamação dos fariseus e lamento sobre a cidade de Jerusalém
Os fariseus pedem que Jesus mande o povo ficar calado. Jesus responde com uma frase do
profeta Habacuc: “Se eles calarem, até as pedras vão gritar!” (Hb 2,11). Neste conflito com as
autoridades do seu país, Jesus se coloca dentro da tradição profética. Lembrou o profeta Zacarias,
citou o profeta Habacuc e, agora, fazendo um lamento sobre Jerusalém, evoca as lamentações do
profeta Jeremias. Neste lamento, Jesus manifesta a sua tristeza e chora. A cidade não quis
reconhecer a visita de Deus que veio trazer a paz. Ela fechou-se na sua ideologia nacionalista e,
assim, lançou a semente da sua própria destruição. É a segunda vez que Lucas traz uma palavra de
Jesus contra a cidade de Jerusalém (Lc 13,34-35).
Jesus chega na cidade e vai diretamente ao Templo. Expulsa os vendedores e diz: “Está
escrito: minha casa será uma casa de oração. Vocês fizeram dela um covil de ladrões”. Novamente,
Jesus cita as palavras dos antigos profetas, Isaías (Is 56,7) e Jeremias (Jr 7,11), para justificar a sua
ação em oposição às autoridades. Jesus quer colocar um ponto final na exploração e dominação
que se fazia através do Templo. Ele quer que o Templo seja novamente a Casa do Pai (Lc 2,49). Com
este gesto profético termina a longa e dolorosa caminhada da periferia até a capital. Em seguida,
diariamente, Jesus passa a ensinar no Templo. Seu ensinamento, porém, incomodava os
poderosos. Tanto os chefes religiosos como os civis, se sentem questionados e querem matá-lo.
Mas o povo o escuta fascinado!
No tempo de Jesus, havia entre os judeus uma grande variedade na esperança messiânica.
Havia gente que esperava um Messias Rei (Mc 15,9.32). Outros, um Messias Santo ou Sacerdote (Lc
4,34). Outros, um Messias Guerrilheiro subversivo (Lc 23,5). Outros, um Messias Doutor (Jo 4,25).
Outros, um Messias Juiz (Lc 3,5-9). Outros, um Messias Profeta (Mc 6,4; 14,65). Cada qual,
conforme os seus próprios interesses e conforme a sua classe social, aguardava o Messias,
querendo encaixá-lo na sua própria esperança. Ao que parece, ninguém esperava o Messias Servo,
anunciado pelo profeta Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13). Eles não se lembravam de valorizar a esperança
messiânica como um serviço do povo de Deus à humanidade. Só pensavam no privilégio,
esqueceram o serviço! Jesus retoma a profecia do Messias-Servo: “Eu estou no meio de vocês como
aquele que serve!” (Lc 22,27)
Na festa de Páscoa o povo romeiro vinha caminhando, dos lugares mais distantes para
encontrar-se com Deus no Templo. O povo do interior, quando vinha fazer suas romarias e
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devoções na capital, observava a beleza do Templo, a firmeza das muralhas e a grandeza das
montanhas ao redor. Esse conjunto imponente fazia lembrar a proteção de Deus. Por isso rezava:
"Aqueles que confiam em Javé são como o monte Sião: ele nunca se abala, está firme para sempre.
Jerusalém é rodeada de montanhas, assim Javé envolve o seu povo, desde agora e para sempre".(Sl
125,1-2) Mas em Jerusalém estavam também a sede do Governo, o palácio dos chefes e a casa dos
sacerdotes e doutores. Todos estes diziam que exerciam o poder em nome de Deus. Na realidade,
muitos deles exploravam o povo com tributos e impostos. Usavam a religião como instrumento
para se enriquecer e para fortalecer a sua dominação sobre a consciência do povo. Transformaram
o Templo, a Casa de Deus, num “covil de ladrões” (Jr 7,11; cf. Lc 19,46). Uma contradição pesava
sobre o Templo. De um lado, lugar de encontro e de reabastecimento da consciência e da fé. De
outro lado, fonte de alienação e de exploração do povo.
6º BLOCO
Lucas 22,1 até 24,53 Paixão, Morte e Ressurreição
O doloroso nascimento da vida nova
Neste 6º Bloco, Lucas descreve os últimos acontecimentos: a última ceia, a agonia no horto,
a traição de Judas, a negação de Pedro e a fuga dos discípulos, a prisão, a condenação de Jesus pelo
sumo sacerdote e por Pilatos, e tudo aquilo que aconteceu e que nós recordamos na Semana Santa
e na Via Sacra: a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
No 6º Bloco, Lucas descreve a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Inicia-se a etapa final do
“êxodo” de Jesus, anunciado por Moisés e Elias no Monte da Transfiguração (Lc 9,31). A maneira de
Lucas descrever os acontecimentos é semelhante àqueles filmes que, primeiro, mostram a cena de
longe. Em seguida, pouco a pouco, eles ajustam a câmara e a cena vai chegando mais perto, até
que se possa ver todos os detalhes. Assim faz Lucas. Desde o 4º Bloco (Lc 9,51), ele vem dizendo
que Jesus está indo para Jerusalém. E agora, uma vez em Jerusalém, ele vai ajustando a câmara no
ponto, em que os leitores devem prestar mais atenção. Primeiro, ele diz: "Aproxima-se a festa dos
ázimos, chamada Páscoa" (Lc 22,1). Em seguida, informa: "Chegou o dia dos Ázimos" (Lc 22,7). E
finalmente, constata: "Quando chegou a hora, ele sentou à mesa!" (Lc 22,14). Este é o ponto onde
Lucas quer que a gente preste toda a atenção, pois é o momento em que, finalmente, começa a
Páscoa, o “êxodo” de Jesus. O ambiente estava tenso. Judas já tinha decidido trair Jesus. Os outros
estavam com medo, sem entender os acontecimentos. Mas estas contradições não impediram a
Jesus de renovar a Aliança. O seu amor era maior que as fraquezas e falhas dos amigos.
Preparativos para a Ceia Pascal. “Veio o dia dos Ázimos, quando devia ser imolada a páscoa”
(Lc 22,1). Esta frase lembra a carta de Paulo que diz: “Nossa páscoa, Cristo, foi imolada” (1 Cor 5,7).
No primeiro êxodo, aquele do Egito, o sangue do cordeiro pascal, passado nas portas das casas,
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libertou o povo da opressão do faraó (Ex 12,13). Agora, neste novo êxodo, Jesus, o novo Cordeiro
pascal, vai libertar o povo da opressão da lei. Vai revelar a bondade e a ternura de Deus Pai que
acolhe a todos. Jesus pensou em tudo para preparar bem a celebração desta última páscoa com
seus amigos. Combinou as coisas com pessoas conhecidas da cidade. Ele mantém até um certo
segredo, pois o momento era perigoso. Jesus estava sendo procurado para ser preso e morto.
Início da Ceia Pascal. “Desejei ardentemente comer esta páscoa com vocês” (Lc 22,15). É
como se dissesse: “Até que enfim! Chegou o momento que tanto desejei!” Jesus tem o desejo
ardente de levar a bom termo o projeto do Pai. É a última vez que ele está reunido com seus
amigos. É a páscoa definitiva, em que ele celebra a Nova Aliança e realiza a passagem da opressão
da antiga lei para a revelação da lei do amor. Jesus enche um cálice com vinho e o distribui aos
amigos. Beber o cálice significa cumprir a missão recebida do Pai (Mc 10,38-39; Jo 18,11). Jesus
bebe o cálice que o Pai lhe deu e pede que seus amigos participem.
A Instituição da Eucaristia (Lc 22,19-20). O último encontro de Jesus com os discípulos
realiza-se no ambiente solene da celebração tradicional da Páscoa. Eles estão reunidos para comer
o cordeiro pascal e, assim, lembrar a libertação da opressão do Egito. O contraste é muito grande.
De um lado, os discípulos: eles estão inseguros, sem entenderem o alcance dos acontecimentos. De
outro lado, Jesus que faz um gesto de partilha, convidando seus amigos a tomar o seu corpo e o
seu sangue. Ele distribui o pão e o vinho como expressão do que ele mesmo estava vivendo
naquele momento: doar sua vida, distribuir-se aos outros para que eles pudessem viver e, assim,
revelar o amor do Pai. Este é o sentido da eucaristia: aprender de Jesus a distribuir-se, doar-se,
entregar-se, servir, sem medo dos poderes que ameaçam a vida. E Jesus acrescenta uma frase que
só Lucas conservou: “Fazei isto em memória de mim!” (Lc 19,22).
Anúncio da traição de Judas. Estando reunido com os discípulos pela última vez, Jesus
anuncia: “A mão daquele que me trai está comigo sobre a mesa” (Lc 22,21). Este jeito de falar
acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa era a expressão máxima da amizade, da
intimidade e da confiança. Com outras palavras, Jesus vai ser traído por alguém muito amigo! E
Jesus acrescenta: “Sim, o Filho do Homem vai morrer, segundo o que foi determinado!” (Lc 22,22)
Aqui não se trata de predestinação nem de fatalismo. Trata-se da certeza que a experiência
humana de séculos nos comunica: num mundo organizado a partir do egoísmo, quem decide viver
o amor, vai morrer crucificado. E Jesus termina: “Ai daquele homem por quem o Filho do Homem
foi entregue!” (Lc 22,22). Será para sempre conhecido e lembrado como o traidor de Jesus!
A grande luta. De um lado, Jesus. Animado pelo Espírito de Deus, ele procura realizar o
projeto do Pai. Do outro lado, os inimigos de Jesus. Animados pelo espírito oposto, procuram
realizar o projeto de satanás. "Satanás entrou em Judas” (Lc 22,3) e o levou a conferenciar com os
sacerdotes, que estavam procurando um meio para eliminar Jesus, mas temiam o povo).
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Combinaram o preço e Judas começou a procurar um jeito de como entregá-lo (Lc 22,5). É na
Última Ceia que as duas forças se encontram e se enfrentam! Jesus diz: "A mão que me trai está
comigo sobre a mesa" (Lc 22,21). Por de trás da luta entre os homens, está a luta entre os poderes.
O vencedor será Jesus! Lucas acentua a semelhança entre o Êxodo e a paixão, morte e ressurreição
de Jesus. No êxodo antigo, conduzido por Moisés, Deus libertou o povo da lei do Faraó que oprimia
e escravizava o povo. No novo êxodo, conduzido por Jesus, Deus liberta o povo da escravidão da lei,
que o impedia de perceber e de experimentar o amor acolhedor de Deus como Pai. No antigo
êxodo, nasceu o povo, feito de muitas raças e tribos diferentes. O que os unia e deles fazia um só
povo era a fé comum em Javé, o Deus libertador. No novo êxodo, nasce um povo novo, feito de
muitas raças, culturas e etnias. O que os une não é o sangue nem a raça, mas sim a fé comum em
Jesus. Ele nos revelou a misericórdia e a ternura do Deus libertador que não exclui a ninguém.
A agonia de Jesus no Horto das Oliveiras. A Oração: fonte de luz e de força (Lc 22,39-46). A
agonia foi uma dura experiência de angústia e de solidão, tão grande que ele chegou a suar sangue.
Não teve o apoio dos amigos, porque estavam dormindo. Mas Jesus se fortaleceu pela oração. No
início da sua missão, Jesus foi tentado no deserto (Lc 4,1-12). Naquela ocasião, Lucas fez a seguinte
observação: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo deixou Jesus até o momento oportuno" (Lc
4,13). Este momento oportuno agora chegou. Chegou a hora da tentação suprema, “a hora do
poder das trevas” (Lc 22,53). Começou a última etapa do êxodo de Jesus. O satanás já tinha
conseguido desviar Judas (Lc 22,3). Queria desviar Tiago e João na hora da vingança contra os
samaritanos, no início da viagem para Jerusalém (Lc 9,55). Quis entrar em Pedro, mas a oração de
Jesus foi mais forte (Lc 22,31). Agora ele vai fazer a tentativa suprema para desviar Jesus do
caminho do Pai. Mas não vai conseguir.
Durante a leitura do texto que descreve a agonia de Jesus no Horto, convém lembrar a cena
da Transfiguração (Lc 9,28-36). No Evangelho de Lucas estes dois episódios tem uma semelhança
muito grande, o que, sem dúvida, encerra uma mensagem da parte de Lucas para nós, seus leitores
e suas leitoras.
Tentação e angústia (Lc 22,39-40) “Como de costume, Jesus sai para o Monte das Oliveiras”.
Era a última noite da sua vida aqui na terra! Ele costumava ir naquela chácara para rezar. Jesus
sabe que estão à sua procura para matá-lo. Sente a hora da tentação chegando. Bastaria subir o
Monte das Oliveiras, alcançar o deserto, e ele estaria livre. Ninguém o prenderia! O que fazer? Era
a tentação de escapar do cálice. Ele reza e pede aos amigos, para que rezem, “afim de não entrar
em tentação!” Jesus estava sentindo a angústia provocada pela tentação. Não quer que seus
amigos sofram esta mesma tentação.
A oração da total entrega (Lc 22,41-43). Jesus reza de joelhos. Ele devia estar muito abalado
e angustiado, pois naquele tempo, o costume era rezar em pé. Lucas traz as palavras da oração:
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“Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, não a minha, mas a tua vontade seja feita!” É a
oração da total entrega. Jesus não volta atrás, não quer escapar. Quer é continuar no caminho de
acolher os excluídos, de denunciar o fechamento da religião oficial, de insistir nas exigências da
fraternidade, mesmo que os poderosos o persigam e matem. Ele assume ser o Messias-Servo.
O anjo de Deus ajuda a beber o cálice (Lc 22,43-44). Apareceu um anjo do céu. O anjo do
céu é o próprio Deus se comunicando com o ser humano. É pela terceira vez no evangelho de
Lucas, que Deus se manifesta diretamente a Jesus. A primeira vez, foi no Batismo (Lc 3,21-22). A
segunda, na Transfiguração (Lc 9,35). E agora, a terceira vez, aqui no Horto. O anjo não vem para
consolar. Ele vem para ajudá-lo a continuar no caminho do Pai até o fim, a beber o cálice até o
fundo. Diz a carta aos Hebreus: “Nos dias da sua vida terrestre, Jesus apresentou pedidos e
súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte” (Hb 5,7). De fato,
depois que apareceu o anjo, Lucas diz que “cheio da angústia, Jesus reza com mais insistência
ainda” e começa a suar sangue. Suor de sangue é sinal de que a angústia que o envolve é muito
grande. Jesus é jovem. Tem apenas 33 anos. É acusado e perseguido por algo que nunca fez nem
quis, e sabe que vão matá-lo. É pela oração que ele se reencontra consigo, com a missão e com o
Pai. A paz voltou. “Foi atendido por causa da sua total entrega!” (Hb 5,7).
Resistir à tentação (Lc 22,45-46). Jesus se levanta. Vai ao encontro dos discípulos. Eles estão
dormindo de tristeza. Novamente, lhes dá a mesma recomendação: “Levantem e rezem, para que
não entrem em tentação!” No Pai-Nosso, Jesus já tinha mandado fazer o mesmo pedido: “Não nos
deixeis cair em tentação!” (Lc 11,4) A tentação faz parte da vida. Constantemente, Jesus era
puxado para seguir por caminhos contrários ao caminho do Pai. Mas ele resiste através da oração e
vence a tentação. Partindo da sua própria experiência, dá um conselho aos amiogos: "Rezem para
que não entrem em tentação!" A tentação de assumir o papel do Messias glorioso acompanhou
Jesus, do começo ao fim. A pressão vinha de todos os lados. Pessoas, fatos, situações, o próprio
demônio, todos tentavam levá-lo por outros caminhos. Mas nunca ninguém conseguiu desviá-lo do
caminho do Pai. Pedro tentou afastá-lo do caminho da Cruz, mas recebeu uma resposta dura: "Vai
embora, Satanás!"(Mc 8,33). Seus pais tiveram que ouvir: “Então não sabiam que devo estar na
casa do meu Pai?”(Lc 2,49). Aos parentes ele disse: "Quem é minha mãe? Quem são meus ir-
mãos?"(Mc 3,33). Aos apóstolos que queriam levá-lo de volta, ele disse: "Vamos para outros
lugares! Pois foi para isto que eu vim!"(Mc 1,38). João Batista é convidado a conferir as profecias
com a realidade dos fatos (Mt 11,4-6 e Is 29,18-19; 35,5-6; 61,1). Aos fariseus avisou: “Vão dizer
àquela raposa que vou continuar trabalhando aqui hoje e amanhã. Só vou terminar é depois de
amanhã!” (Lc13, 32). O povo queria forçar Jesus a ser o messias-rei (Jo 6,15). Ao percebê-lo, Jesus
simplesmente foi embora e se refugiou na montanha (Jo 6,15). Ao demônio Jesus reage com força,
condenando as propostas com palavras da Escritura (Mt 4, 4.7.10). No Horto, o sofrimento leva
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Jesus a pedir: "Pai, afasta de mim este cálice!" Mas ele logo acrescenta: "Não o que eu quero, mas
o que tu queres"(Mc 14, 36). E na hora da prisão, hora das trevas(Lc 22,53), aparece pela última vez
a tentação de seguir pelo caminho do messias guerreiro. Jesus reage: “Guarde a espada no seu
lugar!”(Mt 26,52). Orientando-se pela Palavra de Deus, Jesus recusou todas estas propostas.
Inserido no meio dos pobres e excluídos e unido ao Pai pela oração, fiel a ambos, ele resistia e
seguia pelo caminho do Servo de Javé, o caminho do serviço ao povo (Mt 20,28).
Morte e Ressurreição. Só ressuscita quem morre primeiro! Lucas conta como foi a morte, o
enterro e a ressurreição de Jesus. Mas ele conta os fatos de tal maneira, que a gente consiga
perceber a semente de esperança e de vida nova que pode nascer da crise, da dor e da morte. Na
hora em que a luz bate nos olhos, tudo escurece. Na hora do parto, as dores se anunciam. Na hora
da crise, o futuro se abre. Na hora da morte, a vida renasce. Os inimigos conseguiram realizar o seu
projeto. Mataram Jesus. Venceram, usando o poder da força bruta. Venceram, mas não conven-
ceram! Não conseguiram destruir nem abafar a bondade e o amor em Jesus. Pelo contrário! Lucas
mostra como Jesus, exatamente enquanto está sendo vítima do ódio e da crueldade dos homens,
revela a ternura de Deus e nos dá a "suprema prova do amor!" (Jo 13,1). Eis algumas frases de
Jesus que só Lucas nos conservou e nas quais transparece a vitória da vida que a morte não
conseguiu matar: “Desejei ardentemente comer esta páscoa com vocês” (22,15). “Façam isto em
memória de mim!” (22,19). “Simão, rezei por você, para que não desfaleça a sua fé!” (22,32). Na
hora da negação de Pedro, Jesus fixou o nele o olhar, provocando o choro de arependimemento
(22,61). No caminho do calvário, Jesus acolhe as mulheres: “Filhas de Jerusalém, não chorem por
mim!” (23,28) Na hora de ser pregado na cruz, ele reza: “Pai, perdoa, porque não sabem o que
fazem” (23,34). Ao ladrão pendurado na cruz a seu lado ele diz: “Hoje mesmo estarás comigo no
paraíso!” (23,43) Estas frases nos dão os olhos certos para ler e saborear a descrição da morte, do
enterro e da ressurreição de Jesus.
A morte de Jesus (Lc 23,44-46). Jesus está pendurado na Cruz. A morte está chegando. Ao
meio dia, o sol escurece, as trevas invadem a terra. Estes fenômenos da natureza interpretam o
significado da morte de Jesus. Simbolizam a chegada do Reino. O véu do santuário rasgou-se no
meio. Terminou a vigência do Antigo Testamento, simbolizado pelo Templo, cujo véu separava
Deus do resto do mundo. Pela sua vida, paixão, morte e ressurreição, Jesus trouxe Deus para perto
de nós e revelou a sua presença em tudo que existe e acontece. Na hora de morrer, Jesus deu um
forte grito. O grito do povo oprimido deu início ao primeiro exodo (Ex 2,23-25), pois Deus escutou o
grito do povo. Escutou também o grito de Jesus, fazendo com que se realizasse o novo êxodo. Jesus
resume toda a sua vida dizendo: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Com esta frase do
salmo (Sl 31,6), Jesus devolve ao Pai o Espírito que dele tinha recebido na hora do batismo (Lc
21
3,22). Foi na força do Espírito, que Jesus iniciou a sua missão. É na força do mesmo Espírito, que ele
a encerra.
As reações diante da morte de Jesus (Lc 23,47-49). Um estrangeiro, centurião do exército
romano, vendo o que acontecera na hora da morte de Jesus, faz uma profissão de fé: “Realmente,
este homem era um justo!” Justo é aquele que realiza o objetivo da Lei de Deus. Jesus realizou a
Lei, transgredindo normas inúteis, abrindo novos caminhos, e acolhendo a todos, inclusive aos
pagãos. A multidão, vendo o que tinha acontecido, voltou para casa batendo no peito. Reconhece o
erro que cometeu, pedindo a condenação de Jesus. Os amigos e as mulheres que o haviam
acompanhado desde a Galiléia, permanecem à distância, observando tudo. Testemunham que foi
assim que Jesus morreu. Aqui, Lucas indica a fonte, de onde recolheu parte do material que acaba
de contar.
O enterro de Jesus (Lc 23,50-54). José de Arimatéia, membro do Sinédrio, que não concor-
dara com a condenação de Jesus, cuidou do enterro. Jesus foi enterrado num sepulcro novo,
talhado na rocha. Realiza-se, assim, uma outra profecia de Isaías sobre o Servo que dizia: “Seu
túmulo está com os ricos” (Is 53,9). Lucas insiste em dizer: "Era o dia da Preparação. O sábado
estava quase começando”. O sábado é o 7º dia. Estava terminando o 6º dia da nova criação. Jesus
descansou no 7º dia.
As mulheres, testemunhas do enterro de Jesus (Lc 23,55-56). As mulheres testemunham
também o lugar onde foi colocado o corpo de Jesus. Havia alí muitos sepulcros, alguns fechados,
outros abertos. Quem não soubesse bem onde Jesus tinha sido enterrado, poderia enganar-se. Mas
elas seguiram José de Arimatéia, observaram bem o túmulo, viram o lugar, fixaram na memória.
Aquele sepulcro aberto do domingo de Páscoa era realmente de Jesus! Não foi um engano! Em
seguida, elas voltam para casa, preparando aromas e perfumes para poder ungir o corpo de Jesus
depois do descanso do sábado.
Mulheres testemunhas da ressurreição. Seguindo de perto o evangelho de Marcos, Lucas
oferece informações detalhadas sobre a hora e o lugar. Estes detalhes sugerem que as mulheres
são pessoas de confiança para testemunhar a ressurreição. Elas estavam convencidas de que Jesus
estava morto, pois iam para o túmulo para ungí-lo. A sua fé na ressurreição não foi fruto de
fantasia, mas algo totalmente inesperado. Quando chegaram no sepulcro, viram que a pedra já
tinha sido removida. Entrando dentro do sepulcro não encontraram o corpo de Jesus. Estes são os
fatos. Qual o seu significado?
O significado dos fatos: o anúncio da ressurreição (Lc 24,4-8). Dentro do sepulcro, elas
encontram dois homens em vestes fulgurantes que lhes interpretam o significado destes fatos
inexplicáveis: “Jesus está vivo. Ele ressuscitou!” Elas lembraram as palavras do próprio Jesus e as
22
palavras da Escritura. Daqui para a frente, a palavra de Jesus e a palavra da Escritura têm ambas o
mesmo valor.
Os apóstolos não acreditaram no testemunho das mulheres (Lc 24,9-12). Lucas diz quem
eram as mulheres: Maria Madalena, Joana e Maria, a mãe de Tiago, bem como as outras que
estavam com elas. Voltando do sepulcro, elas anunciaram a Boa Nova aos Onze, mas estes não lhes
deram crédito. Não foram capazes de crer no testemunho das mulheres. Diziam que era um
“desvario”, invenção, fofoca. Naquele tempo, as mulheres não podiam ser testemunhas. Ao
transmitir a elas a Ordem de anunciar a Boa Nova da ressurreição, Jesus estava pedindo uma
mudança total na cabeça das pessoas. Deviam dar crédito a quem, dentro da sociedade daquele
tempo, não merecia crédito. Assim, começou a subversão do anúncio da ressurreição! Lucas
termina dizendo que Pedro foi ao túmulo, encontrou-o vazio e voltou para casa. Mas não chegou a
crer. Ficou apenas surpreso.
A A experiência da ressurreição aconteceu, primeiro, nas mulheres (Mt 28,9-10; Mc 16,9; Lc
24, 4-11.23; Jo 20, 13-16); depois, nos homens. Ela é a confirmação de que, para Deus, uma vida vi-
vida como Jesus, é vida vitoriosa. Deus a ressuscita! Em torno desta Boa Nova, surgiram as co-
munidades. Crer na ressurreição o que é? É voltar para Jerusalém, de noite, reunir a comunidade e
partilhar as experiências, sem medo dos judeus e dos romanos (Lc 24,33-35). É receber a força do
Espírito, abrir as portas e anunciar a Boa Nova à multidão (At 2,4). É ter a coragem de dizer: "É
preciso obedecer antes a Deus que aos homens" (At 5,29). É reconhecer o erro e voltar para a casa
do pai: "Teu irmão estava morto e voltou a viver" (Lc 15,32). É sentir a mão de Jesus ressuscitado
que, nas horas difíceis, nos diz: “Não tenha medo! Eu sou o Primeiro e o Último. Sou o Vivente.
Estive morto, mas eis que estou vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da morada dos
mortos” (Apc 1,17s). É crer que Deus é capaz de tirar vida da própria morte (Hb 11,19). É crer que o
mesmo poder, usado por Deus para tirar Jesus da morte, opera também em nós e nas nossas
comunidades, através da fé (Ef 1,19-23).
Até hoje, a ressurreição acontece. Ela nos faz experimentar a presença libertadora de Jesus
na comunidade, na vida de cada dia (Mt 18,20), e nos leva a cantar: "Quem nos separará, quem vai
nos separar, do amor de Cristo, quem nos separará? Se ele é por nós, quem será contra nós?"
Nada, ninguém, autoridade nenhuma é capaz de neutralizar o impulso criador da ressurreição de
Jesus (Rm 8,38-39). A experiência da ressurreição ilumina a cruz e a transforma em sinal de vida (Lc
24,25-27). Abre os olhos para entender o significado da Sagrada Escritura (Lc 24,25-27.44-48) e
ajuda a entender as palavras e gestos do próprio Jesus (Jo 2,21-22; 5,39; 14,26). Uma comunidade
que quiser ser testemunho fiel da Boa Nova da Ressurreição deve ser sinal de vida, lutar pela vida
contra as forças da morte. Sobretudo aqui na América Latina, onde a vida do povo corre perigo por
causa do sistema de morte que nos foi imposto.
23
3ª Parte DESTAQUES
1. As Preferências de Lucas
Vimos de perto quem era Lucas e analisamos dois dos motivos que o levaram a escrever o
seu Evangelho. De um lado, a abertura das comunidades cristãs para as etnias e culturas pagãs
daquela época provocou uma tensão muito forte entre judeus e pagãos convertidos. Lucas
escreveu para que as comunidades se mantivessem bem firmes no rumo da abertura para os
pagãos. De outro lado, a conversão de pessoas de classes mais ricas trouxe para dentro das
comunidades o conflito social. A discriminação dos pobres pelos ricos, que marcava o império
romano, começou a existir entre os próprios cristãos. Lucas escreveu para que as comunidades
rejeitassem a ideologia do império romano e se firmassem na partilha e na convivência fraterna,
sem discriminação. Estes são os dois motivos principais que estão por de trás do evangelho de
Lucas. Os dois motivos tem uma raiz comum: Deus é nosso Pai.
A raiz comum de tudo: Deus é nosso Pai
Os dois motivos têm uma raiz comum. É a experiência que Jesus teve de Deus como Pai,
cheio de ternura. Se Deus é nosso Pai, então somos todos irmãos e irmãs. Esta é a grande Boa
Notícia que Jesus nos trouxe! Aí, já não é possível alguém, em nome de Deus, impedir a entrada
dos pagãos ou excluir um irmão ou uma irmã. Nem é possível o rico discriminar o pobre. Isto seria o
mesmo que transmitir uma falsa imagem de Deus. Seria negar pela prática a revelação que Jesus
nos trouxe de Deus como Pai bondoso que faz de todos nós irmãos e irmãs da mesma família.
Esta raiz comum está na origem dos três temas que aparecem com frequência no Evangelho
de Lucas: (1) A oração na vida de Jesus; (2) A importância da ação do Espírito Santo na vida de
Jesus; (3) A atenção que Jesus dá às mulheres. Se você, durante a leitura que fará do evangelho de
Lucas, começar a prestar atenção nestes temas, irá descobrir coisas muito bonitas a respeito de
cada um destes assuntos.
1. A oração na vida de Jesus
Lucas é o evangelista que mais informa sobre a vida de oração de Jesus. Ele apresenta Jesus
em constante oração: Lc 2,46-50; 3,21; 4,1-2; 4,3-12; 4,16; 5,16; 6,12;9,16; 24,30; 9,18; 9,28; etc.
etc. Foi através de sua vida de oração, que Jesus se tornou a revelação da ternura e da misericórdia
de Deus como Pai. A respiração da vida de Jesus era fazer a vontade do Pai. A oração de Jesus
estava intimamente ligada à vida, aos fatos concretos, às decisões que devia tomar. Para poder ser
fiel ao projeto do Pai, ele buscava ficar a sós com Ele. Escutá-lo. Nos momentos difíceis e decisivos
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de sua vida, Jesus rezava os Salmos. Como todo judeu piedoso, conhecia-os de memória. A
recitação dos Salmos não matou nele a criatividade. Pelo contrário. Jesus chegou a fazer um salmo
que ele transmitiu para nós. É o Pai Nosso (Lc 11,1-4; cf Mt 6,9-13). Sua vida era uma oração
permanente. Ele dizia: "Eu a cada momento faço o que o Pai me mostra para fazer!" (Jo 5,19.30) A
ele se aplica o que diz o Salmo: "Eu sou oração!" (Sl 109,4).
2. A importância da ação do Espírito Santo na vida de Jesus
Lucas dá uma atenção todo especial à ação do Espírito Santo na vida e na atividade de Jesus.
Em Jesus se manifesta o dom do Espírito Santo, prometido no Antigo Testamento. O Espírito Santo
está presente em tudo que Jesus diz e faz, desde a sua concepção e batismo até à hora da sua
morte. Ele foi concebido pelo Espírito Santo (Lc 1,35). O mesmo Espírito desceu sobre ele na hora
do batismo (Lc 3,21-22) e o ungiu para anunciar a Boa Nova de Deus aos pobres (Lc 4,18). O Espírito
age nele e o orienta (Lc 4,1.14), na dor e na alegria (Lc 10,21; 12,12). Jesus promete que o Pai dará
o mesmo Espírito a quem o pede na oração (Lc 11,13). No fim da sua vida, na hora de morrer,
terminada sua missão, Jesus entrega o Espírito ao Pai: "Em tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc
23,46). Na ressurreição ele o recebeu em plenitude para poder entregá-lo a nós (At 1,2). É
surpreendente a atenção que Lucas dá à ação do Espírito Santo, tanto no Evangelho como nos Atos
dos Apóstolos.
3. A atenção que Jesus dá às mulheres
No tempo de Jesus, a mulher vivia marginalizada. Na sinagoga ela não participava, na vida
pública não podia ser testemunha. Da parte das mulheres já havia uma resistência crescente contra
esta exclusão. Vejamos alguns episódios do Evangelho de Lucas em que transparece esta
resistência das mulheres e o acolhimento que Jesus lhes dava:
* A moça prostituída tem coragem de desafiar as normas da sociedade e da religião. Ela entra
na casa de um fariseu para encontrar-se com Jesus, e tem gestos de independência como, por
exemplo, soltar os cabelos em público, o que não era permitido. Ela é censurada pelo fariseu, mas
Jesus a acolhe e a defende, e a apresenta como modelo para o fariseu, "porque ela muito amou"
(Lc 7,36-50).
* A mulher encurvada não se importa com os gritos do dirigente da sinagoga. Ela busca a cura,
mesmo em dia de sábado. Quando a vida entra em jogo, o povo é capaz de perceber a relatividade
das normas. Ela é acolhida por Jesus como filha de Abraão, isto é, como membro pleno do povo de
Deus. Jesus a defende contra o dirigente da sinagoga (Lc 13,10-17).
* A mulher considerada impura por causa do sangue, tem a coragem de meter-se no meio da
multidão e de tocar em Jesus (Lc 8,40-45). Marcos informa que ela pensava exatamente o contrário
25
da doutrina oficial. A doutrina dizia: “Se eu, sendo impura, tocar nele, ele ficará impuro!” Mas ela
dizia: “Se eu tocar nele, ficarei curada!” (Mc 5,28). Ela é acolhida por Jesus sem censura e é curada
(Lc 8,46-48).
O Evangelho de Lucas sempre foi considerado o Evangelho das mulheres. De fato, Lucas é o
que traz o maior número de episódios em que se destaca o relacionamento de Jesus com as
mulheres. Mas a novidade não está só na abundante citação da presença delas ao redor de Jesus,
mas sobretudo na atitude de Jesus em relação a elas. Jesus se deixa tocar por elas sem medo de se
contaminar (Lc 7,39; 8,44-45.54). À diferença dos mestres da época, ele aceita mulheres como
seguidoras e discípulas (Lc 8,2-3; 10,39). A força libertadora de Deus, atuante em Jesus, faz a
mulher se levantar e assumir sua dignidade (Lc 13,13). Jesus é sensível ao sofrimento da viúva e se
solidariza com a sua dor (Lc 7,13). O trabalho da mulher preparando alimento é visto por Jesus
como sinal do Reino (Lc 13,20-21). A viúva persistente que luta por seus direitos é colocada como
modelo de oração (Lc 18,1-8), e a viúva pobre que partilha seus poucos bens com os outros é
modelo de entrega e doação (Lc 21,1-4). Numa época em que o testemunho das mulheres não era
aceito como válido, Jesus escolhe as mulheres como testemunhas da sua morte (Lc 23,49),
sepultura (Lc 23,55-56) e ressurreição (Lc 24,1-11.22-24)
Mais adiante veremos de perto alguns outros temas importantes que percorrem o Evangelho
de Lucas, por exemplo, a opção pelos pobres e a misericórdia de Deus.
2.
O que o Evangelho de Lucas nos diz sobre Maria, a Mãe de Jesus
No quarto Capítulo oferecemos um resumo do 1º Bloco que compreende os capítulos 1 e 2
do evangelho de Lucas. Antes de continuar olhando os outros blocos e capítulos, vamos ver de
perto o que Lucas informa sobre Nossa Senhora, a mãe de Jesus.
O que a Bíblia informa sobre Maria, a Mãe de Jesus
A Bíblia fala pouco sobre Maria e ela mesma fala menos ainda. O Novo Testamento fala sobre
Maria em sete livros: Gálatas (Gl 4,4), Marcos (Mc 3,31-35), Mateus (Capítulos 1 e 2), Lucas
(Capítulos 1 e 2 e Lc 11,27-28), Atos dos Apóstolos (At 1,14), João (Jo 2,1-12 e Jo 19,25-27) e
Apocalipse (Ap 12,1-17).
Em cinco destes sete liros, a saber: Gálatas, Marcos, Mateus, Atos e Apocalipse, Maria apenas
aparece, mas não fala. É somente em dois livros, os evangelhos de Lucas e João, que Maria aparece
falando e, ao todo, ela diz apenas sete palavras. Só! Nada mais!
Mas cada uma daquelas sete palavras ou frases é uma janela que permite a gente olhar para
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dentro da casa de Maria e descobrir como ela se relacionava com a Palavra de Deus. Aquelas sete
palavras nos ensinam como descobrir a Palavra de Deus, como ruminá-la e encarná-la em nossas
vidas. Pois, melhor do que qualquer outra pessoa, Maria soube ruminar e encarnar a Palavra de
Deus em sua vida (Lc 2,19 Lc 2,51).
As sete palavras foram pronunciadas em cinco encontros diferentes: duas no encontro de
Maria com o Anjo Gabriel; duas no encontro de Maria com o povo na festa de casamento em Caná;
uma no encontro de Maria com Jesus no Templo, e uma no encontro de Maria com a sua prima
Isabel. A última palavra, a mais importante de todas, foi pronunciada ao pé de Cruz. Eis a lista das
sete palavras:
1ª Palavra: "Como pode ser isso se eu não conheço homem algum!" (Lc 1,34)
2ª Palavra: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!" (Lc 1,38)
3ª Palavra: "Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus meu Salvador!" (Lc 1,46-55)
4ª Palavra: "Meu filho porque nos fez isso? Teu pai e eu, aflitos, te procurávamos" (Lc 2,48)
5º Palavra: "Eles não tem mais vinho!" (Jo 2,3)
6ª Palavra: "Fazei tudo o que ele vos disser!" (Jo 2,5)
7ª Palavra: O silêncio ao pé da Cruz, mais eloqüente que mil palavras! (Jo 19,25-27)
Vamos ver de perto o que Lucas fala sobre Maria por ocasião do anúncio do anjo Gabriel, e o
que Maria, ela mesma, falou naquela ocasião.
O Anúncio do Anjo Gabriel a Maria
Descrevendo a visita do anjo Gabriel a Maria, Lucas evoca as visitas de Deus a várias mulheres
do Antigo Testamento: Sara, mãe de Isaque (Gn 18,9-15), Ana, mãe de Samuel (1 Sam 1,9-18), a
mãe de Sansão (Jz 13,2-5). A todas elas o anjo tinha anunciado o nascimento de um filho com
missão importante na realização do plano de Deus. E agora, ele faz o mesmo anúncio a Maria.
A Palavra de Deus chega a Maria através de uma experiência profunda de Deus, manifestada na
visita do anjo. Foi graças à meditação da Palavra de Deus na Bíblia, que Maria foi capaz de perceber
a Palavra viva de Deus na visita do Anjo. Vejamos de perto o texto em que Lucas descreve o
acontecimento. Se puder, abra a sua Bíblia para poder acompanhar de perto o breve comentário
que segue:
1. Lucas 1,26-27: A Palavra faz a sua entrada na vida de Maria.
Nestes primeiros dois versículos, Lucas apresenta as pessoas e os lugares: uma virgem
chamada Maria, prometida em casamento a José, da casa de Davi. Nazaré, uma cidadezinha na
Galiléia. O anjo Gabriel é o enviado de Deus. O nome Gabriel significa Deus é forte. O nome Maria
significa amada de Yahweh ou Yahweh é o meu Senhor. A história da visita de Deus a Maria começa
com a expressão “No sexto mês”. É o "sexto mês" da gravidez de Isabel, parenta de Maria, uma
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senhora já de idade, precisando de ajuda. A necessidade concreta de Isabel encontra-se no começo
e no fim deste episódio (Lc 1,26.36.39).
2. Lucas 1,28-29: A reação de Maria.
O anjo apareceu a Zacarias no Templo (Lc 1,8-13). A Maria ele aparece na casa dela, no
ambiente da vida de cada dia. Ele diz: “Alegra-te! Cheia de graça! O Senhor está contigo!” Palavras
semelhantes já tinham sido ditas a Moisés (Ex 3,12), a Jeremias (Jr 1,8), a Gedeão (Jz 6,12), a Rute
(Rt 2,4) e a muitos outras pessoas do Antigo Testamentos. Estas palavras abrem o horizonte para a
missão que estas pessoas vão receber no serviço ao povo de Deus. Lucas diz que Maria procura
saber o significado da saudação. Ela é realista, usa a cabeça. Quer entender. Não aceita qualquer
aparição ou inspiração.
3. Lucas 1,30-33: A explicação do anjo.
“Não tenha medo, Maria!” O primeiro recado de Deus é não ter medo! “Não tenha medo!”
Em seguida, o anjo recorda as grandes promessas que vão ser realizadas através do filho que vai
nascer de Maria. Este filho deverá receber o nome de Jesus. O nome Jesus significa Aquele que
salva ou Salvador. Ele será chamado Filho do Altíssimo e nele se realizará, finalmente, o Reino de
Deus prometido a Davi, que todos estavam esperando. Jesus é a realização de todas as promessas
de Deus ao povo.
4. Lucas 1,34: Nova pergunta de Maria
Maria tem consciência da missão importante que está recebendo, mas ela permanece
realista. Não se deixa embalar pela grandeza da oferta, e olha a sua condição humilde. Ela diz:
“Como é que vai ser isto, se eu não conheço homem algum?” Ela analisa a oferta a partir das
condições e dos critérios que nós, seres humanos, temos à nossa disposição. Humanamente
falando, não era possível que aquela oferta da Palavra de Deus se realizasse naquele momento,
pois ela não era casada. Era apenas noiva de José, seu futuro marido.
5. Lucas 1,35-37: Nova explicação do anjo
O Espírito Santo, presente na Palavra de Deus desde a Criação (Gênesis 1,2), consegue
realizar coisas que parecem impossíveis aos olhos humanos. Por isso, o Santo que vai nascer de
Maria será chamado Filho de Deus. Quando hoje a Palavra de Deus é acolhida pelos pobres sem
estudo, algo novo acontece pela força do Espírito Santo! Algo tão novo e tão surpreendente como
um filho nascer de uma virgem ou como um filho nascer de Isabel, uma senhora já de idade, da
qual todo mundo dizia que ela não podia ter neném! E o anjo acrescenta: “E olhe, Maria! Isabel,
tua prima, já está no sexto mês! Pois para Deus nada é impossível” O impossível já estava
acontecendo! Já estava no sexto mês!
6. Lucas 1,38-39: A entrega de Maria.
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A resposta do anjo clareou tudo para Maria e ela se entrega: “Eis aqui a serva do Senhor!
Faça-se em mim segundo a tua Palavra”. Maria usa para si o título de Serva, empregada. O título
vem de Isaías, que apresenta a missão do povo não como um privilégio, mas sim como um serviço
aos outros povos (Is 42,1-9; 49,3-6). Mais tarde, Jesus, o filho que estava sendo gerado naquele
momento, definirá sua missão como um serviço: “Não vim para ser servido, mas para servir!” (Mt
20,28). Aprendeu da Mãe!
Em seguida, Maria deixa o lugar onde estava e vai para a Judéia, no Sul, distante mais de 150
quilômetros, ou seja, quatro ou cinco dias de viagem a pé, para ajudar sua prima Isabel. Maria
começa a servir e a cumprir sua missão a favor do povo de Deus. A Palavra de Deus chegou e fez
com que Maria saísse de si para servir aos outros.
Na descrição da visita do anjo a Maria, são muitas as passagens do Antigo Testamento que são
lembradas ou evocadas. O Antigo Testamento está dando o seu fruto em Jesus, o filho de Maria. É
como se a flor finalmente desabrochasse e mostrasse toda a sua beleza e perfume, como diz nosso
canto: “Da cepa brotou a rama, da rama brotou a flor, Da flor nasceu Maria, de Maria o Salvador!”
Eis algumas das evocações e lembranças:
1. "O Senhor está contigo", como esteve com Moisés, Jeremias e tantos outros.
2. "A virgem dará à luz", conforme anunciou o profeta Isaías (Is 7,14).
3. Jesus "ocupará o Trono de Davi", como foi prometido pelo profeta (2 Sam 7,12s).
4. "O seu Reino não terá fim", como foi prometido pelo profeta Daniel (Dn 7,14).
5. Ele será fruto da ação criadora do Espírito, como foi prometido por Isaías (Is 11,1-3)
6. Ele será chamado Filho de Deus, como foi prometido a Davi (2 Sam 7,14).
7. "A Deus nada é impossível". Por isso, nasceu Isaque e nasce Jesus (Gn 18,14).
3.
A Transfiguração de Jesus
Vimos como Jesus perguntava aos discípulos (e a todos nós): “Quem dizem os homens que eu
sou?” (Lc 9,18-21). A resposta mostrava que ninguém tinha entendido direito a proposta de Jesus.
O povo o imaginava como João Batista, como Elias ou algum dos antigos profetas (Lc 9,18-19). Os
discípulos o aceitavam como Messias, mas como messias glorioso nacionalista, bem de acordo com
a propaganda do governo e da religião oficial daquele tempo (Lc 9,20-21). Jesus tentou explicar aos
discípulos que o caminho previsto pelos profetas para o Messias era o caminho do sofrimento e da
cruz, como consequência do compromisso assumido por ele com os pobres e excluídos. E ele
acrescentou que quem quisesse segui-lo devia carregar a cruz atrás dele (Lc 9,22-26). Mas não teve
muito êxito. Foi um momento de crise muito séria para os discípulos. É neste contexto de crise que
acontece a Transfiguração de que vamos falar neste 7º capítulo.
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No capítulo 5 vimos como Lucas nos apresenta Maria, a Mãe de Jesus. Neste capítulo 7
vamos ver de perto o profeta Elias que apareceu junto com Jesus na glória da transfiguração.
Elias no Antigo e no Novo Testamento
Elias viveu no século IX antes de Cristo. Ele foi o primeiro profeta que, a partir da sua
experiência de Deus, teve a coragem de enfrentar o poder absoluto do rei. Ele chegou a denunciar
a manipulação da religião pelo rei Acab e pela rainha Jezabel (1Reis 17,1; 21,1-24). A atividade
profética de Elias ficou gravada na memória do povo. As suas histórias foram transmitidas
oralmente durante séculos, de geração em geração. Contando e ouvindo o que Elias tinha feito, o
povo se reanimava e se fortalecia na fé e na esperança.
Foi só na época da crise do cativeiro, século VI aC, que as histórias de Elias começaram a ser
escritas. A crise de fé no cativeiro foi tão grande que o povo achava que Deus o tivesse abandonado
(Isaías 40,27; 49,14). Foi a meditação das histórias do profeta Elias, sobretudo da sua crise de fé
descrita no livro dos Reis (1Reis 19,1-10), que ajudou o povo do cativeiro a redescobrir a presença
de Deus não nas coisas grandes e pomposas, mas sim na brisa suave das coisas pequenas e comuns
da vida (1Reis 19,11-13). É como se recebessem um carinhoso puxão de orelha: “Acorda! Pare de
buscar Deus nas coisas grandes. Nosso Deus é um Deus que se esconde (Isaías 45,15) e ele se
esconde lá onde antes ninguém o procurava, isto é, no meio dos pobres e excluídos (Isaías 57,15).
Foi a memória do profeta Elias que ajudou o povo a reencontrar o caminho em direção à prática da
justiça.
Depois do cativeiro, a figura de Elias continuou viva no meio do povo. O livro do Eclesiástico,
por exemplo, vê nele o homem da Palavra que virá reconstruir a vida familiar e comunitária. O
Eclesiástico diz: “Então surgiu o profeta Elias como um fogo, e a sua palavra queimava como tocha.
Nas ameaças para os tempos futuros, Elias foi designado para apaziguar a ira antes do furor, a fim
de reconduzir o coração dos pais até os filhos e restabelecer as tribos de Jacó” (Eclo 48,1.10). A
mesma esperança aparece no livro de Malaquias (Ml 3,23). O apóstolo Tiago vê nele o homem da
oração. Ele diz: “A oração do justo, feita com insistência, tem muita força. Elias era homem fraco
como nós. No entanto, ele rezou bastante para que não chovesse, e não choveu sobre a terra
durante três anos e meio. Depois ele rezou de novo, e o céu mandou chuva, e a terra produziu seu
fruto”. (Tiago 5,16-18)
Elias e Moisés na Transfiguração de Jesus
O nome do profeta Elias aparece duas vezes no Evangelho de Lucas. A primeira vez é logo no
início do Evangelho quando diz que João Batista vem anunciar a chegada de Jesus “com o espírito e
o poder do profeta Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os rebeldes à sabedoria
30
dos justos, preparando assim para o Senhor um povo bem disposto” (Lc 1,17). A segunda vez é
quando Elias aparece junto com Moisés na Transfiguração de Jesus (Lucas 9,30). Moisés representa
a Lei de Deus. Elias representa a Profecia. Ambos confirmam Jesus como o Messias Servidor que,
através do sofrimento da cruz, fará o seu êxodo em direção à glória da ressurreição (Lucas 9,31).
Várias vezes, Jesus já tinha entrado em conflito com as autoridades. Ele sabia que não iam
deixá-lo fazer o que estava fazendo. Mais cedo ou mais tarde, iriam prendê-lo. Pois, dentro daquela
sociedade, o anúncio do Reino, do jeito que era feito por Jesus, não seria tolerado. Ou ele voltava
atrás, ou seria morto! Jesus não voltou atrás, pois queria ser fiel ao Pai. Por isso, a cruz apareceu no
horizonte, já não como uma possibilidade, mas sim como uma certeza (Lc 9,22). Junto com a cruz
apareceu a tentação de seguir pelo caminho do Messias Glorioso e não pelo caminho do Servo
Crucificado. Nesta hora difícil, Jesus sobe a montanha para rezar, levando consigo Pedro, Tiago e
João (Lucas 9,28).
Enquanto reza na solidão da montanha, Jesus muda de aspecto e aparece glorioso, do jeito
que os discípulos o imaginavam (Lucas 9,29). É a sua transfiguração. Junto com Jesus na glória
aparecem Moisés e Elias, os dois maiores do Antigo Testamento, que representavam a Lei (Moisés)
e a Profecia (Elias). Eles conversam com Jesus sobre “o êxodo a ser completado em Jerusalém”
(Lucas 9,30-31). Assim, diante dos discípulos, a Lei e os Profetas confirmam que Jesus é realmente o
Messias Glorioso, prometido no Antigo Testamento e esperado pelo povo. Mas confirmam também
que o caminho para a Glória passa pela travessia dolorosa do "êxodo". O êxodo de Jesus é a sua
paixão, morte e ressurreição. Pelo seu “êxodo”, Jesus vai quebrar o domínio da propaganda do
governo e da religião oficial, que mantinha todos presos dentro da visão do messias glorioso
nacionalista. Jesus vai libertar o povo, para que possa enxergar de novo o verdadeiro sentido do
Reino de Deus.
Enquanto Moisés e Elias conversavam com Jesus, os discípulos dormiam (Lucas 9,32).
Acordando, falam bobagem, ficam com medo e não querem mais descer. Gostam mais da Glória do
que da Cruz. Parece que a fala da cruz não lhes agrada. Eles querem é segurar o momento da glória
no alto do Monte e se oferecem para construir três tendas. Pedro diz: “É bom estar aqui. Vamos
fazer três tendas!” (Lucas 9,33-34)
A voz do Pai sai da nuvem e diz: “Este é o meu filho, o eleito, ouvi-o” (Lucas 9,35). Com esta
mesma frase o profeta Isaías tinha anunciado o Messias-Servo (Is 42,1). Depois de Moisés e Elias,
agora é o próprio Pai que apresenta Jesus como o Messias-Servo que chega à glória através da cruz
(Isaías 53,3,12). No fim da visão, Moisés e Elias desaparecem e só fica Jesus. Isto significa que,
daqui para a frente, quem interpreta a Escritura e a Vontade de Deus para o povo será Jesus, só
ele! Ele é a Palavra de Deus para os discípulos: “Ouvi-o!”.
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A lição do profeta Elias na Transfiguração
A Transfiguração é narrada em três evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas. Sinal de que este
episódio tinha uma mensagem importante para as primeiras comunidades. Ela ajudou os discípulos
a superar a crise que a cruz e o sofrimento provocavam neles. A Transfiguração continua sendo
uma ajuda para superar a crise que o sofrimento e a cruz provocam hoje em nós.
Tem momentos na vida em que o sofrimento é tanto, que a gente chega a pensar como o
povo do cativeiro: “Deus me abandonou! Não está mais comigo!” E de repente a gente descobre
que Ele nunca tinha ido embora, mas que a gente mesma estava com os olhos vendados, sem
enxergar a presença dele. Aí, tudo muda e fica transfigurado. É a Transfiguração! Já aconteceu
alguma transfiguração em sua vida? Conseguiu ajudar outras pessoas a experimentar a
transfiguração?
No Evangelho de Lucas, há uma semelhança muito grande entre a cena da Transfiguração (Lc
9,28-36) e a cena da agonia de Jesus no Horto das Oliveiras (Lc 22,39-46). Você pode conferir e vai
perceber o seguinte: Nos dois episódios, Jesus sobe a montanha para rezar e leva consigo os
mesmos três discípulos, Pedro, João e Tiago. Nas duas ocasiões, Jesus muda de aspecto e se
transfigura diante deles, glorioso na Monte Tabor, suando sangue no Monte das Oliveiras. Nas duas
vezes aparecem figuras celestes para confortá-lo, Moisés e Elias no Monte Tabor, o anjo céu no
Monte das Oliveiras. E tanto na Transfiguração como na Agonia, os discípulos dormem, se mostram
alheios ao fato e parecem não entender nada. No final dos dois episódios, Jesus se reúne de novo
com seus discípulos. Sem dúvida nenhuma, Lucas teve alguma intenção em acentuar esta
semelhança entre estes dois episódios. Qual seria? É meditando e rezando que, aos poucos,
conseguiremos chegar por de trás das palavras e perceber a intenção do seu autor. O Espírito de
Jesus nos guiará.
Para Lucas, o profeta Elias nos ajudará a entender que o caminho da Glória passa pela cruz.
Como Elias realizamos a missão que Deus nos confiou quando procuramos reconstruir a
comunidade, fazendo que o coração dos pais volte para os filhos e o coração dos filhos volte para
os pais (Lucas 1,17). Como Elias, assim também nós encontraremos na oração a fonte para manter
a fidelidade e não desanimar (Tiago 5,16-18).
4.
A Missão que todos nós recebemos de Jesus Lucas 10,1-9 (do 4º Bloco)
A Missão dos setenta e dois discípulos e a missão de todos nós
A pregação de Jesus atraía muita gente. Ao seu redor, começava a nascer uma pequena
32
comunidade. Primeiro, duas pessoas (Mc 1,16-18); depois, mais duas (Mc 1,19-20); depois, doze
(Mc 3,13-19); e agora mais setenta e duas pessoas (Lc 10,1). A comunidade vai crescendo. Uma das
coisas em que Jesus mais insiste é a vida em comunidade. Ele mesmo deu o exemplo. Nunca quis
trabalhar sozinho. A primeira coisa que fez ao iniciar sua pregação na Galiléia foi chamar gente para
estar com ele e ajudá-lo na missão (Mc 1,16-20; 3,14). O ambiente de fraternidade que nasce ao
redor de Jesus é um ensaio do Reino, é uma expressão da nova experiência de Deus como Pai. Pois,
se Deus é Pai, então somos todos uma família, irmãos e irmãs uns dos outros. Assim nasce a
comunidade, a nova família.
O evangelho de Lucas traz normas práticas para orientar os setenta e dois discípulos no
anúncio desta Boa Nova do Reino e na reconstrução da vida comunitária. Anunciar a Boa Nova do
Reino e reconstruir a vida comunitária são dois lados da mesma medalha. Um sem o outro não
existe e não se entende.
A Missão dos 72 discípulos no conjunto do evangelho de Lucas
Pouco antes do nosso texto, em Lucas 9,51, começou a nova etapa na atividade apostólica de
Jesus. Ele iniciou a longa viagem até Jerusalém (Lc 9,51 a 19,29). No início, na primeira etapa, tudo
aconteceu na Galiléia. Jesus começou a sua atividade com a apresentação do seu programa na
sinagoga de Nazaré (Lc 4,14-21) e com a chamada dos primeiros discípulos (Lc 5,1-11). Agora a
missão se amplia. Jesus sai da Galiléia, entra na Samaria, envia mensageiros à sua frente (Lc 9,52), e
atrai novos discípulos (Lc 9,57-62). Esta nova etapa também começa com a chamada de discípulos e
com a apresentação do programa que deve orientá-los na ação missionária (Lc 10,1-9). Lucas
sugere, assim, que estes novos discípulos já não são judeus da Galiléia, mas sim samaritanos, e que
o lugar, onde Jesus anuncia a Boa Nova, já não é a Galiléia, mas sim a Samaria, o território dos
excluídos. O objetivo da missão que os discípulos recebem é a reconstrução da vida comunitária.
No tempo de Jesus havia vários movimentos que, como Jesus, procuravam uma nova
maneira de viver e de conviver: fariseus, essênios, zelotes, João Batista e outros. Muitos deles
também formavam comunidades de discípulos (Jo 1,35; Lc 11,1; At 19,3) e tinham seus
missionários (Mt 23,15). Mas havia uma grande diferença. As comunidades dos fariseus, por
exemplo, viviam separadas do povo. A comunidade ao redor de Jesus vive misturada no meio do
povo. A proposta de Jesus para os 72 discípulos resgata os quatro valores comunitários básicos:
hospitalidade, partilha, comunhão de mesa e acolhida aos excluídos. Jesus procura renovar e
reorganizar as comunidades, para que sejam novamente uma expressão da Aliança, uma amostra
do Reino de Deus. Se você puder, abre a sua bíblia em Lucas 10,1 para acompanhar melhor este
breve comentário que vamos fazer.
Comentário de Lucas 10,1-9 que descreve nossa Missão:
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1. Lucas 10,1: A Missão
Jesus envia os discípulos para os lugares aonde ele próprio deve ir. O discípulo é porta-voz de
Jesus. Não é dono da Boa Nova. Jesus os envia dois a dois. Isto favorece a ajuda mútua, pois a
missão não é individual, mas sim comunitária. Duas pessoas representam melhor a comunidade.
2. Lucas 10,2-3: A Corresponsabilidade
A primeira tarefa é rezar para que Deus envie operários. Todo discípulo e discípula deve
sentir-se responsável pela missão. Por isso deve rezar ao Pai pela continuidade da missão. Jesus
envia seus discípulos como cordeiros no meio de lobos. A missão é tarefa difícil e perigosa. Pois o
sistema em que eles viviam e ainda vivemos era e continua sendo contrária à reorganização do
povo em comunidades vivas. Quem, como Jesus, anuncia o amor numa sociedade organizada a
partir do egoísmo individual e coletivo, será cordeiro no meio de lobos, será crucificado.
3. Lucas 10,4-6: A Hospitalidade
Os discípulos de Jesus não podem levar nada, nem bolsa, nem sandálias. Só podem e devem
levar a paz. Isto significa que devem confiar na hospitalidade do povo. Pois o discípulo que vai sem
nada levando apenas a paz, mostra que confia no povo. Acredita que vai ser recebido, e o povo se
sente respeitado e confirmado. Por meio desta prática os discípulos criticavam as leis de exclusão e
resgatavam os antigos valores da convivência comunitária do povo de Deus. Não saudar ninguém
pelo caminho significa que não se deve perder tempo com coisas que não pertencem à missão.
Talvez seja uma evocação do episódio da morte do filho da Sunamita, onde Eliseu diz ao
empregado: “Parte rápido! Se encontrares alguém não o saúdes, e se alguém te saudar, não lhe
respondas” (2Rs 4,29), pois se tratava de um caso de vida e de morte. Anunciar a Boa Nova de Deus
é um caso de vida e morte!
4. Lucas 10,7: A Partilha
Os discípulos não devem andar de casa em casa, mas sim permanecer na mesma casa. Isto é,
devem conviver de maneira estável, participar da vida e do trabalho do povo do lugar e viver do
que recebem em troca, pois o operário merece o seu salário. Isto significa que devem confiar na
partilha. Assim, por meio desta nova prática, eles resgatam uma das mais antigas tradições do
povo de Deus, criticam a cultura de acumulação que marcava a política do Império Romano e
anunciam um novo modelo de convivência humana.
5. Lucas 10,8: A Comunhão de mesa
Os discípulos devem comer o que o povo lhes oferece. Quando os fariseus iam em missão,
iam prevenidos. Levavam sacola e dinheiro para poder cuidar da sua própria comida. Achavam que
não podiam confiar na comida do povo que nem sempre era ritualmente “pura”. Assim, as
observâncias da Lei da pureza legal, em vez de ajudar a superar as divisões, enfraqueciam a
vivência dos valores comunitários. Os discípulos de Jesus não podem separar-se do povo na hora da
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comida, mas devem aceitar a comunhão de mesa. No contato com o povo, não podem ter medo
de perder a pureza legal. O valor comunitário da convivência fraterna prevalece sobre a
observância de normas rituais. Agindo assim, criticam as leis da pureza legal que estavam em vigor,
e anunciam um novo acesso à pureza, à intimidade com Deus.
6. Lucas 10,9a: A Acolhida aos excluídos
Os discípulos devem tratar dos doentes, curar os leprosos e expulsar os demônios (cf Mt
10,8). Isto significa que devem acolher para dentro da comunidade os que dela foram excluídos.
Esta prática solidária critica a sociedade excludente, e aponta saídas concretas. Deste modo
recuperam a antiga tradição profética do goêl. Desde os tempos mais antigas, a força do clã ou da
comunidade se revelava na defesa dos valores da pessoa, da família e da posse da terra, e se
manifestava concretamente, “cada sete vezes sete anos” na celebração do ano jubilar (Lv 25,8-55;
Dt 15,1-18).
7. Lucas 10,9b: A chegada do Reino
Hospitalidade, Partilha, Comunhão de mesa, Acolhida aos excluídos (goêl) eram as quatro
colunas que deveriam sustentar a vida comunitária. Mas devido à situação difícil de pobreza,
desemprego, perseguição e repressão da parte dos romanos, estas colunas estavam quebradas.
Jesus quer reconstruí-las e afirma que, caso estas quatro exigências forem preenchidas, os
discípulos podem gritar aos quatro ventos: O Reino chegou! Anunciar o Reino não é em primeiro
lugar ensinar verdades e doutrinas, mas sim levar as pessoas a uma nova maneira de viver e de
conviver, a um novo jeito de agir e de pensar, a partir da Boa Notícia que Jesus nos trouxe de que
Deus é Pai e que, portanto, nós somos irmãos e irmãs uns dos outros.
As pequenas comunidades que assim vão se formando, tanto na Galiléia como na Samaria,
são o primeiro “ensaio do Reino”. A Comunidade ao redor de Jesus é como o rosto de Deus,
transformado em Boa Nova para o povo, sobretudo para os pobres. Ela serviu de modelo para os
primeiros cristãos depois da ressurreição de Jesus (At 2,42-47)!
5.
A Parábola do Filho Pródigo Lucas 15,11-32 (do 4º Bloco)
O título mais usado é “Parábola do Filho Pródigo”. Na realidade, a parábola não fala só do
filho mais novo que saiu de casa, mas fala dos dois filhos, do mais novo e do mais velho. Ela
acentua o esforço do Pai para reencontrar os dois filhos que estavam perdidos. Um título melhor
poderia ser: “A parábola do Pai e seus dois filhos perdidos”. A parábola encontra-se em Lucas
15,11-32.
A Parábola do Filho Pródigo no conjunto do evangelho de Lucas
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O capítulo 15 do evangelho de Lucas ocupa um lugar central na longa caminhada de Jesus
desde a Galiléia no Norte da Palestina até Jerusalém no Sul. A caminhada começa em Lucas 9,51 e
termina em Lucas 19,29. O Capítulo 15 é como o alto da serra, de onde se contempla o caminho
percorrido e já se pode observar o caminho que ainda falta. É o capítulo da ternura e da
misericórdia de Deus, temas que estão no centro das preocupações do Evangelho de Lucas. O
capítulo 15 traz três parábolas. As três têm a mesma preocupação: mostrar o que Deus faz para
poder reencontrar aquilo que foi perdido: a ovelha perdida (Lc 15,4-7), a moeda perdida (Lc 15,8-
10), os dois filhos perdidos (Lc 15,11-32).
As três parábolas estão penduradas nesta informação inicial: "Todos os publicanos e
pecadores se aproximavam para ouvir Jesus. Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: Esse
homem recebe os pecadores e come com eles!" (Lc 15,1-3). Parece um retrato bonito: de um lado,
estão os publicanos e os pecadores; do outro lado, os fariseus e os escribas; no meio dos dois,
Jesus. E era isto que estava acontecendo nos anos 80, quando Lucas escrevia o seu evangelho. De
um lado, os pagãos se aproximavam das comunidades cristãs para entrar e participar. Do outro
lado, alguns irmãos judeus mais conservadores murmuravam achando que acolher um pagão era
contra o ensinamento de Jesus. A parábola do Filho pródigo os ajuda a discernir.
Comentário da Parábola do Filho Pródigo
Lucas 15,11-13: A decisão do filho mais novo
Um homem tinha dois filhos. O mais novo pede a parte da herança que lhe toca. O pai divide
tudo entre os dois. Tanto o mais velho como o mais novo, ambos recebem a sua parte. Receber
herança não é mérito. É um dom gratuito. Até hoje, a herança dos dons de Deus está distribuída
entre todos os seres humanos, tanto judeus como pagãos, tanto cristãos como não cristãos. Todos
recebemos uma parte da herança do Pai. Mas nem todos cuidam dela da mesma maneira. Assim, o
filho mais novo parte para longe e gasta a sua herança numa vida dissipada, esquecendo-se do Pai.
Ainda não se fala do filho mais velho que também recebeu sua parte da herança. Mais adiante
ficamos sabendo que ele continuou em casa, levando a vida de sempre, trabalhando na roça. No
tempo de Lucas, o mais velho representava as comunidades vindas do judaísmo; o mais novo, as
comunidades vindas do paganismo. E hoje, quem é o mais novo e quem o mais velho? Ou será que
os dois existem dentro de cada um de nós?
Lucas 15,14-19: A frustração do filho mais novo o leva a voltar para a casa do Pai
A necessidade de ter o que comer faz com que o mais novo perca a sua liberdade e se torne
escravo para cuidar dos porcos. Recebe tratamento pior que os porcos. Esta era a condição de vida
de milhões de escravos no império romano no tempo de Lucas. Esta situação faz o filho mais novo
cair em si e lembrar-se da casa do Pai: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu
aqui, morrendo de fome!” Ele faz uma revisão de vida e decide voltar para casa. Prepara até as
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palavras que vai dizer ao Pai: “Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem
teu filho. Trata-me como um dos teus empregados!” Ele acha que já não será mais aceito como
filho. Pede para ser readmitido como um simples empregado que executa ordens e cumpre a lei da
servidão. O filho mais novo quer ser cumpridor da lei, como ensinavam os fariseus e os escribas no
tempo de Jesus (Lc 15,1). Era isto que os missionários dos fariseus impunham aos pagãos que se
convertiam ao Deus de Abraão: observar toda a lei de Moisés (Mt 23,15). No tempo de Lucas,
cristãos mais conservadores vindos do judaísmo conseguiram que alguns pagãos convertidos se
submetessem ao jugo da lei (Gál 1,6-10).
Lucas 15,20-24: A alegria do Pai ao reencontrar o filho mais novo
A parábola diz que o filho mais novo ainda estava longe de casa e o Pai já o viu, corre ao seu
encontro e o cumula de beijos. A impressão que a parábola nos dá é que o Pai ficou o tempo todo
na janela olhando a estrada para ver o filho apontar lá longe na esquina! Conforme o nosso modo
humano de pensar e de sentir, a alegria do Pai parece meio exagerada. (Interrogado pela
catequista se em casa o pai dele faria o mesmo com ele, o menino respondeu: “Acho que meu pai
faria o mesmo, mas antes ele me daria um puxão de orelha!”) Na parábola, nem puxão de orelha,
mas só alegria! O Pai nem deixa o filho terminar as palavras que tinha preparado. Nem escuta! O
Pai não quer que o filho seja seu escravo, seu empregado. Quer que seja filho! Esta é a grande Boa
Nova que Jesus nos trouxe! Túnica nova, sandálias novas, anel no dedo, churrasco, festa para todos
da casa! Nesta alegria imensa do reencontro, Jesus deixa transparecer como era grande a tristeza
do Pai pela perda do filho. Deus estava muito triste e isto a gente só fica sabendo agora, vendo o
tamanho da alegria do Pai quando reencontra o filho! E é uma alegria partilhada com todo mundo
na festa que ele manda preparar
Lucas 15,25-28b: A reação do filho mais velho
O filho mais velho volta do serviço no campo e encontra a casa em festa. Não entra. Quer
saber de que se trata. Quando soube do motivo da festa, ficou com muita raiva e não quis entrar.
Fechado em si mesmo, ele pensa ter o seu direito. Não gostou da festa e não entendeu a alegria do
Pai. Sinal de que não tinha muita intimidade com o Pai, apesar de viver com ele na mesma casa.
Pois, se tivesse intimidade, teria notado a imensa tristeza do Pai pela perda do filho mais novo e
teria entendido a alegria dele pela volta do filho. Quem fica muito preocupado em observar a lei de
Deus, corre o perigo de esquecer o próprio Deus! O filho mais novo, mesmo longe de casa, parecia
conhecer o Pai melhor que o filho mais velho, que morava com ele na mesma casa! Pois o mais
novo teve a coragem de voltar para a casa do Pai, enquanto o mais velho não quer mais entrar na
casa do Pai! Não quer ser irmão! Nem se dá conta de que o Pai, sem ele, vai perder a alegria. Pois
também ele, o mais velho, é filho do mesmo jeito que o novo!
Lucas 15,28a-30: A atitude do Pai para com o filho mais velho e a resposta do filho
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O pai sai de casa e suplica ao filho mais velho para entrar. Mas este responde: "Pai, tantos
anos que eu sirvo ao senhor. Jamais transgredi um só dos seus mandamentos, e o senhor nunca me
deu um cabrito sequer para festejar com meus amigos. E vem esse seu filho, que devorou seus bens
com prostitutas e o senhor manda matar até o novilho gordo!" O mais velho se gloria da
observância: “Jamais transgredi um só dos seus mandamentos!” Ele também quer festa e alegria,
mas só com os amigos. Não com o irmão, nem com o pai. Ele nem sequer chama o mais novo de
irmão, mas "esse seu filho", como se não fosse mais irmão dele. E é ele, o mais velho, que fala em
prostitutas. É a malícia dele que interpretou assim a vida do irmão mais novo. Quantas vezes o
irmão mais velho não interpreta mal a vida do irmão mais novo! Quantas vezes nós católicos
interpretamos mal a vida e a religião dos outros! A atitude do Pai é outra. Ele sai de casa para os
dois filhos. Acolheu o mais novo, mas não quer perder o mais velho. Os dois fazem parte da família.
Um não pode excluir o outro!
Lucas 15,31-32: A resposta final do Pai
Da mesma maneira como o Pai não deu atenção aos argumentos do filho mais novo, assim
também não dá atenção aos argumentos do mais velho e lhe diz: "Filho, tu estás sempre comigo e
tudo o que é meu é teu! Mas esse teu irmão estava morto e tornou a viver. Estava perdido e foi
reencontrado!" Será que o mais velho tinha realmente consciência de estar sempre com o Pai e de
encontrar nesta presença a causa da sua alegria? A expressão do Pai "Tudo que é meu é teu!" inclui
também o filho mais novo que voltou! O mais velho não tem o direito de fazer distinção. Se ele
quer ser mesmo filho do Pai, terá que aceitá-lo do jeito que ele é e não do jeito que ele gostaria
que o Pai fosse! A parábola não diz qual foi a resposta final do irmão mais velho. Isto fica por conta
do próprio irmão mais velho que somos nós!
4ª Parte
PESSOAS E FATOS QUE SÓ APARECEM NO EVANGELHO DE LUCAS Zaqueu
cobrador de impostos "Zaqueu era chefe dos cobradores de impostos e muito rico"
(Lc 19,2).
Em Jericó morava um judeu muito rico. Chamava-se Zaqueu, nome que significa o puro. Apesar
deste nome, ele era um pecador, já que a sua riqueza vinha da corrupção. Ele era o chefe dos
publicanos, ou seja, cobrava os impostos para os romanos, desviando muito dinheiro para o
próprio bolso. Tendo ouvido falar de Jesus, Zaqueu desejava muito ver de perto esse profeta.
Assim, quando Jesus entrou em Jericó e estava atravessando a cidade, Zaqueu tentou vê-lo, mas
não conseguia, porque havia muita gente e ele era baixinho. Mas ele não desistiu. Correu na frente
da multidão e subiu numa figueira, esperando Jesus passar. Quando Jesus chegou perto, ele olhou
para Zaqueu no alto da árvore e disse: “Zaqueu, desça depressa porque hoje eu preciso ficar em sua
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casa” (Lc 19,5). Zaqueu desceu e com muita alegria recebeu Jesus em sua casa. Muita gente criticou
Jesus por ele se hospedar na casa de um corrupto. Mas Zaqueu ficou de pé diante de Jesus e disse:
“Vou dar a metade de meus bens aos pobres. E, se roubei alguém, vou restituir quatro vezes mais.”
(cf. Lc 19,8). Devolver quatro vezes o que roubou era obrigação da lei (cf. Ex 21,37; 2Sm 12,6). Mas
partilhar a metade dos bens com os pobres era algo novo, resultado do contato de Zaqueu com
Jesus! Muito contente com este gesto, Jesus proclamou: “Hoje a salvação entrou nesta casa,
porque também este homem é um filho de Abraão, porque o Filho do Homem veio procurar e salvar
o que estava perdido.” (Lc 19,10).
A moça do perfume mulher conhecida na cidade como pecadora
"Os muitos pecados que cometeu estão perdoados, porque ela demonstrou muito amor"
(Lc 7,47).
Convidado por Simão, um fariseu, Jesus estava jantando na casa dele. Durante o jantar, uma moça
entrou e começou a beijar os pés de Jesus, banhando-os com suas lágrimas (Lc 7,36-38). A moça
era conhecida na cidade como pecadora. Deve ter sido uma moça prostituída e, portanto,
desprezada e marginalizada. Mas ela teve a coragem de quebrar todas a normas. Ela entrou na casa
de Simão, um fariseu, e, chorando, colocou-se aos pés de Jesus, cobrindo-os com beijos e
enxugando-os com seus cabelos e com perfume. Ela deve ter tido uma fé muito grande em Jesus e
uma certeza absoluta de ser acolhida por ele, pois era necessário ter muita coragem e muita fé
para fazer o que ela fez: entrar na casa do fariseu durante o jantar e beijar os pés do hóspede,
desafiando a rigidez das atitudes do fariseu. Jesus acolheu a moça. Ele não retirou o pé, não fez
nenhum sinal de impaciência ou de desagrado. Aceitou o gesto da moça. Simão, o fariseu, pensava:
"Se esse homem fosse mesmo um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando os pés dele!"
(Lc 7,39). Jesus defendeu a moça contra a crítica do fariseu e disse: "Os muitos pecados que
cometeu estão perdoados, porque ela demonstrou muito amor" (Lc 7,47).
Mulher Encurvada sofredora, há mais de dezoito anos
"Cada um solta o jumento para dar de beber, e eu não posso ajudar esta filha de Abraão?"
(Lc 13,15-16).
Lucas não soube dizer o nome desta senhora que foi atrás de Jesus em busca de cura. Havia dezoito
anos, um mal-estar fazia com que ela ficasse curvada sem poder endireitar-se. Foi num sábado, na
celebração semanal da comunidade, que ela encontrou Jesus. Vendo-a, Jesus colocou as mãos
sobre ela e disse: "Mulher, você está livre de sua doença!" (Lc 13,12). Imediatamente a mulher se
endireitou e ficou boa. Agradecida, ela começou a louvar a Deus (Lc 13,13). O coordenador da
comunidade ficou furioso, porque Jesus tinha feito uma cura em dia de sábado. E gritou: "Gente, há
seis dias para trabalhar. Venham nesses dias para ser curado, mas não em dia de sábado!" (Lc
13,14). O contraste é grande. De um lado, a bondade de Jesus que não aguenta ver o povo sofrer e
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cura a mulher com o toque de suas mãos. Do outro lado, a atitude do coordenador da comunidade
que só olha a lei e não percebe o problema das pessoas nem a bondade e a humanidade de Jesus.
A reação de Jesus foi imediata: "Hipócritas! Cada um de vocês não solta do curral o boi ou o
jumento para dar-lhe de beber, mesmo que seja em dia de sábado? Aqui está uma filha de Abraão
que Satanás amarrou durante dezoito anos. Será que não deveria ser libertada dessa prisão em dia
de sábado?" Esta resposta deixou confusos todos os inimigos de Jesus. E toda a multidão se
alegrava com as maravilhas que Jesus fazia" (Lc13,15-17)
Viúva de Naim viúva que perdeu o filho único
"Ao vê-la, o Senhor teve compaixão dela, e lhe disse: "Não chore!"
(Lc 7,13).
Não sabemos o nome desta viúva. Ela era de Naím. Lugar pequeno, onde todo mundo conhece
todo mundo e onde todos compartem a dor e a alegria de todos. Morreu o filho único desta viúva.
Todo povoado se solidariza com ela e a acompanha levando o filho para o cemitério que ficava fora
dos muros da cidade. No exato momento de a multidão sair da cidade, Jesus chega acompanhado
de outra multidão de gente. Os dois grupos se encontram na porta da cidade (Lc 7,11-12). Vida e
Morte se encontram! Jesus vê e sente a dor da mãe que perdeu o filho único. Ele manda o cortejo
parar, chega perto do caixão e diz: "Moço, eu te ordeno: Levanta-te" (Lc 7,14). O moço se levantou,
e Jesus o devolveu à mãe. O povo comentou o fato dizendo "Um grande profeta apareceu entre
nós, e Deus veio visitar o seu povo" (Lc 7,16). Eles souberam discernir a visita de Deus nos fatos da
vida. Hoje também tem gente que sabe discernir a visita de Deus nas casas do povo: -“Irmã, ontem
Deus passou aqui em casa e nos fez uma visita”. -“Como assim?” -“Pois é. Meu menino estava
passando mal e no posto de saúde me deram a receita de um remédio, mas eu não tinha dinheiro
para comprar aquele remédio de quinze reais. À tarde, uma senhora passou em casa, que deixou
sete reais em cima daquela mesa. E eu não tinha falado nada para ela. Foi Deus! Não foi?” Como o
povo de Naim, esta senhora pobre soube discernir a presença de Deus na visita que recebeu
naquela tarde. Será que eu sei discernir?
Joana seguidora de Jesus
Bem cedo de madrugada, ela foi ao túmulo de Jesus
(cf. Lc 24,1.10).
O nome Joana significa consoladora. Joana aparece duas vezes no evangelho de Lucas. Na primeira
vez, é quando Lucas informa que, ao lado dos doze apóstolos, havia também um grupo de
discípulas que seguiam a Jesus. "Elas ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam".
Uma delas é "Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes" (Lc 8,3). Na outra vez, Joana
aparece entre as mulheres que, na manhã do primeiro dia da semana após a morte de Jesus, foram
ao sepulcro com perfumes para embalsamar o corpo de Jesus (Lc 24,1). Elas encontraram o túmulo
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aberto e dois anjos lhes apareceram, dizendo que Jesus tinha ressuscitado (Lc 24,5). Joana é uma
das muitas mulheres na Bíblia, das quais conhecemos apenas o nome e, muitas vezes, nem o nome.
Apenas sabemos que elas seguiam a Jesus e procuravam servir a ele e aos discípulos (Mc 15,40-41).
Hoje são muitas as Joanas no Brasil que seguem Jesus e que, com os seus bens, servem à
comunidade e ajudam onde podem. Deus ama e conhece a todas elas como a palma da sua mão
(cf. Is 49,16). Sem se darem conta, elas irradiam para todos nós o amor que recebem de Deus.
Distribuem de graça, o que de graça receberam.
Suzana discípula de Jesus
"Elas ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam"
(Lc 8,3)
O nome Susana significa Lírio. Susana fazia parte do grupo de mulheres que acompanhavam Jesus.
Diz o evangelho de Lucas: "Depois disso, Jesus andava por cidades e povoados, pregando e
anunciando a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres que
haviam sido curadas de espíritos maus e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam
saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e várias outras
mulheres, que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam" (Lc 8,1-3). Jesus
permitia que um grupo de mulheres o “seguisse” (Lc 8,2-3; 23,49). A expressão seguir Jesus tem
aqui o mesmo significado que quando é aplicado aos homens. Elas eram discípulas que seguiam
Jesus, desde a Galiléia até Jerusalém. O evangelho de Marcos define a atitude delas com três
palavras: seguir, servir, subir. Ele diz: "Elas o seguiam e serviam enquanto esteve na Galiléia. E
ainda muitas outras que subiram com Ele para Jerusalém" (Mc 15,41). Os primeiros cristãos não
chegaram a elaborar uma lista destas discípulas que seguiam Jesus como o fizeram com os doze
discípulos. É pena! Mas pelas páginas do evangelho de Lucas aparecem os nomes de várias
discípulas, seguidoras de Jesus. A tradição posterior não valorizou este dado com o mesmo peso
com que valorizou o seguimento de Jesus por parte dos doze discípulos. Mas os nomes de sete
discípulas estão espalhados pelas páginas dos evangelhos: Maria Madalena (Lc 8,3), Joana, mulher
de Cuza (Lc 8,3), Susana (Lc 8,3), Salomé (Mc 15,40), Maria, mãe de Tiago e José (Mc 15,40), a mãe
dos filhos de Zebedeu (Mt 27,56) e Maria, mulher de Clopas (Jo 19,25). Em todos estes textos,
exceto João 19,25, Maria Madalena é citada em primeiro lugar, indicando sua liderança no grupo
das discípulas de Jesus.
Isabel esposa de Zacarias, mãe de João Batista
"Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança se agitou em seu ventre"
(Lc 1,41).
Foi Zacarias, marido de Isabel, que recebeu a notícia do anjo Gabriel dizendo que Isabel, sua
esposa, já idosa e estéril, ia ter um filho, a quem ele, Zacarias, devia dar o nome de João (Lc 1,13).
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Zacarias teve dificuldade em crer na palavra do anjo: "Como é que vou saber se isso é verdade? Sou
velho e minha mulher é de idade avançada" (Lc 1,18). O anjo disse: "Eu sou Gabriel. Estou sempre
na presença de Deus, e foi ele que me mandou dar esta boa notícia para você!" (Lc 1,19). O anjo
Gabriel deu um sinal para Zacarias: você vai ficar mudo até que se realizem estas coisas, "porque
você não acreditou nas minhas palavras que se cumprirão no tempo certo" (Lc 1,20). Uns dias
depois desta visão do anjo Gabriel, Zacarias voltou para sua casa e Isabel, sua esposa ficou grávida
(Lc 1,24). Diz a Bíblia que ela se escondeu durante cinco meses dizendo: "Eis o que o Senhor fez por
mim, nos dias em que ele se dignou tirar-me da humilhação pública!" (Lc 1,25). Por quê cinco
meses? É que, depois de cinco meses, a barriga, por si mesma, revela a gravidez ao povo. Um mês
depois, "no sexto mês", Isabel recebeu a visita de Maria, que vinha lá de Nazaré (Lc 1,39-45). Neste
encontro as duas mulheres grávidas experimentaram a presença de Deus e Maria entoou o cântico
que nós até hoje cantamos: "O Senhor fez em mim maravilhas, Santo é o seu Nome" (Lc 1,49). E
Isabel disse: "Você é bendita entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre" (Lc 1,42), que até
hoje rezamos na Ave Maria. Evocando a diferença de atitude entre Maria e Zacarias seu marido,
Isabel disse: "Bem-aventurada você, Maria, que acreditou, pois vai acontecer o que o Senhor lhe
prometeu" (Lc 1,45). O menino que nasceu de Isabel é João Batista. O menino de Maria é Jesus.
Zacarias sacerdote e pai de João Batista
"Havia um sacerdote chamado Zacarias, e sua esposa se chamava Isabel"
(Lc 1,5).
O nome Zacarias significa lembra-te de YHWH. Nome muito comum naquele tempo. Aparece mais
de sessenta vezes na bíblia. Muitos pais davam este nome aos filhos, para que se lembrassem de
YHWH e que YHWH se lembrasse deles. O Zacarias que hoje lembramos é o esposo de Isabel. Os dois
não tinham filhos. Moravam no interior perto de Jericó. Zacarias era sacerdote. Uma vez por ano,
de acordo com o sorteio do seu grupo, Zacarias devia oficiar no templo de Jerusalém. Ele “era do
grupo de Abias” (Lc 1,5), a oitava entre as 24 famílias sacerdotais que podiam oficiar no templo (cf.
1Cr 24,10). Quando chegou a vez do seu grupo de oficiar no templo, Zacarias “foi sorteado para
entrar no Santuário e fazer a oferta de incenso” (Lc 1,9), ou seja, ele devia entrar no Santo dos
Santos, o lugar mais sagrado do templo, para incensar a Arca da Aliança, enquanto o povo ficava do
lado de fora, acompanhando a cerimônia. Enquanto Zacarias incensava, apareceu a ele o anjo
Gabriel. Zacarias ficou assustado e perturbado. Mas Gabriel disse: “Não tenha medo, Zacarias!
Deus ouviu a sua oração, sua esposa Isabel vai ter um filho e você lhe dará o nome de João. Você
ficará alegre e feliz e muita gente se alegrará com o nascimento do menino!” (Lc 1,13-14). Mas
Zacarias não acreditou, nem na visão nem na promessa. O anjo então disse: “Você ficará mudo até
que estas coisas aconteçam!” (Lc 1,20). Quando Isabel deu à luz o filho, os vizinhos e parentes
quiseram dar ao menino o nome do pai Zacarias. Mas Isabel bateu pé e insistiu: “Não! Ele vai se
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chamar João” (cf. Lc 1,60). Então perguntaram ao pai como deveria ser chamado o menino.
Zacarias tomou uma tabuinha com cera e escreveu “O nome dele é João” (Lc 1,62). Neste instante,
a boca de Zacarias se abriu e ele entoou um belo salmo ao Senhor (Lc 1,68-79). No salmo ele diz
“Deus realizou a misericórdia que teve com nossos pais, recordando sua santa Aliança” (Lc 1,72. É
que o nome Zacarias significa Deus recorda. De fato, Deus nunca esquece o sofrimento dos pobres.
O nome João significa consolador ou aquele que consola.
Pastores trabalhadores fazendo hora extra
"Vamos a Belém, ver esse acontecimento que o Senhor nos revelou"
(Lc 2,15).
Um anjo apareceu aos pastores e disse: "Não tenham medo! Eu anuncio para vocês a Boa Notícia,
que será uma grande alegria para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um
Salvador, que é o Messias, o Senhor. Isto lhes servirá de sinal: vocês encontrarão um recém-nascido,
envolto em faixas e deitado na manjedoura" (Lc 2,10-12). Os pastores se levantaram e foram até
Belém, "a cidade de Davi". Eles foram para ver "o Salvador, o Messias, o Senhor", e encontraram
um nenê recém-nascido, deitado numa manjedoura" (Lc 2,16), "pois não havia lugar para eles
dentro da casa" (Lc 2,7). Eles viram e acreditaram. "Voltaram, glorificando e louvando a Deus por
tudo o que haviam visto e ouvido, conforme o anjo lhes tinha anunciado" (Lc 2,20). Naquele tempo,
as hospedarias eram de dois andares. O andar de cima, "a casa", era para as pessoas. O andar de
baixo, era para os animais. Hoje seria como o estacionamento para os carros. Para aquele casal
pobre de Nazaré não havia lugar na casa, no andar de cima da hospedaria. Jesus nasceu no
estacionamento, no meio dos animais. Maria, a mãe de Jesus, "conservava todos esses fatos, e
meditava sobre eles em seu coração" (Lc 2,19). É provável que a própria mãe de Jesus contou tudo
isto para Lucas que o anotou para nós no seu evangelho. A vida é cheia de contrastes e de
surpresas. As coisas nem sempre acontecem como a gente imagina e espera. Deus nem sempre age
como a gente gostaria. Você espera por uma manifestação poderosa de Deus como Salvador e Rei
do mundo inteiro, e você encontra um nenê chorando numa estrebaria de animais. Foi o que
aconteceu com os pastores. Mas eles acreditaram. Eu acreditaria?
Ana, a profetisa falava a todos do menino Jesus
"Havia ali uma profetisa chamada Ana, de idade bem avançada"
(Lc 2,36)
A profetisa Ana era “filha de Fanuel, da tribo de Aser. Ela casou bem jovem e viveu sete anos com seu marido.
Depois ficou viúva e viveu assim até os oitenta e quatro anos de idade. Nunca deixava o recinto do Templo,
servindo a Deus noite e dia, com jejuns e oração” (Lc 2,36-37). Para a cultura daquele tempo, Ana tinha a
idade perfeita. Oitenta e quatro anos significa a vivência de doze ciclos de sete anos. Depois desta longa vida,
entre jejum, oração e serviço, Deus a recompensou por tanta dedicação, e Ana teve a alegria de contemplar o
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menino Jesus. Ela estava no Templo quando Maria e José chegaram por lá para oferecer o menino Jesus.
Segundo a Lei, Jesus, sendo o primogênito, pertencia a Deus (cf. Nm 3,11-13). Caso José e Maria quisessem
levá-lo consigo de volta para casa, deveriam fazer uma oferta de resgate. Eles fizeram a oferta dos pobres:
um casal de pombinhas (cf. Lc 2,22-24). Nesta ocasião da visita de Jesus ao templo, junto com Ana estava
também o velho Simeão, homem justo e piedoso (cf. Lc 2,25-32). Depois desta acolhida ao casal e ao menino,
Ana “louvava a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém” (Lc 2,38).
Hoje também em nossas comunidades há muitas “Anas”. São as senhoras que se dedicam ao serviço
comunitário e à animação das celebrações. Elas dão uma contribuição muito importante na caminhada do
povo de Deus. Muitas delas, com a idade bem avançada como Ana, ainda participam dos estudos bíblicos,
das pastorais sociais e das romarias. Que Deus as abençoe sempre!
Dimas o bom ladrão
"Eu te garanto: hoje mesmo estarás comigo no Paraíso"
(Lc 23,43).
Jesus não foi crucificado sozinho. Junto com ele foram crucificados dois outros condenados, que a bíblia
chama de “ladrões” ou "criminosos" (Lc 23,32). Um deles se chamava Dimas. Na época de Jesus havia muita
violência na Palestina. Os camponeses pobres, expulsos de suas terras, formavam grupos de rebeldes contra
o domínio romano. Barrabás era um deles (cf. Jo 18,40), acusado de provocar revoltas na cidade e homicídio
(cf. Lc 23,19). Ora, um destes dois ladrões que tinham sido crucificados com Jesus, começou a insultá-lo
dizendo: “Não és tu o Messias? Salva a ti mesmo e a nós também!” (Lc 23,39). Mas o outro o repreendeu
dizendo: “Nem você teme a Deus, sofrendo a mesma condenação? Para nós é justo, porque estamos
recebendo o que merecemos. Mas ele não fez nada de mal” (Lc 23,40-41). E, virando-se para Jesus, pede:
“Jesus, lembra-te de mim quando vieres em teu Reino!” (Lc 23,42). Jesus, acolhendo a súplica deste
condenado, responde: “Eu te garanto, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!” (Lc 23,43).
A tradição posterior diz que este ladrão arrependido se chamava Dimas. É um nome simbólico. Nos
evangelhos apócrifos este mesmo nome aparece como Dismes e significa “o que nasce ao entardecer”. De
fato, Dimas nasceu para o Reino no entardecer de sua vida e no entardecer da missão de Jesus. Ele é mesmo
o convertido da última hora. Nos últimos momentos da sua vida, este bom ladrão conseguiu roubar o próprio
Paraíso.
Jesus Menino igual a nós em tudo, menos no pecado
"Jesus crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens"
(Lc 2,52).
Ele nasceu menino. Veio ao mundo no dia de Natal. Mas ele já estava no meio de nós desde aquele Sim de
Maria ao anjo Gabriel: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38). A
primeira viagem que Jesus fez, ainda no seio da mãe, foi de Nazaré até a casa de Isabel e Zacarias, ida e volta
(Lc 1,39). A segunda viagem que ele fez, ainda no seio de Maria, mas já perto de nascer, foi de Nazaré até
Belém (Lc 2,4-5). Foi lá em Belém que o menino nasceu (Lc 2,6-7). Nasceu fora de casa, numa estrebaria de
animais, porque na hospedaria não havia lugar para aquele casal pobre que vinha lá da Galileia (Lc 2,7). Logo
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depois, ele teve que viajar de novo, fugindo para o Egito, carregado nos braços da mãe Maria, para escapar
da fúria de Herodes que queria matar o menino (Mt 2,13-15). Depois da morte de Herodes, outra longa
viagem, de volta desde o Egito, via Belém, até Nazaré (Mt 2,19-23). Ao todo, desde o Sim de Maria até
retorno em Nazaré, depois do nascimento de Jesus, foram centenas de quilômetros! Tudo a pé, no lombo do
animal! Em Nazaré, lugar bem pequeno, o menino foi crescendo, aprendendo a falar, a comer, a escutar, a
rezar, a conviver no meio da família e do povo da cidade: "O menino crescia e ficava forte, cheio de sabedoria.
E a graça de Deus estava com ele" (Lc 2,40). Quando alcançou a idade de doze anos, pôde acompanhar os
pais na romaria até Jerusalém (Lc 2,42). Menino precoce! Pois o costume era de ir em romaria só depois dos
treze anos de idade. Lá no Templo ele se sentiu na casa do Pai. Sentiu-se tão à vontade na Casa do Pai, que
esqueceu de acompanhar os pais na volta para Nazaré (Lc 2,49). Depois que Maria e José o reencontraram,
"Jesus desceu com seus pais para Nazaré, e permaneceu obediente a eles. E sua mãe conservava no coração
todas essas coisas. E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens" (Lc 2,51-
52). Aí deixou de ser menino, e começou a ser rapaz.
Anunciação o anjo anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo
"O anjo disse a Maria: Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo!"
(Lc 1,28).
A festa da Anunciação cai no dia 25 de março, exatamente nove meses antes da Festa do Natal do dia 25 de
dezembro. Depois do Sim de Maria ao anjo, "a palavra se fez carne e começou a habitar no meio de nós" (Jo
1,14). Começou a gestação de Jesus no seio de Maria sua mãe. O anúncio do nascimento de Jesus a Maria (cf.
Lc 1,26-38) foi precedido pelo anúncio do nascimento de João Batista a Zacarias (cf. Lc 1,5-25). Lucas ressalta
as diferenças entre os dois anúncios. O mensageiro para os dois é o mesmo: o anjo Gabriel. Zacarias é um
velho sacerdote que estava rezando no Templo, o recinto mais sagrado da religião dos judeus. Maria é uma
jovem leiga que estava em sua casa, na distante aldeia de Nazaré, periferia do país. Ambos receberam de
Deus a mesma mensagem: vai nascer um menino! O velho sacerdote não conseguiu acreditar e ficou mudo. A
jovem Maria acolheu e aceitou sua difícil missão. Ambos louvaram a Deus: o Magníficat de Maria (Lc 1,46-55)
e o Benedictus de Zacarias (Lc 1,68-79). Através do anúncio do anjo Gabriel, Deus revelou sua predileção
pelos pobres e por aquelas pessoas que teimam em permanecer fiéis a Deus, mesmo que a religião oficial
lhes complique a vida. O amor pelos pobres transparece, tanto no cântico de Maria na visita a Isabel (Lc 1,46-
56) quanto no cântico de Zacarias por ocasião da circuncisão de João Batista (Lc 1,67-79).
Purificação de Maria Maria caminhava guiada pela luz de Deus que nos atrai e nos purifica
"Maria e José levaram o menino Jesus a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor"
(Lc 2,22)
A festa de hoje era uma festa de muitas luzes. Por isso foi chamada Festa de Nossa Senhora das Candeias.
Antigamente, era chamada "Festa da purificação de Maria, a Mãe de Jesus", porque marcava o fim dos
quarenta dias do resguardo de Maria depois do nascimento de Jesus. A lei dizia: "Quando uma mulher
conceber e der à luz um menino, ela ficará impura durante quarenta dias" (Lv 12,2-4). Conforme as crenças
daquela época, o sangue que sai na hora do parto tornava a mulher impura. Terminado o período da
impureza, a mãe devia ir ao templo fazer uma oferta para poder ser purificada (Lv 12,6). Por isso, no
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quadragésimo dia, Maria e José foram ao templo de Jerusalém fazer a oferta da purificação (Lc 2,22). A lei
dizia: "Se a mulher não tem meios para comprar um cordeiro, então pegue duas rolas ou dois pombinhos: um
para o holocausto e outro para o sacrifício pelo pecado. O sacerdote fará por ela o rito pelo pecado, e ela
ficará purificada" (Lv 12,8). Maria e José ofereceram "um par de rolas ou dois pombinhos" (Lc 2,24). Não
tinham dinheiro para comprar um cordeiro para ser oferecido. Fizeram a oferta dos pobres. No nosso
calendário, o nascimento de Jesus foi fixado no dia 25 de dezembro. Por isso, a purificação de Maria cai no
dia 2 de fevereiro, isto é, exatamente quarenta dias depois do nascimento de Jesus.
Mulher que elogiou Jesus uma mulher do meio do povo "Feliz o ventre que te trouxe
e os peitos que te alimentaram" (Lc 11,27)
Não sabemos o nome desta mulher. Tradições antigas sugerem que ela tenha sido uma vizinha de Maria em
Nazaré. Ela teria tido um filho da mesma idade de Jesus, chamado Dimas. Quando ouviu Jesus falar tão
bonito sobre Deus e sobre a vida, agradando ao povo simples que o escutava, ela disse espontaneamente
para Jesus ouvir: "Feliz o ventre que te trouxe e os peitos que te alimentaram" (Lc 11,27). Ela elogiou Maria,
sua vizinha lá de Nazaré. Jesus reagiu na hora e disse: "Mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus
e a põem em prática!" (Lc 11,28). É o elogio mais bonito de Jesus para sua mãe. É o resumo de tudo aquilo
que ele aprendeu dela. O que Jesus observava na vida de Maria, sua mãe, era a felicidade dela de poder ouvir
e praticar a Palavra de Deus, todos os dias da sua vida. Estas palavras de Jesus a respeito de sua mãe são a
chave que Lucas nos oferece para saber como ler e entender os relatos da Infância de Jesus (Lc 1 e 2). Lucas
vê em Maria o modelo de como a comunidade deve relacionar-se com a Palavra de Deus. No Antigo
Testamento, o povo era visto como a Filha de Sião. No Novo Testamento, Maria é a nova Filha de Sião, o
novo modelo do Povo de Deus, da Igreja. Os episódios do evangelho da infância de Jesus mostram como
Maria ouvia e colocava em pratica a Palavra de Deus.
Simeão o velho homem idoso, aberto para o futuro "Ele esperava a consolação de Israel,
e o Espírito Santo estava com ele" (Lc 2,25).
O velho Simeão aparece bem no início do Evangelho de Lucas. Foi quando Maria e José levavam o menino
Jesus ao templo para ser apresentado a Deus conforme exigia a lei de Deus a respeito do resgate de todo
filho primogênito (Lc 2,22-25). Naquela ocasião, Simeão estava no templo. Lucas diz: "Havia em Jerusalém um
homem chamado Simeão. Era justo e piedoso. Esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava com
ele" (Lc 2,25). Avançado em idade, Simeão tinha dentro de si o grande desejo e a convicção de um dia poder
experimentar de perto a realização das profecias a respeito do messias: "O Espírito Santo tinha revelado a
Simeão que ele não morreria sem primeiro ver o Messias prometido pelo Senhor" (Lc 2,26). Quando Simeão
viu aquele casal pobre com o menino nos braços, a mente dele se abriu e o Espírito o fez experimentar a
chegada da hora de Deus. Ele tomou o menino nos braços, agradeceu a Deus e fez um cântico bonito:
"Agora, Senhor, podeis de deixar o vosso servo ir em paz, porque meus olhos viram a salvação de Israel" (Lc
2,29-30). O que é que viram os olhos de Simeão? Ele viu um casal pobre lá da Galileia com um menino nos
braços. Mas a sua fé enxergou "a salvação de Israel". Em seguida, "Simeão os abençoou, e disse a Maria, mãe
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do menino: "Eis que este menino vai ser causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele será um sinal de
contradição. Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma" (Lc 2,34-35).
Teófilo cristão a quem Lucas dedicou o seu livro
"Decidi escrever para ti, ó excelentíssimo Teófilo" (Lc 1,3).
Quando Lucas, "após cuidadosa pesquisa, decidiu escrever ordenadamente" (Lc 1,3) tudo aquilo que se
ensinava nas primeiras comunidades sobre Jesus, ele fez um grande livro. Na nossa Bíblia este livro está
dividido em duas partes. A primeira parte é o Evangelho de Lucas, que nos mostra o caminho de Jesus. A
segunda parte é o livro dos Atos dos Apóstolos, que descreve o caminho da Igreja, das Comunidades. Quando
o livro ficou pronto, Lucas dedicou esta sua obra ao "excelentíssimo Teófilo" (cf. Lc 1,3; At 1,1). Quem é este
Teófilo que mereceu de Lucas a dupla dedicatória do seu livro sobre as origens do cristianismo? Teófilo deve
ter sido um cristão da comunidade de Éfeso. Ele não era judeu de nascimento, mas era de origem grega. Seu
nome Teófilo significa amado por Deus. Não sabemos nada da vida de Teófilo. O que sabemos é que ele se
tornou um símbolo de todo cristão que quer aprofundar a sua fé através do estudo, buscando “verificar a
solidez dos ensinamentos que recebeu” (cf. Lc 1,4). Eis o que Lucas escreve: "No meu primeiro livro, ó Teófilo,
já tratei de tudo o que Jesus começou a fazer e ensinar, desde o princípio, até o dia em que foi levado para o
céu" (At 1,1-2). E esclareceu o objetivo que tinha em mente ao escrever o livro: "Após fazer um estudo
cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever para você uma narração
bem ordenada, excelentíssimo Teófilo. Desse modo, você poderá verificar a solidez dos ensinamentos que
recebeu" (Lc 1,3-4). O livro de Lucas, Evangelho e Atos, tornou-se um importante manual de catequese para
os cristãos batizados que queriam seguir melhor o caminho de Jesus. Um cristão que aprofunda a fé
assumida no dia de seu batismo torna-se um Teófilo, uma pessoa amada por Deus. Teófilo simboliza a todos
nós, cristãos que, como Teófilo, viemos do paganismo.
Gabriel arcanjo mensageiro de Deus
"No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a Nazaré" (Lc 1,26).
O nome Gabriel significa poder de Deus ou Deus é poderoso. Gabriel aparece pela primeira vez no livro de
Daniel (Dn 8,16) como o intérprete que explica a Daniel a visão do bode e do carneiro de quatro chifres (Dn
8,1-12). Gabriel veio anunciar "o tempo do fim", ou o tempo final que precede o fim dos tempos (Dn 8,17).
Depois, este mesmo Gabriel interpreta para Daniel a visão das setenta semanas, preditas por Jeremias (Dn
9,2.24). No Novo Testamento, Gabriel é o anjo enviado por Deus para anunciar a Zacarias o nascimento de
João Batista (Lc 1,11-20). Depois, ele é enviado por Deus para anunciar a Maria o nascimento de Jesus (Lc
1,26-38). Ao apresentar-se a Zacarias, Gabriel diz: “Eu sou Gabriel. Estou sempre na presença de Deus, e ele
me mandou dar esta boa notícia para você!” (Lc 1,19). Por esta apresentação, a tradição considera Gabriel
“um dos sete anjos que estão sempre prontos para estar na presença do Senhor glorioso” (cf. Tb 12,14).
Gabriel é venerado pelos muçulmanos, já que foi ele quem ditou o Alcorão para Maomé. Gabiel simboliza
todas as pessoas que se sentem animadas por Deus para transmitir uma palavra de ânimo para os outros.
Como Gabriel, há muitos anjos e anjas de Deus entre nós.
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5ª Parte PARÁBOLAS
Que só aparecem em Lucas 1. O Bom samaritano (Lc 10,25-30)
2. O Filho Pródigo (Lc 15,11-32) 3. O rico e o pobre Lázaro (Lc 16,19-31)
4. O juiz iníquo e a viúva persistente (Lc 18,1-8) 5. O fariseu e do publicano (Lc 18,9-14)
Toda vez que Jesus tem uma coisa importante para comunicar, ele conta uma parábola, cria
uma história que reflete a realidade do povo. Assim, através da reflexão sobre a realidade visível,
ele leva os ouvintes a descobrirem os apelos invisíveis de Deus, presentes na vida. Uma parábola é
feita para fazer pensar e refletir. Por isso, é importante prestar atenção até nos seus mínimos
detalhes.
1. A Parábola do Bom Samaritano
Lucas 10,25-37
Um doutor pergunta a Jesus: "O que devo fazer para herdar a vida eterna?" (Lc 10,25-26). Jesus
responde com uma nova pergunta: "O que diz a lei?" O doutor responde: "Amar a Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e com todo o teu entendimento e ao próximo como
a ti mesmo!" (Lc 10,27-28; cf. Dt 6,5; Lv 19,18). Jesus aprova a resposta e diz: "Faz isto e viverás!"
Querendo justificar-se, o doutor pergunta: "E quem é o meu próximo?" (Lc 10,29). A resposta de Jesus
é a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,30-35).
No fim, Jesus perguntou: "Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas
mãos dos assaltantes?" O doutor respondeu: "Aquele que praticou misericórdia para com ele." Então
Jesus lhe disse: "Vá, e faça a mesma coisa" (Lc 10,36-37). O doutor tinha perguntado: "Quem é o meu
próximo?" Ele está preocupado consigo mesmo. Ele quer saber: "Quem eu devo considerar como meu
próximo?" Ele achava que Deus manda amar só o próximo; os outros não. Se por acaso vier alguém
que não é da categoria dos próximos, eu não preciso amá-lo.
A pergunta de Jesus é outra: "Quem dos três foi o próximo do homem assaltado?" A condição de
próximo não depende da raça, do parentesco, da simpatia, da vizinhança ou da religião. A humanidade
não está dividida em próximos e não próximos. Para saber quem é o próximo, é só se aproximar. É
fazer o que fez o samaritano: aproximar-se! Próximo é todo ser humano que se aproxima. Jesus
inverteu tudo. Ele deve ter incomodado o doutor. Tirou o sossego dele.
2. A Parábola do Filho Pródigo
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Lucas 15,11-32 (já o vimos anteriormente)
3.
A parábola do rico e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31)
Jesus conta a parábola do pobre Lázaro, sentado à porta do rico. Os únicos amigos do pobre são
os cachorros para lamber-lhe as feridas. Contraste enorme entre rico e pobre! Jesus faz a denúncia e,
através da parábola, ele mostra que Deus pensa o contrário.
Estamos acompanhando Jesus na sua viagem para Jerusalém. Alcançamos o topo da serra, o
centro da viagem, de onde se observam com mais clareza os dois temas principais que percorrem o
evangelho de Lucas, de ponta a ponta. No capítulo 15, a parábola do Pai com seus dois filhos nos
revelou a ternura e a misericórdia de Deus que acolhe a todos. Agora, o Capítulo 16 nos traz a parábola
do pobre Lázaro para revelar a atitude que devemos ter frente ao problema da pobreza e da injustiça
social.
Na parábola aparecem três pessoas: Lázaro, o pobre e Abraão. O pobre, o único que não fala,
tem nome, morre e é acolhido por Deus! O rico não tem nome, morre e é enterrado. O rico sem nome
puxa a conversa o tempo todo. Dentro da parábola, o pai Abraão representa o pensamento de Deus. O
rico sem nome representa a ideologia dominante do governo da época. Lázaro representa o grito
calado dos pobres do tempo de Jesus, do tempo de Lucas e de todos os tempos.
* Os dois extremos: a riqueza agressiva e o pobre sem recursos, a porta fechada (Lc 16,19-21)
* A morte revela a verdade escondida (Lc 16,22)
* A primeira conversa entre o rico e o pai Abraão (Lc 16,23-26)
* A segunda conversa entre o rico e o pai Abraão (Lc 16,27-29)
* A terceira conversa entre o rico e o pai Abraão (Lc 16,30-31)
O rico tem tudo, mas se fecha em si mesmo e não abre a porta para Lázaro. Ele perde a Deus,
perde a riqueza, perde a vida, perde a si mesmo, perde o nome, perde tudo. Não há salvação nem
futuro para o rico que se fecha em si mesmo. O pobre é Lázaro, seu nome Lázaro significa “Deus
ajuda”. Deus vem até nós na pessoa do pobre, sentado à nossa porta, para nos ajudar a transpor o
abismo intransponível que os ricos criaram. O pobre que não tem nada, ganha Deus, ganha a vida,
ganha tudo.
A parábola sugere: nesta vida, o que separa o rido do pobre é a porta fechada. Enquanto você
tiver vida, abra a porta, vai conversar com Lázaro e comece a derrubar o muro de vergonha que separa
ricos e pobres.
Lázaro é também Jesus, o Messias pobre e servidor, que não foi aceito, mas cuja morte mudou
radicalmente todas as coisas. É à luz da morte do pobre que tudo se modifica. O lugar de tormento é a
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situação da pessoa sem Deus. Por mais que o rico pense ter religião e fé, não há jeito de ele estar com
Deus, enquanto não abrir a porta para o pobre, como fez Zaqueu (Lc 19,1-10).
4.
A parábola do juiz iníquo e a viúva persistente (Lc 18,1-8)
O assunto da oração é um assunto muito caro a Lucas. Nesta parábola do Juiz e da viúva, Jesus
chama a atenção para a insistência com que devemos pedir as coisas na oração, a mesma insistência
com que a viúva incomodou o juiz que não tinha temor de Deus. Na parábola do publicano e do fariseu
(Lc 18,9-14), Jesus insiste na humildade que deve marcar nossa oração.
Lucas introduz a parábola com a seguinte frase: "Contou-lhes ainda uma parábola para mostrar
a necessidade de orar sempre, sem jamais desanimar". A recomendação para “orar sem desanimar”
aparece muitas vezes no Novo Testamento (1 Tes 5,17; Rm 12,12; Ef 6,18; etc). Era um traço
característico da espiritualidade das primeiras comunidades. Em seguida, Jesus traz dois personagens
da vida real: um juiz sem consideração por Deus e sem consideração para com as pessoas, e uma viúva
que luta pelos seus direitos junto ao juiz. O simples fato de Jesus trazer estes dois personagens revela
a consciência crítica que ele tinha da sociedade do seu tempo.
A parábola apresenta o povo pobre lutando no tribunal pelos seus direitos. O juiz resolve
atender à viúva e fazer-lhe justiça. O motivo é este: ficar livre da chateação da viúva e não ser
esbofeteado por ela. Motivo bem interesseiro. Mas a viúva conseguiu o que ela queria! Este é o fato
da vida diária, usado por Jesus para ensinar como rezar. Jesus aplica a parábola dizendo: "Se até um
juiz que não vale nada sabe fazer justiça, quanto mais o Pai do céu saberá fazer justiça aos seus eleitos,
mesmo que os faça esperar!" (Lc 18,7) E acrescenta que Deus fará justiça muito em breve.
Se não fosse Jesus, não teríamos tido a coragem de comparar Deus com um Juiz ateu sem moral!
No fim, Jesus expressa a dúvida: "Será que o Filho do Homem vai encontrar fé sobre a terra?" Será que
vamos ter coragem de esperar, de ter paciência, mesmo que Deus demore em atender?
Esta parábola mostra que Jesus tinha um jeito diferente de olhar a vida. Ele conseguia enxergar
uma revelação de Deus lá onde todo mundo só enxergava coisa incômoda e ruim. Por exemplo, ele via
algo de positivo na viúva pobre, da qual se dizia: “Ela é tão chata que chega a incomodar o próprio
juiz!”, e no publicano, de quem todo mundo dizia: “Ele nem sabe rezar!” Jesus vivia tão unido ao Pai
pela oração, que tudo se tornava expressão de oração para ele.
5. A parábola do fariseu e do publicano
(Lc 18,9-14)
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A parábola é introduzida com a seguinte frase: "Contou ainda esta parábola para alguns que,
convencidos de serem justos, desprezavam os outros!" A frase é de Lucas e se refere, simultaneamente,
ao tempo de Jesus e ao tempo do próprio Lucas, onde as Comunidades da tradição antiga
desprezavam as que vinham do paganismo. Na parábola, dois homens sobem ao Templo para rezar:
um fariseu e um publicano.
Na opinião do povo daquela época, um publicano não prestava para nada e não podia dirigir-se a
Deus, pois era uma pessoa impura. Na parábola, o fariseu agradece a Deus por ser melhor do que os
outros. A sua oração nada mais é do que um elogio de si mesmo, uma auto-exaltação das suas boas
qualidades, um desprezo pelos outros. O publicano nem sequer levanta os olhos, bate no peito e
apenas diz: "Meu Deus, tem dó de mim que sou um pecador!" Ele se coloca no seu lugar diante de
Deus. Se Jesus tivesse deixado ao povo dizer quem voltou justificado para casa, todos teriam dito: "É o
fariseu!" Jesus pensa diferente. Quem voltou justificado, isto é, em boas relações com Deus, não é o
fariseu, mas sim o publicano. Novamente, Jesus virou tudo pelo avesso. Muita gente não deve ter
gostado da aplicação que Jesus fez desta parábola.
EMAUS Lucas 24,13-35
O primeiro Círculo Bíblico Ele continua conosco, e não o percebemos
Nesta conclusão final, Lucas descreve a caminhada de Jesus na estrada de Emaús. É para
alertar a nós cristãos: devemos abrir os olhos para perceber Jesus andando conosco na estrada da
vida e experimentar que ele está vivo no meio de nós!
1º Momento: partir da realidade (Lc 24,13-24): Jesus encontra os dois amigos numa situação
de medo e descrença. As forças de morte, a cruz, tinham matado neles a esperança. É a situação de
muita gente hoje em dia. Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De
que estão falando?" A propaganda do governo e da religião oficial da época, impedia-os de
enxergar: "Nós esperávamos que ele fosse o libertador, mas...". O primeiro momento é este:
aproximar-se das pessoas, escutar a realidade, sentir os problemas; ser capaz de fazer perguntas
que geram um olhar mais crítico.
2º Momento: usar a Bíblia e a história do povo .(Lc 24,25-27). Jesus usa a Bíblia e a história
para iluminar o problema que fazia sofrer os dois amigos e para esclarecer a situação que eles
estavam vivendo. Usa-a também para situá-los dentro do conjunto do projeto de Deus, desde
Moisés e os profetas, e mostrar, assim, que a história não tinha escapado da mão de Deus. Ele usa a
Bíblia não como um doutor que já sabe tudo, mas como o companheiro que vem ajudar os amigos
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a lembrar o que estes tinham esquecido. Jesus não provoca complexo de ignorância no educando,
mas procura despertar nele a memória. O segundo momento é este: com a ajuda da Bíblia e da
história, ajudar o outro a descobrir a sabedoria que já existe dentro dele e transformar a cruz, sinal
de morte, em sinal de vida e de esperança. Aquilo que os impedia de caminhar, torna-se agora
força e luz na caminhada. Como fazer isto hoje?
3º Momento: partilhar na comunidade (Lc 24,28-32): A Bíblia sozinha não abre os olhos. Ela
faz arder o coração. O que abre os olhos é a fração do pão, o gesto comunitário da partilha, a
celebração da Ceia. No momento em que o reconhecem, os dois renascem e Jesus desaparece.
Jesus não se apropria da caminhada dos amigos. Não é paternalista. Ressuscitados, os discípulos
são capazes de caminhar com seus próprios pés. O terceiro momento é este: saber criar um
ambiente de fé e de fraternidade, de celebração e de partilha, onde possa atuar o Espírito Santo. É
ele que nos faz descobrir e experimentar a Palavra de Deus na vida e nos leva a entender o sentido
das palavras de Jesus (Jo 14,26; 16,13).
O resultado Ressuscitar e voltar para Jerusalém (Lc 24,33-35): Os dois criam coragem e
voltam para Jerusalém, onde continuavam ativas as mesmas forças de morte que mataram Jesus.
Mas agora tudo mudou. Coragem, em vez de medo! Retorno, em vez de fuga! Fé, em vez de
descrença! Esperança, em vez de desespero! Consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao
poder! Liberdade, em vez de opressão! Numa palavra: vida, em vez de morte! Em vez da má noticia
da morte de Jesus, a Boa Notícia da sua Ressurreição! Os dois experimentam a vida, e vida em
abundância! (Jo 10,10). Sinal do Espírito de Jesus atuando neles!
O novo jeito de ensinar de Jesus manifesta-se de muitas maneiras. Jesus aceita como
discípulos não só homens, mas também mulheres. Ensina não só na sinagoga, mas em qualquer
lugar onde houvesse gente para escutá-lo: na sinagoga, em casa, na praia, na montanha, na
planície, no caminho, no barco, no deserto. Não cria relacionamento de aluno-professor, mas sim
de discípulo-mestre. O professor dá aula e o aluno está com ele durante o tempo de aula. O mestre
dá testemunho e o discípulo convive com ele 24 horas por dia. É mais difícil ser mestre do que
professor! Nós não somos alunos de Jesus, mas sim discípulos e discípulas!
O ensino de Jesus era uma comunicação que transbordava da abundância do coração nas
formas mais variadas: como conversa que tenta esclarecer os fatos (Mc 9,9-13), como comparação
ou parábola que faz o povo pensar e participar (Mc 4,33), como explicação do que ele mesmo
pensava e fazia (Mc 7,17-23), como discussão que não foge do polêmico (Mc 2,6-12), como crítica
que denuncia o falso e o errado (Mc 12,38-40). Mas de qualquer maneira, era sempre um
testemunho do que ele mesmo vivia, uma expressão do seu amor! (Mt 11,28-30).
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Jesus educador e mestre, era uma pessoa significativa para seus discípulos e suas
discípulas. Marcou a vida deles para sempre. Educar não é só uma questão de ensinar verdades
para o outro decorar. O conteúdo que Jesus tinha para dar não estava só nas palavras mas também
nos gestos e no próprio jeito de ele se relacionar com o povo. O conteúdo nunca está desligado da
pessoa que o comunica. A bondade e o amor que transparecem nas suas palavras fazem parte do
conteúdo. São o seu tempêro. Conteúdo bom sem bondade é como leite derramado.
Em tudo que Jesus diz e faz, transparecem os traços do rosto de Deus. Transparece a
experiência que ele mesmo tem de Deus como Pai. Revelar Deus como Pai era a fonte e o destino
da Boa Nova de Jesus. Nas suas atitudes transparecia o amor de Deus para com os discípulos e as
discípulas. Ele revelava o Pai e encarnava o seu amor! Jesus podia dizer: “Quem me vê vê o Pai” (Jo
14,9). Por isso, o Espírito do Pai estava também em Jesus (Lc 4,18) e o acompanhava em tudo,
desde a encarnação (Lc 1,35) e o começo da missão (Lc 4,14), até o fim na morte e ressurreição (At
1,8). O Pai não tem ciúme do Espírito, mas o comunica abundantemente a quem o pede na oração
(Lc 11,13).
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