o farol do porto da paz

19

Upload: novo-seculo-editora

Post on 31-Mar-2016

217 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Toninho e sua família moram diante de um belo cenário litorâneo brasileiro: o Farol de Touros, no Rio Grande do Norte. Diante dele, a família Paiva vive momentos angustiantes e marcantes inesquecíveis para o menino doce e sonhador. Mesmo contra as aspirações do pai, que pertencia à Marinha e desejava o mesmo futuro para o filho Toninho parte do litoral nordestino para ser um grande correspondente internacional. Já formado, Tonny Paiva cobre os primeiros ataques no Iraque como um reconhecido profissional. Ao se deparar com inúmeros acontecimentos em meio à guerra, o audacioso jornalista revê seus conceitos e relembra de sua infância, o que impactará em suas atuais decisões.

TRANSCRIPT

o Faroldo Porto da Paz

Farol do Porto - MioloLe.indd 2 24/09/2012 11:52:39

Kelly Cortez

S ão Pau lo 2 0 1 2

o Faroldo Porto da Paz

Coleção Novos Talentos da Literatura Brasileira

Farol do Porto - MioloLe.indd 3 24/09/2012 11:52:39

Farol do Porto - MioloLe.indd 6 24/09/2012 11:52:40

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces(...)Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: “vem por aqui”!A minha vida é um vendaval que se soltou,É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vouSei que não vou por aí!

(Trecho do poema Cântico negro, de José Régio)

Farol do Porto - MioloLe.indd 9 24/09/2012 11:52:40

Farol do Porto - MioloLe.indd 10 24/09/2012 11:52:40

11

Prólogo

O trovoar de fogos era ensurdecedor. Um assovio fino, cortante, assustador. Depois, novamente, pum... pum... ploct, ploct, pum...

Estampidos rompiam freneticamente, seguidos de gritos histéricos, olhares perturbados, emoções afloradas e corações acelerados.

Depois novos estrondos e mais assovios prolongados ecoa-vam no espaço. De novo, pum, pum, pum, pum, pum... e uma nova série de gritos eram ouvidos em uma profusão de sons ora histéricos ora abafados. Vozes maduras e roucas intercaladas por gritinhos finos e agudos vindos de seres ainda em formação; seres que cresceriam e perderiam a inocência, a doçura com que veem o mundo, mas, mesmo com o passar dos anos e o advento da maturidade, ainda conservariam a perplexidade diante de cenas como aquelas.

Uma sirene tocou estridente. Seu som agudo e repetitivo parecia ser ouvido por toda extensão daquela terra. Sirenes, para ele, eram sons deprimentes. Elas sempre o deixavam apreen-sivo, perturbado. Tal sonido lembrava-o da tragédia de alguém sendo levado em uma ambulância, uma perseguição policial, uma emergência para o corpo de bombeiros.

Ele odiava sirenes, sentimento que se intensificou, solidifi-cando-se no último ano. Tinha ódio por elas... Talvez as detes-tasse desde o ventre da mãe. “Odeio isso”, pensou irrequieto, tapando inutilmente os ouvidos para sufocar o som, mas elas continuavam agudas e repetidas por um mundo estranhamente barulhento e artificialmente iluminado.

Foguetões rasgavam o céu freneticamente, um atrás do outro, em intervalos tão pequenos, que mal dava para perceber qual havia detonado primeiro. Uma sequência de bombas explodia

Farol do Porto - MioloLe.indd 11 24/09/2012 11:52:40

12

simultaneamente por toda parte. Era uma sequência de explosões que estourava a cada minuto, vinda de lugares e pontos diferen-tes, fazendo a terra estremecer. As primeiras sobressaltavam até os mais atentos, mas depois já não causavam tanta tensão na multi-dão, anestesiada pelo ribombar que se repetia.

Clarões no ar iluminavam o infinito enegrecido de poucas estrelas, as quais se ofuscavam, inertes, por luzes mais fortes que as faziam desaparecer diante de olhos apreensivos.

Uma cascata de luzes descia do céu, resplandecente e bri-lhante, como uma explosão de meteoritos. Uma chuva de estre-las cadentes prestes a cair sobre a Terra... Avermelhadas, amarelas, roxas, alaranjadas... A variação das cores do espetáculo era tão diversa quanto a quantidade de explosões que se ouvia.

Durante décadas, ou mais provavelmente pelo resto de sua existência, Antônio lembraria de luzes como aquelas, que, fati-dicamente, marcariam sua vida em uma regressão a um cenário tão multicolorido, porém extremamente mortal.

Do alto em que estava, jogou o cálice em que bebia água, saboreando o líquido cristalino e precioso, a água pura, artigo que lhe foi tão raro. Por mais que bebesse, sua sede parecia não saciar. A necessidade de sentir o molhado límpido da H2O adentrando sua boca, descendo em mananciais por seu corpo já tão farto do líquido. O estômago já estava cheio e pesado de tantos e tantos litros que havia bebido nas últimas 24 horas.

Mas ele queria mais... A pura e mineral água potiguar que saía escaldante na cidade em que nasceu. Uma água fervente e cristalina.

Ah, quanta falta sentira dessa água, de seu corpo transpa-rente, de seu sabor leve e incomparável! Definitivamente, ele não concordava com a definição científica da água no tocante a ser insípida; ela era saborosa e leve, com nada a lhe fazer concor-rência. Nessa noite, ao contrário da grande maioria das pessoas

Farol do Porto - MioloLe.indd 12 24/09/2012 11:52:40

13

que a engole em gestos mecânicos, ele a degustou, saboreando-a em goles lentos, sentindo no paladar sua suavidade, como um bom provador de vinhos diante de uma safra rara.

Antônio não era um homem dado a embriaguês, jamais o fora, nem mesmo em momentos como aquele, onde as farras e os porres eram inexoravelmente justificados por convenções sociais. Queria manter-se sóbrio. Tudo o que mais prezava era o funcionar lógico de sua consciência, sua sagacidade e a brilhante inteligência com que fora presenteado pelo divino desde a tenra infância.

Saudoso, viu o copo bailar pelos ares, metros e metros abaixo, e riu consigo mesmo, lembrando a antiga brincadeira de criança, sua favorita. A traquinagem que unia os três filhos da casa, a divertida brincadeira que costumava fazer com os dois irmãos, quando, outrora, jogava objetos metros abaixo, vendo--os serem jogados no ar pela fúria dos ventos. Na maioria das vezes, as brincadeiras eram motivo de saudáveis apostas entre os irmãos, que, 65 metros abaixo, minúsculos e saltitantes, os esperavam cair. O vencedor era aquele que acertava o local da queda e conseguia recuperar o objeto, muitas vezes molhado de água salgada ou grudado em areia fina.

Uma paisagem onírica se descortinava por seus olhos ins-tantaneamente distantes, tendo uma estrondosa explosão como fundo musical.

Em um súbito de consciência, observou, nervoso, temendo ferir alguém com essa infantilidade saudosa. Seus temores ces-saram quando viu dezenas de minúsculos fragmentos despeda-çados ao chão, despercebidos pelo espetáculo monumental da meia-noite.

Era dezembro... 31 de dezembro de 2003.

Farol do Porto - MioloLe.indd 13 24/09/2012 11:52:40

14

Do alto de seu apartamento ele via, melancólico, a passa-gem de um ano para outro, com todo anseio e esperança embu-tidos nesse dia de festividades. Um ano novo, um novo ciclo que iniciava. Hoje, em especial, este dia, para ele, era mais lite-ral do que para a maioria das pessoas.

Sem o costumeiro mau humor que essa época do ano lhe causava, ele recostou-se ao parapeito da varanda e viu o céu brilhar multicolorido, com foguetões que caíam em cascatas e reluziam suas luzes no mar, cujas águas lhe serviam de espelho. Em poucos minutos completaria trinta anos de vida.

Trinta anos... Três décadas... duas das quais passou moldando o ser que

se tornou, o qual, de agora em diante, tentaria deixar para trás, buscando freneticamente resgatar o sonhador e dócil menino de sua primeira década de vida. Procuraria resgatar Toninho, com sua intensa felicidade, sua maneira singela de abraçar a vida, tirando alegria de cada desafio, deliciando-se com tudo que fazia. Iria às praias exuberantes onde cresceu, resgataria seu apetite feroz pelas frutas nordestinas e por sua culinária exótica. Retomaria sua ânsia incomum de aprender.

Seria uma busca inútil. E só havia um lugar onde encontrá--lo: dentro de si mesmo.

Em homenagem a ele, comemoraria hoje, pela primeira vez, o seu aniversário e daria uma grande festa. Ah, daria sim! Uma festa como nunca teve. Uma festa que o menino da aurora de sua vida adoraria, com lancheira de doces e sorvetes para a criançada e muito, muito bolo de chocolate. Queria conhecer Beatriz e comer brigadeiro com ela sentada em seu colo, não se importando em ver os dedos pequenos da sobrinha manchar seu sofá de chenille branco, design moderno e, obviamente, bem caro. Também veria, pela primeira vez, Roberto Neto que, se levasse no sangue os traços da hereditariedade, deveria ser um

Farol do Porto - MioloLe.indd 14 24/09/2012 11:52:40

15

furacão. Era melhor, então, guardar bem os cristais e providen-ciar copos de plástico resistentes ou utensílios descartáveis. Mas deixaria o menino bagunçar seu apartamento impecável, como certamente o pai dele faria nessa idade.

Daria uma festa com alegria por ter nascido de novo, dei-xando para trás todo o passado de imaturidade egocêntrica que havia cultivado nos últimos vinte e dois anos.

Deu um suspiro e levantou a vista cansada. Os olhos negros, antes vivos e brilhantes, agora caídos e com profundas olheiras arroxeadas, que sobressaltavam na pele extremamente clara. Quieto, observou a paisagem à sua frente. Depois de tudo que passou no último ano, nenhum cenário poderia ser tão perfeito, e Antonio Luiz Paiva desejava estar ali mais que em qualquer outro lugar. Na verdade, só haveria um lugar no mundo onde desejava estar mais do que naquela linda orla festiva. Esperaria apenas os raios do sol começarem a brilhar para pegar a estrada, a esburacada BR 101 que levava a Touros. O caminho que ele tantas vezes havia passado, a estrada que seguia antes do raiar do dia em um jipe da marinha, entupido de crianças, que dei-xou para trás em busca de seus ideias e sonhos, no qual voltaria, refazendo a trajetória, dessa vez em busca de si mesmo.

Mas esse cenário era perfeito para esta noite, perfeito para a chegada de mais um ano, coisa que ele nem lembrava de um dia ter comemorado, o que, de fato, realmente nunca tinha feito. Ideal para a chegada do décimo terceiro ano de vida, perfeito para a chegada do amor...

A visão inesquecível do mar, na Praia do Meio, encheu sua alma com uma enorme nostalgia. A belíssima faixa de praia que se estendia por toda vista de sua varanda; o mar que ele quase nunca contemplou, perdido em seus devaneios intelectuais; a praia de areias finas onde adorava caminhar e sentir a brisa fresca do vento em seu rosto de traço delicados... O que fez

Farol do Porto - MioloLe.indd 15 24/09/2012 11:52:40

16

poucas vezes, inerte no glamour das grandes confraternizações com autoridades e editores poderosos, nas reuniões de intelec-tuais, na aquisição de peças de grifes, na preocupação com seus livros, alguns de edições raras.

Bem ao longe podia-se ver as luzes amarelas do Forte dos Reis Magos, há quatrocentos anos de pé, como marco central de uma cidade abençoada por sua geografia tão bela. Arrependido, lembrou-se de que nunca havia ido ao forte, não conhecia seu interior, apenas sua fachada e parte de sua história, a qual, obviamente, estudou durante a escola primária, mas de perto não sabia como ele era. Morou tantos anos naquela cidade e nunca se interessou em visitar um de seus pontos turísticos mais conhecidos. Estava sempre ocupado demais em consultar os guias turísticos de outras capitais famosas como: Paris, Londres, Amesterdã... que esqueceu de conhecer a cidade que era um pouco sua, a sua capital, que tantos sonhavam em conhecer, que recebia com alegria turistas de todas as partes do mundo, a Noiva do Sol, a cidade que levava o nome da festa mais espe-rada do ano: Natal!

Com sua brisa constante e sol radiante, Natal dissipava toda tristeza. Uma beleza para se ver e admirar.

Prometeu a si mesmo que no dia seguinte iria conhecer de perto o famoso Forte dos Reis Magos. Iria se esbaldar em uma refeição no Manguai, bem típica, bem nordestina, con-trariaria sua perpétua deita e comeria generosamente. Nada de carnes brancas, de salada e legumes no vapor por hoje; nem pensar em contar as calorias para não ultrapassar as duas mil. Hoje, ele queria buchada de bode, uma vaca atolada com bas-tante caldo e enormes pedaços de macaxeira ensopados com sua gordura. Toninho ficaria radiante e ainda pediria pudim de leite e mousse de maracujá para sobremesa. Tudo junto, no mesmo prato, como convinha a qualquer guloso que se preze.

Farol do Porto - MioloLe.indd 16 24/09/2012 11:52:40

17

Sorridente, ele sentia a boca encher-se de água pela lembrança ínfima do sabor que cedo abolira de sua vida pela dieta imposta e pela distorção do julgamento de uma boa refeição.

Queria passear despreocupado por Natal e sentir sua brisa incomparável assanhando-lhe os cabelos, iria subir o Morro do Careca e observar Ponta Negra lá de cima, iria escorregar de esquibunda pelas dunas de Genipabu e passear de dromedários, mergulhar nos corais de Maracajaú e ver seus cardumes de peixes multicoloridos. No final da tarde, daria um pulo em Redinha só para devorar umas gingas com tapioca e talvez provocar uma bela dor de barriga pelo resto da semana. Seu estômago estava desacostumado com essas excentricidades gastronômicas.

Nunca mais só, sempre com Jade ao seu lado. O intelectual solitário também foi sepultado no Oriente. Agora, encontrara uma companheira, alguém em que desejava dividir até seus sonhos.

Apresentaria-lhe o melhor de sua terra no dia seguinte...

Com a grata esperança desse novo dia, novamente olhou o forte que brilhava à sua frente. Secular, imponente, majestoso em seu formato singular de uma estrela de cinco pontas.

O forte era a lembrança de uma guerra ocorrida havia qua-tro séculos, o marco da vitória de um povo de quem só se ouvia falar nos livros da escola. Mas a guerra que ele vivera ainda estava sendo travada, talvez mesmo agora, nessa hora mágica no oci-dente, talvez agora, ceifando vidas, interrompendo rituais secula-res de adoração, anulando sonhos para sempre. Falava-se dela o tempo todo, analistas bélicos a contabilizavam, soldados a toma-vam, nativos a queriam de volta, governantes tentavam dominá--la. Mas hoje, só hoje, ele queria esquecê-la, talvez nem pudesse...

Deu um suspiro cansado, sacudiu a cabeça para tirar as cenas dilacerantes que insistiam em lhe tomar a consciência.

Contemplativo, concentrou-se em observar a festa animada.

Farol do Porto - MioloLe.indd 17 24/09/2012 11:52:40

18

A multidão se abraçava e se beijava. Músicas de paz toca-vam, os tambores retumbavam na comemoração afro, e ele ouvia seus batuques ao longe; em breve, uma missa seria rezada. Mesmo do alto ele podia distinguir o padre de batina branca se preparando para o primeiro ato religioso do ano. Um bom número de pessoas esperava a missa. Alguns faziam suas preces à beira-mar, outros lhe dedicavam oferendas, que pela manhã estariam na beira da praia, ou seriam levadas por entidades vivas, mais espertas.

Crianças sorriam aos pulos a cada vez que um novo explo-sivo era detonado. Seus olhos fitavam o céu, resplandecendo sua emoção. Eram as mais contagiadas pelas festividades; eram puras, e em sua pureza de sentimentos seus atos de deslumbre eram, para ele, justificados.

A lembrança de outras crianças sob explosivos lhe veio automaticamente ao coração. As crianças aterrorizadas pelos fogos mortais que rasgavam o céu sobre suas cabeças, os quais, pela manhã, as deixariam órfãs, sem escola, lotando hospitais sobrecarregados e com estrutura abalada.

A felicidade das crianças embaixo de sua varanda era emo-cionante, e ele não pôde conter as lágrimas. Mas os outros, os adultos, pareciam irracionais com todo aquele alvoroço anual-mente repetido, com todas aquelas promessas anualmente refei-tas, com todas as metas anualmente traçadas.

E tudo se perdia ao longo do ano...Para alguns, algo, talvez, se realizasse ao longo do ano... Para

outros poucos, pouquíssimos certamente, tudo se realizaria ao longo do ano... Para outros tantos, a maioria, na verdade, nada se realizaria ao longo dos 364 dias do ano vindouro! Tudo continua-ria na mesma inércia de outrora, no mesmo plantar e colher, traba-lhar, dormir e acordar para dias enfadonhos e quase mecanizados.

Farol do Porto - MioloLe.indd 18 24/09/2012 11:52:40

19

Mas tinha algo que justificava toda essa alegria. A alegria de mais um ano e suas chegadas. Havia a vida...

– A vida... – sussurrou quase em um murmúrio de dor. A dor psicológica de uma alma atribulada por lembranças cruéis e pessoas perdidas, ou a dor física, carnal, de uma perna parcialmente dilace-rada, agora cuidada sob efeito de analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos, mas que doeria por toda a existência, principalmente quando as lembranças que causaram o ferimento lhe viessem ao palco da mente, coisa que insistiam em fazer o tempo todo.

Mas existia a vida, e é de lembranças que ela é feita.Havia a vida repleta de anseios e sonhos, de frustrações

e alegrias, com realizações e fracassos. A vida com sopros de amor, com raios coloridos de esperança, tão coloridos como os dos fogos que pintavam o céu enegrecido. A esperança e a fé que nos fazem caminhar.

A vida com anseios e sonhos, vidas. Uma vida que viu, de perto, ser destruída em um átimo, pela brutalidade e falta de amor sem medidas. Em uma terra onde o respeito era um sentimento fugaz e os direitos humanos um conto de fadas na terra do nunca.

Vidas... vidas que viu extinguir pela estupidez, pela insen-satez de homens, quase animais, por ditadores inescrupulosos e poderosos governantes que usavam seu povo como marionete em circo mambembe.

Vidas como a dos anônimos que ele viu se aglomerando pelos becos e leitos sem estrutura, como a de Aissam em seus braços, rogando por uma promessa que era tudo que ele queria cumprir. Como a de seu ídolo, para quem se acabaram os anos novos, as comemorações de aniversário, os sonhos mais sim-plórios... do filho que ele nunca chegou a embalar, dos doces melões mossoroenses que ele jamais receberia com os cumpri-mentos de Tonny Paiva.

Farol do Porto - MioloLe.indd 19 24/09/2012 11:52:40

20

De relance, olhou o quarto e vislumbrou Jade adorme-cida, estirada na cama e completamente inerte aos estrondos que vinham de fora. Ela acostumou-se a dormir sob o barulho, estrondos de explosões mortais. Estava a ponto de acordá-la com um beijo de feliz Ano Novo, mas conteve seu impulso e a deixou dormir. Respeitaria seu sono, como durante muitos anos seus familiares respeitaram o seu na hora da virada do ano, mas o dele era por motivos bem diferentes do que da exaustão, que era o estado em que a moça se encontrava depois de um ou dois Pondera que teve de lhe dar para acalmá-la.

Amanhã lhe desejaria feliz Ano Novo.Ciente de que só essa data não seria suficiente em seu pro-

cesso de recomeço, de Ano Novo e vida nova, para ela, que per-dera tudo, onde tudo era novo e desconhecido, ele usaria todo seu empenho para proporcionar-lhe um novo amanhã.

Amanhã... Esperançoso desse novo amanhã... Pelos pontei-ros do relógio, já não mais amanhã, apenas mais tarde...

Tão linda e tão doce era ela assim dormindo, mas por tudo pelo que passou rompeu dentro dela um pouco de sua inocên-cia, esperanças e sua credibilidade nos seres humanos, capazes de atitudes tão animais. Seus cabelos negros estavam caídos de lado, brilhando, mesmo na escuridão do quarto.

Tinha uma vontade quase incontrolável de agarrá-la, de amá-la, de tocá-la, mesmo que ainda adormecida. Era inconce-bível para ele, um homem tão centrado, com alta escolaridade, viajado, poliglota e quase catedrático, ser dominado assim por um sentimento tão espetacular que o arrebatava por inteiro. Como tinha necessidade da presença dela. Tinha uma vontade tão desesperadora de ter seu corpo junto ao dela, de tocá-la, mas sabia que não podia. Os altos padrões em que a moça fora educada e o furacão humano que a trouxe ao mundo o impe-diriam de tocá-la antes de uma união legal e provavelmente

Farol do Porto - MioloLe.indd 20 24/09/2012 11:52:40

21

religiosa. Ele esperaria. Por ela, valia a pena esperar; afinal, eles estavam vivos.

Com os olhos em lágrimas, reviveu o momento em que quase a perdeu, em que suas vidas, por milésimos de segundos, quase chegaram ao fim.

“Vidas... vidas”, pensou irrequieto.Vidas... vidas como a sua, que ele quase chegou a perder...Sob um prisma totalmente novo, agora ele via o valor da

vida em toda sonoridade que esse dissílabo consegue expressar.Segurando-se firmemente ao parapeito de concreto, e

ciente de que não seria ouvido por ninguém, gritou com toda sua força:

– Vida!Indiferente a que o mundo ouvisse, bramiu aos quatro ven-

tos, gritou a plenos pulmões: – Vida!E muitas vezes gritou:– Vida, vida, vida...Quando, quase sem respiração, parou para recuperar o

fôlego cansado, em seu trigésimo ano de vida ele nunca tinha se sentido tão exausto, esgotado. A força atlética que havia se desenvolvido nos últimos dez anos parecia ter sido sugada de seu ser. Sentia-se cansado, decrépito e quase octogenário.

De repente... Uma luz brilhou no mar...Um pontinho esbranquiçado que sumiu e depois brilhou

novamente.Como uma descarga elétrica de milhões de volts, a luz o

atingiu em cheio.Os fogos haviam cessado, apenas poucos eram ouvidos

agora, e algumas buzinas de carros insistentes. Rapidamente, a luz passou e quase ninguém a percebeu. Aqui, isso era tão rotineiro e previsível que poucos se davam ao trabalho de olhá-

Farol do Porto - MioloLe.indd 21 24/09/2012 11:52:40

22

-la, principalmente em uma noite como aquela, de fogos espe-taculares e farras irresponsáveis. Hoje, ela passaria cem vezes e ninguém a perceberia, mas ele reconheceria aquela luz mesmo entre milhões de luzes. Ela passou lenta, e seu coração bateu tão forte que saiu do compasso, oxigenando o cérebro, renovando--lhe a alma e trazendo um pouco de vitalidade.

A luz do farol cobriu o mar, e Antônio Luiz Paiva não desviou seu olhar dela. Ela o trouxe de volta para casa e para lembranças avivadas em sua memória; lembranças da infância feliz em terras livres e ensolaradas, das praias de areias brancas, do pôr do sol fascinante que avermelhava todo quintal de sua casa e adentrava pelas portas sempre escancaradas, da casa sem-pre arrumada com incomparável cheiro de limpeza, do aroma do gelé de coco que sua mãe fazia aos domingos, para come-rem vendo o programa humorístico que prendia toda família à noite, das dores na barriga que sentia por causa das gargalhadas que dava junto aos pais, a irmã e aos dois irmãos vendo Os Trapalhões na TV colorida que ficava na sala da casa.

A forte lembrança da voz de seu pai soava em sua memória como uma música. Lembrou-se das conversas com ele sob a incrível luz do luar de Touros, dos conselhos, das admoesta-ções que lhe diziam: “Não tema, Toninho, não tenha medo, não. Medo, Toninho, não é coisa de homem. Siga em frente, filho, procura sempre enxergar a luz de seu farol, e ela o trará de volta. Em meio a qualquer tempestade de ventos, as doidices que esse mundo tem, no meio das incertezas, seu farol é seu porto seguro, filho, e lhe indicará o caminho de volta, como esse farol aqui indica o caminho aos marinheiros errantes e per-didos que saem pelo mar em busca da sobrevivência. Para con-quistar todas as suas patentes, filho, você terá que partir para longe. Não tem jeito não, mas onde estiver, mantenha sempre os olhos fitos na luz de seu farol”.

Farol do Porto - MioloLe.indd 22 24/09/2012 11:52:40

23

Hoje, ele compreendia claramente aquelas palavras.Nunca conquistara nenhuma patente, traíra toda expectativa

que seu pai lhe traçara mesmo antes de seu nascimento. Escapou sorrateiro de toda projeção de sonhos que lhe impuseram nos ombros, mesmo antes de sua consciência tomar passos próprios.

Ele havia se desviado da luz de seu farol e partido para tão longe... Conquistara suas metas ambiciosas e quase irreais para sua humilde realidade. Mas no meio do caminho havia ficado cego pelos encantos fúteis de um mundo muitas vezes cruel, esquecera-se de quem era, dos valores em que foi ensinado e pagara um preço alto por sua ambição, custara quase sua vida, seu bem mais valioso.

Tudo isso porque havia se desviado da luz do seu farol.Mas a encontrara de novo. Ela passava lenta e rotativa

diante de seus olhos lacrimejantes.Lágrimas abundantes desceram pelo rosto agora marcado.

Seu coração machucado agradeceu abertamente aquela luz que ele tanto conhecia, que veio de forma tão inesperada naquela noite, apenas para lhe dizer que estava de volta, que chegara ao seu porto, que brilhava o seu farol.

O farol do Porto da Paz.Para ele, nesse 1º de janeiro, sua vida mudaria de novo, de fato.Para sempre...

Farol do Porto - MioloLe.indd 23 24/09/2012 11:52:40