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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA PLENA E BACHARELADO O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA (MNLM) E A LUTA PELA REFORMA URBANA NA NOVA SANTA MARTA, EM SANTA MARIA, RS TRABALHO DE CONCLUSÃO DE GRADUAÇÃO Pedro Sergio da Silveira Santa Maria, RS, Brasil 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

CURSO DE HISTÓRIA – LICENCIATURA PLENA E BACHARELADO

O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA

MORADIA (MNLM) E A LUTA PELA REFORMA

URBANA NA NOVA SANTA MARTA, EM SANTA

MARIA, RS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE GRADUAÇÃO

Pedro Sergio da Silveira

Santa Maria, RS, Brasil

2014

O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA

(MNLM) E A LUTA PELA REFORMA URBANA NA NOVA

SANTA MARTA, EM SANTA MARIA, RS

Pedro Sergio da Silveira

Trabalho de Conclusão de Graduação apresentado ao Curso de História –

Licenciatura Plena e Bacharelado, da Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de

Licenciado e Bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Diorge Alceno Konrad

Santa Maria, RS, Brasil

2014

Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Curso de História – Licenciatura Plena e Bacharelado

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova o Trabalho de Conclusão de Graduação

O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA (MNLM) E A

LUTA PELA REFORMA URBANA NA NOVA SANTA MARTA, EM

SANTA MARIA, RS

elaborado por

Pedro Sergio da Silveira

Como requisito parcial para obtenção do grau de

Licenciado e Bacharel em História

COMISSÃO EXAMINADORA:

Diorge Alceno Konrad, Dr.

(Presidente/Orientador, UFSM)

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Dr. (UFSM)

Leonardo da Rocha Botega, Ms. (CAFW-UFSM)

Glaucia Vieira Ramos Konrad, Dra. (Suplente, UFSM)

Santa Maria, 18 de Janeiro de 2014

Dedico este estudo:

Aos companheiros e companheiras do MNLM, bem

como a todos que sonham e lutam por um mundo em

que, como disse Rosa Luxemburgo, sejamos socialmente

iguais, humanamente diferentes e totalmente livres!

À Sandra Feltrin (in memoriam), importante guerreira

das causas populares em Santa Maria.

AGRADECIMENTOS

Sou muito grato...

A todas as forças cósmicas, divinas e universais que geram nossa vida e

existência consciente.

A todos os meus familiares, especialmente minha mãe, Margarida,

que durante toda esta caminhada muito me apoiou e incentivou,

inclusive para realização deste trabalho.

À companheira Melissa, por todo aprendizado e momentos maravilhosos juntos!

Ao amigo Rodrigo Ritzel, por tantos anos de convivência no 1532. Bons tempos!

A todos os companheiros e companheiras do Movimento Estudantil e da Articulação de

Esquerda, verdadeiros espaços de formação política e social.

Aos moradores da célula revolucionária 3221, de toda a CEU II e da Congas, moradias que

me acolheram durante meus estudos em Santa Maria.

Aos professores do Curso de História da UFSM, especialmente ao meu orientador Diorge

Alceno Konrad, por toda paciência e auxílio.

A todas as amizades que tive a honra e o prazer de fazer

durante todo esse período.

Aos amigos e amigas do MNLM e moradores de suas ocupações,

sem vocês este trabalho não existiria!

A todos e a todas minha Gratidão!!

Uma sociedade não pode existir sem crise de moradia,

quando a grande massa dos trabalhadores só dispõe exclusivamente de seu salário, quer

dizer, da soma dos meios indispensáveis à sua subsistência e à sua reprodução; quando as

novas melhorias mecânicas retiram o trabalho das massas de operários; quando crises

industriais violentas e cíclicas determinam, por um lado, a existência de um verdadeiro

exército de reserva de desempregados e, por outro lado, jogam momentaneamente na rua a

grande massa dos trabalhadores; quando estes estão amontoados nas grandes cidades e isto,

num ritmo mais rápido do que o da construção de moradias nas circunstâncias atuais e que,

por mais ignóbeis que sejam os pardieiros, sempre se encontram locatários para eles;

quando, enfim, o proprietário de uma casa, na sua qualidade de capitalista, tem não só o

direito, mas também, em certa medida, graças à concorrência, o dever de obter de sua casa,

sem escrúpulos, os aluguéis mais altos. Neste tipo de sociedade, a crise da moradia não é um

acaso, é uma instituição necessária; ela não pode ser eliminada, bem como suas

repercussões sobre a saúde, etc., a não ser que a ordem social por inteiro, de onde ela

decorre, transforme-se completamente.

Friedrich Engels, A questão da moradia.

Citado por Manuel Castells. A questão urbana.

RESUMO

Trabalho de Conclusão de Graduação

Curso de História - Licenciatura Plena e Bacharelado

Universidade Federal de Santa Maria

O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA (MNLM) E A

LUTA PELA REFORMA URBANA NA NOVA SANTA MARTA, EM

SANTA MARIA, RS

AUTOR: PEDRO SERGIO DA SILVEIRA

ORIENTADOR: DIORGE ALCENO KONRAD

Data e Local da Defesa: Santa Maria, 18 de Janeiro de 2014.

Nas últimas décadas a problemática urbana se intensificou no Brasil. O modelo de

desenvolvimento implementado no País impactou fortemente o campo e a cidade,

intensificando a concentração da propriedade no meio rural e urbano. Isto gerou um agressivo

processo de expulsão dos trabalhadores rurais do campo, que levou milhões de pessoas

desprovidas de suas terras a buscarem sua sobrevivência nas cidades, que por sua vez

cresceram desordenadamente reproduzindo padrões de segregação social sobre o território

urbano e ampliando a disputa pelo seu solo. Em Santa Maria-RS este processo se deu de

forma muito intensa, originando dezenas de assentamentos precários e irregulares nas áreas

periféricas, de forma que esta chegou a receber a alcunha “cidade das invasões”. Neste

contexto e enquanto expressão das desigualdades, organizam-se movimentos sociais

populares para lutar por melhores condições de vida aos setores excluídos, a exemplo do

Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Fundado nacionalmente em 1990, a

primeira ocupação de terras realizada pelo MNLM em Santa Maria foi a ocupação da antiga

Fazenda Santa Marta em dezembro de 1991, que com muitas lutas por melhorias, se ampliou

e consolidou, sendo atualmente considerado um bairro do município. O presente trabalho foi

elaborado com o intuito de contribuir com as discussões acerca da questão urbana no Brasil e

suas consequências concretas em Santa Maria, para assim compreender o processo histórico

de formação do MNLM e sua atuação na luta pela Reforma Urbana na Nova Santa Marta.

Esta pesquisa também procurou valorizar a produção acadêmica existente na UFSM quanto

ao tema, recebendo a contribuição de diversas áreas do saber em sua elaboração, além de se

basear em fontes diversas, como entrevistas e reportagens.

Palavras-chave: Urbanização; Ocupações; Movimento Social; Reforma Urbana; Nova Santa

Marta; MNLM; Santa Maria.

ABSTRACT

Conclusion Work Graduation

Course History - Full Degree and Bachelor

Federal University of Santa Maria

NATIONAL MOVEMENT OF STRUGGLE FOR HOUSING (MNLM)

AND STRUGGLE FOR REFORM URBAN IN NEW SANTA MARTA, AT

SANTA MARIA, RS

AUTHOR: PEDRO SERGIO DA SILVEIRA

SUPERVISOR: DIORGE ALCENO KONRAD

Date of Defense: Santa Maria, January 18, 2014.

In recent decades the urban problematic has intensified in Brazil. The development model

implemented in the Country heavily impacted urban and rural areas by increasing the

concentration of ownership in rural and urban areas. This generated an aggressive process of

expulsion of rural workers of their fields, which took millions of people deprived of their

lands to seek their livelihood in the cities, which in turn grew wildly reproducing patterns of

social segregation on urban territory and expanding the battle for it‟s soil. In Santa Maria - RS

this process was very intense, causing dozens of precarious and informal settlements in

peripheral areas, so that it even received the nickname "City of invasions”. In this context and

as an expression of inequality - popular social movements organize themselves to fight for

better living conditions for the excluded sectors, such as the National Movement of Struggle

for Housing (MNLM). Established nationally in 1990, the first occupation of lands held by

MNLM in Santa Maria was the occupation of the former Fazenda Santa Marta in December

1991 with many struggles for improvements, expanded and consolidated, and is currently

considered a suburban neighborhood of the city. This paper was prepared in order to

contribute to discussions about urban issues in Brazil and its practical implications in Santa

Maria, just to understand the historical process of formation of MNLM and its role in the

struggle for urban reform in Nova Santa Marta. This research also sought to enhance the

existing academic literature on the subject in UFSM, received contributions from several

fields of knowledge in its development, and is based on various sources, such as interviews

and reports.

Keywords: Urbanization; Occupations; Social Movement; Urban Reform; New Santa Marta; MNLM;

Santa Maria.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa de localização da área urbana do município de Santa Maria .................. 51

Figura 2 – Mapa da atual divisão urbana de Santa Maria .................................................. 65

Figura 3 – Acampamento na área ocupada ........................................................................ 91

Figura 4 – Matéria sobre a ocupação do Núcleo Central ................................................... 93

Figura 5 – “Já são 1500 famílias acampadas no local” ...................................................... 94

Figura 6 – Enquanto este jornal circulava, a Brigada cercava a ocupação ........................ 95

Figura 7 – Ocupação do Alto da Boa Vista em resposta a falta de uma política

habitacional. Ao mesmo tempo, greve na UFSM ............................................. 96

Figura 8 – Riscos à saúde e a vida dos ocupantes. UAC pede decretação de calamidade

púbica ................................................................................................................ 97

Figura 9 – Convênios que não chegam para todos: moradores fazem mutirão para

recuperar ruas .................................................................................................... 99

Figura 10 – Samba enredo Protesto e Alegria, 3º lugar em 1995 ....................................... 102

Figura 11 – Sem-teto não. Sem-infraestrutura ................................................................... 103

Figura 12 – Caminhada ecológica na Nova Santa Marta ................................................... 105

Figura 13 – Ocupação ou invasão? Moradores da Ocupação Km 2 acampam na Praça

Saldanha Marinho ........................................................................................... 107

Figura 14 – Audiência da comunidade com o governador em Porto Alegre ..................... 108

Figura 15 – Comunidade Conquista Projeto Santa Marta .................................................. 109

Figura 16 – Inicia Projeto Santa Marta .............................................................................. 110

Figura 17 – Reorganização das Vilas Maristas I e II ......................................................... 112

Figura 18 – Protesto contra a precariedade do pontilhão ................................................... 114

Figura 19 – Trancamento da empresa Medianeira de transporte e ocupação do prédio

abandonado da 8ª CRE, em 01/06/2005 .......................................................... 116

Figura 20 – Ato referente aos 15 anos de ocupação da Nova Santa Marta ........................ 116

Figura 21 – Mapa com a localização do Bairro Nova Santa Marta ................................... 117

Figura 22 – Trancamento da BR 258, em 27/04/2007, pela inclusão da Nova Santa Marta

no PAC e Manifestação das ocupações no centro da cidade, em 13/06/2007 119

Figura 23 – Após muita pressão, Governadora assina termo de uso da Nova Santa Marta

para Prefeitura ................................................................................................. 120

Figura 24 – Manifestação em Porto Alegre pressiona governo a repassar a escritura da

Nova Santa Marta para o Município ............................................................... 121

Figura 25 – Governadora repassa escritura da área para prefeito Cezar Schirmer, em

23/09/2009 ...................................................................................................... 122

Figura 26 – Na luta pelo Ensino Médio e Técnico: manifestação com 2 mil pessoas no

bairro, em 06/11/2009 e reunião com o governador em dezembro de 2010 ... 124

Figura 27 – Jovens do bairro participam da Audiência Pública sobre a Praça da Juventude

no dia 28/05/2010............................................................................................ 125

Figura 28 – Assembleia sobre o Minha Casa Minha Vida, na Nova Santa Marta, em

14/03/2011, na qual membros da Prefeitura assinaram documento com as

pautas .............................................................................................................. 128

Figura 29 – Assembleia Geral da Nova Santa Marta, em 12/04/2011 ............................... 128

Figura 30 – Manifestação em frente a Prefeitura, em 09/05/2011 ..................................... 129

Figura 31 – Manifestação na BR 258, em 08/12/2011 ....................................................... 131

Figura 32 – Fazenda Santa Marta, em 1985, e Nova Santa Marta, em 2001 ..................... 136

LISTA DE TABELAS E QUADROS

Tabela 1 – Distribuição da população brasileira entre 1872-2010 ........................................... 32

Quadro 1 – Avanços da Política Habitacional e Urbana x Atuação dos Movimentos de

Moradia e Reforma Urbana ...................................................................................................... 46

Tabela 2 – Crescimento da população total, urbana e rural de Santa Maria entre 1940-2012..59

Quadro 2 – Ocupações irregulares no espaço urbano de Santa Maria, RS ......................... 62-64

Quadro 3 – Áreas ocupadas suscetíveis a riscos no espaço urbano de Santa Maria, RS ......... 68

Quadro 4 – Condomínios Horizontais Fechados de 1989 a 2009 em Santa Maria, RS ...... 69-70

LISTA DE ANEXOS

Anexo 1 – Entrevista Via E-Mail com Suelen Aires Gonçalves ........................................... 148

Anexo 2 – Entrevista Coletiva Com Militantes do MNLM ................................................... 150

Anexo 3 – Mapa das ocupações irregulares no espaço urbano de Santa Maria, RS .............. 157

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. A CIDADE AOS MOLDES DO CAPITAL: A QUESTÃO URBANA E SUAS

CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL ....................................................................... 14

1.1 A Cidade para Poucos: Capitalismo e Questão Urbana ............................................... 14

1.2 A Triste História das Políticas Habitacionais no Brasil ................................................ 23

2. SANTA MARIA, CIDADE DAS OCUPAÇÕES ............................................................. 48

2.1 Santa Maria: o Acampamento que Virou Cidade ......................................................... 48

2.2 Ocupações Urbanas em Santa Maria ............................................................................. 60

3. O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA E A LUTA PELA

REFORMA URBANA NA NOVA SANTA MARTA ......................................................... 71

3.1 O MNLM e a Luta pelo Direito à Cidade em Santa Maria .......................................... 74

3.2 Nova Santa Marta: “Pra Morar, Ocupar, Resistir!” .................................................... 84

3.2.1 O acampamento que virou Bairro .................................................................................... 84

3.2.2 “Com luta, com garra, o PAC sai na marra” ................................................................. 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 139

OUTRAS FONTES .............................................................................................................. 146

ANEXOS ............................................................................................................................... 148

11

INTRODUÇÃO

“E a cidade que tem braços abertos num cartão postal,

com os punhos fechados na vida real...”

Alagados, Os Paralamas do Sucesso

Atualmente, a maioria da população mundial vive nas cidades. De acordo com a

Organização das Nações Unidas (ONU)1, desde 2008, o número de moradores em áreas

urbanas superou o das áreas rurais ao redor do planeta, o qual atingiu, em 2011, um total de 7

bilhões de habitantes. E segue crescendo: as projeções indicam que haverá 9,3 bilhões de

habitantes em 2050, com um índice de urbanização de 65%. Logo, torna-se fundamental a

compreensão da dinâmica urbana e dos movimentos sociais dela decorrentes.

A existência de cidades não é uma novidade na história humana. Diversos povos e

sociedades as construíram, a partir do momento em que a produção agrícola atingiu um

excedente que permitisse a especialização de uma parcela da população em atividades

manufatureiras ou não necessariamente produtivas (como as funções religiosas, políticas,

administrativas, governamentais, de defesa, etc.), encurtando as distâncias entre as pessoas e

aprofundando a estratificação entre distintas classes sociais. No entanto, é a partir da

Revolução Industrial e da consolidação do modo de produção capitalista que as cidades

cresceram em tamanho e se modificaram em importância, tornando-se a partir de então, o

“lócus privilegiado da produção e da circulação de mercadorias no modo de produção em que

esses processos se tornaram pressupostos e determinantes universais e, por isso mesmo,

ontológicos da constituição e da sociabilidade social” (CARVALHO, 2006, p. 3).

As cidades não são apenas aglomerados urbanos com maior densidade e diversidade

populacional, de serviços e atividades econômicas e culturais, como muitas vezes são

definidas pelos dicionários. No capitalismo, o espaço urbano torna-se mais complexo.

Ajustando melhor o foco de análise, podemos perceber o quão contraditório e desigual este se

tornou. A tão propalada promoção da cidadania e de uma melhor qualidade de vida nas

cidades do que no meio rural, muitas vezes, revela-se mais como um véu, ao encobrir a

essência de uma realidade perversa e injusta, que exclui as maiorias, não permitindo o seu

acesso a direitos humanos básicos, como a terra, emprego e moradia.

1 UNFPA. Fundo de População das Nações Unidas. Relatório sobre a situação da população mundial 2011.

Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/novo/>. Acesso em: 09 fev. 2013.

12

Observando o rápido processo de urbanização pelos quais os países periféricos

passaram nas últimas décadas, podemos concluir que a esperança de uma vida melhor nas

cidades não se tornou realidade para grande parte daqueles e daquelas que foram expulsos do

campo e/ou venderam suas terras por falta de condições de se manter trabalhando na

agricultura.

Do sonho da cidadania ao pesadelo da falta de emprego e moradia, milhões de pessoas

encontraram na ocupação de áreas públicas e privadas o único caminho para sua

sobrevivência. Vivendo (de fato, sobrevivendo) em assentamentos precários, informais, com

falta de saneamento básico, de infraestrutura adequada e de serviços públicos essenciais,

grande parte da população brasileira foi relegada à cidadania de segunda categoria. Em

decorrência deste conjunto de demandas e necessidades, diversos movimentos populares

urbanos se organizaram para pautar o acesso das camadas populares aos direitos fundamentais

com a defesa de uma nova proposta de urbanização, diferente da lógica vigente.

No meio urbano, as contradições da sociedade mostram-se mais visíveis, expressando

as desigualdades entre as classes sociais. O contraste social é nítido quando, por um lado,

vemos a cidade das camadas sociais mais ricas: nas áreas centrais, condomínios particulares,

bairros nobres e de classe média, regularizadas, com infraestrutura eficiente, redes de água e

esgoto, eletricidade, ruas pavimentadas, saneamento adequado, prédios, escolas, postos de

saúde, lojas centros comerciais; enquanto, por outro lado, vemos a cidade dos pobres: nos

bairros, vilas, favelas e loteamentos nas periferias (mas nem sempre nestas), muitas vezes

irregulares, com ausência ou insuficiência de saneamento básico, infraestrutura adequada,

espaços públicos de lazer, serviços de transporte, saúde e educação, além dos maiores níveis

de desemprego e violência, onde a população de baixa renda autoconstrói ou improvisa suas

moradias.

Refletindo sobre a urbanização brasileira, Milton Santos afirma que

Com diferença de grau e de intensidade, todas as cidades brasileiras exibem

problemáticas parecidas. O seu tamanho, tipo de atividade, região em que se inserem

etc. são elementos de diferenciação, mas em todas elas problemas como os do

desemprego, da habitação, dos transportes, do lazer, da água, dos esgotos, da

educação e saúde, são genéricos e revelam enormes carências. Quanto maior a

cidade, mais visíveis se tornam essas mazelas. Mas essas chagas estão em toda parte.

Isso era menos verdade na primeira metade deste século, mas a urbanização

corporativa, isto é, empreendida sob o comando dos interesses das grandes firmas,

constitui um receptáculo das conseqüências de uma expansão capitalista devorante

dos recursos públicos, uma vez que estes são orientados para os investimentos

econômicos, em detrimento dos gastos sociais. (1995, p. 96).

13

Os problemas sociais decorrentes deste processo de urbanização excludente, também

se fazem presentes em Santa Maria, importante cidade localizada na Região Central do estado

do Rio Grande do Sul e que, ao longo do século XX, em especial em sua segunda metade,

passou por um forte processo de crescimento urbano e demográfico. Este crescimento ocorreu

de maneira desordenada, não sendo acompanhado de políticas habitacionais que dessem conta

de sanar a demanda por moradias e solo urbano, gerando ocupações espontâneas ou

organizadas por movimentos sociais, em áreas públicas e privadas na cidade.

A presente monografia visa estudar mais especificamente a atuação do Movimento

Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) em defesa da Reforma Urbana na antiga Fazenda

Santa Marta, atual Bairro Nova Santa Marta, na Região Oeste de Santa Maria. A área foi

ocupada em 1991 por famílias organizadas pelo Movimento, de forma a que esta se tornou a

maior ocupação urbana em área pública na História do Rio Grande do Sul. De lá pra cá foram

muitos anos de resistência e lutas para pressionar os poderes públicos pela resolução das

necessidades das milhares de famílias que vivem neste território.

Para isto, o trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, buscar-se-á

compreender as raízes das desigualdades sociais no decorrer da urbanização brasileira, suas

consequências e formas de resistência popular. No segundo, analisaremos como este processo

se deu em Santa Maria, uma cidade marcada por ocupações urbanas. A partir desta

contextualização, o terceiro capítulo irá focar-se na narrativa histórica da construção do

MNLM na cidade e sua atuação na Nova Santa Marta, identificando suas contribuições para a

efetivação desta ocupação e os avanços conquistados no sentido da agenda da Reforma

Urbana e do Direito à Cidade.

A cidade se apresenta como um espaço marcado por crises, mas também por

possibilidades de sua superação. Somente através de uma práxis social consciente poderá se

apontar caminhos estratégicos rumo a alternativas concretas ao modelo de urbanização

vigente.

14

1 – A CIDADE AOS MOLDES DO CAPITAL: A QUESTÃO URBANA E

SUAS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL

“Conforme a conjuntura social, as estruturas vão se modernizando e transformando o espaço, de acordo com os

interesses dos grupos que dominam o poder ou vão sendo transformadas em função das classes que ascendem. E

a natureza reage à ação do homem, de forma mais ou menos intensa, de acordo com a agressividade com que

foi atingida. Ela, como já salientou Friedrich Engels, não é eterna e imutável, e, uma vez atingida pela ação do

homem, também se modifica, se transforma, oferecendo reações diferentes, conforme o grau de intervenção.

Assim, o espaço produzido é um espaço social e não um espaço natural”.

Manuel Correia Andrade

A problemática urbana vem se intensificando no Brasil nas últimas décadas. O modelo

de desenvolvimento conservador, tradicionalmente implementado no País, condicionou

fortemente a formação social brasileira, no campo e na cidade, intensificando a concentração

da propriedade nas mãos de poucos, no meio rural e urbano.

A crise urbana e o déficit habitacional brasileiro são expressão direta deste processo,

cujas heranças são sentidas até os dias atuais: em 2008, o déficit habitacional brasileiro era

estimado em 5.546 milhões de moradias urbanas (83,5%) e rurais (16,5%), ao mesmo tempo

em que o número de unidades habitacionais vagas com potencial para serem habitados era de

7.202 milhões (72,7% em áreas urbanas e 27,3% em áreas rurais). Obviamente, este déficit

atinge as camadas mais pobres da população, de forma a que 89,6% da demanda por

habitação tenha renda média familiar mensal de até 3 salários mínimos2. A fim de buscar as

raízes que geram estes dados, é fundamental aprofundar o conhecimento sobre a Questão

Urbana e a política habitacional brasileira.

1.1 A Cidade para Poucos: Capitalismo e Questão Urbana

Compreender a dinâmica urbana sob égide do modo de produção capitalista é

fundamental para o entendimento da realidade e os graves problemas sociais que vivemos

atualmente. Se observarmos a questão do elevado déficit por habitações de maneira

superficial, à primeira vista este pode parecer uma falha ou deficiência da distribuição das

riquezas no capitalismo. Todavia, “o problema habitacional não pode ser analisado

isoladamente de outros processos sócio-econômicos e políticos mais amplos, não obstante

nele se condensar um conjunto de contradições específicas” (KOWARICK, 1993, p. 59).

2 Déficit habitacional no Brasil 2008/Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação – Brasília,

Ministério das Cidades, 2011. Disponível em <www.cidades.gov.br>. Acesso em: 12 fev. 2013.

15

Assim, ao vislumbrarmos a essência deste processo, percebemos que ele é, na verdade,

consequência e expressão direta da lógica de reprodução do capital no espaço urbano.

Buscando compreender como se dá esta lógica com que o capitalismo projeta o espaço

urbano ao tempo em que se reproduz, Botega, a partir do estudo sobre a “cidade do capital” de

Lefebvre, afirma que

A cidade do capital coloca-se como pano de fundo da sociedade burguesa, local que

propicia as condições de realização do capitalismo, local de realização do

contraditório por excelência. A sociedade capitalista tem como característica

principal a separação do trabalho e do capital, a divisão social do trabalho, a força de

trabalho é transformada em mercadoria, cuja reprodução depende também da

aquisição de outras mercadorias, que por sua vez dependem das relações que se

estabelecem entre as demandas sociais (os bens necessários para a reprodução da

força de trabalho) e a capacidade de resposta a estas demandas por parte da

produção. Esta capacidade de resposta é medida a partir da relação entre a estrutura

administrativa autônoma municipal (a prefeitura), ou o Estado em si, e o mercado.

No âmbito da cidade do capital as relações de mercado e a estrutura administrativa

autônoma são marcadamente hierarquizadas, onde a estrutura administrativa tem as

relações de mercado como determinante para a sua ação, o que faz com que os

serviços de infraestrutura urbana necessários para a reprodução da força de trabalho,

transporte, saneamento, habitação, entre outros, sejam vistos não somente como

valor de uso, mas também como valor de troca, o que coloca uma lógica de lucro na

prestação destes serviços. (2004, p. 7).

A cidade do capital constitui-se, portanto, da expressão do modo de produção

capitalista sobre o espaço urbano, condicionado e condicionante deste. A divisão social do

trabalho não define apenas as relações de produção vigentes, mas também a divisão territorial

entre as diferentes classes sociais, refletindo-se em moradias ou bairros com características e

custos distintos, ou seja, forma estruturas que contribuem com este modo de produção e

organização social.

A propriedade privada do solo, no campo e na cidade, e sua transformação em

mercadoria – de cada vez mais estreito acesso, via compra ou aluguel – definem e redefinem a

dinâmica sócio-espacial, levando a exclusão social e a segregação territorial de enormes

contingentes populacionais, empurrados para regiões mais distantes e mais baratas das

cidades, onde talvez possam autoconstruir suas moradias, porém, desprovidas ou deficitárias

de infraestrutura e serviços de consumo coletivos (creches, escolas, hospitais, postos de saúde,

transporte público, áreas verdes e espaços de lazer, etc.) necessários à reprodução social da

força de trabalho.

Este processo é parte daquilo que Lúcio Kowarick definiu na década de 1970 no Brasil

enquanto espoliação urbana. O autor entende que, em decorrência das condições de

16

superexploração do trabalho e do empobrecimento da população propriamente dito, nas

cidades se sucedem a espoliação dos setores populares, definida como

espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se operam através da inexistência

ou precariedade de serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente

necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a

dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho. (1993, p. 62).

A regra básica que rege a distribuição das pessoas e das atividades econômicas pela

cidade é “quem possui mais poder aquisitivo, melhor se localiza” (PINHEIRO, 2002, p. 2).

Isto gera uma acirrada disputa espacial entre sujeitos e classes sociais, de forma a que o

desenvolvimento urbano não se dê de forma harmônica ou planejada, pois esta disputa é

travada nos marcos do mercado capitalista, o que torna a vida na selva de pedra uma

verdadeira luta pela sobrevivência.

É isto que leva Lojkine a afirmar que “se a política urbana capitalista não é uma

planificação – no sentido do domínio real da urbanização – nem por isso deixa de responder a

uma lógica: à da segregação social” (1997, p. 217).

Percebendo a questão da contradição entre capital e trabalho como fator estruturante

das problemáticas urbanas, Jean Lojkine e Manuel Castells, autores que desde os anos 1970

influenciam e dão consistência aos debates brasileiros sobre urbanização, observando mais

especificamente a questão da segregação sócio-espacial afirmam que

A distribuição dos locais residenciais segue as leis gerais da distribuição dos

produtos, e por conseguinte, opera os reagrupamentos em função da capacidade

social dos indivíduos, isto é, no sistema capitalista, em função de suas rendas, se

seus status profissionais, de nível de instrução, de filiação étnica, da fase do ciclo de

vida etc. (CASTELLS, 1983, p. 249).

A renda fundiária urbana vai pois marcar de forma durável o desenvolvimento

urbano. Sua principal manifestação espacial reside, a nosso ver, no fenômeno da

segregação, produzido pelos mecanismos de formação dos preços do solo, estes, por

sua vez, determinados, conforme nossa hipótese, pela nova divisão social e espacial

do trabalho. (LOJKINE, 1997, p. 188).

Diversos agentes atuam neste contexto que produz a segregação urbana, a partir de

posições sociais e interesses antagônicos, conforme destaca Pinheiro em sua análise

Para os trabalhadores a cidade representa um local de moradia, trabalho, lazer, etc.

Para o capital em geral (industrial, comercial), a cidade representa interesses

genéricos como necessidade de energia, matéria-prima, circulação de mercadorias,

insumos e também a produção de força de trabalho. E, para o capital imobiliário e

17

especulativo, a cidade não é um local apenas para obtenção de lucro: a cidade é o

próprio objeto da extração dos lucros, rendas e juros. (2002, p. 14).

A prática da especulação imobiliária é uma das principais responsáveis pela

segregação sócio-espacial, contribuindo, por um lado, com os crescentes lucros da burguesia

imobiliária (construtoras, incorporadoras, agentes financeiros) e, por outro, com a exploração

da maioria das pessoas e sua exclusão às periferias, ao restringir a oferta de terras e encarecer

o acesso ao solo urbano e à habitação adequada.

A valorização diferenciada das regiões de uma cidade decorre do maior ou menor

acesso a serviços urbanos em seu território, tais como transporte, água, esgoto, escola,

comércio, etc., o que relega a população mais pobre viver nas áreas com menos infraestrutura

e, portanto, mais baratas. Na prática, isto acaba ao fim e ao cabo, por encarecer o acesso a

estes serviços urbanos, devido às longas distâncias e a necessidade de uso do transporte

público, fazendo com que “as classes sociais de baixa renda paguem um preço mais elevado

para usufruir do meio ambiente urbano, dado que os acessos a locais de concentração de

empregos e aos melhores equipamentos (saúde, educação, etc.) são dificultados pela

distância” (SILVA, 2008, p. 12).

O uso de estratégias mercantis de valorização dos terrenos e sua retenção especulativa

por frações da classe dominante que controlam o mercado de terras urbanas provocam efeitos

perversos sobre as condições de vida do conjunto da classe trabalhadora. A mercantilização

da cidade está na base dos processos de crescimento urbano desordenado e excludente que

marcam a urbanização dos países latino-americanos desde a segunda metade do século XX.

A manutenção de prédios e terrenos enquanto reserva a espera de valorização futura

por seus proprietários (empresas ou sujeitos) é o que define a existência dos chamados vazios

urbanos, conforme nos atesta Urrutia:

Um dos elementos típicos da forma predatória da ocupação do espaço na cidade é a

existência de amplos espaços ociosos, ou terrenos baldios, nas médias e grandes

cidades, visando somente lucro. Apesar da carência dos espaços para serem

ocupados por moradores de classe média, sendo a verticalização da cidade

(crescimento vertical = prédios de edifícios) ou da constante expansão da periferia

que é a horizontalização da mesma (crescimento horizontal = prédios de um a dois

andares), sempre aparecem inúmeras áreas vazias, áreas que são, portanto, não

ocupadas por obras. Esse fato, de vazios urbanos, ocorre devido à especulação

imobiliária, que significa que para as construtoras ou os proprietários, a terra é

somente um meio de negócio, um bem monetário. A especulação é uma prática onde

os donos dos terrenos ociosos esperam a valorização dos mesmos a fim de poder

comercializá-los a preços mais altos. Dessa forma, o objetivo é o lucro e não o bem

estar dos habitantes, as necessidades sociais por moradias não são relevantes. (2002,

p. 8-9).

18

Conforme a expansão horizontal das cidades avança, rumo aos limites do perímetro

urbano, as propriedades vazias, ao longo do caminho, mesmo quando não utilizadas, são

beneficiadas e passam por um processo de valorização na medida em que a infra-estrutura

pública (pavimentação, iluminação púbica, rede de água e esgoto, por exemplo) chega até

estas periferias, realizando assim a especulação imobiliária.

Silva (2008), afirma que a existência destas áreas de vazios nas cidades, verdadeiros

latifúndios urbanos, reforça o caráter discriminatório da acumulação urbana, tornando-se além

de um obstáculo para o acesso às áreas adequadas em condições de habitabilidade para

amplas parcelas da população, um verdadeiro ônus social, na medida em que a valorização

destes vazios geralmente ocorre através da captura de investimentos em obras, equipamentos

e infraestruturas públicas em seu entorno, atendendo assim, apenas aos interesses de seus

proprietários e do capital imobiliário:

Os vazios urbanos, elementos constitutivos do processo de valorização do solo,

contribuem para acentuar o ônus que recai sobre a população de baixa renda, na

medida em que eles mantêm em ociosidade uma infra-estrutura que teve os custos

de sua instalação socializados, já que foram financiados pelos recursos públicos, em

grande parte provenientes do pagamento de tributos. (...)

O fenômeno dos vazios urbanos pode estar relacionado com duas situações: uma que

envolve os interesses da propriedade fundiária e outra que remete aos interesses dos

capitais ligados à produção imobiliária. No primeiro caso, o interesse é a

especulação, ou seja, a estocagem de terras é realizada na expectativa de maiores

ganhos com a valorização do terreno. No segundo, a retenção de terras remete

principalmente às necessidades de garantir a expansão das atividades da

incorporação.

O ônus primeiramente se destaca em termos de ociosidade da infra-estrutura

instalada, na medida em que são mantidas em estoque as áreas equipadas. Em

segundo lugar, através das consequências advindas do aumento das distâncias a

serem vencidas pela população. Mas principalmente ele pode ser avaliado a partir do

encargo que recai sobre os habitantes da cidade, pois, pagando tributos que

possibilitam a realização de obras públicas, não tem acesso à habitação nestas áreas,

as quais serão objeto de especulação imobiliária, redundando em apropriação

privada de lucros. (SILVA, 2008, p. 5-6).

Este processo de socialização dos ônus e privatização dos lucros provenientes da

especulação imobiliária, que dificulta a aquisição de terrenos e moradias via mercado legal –

altamente restrito e concentrado – e impõem precárias condições de vida a boa parte das

pessoas que vivem nas cidades, gera uma série de conflitos sociais e o fortalecimento do

mercado ilegal de terras urbanas nas periferias, motivando às ocupações irregulares (em áreas

públicas ou privadas), os loteamentos clandestinos, a favelização e o surgimento de cortiços.

Desta maneira, podemos entender que não é por opção, mas (in) justamente devido à

falta de opções e em busca de sobrevivência, o que leva amplas parcelas da classe

19

trabalhadora a residir em áreas informais distantes do centro e desprovidas de infraestrutura

básica.

Nestes espaços, além da irregularidade da posse da terra, predomina a alternativa da

autoconstrução das moradias, pelas próprias famílias que vão adquirindo pouco a pouco os

insumos para construção de suas casas, muitas vezes improvisadas via reciclagem de

materiais impróprios para tal finalidade.

Observando a questão da autoconstrução de moradias, Kowarick, situando esta

“solução” no contexto da espoliação urbana, aponta suas consequências e demonstra sua

utilidade para o sistema econômico:

Realizada através do trabalho adicional e gratuito, que freqüentemente perdura por

anos, a confecção da casa própria só pode levar à redução de outros itens vitais da

cesta de consumo, inclusive à diminuição do padrão alimentar que, para muitas

famílias, passa a se situar abaixo dos níveis mínimos de sobrevivência. Assim, a

autoconstrução, enquanto alquimia que serve para reproduzir a força de trabalho a

baixos custos para o capital, constitui-se num elemento que acirra ainda mais a

dilapidação daqueles que só têm energia física para oferecer a um sistema

econômico que per si já apresenta características marcadamente selvagens. Por outro

lado, esse longo processo redunda, no mais das vezes, numa moradia que, além de

ser desprovida de infra-estrutura básica e de se situar em áreas bastante distantes dos

locais de emprego, apresenta padrões bastante baixos de habitabilidade. Além disso,

a casa se deteriora rapidamente, pois é feita por trabalhadores não-especializados,

que utilizam técnicas produtivas e ferramentas rudimentares, onde a divisão do

trabalho é praticamente inexistente e sua construção efetuada aos poucos e sem

seqüência programada. Ademais, a casa, por ser produzida com materiais de

qualidade inferior, exige constantes reparos, implicando por parte das famílias um

esforço de restauração praticamente permanente. (1993, p. 64-65).

As periferias são, portanto, frutos da especulação imobiliária e da segregação sócio-

espacial. Sua situação de ilegalidade em termos de regularização fundiária, ao mesmo tempo

em que desobriga o Estado a implementar infraestrutura e serviços públicos, mantém baixo o

custo de reprodução da força de trabalho das periferias. Devido a estes motivos é que muitas

vezes “no Brasil, a ocupação ilegal de terra urbana é „admitida‟, quando se tratar de áreas fora

do mercado imobiliário, como faz parte do seu modelo de desenvolvimento urbano

excludente” (PINHEIRO, 2002, p. 13).

A partir destes elementos, podemos compreender como a desigualdade social e a

exclusão decorrente são funcionais ao sistema econômico e à sua estruturação espacial. Esta

situação pode ser péssima para as pessoas de baixa renda, mas ao capital é condição

necessária. Porém, o problema da moradia é apenas uma faceta de um conjunto de problemas

agregados à exclusão social: junto a ele, aparecem a fome, a miséria, as doenças causadas pela

falta de saneamento, o analfabetismo, a violência social, etc.

20

O acúmulo destes problemas para os moradores das periferias geram-nos, também,

outros problemas específicos, como o da saúde pública, do acesso à educação, da questão do

trabalho, do trânsito caótico e da criminalidade, dentre outros. Todos estes problemas sociais

têm gerado uma situação de verdadeira crise urbana, conforme atesta Castells:

A crise urbana conhecida por experiência própria pelos habitantes das grandes

cidades provém da crescente incapacidade da organização capitalista para assegurar

a produção, distribuição e gestão dos meios de consumo coletivos necessários à vida

cotidiana, da moradia às escolas, passando pelos transportes, saúde, áreas verdes,

etc.

Mas esta crise não é simples „deficiência‟ do sistema econômico: é uma

conseqüência necessária da lógica do desenvolvimento capitalista, a menos que essa

lógica seja contraditada historicamente pelos efeitos da luta de classes.

(CASTELLS, 1980, p. 20 apud BOTEGA, 2004, p. 7-8).

Tudo isto nos remete à compreensão da cidade como um espaço essencialmente

contraditório, bem como o modo de produção que a estrutura. A cidade, portanto, é percebida

enquanto componente da organização social capitalista, com uma estrutura baseada na

acumulação privada de riquezas e condicionada pelas relações de mercado.

Isto não ocorre apenas pelo fato de que a maior parte dos meios de produção estejam

concentrados no meio urbano, mas sendo estas partes fundamentais do modo de produção

capitalista, este locus torna-se um espaço essencial para sua realização, ao mesmo tempo e

espaço em que ocorre a reprodução da força de trabalho a baixos custos, reduzindo assim, o

tempo de produção e de circulação do capital.

Nas palavras de Carvalho, a cidade capitalista não se limita a „assistir‟ o processo de

construção das desigualdades, ela o potencializa:

A cidade em si não constitui a relação-capital, assim como, da mesma forma, o

Estado não a constitui, mas no âmbito da abrangência da ação desta relação, a

cidade, aí inserida, reforça a seu modo, vale dizer, potencializando, a ação desta

relação pela condensação dos seus mecanismos numa mesma territorialidade e numa

articulação muito maior e eficaz, o processo de reprodução das desigualdades. Neste

sentido ela é co-produtora das referidas desigualdades, nunca uma forma indiferente

às mesmas. (2006, p. 12).

A segregação social e urbana são reflexos da divisão social do trabalho no espaço,

além de, junto à especulação imobiliária, serem funcionais ao modo de produção– e não

falhas suas. Isto é resultado dos efeitos que a lógica do capital impõe às relações de trabalho e

à estrutura urbana, de forma que da essência destas, emerjam contradições que geram a

pobreza e a exclusão, que por sua vez, podem levar a processos de resistência e lutas sociais.

21

Neste contexto, por maiores que sejam os efeitos da crise urbana, ainda podemos

concordar com a afirmação de que “a „desordem urbana‟ não existe de fato. Ela representa a

organização espacial proveniente do mercado, e que decorre da ausência de controle social da

atividade industrial” (CASTELLS, 1983, p. 46).

Logo, podemos perceber que altos índices de desigualdade sócio-espacial não existem

apesar das relações capitalistas, mas em decorrência destas.

Outro fato, que muitas vezes passa despercebido para muitos, é o perfil de quem é

atingido pela desigualdade, que são, principalmente, as mulheres, o povo negro e a juventude.

A desigualdade de gênero, que abrange todas as classes sociais (com as mulheres

possuindo menos oportunidades de empregos e menores salários do que os homens

geralmente, além de possuírem menor representação política), traz consequências terríveis

para as mulheres das periferias, dado o fato de que, em decorrência da divisão de papéis e das

atribuições estabelecidas pela sociedade machista e patriarcal em que vivemos, cabem,

principalmente, as mulheres (mesmo quando trabalham fora) arcar com as responsabilidades

sobre as tarefas domésticas (fazer comida, lavar as roupas, etc.), cuidar da casa, das crianças,

enfermos e idosos. Isto se torna muito mais difícil quando se vive em precárias condições de

renda e moradia (superlotação da habitação, falta de saneamento, ausência de água, luz) e

falta de serviços básicos, como creches, escolas, postos de saúde, centros de assistência social.

Muitas vezes, as mulheres, mesmo quando vítimas de violência doméstica (física e

psicológica), não conseguem sair desta situação por não possuírem alternativa de moradia

nem recursos para constituir nova residência. A falta de acesso a rede de água em uma casa,

por exemplo, expõe as mulheres a riscos de saúde, violência sexual e falta de privacidade.

Em relação à população negra, historicamente explorada e excluída no Brasil, esta

constitui a maior parcela dos pobres no País, sendo que, o fato de grande parte viver em

favelas e assentamentos precários nas periferias reforça o preconceito já sofrido pelo racismo,

gerando dificuldades em se conseguir empregos, a exemplo de cidades como Santa Maria,

uma cidade que tem sua economia baseada, principalmente, no setor terciário, um setor que

procura não contratar pessoas de cor negra devido ao racismo vigente. Os dados apontam que

no Brasil ao se “considerar a questão étnica, verifica-se que, em 1998, se o Índice de

Desenvolvimento Humano fosse aplicado às populações branca e afro-descendente levariam o

país às posições 49º e 108º, respectivamente” (SANTOS JUNIOR, 2003, p. 9). Junto a todos

os riscos e dificuldades colocadas aos moradores das periferias, também verifica-se que a

violência e os abusos de poder policial são, principalmente, direcionados às pessoas negras.

22

Já a juventude, que atualmente constitui um quarto da população brasileira, é um dos

segmentos sociais que foi mais fortemente impactado pelo modelo econômico vigente, em

especial no período neoliberal. Segundo estudo de Silva (2009), baseada em dados da ONU-

Habitat, um bilhão de pessoas residem em assentamentos precários em todo o mundo, sendo

que 70% possuem menos de 30 anos de idade. A dificuldade em conseguir trabalho decente

(com os direitos trabalhistas assegurados) é muito grande entre os jovens, os quais, diante do

discurso da “falta de experiência”, constituem um terço dos desempregados no País, de forma

que muitas vezes são obrigados a se submeter ao trabalho precarizado e com menores salários,

para, assim, poder sobreviver.

Além dos processos espoliativos já elencados neste texto, outro instrumento necessário

à classe dominante para garantir a exploração intensiva da força de trabalho a baixos salários,

bem como a redução do poder de pressão dos sindicatos e demais organizações da classe

trabalhadora, reside na manutenção de uma alta taxa de desemprego. Ao não assegurar renda

para todos, uma parcela expressiva da classe trabalhadora é mantida enquanto força de

trabalho em reserva, logo possuindo dificuldades para pagar e ter acesso a serviços essenciais,

como a moradia.

Com o desemprego, cresce o número de trabalhadores na informalidade, marcados por

maiores jornadas de trabalho e instabilidade, sem organização sindical, direitos trabalhistas e

à previdência, em suma, aumenta o trabalho precarizado, reduz-se os salários e se enfraquece

a classe trabalhadora com a reserva de força de trabalho.

A cidade é um espaço que deve garantir as condições de reprodução da maioria da

força de trabalho, como condição para a realização do capitalismo. O fato de que as relações

estabelecidas nestas são orientadas sob a lógica da acumulação privada de capitais, sendo

geralmente mediatizadas pelo mercado, faz com que em relação aos serviços necessários para

a manutenção dos trabalhadores, “os investimentos sejam feitos apenas no que for

estritamente necessário e quando este [serviço] for também gerador de lucro” (BOTEGA,

2004, p. 8). Novamente, quem recebe baixos salários ou encontra-se desempregado, ao não

possuir como pagar por estes serviços, passa a figurar o triste quadro das mazelas sociais.

Logo, podemos entender a questão do déficit habitacional e da crise urbana (e os demais

problemas sociais associados), como consequências diretas da lógica de desenvolvimento

capitalista sobre o processo de urbanização.

Estas consequências são sentidas pelos movimentos sociais populares, organizados a

partir de demandas sociais provenientes delas, como podemos ver na passagem abaixo:

23

Nas cidades, o modelo de desenvolvimento urbano facilita a retenção especulativa da

terra urbana e a apropriação privada dos benefícios gerados pela urbanização,

resultando no incremento da informalidade e da precariedade dos assentamentos e

ocupações onde reside a população pobre. Os sem teto urbanos e moradores de rua

têm seu direito à moradia sistematicamente violado devido às precárias condições de

vida a que estão submetidos nos cortiços, assentamentos informais, loteamentos

irregulares, viadutos e ocupações, de onde são freqüentemente despejados, sem

alternativas de adequado reassentamento, provisão de ajuda humanitária emergencial,

assistência jurídica e/ou adequada restituição e/ou reparação de danos e violações 3.

Todos estes fenômenos ocorrem cotidianamente em nossa sociedade, de forma mais

ou menos articulada entre si, e são resultado do processo histórico de formação de nossos

centros urbanos.

1.2 A Triste História das Políticas Habitacionais no Brasil

Além de fomentar os processos de exploração que acontecem na estrutura econômico-

social, “a cidade é o lugar geográfico onde se instala a superestrutura político-administrativa

de uma sociedade” (CASTELLS, 1983, p. 42), de forma que as definições quanto aos rumos

do desenvolvimento urbano passam diretamente pelo crivo político, jurídico e ideológico.

A fim de garantir a efetividade de sua política e projeto societário, diversos

instrumentos são utilizados pela burguesia, cabendo ao Estado um papel de destaque na

materialização de seus objetivos. O Estado, em suas diferentes esferas (poderes Executivo,

Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, etc.) e níveis (local, estadual, nacional),

historicamente hegemonizados pelas classes dominantes, tem cumprido a função de garantir a

reprodução das relações capitalistas de urbanização, e em especial para a vigência do direito à

propriedade – de uma minoria – acima de tudo, inclusive da própria vida humana.

Mesmo após a democratização da legislação que rege sobre a função social da

propriedade e a gestão das cidades, as normas são sistematicamente desrespeitadas pelos

próprios agentes estatais, que geralmente (mas nem sempre) insensíveis às demandas

populares ou, talvez atuando em benefício familiar, legislam e tomam decisões para assegurar

o direito absoluto à propriedade privada, mesmo quando esta não está cumprindo sua função

social, contribuindo assim para aprofundar as desigualdades sociais.

3 Fórum Nacional de Reforma Urbana. Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos. 2006.

24

A distribuição dos investimentos públicos reflete as diferenças de renda entre as

classes, ao privilegiar as áreas centrais e favorecer a especulação imobiliária, de modo que as

ações das instituições públicas estejam subordinadas a interesses privados, que se sobrepõem

às demandas sociais, contexto melhor observado por Pinheiro:

Neste contexto, o Estado, responsável por boa parte dos serviços urbanos essenciais

para empresas e residências, desempenha importante papel na determinação das

demandas pelo uso de cada área específica do solo e, portanto, do seu preço, de

forma a privilegiar a „cidade oficial‟. (2002, p. 15).

A legislação, que é construída através de luta política, é manuseada de forma seletiva

pelo Poder Judiciário, de forma que só é eficaz quando atende aos interesses de proprietários

imobiliários, e morosa quando os contraria ou envolve demandas sociais, como a

regularização fundiária de áreas ocupadas. Já, as decisões de reintegrações de posse são

rapidamente aprovadas e os despejos forçados efetuados, em diversos momentos, com graves

violações aos direitos humanos – a desocupação da comunidade de Pinheirinho em São José

dos Campos em 2012 é um entre tantos exemplos, que também ocorrem em Santa Maria.

Assim, na prática, a lei do mercado precede às normas jurídicas, institucionalizando as

injustiças sociais.

Esta seletividade das ações estatais varia conforme o público, porém é visível que para

os pobres e nas periferias, o Estado aparece mais é através de seu aparato repressivo, atuando

de forma preconceituosa e violenta muitas vezes, constituindo assim uma verdadeira

criminalização da pobreza.

Em outros momentos, o vínculo entre parlamentares e representantes dos executivos

com as periferias se dá através de relações clientelistas e assistencialistas, tirando proveito

político do contexto nos quais os pobres estão submetidos, remediando, iludindo, mas nunca

sanando efetivamente suas necessidades. No caso de Santa Maria, por exemplo, um caso

flagrante de clientelismo foi o estabelecido entre o vereador João Dellazzana, na década de

1970, conhecido como “doador de lotes públicos” de terrenos da Prefeitura Municipal para

famílias de baixa renda, muitos dos quais permaneceram sem regularização fundiária e

infraestrutura posteriormente4.

4 No trabalho realizado por Pinheiro (2002), verificou-se a ação do vereador João Dellazzana (pertencente a

Aliança Renovadora Nacional - ARENA) em diversos pontos da cidade em áreas de ocupação irregular que

continuaram carentes de infraestrutura. As doações de terrenos públicos pelo vereador ocorreram nas Vilas

Nossa Senhora do Trabalho, Vila Brasília, Vila Nossa Senhora Aparecida e Vila Brasil. Porém, como nesta

pesquisa isto foi conferido via entrevistas com moradores locais e publicações nos jornais da época, pode-se

supor que este processo de “doação de lotes” públicos foi bem maior que a constatada na obra de Pinheiro.

25

Pinheiro (2002, p. 11) observa que outro problema colocado para as políticas de

desenvolvimento urbano são as descontinuidades nas ações das administrações públicas, que

geralmente não são socializadas ou são simplesmente abandonadas quando ocorrem

mudanças de governo. Neste processo, os mais prejudicados são as populações periféricas.

Conforme destacou Botega (2004, p. 22), uma das principais marcas da História da

urbanização brasileira foi a subordinação da política urbana e habitacional do País aos

interesses da reprodução das relações capitalistas de produção, sendo fonte de enormes lucros

para o capital imobiliário por um lado, enquanto, por outro lado, gerador da exclusão de

amplas parcelas da população em uma estrutura de cidade fortemente segregada – entre centro

e periferia, áreas nobres e favelas.

Parte fundamental deste histórico reside, também, na atuação dos movimentos

populares urbanos, que a partir da organização dos setores excluídos e segregados, construiu

importantes lutas e propostas entorno da questão urbana e habitacional, tendo sido

fundamentais no recente processo de redemocratização do País e na construção de uma

legislação urbana mais justa.

Se o Estado – geralmente comandado por proprietários – atua em benefício à

propriedade privada de algumas famílias, significa, que por outro lado está prejudicando

outras muitas pessoas, excluindo-as da possibilidade de terem melhores condições de vida,

sendo um pouco menos exploradas. A questão da propriedade está no cerne de inúmeros

conflitos sociais ao longo da História e em todo nosso País, quiçá do mundo.

A importância da propriedade da terra recebe um grande impulso, a partir da

aprovação da Lei de Terras, em 1850, promovendo a transformação desta em mercadoria

passível de compra e venda, tanto no campo, como na cidade, pois esta Lei não fazia a

distinção entre estes dois territórios.

Deste modo, se antes o acesso a terra se dava através de concessões, a partir de então

este passou a ser pela via monetária, altamente restrita. Isto influenciou fortemente os rumos

do desenvolvimento brasileiro e sua conformação espacial (rural e urbana) futura, de forma a

que passou a ser centralmente entorno da propriedade do solo que ocorre a luta de classes na

questão agrária e urbana, em que, uns querem concentrar mais propriedades, enquanto outros

querem a sua democratização: o direito aos trabalhadores do campo em ter terras para plantar

e o direito à vida com dignidade aos trabalhadores da cidade.

26

Observando as políticas de urbanização implementadas na passagem do Império para

República, percebemos que ambas são excludentes, não tendo ocorrido uma mudança de

modelo, o que traz consequências até os dias atuais, conforme aponta Pinheiro:

Com a Lei 601 de setembro de 1850, conhecida com Lei de Terras, só quem podia

pagar era reconhecido como proprietário. Assim, com o regime das sesmarias, a Lei

de Terras, o Código Civil de 1916 (locação, posse e propriedade), as legislações

urbanísticas (lei de uso e ocupação do solo, código de obras e edificações)

direcionadas ao interesse do mercado imobiliário, associadas às políticas urbanas e

rurais das últimas décadas, são responsáveis por impedir que a maioria da população

de baixa ou nenhuma renda tenha acesso a terra, seja no campo ou na cidade. (2002,

p. 14).

Se antes da Lei de Terras o mais importante para a classe dominante era ser

proprietário de escravos, “o fundamental para o domínio econômico passou a ser o domínio

da terra, a terra passou a ter um preço importante, dominar a terra passou a significar dominar

a própria economia” (GORENDER apud SCHERER, 2008, p. 18).

Na passagem do Império para República, e no avanço do processo de transição do

modo de produção escravista colonial para o modo de produção capitalista, o espaço urbano

foi progressivamente ganhando maior densidade e importância no cenário político e

econômico. Se em 1890, a população brasileira era de pouco mais de 14 milhões de pessoas,

residindo mais de 90% em áreas rurais, ao longo de todo o século XX o Brasil irá se tornar

um país cada vez mais urbano. Este crescimento acentuado da população urbana não deu

conta de incorporar a todos (a exemplo das massas de ex-escravos sem-terra e de muitos

imigrantes pobres), acarretando em graves problemas sociais, que por sua vez geraram

conflitos, a exemplo das manifestações populares contra o aumento das tarifas dos bondes,

seguidas de “quebra-quebras” e repressão policial, no final do século XIX na capital, Rio de

Janeiro (GOHN, 1995, p. 54).

Estes problemas não ocorreram apenas pela ampliação da população urbana, mas

decorreram das opções das elites políticas e econômicas do País. No inicio do século passado,

o Brasil era essencialmente um país agrário, com sua economia baseada no modelo primário

de exportação, sendo então o café o principal produto vendido. Neste contexto, a importância

econômica das principais cidades consistia em serem os centros administrativos e de negócios

das autoridades e elites agrária, comercial e financeira. Logo, a política de urbanização levada

a cabo por estes setores ao longo de toda a Primeira República (Liberal-Oligárquica) voltou-se

para a manutenção do modelo agrário-exportador, de forma que suas ações foram centradas

27

em promover o embelezamento das cidades com vistas a atrair capital estrangeiro, conforme

coloca Botega (2004):

A cidade do Rio de Janeiro foi o principal exemplo desta política. No início do

século XX, a cidade passa por uma intensa reformulação visando a sua

modernização, o que para a elite da época significava fazer com que a cidade se

alinhasse às grandes cidades européias, passando uma visão de progresso que

auxiliaria na captação de investimentos estrangeiros. (2004, p. 12).

Na esteira dos projetos urbanísticos de “melhoramentos e embelezamento” estava

contida, também, um ideal de higienização social, expressa em medidas que vieram a expulsar

os moradores pobres e mendigos do centro (pois a pobreza geralmente é associada a “feiura”,

epidemias e degradação social que deviam ser combatidas), com a destruição de seus cortiços,

malocas, pensões, etc., o que elevou o preços dos aluguéis e os empurrou a morar nos morros

e subúrbios, dando início a formação das favelas. Esta ideologia higienizadora esteve

inclusive na base do que gerou a Revolta da Vacina, em 1904, na Capital Federal, motim

popular que não se resumiu apenas a protestos em oposição à vacinação obrigatória contra a

varíola, mas sim às precárias condições de vida impostas para população.

Outra característica do padrão de urbanização deste período era o fato dos industriais

procurarem concentrar espacialmente seus operários, próximos aos seus estabelecimentos,

formando assim os bairros operários (onde muitas famílias de trabalhadores viviam em

péssimas condições), com o intuito de facilitar o deslocamento até o local de trabalho e de

tentar manter o controle sobre os trabalhadores, bem como sua organização e movimentação

política e sindical. Estabelecia-se assim, uma nítida segregação sócio-espacial, determinada

pelo poder econômico e pela renda, separando patrões e empregados.

Nas primeiras décadas do século XX, com o crescimento do trabalho urbano

assalariado, avançou-se a organização e as lutas da classe trabalhadora brasileira nos grandes

centros, a exemplos das lutas por melhorias urbanas para todos, da criação de associações

mutuarias e sociedades beneficentes, atos e comícios contra o desemprego e a carestia, greves,

etc.5, em um momento em que a questão social já era tratada como caso de polícia pelos

governantes.

A crise econômica internacional de 1929 levou o Brasil a mudanças políticas e

econômicas. Ainda que sem uma ruptura com a estrutura agrária vigente, o período iniciado

com o Golpe encabeçado por Getúlio Vargas, em 1930, foi marcado pelo avanço no processo

5 Para uma análise mais detalhada destes processos, ver GOHN (1995).

28

de industrialização do País e, consequentemente, da consolidação da urbanização. Porém,

diferente de muitos países europeus e dos EUA, onde o avanço da industrialização foi

impulsionado por um forte mercado interno gerado pela realização da Reforma Agrária –

além, obviamente da exploração externa promovida pelos países imperialistas –, no Brasil, o

acesso a terra não foi democratizado, o que, junto à crise do café, reforçou o processo de

afastamento das famílias camponesas de suas terras, processo que intensificou-se desde então.

Ainda que tardia e bastante concentrada na Região Sudeste, cuja urbanização já vinha

crescendo com os recursos gerados, principalmente, pela economia cafeeira, o

desenvolvimento da industrialização via estímulos estatais se acelerou com a política de

substituição de importações, contribuindo com a diversificação econômica do País. O

crescimento da burguesia e do operariado urbano, junto à integração das economias regionais,

fortaleceu a formação de um mercado interno nacional. Estes fatores, junto a regulamentação

do trabalho urbano no Brasil, via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943 o qual

não contemplava os trabalhadores agrícolas – que só vieram a conquistar a regulamentação de

direitos, em 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural –, estimularam a migração campo-

cidade, de forma que a organização urbana nos centros industriais passou a ser organizada

para atender esta ordem social, criando as condições para o adensamento da mão-de-obra.

No entanto, uma série de dificuldades se colocava a quem ia para as cidades, quando

começaram a ser criadas políticas que buscassem sanar a questão da moradia própria, como

esclarece Botega:

Entre as décadas de 1940 e 1960, a política de habitação, mais especificamente da

aquisição da casa própria consistia na oferta de crédito imobiliário pelas Caixas

Econômicas e pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) ou por bancos

incorporadores imobiliários. A organização de um órgão que centralizasse a política

habitacional ocorreu em 1946, no governo do General Eurico Gaspar Dutra, quando

é criada a Fundação da Casa Popular. (2004, p. 14).

Estas políticas foram insuficientes, de forma que muitas pessoas foram morar nas

periferias, em loteamentos e realizaram ocupações espontâneas. Já os problemas existentes

nos bairros levaram a organização das Associações Amigos de Bairros, que deram origem as

Sociedades Amigos de Bairro (SAB), com caráter reivindicatório, pressionando o poder

público pela resolução de carências das comunidades, conforme Gohn:

O movimento de associações de moradores teve início nas primeiras décadas do

século, por meio das Ligas de Bairros. Entretanto, nos anos 30 ele começou a tomar

corpo para se proliferar nos anos 40. Na década de 30 foi criada a Sociedade Amigos

da Cidade, com a participação de figuras ilustres como Prestes Maia. Ela se inspirou

29

em modelo similar argentino. Em 1942 foi fundada a Sociedade Amigos de Bairros

de São Bernardo do Campo, responsável por grande parte da urbanização da cidade

nos anos 40 e 50. (1995, p. 88).

Nos anos seguintes, no período do intervalo democrático (1945-1964), as SABs irão se

constituir em importantes espaços de participação social e política por parte das classes

populares. Para Gohn (1995, p. 95), os movimentos das associações de moradores cresceram

nos anos 1950 e 1960 devido a três fatores principais: as necessidades de infraestrutura para

os bairros de que iam surgindo, a política clientelista da barganha do voto por melhorias

urbanas, e a vontade política da participação popular na vida política local.

Em decorrência do crescimento do número de trabalhadores assalariados com os

avanços no processo de industrialização e a crescente abertura para empresas multinacionais,

a partir da década de 1950, as quais vieram explorar as riquezas naturais e a mão-de-obra

barata dos brasileiros, acelerou-se o processo de expansão urbana desordenada,

principalmente das periferias, intensificando a favelização no País de lá para cá. De acordo

com Santos (1981 apud Scherer, 2008), nos anos 1960, as maiores taxas de urbanização

estavam na América Latina e na África – 71% e 70%, respectivamente, enquanto a Europa e

América do Norte só chegavam a 18% e 37% neste mesmo período.

A esta altura, as cidades já eram os principais centros da política nacional e muitas

lutas sociais urbanas e greves ocorreram em consequência às precárias condições vividas –

condições estas mantidas pelos governantes para assegurar a reprodução da força de trabalho

a baixos custos, mantendo os salários baixos para as empresas. Isto explica as campanhas

contra a fome, o Movimento Contra a Carestia de Vida, as greves de trabalhadores, os

protestos contra aumento das passagens e os quebra-quebras de bondes, as lutas pela casa

própria, no início dos anos 1960, etc., o que colocou a classe trabalhadora como protagonista

da cena política brasileira.

No contexto da defesa das Reformas de Base, no Governo João Goulart (1961-1964),

a bandeira da Reforma Urbana, também, foi empunhada pelos movimentos urbanos e

sindicais. Destaca-se neste momento, a realização do Seminário de Habitação e Reforma

Urbana, em 1963, pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e o Instituto de Previdência e

Assistência aos Servidores do Estado (IPASE), que após discutir a problemática urbana e

habitacional brasileira e latino-americana, apontou um conjunto de propostas, inclusive na

forma de projeto de lei, visando incluir a questão urbana na pauta das reformas de base. A

reforma urbana, na resolução deste seminário, foi “considerada como o conjunto de medidas

estatais, visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das

30

aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias” (SILVA,

2003, p. 18).

As principais propostas defendidas naquele momento eram: a construção de moradias

populares a toda demanda e medidas emergenciais para melhoria imediata das condições de

subhabitação; regulamentação justa dos preços dos aluguéis e de medidas que restringissem a

especulação imobiliária; mudança constitucional para que as desapropriações por interesse

social não precisassem ser feitas em dinheiro à vista (que, também, era necessária à

implementação da reforma agrária); conscientização e participação popular das comunidades;

criação de um órgão central federal para execução da política habitacional (esta proposta foi

incorporada pelos militares logo em seguida), com um fundo nacional de habitação;

planejamentos territorial e habitacional integrados em todos os níveis (Ibid., 2003).

Tanto estas, como as demais propostas de reformas de base (Reformas Agrária,

Bancária, Tributária, Educacional/Universitária, Politica/Eleitoral, Lei de Remessa de Lucros)

assumiam, em meio a Guerra Fria, um caráter “subversivo” (ainda que não fossem medidas

anticapitalistas em si), pois iam contra os interesses da burguesia nacional e internacional, o

que gerou fortes tensionamentos políticos e sociais, culminando no golpe que depôs Jango e

instaurou a Ditadura Civil-Militar no País (1964-1985), com o auxílio dos EUA.

O Golpe de 1964 reprimiu as lutas sociais como um todo e em relação as SABs, impôs

limites a atuação, levando a sua despolitização e o resumo de sua relação com o poder público

a vínculos clientelistas com políticos locais para busca da solução dos problemas dos bairros,

conforme afirma Botega:

A maioria de suas lideranças são cooptadas pela política oficial e o papel

reivindicatórios destas organizações é abandonado, passando simplesmente a um

caráter associativo, perdendo com isso a função de mobilização das classes

populares frente aos problemas urbanos. (2004, p. 24).

Mesmo com a repressão aos movimentos sociais, sindicais e partidários que se

opusessem ao regime imposto, a Ditadura não foi capaz de frear os processos sociais

decorrentes do avanço acentuado da urbanização, motivado em grande parte pela própria

política agrícola da Ditadura, que acelerou o processo de expulsão das famílias camponesas

do campo, de forma que nos anos 70 a população urbana ultrapassou a rural no Brasil.

Analisando este período, Pinheiro coloca que:

A partir da década de 60, a combinação do crescimento demográfico com a

modernização dos setores produtivos, acelerou o movimento migratório para as

31

cidades. A agricultura brasileira atravessou um grande processo de transformação,

na perspectiva de se integrar a esta nova dinâmica econômica estabelecida a partir da

produção industrial (...). (2002, p. 9).

Esta chamada “modernização” foi parte do modelo econômico implementado pela

Ditadura, modele este fortemente associado ao capitalismo mundial e que dele tornou o Brasil

cada vez mais dependente. Esta proposta de desenvolvimento pode ser caracterizada enquanto

conservadora, pois, ao não pressupor a democratização da propriedade urbana e rural,

manteve e fortaleceu as estruturas arcaicas vigentes no País, o que ampliou as desigualdades

sociais, ao mesmo tempo em que promoveu a crescente subordinação da economia nacional

às empresas multinacionais.

No campo, a “modernização conservadora” recebeu o nome de Revolução Verde. Esta

foi parte do processo iniciado após a Segunda Guerra Mundial, em que os países capitalistas

centrais estimularam os países considerados subdesenvolvidos à industrialização da

agricultura (com a promessa de que isto iria aumentar a produtividade e acabar com a fome no

mundo), utilizando as tecnologias das multinacionais na agricultura e na pecuária, com a

venda de sementes melhoradas (estimulando a monocultura para exportação e reduzindo a

biodiversidade genética das sementes, agora propriedade de empresas estrangeiras), de

máquinas agrícolas, agrotóxicos e fertilizantes químicos. Para viabilizar a venda destes

pacotes tecnológicos da chamada Revolução Verde, houve forte estímulo estatal via crédito

rural, publicidade, assistência técnica e extensão rural.

Dentre as consequências da implementação da Revolução Verde no campo brasileiro,

podemos destacar a questão do aumento dos custos de produção, o que levou ao

endividamento e perca das terras de muitos médios e pequenos agricultores camponeses,

terras estas que foram incorporadas por grandes proprietários (que se utilizavam inclusive de

recursos do crédito rural para isto); a redução da produção de alimentos para o consumo

interno e, portanto, o aumento de seus preços; o aumento do preço das terras e a sua

concentração progressiva em um número cada vez menor de proprietários; a maquinização da

agricultura levou a redução do número de trabalhadores necessários no campo; impactos ao

meio ambiente, com a compactação e erosão dos solos, contaminação do solo, rios e lenços

freáticos, redução da variabilidade genética das plantas; o aumento da exploração e da

dependência dos pequenos agricultores; a expulsão rural acelerada.

Em relação a expulsão rural, esta foi o mais importante movimento migratório interno

ocorrido no País, levando a um crescimento abrupto, desordenado e excludente das cidades

32

nos anos seguintes, aumentando o empobrecimento e a deterioração das condições de vida das

classes populares.

A fim de melhor observar a dimensão deste processo de “inversão quanto ao lugar da

residência da população brasileira” (SANTOS, 1995, p. 29) entre 1940 e 1980, vejamos o

histórico da distribuição da população brasileira na Tabela 1:

Tabela 1 – Distribuição da população brasileira entre 1872-2010

Ano População Total População Urbana (%) População Rural (%)

1872 9 930 478 - -

1890 14 333 915 - -

1900 17 438 434 - -

1920 30 635 605 11,3 88,7

1940 41 236 315 31,2 68,8

1950 51 944 397 36,2 63,8

1960 70 992 343 45,1 54,9

1970 94 508 583 56,0 44,0

1980 121 150 573 67,7 32,3

1991 146 917 459 75,5 24,5

2000 169 590 693 81,2 18,8

2010 190 744 799 84,4 15,6

Fonte: Censo Demográfico 2010, IBGE

Em meados dos anos 1960 a população urbana superou a rural. Dentre os fatores que

contribuíram com isto, podemos destacar: o crescimento urbano decorrente de incremento

demográfico natural (aumento da natalidade e redução das taxas de mortalidade); exclusão

das famílias do campo decorrente da aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963,

uma conquista do movimento camponês que estendeu aos trabalhadores agrícolas os direitos

trabalhistas até então exclusivos aos trabalhadores urbanos, o que levou, porém, a maioria dos

fazendeiros a demitir seus trabalhadores para não arcar com estes encargos sociais, gerando

assim a figura dos “bóias-frias”, trabalhadores agrícolas temporários; e expulsão rural gerado

pela implementação da Revolução Verde, que conforme visto anteriormente, concentrou

renda e terras no campo.

Todos estes fatores nos permitem compreender que “o Brasil urbanizou mais por

expulsão do campo do que por atração das cidades” (PINHEIRO, 2002, p. 3). Isto levou

milhões de pessoas sem-terra a tornarem-se força de trabalho em reserva (desempregados) nas

33

cidades, o que contribuiu com a manutenção de baixos salários aos trabalhadores urbanos.

Logo, fica nítido que este processo de expulsão rural foi funcional tanto à manutenção da

estrutura fundiária altamente concentrada no campo, quanto para o lucro dos patrões nas

cidades.

Em relação à política urbana habitacional, a medida tomada pela Ditadura Civil-

Militar neste setor foi a criação em agosto de 1964 do Serviço Federal de Habitação e

Urbanismo (SERFHAU) e do Banco Nacional de Habitação (BNH), principal órgão do

Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que por sua vez geria os recursos do Fundo de

Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado em 1966, e do Sistema Brasileiro de Poupança

e Empréstimo (SBPE), criado em 1967, de forma que o BNH se tornou “uma das principais

instituições financeiras do País e a maior instituição mundial voltada especificamente para o

problema da habitação” (BOTEGA, 2004, p. 15). Neste ponto, os principais objetivos da

Ditadura eram promover a recuperação da economia através de investimentos no setor da

construção civil, que se tornaria um importante assimilador da força de trabalho, ao mesmo

tempo em que financiaria a moradia da população de baixa renda (PINHEIRO, 2004). Porém,

mesmo com todo este aporte de recursos, o BNH não sanou a questão habitacional, tendo na

verdade priorizado os setores médios da população, conforme Kowarick:

O Banco Nacional de Habitação (BNH) não só se tornou um poderoso instrumento

da acumulação, pois drenou uma enorme parcela de recursos para ativar o setor da

construção civil – recursos por sinal advindos em grande parte de um fundo retirado

dos próprios assalariados (FGTS) – como também voltou-se para a confecção de

moradias destinadas às faixas de renda mais elevadas. (1993, p. 70)

Para Botega, um dos principais motivos que levou o BNH a não atingir seus objetivos

(ao menos aqueles ditos), foi o fato de ter sido criado mais para reativar a economia brasileira

e conter a inflação do final do Governo Jango, sendo substituído em seguida pela indústria

automobilística, além de ter sido gestado em prol do capital imobiliário e não das

necessidades sociais. Segundo o historiador:

O BNH desde a sua constituição teve uma lógica que fez com que todas as suas

operações tivessem a orientação de transmitir as suas funções para a iniciativa

privada. O banco arrecadava os recursos financeiros e em seguida os transferia para

os agentes privados intermediários. Algumas medidas inclusive demonstravam que

havia ao mesmo tempo uma preocupação com o planejamento das ações de

urbanização aliadas aos interesses do capital imobiliário. Exemplo disto foi a medida

que obrigou as prefeituras a elaborar planos urbanísticos para os seus municípios, o

que era positivo, mas a condição de serem qualificadas para a obtenção de

empréstimos junto ao Serviço Federal de Habitação e Urbanismo era de que estes

deveriam ser elaborados por empresas privadas. Até mesmo as cobranças das

34

prestações devidas estavam a cargo de uma variedade de agentes privados,

companhias habitacionais, iniciadores, sociedades de crédito imobiliário, entre

outros (...). Assim, o SFH/BNH era na verdade um eficaz agente da dinamização da

economia nacional desempenhando um importante papel junto ao capital imobiliário

nacional, fugindo do seu objetivo principal, pelo menos o que era dito de ser o

indutor das políticas habitacionais para superação do déficit de moradia. (2004, p.

16).

Tais motivos, aliado ao fato de possuir uma administração centralizada e autoritária,

com critérios estritamente bancários, sem participação popular ou controle social, levaram o

BNH a não priorizar o atendimento da demanda por moradia aos setores populares, tendo na

verdade ampliado a dualidade entre pobres e ricos, mercado e exclusão, na questão

habitacional. Podemos entender a dimensão disto, observando aonde foram concentrados os

investimentos do BNH, segundo Bonduki:

Durante 22 anos, o BNH financiou 4,8 milhões de moradias, ou seja, praticamente

25% do incremento de moradias construídas no Brasil entre 1964 e 1986, ano em

que o BNH foi extinto. Foram financiadas habitações para todas as faixas de renda,

pela promoção pública das Companhias de Habitação Popular e, principalmente,

pela promoção privada da incorporação imobiliária. No entanto, não mais que 20%

dos financiamentos concedidos destinaram-se às famílias de baixa renda. (1997,

apud PINHEIRO 2002, p. 12).

No entanto, mesmo tendo financiado prioritariamente a construção de moradias para

os estratos de renda média e alta, ainda assim o grau de inadimplência cresceu em ritmo

acelerado no início da década de 1980, marcada por forte instabilidade econômica no País.

Isto levou inclusive, a necessidade da organização do movimento dos mutuários do BNH, que

segundo Gohn (1995, p. 131), “foi gerado pela impossibilidade da maioria dos compradores

dos planos de casa própria do BNH de pagar o reajuste de suas prestações”, com o objetivo de

renegociar suas dívidas. O fato do BNH ser muito frágil a flutuações econômicas (já que

dependia basicamente da capacidade de arrecadação do FGTS e do SBPE, bem como do grau

de inadimplência dos mutuários), foi o responsável pela sua extinção no Governo Sarney, em

1986. Podemos compreender assim, que:

O SFH/BNH não resistiu a grave crise inflacionária vivenciada pelo Brasil

principalmente nos primeiros anos da década de 1980, onde a inflação atingirá

índices de 100% ao ano em 1981 e em 1982 (a partir de então não cessará de crescer

mais chegando aos 1770% em 1989). Esta crise levou a uma forte queda do poder de

compra do salário, principalmente da classe média, o público que havia se tornado

alvo das políticas habitacionais deste sistema. (GREMAUD, 1996, p. 212 apud

BOTEGA, 2004, p. 18-19).

35

Após a extinção do BNH, suas atribuições foram transferidas para a Caixa Econômica

Federal (CEF), e quando seu arquivo foi transferido para Brasília, “pegou” fogo... Assim,

enquanto a Ditadura estimulava o consumo de classe média e alta, do outro lado, a grande

maioria da população, agora urbana, devido ao arrocho salarial imposto, enfrentava uma série

de dificuldades para consumir o básico para trabalhar e sobreviver, de forma que “as

periferias das grandes cidades se inchavam com os loteamentos populares, dando as bases

para os movimentos populares dos anos 70” (GOHN, 1995, p. 103).

Analisando a atuação dos movimentos populares urbanos durante a Ditadura, Gohn

destaca que:

Durante a fase do milagre econômico – 1968-1973 –, as massas populares em geral

sofreram violento arrocho salarial mas mantiveram-se caladas, na maioria dos casos,

pois havia emprego, era extremamente perigoso se manifestar publicamente, não

havia vida político-sindical, a não ser de caráter assistencialista, e ainda havia a

possibilidade do sonho da casa própria, com a compra de lote nas periferias

longínquas e o uso da autoconstrução familiar. As reivindicações dessas periferias

irão explodir nos anos 70, quando descobrem serem vários de seus lotes

clandestinos, quando não conseguem sobreviver nas casas duramente construídas

sem um mínimo de infra-estrutura urbana; e, principalmente, quando o modelo

brasileiro do milagre econômico se exaure, iniciando o longo processo de crise

econômica pós-1973. (1995, p. 103).

Ainda que o milagre tenha feito “crescer o bolo” da economia, o fato de não tê-lo

repartido, favorecendo uma minoria em detrimento da maioria, custou caro para a Ditadura,

pois com a crise econômica iniciada na década 1970, além de se intensificarem a favelização

e a expansão das periferias que já vinham ocorrendo, cresceu a insatisfação de diversos

setores ante ao regime imposto.

Com a resistência armada à Ditadura já desmobilizada pelas forças da repressão em

princípio dos anos 1970, setores da esquerda passaram a se dedicar a organização popular nas

comunidades e periferias. O mesmo, também, foi feito por parcela importante da Igreja

Católica6, ligada à Teologia da Libertação, que influenciada pelas resoluções do “Concílio

Vaticano II” (1964) e da “II Conferência Geral do Episcopado latino-americano” (1968,

Medellín, Colômbia – mesmo ano da decretação do AI-57 no Brasil), pela opção pelos pobres,

reorientou sua atuação no sentido da transformação social e se dedicou a organização das

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das Pastorais sociais, contribuindo com a

6 Para melhor compreender a relação entre a Igreja Católica e os movimentos sociais urbanos, ver o trabalho de

BOTEGA (2004). 7 O Ato Institucional Nº 5, decretado pela Ditadura, vigorando entre 1968 e 1978, ampliou de forma exacerbada

os poderes do Executivo, endureceu a repressão aos opositores e estabeleceu a censura prévia.

36

construção de diversos movimentos populares, no campo e na cidade. A combinação destes

processos, junto à dimensão das problemáticas sociais enfrentadas pela população (que se

agravaram fortemente nos anos 1980), originou a organização popular de vários movimentos

reivindicatórios por melhores condições de vida.

Dentre estes movimentos, nas principais cidades brasileiras, podemos destacar o

Movimento do Custo de Vida, o qual, nascido em 1972, para lutar por melhores condições de

vida, possuiu grande importância nesta década, tornando-se, em 1979, o Movimento de Luta

Contra a Carestia; o Movimento dos Loteamentos Clandestinos, que teve como conquistas,

além de regularização de loteamentos populares, a promulgação de normas que restringiram

os loteamentos irregulares; os movimentos das favelas, por melhorias urbanas, como água,

luz, projetos de urbanização nas periferias, posse da terra, e que veio a conquistar a Lei de

Direito Real de Uso; os Movimentos de Lutas por Creches, protagonizados, principalmente,

pelas mulheres das periferias; os movimentos dos transportes públicos, por ampliação das

linhas, contra aumentos das tarifas, etc., dentre outros (Gohn, 1995).

O aumento do endividamento externo, junto ao acirramento da crise econômica no

decorrer dos anos 1980, gerou a hiperinflação, forte desemprego, o aumento dos preços dos

alimentos e o não reajuste dos salários, acarretando no aumento da fome e dos problemas

sociais, bem como das lutas populares nesta década, pois o Estado não cumpria com suas

funções básicas.

Se do ponto de vista econômico a década de 1980 pode ser definida como a “década

perdida”, na perspectiva político-social esta pode ser considerada a “década da cidadania”,

devido a retomada da participação popular e das mobilizações de massas, a reorganização

sindical e a construção de grandes greves pelos trabalhadores desde fins dos anos 1970, vindo

a fundar a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, pelos sindicalistas ligados ao

recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980; as lutas pela redemocratização do

País, com a reconquista do pluripartidarismo e a reorganização dos partidos de esquerda que

estavam na ilegalidade e a fundação de novas agremiações; a realização de grandes

campanhas nacionais como em 1984 pelas Diretas Já!; a reorganização da União Nacional dos

Estudantes (UNE), em 1979, e do conjunto do Movimento Estudantil; a retomada da luta pela

terra e a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado em

nível nacional em 1984, inaugurando a práxis da ocupação de terras improdutivas; o

ressurgimento de movimentos de mulheres, do Movimento Negro, de movimentos em defesa

37

dos direitos dos homossexuais, movimentos ambientalistas, em defesa das crianças, dos

aposentados, da saúde, da educação, dentre outros.

Já mais especificamente em relação aos movimentos sociais urbanos na década de

1980, destacaram-se a criação da Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), em 1979, a

fundação da Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), em 1982; os

movimentos de ocupações de terras em São Paulo e outras cidades, a exemplo da ocupação

das terras na Fazenda Itupu, em 1981, o qual, em 1983, formou o Movimento de Luta pela

Moradia das Associações Comunitárias da Zona Sul de São Paulo; organização de

movimentos de desempregados, que face ao desemprego e às demissões realizava ocupações

de órgãos públicos, acampamentos em praças e parques; a organização do Movimento dos

Mutuários do BNH, pela renegociação das dívidas dos inadimplentes; do movimento dos

inquilinos intranquilos, face aos abusivos aumentos dos aluguéis; o fortalecimento das lutas

populares nas periferias, a continuidade das lutas dos transportes públicos, etc. (GOHN,

1995).

Todo este processo de reascenso dos movimentos sociais e das lutas de massa neste

período não ocorreu apenas em termos quantitativos, mas, também, num sentido qualitativo,

de forma que as lutas reivindicatórias específicas pautadas nos anos 1970 evoluíram para a

discussão e defesa de projetos de sociedade, ligando as questões concretas do cotidiano das

pessoas com o processo político mais geral em curso no País. Isto foi fundamental para a

articulação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, em 1985, que incidiu diretamente

na disputa dos rumos da nova Constituição Brasileira durante a Assembleia Nacional

Constituinte de 1987-1988, agora não mais pautando apenas a questão do direito à moradia

em si (ou do saneamento básico, acesso a eletricidade, ruas pavimentadas, regularização

fundiária, etc.), mas o direito à cidade como um todo, pautando assim os rumos do

desenvolvimento urbano do País.

Observando esta superação qualitativa, Pinheiro destaca que:

Os movimentos populares urbanos até 1985, tinham um caráter apenas

reivindicatório. Após este período começa-se a discutir a necessidade de uma

Reforma Urbana, entendendo que a cidade deveria ser para todos, que o cidadão tem

direito à cidade e a uma vida social com qualidade. Até então, os movimentos

nasciam com bandeiras de moradia, de creche, postos de saúde, etc., exclusivamente,

reivindicatório. (2002, p. 19-20)

Nos embates políticos que marcaram a realização da Constituinte, diversos segmentos

da sociedade se articularam para intervir nos rumos que o País tomaria pós-Ditadura, desde os

38

setores conservadores da classe dominante, até os setores organizados das classes populares.

Os movimentos sociais, junto aos partidos e parlamentares de esquerda, sindicatos e setores

progressistas da Igreja cumpriram um papel fundamental na garantia da participação popular

na elaboração da nova Constituição e em seu conteúdo, organizando pelo País Plenárias Pró-

Participação Popular na Constituinte e conquistando o direito a apresentação de Projetos de

Emenda Popular na Constituição.

Esta conjuntura foi importantíssima para a retomada da bandeira pela Reforma Urbana

no Brasil, a qual havia sido sufocada pela Ditadura Civil-Militar. A articulação dos diversos

movimentos populares urbanos e de suas pautas específicas conformou na organização do

Movimento Nacional pela Reforma Urbana e logo em seguida a criação do Fórum Nacional

de Reforma Urbana (FNRU)8, em 1987, reunindo movimentos populares, pastorais sociais,

organizações não-governamentais (ONGs), instituições de pesquisa, entidades de assessoria

aos movimentos urbanos e entidades de classe (engenheiros, arquitetos, etc).

A atuação do FNRU foi fundamental tanto para a realização de manifestações e

“Caravanas pela Moradia” levando milhares para Brasília, como para a coleta de 160 mil

assinaturas de eleitores (quando o necessário eram apenas 30 mil assinaturas) para a

apresentação da Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana na

Assembleia Nacional Constituinte, de forma a que esta foi a primeira Constituição Federal

(CF) brasileira a possuir um capítulo específico sobre Política Urbana (Artigos 182 e 183 da

CF), ainda que não tenha incorporado na íntegra a proposta do FNRU dado a força dos setores

conservadores na Subcomissão de Questão Urbana e Transporte9, incluiu-se na CF o princípio

da função social da propriedade urbana10

e a descentralização de atribuições, definindo os

municípios como os indutores centrais da política de desenvolvimento urbano e a abertura

8 A coordenação nacional do FNRU em 2008 era composta pelas seguintes entidades: FASE – Federação dos

Órgãos para Assistência Social, MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia, UNMP – União Nacional

por Moradia Popular, CMP – Central de Movimentos Populares, CONAM – Confederação Nacional de

Associações de Moradores, FENAE – Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa

Econômica, FISENGE – Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros, FNA – Federação Nacional de

Arquitetos, Instituto Polis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, IBAM – Instituto

Brasileiro de Administração Municipal, IBASE – Instituto Brasileiro de Analises Sociais e Econômicas, ANTP –

Associação Nacional de Transportes Públicos, COHRE Américas – Centro pelo Direito à Moradia contra

Despejos, AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, FENEA – Federação Nacional dos Estudantes de

Arquitetura e Urbanismo do Brasil, CAAP – Centro de Assessoria à Autogestão Popular, ABEA – Associação

Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo, Fundação Bento Rubião – Centro de Defesa dos Direitos

Humanos, Rede Observatório das Metrópoles, Actionaid do Brasil, Conselho Federal de Assistência Social,

Habitat para Humanidade Brasil, Fórum Nordeste de Reforma Urbana, GT Urbano do FAOR – Fórum da

Amazônia Oriental, Fórum da Amazônia Ocidental e Fórum Sul de Reforma Urbana. (FERREIRA, 2008). 9 Dos catorze membros desta Subcomissão, cinco eram ligados diretamente ao setor imobiliário.

10 A propriedade urbana não atende sua função social, quando não está edificada, está subutilizada, ou não está

sendo utilizada (ROLNIK, 2001 apud SILVA, 2004, p. 22).

39

para a participação popular na gestão das cidades por meio de diversos instrumentos, como

plebiscitos, referendos, conselhos temáticos, etc. – para se ter uma ideia, a única vez que a

palavra “urbana” aparece na Constituição de 1967, é quando se refere ao Imposto sobre

Propriedade Predial Territorial e Urbana (IPTU). Desta maneira,

Foi a partir da Constituição de 1988, que se delineia uma nova institucionalidade

que rompe com o paradigma centralizador e tecnocrático de gestão das políticas

públicas, tendo como centro a descentralização das políticas sociais e a abertura de

processos de participação da sociedade. (PINHEIRO, 2004, p. 21).

Diversos princípios elencados pelo FNRU foram incorporados na nova Constituição

brasileira, influenciando na prática dos governos e dos próprios movimentos populares na

resolução de suas demandas. Saule Júnior e Uzzo destacam estes princípios norteadores das

ações do FNRU e que compõem as plataformas de lutas dos movimentos sociais urbanos:

• o direito à cidade e à cidadania, entendida como a participação dos habitantes das

cidades na condução de seus destinos. Inclui o direito à terra, aos meios de

subsistência, à moradia, ao saneamento ambiental, à saúde, à educação, ao transporte

público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação. Inclui o respeito às

minorias, à pluralidade étnica, sexual e cultural e ao usufruto de um espaço

culturalmente rico e diversificado, sem distinções de gênero, etnia, raça, linguagem e

crenças.

• a gestão democrática da cidade, entendida como a forma de planejar, produzir,

operar e governar as cidades, submetida ao controle social e à participação da

sociedade civil.

• função social da cidade e da propriedade, como prevalência do interesse comum

sobre o direito individual de propriedade. É o uso socialmente justo do espaço

urbano para que os cidadãos se apropriem do território, democratizando seus

espaços de poder, de produção e de cultura dentro de parâmetros de justiça social e

da criação de condições ambientalmente sustentáveis. (2009, p. 5).

O acúmulo político gerado neste processo de lutas, debates e elaboração de projetos

foi muito importante para a intervenção dos sujeitos sociais que pautaram na Constituinte a

inserção do Capítulo sobre Política Urbana (via Emenda Popular de Reforma Urbana) nos

embates das Assembleias Estaduais Constituintes11

e na construção das Leis Orgânicas

Municipais12

, realizadas logo em seguida, garantindo importantes vitórias entorno da

concepção da Reforma Urbana nos âmbitos estaduais e municipais em diversos locais do País.

11

Para ter acesso a Constituição de 1989 do Estado do Rio Grande do Sul e a todo processo constituinte, ver

<http://www2.al.rs.gov.br/constituicao20anos/>. Acesso em: 14 abr. 2013. 12

Para ler a Lei Orgânica do Município de Santa Maria, acessar a página

<http://www.santamaria.rs.gov.br/docs/leis/lom/Lei_Organica_do_municipio.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2013.

40

A partir da aprovação da nova Constituição, uma das batalhas centrais do FNRU e dos

movimentos populares urbanos foi a luta pela regulamentação do capítulo de Política Urbana

da CF, elemento essencial para a implementação prática deste tópico constitucional. Esta luta

se estendeu por 12 anos, passando pela conquista da inclusão da moradia como direito

fundamental na Constituição brasileira em 2000 (Emenda Constitucional nº 26), até a

aprovação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257) em julho de 2001, que dispõe das diretrizes

gerais e de uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos para a promoção da função

social das cidades e sua gestão democrática.

O FNRU, também, demonstrou sua importância e protagonismo no momento em que

elaborou e coletou mais de 800 mil assinaturas para a primeira proposta de Projeto de Lei de

Iniciativa Popular no País, o projeto de criação do Fundo Nacional de Moradia Popular,

entregue ao Congresso Nacional em fevereiro de 1991 durante a 4ª Caravana dos Movimentos

de Moradia à Brasília, com mais de 5 mil participantes, projeto este aprovado após 13 anos de

tramitação e lutas, quando em 2004 foi aprovado o Fundo e o Sistema Nacional de Habitação

de Interesse Social (FNHIS e SNHIS).

Muitos destes avanços foram conquistados devido à atuação do FNRU em fóruns

internacionais, nos quais o Governo Brasileiro assumia compromissos (que nem sempre são

cumpridos, mas abrem espaço para que sejam cobrados). Saule Jr. e Uzzo destacam esta

atuação internacional do FNRU:

O FNRU produziu ativamente a interlocução da sociedade civil em muitos eventos

internacionais, entre eles a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento (ECO-92), em 1992, onde se elaborou consensualmente o

“Tratado por Cidades Justas, Democráticas e Sustentáveis”. Em 1995, o FNRU

participou do Comitê Preparatório para a Conferência Internacional Habitat II e

organizou, em conjunto com outras entidades, a Conferência Brasileira da Sociedade

Civil para o Habitat II – pelo Direito à Moradia e à Cidade. Acompanhou, em julho

de 1996, a Conferência Habitat II, realizada em Istambul, e participou da delegação

oficial que representou o Brasil neste evento, em que se estabeleceu o direito à

moradia adequada como direito humano – inscrito na Agenda Habitat. (2009, p. 4).

Através desta sequencia de mudanças institucionais, garantidas por meio da

participação popular antes, durante e depois do processo de elaboração da Constituição atual,

vindo a incluir na legislação brasileira, a cultura do “direito à cidade”, torna-se evidente a

importância dos movimentos sociais urbanos para a democratização do País, bem como da

legislação urbana vigente. Gohn destaca esta importância ao discutir a construção da

cidadania dos pobres no Brasil em um novo patamar a partir dos anos 1980 e o processo de

redemocratização nacional:

41

Os anos 80 são fundamentais para a compreensão da construção da cidadania dos

pobres no Brasil, em novos parâmetros. Embora com o estatuto de cidadãos de

segunda categoria, os pobres saíram do submundo e vieram à luz como cidadãos

dotados de direitos – direitos estes que são inscritos na Constituição mas,

usualmente, negados ou ignorados na prática. Assistiu-se ainda ao acirramento da

crise econômica ao final da década, com as políticas neoliberais de privatizações e

desativação da atuação do Estado em áreas sociais, e o desencanto que as massas em

geral sentiram, com os novos governos que elegeram, tanto os de direita (Collor e

seus escândalos financeiros) como os de esquerda, que embora tenham inaugurado

práticas de transparência das ações públicas, participação dos cidadãos e o acesso às

informações, também foram vítimas da inexperiência, da falta generalizada de

verbas para atender às demandas sociais, do desemprego altíssimo e das lutas

intestinais que o curto tempo do exercício democrático não permitiu superar. (1995,

p. 124).

Porém, mesmo tendo ocorrido diversas conquistas em nível jurídico e institucional,

ainda assim nossas cidades continuam injustas e desiguais, promovendo a segregação

socioespacial da população de baixa renda. Maricato aponta os limites da atuação dos

movimentos urbanos ter sido focada centralmente na luta por mudanças jurídicas:

O Fórum Nacional de Reforma Urbana cometeu o equívoco de centrar o eixo de sua

atuação em propostas formais legislativas, como se a principal causa de exclusão

social urbana decorresse da ausência de novas leis ou novos instrumentos

urbanísticos para controlar o mercado, quando grande parte da população está e

continua fora do mercado ou sem outras alternativas legais, isto é, sem segurança e

sem padrão mínimo de qualidade. (2000, p. 143 apud PINHEIRO, 2002, p. 22).

Embora tenham ocorrido mudanças constitucionais e nas leis que caminham no

sentido da implementação de uma Reforma Urbana no Brasil, é fato que desde a extinção do

BNH, em 198613

, até a criação do Ministério das Cidades, em 2003, não houve gestão e não

foram implementadas políticas públicas efetivas no sentido da construção de moradias

populares, o que junto a onda de políticas neoliberais que atingiram os países latino-

americanos nos anos 1990, levou a ampliação das desigualdades e da informalidade no espaço

urbano. Silva afirma que “embora a ação do BNH fosse falha na maioria dos pontos, com a

sua extinção a moradia popular ficou órfã, sem quem conseguisse definir com clareza, uma

política para o meio urbano brasileiro” (SILVA, 2004, p. 21).

Para Botega (2004), após o fim do BNH abriu-se uma nova etapa na política urbana e

habitacional do País, marcada por forte confusão institucional e provocada por constantes

reformulações nos órgãos responsáveis pelas políticas habitacionais. Podemos observar estas

13

O Presidente José Sarney extinguiu o BNH, através do Decreto nº 2291, de 21 de novembro de 1986, de forma

a que este passou a ser incorporado pela Caixa Econômica Federal.

42

sucessivas mudanças nos setores responsáveis por estas políticas, através das colocações de

Maricato e Santos Jr (2006):

Em termos institucionais, a política urbana nunca esteve entre as prioridades do

Estado brasileiro mesmo na única oportunidade que mereceu uma formulação

holística, durante o Regime Militar. Os sucessivos governos nunca tiveram um

projeto estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as

intervenções no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento

ambiental, e da mobilidade e do transporte público. Sempre de forma fragmentada e

subordinada à lógica de favorecimento que caracterizava a relação inter-

governamental, as políticas urbanas foram de responsabilidade de diferentes órgãos

federais. Tomando como referência a política de habitação, vale a pena registrar que,

de 1985 a 2002, a política de habitação foi de responsabilidade de diferentes

Ministérios: de 1985 a 1987, do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio

Ambiente; de 1987 a 1988, do Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio

Ambiente; de 1988 a 1990, do Ministério do Bem Estar Social; de 1990 a 1995, do

Ministério da Ação Social; de 1995 a 1999, da Secretaria de Política Urbana,

vinculada ao Ministério do Planejamento; de 1999 a 2002, da Secretaria Especial de

Desenvolvimento Urbano, vinculada à Presidência da República.14

Junto ao fim do BNH ocorreu o enfraquecimento do SFH, e consequentemente das

COHABs (Companhias Estaduais de Habitação), que eram uns dos principais órgãos

executores de suas demandas em nível local, que passaram a ter seus financiamentos

restringidos, resultando na redução do número de moradias populares construídas. Isto levou a

que as COHABs “passassem de agentes promotores (tomadores de empréstimos do FGTS e

executores de obras) a meros órgãos assessores, diminuindo assim a capacidade de atuação

dos estados e municípios na questão habitacional” (SANTOS, p. 20 apud BOTEGA, p. 21).

Somando-se a este contexto de desmonte das políticas e órgãos públicos de promoção

da habitação para pessoas de baixa renda, o Brasil foi atingido em cheio pelas políticas

neoliberais implementadas por governos de direita que seguiram fielmente as orientações

ditadas por organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco

Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o chamado Consenso de

Washington15

.

Na passagem dos anos 1980 para a década de 1990 processou-se uma mudança

conjuntural em escala planetária, com o fim da Guerra Fria e a transição de um mundo 14

Texto disponível em <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1407>.

Acesso em: 18 abr. 2013. 15

Consenso de Washington foi a denominação informal das conclusões de uma reunião realizada em novembro

de 1989 na capital norte-americana, em que reuniram-se membros do governo dos EUA, FMI, Banco Mundial e

economistas latino-americanos. Estas conclusões são alguns dos principais tópicos da “cartilha neoliberal”,

receitadas pelos organismos multilaterais aos países periféricos em troca de financiamentos (recomendações

estas, porém, não utilizadas pelos países desenvolvidos). Dentre estas orientações destacam-se a busca pela

redução do papel do Estado na economia e na sociedade para a primazia do livre-mercado, a abertura comercial,

as privatizações de órgãos, serviços e empresas públicas, a desregulamentação e flexibilização das legislações

trabalhistas e a redução dos gastos públicos em áreas sociais.

43

marcado pela disputa de rumos entre capitalismo e socialismo, para uma hegemonia

capitalista sem precedentes históricos, a partir da derrocada do socialismo de tipo soviético.

Da bipolaridade mundial passou-se a disputa econômica intercapitalista entre empresas, países

e blocos regionais e a ascensão do discurso da globalização, que nada mais é do que a

mundialização do capitalismo, sob os marcos do neoliberalismo e da revolução tecnológica,

promovendo-se assim a financeirização da economia, comandada não por Estados soberanos,

mas sim por grandes oligopólios empresariais transnacionais que tornaram-se os verdadeiros

centros de tomadas de decisões, subordinando os países, principalmente os periféricos, aos

seus interesses. Os principais beneficiados pela globalização neoliberal foram as corporações

transnacionais e o capital especulativo, pois em um contexto de oligopolização da economia,

o livre-mercado fica restrito a liberdade de poucos que detém muito.

O neoliberalismo, além de possuir princípios equivocados, na prática demonstrou-se

desastroso. Suas orientações, seguidas no Brasil por governos como os de Fernando Collor de

Mello (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),

apontavam que os investimentos em áreas sociais eram gastos desnecessários, de forma a que

setores como saúde, educação, assistência social, sofreram graves cortes de recursos

necessários a sua manutenção. O mesmo ocorreu com as políticas de habitação, transporte e

saneamento básico, em que a omissão da ação estatal, aliado a sua subordinação ao mercado e

os interesses do capital privado, levaram ao agravamento da crise habitacional, bem como o

aumento da violência e do caos urbano em todo o País.

Exemplo de política habitacional direcionada aos interesses do capital imobiliário foi o

Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH), lançado pelo Governo Collor, em 1990,

plano que segundo Ribeiro (2007), previa a construção de 245 mil unidades habitacionais em

180 dias, via contratação de empreiteiras privadas, objetivo este, porém, não concretizado. A

autora destaca ainda, que neste governo, com o confisco das cadernetas de poupança, ocorreu

a estagnação na poupança e no FGTS, o que comprometeu ainda mais a política habitacional

brasileira, pois com a ausência do Estado, o acesso a terra e a moradia só ocorreram por

intermédio de sua aquisição no mercado.

Ainda, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 1993), em

relação ao descaso quanto à política de desenvolvimento urbano, em 1991, “as verbas

provenientes do Orçamento Geral da União continuaram a ser transferidas, pulverizadamente,

aos governos locais sem qualquer critério objetivo, por meio de práticas fisiológicas e

44

clientelistas” (Idem, p. 9). Já em relação ao saneamento básico, a publicação do IPEA aponta

como situação do setor, em 1991:

As estatísticas oficiais demonstram que as políticas públicas do saneamento no

Brasil têm avançado para a solução dos problemas do setor, sobretudo no segmento

da população de renda mais elevada. Entretanto, no que concerne à população de

mais baixa renda, em especial os habitantes em favelas, periferias urbanas e do meio

rural – cerca de 40% da população total do país –, os indicadores demonstram

carências agudas dos serviços. Em muitos casos, estes cidadãos sequer dispõem de

água potável, ou de serviços mínimos de esgotamento sanitário. (Idem, p. 14).

Cabe destacar ainda que segundo Botega (2007), os dados do Censo do IBGE de 1991

indicavam que no Brasil, 55,2% das famílias que compunham o déficit habitacional recebiam

até 2 salários mínimos apenas, revelando altos índices de pobreza e exclusão social.

Foi neste contexto de crise econômica e social e de ausência de políticas públicas para

a população de mais baixa renda, que foi criado em 1990, o MNLM, em nível nacional e, em

1991, em Santa Maria, a partir de demandas concretas de parcela significativa da população.

Os anos 1990 foram marcados no Brasil pela ampliação das contradições sociais e o

aprofundamento das desigualdades. De um lado, imperava o discurso do “pensamento único”

que afirmava não haverem alternativas políticas e econômicas ao neoliberalismo e ao próprio

capitalismo e, por outro, se erguiam as vozes das ruas em resistência às privatizações e em

defesa de políticas sociais aos setores mais necessitados da sociedade. Constituiu-se, assim,

um Fórum Nacional de Lutas, sendo construídas diversas greves no setor público e marchas

nacionais por Reforma Agrária e Urbana, por exemplo.

Mais especificamente em relação ao Governo FHC, alguns dados levantados por

Urrutia acerca de seus investimentos em políticas habitacionais nos mostram que, apesar deste

ter afirmado que primaria por estas na Conferência Mundial Habitat II, realizada na Turquia,

em 1996 (onde comprometeu-se a investir R$ 22 bilhões no programa “Plano de Ação

Habitacional” afim de sanar o problema de 1,3 milhões de famílias carentes), na prática, a

moradia não foi prioridade ao longo de seus governos. Assim, segundo a historiadora:

Em 1997, o governo previa apenas R$ 38 milhões para o programa de moradia

popular, e até o final de junho, apenas R$ 15 milhões haviam sido liberados. Em

1999, o governo federal não gastou nem um centavo com o programa social e de

habitação popular. Novamente, em 2000, nenhum centavo foi gasto com habitações

populares. (2002, p. 4).

Todas estas lutas e as ações articuladas pelos movimentos populares, sindicatos,

pastorais sociais e partidos de esquerda foram fundamentais na luta contra a implementação

45

do neoliberalismo no Brasil, contribuindo para que ocorresse uma mudança na conjuntura

política do País e da América Latina, com a eleição do primeiro operário como Presidente da

República, trazendo novos desafios aos movimentos sociais e a esquerda como um todo.

Neste novo cenário de 2003 em diante, logo foram desfeitas as grandes expectativas

que muitos depositaram sobre a eleição de Lula e ficaram nítidos os seus limites, pois se

“constituiu um governo de coalizão de centro-esquerda, composto por forças políticas com

interesses diferenciados e mesmo contraditórios” (SANTOS JR., 2003, p. 29), fato este que

apontou que somente com o fortalecimento da pressão popular seriam geradas as possíveis

transformações sociais colocadas nesta conjuntura.

Em termos gerais, pode-se afirmar que nos últimos anos houve uma melhora das

condições de vida da classe trabalhadora, através da política de valorização do salário

mínimo, ampliação do emprego formal, programas de transferência de renda, retomada do

papel do Estado na economia e nas áreas sociais, mas ao mesmo tempo não se tocou nas

riquezas dos poderosos, a exemplo do setor financeiro que seguiu obtendo lucros

extraordinários. Foi, principalmente, a partir do segundo mandato de Lula que ficaram mais

nítidas as tentativas de reversão do neoliberalismo e construção de um novo ciclo neo-

desenvolvimentista no País, a exemplo do lançamento do Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC). Contudo, ainda assim, não foram implementadas as necessárias reformas

estruturais que o País demanda, como a Reforma Agrária e Urbana, dentre outras.

Em relação às políticas urbanas, é notório que, em comparação com os governos

anteriores, houve um maior aporte de investimentos nestas. Outro avanço foi a criação do

Ministério das Cidades, antiga pauta do FNRU, visando articular políticas urbanas entre os

diferentes níveis da federação, bem como a realização da 1ª Conferência das Cidades, a qual

resultou na criação do Conselho Nacional das Cidades, com a participação dos movimentos

populares, abrindo espaço para que outras reivindicações fossem colocadas. Porém, o fato do

Ministério das Cidades ser dirigido, desde 2005, por um partido de direita, tem limitado em

muito a implementação da agenda da Reforma Urbana no País

Neste contexto, a atuação dos movimentos sociais urbanos foi fundamental para pautar

os rumos do Governo em diversos momentos, com a realização de grandes manifestações em

Brasília e em diversas cidades, inclusive em Santa Maria, assim possibilitando que diversas

bandeiras fossem conquistadas, conforme atesta o Quadro 1:

46

PERÍODO AVANÇOS NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO

DE INTERESSE SOCIAL

ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS DE

MORADIA E DE REFORMA URBANA

1985 – 1994

Nova República Sarney (1985-1989)

Collor (1990-1992 -

PRTB) Itamar (1993-1994)

- Emenda popular de Reforma Urbana (1987) e Capítulo

Política Urbana na Constituição Federal (1988).

- Formulação de Proposta de Emenda popular de Reforma

Urbana (1987)/Lobby no Congresso, Caravana à Brasília.

- 1ª Iniciativa popular de projeto de lei do Fundo Nacional

de Moradia Popular/FNMP (1991).

- Formulação da proposta e 4ª Caravana à Brasília

(1991)/Lobby no Congresso, Marcha da Reforma Urbana e

pelo Direito à Cidade, Jornadas Nacionais de Luta pela

Moradia Popular.

1995 – 2002 Governo FHC

(PSDB)

- Introdução do direito à moradia como um direito social (art. 6º) na Constituição Federal (2000).

- Formulação de Proposta de Emenda popular de Reforma Urbana (1987)/Lobby no Congresso, Caravana à Brasília.

- Aprovação do Estatuto da Cidade (2001). - Formulação de proposta/Lobby no Congresso.

2003-2010

Governo Lula (PT)

2003-2010 Governo Lula (PT)

- Criação do Ministério das Cidades (2003), das

Conferências das Cidades (2003) e do Conselho das

Cidades/ConCidades (2004).

- Participação de membros dos movimentos na Formulação

do Projeto Moradia com proposta de conferências e

conselho/ Atuação nas eleições – Plataforma da Reforma Urbana e do Direito à Cidade.

- Aprovação da Política Nacional de Habitação (2004) no

ConCidades.

- Participação no Conselho das Cidades e na formulação da

proposta do Projeto Moradia, onde foram definidas

diretrizes para PNH.

- Criação do Programa Crédito Solidário (2004), voltado

para Autogestão (Resolução 93/2004 do CCFDS).

- Atuação no Conselho das Cidades, Marcha da Reforma

Urbana e pelo Direito à Cidade (2005).

- Aprovação da Lei do Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (2005) e sua regulamentação

através do decreto 5.796/2006.

- Formulação de proposta: primeira lei de iniciativa

popular/Lobby no Congresso, Caravanas, Marcha da Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade (2005), Audiência

com Ministros e Presidência da República, Atuação do

FNRU na Conferência e no Conselho das Cidades (2005).

- Campanha Nacional dos Planos Diretores Participativos,

PDP‟s (2006).

- Atuação no Conselho das Cidades, nos Núcleos da

Campanha dos PDP‟s por todos os estados.

- Aprovação da Lei 11.447/2007 que estabeleceu a Política

Nacional de Saneamento Ambiental (2007).

- Atuação da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental,

em parceria com o FNRU

- Atuação no Conselho das Cidades, Lobby no Congresso,

Jornadas de Luta pela Reforma Urbana, Audiências com

Ministro das Cidades, com a Secretaria Geral da

Presidência (SGP).

- Aprovação da Lei 11.578/2007 que incluiu o acesso de

entidades sem fins lucrativos (cooperativas e associações

autogestionárias) aos recursos do FNHIS.

- Atuação no Conselho das Cidades.

Marchas, Jornadas, Audiências com Ministros, Casa Civil e

SGP.

- PAC Urbanização de Assentamentos Precários (2007). - Atuação no Conselho das Cidades.

- Ação de Apoio à Produção Social da Moradia (2008). - Atuação no Conselho das Cidades, Jornada da Reforma

Urbana e pelo Direito à Cidade.

- Plano Nacional de Habitação/PLANHAB (2008). - Atuação no Conselho das Cidades, participação nos

seminários do PLANHAB.

- Aprovação da Lei 11.888/2008 que assegura às famílias

de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social

(2008).

- Lobby no Congresso, atuação no Conselho das Cidades.

- Aprovação da Lei 11.977/09 que cria o Programa Minha

Casa Minha Vida e simplifica os processos de regularização

fundiária de interesse social (2009).

- Atuação no Conselho das Cidades.

- Programa Minha Casa Minha Vida Entidades (2009). - Atuação no Conselho das Cidades, Audiências com

Ministros, SGP e Casa Civil.

2011 – Atual Governo Dilma (PT)

- Programa Minha Casa Minha Vida Entidades 2, previsto

na Lei 12.424/2011, que altera a lei 11.977/09 (2011) - Atuação no Conselho das Cidades, audiências com SGP.

- Aprovação da Lei 12.587 que institui a Política Nacional

de Mobilidade Urbana (2012) - Atuação no Conselho das Cidades e no Congresso.

Quadro 1: Avanços da Política Habitacional e Urbana x Atuação dos Movimentos de Moradia e Reforma Urbana

Fonte: FERREIRA (2012, p. 8).

47

Desta maneira, percebe-se uma inflexão progressista em relação aos governos

anteriores, tanto no sentido da ampliação dos recursos destinados às políticas urbanas e de

habitação, como no sentido de gerar uma maior participação popular nos processos de

construção de políticas públicas, ainda que com muitos limites, podemos concordar com

Ferreira quando esta afirma que “desde o governo Lula, podemos dizer que o Estado volta a

ter um papel central na promoção do desenvolvimento urbano, em oposição às políticas

neoliberais da década de 90” (FERREIRA, 2012, p. 7).

Entretanto, apesar deste conjunto de leis e medidas, é fato que ainda ocorre uma

debilidade enorme no sentido da implementação concreta destas novas legislações e dos

instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto das Cidades.

Outro problema colocado é a priorização da implementação das principais medidas,

como o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), através do financiamento de empresas

e construtoras, e o fato deste ser pouco integrado às demais políticas urbanas e com o Sistema

Nacional de Habitação de Interesse Social e o Plano Nacional de Habitação, tendo sido uma

medida voltada mais para reaquecer a economia no contexto da crise econômica mundial

estourada em 2008. Ferreira explica que foi somente através da pressão dos movimentos

populares que foi aprovada em 2009 a modalidade PMCMV-Entidades para construção

autogestionada de moradias via associações e cooperativas, porém, frente às regras e a lógica

de mercado colocada nesta modalidade do Programa (basicamente as mesmas de um

financiamento para um empreendimento imobiliário qualquer), dificulta-se ou se inviabiliza

que os movimentos possam elaborar projetos em diversos municípios do País.

Além disto, há na atual conjuntura a problemática dos mega-eventos (Copa do Mundo,

Olímpiadas), que vêm ampliando as contradições e os conflitos urbanos, havendo de um lado,

o poder estatal utilizando de políticas de higienização social e remoções de comunidades, e de

outro, a população e os movimentos populares procurando resistir a esta investida da

especulação imobiliária. O MNLM tem feito campanhas e lutas de resistência a este processo,

principalmente nas capitais, nas quais este está se dando com mais força, a exemplo da

campanha “A Copa do Mundo é aqui, e nós para onde vamos?” em Porto Alegre.

As grandes manifestações ocorridas em meados de 2013, apontam o esgotamento do

atual modelo de urbanização, e colocam o desafio não apenas da necessidade de mais

investimentos públicos nas cidades, mas sim da construção de uma verdadeira e democrática

Reforma Urbana, que construa um modelo de urbanização para além do capital e

crescentemente integrada à natureza.

48

2 – SANTA MARIA, CIDADE DAS OCUPAÇÕES

“Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”

MNLM

Santa Maria é uma cidade com forte vocação urbana e que não foge à regra geral do

conjunto do País, sendo historicamente marcada por fortes disparidades sociais, expressas,

também, espacialmente na forma da segregação urbana. Desde sua fundação, até a atualidade,

esta passou por um intenso crescimento urbano e populacional, de forma a ser, atualmente, a

quinta cidade gaúcha em população.

Ao longo de seus 155 anos, Santa Maria acumulou uma série de problemas urbanos e

de habitação, que afetam principalmente a população local, tornando-se uma cidade marcada

por uma intensa segregação social, visível não apenas na contradição centro-periferia, mas

também presente no próprio “calçadão” da cidade. Através deste capítulo, buscaremos

compreender como isto se fez realidade, analisando o histórico de formação urbana do

Município.

2.1 Santa Maria: o Acampamento que Virou Cidade

O território onde hoje fica Santa Maria não era um vazio ou uma terra de ninguém,

sendo originariamente ocupada pelos povos indígenas Tapes (mais ao Norte) e Minuanos (ao

Sul). Desde o Tratado de Tordesilhas (1494), em tese esta área pertenceria à Coroa Espanhola,

porém a primeira presença ibérica espanhola na Região se deu com a criação da Redução

Jesuítica de São Cosme e São Damião, em 1634, pelo jesuíta Adriano Formoso, chegando a

aglutinar 1200 famílias, e que teve de ser abandonada e transmigrada poucos anos depois,

entre 1638-39, dado o avanço dos bandeirantes portugueses que destruíam as reduções da

Região do Tape em busca da escravização dos índios (PADOIN, 1992; SANTOS, 2010).

No entanto, as constantes disputas pelo atual território sul-rio-grandense e uruguaio

entre as coroas portuguesa e espanhola, no período colonial, tiveram como consequência o

extermínio de quase todos estes povos nativos, assim como a própria instalação de povoados

que, posteriormente, tornaram-se cidades, como é o caso de Santa Maria, criada para

assegurar o domínio do território aos portugueses. Situada em uma posição estratégica ao Sul

49

do Continente, Scherer aponta que Santa Maria “possui importância histórica dentre as

primeiras cidades construídas em função das necessidades da metrópole” (2008, p. 27).

Por sua vez, os remanescentes indígenas, ainda hoje, seguem lutando pela sua

sobrevivência física e cultural, por terra, direitos e contra o preconceito e a invisibilidade. Nas

proximidades da rodoviária, há mais de uma década está estabelecida em área tradicional e

lutando pela sua demarcação, a Aldeia Kaingang “Ketyjug Tegtu”, resistindo as tentativas de

reintegração de posse da área perpetradas pelos proprietários da mesma – que não cumpria

com sua função social, possuindo diversas irregularidades e uma dívida milionária com o

Município. Os Guarani Mbiá, por sua vez, após sobreviverem durante três décadas acampados

em condições precárias às margens da BR 392, no Arenal, em 2012 conquistaram uma área de

77 ha próxima ao Distrito Industrial, originando assim a Aldeia “Tekoa Guaviraty”, mantendo

também a luta por uma área definitiva nas proximidades do rio Ibicuy.

A posição estratégica e os constantes conflitos entre as Coroas, que geraram o vai-e-

vem das fronteiras, fizeram com que o princípio da Colonização Ibérica deste território tenha

se dado, além da redução jesuítica no século XVII, através de acampamentos militares no

século XVIII, quando se estabeleceu a Guarda Portuguesa de São Pedro, conforme descreve

Prado:

No ano de 1777, após ter sido assinado o Tratado de Santo Ildefonso, pelo qual a

Espanha cede os sete povos das missões à Portugal em troca da Colônia de

Sacramento, inicia-se em 1784 o processo de demarcação dos limites entre o

território que pertencia a Espanha e o que pertencia a Portugal, sendo que esta linha

divisória passava por Santa Maria. Esses limites foram traçados por uma Comissão

Demarcadora de Limites da América Meridional chefiada pelo Brigadeiro Sebastião

Xavier da Veiga Cabral da Câmara que permaneceu acampado no Arroio dos

Ferreiros, hoje Passo da Ferreira, durante dez anos. Dois anos depois esta comissão

se divide, sendo que uma parte em direção às Missões Orientais e a outra continua

no acampamento. Um ano após esta data o Capitão José Saldanha acampa-se às

margens do Arroio Santa Maria, hoje Passo da Areia. (2010, p. 53).

Em 1797, no Rincão de Santa Maria, se estabeleceu o acampamento militar que gerou

o efetivo povoamento do local, quando a Segunda Subdivisão da Comissão Demarcadora de

Limites se retirou das Missões (ante ao agravamento das tensões entre portugueses e

espanhóis) e se instalou em uma colina, nas terras da sesmaria16

que o tenente Jerônimo de

Almeida cedeu ao Padre Ambrósio José de Freitas, no local que hoje é a Praça Saldanha

16

Além da ocupação militar, a Coroa portuguesa utilizava como táticas de ocupação para povoamento do

território e demarcação das fronteiras, a distribuição de sesmarias (150 quadras: 13.068 hectares) e datas (272

ha), bem como a distribuição de cargos e títulos aos estancieiros, conferindo poder e autoridade local a estes,

desde que se mantivessem fiéis aos interesses da Coroa, práticas estas que se mantiveram no Império.

50

Marinho. O Acampamento de Santa Maria da Boca do Monte, como ficou conhecido, era

formado por militares e seus familiares, escravos, trabalhadores e índios, recebendo o

incremento de 50 famílias de guaranis missioneiros, no início do século XIX, bem como de

comerciantes ao longo dos anos. Ainda segundo a geógrafa,

Ao instalar este acampamento os militares começaram um trabalho das construções

das primeiras casas e principalmente o de abertura de estradas que hoje são as

principais vias de circulação de Santa Maria: a atual Dr. Bozzano, primeiramente

intitulada Rua Pacífica e a atual Rua do Acampamento, originalmente nomeada de

Rua São Paulo. A partir deste momento a paisagem começa a sofrer constantes

transformações, como por exemplo, a construção de um escritório, de uma capela,

bem como de um quartel que abriga os militares. (PRADO, op. cit.).

Com o passar dos anos, a população foi aumentando, e de acampamento, Santa Maria

da Boca do Monte (que em 1801 torna-se a sede do Distrito de Vacacaí, pertencente à

Cachoeira) foi elevada ao título de Oratório, em 1804; Capela, em 1810; Capela Curada, em

1812 e sede do 4º Distrito de Cachoeira, após sua emancipação, em 1819. Em 1828, chegou

ao local um Batalhão de Estrangeiros, contratados para lutar na Guerra Cisplatina (que

resultou na Independência do Uruguai), composto, principalmente, por alemães, dos quais

muitos, após o término do conflito, se estabeleceram em Santa Maria, como trabalhadores e

comerciantes.

Em 1837, durante a Guerra Farroupilha, o Curato tornou-se Freguesia de Santa Maria

da Boca do Monte, vindo, duas décadas depois, a tornar-se Vila, em dezembro de 1857,

emancipando-se política e administrativamente de Cachoeira, de forma que, em 17 de maio de

1858, foi instalado o Município, com a inauguração da Câmara Municipal. Nesse momento, a

população total da Vila de Santa Maria da Boca do Monte, era de aproximadamente cinco mil

habitantes, sendo que a economia local era baseada, principalmente, na produção agrícola,

pastoril e no comércio, facilitado pela posição geográfica centralizada da Vila, que já possuía

um sólido núcleo urbano, cuja primeira planta foi elaborada em 1861 e aprovada em 1865,

demarcando os quarteirões e terrenos, os quais foram cedidos a quem os edificasse em um

ano.

Tudo isto facilitou para que, em 6 de abril de 1876, através de Lei Provincial, a Vila

fosse elevada à categoria de Cidade: Santa Maria da Boca do Monte. Na Figura 1, podemos

conferir a localização do espaço urbano de Santa Maria, e desta no território brasileiro. Prado

destaca que a partir de então Santa Maria “começa a se beneficiar com uma serie de serviços e

infra-estrutura, dentre eles se destaca a chegada do telegrafo e a inauguração da linha férrea,

51

em 1885, que ligava Santa Maria à Cachoeira do Sul, trecho que, mais tarde, ligava a Porto

Alegre” (2010, p. 54).

Além disto, a chegada da iluminação a querosene (1881) e da luz elétrica (1898),

correios, telefones, pavimentação de diversas ruas, foram fatores que estimularam a vinda de

mais pessoas para Santa Maria (PINHEIRO, 2002) – além dos colonos italianos, os quais, a

partir de 1877, estabeleceram colônias no território santa-mariense e região.

Figura 1 – Mapa de localização da área urbana do município de Santa Maria

Fonte: MELARA, 2008, p. 18.

Com a chegada da ferrovia, símbolo de progresso17

, modernidade e integração ao

nascente modo de produção capitalista no Brasil, deu-se a consolidação de Santa Maria

enquanto um importante centro ferroviário, geopolítico-militar e entreposto comercial

regional, gerando transformações sociais e espaciais com um forte impulso ao processo de

crescimento e urbanização da cidade, especialmente no sentido Leste-Oeste.

Em fins do século XIX, 69% da população santa-mariense era rural, tendência esta que

foi se invertendo ao longo do século XX, ao se inaugurar uma nova divisão social do trabalho

com a ferrovia, assim como todo um conjunto de demandas urbanas (DEGRANDI, 2012, p.

134).

Conforme destaca Padoin, o comércio foi bastante impulsionado com a

implementação da ferrovia, ampliando consideravelmente a renda do município.

17

A própria Rua Rafael Pinto Bandeira foi urbanizada, “embelezada” e renomeada na época para Avenida do

Progresso (atual Avenida Rio Branco), ao longo da qual foram abertos diversos hotéis, restaurantes, lojas e

estabelecimentos comerciais aos viajantes em passagem pela cidade. Para melhor conhecer essa história assista

ao documentário da TV OVO chamado Avenida Progresso em:

<http://www.youtube.com/watch?v=EZjwSWg_faw>.

52

Com a Estrada de Ferro se deu um maior dinamismo econômico ao Município,

havendo uma abertura de uma rede hoteleira em Santa Maria, bem como o aumento

das atividades econômicas, com abertura de entrepostos comerciais e de grandes

depósitos de produtos agrícolas e pastoris. (1992, p. 19).18

Tal desenvolvimento do comércio, bem como da indústria de pequeno porte (em

especial nos ramos alimentícios e de bebidas), levou a associação da categoria empresarial-

comercial local. Assim, segundo a historiadora,

No dia 29 de julho de 1897, em uma reunião no Teatro Treze de Maio com mais de

50 cidadãos, foi fundada a “Praça do Comércio” de Santa Maria. Com o passar dos

anos, essa entidade sofreu mudanças em sua nomenclatura: em 6 de julho de 1918,

para melhor expressar o “espírito associativo”, a “Praça do Comércio” passou a

chamar-se Associação Comercial de Santa Maria. Em 1976, a Associação fundiu-se

com a União dos Caixeiros Varejistas, surgindo a atual Câmara de Comércio e

Indústria de Santa Maria (CACISM). (Ibid., p. 21-22).

Aos trabalhadores da Companhia Auxiliar de Caminhos de Ferro do Brasil

(Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brèsil), empresa privada belga que transferiu

sua sede para Santa Maria, em 1905, foi construída a Vila Belga no início do século XX,

composta por 80 residências, a exemplo das vilas operárias construídas pelos industriais nesse

período em diversas cidades brasileiras, ainda que não fosse totalmente isolada do conjunto da

cidade. Além da Vila Belga, os trabalhadores da Viação Férrea residiam em diversos locais da

cidade, porém alguns bairros foram formados, principalmente, por operários ferroviários,

como o Bairro Itararé19

, Chácara das Flores e o Bairro Km 3, no qual, por muitas décadas,

funcionaram as oficinas da Viação Férrea. Estes espaços, ao longo da chamada mancha

ferroviária, foram fundamentais para o fomento do associativismo e a construção do

Movimento Operário na cidade, seja enquanto ambiente de sociabilidade, seja enquanto

espaço de organização.

Com a substituição da escravidão pelo trabalho assalariado, parcela considerável dos

trabalhadores da Viação Férrea era negra, estes foram protagonistas da criação do que Flôres

apud Escobar apontou como a “primeira entidade genuinamente erigida por ferroviários na

cidade de Santa Maria” (2010, p. 75): a Sociedade/Clube Treze de Maio, fundado em 1903

por ferroviários negros, uma vez que as pessoas de pele negra eram impedidas de entrar nos

18

Para um estudo mais detalhado sobre a História do comércio em Santa Maria e de seus empresários

comerciais, bem como sua organização e ideologia, conferir a dissertação de Padoin (1992), disponível em:

<http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/24640/D%20-

%20PADOIN,%20MARIA%20MEDIANEIRA.pdf?sequence=1>. 19

Para mais informações sobre a História do Bairro Itararé, assista o documentário da TV OVO, Trilhos do

Itararé, disponível em: <www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=gIjADY7jbXU#!>.

53

clubes sociais20

tradicionais, contribuindo assim para estabelecer uma rede apoio mútuo entre

a comunidade negra, bem como a afirmação de sua identidade.

Escobar (2010) aponta que o primeiro Clube Social Negro santa-mariense foi o Clube

Sociedade União Familiar, fundando em 1896, não por ferroviários, mas por trabalhadores

negros de renda mais baixa, se localizando próximo a Vila Operária Brasil, na Rua Barão do

Triunfo. Além da Sociedade Treze de Maio, em Santa Maria, também, existiram o Clube Elite

e o Renascença, os quais, porém, não sobreviveram ao tempo. Os Clubes Sociais Negros

existiram por todo o País, pois, para Escobar

Eles surgiram como um contraponto à ordem social vigente, além de constituírem

um local de sociabilidade e de lazer para a população negra, que era impedida de

frequentar os tradicionais “clubes sociais brancos”. Além disso, tinham como

objetivo angariar fundos para o pagamento da liberdade dos trabalhadores negros

escravizados, auxiliar nas despesas com funeral, defesa de direitos e na educação de

seus associados, atuando de forma incisiva na luta contra a escravidão e a

discriminação racial. (2010, p. 57-58).

A sede do “Treze”21

foi construída em 1911, bem como ampliada e reformada

posteriormente, em regime de mutirão, sendo localizada na Rua 24 de Maio (atual Silva

Jardim), no Bairro Rosário22

, inicialmente construído por famílias de escravos ainda no

período da Guerra Farroupilha (1835-45) e que constituiu, por muitas décadas, parte da

periferia da cidade.

Evidencia-se, desta forma, que as marcas da segregação social e racial sempre se

fizeram presentes na História de Santa Maria, relegando ao povo negro os espaços periféricos

e mais distantes das áreas centrais, de forma a que este, além de sofrer o estigma do racismo,

seja tachado de “vileiro”, etc., não conseguindo emprego por estas situações, logo passando a

ser um “vagabundo”, Assim, o sujeito é culpabilizado pela sua condição social, numa

perversa soma de preconceitos que associa cor da pele, situação de pobreza, falta de emprego,

escolaridade e moradia, o que, na prática, contribuem para a manutenção desta condição,

20

Naquela época, não existiam boates ou casas de festas similares, onde se paga ingresso para frequentar. Assim,

os principais espaços de sociabilidade eram os clubes sociais. 21

Em 1946, a Sociedade Treze de Maio passou a chamar-se Sociedade Recreativa Ferroviária Treze de Maio,

enquanto que, em 1965, será denominada Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio, no mesmo momento

em que a Rua 24 de Maio passou a chamar-se Silva Jardim, passando a admitir presidentes não ferroviários.

Atualmente é o Museu Comunitário Treze de Maio. Para mais informações, acesse o blog

http://museutrezedemaio.blogspot.com.br e assista ao vídeo Minuto museu em

<http://www.youtube.com/watch?v=2hGD3fw5DLA>. 22

Para mais informações sobre a História do Bairro Rosário, assista ao documentário produzido pela TV OVO

“Qu4tro Mistérios do Rosário”, disponível em

<http://www.youtube.com/watch?v=LuF043AYmM8&list=UUf03hV6gYVPH6I2Gypa_qUA&index=4>.

54

sendo, portanto, algo funcional a um modo de produção baseado na exploração da maioria

para o benefício de uma pequena parcela da sociedade.

Retomando a questão dos bairros e vilas operárias, estes espaços de convivência e

moradia, junto aos de trabalho, foram muito importantes para a organização da classe operária

em Santa Maria, a qual teve nos trabalhadores ferroviários uma de suas principais categorias

no início do século XX. Apesar dos ferroviários serem vistos como uma categoria bastante

afinada com os poderes do Estado e o trabalhismo, estes possuíram uma forte tradição

grevista, mantendo militância mais à esquerda, sendo que, a partir destes locais, os operários,

apoiados por seus familiares e por diversos setores da sociedade, construíram várias greves

por reajustes salariais e melhores condições de trabalho.

Como exemplos de movimentos paredistas ferroviários (que geralmente iniciavam em

Santa Maria e se espraiavam por diversas cidades), podemos citar a greve de 1906, tendo

dentre suas conquistas a criação do Economat (sistema de armazéns mantido pela companhia

belga, com intuito de abastecimento de gêneros a preços reduzidos aos seus trabalhadores,

departamento este que funcionou até 1911, quando a Brazil Raiway assumiu a administração

da ferrovia23

e o repassou a um comerciante local, fato que indignou os trabalhadores);

Degrandi (2012), baseado em Hillig (2005), aponta que, entre 1911 e 1919 (período que a

Brazil Railway administrou a ferrovia), ocorreram 9 greves ferroviárias (6 locais e 3 gerais).

Já Jobim (2010), aponta que estas ocorreram apenas em 1911, 1917 e 1919, destacando-se

neste período a criação da Cooperativa de Consumo dos Empregados da VFRGS

(COOPFER)24

, em 1913, que chegou a tornar-se a maior cooperativa de consumo da América

do Sul. Além disso, nesse período, ocorrem as das duas greves ferroviárias de 1917, as quais,

em um efervescente contexto externo e nacional (greves gerais nas principais cidades do País)

e diante da alta precariedade no ambiente de trabalho, levaram os trabalhadores a paralisarem

não só o trabalho, mas toda a ferrovia, com depredações de vagões, retirada dos trilhos,

23

Segundo Degrandi (2012, p. 129), de 1885 até hoje, o comando das linhas de Santa Maria da ferrovia passou

por sete jurisdições: da União (1885-1898), da empresa belga Auxiliaire (1898-1911), da norte-americana Brazil

Railway Company (1911-1919), retorna a Auxiliaire (1919-1920), Governo Estadual: Viação Férrea do Rio

Grande do Sul (VFRGS – 1920-1959), Governo Federal: Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA – 1959-1996) e

América Latina Logística (ALL – a partir de 1997). 24

Padoin (1992) e Degrandi (2012) apontam que a COOPFER sucedeu o Economat e diversificou seus serviços,

estendendo-os por toda linha férrea. Em seu auge nos anos 50 chegou a possuir 20.752 associados, armazéns em

17 núcleos ferroviários, farmácias em 15, seções industriais de torrefação e moagem de café, fábrica de sabão, de

massas, de bolachas, açougue, matadouro, lenharia, padaria, confeitaria, tipografia, marcenaria, fundição, oficina

mecânica e de eletricidade, estofaria, fábricas de confecções. Na área da saúde a COOPFER criou a Casa de

Saúde, e na área educacional, além de convênios com diversas instituições em várias cidades, criou em 1922 a

Escola de Artes e Ofícios, posterior Ginásio Industrial Hugo Taylor (atual prédio do supermercado Carrefour),

Escola Santa Terezinha (1930), atual Colégio Estadual Manoel Ribas (Maneco), Escola Ruy Barbosa em Santa

Maria, Escolas Turmeiras e volantes ao longo das linhas, Clubes Agrícolas, etc.

55

explosões e incêndios de pontes, e, mesmo assim, sob forte repressão do Exército, a greve foi

vitoriosa, com a conquista de aumento salarial, a jornada diária de 8 horas e a demissão do Dr.

Cartwright (diretor da Viação Férrea), dentre outros pautas, tendo contribuído para a

estatização da ferrovia, em 1920. Em decorrência, as greves foram recursos de lutas utilizados

pelos ferroviários em diversos momentos, posteriormente, como em 1919, em 1936 (pelo

pagamento da gratificação proposta pelo Governo, em 1934, pela repartição de 30% dos

lucros anuais da VFRGS, pela jornada de 8 horas e por reajuste salarial), em 1945, 1951,

1952, 1954, a qual, de 5 mil ferroviários paralisou 4 mil, estendendo-se por diversas

cidades25

.

Ao mesmo tempo em que Santa Maria definiu-se enquanto centro ferroviário estadual,

isto impulsionou às Forças Armadas (Exército e Aeronáutica), se consolidando neste espaço

estratégico, reafirmando e potencializando a tradição militar que acompanha a cidade desde

sua fundação, de forma que esta tenha participado de diversos conflitos externos nos quais o

Brasil se envolveu, como a Guerra do Paraguai (1864-70), ou internos, como a Guerra do

Contestado (1912-16), além de promoverem o massacre na Greve de 1917 em Santa Maria.

Tudo isso fez com que hoje Santa Maria sediasse o segundo maior contingente militar do

País, por meio da implantação no decorrer das décadas, de quartéis e de colégios e hospitais

militares, seja pela instalação do Parque da Aviação Militar, em 1922, bem como do

aeródromo, em 1940, precursores da Base Área de Santa Maria (BASM), em 1970. Dessa

forma, pode-se afirmar que as Forças Armadas e suas atuais vinte subunidades espalhadas

pela cidade, influenciaram muito o crescimento urbano de Santa Maria26

, levando a criação de

novos bairros e vilas, bem como de ocupações irregulares e vazios urbanos.

Outro elemento importante relacionado à existência da ferrovia em Santa Maria foi o

fato de que, apesar de esta ser um elemento na esfera da circulação do capital, não

transportando apenas bens e mercadorias, mas, também, pessoas, com estas, toda uma gama

de informações, ideias e culturas diversas foram proporcionadas. Isto propiciou à Santa Maria

a existência de um ambiente político e cultural muito rico ao longo dos dois últimos séculos,

de forma a que as principais correntes ideológicas existentes no País, também, atuassem nesta

cidade, bem como os principais eventos que marcaram a política brasileira, repercutissem

entre seus cidadãos.

25

Para um estudo mais aprofundado sobre as greves ferroviárias em Santa Maria, ver os trabalhos de JOBIM

(2008, 2010, 2011) e CIGNACHI (2010). 26

Para uma análise mais específica sobre a relação entre as Forças Armadas e a urbanização santa-mariense, ver

a Dissertação de MACHADO (2008) – “A presença do Exército e da Aeronáutica na organização espacial Santa

Maria – RS”.

56

Ao passo em que a presença da ferrovia e das Forças Armadas contribuiu para o

fortalecimento das funções comerciais da cidade, elevando-a ao título de “capital regional”,

esta, também, constituiu-se enquanto um importante centro de drenagem da renda fundiária

local do campo para a cidade, devido aos proprietários rurais que, mesmo mantendo suas

fazendas, optaram por estabelecer moradia na cidade, transferindo parcela de sua renda e

abrindo negócios. A presença destes proprietários rurais citadinos ou absenteístas interferiu na

formação urbana de Santa Maria, bem como na definição de suas funções. Degrandi (2012)

baseado em Lílian Rocha (1993), aponta que

A hegemonia do capital fundiário do campo transformou-se em hegemonia do

capital fundiário urbano, exercida em diferentes atividades urbanas (comércio,

profissões liberais, indústria, política, etc.). Ao referir-se a estes múltiplos papéis

urbanos que os proprietários rurais passaram a representar, a autora (1993, p. 141)

afirma que, ao segrega-los para si, “passam a „representar‟ os interesses urbanos,

contudo, é dessa forma que preservam os seus interesses. (2012, p. 166).

Ademais, cabe destacar que a concentração das famílias dos proprietários rurais

citadinos manteve predominância espacial no centro e nos bairros imediatamente próximos a

ele, praticamente não se fazendo presente nos demais bairros (ROCHA, 1993, apud

SCHERER, 2008, p. 30). Isto, também, contribuiu para o fato que Pinheiro (2002, p. 30)

apontou, de que foi justamente nesta área central, que coincide com seu ponto de origem e se

tornou o principal centro comercial da cidade, no qual, historicamente, concentraram-se os

maiores investimentos em infraestrutura e valorização do espaço urbano ao longo do tempo.

Além da ferrovia e das Forças Armadas, que contribuíram para que Santa Maria se

firmasse tanto enquanto um lugar de passagem, como um polo de atração da população

regional, em grande parte proveniente do chamado êxodo rural, ou, concretamente, pela

expulsão do campo, os serviços educacionais existentes na cidade, também, reafirmaram estas

características. Possuindo um grande número de escolas da rede municipal, estadual e

particular, desde 1939, Santa Maria sedia a 8ª Delegacia de Educação do Rio Grande do Sul27

,

sendo que, já nos anos 1950 possuía o título de “Metrópole Escolar do Rio Grande do Sul”

(PADOIN, 1992, p. 28). Esta função educacional foi fortalecida com a criação da

Universidade de Santa Maria (USM), em 1960.

A criação de uma universidade pública em Santa Maria foi resultado não apenas da

agregação de escolas superiores pré-existentes na cidade, mas sim de uma série de

articulações políticas em nível estadual e nacional, criando as condições para que isto

27

Atual 8ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE).

57

acontecesse, movimentações estas promovidas pela Associação Santa-Mariense Pró-Ensino

Superior28

(ASPES), entidade criada em 1948, visando a incorporação da Faculdade de

Farmácia de Santa Maria (FFSM), faculdade privada, criada em 1931, à Universidade de

Porto Alegre, cuja direção se opunha a esta ideia.

A anexação foi garantida por meio de articulações da ASPES com políticos e outras

faculdades gaúchas, levando a transformação da UPA em Universidade do Rio Grande do Sul

(URGS), estabelecida na Constituição Estadual de 1947. A incorporação se deu de fato em

dezembro de 1948, através de projeto de lei da Assembleia Legislativa e assinado pelo

governador, levando a renúncia do reitor e de todo Conselho Universitário da UPA. Isto abriu

espaço para a criação da Faculdade de Medicina de Santa Maria, em 1954, a fim de absorver

os candidatos excedentes aprovados no vestibular de medicina da URGS.

Ao longo dos anos 1950, a ASPES, também, atuou no sentido de apoiar a criação de

outras faculdades em Santa Maria, as quais, posteriormente, compuseram os primeiros cursos

da USM. Em meados de 1960, iniciou-se a construção do Centro Politécnico de Santa Maria

em área recebida por doação no então Distrito de Camobi, o embrião que logo em seguida se

tornou o campus da USM, criada em dezembro de 1960, por lei sancionada pelo presidente

Juscelino Kubitschek, em seguida renomeada para Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM), em 1965, avançando assim, na tão almejada descentralização do Ensino Superior no

Brasil.

A implementação da UFSM, a partir dos anos 1960, marcou um novo processo de

atração populacional (fixa e flutuante) para a cidade, reforçando suas funções educacionais e

de serviços urbanos. Ao mesmo tempo, possibilitou o avanço da especulação imobiliária e

acarretou na aceleração da urbanização de Camobi, gerando uma forte valorização das áreas

adjacentes à universidade, e dos vazios urbanos entre esta e o centro da cidade, situação

melhor explicada por Degrandi:

No caso da UFSM, a implantação de seu campus em área ainda de produção rural e

de baixo valor imobiliário, oportunizou expressiva valorização dos imóveis de seu

entorno, a começar pela gleba da qual foram desmembrados e doados os hectares

que possibilitaram o início das obras. Na verdade, tal doação disfarçou um negócio,

que rendeu a seus proprietários grandes empreendimentos imobiliários, nas áreas

restantes. A consolidação do campus, ao precipitar a conurbação de Camobi com a

cidade, terminou por estender a valorização imobiliária para além do seu entorno,

beneficiando outros proprietários. (2012, p. 272).

28

A ASPES continuou atuando após a criação da UFSM, sendo que, posteriormente, teve seu nome alterado para

Fundação Educacional para o Desenvolvimento e o Aperfeiçoamento do Ensino (FUNDAE).

58

Além disto, para Botega, a criação da UFSM assinalou o princípio de um novo ciclo

de dinamização da economia local, ao passo em que a ferrovia iniciava a dar sinais de

decadência, em função da priorização do modelo rodoviário de transportes no País. Para este

autor

Ao longo de sua história, Santa Maria, teve dois grandes agentes dinamizadores de

sua economia, o primeiro foi a Rede Ferroviária, inaugurada em 1885, o segundo foi

a Universidade Federal de Santa Maria, inaugurada em 1960. A partir destes agentes

dinamizadores a cidade foi ganhando vida e a sua estrutura econômica e social foi

sendo moldada. Uma estrutura baseada majoritariamente no setor terciário

(comércio e prestação de serviços) ancorado no poder aquisitivo dos funcionários

públicos das mais variadas esferas (civis, militares, federal, estadual, municipal).

(2010, p. 86).

Estes fatores, que contribuíram para que Santa Maria se consolidasse enquanto um dos

mais importantes municípios do estado e recebesse diversos cognomes ao longo de sua

História, tais como “cidade militar”, “cidade ferroviária” e “cidade universitária”, fomentaram

o desenvolvimento do setor terciário e de uma classe média local, representada,

principalmente, pelos servidores públicos civis e militares.

Em sua tese, Degrandi (2012) observa estes processos e destaca a questão do histórico

comando de forças externas sobre Santa Maria, pois os seus usos principais (militar,

ferroviário, educacional e comercial29

), levaram a que seu desenvolvimento tenha sido

promovido, principalmente, “de fora, de longe e de cima”, através da instalação de entidades

federais, o que aliado ao fato de ser marcada como uma cidade de passagem, tornou-a muito

dependente de transferências de rendas (intergovernamentais e privadas). Além disto, o autor

aborda outros condicionantes gerados por estes entes federais, tais como o comando sobre

grande parte da oferta de emprego e das finanças do município e a própria seletividade e

fragmentação espacial do território gerado por estas áreas federais, espécies de “territórios

superpostos” ao do município – que não possui poder de gestão sobre estes –, ocorrendo a

valorização e a marginalização imobiliária de diversos locais em decorrência destas

instituições, a exemplo da valorização imobiliária de Camobi com a instalação do campus da

UFSM e da BASM, e da desvalorização e marginalização dos bairros ferroviários e do

entorno da Viação Férrea, a partir de sua decadência e privatização.

No entanto, este modelo de desenvolvimento não deu conta de garantir emprego, renda

e inclusão social para amplas parcelas da população local e migrante, oriunda do processo de

29

Na atualidade, inclusive o setor terciário é cada vez mais dirigido por forças externas, com a emergência de

redes comerciais regionais, nacionais e internacionais atuando na cidade nas últimas décadas.

59

expulsão rural estimulado pela implementação da Revolução Verde (apoiada por diversas

ações da UFSM, diga-se de passagem), bem como provenientes de outras cidades gaúchas,

pessoas estas que foram para Santa Maria em busca de emprego e melhores condições de

vida. A dimensão deste processo pode ser observada analisando a Tabela 2, destacando-se o

acelerado crescimento populacional que a cidade teve desde a década de 1950, resultando em

um desenvolvimento urbano desordenado e fortemente segregado.

Tabela 2 – Crescimento da população total, urbana e rural de Santa Maria entre 1940-2012

Ano População Total População Urbana População Rural

1940 75.596 41.688 – 55,40% 33.692 – 44,60%

1950 83.001 47.904 – 57,71% 33.097 – 42,29%

1960 120.971 85.014 – 70,27% 35.957 – 29,73%

1970 156.929 124.288 – 79,20% 32.641 – 20,80%

1980 181.685 154.619 – 85,10% 27.066 – 14,90%

1991 217.584 196.347 – 90,24% 25.237 – 9,76%

2000 243.392 230.464 – 94,69% 12.928 – 5,3%

2010 261.031 248.347 – 95,10% 12.684 – 4,9%

2012 263.662 - -

Fonte: Adaptado a partir de Figueiredo, 2010; Censo Demográfico 2010, IBGE e Estimativa da população

residente nos municípios brasileiros 2012, IBGE.

Comparando os dados da Tabela 2 com os da Tabela 1, podemos perceber que, em

relação ao conjunto do País, Santa Maria, já na década de 1940, atingiu um grau de

urbanização mais acentuado que a média nacional, índice este que o Brasil só alcançou nos

anos 1970. Os dados apontam, também, que, em um período de apenas sete décadas, a

população urbana de Santa Maria praticamente sextuplicou, ao passo que a população rural

reduziu-se progressivamente, quase 90% no período, observado tanto devido as migrações

campo-cidade, como pela emancipação de distritos. Analisando estes dados, Figueiredo e

Viero apontam que

O crescimento populacional está atrelado, por um lado, ao crescimento vegetativo, e,

por outro, aos movimentos migratórios, que se intensificaram, principalmente, a

partir da década de 60. Foi este crescimento populacional que provocou o processo

de expansão das áreas urbanizadas, especialmente em direção ao leste, em

decorrência da instalação da UFSM (1960) e da Base Aérea (1970) e, em direção ao

oeste, em função da criação do Distrito Industrial (1975). (FIGUEIREDO, 2001, p.

55 apud 2010, p. 126).

Neste sentido, podemos afirmar que a histórica vocação urbana de Santa Maria fez

com que esta se tornasse um pólo de atração de famílias do interior do estado em processo de

60

migração. O salto demográfico observado na cidade nas últimas décadas não se distribuiu de

forma planejada pelo território, mas sim de forma desordenada e excludente, reproduzindo

padrões de segregação social sobre o espaço urbano. Isto fez com que as ocupações

irregulares (espontâneas ou organizadas por movimentos sociais) de áreas sejam uma

constante na História do Município.

2.2 Ocupações Urbanas em Santa Maria

O ano de 1960 não foi marcado apenas pela fundação da UFSM, mas, também, de

acordo com os trabalhos consultados, pela realização da primeira ocupação irregular

espontânea na cidade, a Vila Nossa Senhora do Trabalho, na Região Norte, conhecida na

época como “Vila Matadouro”, pois lá havia o Matadouro Municipal (onde hoje fica a Escola

Estadual Marechal Rondon). Inicialmente, com apenas 4 famílias no campo do Matadouro, a

ocupação foi crescendo, chegando a mais de 1000 famílias no fim dos anos 1980, porém de

forma desordenada, com carência de infraestruturas e regularização fundiária (PINHEIRO,

2002).

Desde então, diversos processos de ocupação irregular do solo ocorreram nas

periferias de Santa Maria, contribuindo para a expansão não planejada da área urbana, e

deficitária em termos de infraestrutura básica e equipamentos urbanos. Segundo Urrutia

(2002), também contribuíram para a ampliação das áreas periféricas, com irregularidades

jurídicas, os loteamentos populares de iniciativa do poder público e a venda ilegal de lotes

particulares, que muitas vezes geraram a realização de novas ocupações nas adjacências.

Em relação às políticas habitacionais para a população de baixa renda em Santa Maria,

de acordo com os estudos de Pinheiro (2002) e Botega (2004, 2010), estas foram realizadas

inicialmente pela Companhia de Habitação do Rio Grande do Sul (COHAB-RS) e o Governo

Estadual. Estes empreendimentos foram feitos com recursos do BNH/SFH e executados pela

COHAB-RS: Cohab da Vila Kennedy (em 1967, com 116 unidades habitacionais) e Cohab

Salgado Filho (1968, 76 unidades), ambas localizadas na Zona Norte; Cohab Santa Marta

(1981, 872 unidades) e Cohab Passo da Ferreira (Tancredo Neves, em 1986, com 3166

unidades), localizadas na Zona Oeste30

; e a Cohab Fernando Ferrari (1984, 353 unidades), na

30

O fomento à moradia popular na Região Oeste se deu em decorrência da necessidade da alocação de mão-de-

obra próxima ao Distrito Industrial, de forma a que se constituíssem enquanto bairros operários. Porém, ante a

61

Zona Leste. Discutindo a questão da falta de conservação das praças, ruas e iluminação na

Cohab Santa Marta, o trabalho de Moura & Mello ressalta que

No caso das COHABs o governo federal atua apenas efetuando as construções das

casas das COHABs. Após a construção das casas, a conservação e melhoramento

das vias, das praças ou até mesmo as áreas verdes que o Conjunto Habitacional

possui, passa a ser compromisso do poder público municipal, que por sua vez, tende

a atender áreas habitadas por populações de renda mais elevada. (1994, p. 18).

Já por parte do poder municipal, os seguintes loteamentos populares foram feitos por

meio do programa do Governo Federal “Habitar Brasil”: Vila Conceição (1980), Vila

Renascença (1980), Vila Arco-Íris (1989) e o Loteamento Diácono João Luiz Pozzobom

(1994), sendo que “a maioria com inúmeros problemas de regularização fundiária,

deficiências na infra-estrutura e inexistência de projetos sociais” (PINHEIRO, 2002, p. 35).

No entanto, estes empreendimentos apenas amenizaram a demanda por moradia

popular, pois, como afirma Botega “não foram capazes de conter o déficit habitacional do

município” (2010, p. 83). Além disto, e ante ao fato de que as deficiências urbanas na cidade

não se restringiam a questão da moradia, nesta, também, foi implementado o Programa

Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (CURA), por meio do qual o BNH concedia

empréstimos às prefeituras para a realização de obras urbanas em áreas que dessem retorno

econômico, por meio de imposto territorial progressivo (ALBARELLO, 2012).

Em Santa Maria, foram implementados o Projeto Sinuelo (CURA I) e o Projeto

Minuano (CURA II), responsáveis pelas obras do Parque Itaimbé (inaugurada em 1982),

Praça Nonoai e Marechal Gomes Carneiro, Avenida Domingos de Almeida (atual Avenida

NS Dores), Avenida Gaspar Martins (atual Av. NS Medianeira), Ruas André Marques, Silva

Jardim, Venâncio Aires, Tuiuti, Pinheiro Machado, Fernando Ferrari, Tamanday, Euclides da

Cunha, Avenida Liberdade e Avenida Maurício Sirotsky Sobrinho. Com estes investimentos,

as propriedades próximas às “áreas CURA” tiveram seus valores e IPTUs aumentados, o que,

na prática, fomentou a especulação imobiliária e os reajustes dos aluguéis, empurrando para

as periferias os moradores que não tinham como arcar com o a crescente carga tributária. Em

seus estudos sobre o Programa CURA em Santa Maria, Albarello (2012) aponta que além do

endividamento do Município com estas obras, estas beneficiaram apenas o centro da cidade,

em detrimento das periferias, pois estas não dariam retorno aos recursos investidos. Aliás,

para os governantes da época, inclusive “calçar e iluminar todas as ruas seria um absurdo,

falta de êxito da tentativa de industrialização da cidade, esta zona se tornou foco de diversas ocupações nos anos

seguintes.

62

uma utopia”, conforme palavras do Prefeito Osvaldo Nascimento, em 1980, diante as

reivindicações das Associações Comunitárias (ALBARELLO, 2012, p. 1063).

As insuficiências na oferta de políticas habitacionais para a população de baixa renda,

aliado ao crescimento populacional e as difíceis condições econômicas e sociais vigentes,

estão na base do que motivou a realização de tantas ocupações urbanas em áreas públicas e

privadas em Santa Maria da década de 1960 para cá.

Acompanhando o ritmo da progressão demográfica verificada na cidade, bem como do

avanço dos processos de especulação imobiliária, as ocupações fizeram-se presentes em todas

as regiões da cidade, pois constituem uma das principais estratégias de sobrevivência da

população pobre. De acordo com levantamentos realizados por diversos trabalhos, Santa

Maria possui mais de 70 áreas de ocupação irregular, porém este número pode ser maior

(estima-se que sejam cerca de 100 áreas), pois segundo Prado (2010), a Prefeitura não conta

com uma base única de dados sobre estes locais. O Quadro 2 nos permite observar a relação,

ainda que possivelmente incompleta, de ocupações ocorridas na cidade desde 1960.

Áreas ocupadas de forma irregular em Santa Maria entre 1960-2012

Início Nome Bairro atual Região

1960 Vila Nossa Senhora do

Trabalho Salgado Filho Norte

1960 Vila Brigada Militar Atual Nossa Senhora de

Fátima Centro Urbano

1964 Vila Esperança Nossa Senhora Medianeira Centro Urbano

1966 Vila Bilibiu KM 3 Nordeste

1970 Vila Brasília Salgado Filho Norte

1970 Vila Bürger Itararé Nordeste

1970 Vila Nossa Senhora Aparecida Itararé Nordeste

1970 Vila Brasil

(Beco do Resbalo)31

Camobi Leste

1970 Vila Urlândia Urlândia Centro-Oeste

1972 Vila Santos Urlândia Centro-Oeste

1972 Vila Salgado Filho Salgado Filho Norte

1974 Vila Cerro Azul Chácara das Flores Norte

1974 Vila São Rafael e

Vila Itagiba Chácara das Flores Norte

1975 Vila Cerrito Cerrito, atual Diácono João

Luiz Pozzobon Centro-Leste

1976 Beco do Otávio Nossa Senhora do Rosário Centro Urbano

1976 Beco do Beijo Camobi Leste

31

Em 2004, os moradores da Vila Brasil foram realocados para o Loteamento Paróquia das Dores, na Vila

Maringá.

63

1976 Linha Velha de POA, atual

Rua Ary Nunes Tagarra Centro Centro Urbano

1976 Vila Renascença Patronato, hoje Renascença Oeste

1977 Vila Rossi, Rua Florianópolis

(área verde) Pinheiro Machado Oeste

1978 Vila Rossato Nossa Senhora das Dores Nordeste

1980 Vila Bela Vista Itararé Nordeste

1980 Vila São Serafim Pinheiro Machado Oeste

1980 Estrada da Picadinha Atual Boi Morto Oeste

1980 Vila Schirmer Presidente

João Goulart Nordeste

1980 Áreas ao redor da

Vila Schirmer

Presidente

João Goulart Nordeste

1980 Vila Severo Atual Lorenzi Sul

1980 Vila Cauduro Atual Boi Morto Oeste

1980 Montanha Russa Itararé Nordeste

1980 Área ao redor Tomazzetti Tomazzetti Sul

1980 Margens Vacacaí Presidente

João Goulart Nordeste

1982 Beco do Inter Patronato, atual Noal Centro-Oeste

1982 Vila Diácono

João Luiz Pozzobon

Cerrito, atual Diácono João

Luiz Pozzobon Centro-Leste

1982 Vila Jardim Camobi Leste

1982 Vila Pantaleão Patronato, atual Noal Centro-Oeste

1984 Vila Nossa Senhora da

Conceição Caturrita Norte

1986 Canários Itararé Nordeste

1986 Vila Floresta Atual Cerrito Centro-Leste

1986 Sargento Dorneles São José Centro-Leste

1988 Vila Lídia

(margem do arroio Cadena) Patronato, atual Noal Centro-Oeste

1989 Vila Arco-Íris (área verde) Patronato, atual Noal Centro-Oeste

1990 Vila Hípica e Vila Prado Juscelino Kubitschek Oeste

1990 Margens da Ferrovia Itararé Nordeste

1990 Vila Medianeira Nossa Senhora Medianeira Centro Urbano

1990 Vila Nonoai Nossa Senhora de Lourdes,

atual Nonoai Centro Urbano

1990 Vila Nova Presidente João Goulart Nordeste

1990 Passo dos Weber Chácara das Flores Norte

1990 Vila Portão Branco Caturrita Norte

1990 Vila Pires Itararé, atual Campestre do

Menino Deus Nordeste

1991 Vila Ecologia Pinheiro Machado Oeste

1991 Fazenda Santa Marta Juscelino Kubitschek, atual

Bairro Nova Santa Marta Oeste

1992 Vila Favarin KM 3 Nordeste

1993 Vila Aparício de Morais Camobi Leste

1993 Cohab Fernando Ferrari (área Camobi Leste

64

verde)

1997 Vila Presidente Vargas (área

verde) Pé de Plátano Centro-Leste

1998 Vila Lorenzi Atual Lorenzi Sul

1999 Vila Kennedy (área verde) Salgado Filho Norte

1999 Canaã Tancredo Neves Oeste

1999 Km2 Divina Providência Norte

1999 Parte da Vila Oliveira Passo D‟Areia Centro-Oeste

1999 Margens BR 287-Trecho 3,

Km 252, próximo à ULBRA Pinheiro Machado Oeste

2000 Vila Bela União Caturrita Norte

2000 Cohab Tancredo Neves (área

verde) Tancredo Neves Oeste

2000

Margens BR 287-Trecho 2,

Km 250, em frente ao bairro

Pinheiro Machado (2000) e

Cohab Santa Marta (2004)

Pinheiro Machado e Juscelino

Kubitschek Oeste

2001 Km3/Estação dos Ventos KM 3 Nordeste

2002 Margens BR 287-Trecho 1,

Km 245, perto da Urlândia32

Urlândia Centro-Oeste

2002 Gare Itararé Nordeste

2002 Área na Vila Jóquei Clube Juscelino Kubitschek Oeste

2012 Residencial Independência,

Vila Vitória Chácara das Flores Norte

- Portão Branco Caturrita Norte

- Vila Maringá Atual Diácono João Luiz

Pozzobon Centro-Leste

Quadro 2 – Ocupações irregulares no espaço urbano de Santa Maria, RS.

Fonte: Adaptado de Pinheiro (2004), Prado (2010), Pilar (2009), Lei Complementar nº 042, de 29/12/2006.

Todo este processo de expansão ilegal da cidade nas últimas décadas fez com que

Santa Maria, também, ficasse conhecida pela alcunha “Cidade das Invasões”, de forma que

hoje várias vilas e bairros tenham sido originadas por ocupações irregulares, muitas, no

entanto, ainda não regularizadas – na Figura 2 podemos observar a atual divisão urbana da

cidade, aprovada em 2006, evidenciando o quanto as ocupações se impuseram-na realidade

urbana, tornando-se parte da cidade oficial. No Anexo 3 deste trabalho (p. 157), podemos

conferir o mapa organizado por Prado (2010), o qual identifica a maioria das ocupações

irregulares no espaço urbano santa-mariense elencadas no Quadro 2.

32

Entre 2008 e 2009, os moradores desta ocupação foram realocados para o Loteamento Cipriano da Rocha, no

bairro Pinheiro Machado.

65

Iniciando-se nos anos 1960, o número de ocupações cresceu rapidamente ao longo das

décadas de 1970 a 1990, refletindo as dificuldades econômicas vigentes neste período em

todo País.

Figura 2 – Mapa da atual divisão urbana de Santa Maria

Fonte: LORENZONI, 2010, p. 16.

Estas ocupações, que são de dezenas, centenas e até milhares de pessoas, se deram

tanto em áreas públicas, como particulares, sendo que a maioria ocorreu de forma espontânea

(as famílias basicamente se instalam em uma área não habitada, autoconstroem suas moradias

e fazem “gatos” de água e luz), e uma parte foi previamente organizada por movimentos

sociais para a conquista e regularização de uma determinada área. Este processo fez com que

em 2002, 60% do território santa-mariense fosse constituído por ocupações irregulares

(BOTEGA, 2010, p. 91).

No levantamento realizado por Pinheiro (2004), destacam-se em áreas privadas os

loteamentos irregulares Bilibiu e Cerrito, bem como a ocupação do Beco do Otávio, da Jóquei

Clube e a mais recente na Vila Vitória. Já em áreas públicas, temos em área federal (áreas da

RFFSA) a Vila Bela Vista, rua dos Canários e a ocupação do Km3/Estação dos Ventos; a

ocupação da Fazenda Santa Marta em área estadual; e em diversas áreas municipais não

66

regularizadas: os reassentamentos Vila Esperança e Vila Nossa Senhora Aparecida, os

loteamentos Vila Brasília, Renascença, Lorenzi, Maringá e Cerro Azul, e as ocupações das

Vilas Nossa Senhora Aparecida, Brasil, Estrada da Picadinha, Vila Jardim, Lídia (margens do

Cadena), Ecologia, Aparício de Moraes, Km 2 (era de propriedade da RFFSA), Portão

Branco, Vila Itagiba, Oliveira, Canaã, Gare, e nas áreas verdes das Vilas Rossi, Arco-Íris,

Cohab Fernando Ferrari, Presidente Vargas, Kennedy e Cohab Tancredo Neves.

Em Santa Maria, a segregação social foi responsável por um forte processo de

expansão e adensamento da área urbana, que acompanhou os trilhos do trem, as vias de acesso

à cidade, as áreas institucionais, o percurso de rios e arroios, como o Vacacaí-Mirim, Cadena

e Cancela, sendo restringida apenas ao Norte pelo limite natural dos morros do Rebordo do

Planalto e pelas unidades militares a sudoeste e noroeste do município.

Contribuíram para o avanço da cidade clandestina, além das difíceis condições de vida

(desemprego, inflação, fome), a intensa especulação imobiliária promovida por empresas

imobiliárias, incorporadoras e construtoras, bem como pelo próprio poder público, que além

de insuficientes e equivocadas políticas públicas, historicamente atuou em prol dos interesses

destas empresas e dos segmentos mais capitalizados, privilegiando poucos bairros (a exemplo

das “áreas CURA”), em detrimento dos demais.

Conforme ficam mais caros os preços dos terrenos e moradias nas áreas centrais ou

providas de mais estrutura, a população mais pobre vai sendo cada vez mais empurrada para

as áreas periféricas, despojadas de atenção por parte dos poderes públicos e distantes dos

postos de trabalho e serviços coletivos. De acordo com Gohn, “a expansão das periferias

urbanas ao longo dos anos 1960 e 1970 dissociou completamente a relação casa-emprego,

moradia-trabalho” (1995, p. 116), afastando e dispersando os trabalhadores de seus ambientes

de trabalho e organização sindical, consumindo tempo e energia destes em longos

deslocamentos, de forma que “os transportes adquiriram uma centralidade nunca dantes

conhecida”, além de constituir-se enquanto um importante ramo de acumulação do capital.

Este processo ocorreu intensamente em Santa Maria, sendo responsável por uma forte

imobilidade urbana, devido a pouca disponibilidade de linhas para as áreas periféricas e as

altas tarifas do transporte urbano. Cabe destacar que isto se deu sob a conivência do poder

municipal, pois mesmo após a Constituição de 1988 definir a obrigatoriedade de licitação para

a concessão de serviços públicos, “há mais de quarenta anos os contratos com as empresas de

transporte de Santa Maria são simplesmente renovados” (Frente de Mobilização pelo

Transporte Público, 2011, p. 3), beneficiando assim as mesmas famílias que sempre

67

controlaram o sistema de transporte coletivo público na cidade, auferindo enormes lucros a

estas.

A valorização diferenciada do espaço levou a população pobre a encontrar na prática

da ocupação de espaços não habitados a autoconstrução de suas moradias. Os estudos de

Schio (2010) e Corrêa (2013) nos permitem afirmar q a resposta do poder público municipal

frente a problemática habitacional e o elevado número de ocupações ocorridas na cidade, se

deu, principalmente, através de políticas de higienização social, levadas a cabo nas remoções

de populações periféricas, para áreas ainda mais periféricas, visando assim, apenas “esconder

o problema”, porém não resolvê-lo efetivamente.

Pesquisando sobre organização da Associação Comunitária na Renascença, Schio

(2010, p. 23) aponta que “muitos dos aglomerados que estão às margens da cidade foram

constituídos através da intervenção do poder público”, sendo este os casos dos loteamentos

financiados pelo Programa Habitar Brasil: Vila Conceição, Vila Arco-Íris, Renascença e

Diácono João Luiz Pozzobon.

Dihony Corrêa (2013), em seu trabalho, retoma a memória da transferência dos

moradores das antigas Vila das Pulgas (efetivada com o uso de caminhões do Exército), Vila

das Latas e Vila Caranguejo, para lotes sem infraestrutura (moradia, água, eletricidade, etc.),

respectivamente, nas atuais Vila Lídia (antigo aterro sanitário), Vila Arco-Íris e na época Vila

Renascença, tendo seus antigos territórios modernizados, remodelados e valorizados, sendo

estes as atuais Avenida Liberdade, Avenida Dois de Novembro e Avenida Maurício Sirotsky

Sobrinho, que além de moradias, edifícios e estabelecimentos comerciais, passaram a sediar o

Hotel de Trânsito da 3ª Divisão do Exército na Avenida Liberdade, a sede da empresa de

transporte urbano Medianeira e a sede regional da RBS TV, cujo terreno a esta foi doado, na

Avenida Maurício Sirotsky Sobrinho. Este processo, por si só, demonstra qual lado o poder

público historicamente beneficia em Santa Maria.

Também, passaram por realocação os moradores da Vila Brasil (Beco do Resbalo),

que foram transferidos em 2004 ao Loteamento Paróquia das Dores, localizado na Vila

Maringá, junto a famílias que viviam em áreas de risco na Vila Lídia, Renascença, Oliveira e

Cerrito, processo este que não se deu sem conflitos e o próprio retorno de uma parte das

famílias para as áreas de risco onde viviam (BAIRROS, 2006; ZANATTA, 2008).

O fato de muitas vezes as ocupações urbanas ocorrerem de forma espontânea em áreas

de proteção permanente inseguras para construção de moradias pode gerar diversos impactos

68

ambientais, assim como danos à saúde dos moradores, devido às ocupações em áreas

suscetíveis a riscos e em locais desprovidos de saneamento básico.

Estudando as principais ocupações humanas em áreas de risco ambiental em Santa

Maria, Nascimento & Souza (2010) e Avila & Robaina (2012) destacam que as áreas que

mais sofrem com movimentos de massas estão localizadas nas encostas do Planalto Sul

Riograndense, como a Vila Bilibiu e a Vila Bela Vista (na encosta oeste do Morro Cechela).

Já as comunidades mais afetadas por inundações, alagamentos e erosões de barrancas

(principalmente em dias chuvosos) estão situadas nas margens do Arroio Cadena, como a Vila

Oliveira, Vila Lídia, Renascença e Urlândia. A falta de coleta de lixo em muitos locais

contribui para seu acúmulo, de forma a agravar a poluição e os danos ambientais, assim como

à saúde da população. Toda a poluição no rio Vacacaí-Mirim, por exemplo, vai parar na

barragem do DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), responsável pelo

abastecimento de 40% da água utilizada pelos santa-marienses.

De acordo com o Plano Municipal de Redução de Riscos de 2006, Santa Maria conta

com 22 áreas de ocupação humana sujeitas a riscos, sendo estas:

Risco de

Alagamento e

Inundação

Risco de

Deslizamento e

Solapamento

Risco simultâneo

Alagamento/Inundação e

Deslizamento/Solapamento

Margens de BR

Km 2 Vila Bela Vista Vila Salgado Filho BR 287, km 245

(já realocados)

Km 3 Montanha Russa Vila Urlândia BR 287, km 250

Vila Cerro Azul Margens da Ferrovia Vila Favarin BR 287, km 252

Vila Ecologia Passo dos Weber Vila Medianeira

Vila Renascença Vila Arco-Íris Vila Schirmer

Vila Santos Vila Oliveira

Vila Nonoai

Vila Bilibiu

Quadro 3 – Áreas ocupadas suscetíveis a riscos no espaço urbano de Santa Maria, RS.

Fonte: Prado (2010, p. 75).

Sucede-se, assim, uma mescla entre vulnerabilidade social e ambiental, determinadas

pela lógica da segregação sócio-territorial, que por sua vez é produto de um modelo de

sociedade assentado na injustiça social. Sendo a injustiça social a raiz da violência no meio

rural e urbano, percebe-se que o medo crescente que acomete a população nos médios e

grandes centros não é um fenômeno casual e desconexo a problemáticas sociais geradas pelo

modo de produção capitalista.

69

Paralelo a questão da segregação imposta às pessoas pobres, Prado (2010) aponta em

seu estudo que é cada vez mais notório os processos de auto-segregação urbana por parte dos

estratos mais abastados da sociedade, que através de condomínios horizontais fechados

procuram isolar suas famílias em espaços amplos, elitizados e repletos de infraestrutura, áreas

de lazer e segurança, porém privados.

Este novo modelo de segregação espacial, estimulado por um marketing intenso, pela

cultura do medo da criminalidade e o culto ao espaço privado, corrobora para a

desvalorização dos espaços públicos de convivência, como ruas, praças e áreas verdes, já não

mais frequentados pelos setores que concentram maior poder financeiro, pois agora possuem

seus próprios espaços de recreação, atrás dos muros e cercas elétricas de seus “enclaves

fortificados” de segurança privada.

Em Santa Maria, nas últimas duas décadas, vêm ampliando-se o número de

condomínios horizontais fechados, estando estes localizados, principalmente, entre a área

central e leste da cidade, porém tem se aumentado a presença destes em bairros periféricos,

reduzindo assim a dicotomia centro-periferia em termos de segregação territorial. Entretanto,

mesmo que haja uma maior proximidade geográfica entre ricos e pobres, o distanciamento

social entre estes ainda é enorme. De acordo com levantamento realizado por Prado (2010),

entre 1989 e 2009, foram criados 18 condomínios horizontais fechados em Santa Maria,

conforme pode ser observado no Quadro 4:

Condomínios Horizontais Fechados de 1989 a 2009 em Santa Maria, RS

Ano de

Aprovação Nome Bairro Região Nº Lotes Proprietário

1989 Vila Verde Camobi Leste Dados não

disponíveis

Dado não

disponível

1992 Morada do

Lago

Nossa

Senhora das

Dores

Centro

Urbano 93

José Mariano

Ravanelo

1992 Novo

Horizonte Camobi Leste 27 Dalci Pusch

1992 Cópis Camobi Leste 7 Antonio João

Pegorato

1996 Arco Verde Boi Morto Oeste 720 Kraft Haus Eng. e

Construções LTDA.

1996 Sociedade de

Medicina São José

Centro-

Leste 133 Construtora Lote

1998 Della Valle Urlândia Sul 13 Olindo Dalla Valle

2000 Villagio Di

Veneto Cerrito

Centro-

Leste 41

Gilseu Antonio

Bevilaqua

2003 Greenwood

Vilage Cerrito

Centro-

Leste 17

Marcelo Simão de

Lima

70

2004 Montes

Verdes

Nossa

Senhora do

Perpétuo

Socorro

Norte 20 Mário Ferreira dos

Santos

2008 Terra Nova 2 Cerrito Centro-

Leste

Dados não

disponíveis

Terra Nova

Rodobens

incorporadora

imobiliária S/A.

2008 Terra Nova 3 Cerrito Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem)

2008 Terra Nova 4 Cerrito Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem)

2009 Terra Nova 1 Cerrito Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem)

2009 Terra Nova 5

D.J.L.

Pozzobon,

Cerrito

Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem)

2009 Ughini

Providence São José

Centro-

Leste 118

Ughini

Empreendimentos

Imobiliários LTDA.

2009 Terra Nova 6 D.J.L.

Pozzobon

Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem anteriores)

2009 Terra Nova 7 D.J.L.

Pozzobon

Centro-

Leste

Dados não

disponíveis (idem anteriores)

Quadro 4 – Condomínios horizontais fechados de 1989 a 2009, em Santa Maria, RS

Fonte: Prado (2010, p. 83-84).

Frente a este cenário, mostra-se cada vez mais evidente o crescente contraste entre as

áreas residenciais elitizadas e os espaços de moradia popular precários no contexto urbano

santa-mariense, revelando assim a forte disparidade social existente nesta cidade.

Em contrapartida, e enquanto expressões destas contradições do modo de produção

capitalista na estruturação do meio urbano, organizam-se movimentos sociais populares para

pressionar o Estado e a sociedade pela resolução de suas demandas.

Mais especificamente em torno da questão urbana e habitacional em Santa Maria é que

foi criado o MNLM, um movimento social urbano que visa aglutinar os setores populares

para a luta pela Reforma Urbana, a partir de suas demandas concretas e imediatas. A primeira

grande ação do MNLM na cidade foi a organização de famílias para a ocupação de área da

antiga Fazenda Santa Marta, em fins de 1991, consolidando-se como a maior ocupação urbana

de área pública no Rio Grande do Sul, processo este que iremos abordar no próximo capítulo.

71

3 – O MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA E A

LUTA PELA REFORMA URBANA NA NOVA SANTA MARTA

“Com luta, com garra, a casa sai na marra!”

MNLM

Ao considerarmos o processo de formação urbana brasileira e santa-mariense, nos fica

nítido como se dá, na prática social, a produção do espaço comandada pela dinâmica

territorial decorrente da lógica de estruturação do capitalismo sob as cidades, compreendida

pelos grandes empresários não como espaço de bem viver em comunidade, mas sim enquanto

fonte de lucros e exploração da classe trabalhadora.

Sendo o solo urbano e a própria moradia, mercadorias de difícil acesso para amplas

parcelas da população, explica-se os porquês das ocupações de terras urbanas terem se

tornado parte inerente do modelo de urbanização vigente no País, representando “mais a regra

do que a exceção das formas de provisão de habitação” (Maricato, 1997, apud Silva, 2004, p.

28). Muitos conflitos e desocupações33

ocorreram neste processo, porém parte das ocupações

realizadas de forma espontânea ou organizada, principalmente, em áreas públicas, tiveram de

ser consentidas pelos poderes públicos, ante a falta de alternativas e políticas públicas para

moradia para estas famílias e a sua impossibilidade em serem incluídas no mercado

habitacional privado. Entretanto, não é a toa que foram consentidas, como afirma Kowarick

ao apontar que

A periferia como fórmula de reproduzir nas cidades a força de trabalho é

conseqüência direta do tipo de desenvolvimento econômico que se processou na

sociedade brasileira das últimas décadas. Possibilitou, de um lado, altas taxas de

exploração de trabalho e, de outro, forjou formas espoliativas que se dão no nível da

própria condição urbana de existência a que foi submetida a classe trabalhadora.

(1993, p.42 e 44).

Assim, podemos entender que, para a cidade capitalista, a pobreza e a miséria não são

disfunções de seu modelo de desenvolvimento, mas sim elementos funcionais e necessários a

este e a concentração privada de riquezas que almeja. Isto levou as políticas habitacionais

33

Ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, em Santa Maria, ocorreram as seguintes desocupações: na

Rua Fernandes Veira (área da RFFSA) em 1992; na Rua Visconde de Pelotas com Aristide Lobo (área

particular), em 1995; na Rua das Orquídeas (4 lotes particulares), em 1996; no Km2 (área da RFFSA), em 1995;

no Km 3 (área da RFFSA), em 1997 e 2000 e; na Vila Santos (área particular), em 2001. (PINHEIRO, 2002, p.

87).

72

brasileiras a, historicamente, estarem submetidas à lógica de mercado, não sanando o déficit

habitacional, o que resultou nas ocupações de áreas ociosas.

As ocupações urbanas são uma das principais facetas da segregação urbana e revelam

o descaso dos poderes públicos para com a demanda social por moradia. Em Santa Maria não

é diferente. A percepção deste fenômeno nesta cidade já era percebida por Azevedo, em 1992,

quando este afirmou que “o ritmo de favelização da classe trabalhadora santa-mariense está

muito acelerado, enquanto que a busca de soluções por parte das autoridades competentes,

vem se desenvolvendo lentamente” (AZEVEDO, 1992, p. 55).

Tudo isto fez com que, em contraste com a cidade legal, a cidade real de Santa Maria

tenha crescido muito nas últimas décadas, através de ocupações irregulares, expandindo o

perímetro considerado urbano sobre áreas antes rurais, ainda que sem a infraestrutura

necessária, conforme destaca Urrutia:

Os migrantes da região ou população carente amontoam-se na periferia e têm de

buscar suas próprias soluções já que o Estado ou os chamados poderes públicos não

os apoiam, uma vez que a ação estatal volta-se mais para atender aos interesses das

empresas. Em função disso, surgem os “invasores” de terrenos ociosos, ou áreas

verdes, que são uma das únicas saídas encontradas por essas pessoas para construir

suas moradias. (2002, p. 10-11).

O leitor atento, certamente, já percebeu a preferência pelo uso do termo “ocupação” do

que “invasão” nesta monografia. Esta escolha, que não deixa de ser uma opção política, se dá

basicamente pelo fato de que apesar da palavra “invasão” ser popularmente mais utilizada

pelos santa-marienses, ela remete a uma noção de entrada deslegitima e violenta em alguma

área, retirando a força quem ali estivesse, o que não reflete a realidade dos fatos, pois

geralmente as ocupações organizadas ou espontâneas se dão em áreas não habitadas e não

utilizadas, não ocorrendo nenhuma violência no ato de entrada e na instalação das famílias –

exceto a violência que estas famílias já sofrem em decorrência da exclusão social, o que as

leva a ter de ocupar algum lugar para viver, afinal, ninguém ocupa por opção ou prazer, mas

sim por falta de opções e oportunidades em suas vidas. Desta maneira, o termo ocupação

mostra-se mais adequado, pois expressa um processo de resistência à exclusão social, mesmo

que talvez seja inconsciente por parte de quem o protagonizou, ao ocupar uma área que não

cumpria com sua função social. Neste diapasão, Santos, citada por Scherer, apresenta uma

distinção mais completa entre estes termos, ao destacar que

não é simplesmente semântica. No uso do termo invasão estão implícitas a

ilegalidade e a violência da ação: invadir a privacidade ou a propriedade de outrem.

73

Trata-se de uma ação ilegítima. O termo ocupação relaciona-se com a conquista de

um direito: ocupa-se o que é de direito. Aquilo que em algum momento, do passado

ou do presente foi usurpado de um grupo ou classe social, mesmo que não tenha sido

“diretamente” usurpado. Mas a desigualdade social, que também significa

desigualdade de oportunidades, a exploração e a espoliação impediram que esses

cidadãos mais pobres tivessem acesso a propriedade da terra ou a moradia. (2008, p.

132 apud 2010, p. 7).

No modo de produção capitalista, a privatização dos meios de vida está na base das

contradições entre as classes sociais, gerando a luta pelo espaço e por melhores condições de

vida, que na cidade se dá entre os especuladores imobiliários e os trabalhadores (formais,

informais e desempregados) em busca de um lugar para viver. Destas contradições, podem

emergir processos de resistência e lutas sociais protagonizadas pelos setores populares

organizados, construindo assim movimentos sociais, como explica Botega,

A partir desta relação dialética ocorrida entre a contradição estrutural em que se

inserem os serviços urbanos colocados sob a lógica da “cidade do capital”, e a

reação das classes populares na luta pelo “direito à cidade”, é que devemos entender

a formação dos movimentos populares urbanos. (2004, p. 60).

Em Santa Maria, mesmo que a maioria das ocupações urbanas tenham ocorrido de

maneira espontânea, sem uma organização popular prévia (o que fez com que várias

ocupações crescessem de forma desordenada conforme somavam-se mais famílias), em um

segundo momento, muitas vezes, deu-se a organização de seus moradores para pleitear acesso

a rede de água, a eletricidade, ao saneamento, as linhas de ônibus, a regularização fundiária e

aos demais serviços públicos e equipamentos urbanos, vindo a constituir Associações

Comunitárias integrantes da União das Associações Comunitárias (UAC), fundada em 1979,

para unificar as lutas das associações locais. Assim, como movimentos ou outras formas de

organização social. Um exemplo importante de organização posterior à ocupação foi a dos

moradores da inicialmente chamada “Vila Invasão”, próximo aos trilhos do trem em Camobi,

hoje Vila Jardim, quando, em 06/06/1983, ocuparam e interromperam a sessão da Câmara de

Vereadores para denunciar a situação em que viviam e a repressão policial sofrida, cobrando

da Prefeitura a negociação da área com a RFFSA, tendo sido vitoriosos em suas demandas

após esta manifestação (PINHEIRO, 2002, p. 60).

Em 1983, ocorreu outra ocupação pautando moradia em Camobi. Foi a ocupação do

Bloco 15 da Casa do Estudante Universitário II (CEU II), no campus da UFSM, em

09/03/1983, o qual era um Bloco ainda em estágio de “escombros” inacabados – até 1983 a

CEU II, inaugurada em 1968, era composta apenas pelos blocos 11 ao 14.

74

As moradias estudantis da UFSM abrigam uma parcela da população flutuante de

baixa renda que vem a Santa Maria em busca de formação profissional e não possui condições

de se manter pagando aluguel, necessitando do auxílio do programa de permanência estudantil

da Instituição, a fim de terem garantido o direito à educação, o que fez com que a História da

Assistência Estudantil e das residências estudantis da UFSM sejam marcadas por muitas lutas

e conquistas. Na ocasião, os estudantes adentraram e acamparam no Bloco, arrumando a

infraestrutura mínima para torná-lo habitável (limpando, fazendo “gatos” de água e luz, etc.).

Mesmo sob ameaças de punição por parte da Reitoria, os estudantes resistiram e

permaneceram por cinco meses acampados e mobilizados, até que a reforma do Bloco fosse

aprovada.

Além desta ocupação, na CEU II, também, ocorreram a ocupação das mulheres, em

1979, em um apartamento (até então a Casa era apenas masculina), a ocupação do Bloco 25,

em 1987, pela entrega de suas chaves (desocupada por 80 policiais) e a ocupação da União

Universitária, em 1988, para se tornar alojamento provisório (SILVEIRA, 2008). A ocupação

mais recente, ocorrida na CEU II, foi a do Bloco 35, em 2011, pela entrega de suas chaves.

Podemos afirmar que a luta pelas moradias estudantis, também, contribui com a luta

pela Reforma Urbana, pois reduz a demanda sobre o mercado imobiliário local e a

necessidade de transporte público e, inclusive, pelo fato de que diversos estudantes,

moradores das CEUs, na condição de pesquisadores, extensionistas e/ou militantes, também,

se somam nas lutas em defesa de um novo modelo de urbanização.

3.1 O MNLM e a luta pelo direito à cidade em Santa Maria

Conforme a implementação da agenda neoliberal no País, foi se tornando mais aguda a

exclusão e as contradições entre as classes, ao privilegiar a substituição do Estado pelo livre

mercado. Sendo assim, “nos anos 90, no espaço urbano, as desigualdades sociais aumentaram,

aumentando o conflito” (SILVA, 2004, p. 22) nas cidades. Foi nesse contexto que nasceram

movimentos como a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), em 1989, o MNLM, em

1990, a Central dos Movimentos Populares (CMP), em 1993, que junto com a CONAM,

constituem alguns dos principais movimentos, em nível nacional, que passaram a pautar a

questão da moradia digna e um novo modelo de urbanização para o País, em consonância com

os princípios da Reforma Urbana.

75

Desta maneira, o MNLM é um movimento social popular proveniente da questão

urbana brasileira. Fundado com representantes de 13 estados, reunidos em Belo Horizonte, em

julho de 1990, durante o I Encontro Nacional de Unificação dos Movimentos pela Moradia, o

MNLM originou-se das necessidades de um amplo contingente de pessoas no que diz respeito

ao direito à cidade em suas diversas esferas (habitação regularizada, saneamento básico,

trabalho, saúde, educação, mobilidade urbana, gestão democrática das cidades, etc.),

atualmente, estando presente em 18 estados brasileiros, sendo organizado, em Santa Maria,

desde o início dos anos 1990.

Os movimentos sociais são, para Gohn, “ações sociais coletivas de caráter sócio-

político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas

demandas” (2003, p. 13), adotando diferentes táticas e estratégias. Logo, os movimentos

sociais não são necessariamente “de esquerda”, havendo inclusive movimentos políticos e

sociais conservadores e reacionários. Já o MNLM identifica-se com aquilo que Gohn define

como “movimentos sociais progressistas”, quais sejam, aqueles que atuam segundo uma

agenda emancipatória, realizando diagnósticos sobre a realidade social e construindo

propostas, com vistas a articular ações coletivas que atuem como resistência a exclusão e

lutem pela inclusão social.

Sendo organizado desde o início da década de 1990, o Movimento construiu no

decorrer dos anos uma série de lutas e atividades em prol de um conjunto de bandeiras

específicas, que articuladas, conformam a proposta da Reforma Urbana, visando garantir

mudanças estruturais no modelo de urbanização vigente e acesso a direitos sociais básicos, a

promoção da cidadania e uma melhor qualidade de vida para a população mais pobre,

objetivando um projeto de transformação social.

Ao defender um projeto transformador, alicerçado em demandas fundamentais da

classe trabalhadora, o movimento social popular geralmente assume um caráter contra-

hegemônico ao se chocar com os interesses dos detentores do poder, as normas e estruturas da

sociedade vigente.

Este atrito, com as estruturas vigentes, se dá com mais força quando um movimento

atinge diretamente a questão da propriedade, pública e privada, pautando a sua socialização e

o cumprimento de sua função social. Gohn (1995) aponta que, ao longo dos anos 1980, uma

década marcada por intensas lutas sociais pelo País, nos campos e cidades, ocorreram diversas

ocupações urbanas, processo este que culminou na retomada das lutas pela Reforma Urbana e

76

na criação de movimentos populares urbanos, como o MNLM, que materializou-se a partir de

um conjunto de ocupações.

Inspirado, também, na metodologia de lutas do MST e possuindo uma forte ligação

com este Movimento, o MNLM assumiu como práxis de luta e pressão as ocupações de áreas

urbanas e de prédios abandonados, sejam públicos ou privados. Desta maneira, se, antes as

ocupações eram realizadas de forma espontânea e independente por famílias, agora, este

processo passou a ser organizado, planejado e construído coletivamente.

Em relação às estratégias para realização de ocupações, segundo Bolzan (2002) e

Pinheiro (2002), estas passam pelo seguinte planejamento básico:

– Fazer um levantamento do imóvel (topográfico e procedência);

– Cadastrar os futuros ocupantes;

– Fazer reuniões preparatórias;

– Definir horário único de entrada na área;

– Garantir o transporte do material de infraestrutura e dos ocupantes;

– Fazer o registro da ocupação (fotos, filmagens, relatórios);

– Fazer uma atividade cultural ou religiosa simultânea a entrada na área.

O fomento ao cooperativismo, também, foi bastante estimulado pelo Movimento, em

nível nacional, seja através da constituição de cooperativas habitacionais para a produção

social de moradias em regime de mutirão, seja para a geração de trabalho e renda, com a

criação de cooperativas e associações de catadores e selecionadores de materiais recicláveis,

dentre outras iniciativas no intuito de viabilizar economicamente a vida de parte dos

moradores das ocupações, dado o desemprego vigente na década de 1990.

A organização do Movimento se dá basicamente através da constituição de

coordenações municipais, estaduais e nacional, definidas em seus respectivos encontros

(municipais, estaduais e nacional). No Rio Grande do Sul, o MNLM começou a se estruturar a

partir do início de 1990, com a realização de reuniões em Porto Alegre, tendo como

orientação a discussão da problemática habitacional e a escolha de delegados ao I Encontro

Nacional, sendo que, em 1991, no II Encontro Estadual, contou-se com a participação de 60

delegados de diversos municípios.

Abordando a forma de organização do MNLM, Cristiano Schumacher nos conta um

pouco sobre seu funcionamento e limitações:

Nas cidades o movimento tem uma organização um pouco diferente de uma cidade

para outra, tem algumas cidades que mantém essa coisa de coordenação municipal

77

mais atuante, outras cidades tem os núcleos nas próprias comunidades onde nós

somos do movimento. (...), como o movimento não se organiza na esfera da

produção as pessoas se mantem muito mais tempo organizadas enquanto elas tão

resolvendo seus problemas de território, de moradia, de escola, de saúde na volta,

quando essas condições vão melhorando as pessoas tendem a se afastar, pelo menos

do cotidiano do movimento. (ENTREVISTA realizada em 11/02/2013).

De acordo com Bolzan (2002) e Pinheiro (2002), desde sua fundação, o MNLM possui

dez princípios e bandeiras de lutas, sendo estes:

1 – Lutar contra a especulação imobiliária nas ocupações: é necessário combater a

venda de lotes por grileiros, através de cadastro e “fiscalização” por parte dos ocupantes;

2 – Manter espaços de politização dos ocupantes, propiciando discussões que

contribuam para o resgate da autoestima e a reconstrução da cidadania;

3 – Garantir espaços de participação dos ocupantes nas decisões através de estruturas

coletivas (comissões), com o objetivo de formar novas lideranças;

4 – Ressaltar a importância da preservação do meio ambiente, há uma preocupação do

MNLM de não realização de ocupações em áreas de preservação ambiental, como margens de

recursos hídricos, encostas de morros, além de conservar as áreas ocupadas;

5 – Introduzir o debate sobre equidade de gênero, sobre etnia e geração;

6 – Buscar soluções para as questões relacionadas à saúde, educação e saneamento;

7 – Organizar a ocupação, visando um planejamento urbanístico, evitando a

favelização, buscando parceiros para a elaboração de projetos, além de não permitir a

construção de casas de alvenaria, facilitando a regularização futura;

8 – Buscar meios para viabilizar a geração de renda para os ocupantes através de

cursos de capacitação e incentivo a formação de grupos cooperativados com recursos

públicos;

9 – Manter a mobilização permanente para pressionar por recursos públicos para

viabilizar a infraestrutura;

10 – Buscar parcerias em todos os momentos, na área de assessoria jurídica, assessoria

técnica na construção de moradias e na elaboração de projetos sociais.

Compondo o FNRU desde sua fundação, o MNLM é uma das entidades

coordenadoras desta rede de articulação dos movimentos sociais urbanos brasileiros,

procurando construir, na base, as campanhas e atividades definidas no Fórum. O MNLM, por

exemplo, “foi um dos coordenadores nacionais da coleta de 850 mil assinaturas, com o

objetivo de instituir o primeiro Projeto de Lei de iniciativa popular instituindo a criação do

78

Fundo e do Conselho Nacional de Moradia Popular34

” (BOLZAN, 2002, p. 48). Todos estes

processos de lutas e pressões sobre os órgãos institucionais foram fundamentais para a

aprovação da Lei de Desenvolvimento Urbano, discutida desde a década de 1980 e aprovada

apenas em 2001, sob a forma do Estatuto da Cidade35

, importante instrumento de regulação

urbanística, o qual, infelizmente, vêm sendo sistematicamente desrespeitado na maioria das

cidades brasileiras.

Possuindo a compreensão de que a problemática urbana e habitacional não será

resolvida apenas com a garantia de moradias populares, mas sim com mudanças estruturais no

modelo econômico e de desenvolvimento das cidades, atuando, assim, na raiz das causas dos

problemas sociais urbanos e não apenas em suas consequências, o MNLM e o FNRU

defendem a efetivação de uma verdadeira Reforma Urbana no País. Segundo o MNLM-

Brasil, citado por Silva:

A Reforma Urbana está baseada num novo modelo de sistema econômico

implementado sobre a terra. Esse novo modelo de bairros, assentamentos humanos e

comunidades apontam à solidariedade e valores humanos, onde os espaços são

coletivos, a terra é comunitária e todos estejam garantidos com infra-estrutura para o

comércio solidário, para as fábricas cooperativadas. Isso irá garantir a geração de

trabalho e interação campo e a cidade, fortalecendo a Reforma Agrária.

(MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA PELA MORADIA – BRASIL, 2003, apud

2004, p. 30-31).

A Reforma Urbana só se tornará possível com a efetiva implementação do princípio da

função social da propriedade, apresentado por Silva (2008) como a submissão do direito de

propriedade a um interesse coletivo, de forma que se o proprietário não cumpre ou cumpre

mal esta função, se não a cultiva, se deixa que sua propriedade se arruíne ou a mantenha

enquanto objeto de especulação financeira, tornando legítima a intervenção do poder público

para compeli-lo ao cumprimento de sua função social, assegurando a utilização desta riqueza,

conforme seu destino. Diversos instrumentos podem ser utilizados para isto, como o IPTU

progressivo, a usucapião coletiva, a desapropriação com pagamento em títulos de dívida

pública, etc.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, e abordando a questão da função social da

cidade como um todo, Silva & Saule Jr. abordam esta questão sob o seguinte viés:

34

Projeto este que só veio a ser aprovado em 2005, através da Lei 11.124/05, a qual institui o Sistema, o Fundo e

o Conselho Gestor de Habitação de Interesse Social no Brasil. 35

Estatuto da Cidade – Lei 10.257, aprovada em julho de 2001, regulamentando o capítulo de política urbana

(artigos 182 e 183) da Constituição Federal de 1988.

79

As cidades passam a cumprir a sua função social quando a justiça social e as

condições de vida urbana dignas forem asseguradas pelos direitos urbanos. Estes

englobam não só o acesso de todos os cidadãos aos equipamentos e serviços básicos,

como moradia, transporte público saneamento, energia elétrica, iluminação pública,

comunicação, cultura, educação, saúde, lazer e segurança, etc., bem como o acesso à

gestão democrática das cidades e à preservação do patrimônio ambiental e cultural.

(1993, p. 23 apud Silva, 2004, p. 31).

Todo este conjunto de propostas que compõem a bandeira da Reforma Urbana, e que

são interdependentes entre si e com os demais Direitos Humanos e Sociais, visa garantir a

efetivação do Direito à Cidade, conforme formulado por Henri Lefebvre:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: à liberdade, à

individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à

atividade participante) e ao direito à apropriação (bem distinto do direito à

propriedade) estão implicados no direito à cidade. (2008, p. 134 apud LOBO Jr.,

2010, p. 2).

Com vistas a acumular forças para consecução destes objetivos, nas últimas duas

décadas, muitas lutas, debates e ocupações foram realizadas com o apoio do MNLM na

cidade de Santa Maria. De acordo com Sandra Feltrin, uma das fundadoras do MNLM na

cidade, o Movimento surgiu a partir de articulações da ANSUR, setores progressistas da

Igreja Católica e outros movimentos sociais (GRUNEWALDT; ALBARELLO, 2009). Como

exemplo destas lutas, podemos citar as ocupações da Nova Santa Marta (1991), a qual

abordaremos mais detidamente em seguida, da Canaã (1999), do Km 2 (1999) e da Estação

dos Ventos/Km 3 (2001), bem como as respectivas lutas para se garantir a permanência das

famílias nos locais, pela regularização fundiária, pela infraestrutura, pela busca de

investimentos e por políticas públicas. O MNLM, também, sempre procurou prestar

solidariedade e auxílio às demais ocupações espontâneas que vieram ocorrendo na cidade nas

últimas duas décadas.

Em 1999, ocorreu a ocupação da área da RFFSA do Km 2, que já havia sido alvo de

desocupação, em 1995. Esta ocupação se deu de forma espontânea por cerca de 30 famílias,

em 15 de janeiro de 1999, sendo que, em apenas uma semana, o número de famílias já

ultrapassava 200, de forma a que foi solicitado o auxílio do MNLM para organizar a

ocupação, definindo-se, assim, os critérios para participação na mesma. Através de muita

pressão social e de manifestações, conseguiu-se que a área fosse negociada pela Prefeitura

com a RFFSA, que havia entrado com pedido de reintegração de posse, de forma que a área

tornou-se municipal e a regularização fundiária, iniciada em 2001 pela Prefeitura, momento

em que já haviam 390 famílias no Km 2, vivendo em condições precárias, como moradias

80

improvisadas, sem água encanada, esgoto a céu aberto (PINHEIRO, 2002, p. 81), fazendo

com que, em 2002, esta representasse a terceira maior ocupação da cidade, ficando atrás

apenas da Nova Santa Marta e da Vila Nossa Senhora do Trabalho (BOTEGA, 2010). Nesta

ocupação, foi fundada, em 2001, em parceria com o MNLM, a Associação de Reciclagem

Seletiva de Lixo Esperança (ARSELE), a qual, em 2005, conquistou um galpão e maquinário

para viabilizar o empreendimento, além de ser um espaço onde, junto a outras entidades, são

desenvolvidos diversos projetos sociais voltados para a comunidade (SILVA, 2010, p. 79).

Ainda em 1999, foi realizada a ocupação do “Assentamento Canaã”, em 05 de junho,

por 62 famílias organizadas pelo MNLM, em área da Cohab Tancredo Neves desocupada

desde 1982. Inicialmente, foram fixadas as barracas de lona dos novos moradores da área,

tendo ao centro uma barraca na qual eram realizadas as assembleias diárias ou extraordinárias,

bem como as refeições coletivas, cujos alimentos eram doados por pessoas e entidades

sociais. Mesmo com as dificuldades impostas pelo calor, chuva e barro, as tentativas de

reintegrações de posse, a ausência de eletricidade por um ano, a falta de esgoto e o acesso a

água somente através de uma torneira comunitária, por cerca de dois anos, a maioria das

famílias resistiu e conquistou este espaço, iniciando os mutirões para construções de

moradias, a partir de meados do ano 2000. Um importante avanço para o Assentamento

Canaã36

foi a instalação da rede de água e luz, no final de 2003, aprovado pelos moradores

através de intensa participação nos processos do Orçamento Participativo Municipal e

Estadual em 2002. (PINHEIRO, 2002, p. 57; SILVA, 2004, p. 53).

Já a Ocupação Estação dos Ventos, localizada no Km 3, foi realizada por cerca de 50

famílias organizadas pelo MNLM, em 17 de julho de 2001, em virtude da reintegração de

posse ocorrida na ocupação do Movimento na Vila Santos, em 03 de junho daquele ano,

retirando mais de 200 famílias do local, mesmo com a área não sendo utilizada pelo seu

proprietário, mantida apenas para especulação imobiliária. Sob orientação do MNLM, cerca

de 50 famílias que não tinham para onde ir ocuparam a área da RFFSA, no Km 3, área que já

havia sido ocupada outras duas vezes. Desta vez, as famílias conseguiram permanecer, ainda

que em precárias condições, nesta área. (PINHEIRO, 2002, p. 77; SILVA, 2004, p. 38).

Além da realização de ocupações com famílias pobres em Santa Maria, pode-se

perceber que o MNLM nunca atuou de forma desconexa a outros movimentos sociais e

processos políticos da cidade. Aliás, foi justamente esta capacidade de diálogo e parceria com

36

Mais informações sobre a Canaã podem ser conferidas no trabalho de Buemo (2003) e Silva (2004).

81

demais setores da sociedade, como sindicatos, movimentos, universidades, pastorais sociais,

que colaboraram para que muitas demandas das ocupações fossem sanadas ou minimizadas.

Isto, também, levou o Movimento a contribuir com as demais lutas sociais existentes

na cidade nas últimas duas décadas, indo inclusive, para além das pautas específicas da

Reforma Urbana, como o apoio a eventos, lutas e atividades específicas que outros

movimentos e segmentos tenham construído (a exemplo da Feira do Cooperativismo e da

Economia Solidária – FEICOOP), até lutas e articulações em conjunto, como na questão do

transporte público, que tem suas tarifas reajustadas praticamente todos os anos, bem como em

manifestações mais gerais, como a Marcha dos Sem37

e o Grito dos Excluídos38

, e na

construção da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS)39

e do Fórum Social Mundial

(FSM)40

, apontando caminhos para a transformação da sociedade como um todo.

Outra questão que se destaca no MNLM é o protagonismo das mulheres na construção

do Movimento, tanto em termos de atuação de base, como na existência de muitas lideranças

femininas.

Isto se dá, em grande medida, pelo fato de que, conforme apontado no primeiro

capítulo, as mulheres constituem um dos segmentos mais afetados pelas precárias condições

de vida nas periferias, ao mesmo tempo em que na divisão de atribuições colocada pela

sociedade machista, “cabendo”, principalmente, ao homem trabalhar fora para prover os

recursos necessários à manutenção da família, ficando por conta das mulheres o cuidado com

a casa e as crianças, de forma que estas passem mais tempo nas ocupações, sofram suas

dificuldades, se informem e participem dos processos de discussão e lutas que envolvem

diretamente suas moradias e entorno, além de procurarem meios de sobrevivência.

Tendo nascido em um contexto pós-redemocratização do País, em Santa Maria, o

MNLM nunca se furtou de participar dos processos políticos e eleitorais que ocorrem

periodicamente na sociedade, geralmente definindo posição política e apoio a candidatos do

37

Marcha dos Sem – manifestação de diversos movimentos sociais, realizada anualmente em Porto Alegre,

desde 1996. 38

Grito dos Excluídos – manifestação popular, articulada inicialmente pelas Pastorais Sociais da Igreja Católica,

que congrega os movimentos sociais, desde 1995, no dia 7 de setembro, no Brasil, e, desde 1999, na América

Latina, no dia 12 de outubro. 39

Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) – criada em abril de 2003, agrega as principais organizações

populares do país, como a CUT, UNE, MST, CPT, CMP, CONAM, MNLM, MMM, entre outras, tendo também

se organizado em âmbito estadual, no Rio Grande do Sul, e municipal, em Santa Maria. 40

Fórum Social Mundial – foi realizado pela primeira vez em janeiro de 2001, em Porto Alegre, enquanto um

contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça). É um espaço internacional que congrega ativistas,

movimentos sociais, ONGs, partidos de esquerda, etc. para defender um “outro mundo possível”.

82

campo da esquerda, especialmente da esquerda petista41

, inclusive lançando candidatos para a

Câmara de Vereadores em diversos momentos, sendo que, nas eleições de 1996, um dos

fundadores do MNLM na cidade, Fernando Menezes, foi eleito vereador com a maior votação

entre os candidatos do PT, tendo sido, posteriormente, em 2001, no primeiro governo petista

na cidade, nomeado secretário municipal de habitação e regularização fundiária, momento

este em que acabou se afastando do Movimento (BOLZAN, 2002).

Os movimentos populares urbanos com suas lutas em prol da cidadania aos segmentos

historicamente abandonados pelos agentes públicos cumpriram – e ainda cumprem – um

papel fundamental no processo de redemocratização e ampliação do direito à participação

popular nos espaços institucionais no Brasil. Um dos efeitos deste processo foi a criação de

espaços e estruturas colegiadas, como conselhos, encontros, fóruns e conferências que

englobam a participação de representantes dos movimentos sociais, que passaram por uma

mudança em seu perfil de atuação, agora além de reivindicativo, mais operativo e propositivo

(GOHN, 2003).

Se, no período ditatorial, os movimentos atuavam à margem da institucionalidade,

com um caráter fortemente reivindicativo, a partir dos anos 1990 emergiu um novo contexto

político no País, somado a uma nova conjuntura internacional, marcada pelo fim da chamada

Guerra Fria e pela ascensão “vitoriosa” da versão neoliberal do capitalismo, que contribuiu

para o refluxo nas lutas sociais e da esquerda como um todo, em nível mundial. Assim,

mesmo tendo ocorrido a ampliação do direito à participação política, inclusive com a

ascensão de dirigentes dos movimentos a espaços de governo, com a criação de projetos em

parceria com o poder público e com novas políticas de participação popular (como o

Orçamento Participativo), percebe-se que isto tem sido marcado por muitas limitações e

contradições, devido em parte, ao enfraquecimento dos processos mobilizatórios.

41

DA ROS comenta esta fragmentação entre distintas correntes no PT: “Essa divisão interna está relacionada à

pluralidade dos grupos políticos que compuseram o PT desde a sua origem, cada qual com uma concepção

política bastante singular e com diferentes propostas programáticas a respeito do caráter e das estratégias a serem

adotadas pelo partido no processo da luta política. O divisor de águas entre as ditas tendências „radicais‟ e as

„moderadas‟ está relacionado à concepção particular que cada uma delas defende em relação à estratégia de

construção de uma sociedade socialista. Isso porque, o PT já nos seus primeiros documentos definiu o socialismo

como o seu horizonte estratégico, apostando nas lutas de massas protagonizadas pela classe trabalhadora como a

sua principal estratégia para conquistar hegemonia na sociedade a fim de transformá-la estruturalmente. Com o

passar dos anos essa estratégia política foi sendo abandonada em favor de uma concepção que apostava mais na

ocupação de espaços institucionais (governos e parlamentos) e numa prática política pautada no pragmatismo e

na conciliação dos interesses antagônicos presentes entre as classes e os grupos sociais” (2006, p. 286 apud

RODRIGUES, 2010, p. 78). Podemos afirmar que, na atualidade, as tendências moderadas são hegemônicas no

PT de Santa Maria. Já os militantes do MNLM, com vínculo partidário, em sua maioria, são ligados aos setores

mais críticos e radicais do Partido.

83

Tendo surgido em meio a este contexto, o MNLM é parte desta realidade. No caso do

MNLM, em Santa Maria, o Movimento sempre procurou dialogar com as diferentes esferas

do poder público, no sentido de pressioná-las pelo atendimento de suas reivindicações, em

especial para as demandas das ocupações, mas nunca deixou de lado a mobilização popular,

buscando articular a participação nos espaços institucionais com a luta social.

Em relação aos órgãos colegiados que o MNLM possui direito a assento em Santa

Maria, ocorre sua participação no Conselho de Saúde da Zona Oeste, no Conselho Municipal

de Habitação42

e no Escritório da Cidade. No entanto, as demandas apresentadas pelo

Movimento nestes fóruns são sistematicamente desrespeitadas, sendo que a presença do

Movimento nestes espaços, por muitos ainda, é tida como uma “pedra no sapato”, dado o seu

caráter crítico e não submisso às práticas clientelistas.

Em sua dissertação sobre a questão da participação popular e as políticas públicas

habitacionais em Santa Maria, Pinheiro destaca que “apesar do crescente número de

experiências participativas, elas ainda estão restritas a espaços consultivos e deliberativos

distantes do centro de decisão política” (2004, p. 114), sendo muito limitadas devido à falta de

informações, formação e orientações aos cidadãos, pois este é historicamente “um campo de

conhecimento restrito aos especialistas, o que reflete na estrutura administrativa, na

linguagem técnica, na complexidade da própria legislação” (Ibid., p. 116), de forma que

São notórias as dificuldades que o cidadão comum tem para acessar informações

sobre a gestão pública. Sem essas informações não há como discutir prioridades, não

há como discutir a destinação das verbas públicas. É comum que, depois de um

enorme esforço de organização coletiva, as reivindicações populares por mais

escolas, postos de saúde, pelo asfaltamento da rua, por mais segurança, muitas

vezes, fiquem sem retorno pela falta dessas informações e de mecanismos de

acompanhamento das decisões. (Ibidem, p. 115).

Isto faz com que o recurso à mobilização social ainda seja um dos principais caminhos

para que o MNLM e outros movimentos populares urbanos sejam efetivamente ouvidos em

suas pautas. Discutindo este ponto em relação à participação dos movimentos sociais no

Conselho das Cidades, existente em nível nacional desde 2004, Ferreira (2012) aborda a

questão da diversidade do repertório de ações utilizadas pelos movimentos enquanto

42

Conselho Municipal de Habitação e o Fundo Municipal de Moradia Popular foram instituídos pela Lei

Municipal 4415/01 de 05.02.2001, sendo que sua composição foi aprovada com a portaria 005/02, de 04 de

janeiro de 2002. Isto também foi uma conquista do MNLM, o qual propôs, em 1993, juntamente com a Diocese

Católica, a criação destes espaços, por meio da coleta de 8600 assinaturas entregues à Câmara de Vereadores

(Jornal A Razão, 08 e 27/04/1993, apud PINHEIRO, 2004), seguindo o exemplo do Projeto de Lei de iniciativa

popular, em nível nacional, pautado dois anos antes, também proposto em nível estadual, em 1993.

84

estratégias de incidência política, que passam por atuação tanto em espaços políticos

institucionalizados, como por ações societárias:

As ações dos movimentos de moradia e reforma urbana combinam, portanto, ações

de mobilização social (caravanas, marchas, jornadas, atos em espaço público,

ocupações, encontros e cursos de formação), com ações no campo institucional

(participação em Conferências Legislativas, audiências públicas e atuação nas

esferas públicas de gestão, como os conselhos de políticas públicas). As ações de

mobilização social, consideradas centrais, não se dissociam da estratégia de atuação

no Conselho das Cidades. (2012, p. 7).

Desta forma, o MNLM é um dos frutos do processo de reascenso das lutas sociais e da

redemocratização do País, mantendo esta tradição combativa ao longo dos anos 1990, 2000 e

na atualidade.

3.2 Nova Santa Marta: “Pra Morar, Ocupar, Resistir!”

Analisando o processo histórico de construção social da Nova Santa Marta, desde o

estágio de ocupação e acampamento na antiga Fazenda Santa Marta, até sua conformação

enquanto um dos maiores bairros de Santa Maria, é notório o envolvimento da comunidade

nas lutas para que este sonho se tornasse uma realidade.

Com base em diversas pesquisas, especialmente as de Leonardo Botega sobre o

processo inicial de ocupação, e de Mauricio Scherer, que comprovou em seu trabalho a

relação existente entre o êxodo rural com esta ocupação urbana (ver SCHERER, 2008), além

do apoio de diversos outros trabalhos temáticos e de várias fontes, foi possível sistematizar

esta narrativa histórica sobre a Nova Santa Marta, ainda que com muitas lacunas.

3.2.1 O acampamento que virou Bairro

A Fazenda Santa Marta foi o espaço escolhido para ser ocupado, pois era uma área

pública em setor de expansão da cidade em sua Zona Oeste, que deveria ter sido utilizada para

implementar uma política habitacional e que, naquele momento, não estava cumprindo uma

função social.

A antiga Fazenda, que era de propriedade dos “irmãos Ermindo e Gentil Carlesso,

ambos naturais de e residentes em Alegrete, que vinham à fazenda só para ver como andava a

85

criação de gado” (SCHERER, 2008, p. 33), havia sido desapropriada pelo estado em 30 de

novembro de 1978. Da área de 1200 hectares, 39 ha foram utilizados pela COHAB-RS, que,

em 1981, inaugurou a COHAB Santa Marta43

, com 872 moradias. Do restante da área

Em 1984, foi autorizada a doação, pela Lei Estadual 7.933/1984, de

aproximadamente 340 hectares para a Companhia de Habitação do estado do Rio

Grande do Sul – Cohab, a fim de que fosse construído, no prazo de cinco anos, um

conjunto residencial. Isto não se efetivou, fazendo valer a pena de retorno de

domínio da área para o estado do Rio Grande do Sul. (MATTIONI, 2010, p. 58).

Segundo Weber (2000), em 1989, chegou-se a criar em Santa Maria a expectativa de

se realizar um loteamento na área por parte do Governo Estadual, de forma que

Estavam previstas a entrega de 900 lotes e a construção de moradias nos mesmos,

através do Projeto Pró-Morar, da COHAB. Porém, por problemas de abastecimento

de água, a CORSAN (Companhia Rio-grandense de Saneamento) alegava a

dificuldade de se construir uma adutora até o local. Até final de 1990 nada havia

acontecido. (2000, p. 43).

Foi neste contexto, diante da grave crise social vivenciada na época, que se iniciou as

discussões que deram forma e organização ao MNLM em Santa Maria. Conforme Vanderlei

dos Santos, em entrevista para este trabalho, a situação era muito dura para a população mais

pobre:

Na época a gente percebia que o déficit habitacional da cidade era muito grande, era

muita gente pagando aluguel, muita gente morando nos fundos das casas dos pais,

da casa dos sogros, e o setor imobiliário era muito forte na época e vivia entorno

disso, vivia sacrificando a pobreza com o aluguel, e o aluguel como todos sabem

“come mais do que o rancho”, até falta comida, muitas vezes os pais não podiam

sustentar os filhos de uma forma adequada, porque tinha que pagar o aluguel, e esse

dinheiro ia pros empresários e não se tornava em benefício dos moradores mais

pobres da cidade. (Vanderlei dos Santos, Entrevista realizada em 11/02/2013).

Ainda, de acordo com Vanderlei, que na época era membro do Sindicato dos

Trabalhadores da Indústria e Comércio da Alimentação da Região (SINTICAL), desde 1988,

as lideranças sindicais da cidade discutiam a questão da pobreza e da falta de moradia da

classe trabalhadora, procurando alternativas concretas para sanar esta situação, sendo este um

dos pontapés iniciais que culminou com a criação do Movimento pela Moradia na cidade.

Iniciou-se, assim, um trabalho de base pelas vilas e ocupações de Santa Maria no

sentido de organizar as famílias de baixa renda que necessitavam de moradia própria para

43

Para mais informações sobre a COHAB Santa Marta, além do trabalho de Moura & Mello (1994), ver também

as obras de Gomes (1999) e Jacques (2008).

86

lutar por uma política habitacional mais inclusiva. Foi assim que, de acordo com Weber,

começaram as discussões que culminaram com a ocupação da Fazenda Santa Marta:

Um grupo de famílias interessadas em participar do programa de moradias, através

do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM, que em Santa Maria

ficaram conhecidos como os “Sem-Teto”), realizou, então uma série de reuniões nas

vilas da cidade, além de três grandes plenárias na Câmara de Vereadores, onde

foram convidadas a participar a Caixa Econômica Federal, Prefeitura Municipal,

COHAB e Câmara de Vereadores, porém somente a última se fez presente. Na

quarta reunião plenária, culminada por uma grande passeata, as famílias decidiram,

em assembléia, ocupar o espaço da Fazenda Santa Marta. (2000, p. 43).

Este processo é muito bem narrado por Leonel Pacheco, em entrevista à Botega (2004)

sobre a época que compunha a coordenação municipal44

do MNLM:

Quando se veio do encontro nacional em Minas em 1990 a tarefa em Santa Maria

era organizar uma coordenação municipal que previamente já havia sido anunciada,

e começou a se fazer um trabalho de quantas pessoas tinham sem moradia. Aí se

começou a trabalhar nas vilas, já naquelas ocupações que tinha no leito do Cadena,

na Arco-Íris, enfim, na periferia da cidade. Se fez um levantamento de que tinha um

número muito grande de pessoas que necessitavam de habitação e o poder público

não tinha nenhum projeto de moradia. Se fez uma discussão dentro da coordenação

municipal e se apontou uma ocupação. As pessoas que naquela época estavam na

executiva municipal da coordenação fizeram levantamento de área e foi apontado a

Fazenda Santa Marta. Começou a se fazer reuniões sistemáticas pelas vilas,

conversando com as pessoas explicando e as pessoas colocando as suas

necessidades. Aconteceu em dezembro de 1990 uma plenária municipal na Câmara

aonde tinha em torno de 400 pessoas, 430, 440 pessoas, não lembro muito bem, e

estas pessoas já começaram a ter o entendimento que a única forma de ter habitação

era através da ocupação e a gente fez esta reunião geral, e a gente apontou algumas

regiões, aonde o número era mais elevado, a necessidade era maior, e se partiu para

esta ocupação da Fazenda Santa Marta (...) (Entrevista realizada em 02/09/2003,

Botega, 2004, p. 42).

Percebe-se, assim, que a decisão de ocupar a Fazenda Santa Marta não estava dada a

priori, mas sim foi amadurecendo, conforme os poderes públicos deixavam mais claro o seu

descaso com a questão da moradia para os setores populares, seja ao não buscar meios para

implementar um programa habitacional em uma área cedida para isto, seja ao ignorar os

anseios das famílias e pessoas que participavam das reuniões públicas, a fim de cobrar uma

política habitacional mais inclusiva – pois, naquele período, a Cohab-RS exigia a

comprovação de uma renda mensal entre 2,5 e 5 salários mínimos para se obter uma moradia.

Ainda, de acordo com Vanderlei dos Santos, na época, a área da Fazenda Santa Marta era

utilizada apenas para promessas eleitorais, pois “quando ia se elege o próximo governo do

44

A Coordenação Municipal do MNLM era composta inicialmente por Élso Ferreira Pires, Fátima Olália,

Fernando Menezes, Leonel Pacheco, Pedro Zoé Barcellos, Sandra Feltrin, entre outros (BOTEGA, 2004).

87

estado, se dizia que iam construir casas populares, mas na verdade era só plano eleitoreiro né”

(Entrevista realizada em 11/02/2013).

Foi justamente este descaso e as promessas não cumpridas o que gerou a indignação

daqueles que pouco ou nada tinham a perder e os mobilizou para a ação direta de ocupação

coletiva e organizada como forma de pressão sobre os órgãos institucionais. Ante a

impossibilidade de diálogo e a negociação buscada pelo MNLM com os setores responsáveis

pelas políticas habitacionais, e

Tendo como principais reivindicações a redução dos níveis salariais exigidos pela

Cohab/RS para a aquisição de casas populares e o inicio das obras de expansão da

Cohab‟s Fernando Ferrari, Tancredo Neves e Santa Marta, o MNLM organizou um

grupo de 357 famílias que não se adequavam aos critérios exigidos pela Cohab/RS

para a aquisição da casa própria. (BOTEGA, 2004, p. 61).

Teve origem, assim, a primeira ocupação de terras organizada por um movimento

social e com uma pauta política de reivindicações em Santa Maria, pois apesar de já terem

ocorrido dezenas de ocupações urbanas nesta cidade, nas décadas anteriores, estas sempre se

deram em um nível mais individual e de forma espontânea, com vistas a permanecer na área

tomada, o que não necessariamente era o objetivo da ocupação da Fazenda Santa Marta pelo

MNLM.

Realizado o levantamento das famílias, o planejamento e os preparativos para a

ocupação, definiu-se a madrugada do sábado, dia 07/12/1991 para que a ação fosse executada

com a primeira entrada dos manifestantes na área, seguidos pelos demais nos dias seguintes,

conforme Grunewaldt & Albarello:

Usando como ponto de concentração a Igreja São João Evangelista, localizada na

Vila Caramelo e distante quarenta minutos de caminhada até o local escolhido, a

partir da 1 hora da manhã passaram a se deslocar até o local. Na noite da referida

data, foi realizada a ocupação de um pequeno local com trinta e quatro famílias. (...)

A área ocupada não foi dividida entre os ocupantes, já que o objetivo do movimento

era negociar com o Governo estadual a construção de moradias através da COHAB.

(2009, p. 3-4).

Este foi um fim de semana de muita luta em Santa Maria, pois, no dia seguinte,

08/12/1991, ocorreu, também, a chegada de 16 famílias de trabalhadores rurais sem-terra em

outra área da Fazenda Santa Marta, próximo ao Distrito Industrial, algo que não estava

combinado entre os movimentos, mas que trouxe à tona a luta pelas Reforma Agrária e

Urbana em Santa Maria, praticamente ao mesmo tempo e espaço. Às 16 famílias que vieram

88

no domingo, somaram-se mais 17, em 11/12/1991, totalizando 33 famílias – cerca de 139

pessoas –, todas oriundas de acampamento do MST em Bagé (A Razão, 12/12/1991).

Apesar dos militantes do MST possuírem um documento do Governo Estadual,

assegurando que ali seria implantado um assentamento, houve dificuldades com a Brigada

Militar (BM) para que os colonos pudessem montar acampamento. Também houve forte

repercussão na mídia local e, principalmente, oposição por parte da Companhia Estadual de

Desenvolvimento Industrial e Comercial (CEDIC) o qual administrava aquela área, da

FUNDAE (que possuía uma Escola de Produtores Mirins, próximo à área – e que em 2012,

por uso irregular, perdeu o comodato sobre 77 dos 96 ha sob sua responsabilidade, que

passaram então a pertencer a Aldeia Guarani) e da CACISM, levando o Governo do Estado a

transferir os sem-terra de Santa Maria, no início de 1993, após estes permanecerem

acampados em precárias condições durante todo este período, sem receber a posse definitiva

da terra. Somente no ano 2000, enquanto parte do Programa Estadual de Reforma Agrária do

Governo Olívio Dutra, é que foi implementado um assentamento da reforma agrária, em 305

ha desta área, sendo composto por 18 famílias, o Assentamento Carlos Marighella45

.

Já em relação à ocupação protagonizada pelo MNLM,

As demais famílias que estavam cadastradas pelo Movimento, e que não entraram

durante a madrugada, entraram durante a manhã e nos dias seguintes, somando 357

famílias ocupantes cadastradas pela coordenação do MNLM no dia 12/12/1991.

(SCHERER, 2005, p. 4).

A respeito da atuação das forças policiais, inicialmente a atuação da BM limitou-se a

vigiar e acompanhar o processo de ocupação. No entanto, da terceira noite em diante, a BM

cercou o local e passou a permitir somente a saída dos ocupantes, de forma que sequer água,

comida ou outros materiais podiam ser buscados por parte de quem estava dentro da

ocupação, pois se saísse seria impedido de retornar, da mesma forma que dificultava-se as

pessoas e instituições que iam levar doações, prestar apoio e solidariedade ao Movimento dos

“Sem-Teto”.

Este cerco somente foi superado devido ao apoio de diversos setores da sociedade para

com a ocupação e a pressão sobre as autoridades, especialmente por parte dos setores da

45

O Assentamento Carlos Marighella foi criado na perspectiva do chamado na época “modelo novo”, que seriam

assentamentos coletivos (sem divisão dos lotes) e de produção agroecológica cooperativada. No entanto, diversas

dificuldades, como assistência técnica despreparada para o trabalho agroecológico, proximidade do lixão

municipal, solo arenoso, degradado e com baixa fertilidade, geraram frustrações e divergências internas que

prejudicaram o projeto inicial. Para um estudo mais detalhado sobre este assentamento, ver a obra de Rodrigues

(2010) e suas referências bibliográficas.

89

Igreja Católica, identificados com a Teologia da Libertação, como as pastorais sociais e o

Projeto Esperança/Cooesperança, assim como do Movimento Sindical, que desde o começo

deram suporte e angariaram bens de primeira necessidade aos movimentos sociais acampados

na Fazenda Santa Marta, tanto o MST, como o MNLM.

O apoio recebido foi de grande importância para viabilizar a ocupação, pois “essas

pessoas viveram mais de nove meses dentro de barracas de lona, tendo somente uma torneira

para as necessidades de todas as pessoas, as quais ao final desse tempo totalizavam em torno

de 4000 pessoas” (GRUNEWALDT; ALBARELLO, 2009, p. 4). Nesse período, organizar-se

foi fundamental, de forma que “a disposição das barracas possibilitava uma área central no

acampamento, nesta área foi construída uma barraca de referência, onde eram realizadas as

reuniões e plenárias decisivas da ocupação” (SCHERER, 2008, p. 37), sendo que

Existia toda uma organização interna e externa da ocupação e de funcionamento do

acampamento. Pela negociação externa com o governo e comunicação com a mídia

havia alguns representantes como Fernando Menezes e Sandra Feltrin.

Para a organização interna foi dividido em várias equipes de trabalho. Havia equipe

da cozinha, segurança, primeiros socorros, e outras necessárias para o

funcionamento organizado do acampamento. (Ibid., p. 38).

Conforme já salientado, o objetivo inicial do MNLM. por meio da ocupação. era de

abrir um processo de negociação que levasse a redução dos níveis salariais exigidos pela

COHAB-RS, porém esta não se mostrou aberta ao diálogo, como deixaram claras as

declarações do gerente regional da COHAB-RS, Paulo Carús Juliani, no jornal A Razão, em

13/12/1991. Na ocasião, desferiu críticas a ocupação (definindo-a como uma “sangria

desatada”, que em sendo atendidas as reivindicações das famílias “logo aparecerão outras

pedindo casas”) e informou que nos próximos dias estariam entrando com pedido de

reintegração de posse da área, pois a mesma seria destinada para um projeto habitacional em

que seriam mantidas as exigências de comprovação de renda vigentes (BOTEGA, 2004, p.

45). Os órgãos públicos afirmavam que apenas negociariam caso os manifestantes

desocupassem a área. O depoimento de Leonel Pacheco explica bem esta questão:

O Estado queria a área livre para negociar. Não queria que tivessem famílias lá

dentro. Mas nós entendíamos naquela época que se nós saíssemos de lá, com certeza

nós não entraríamos de novo. Porque esta é uma das questões que sempre que tem

uma área ocupada, a parte interessada faz o pedido desocupem a área que a gente

negocia. Mas é bem diferente na realidade. Eles não tinham o menor interesse de

negociar a área porque eles tinham alguns projetos que para nós naquela época eram

meramente eleitoreiros e não atenderiam aquelas pessoas pelo fato de que os

critérios eram muito rígidos. Atendiam só quem estava empregado e lá tinha um

número muito grande de desempregados, quase que 80%, 85% eram

90

desempregados, só viviam de bico e com isso já não estavam conseguindo pagar seu

aluguel. Com certeza se a Cohab tivesse algum projeto, se o Estado trabalhasse

algum projeto, estas pessoas não seriam selecionadas porque não se enquadrariam

dentro dos critérios. (BOTEGA, 2004, p. 45).

Frente às negativas de negociação por parte do poder público e a ameaça de

reintegração de posse – impetrada pela COHAB-RS, em 18/12/1991 –, o MNLM procurou

apoio em diversos setores, como com o reitor da UFSM e presidente do Corede-Centro

(Conselho Regional de Desenvolvimento), Tabajara Gaúcho da Costa, para que este se

tornasse um intermediário nas negociações (A Razão, 19/12/1991, p. 1). Em seu trabalho

sobre a ocupação da Fazenda Santa Marta, Leonardo Botega relata que a postura da Prefeitura

Municipal foi de total omissão em relação à ocupação, por ser uma área do estado, tendo

chego ao cúmulo de afirmar que só o que poderia fazer “era abrir uma vala e botar todos esses

pobres que estavam incomodando dentro e colocar terra”. Assim, alguns vereadores, como

Valdeci Oliveira e Paulo Pimenta, ambos do PT, e os deputados estaduais Marcos Rolim,

também do PT, e Renan Kurtz, do PDT, se colocaram como intermediários, sendo que este

último, por ser do partido do governador Alceu Collares, era visto com desconfiança, como

alguém que estava no papel do estado (BOTEGA, 2004, p. 48).

Esta postura de omissão deliberada por parte da Prefeitura santa-mariense é muito bem

elucidada por Pinheiro, com base em Offe:

Segundo Clauss Offe (1984), uma das estratégias preferidas dos detentores do poder

é o não reconhecimento de uma determinada realidade, situação ou acontecimento.

Essa “não realidade” implica em “não decisões”, ou seja, na ausência deliberada de

ações ou políticas públicas em relação a ela. Esta tem sio uma prática constante, ao

longo dos anos, do poder municipal de Santa Maria em relação aos assentamentos de

interesse sociais. (2004, p. 36).

Crescia cada vez mais, entre os membros da ocupação, a certeza de que deveriam

resistir e conquistar aquele pedaço de terra para construir suas moradias. A confiança de que

isto era possível se fortaleceu em 24/12/1991, momento em que a juíza da 1ª Vara Cível de

Santa Maria, Judith dos Santos Moteccy, indeferiu o pedido de reintegração de posse

solicitado pela COHAB-RS, por considerá-lo deficitário e insuficientemente instruído para

um ato de despejo, o que representou um verdadeiro presente de Natal para as famílias

acampadas. Somente a partir de então se puderam iniciar, de fato, as negociações, mas então

para discutir – e disputar – o futuro da área ocupada, além do Movimento, também, continuar

pressionando pela redução dos níveis salariais exigidos pela COHAB-RS e pautando uma

nova política urbano-habitacional. A Figura 3 ilustra como era a ocupação neste período:

91

Figura 3 – Acampamento na área ocupada

Fonte: Blog do MNLM Santa Maria46

.

Ante a pressão do movimento popular, firmou-se um acordo assinado pelo

Governador, em 27/02/1992, o qual previa a construção de 200 moradias, o que, entretanto,

ainda não englobava a totalidade das 357 famílias ocupantes, de forma que, após mais um mês

de discussão, se conseguiu ampliar o número de lotes para 260. Fez-se necessário, então,

constituir uma comissão para discutir os critérios para destinação das casas. Esta comissão foi

composta por 11 membros: quatro representantes do MNLM, três vereadores (Valdeci

Oliveira - PT, Vicente Paulo Bisogno - PDT e Arnildo Müller - Partido do Movimento

Democrático Brasileiro - PMDB), um representante da CEEE; um da CORSAN, um da

prefeitura e um da COHAB-RS, (A Razão, 24/03/1992, p. 7) existindo assim um certo

equilíbrio político na mesma. Neste processo, o MNLM, também, pautou que as cerca de 40

famílias da ocupação Fernandes Vieira, na Região Norte da cidade, e que já estavam em vias

de serem desalojadas, também, entrassem na seleção dos lotes.

No mês de maio, foi realizado o sorteio dos lotes. No entanto, no momento em que as

famílias foram tomar posse destes, foram surpreendidos pela BM, que tentou impedir o seu

estabelecimento definitivo, demonstrando novamente a discordância do Governo para com a

ocupação (SCHERER, 2005, p.7). Mais tensionamentos e negociações se sucederam:

Após os conflitos com a Brigada Militar, ocorreu uma reorganização do

acampamento, pois, ao invés de ficarem agrupadas, as famílias posicionaram suas

barracas improvisadas próximas de seus futuros lotes na 7 de Dezembro e algumas

começaram imediatamente a construir suas casas.

Depois de vários meses de negociação entre Movimento e COHAB estes chegaram a

um acordo no dia 9 de dezembro deste ano, porém com muita desconfiança por parte

do MNLM. O acordo ocorreu em uma reunião que contou com a presença de um

representante do Movimento, três da Câmara e um da COHAB. Neste acordo foi

definido o assentamento de 292 famílias e a retirada imediata das que estavam em

áreas verdes. Dentre as 292 famílias estavam incluídas as da Ocupação Fernandes

46

Página do MNLM de Santa Maria na internet: <www.mnlmsm.blogspot.com>.

92

Vieira, que chegaram no dia 10 de outubro, dando origem a atual Vila 10 de

Outubro. (Idem 2008, p. 38-39).

Desta maneira, transcorreu-se sete meses entre o sorteio dos lotes e sua posse

definitiva, dando início a estruturação do que hoje são as Vilas 7 de Dezembro e 10 de

Outubro. Os relatos da época recordam o quão duro foi esse período, seja pelo calor sentido

debaixo da lona preta, seja pela rigorosidade do inverno de 1992, ou pelos dias de chuva e o

barro gerado, o que somado a questão da falta de eletricidade e de água potável (o básico do

saneamento básico), levou muitas pessoas a adoecerem e terem de, inclusive, abandonar a

ocupação.

Também, foram diversas as denúncias de repressão e de arbitrariedades por parte da

polícia, o que junto (e na verdade expressando) a indisposição em negociar por parte do

Governo Estadual, detentor da área, e municipal, agora sob a gestão de José Haidar Farret,

“por considerarem a ação um ato criminoso, levou a um vazio da presença do Estado na

região. Tal fato gerou o início de uma série de ocupações espontâneas, bem como da ação dos

grileiros na área” (BOTEGA, 2010, p. 87).

A cada dia mais famílias iam (e ainda vão) para a fazenda Santa Marta, em busca de

uma alternativa ante a impossibilidade de pagar aluguel ou adquirir a casa própria por meio de

financiamentos, o que gerou a expansão da ocupação inicial organizada pelo MNLM, a

exemplo da atual Vila Pôr do Sol, surgida de forma espontânea, a partir de 1993. Isto fez com

que, daquele ano em diante, o Movimento passasse a cobrar do Governo Estadual um projeto

urbanístico para todo o local, pois as Vilas 7 de Dezembro e 10 de Outubro, também não

possuíam infraestrutura, além de atuar no sentido de organizar e conscientizar as famílias a

não ocupar os espaços de forma desordenada, pois isto dificultaria sua futura urbanização.

Outra ocupação ocorrida na época sem ter sido planejada pelo MNLM foi a do local

da atual Vila Núcleo Central, quando, em 04 de março de 1993, oito famílias adentraram no

local, seguidas por dezenas de outras nos dias seguintes. Os primeiros ocupantes organizaram

uma comissão (COTETO), presidida por Juceli Noschang Teixeira, que tinha por atribuições

realizar o cadastro daqueles que nela iam se estabelecer (na qual declaravam não possuir bens

imóveis, não estar participando de um movimento de cunho político e não estar acampando

para terceiros), dividir os lotes entre estes e se reunir com o gerente regional da COHAB-RS,

Paulo Carús, a fim de reivindicar a posse da área de 25 ha para as famílias presentes no local.

A postura do MNLM foi de apoio a esta nova ocupação, se colocando como intermediário nas

negociações e buscando impedir com que a COHAB ingressasse com pedido de reintegração

93

de posse (A Razão, 09/03/1993 – Figura 4). De fato a COHAB-RS não solicitou a

reintegração, conforme noticiado no dia seguinte, porém cogitava a hipótese de transferir os

ocupantes (que já chegava ao número de 314 famílias cadastradas em apenas uma semana)

para outro local da cidade, próximo à Vila Caturrita, algo que as famílias presentes não

queriam (A Razão, 10/03/1993).

Sobre a relação entre o MNLM e as ocupações realizadas de maneira independente,

Scherer aponta que

Mesmo sem participação direta, o MNLM ajudou as ocupações espontâneas,

trabalhando como intermediário nas negociações e possibilitando que o estado não

viesse a pedir reintegração de posse. A ajuda também vinha de forma indireta, pois

após o estabelecimento das ocupações espontâneas todas as reivindicações do

MNLM acerca de melhorias na área foram dirigidas também para o Pôr do Sol e

Núcleo Central. (2005, p. 10-11).

Figura 4 – Matéria sobre a ocupação do Núcleo Central

Fonte: A Razão, 09/03/1993.

Junto às legítimas ocupações espontâneas das famílias pobres, alguns oportunistas de

plantão criaram uma “comissão” e iniciaram um esquema de venda ilegal de lotes,

inaugurando, assim, a prática da grilagem na área, o que foi denunciado no jornal A Razão,

em edição de 30/03/1993 – Figura 5. Em relação a isto, Sandra Feltrin, da coordenação

municipal do MNLM, na ocasião declarou que este “não reconhece a comissão” e que estava

“mais do que na hora da Cohab Estadual tomar uma providência definitiva e fazer um

levantamento oficial das famílias que estão no local”.

94

Figura 5 – “Já são 1500 famílias acampadas no local”

Fonte: A Razão, 30/03/1993.

As cobranças por melhorias e por um plano de assentamento por parte do MNLM

levaram a COHAB-RS a alegar que iriam fazer um cadastramento de todos os ocupantes da

área da antiga Fazenda, incluindo as novas ocupações, para que com posse e análise destas

informações, o Governo elaborasse este projeto. Porém, para realizar este levantamento e

“evitar novas invasões”, a COHAB-RS chamou a polícia para cercar novamente a área e

controlar a entrada e saída das pessoas (A Razão, 31/03/1993, p. 6). Assim, em 31 de março,

houve a chegada da BM a cavalos na região (A Razão, 01/04/1993, p. 5), se instalando em

pontos estratégicos. O jornal, também, divulgou a indignação e as propostas do MNLM:

Sandra Feltrin lembrou que a questão habitacional não deve ser tratada através da

Brigada Militar. “A COHAB deve apresentar um projeto de política habitacional”,

salientou Sandra. A coordenadora do movimento diz não saber como a Brigada

Militar irá identificar aqueles que já estão acampados no local, uma vez que não

existe um cadastramento oficial. “Não podemos dar um cheque em branco ao

Carús”, pois não existe uma proposta de assentamento e cadastramento das famílias

acampadas e muito menos a garantia de que aquelas famílias ficarão na Fazenda

Santa Marta”, concluiu Sandra.

O Movimento pela Moradia quer negociar com a UFSM, COREDE (Conselho

Regional de Desenvolvimento), Prefeitura Municipal e Câmara de Vereadores o

cadastramento das famílias, sendo que estas entidades fiscalizaram os trabalhos. “A

COHAB não tem mais credibilidade”, (...).

Além de discordar da inclusão da Brigada Militar no processo, Sandra Feltrin quer a

apresentação, em 30 dias, de um projeto de assentamento definitivo para as

entidades citadas anteriormente, com critérios para quem ganha de zero a 5 salários

e que não possua propriedade em seu nome. (A Razão, 31/03/1993, p. 5).

95

Figura 6 – Enquanto este jornal circulava, a Brigada cercava a ocupação

Fonte: A Razão, 31/03/1993.

O vereador Werner Rempel (PMDB), então presidente da Comissão de Serviços

Públicos, Saúde, Educação e Meio Ambiente, também, endossou as cobranças do MNLM, ao

enviar um documento ao governador, solicitando providências para resolução dos problemas

das famílias acampadas na Fazenda, com a realização de um cadastramento e um projeto de

loteamento dos terrenos, além do oferecimento de saneamento básico, perfuração de poços

artesianos e atendimento médico (A Razão, 01/04/1993, p. 5).

Assim, durante a primeira semana de abril de 1993, foi realizado o cadastro de todas

as famílias, num total de 1.450, juntamente com o relatório sobre a situação da área, enviados

à COHAB-RS para a elaboração de um projeto de assentamento.

A expectativa era grande com a vinda do governador Alceu Collares para Santa Maria,

em 19 de abril, momento em que visitou a ocupação. Em seu discurso, ele reconheceu o

déficit habitacional no estado e pediu aos acampados que se mantivessem organizados e

aguardassem os trabalhos dos técnicos do Governo, além de ter assinado os trabalhos para

construção de uma adutora d‟água de 5,5km, orçada em Cr$ 15 bilhões (A Razão, 20/04/1993,

p. 14), algo que veio a beneficiar toda a Região Oeste da cidade. Entretanto, não foi

apresentado um projeto de assentamento definitivo.

A não apresentação deste projeto habitacional motivou o MNLM a planejar uma nova

ocupação de terras na Fazenda Santa Marta. Após organizar um conjunto de 45 famílias e a

tática de ação, a ocupação foi realizada no início do mês de maio, dando assim origem a

futura Vila Alto da Boa Vista. Apesar da pressão da polícia e da COHAB-RS para que se

retirassem dali, os membros dessa ocupação permaneceram cerca de oito meses acampados,

organizando a demarcação e sorteio dos lotes por meio de uma comissão interna, bem como

96

do traçado das ruas, tendo sido assentadas mais de 400 famílias no decorrer desse processo e

garantido inclusive a preservação de uma área verde para futuros projetos. Segundo Botega:

Desde as ocupações espontâneas o MNLM teve a preocupação com a urbanização

da área e esta tornou-se mais presente nesta segunda ocupação. Esta organização

fora facilitada devido ao fato de o MNLM ter encontrado um projeto que a

Cohab/RS pretendia adotar na área desde 1981, onde estava determinado o traçado

de uma possível organização territorial da área visando a urbanização desta. (2004,

p. 58).

De acordo com o jornal A Razão, a principal diferença entre o anteprojeto de

loteamento da COHAB e o que o MNLM iria implementar era a dimensão dos terrenos, que

pelo projeto original seria de 8 x 20 metros, enquanto a orientação do MNLM é de que fossem

demarcados lotes de 10 x 25 metros, seguindo assim o padrão de toda a Fazenda Santa Marta

(A Razão, 19/05/1993, p. 5).

Figura 7 – Ocupação do Alto da Boa Vista em resposta a falta de uma política habitacional. Ao mesmo tempo,

greve na UFSM

Fonte: A Razão, 19/05/1993

Esta resposta à inoperância dos poderes públicos foi uma forma contundente do

MNLM demonstrar seu descontentamento com a situação vivenciada, procurando, assim,

solucionar a seu modo a problemática habitacional do município, como alega Nilda Ribeiro

em sua entrevista, ao dizer que

(...) uma cidade que não trata com dignidade as pessoas que moram nessa cidade,

alguma coisa está bastante errada, e a forma que o movimento encontrou, a forma

que a gente encontra de diminuir essa diferença, essa desigualdade, é cuidando do

habitacional da nossa forma, que é ocupando, que é dando condições de luta, que é

pensando não só no futuro das nossas famílias, mas também no futuro da cidade.

(ENTREVISTA realizada em 11/02/2013).

97

No entanto, por mais organizado que fosse o movimento de ocupação, por si só este

não bastava, dado as dificuldades posteriores colocadas para se ter condições de viver com

dignidade no local – como nos mostra a Figura 8, momento em que não havia água encanada

e eletricidade para a maioria das casas da ocupação,

Figura 8 – Riscos à saúde e a vida dos ocupantes. UAC pede decretação de calamidade púbica

Fonte: A Razão, 01/09/1993.

Isto tornou necessário, também, atuar em outras frentes de luta para se garantir

infraestrutura para a área e políticas públicas voltadas para a moradia popular, pois o

Movimento sempre compreendeu a habitação enquanto um direito fundamental do ser

humano, sendo, portanto, atribuição do Estado provê-la. Foi neste sentido que muitas lutas,

passeatas, caminhadas até o centro da cidade e panelaços foram realizadas como forma de

denúncia e pressão sobre os órgãos públicos, assim como as campanhas realizadas, em 1993,

pela criação do Fundo e do Conselho Municipal e Estadual de Moradia, conquistadas por

meio da elaboração de Projetos de Lei de iniciativa popular, algo que requeria que 1% do

eleitorado do município e do estado assinasse a proposta. Sobre este tópico, Ana Patrícia

Moura recorda que

Em Santa Maria a gente fez a coleta no calçadão, com intervenções teatrais, como

uma das formas das pessoas se aproximarem, porque só o papel ali pra assinar a

gente percebia que as pessoas não chegavam perto, não se interessavam em só

assinar, não entendiam muito bem o que era, daí a gente fez intervenções teatrais, só

com militantes, eu participei diversas vezes. (ENTREVISTA realizada em

11/02/2013).

98

A imagem anterior ilustra as dificuldades e condições subhumanas enfrentadas pelos

ocupantes da Fazenda Santa Marta, que arriscaram suas próprias vidas no decorrer deste

período consumindo água de sanga contaminada (A Razão, 06/01/1994), devido às poucas

torneiras comunitárias disponíveis, ou tendo de caminhar por vários quilômetros com baldes e

bacias para conseguir um pouco de água potável. Além disto, conviveram sem energia

elétrica, iluminação pública e transporte coletivo dado a ausência de ruas.

Outro grande problema era a questão do lixo, pois a ausência de coleta gerava o seu

acúmulo a céu aberto em diversos locais, como margens de sangas, áreas verdes e voçorocas

(GARCIA, 2006, p. 66), o que junto com o esgoto a céu aberto, prejudicava a saúde dos

moradores e gerava a proliferação de parasitas, como carrapatos, pulgas, bichos-de-pé e,

inclusive, escorpiões (A Razão, 19/01/1994, p. 12) – que somente foram controlados no ano

2000, por meio de ação da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e Vigilância Sanitária

(SANTOS, 2000). Os problemas de saúde se agravam ainda mais com o desemprego,

pobreza, moradias precárias e falta de alimentação de muitas famílias, além da distância com

o posto de saúde mais próximo, localizado na Cohab Santa Marta.

Em agosto de 1994, o Governo Estadual procedeu a realização de um novo

recadastramento dos presentes no local, apontando o número de 2500 famílias instaladas, com

o objetivo de iniciar a legalização dos lotes e a cobrança de uma taxa de ocupação (A Razão,

09/08/1994). Tal taxa corresponderia a 25% da renda de cada família, de forma que pagando

entre R$ 17,00 e R$ 20,00 mensais, por cerca de 25 anos, os moradores tornar-se-iam

proprietários do terreno (SCHERER, 2008, p. 42).

Por mais que o Governo divulgasse na mídia que estava realizando melhorias na área

da ocupação, com a instalação de infraestrutura, seus habitantes denunciavam esta inverdade

(A Razão, 10/08/1994, capa). Outro fato criticado na época foi o uso eleitoreiro da ocupação

da Fazenda Santa Marta pelo Governo Estadual, durante o período de campanha:

A quarenta dias da eleição estadual, Renan Kurtz, Presidente da Assembléia

Legislativa, pede ao governador Alceu Collares para decretar estado de calamidade

pública. Segundo Kurtz seria mais rápido solucionar os problemas da Nova Santa

Marta assim, pois o decreto possibilitaria que os recursos fossem liberados mais

rapidamente e poderia haver suplementação de verba no caso de insuficiência.

A atitude do presidente da Assembléia Legislativa foi duramente criticada por

muitos vereadores da época, dizia-se que, se houvesse vontade política, no ano

anterior quando o governador esteve visitando o assentamento, já teria anunciado

um plano de habitação. O vereador Valdeci Oliveira lembrou na ocasião que no ano

anterior já havia a necessidade de pedir o decreto de calamidade pública. Então, qual

o motivo de fazer uso deste recurso na véspera da eleição? É o que questionava. (A

Razão, 24/08/94, p. 3).

99

Ainda neste ano na véspera da eleição, foi agilizada a melhoria na iluminação

pública e prometido o empedramento de algumas ruas para posterior conclusão do

prédio da CEASA. (A Razão, 16/09/94, p. 3). O governo de Alceu Collares não se

reelegeu e o prometido não se concretizou. (SCHERER, 2005, p. 12-13).

Esta não havia sido a primeira vez que o Movimento havia denunciado o uso

eleitoreiro da ocupação, pois, no final de 1992, um dos representantes do MNLM, Fernando

Menezes denunciou na Tribuna Livre da Câmara de Vereadores da cidade o fato de que 58

lotes, na Fazenda Santa Marta, estavam sob a guarda de Renan Kurtz, para serem distribuídos

de acordo com critérios políticos, tendo em vista que estavam passando por eleições

municipais e Kurtz era candidato a vice-prefeito na chapa da Frente Trabalhista (BOLZAN,

2002).

Ainda em 1994, foi criada a primeira linha de ônibus a passar dentro da ocupação, a

linha 7 de Dezembro. Porém, apenas este itinerário e poucos horários disponíveis não foram

suficientes para atender a demanda dos cerca de 10 mil habitantes, levando muitas pessoas a

terem de continuar indo pegar o transporte público em comunidades vizinhas, ou ir para o

centro e outros bairros a pé ou de bicicleta devido o alto preço da tarifa. Inclusive, conforme

noticiado na mídia dois anos depois, as más condições das estradas da Nova Santa Marta, que

ainda não eram pavimentadas, impediram a entrada de uma ambulância e de transporte

público, de forma que “alguns moradores chegaram a improvisar uma „operação tapa-buraco‟,

pois a região ficou 15 dias sem ônibus porque a empresa alegou haver muitos buracos e

enquanto não os tapassem, os ônibus não „subiriam‟ na vila.” (Idem, 2008, p. 42).

Figura 9 – Convênios que não chegam para todos: moradores fazem mutirão para recuperar ruas

Fonte: A Razão, 09/08/1996.

100

Se até então a situação era muito difícil para os moradores da Nova Santa Marta, a

partir do início dos governos de Antônio Britto (PMDB), no plano estadual, e de Fernando

Henrique Cardoso (PSDB), em nível federal, em 1995, esta tendeu a piorar nos anos

seguintes, devido ao fato de estas administrações dialogarem muito pouco com os

movimentos populares e não priorizarem as demandas sociais como um todo, a exemplo da

questão das políticas para habitação e moradia popular, que inclusive sofreram retrocessos.

Neste contexto, Pinheiro aponta que

Em 1995, com a política dos governos estadual e federal de privatização e redução

da máquina pública, a COHAB-RS foi colocada em liquidação e a Caixa Econômica

Estadual foi extinta pelo Governo do Estado. Com isto, o Estado perdeu os seus

instrumentos para realização de uma política habitacional de interesse social. (2004,

p. 63).

A falta de investimentos em políticas públicas, somado aos altos índices de

desemprego vigentes nos anos 1990 e a implementação de políticas neoliberais de

privatizações e redução do papel do Estado na economia e na sociedade, não deixaram

alternativas aos movimentos sociais a não ser construir lutas para defender direitos e resistir a

crescente exclusão social. Foi neste sentido, por exemplo, que o jornal A Razão divulgou, em

29/03/1995, a participação do MNLM de Santa Maria na “Caravana pela Reforma Urbana e

Cidadania”, manifestação realizada em Brasília para pressionar o Governo FHC por

saneamento básico e uma política de moradia popular, assim como a realização da primeira

“Marcha dos Sem”, em Porto Alegre, em 1996, cuja origem foi a Plenária dos Trabalhadores

do Rio Grande do Sul, realizada em 25 de julho de 1995, a qual convocou a 1ª Conferência

Unitária dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul, em 16 de setembro de 1996, que, por sua

vez, convocou a Marcha dos Sem, para novembro do mesmo ano.

Em Santa Maria, o MNLM procurou dialogar com o novo Governo Estadual, em 14 de

março de 1995, quando o deputado estadual Marcos Rolim agendou reunião na Prefeitura

Municipal com o secretário de obras, saneamento e habitação do Governo Estadual, Mendes

Ribeiro Filho (BOLZAN, 2002). No entanto, as únicas ações realizadas pelo Governo

Estadual no assentamento na antiga Fazenda Santa Marta foram a realização de um novo

recadastramento dos moradores47

e o impedimento da entrada de materiais de construção na

área por meio da BM – materiais que só seriam liberados após os moradores comprarem seus

47

O recadastramento foi realizado por uma comissão composta pelo Governo Estadual, pela Prefeitura, pela

Câmara de Vereadores, pela UFSM e por representantes dos moradores.

101

lotes –, que, também, retomou o controle da entrada e saída da ocupação (SCHERER, 2005,

p. 14).

O objetivo do recadastramento era fazer o diagnóstico socioeconômico dos moradores

e averiguar possíveis irregularidades entre os ocupantes (como famílias que possuíssem outras

moradias em seus nomes ou que tivessem demarcado mais de um lote), para assim realizar a

cobrança da taxa mensal de cerca de R$ 20,00 por lote, tendo-se constatado ao final do

cadastro a presença de 2,3 mil famílias. Dava-se a entender, desta forma, que se estava

avançando na regularização fundiária do assentamento, no entanto além do estado não

promover melhorias – que só ocorriam lentamente frente a pressão e lutas promovidas pelos

moradores –, esta era uma cobrança ilegal, que mesmo parecendo barata, na prática gerou um

índice de inadimplência que dois anos após instituído já atingia um índice de 75% das

famílias (SCHERER, 2005 p. 18).

Isto levou o MNLM a passar a cobrar um maior protagonismo da Prefeitura

Municipal, ainda sob o comando de Farret. Porém, o Prefeito se negou a assinar um acordo de

co-responsabilidade em junho de 1995, alegando falta de tempo para analisar a proposta

(Ibid., 2005), enquanto, em 1996, discordou da proposta de municipalização da área,

defendida por Fernando Menezes, da coordenação do MNLM e então secretário do Conselho

Municipal de Habitação, alegando falta de recursos para tal (BOLZAN, 2002).

O fato de todas as instâncias governamentais abdicarem de quaisquer

responsabilidades e apoio a resolução das demandas da Nova Santa Marta gerou um quadro

de abandono sobre o local, o que indignava os moradores. Scherer (2008) resgatou inclusive a

letra do samba enredo de um bloco da Nova Santa Marta que ficou em terceiro lugar no

carnaval de 2005 e que já denunciava esse jogo de “empurra-empurra” por parte dos governos

em vigor:

102

Figura 10 – Samba enredo Protesto e Alegria, 3º lugar em 1995

Fonte: Carlos Martins “Romeiro”, Scherer, 2008, p. 44.

Desta maneira, muitos dos problemas básicos existentes desde o início da ocupação

ainda faziam-se presentes, afetando diretamente a qualidade de vida dos moradores da

comunidade. Mesmo com a instalação de água e luz para parte do assentamento durante o ano

de 1996, conforme relata Scherer (2005), muitas demandas ainda se faziam presentes, pois as

melhorias não chegavam para todos ao mesmo tempo, condição esta atestada pela matéria

“Fala Santa Maria” de junho de 1996, uma parceria entre a UAC e o jornal A Razão

abordando a realidade das vilas e bairros da cidade. Em relação à Nova Santa Marta se

afirmava “Sem-teto não. Sem-infraestrutura”, sendo um dos motivos para isto a omissão do

poder público, pois como relatado na matéria, “o presidente da Associação Comunitária Alto

da Boa Vista, Carlo Alberto de Souza Martins, disse que na prefeitura não mais o recebem

para discutir os problemas da vila” (A Razão, 10/06/1996, p. 6):

103

Figura 11 – Sem-teto não. Sem-infraestrutura

Fonte: A Razão, 10/06/1996.

Um grave problema apresentado na reportagem da Figura 11 é o do acesso a educação

aos moradores da comunidade, expresso tanto pela longa distância e baixo número de escolas

que havia na Região Oeste, quanto pelas poucas vagas disponíveis frente à demanda e pela

insuficiência de transporte público para se estudar em outros bairros e no turno da noite. Isto

fez com que, em 1996, momento em que já haviam mais de 3 mil famílias na Nova Santa

Marta, a reportagem afirmasse que “o número de crianças que nunca foram à aula é de

aproximadamente 500 em toda a região” (A Razão, 10/06/1996, p. 7), e que já havia a

possibilidade da construção de uma escola filantrópica dos Irmãos Maristas no assentamento,

bastando apenas a doação do terreno por parte da COHAB-RS. Esta necessidade fez da luta

por creches e escolas uma importante bandeira dos moradores desta comunidade. Suelen

Aires Gonçalves, uma jovem militante do MNLM, relata parte das dificuldades enfrentadas

por quem vivia na ocupação para se ter acesso a educação e o preconceito sofrido por estas

pessoas:

Eu estudava na escola Augusto Ruschi e recordo que para estudar lá foi um

sacrifício, somente consegui vaga pois tinha transferência da minha antiga escola em

Uruguaiana em mãos. Após isso percebi o preconceito por morar na ocupação, que

era chamada de “sem-teto”. Meus colegas não visitavam minha casa, por medo do

local. Recordo também que estar com os pés sujos de barro incomodava os demais

na escola. Criamos então uma tática para evitar o constrangimento com a sujeira:

104

sacolas plásticas nos pés. Recordo também que meus pais tiveram muita dificuldade

em encontrar um emprego, pois quando diziam que moravam na ocupação as

pessoas temiam. Foram anos com essa sensação de insegurança que era transmitida

pela mídia sobre a nossa ocupação! (ENTREVISTA realizada em 13/02/2013).

Somente em 07 de março de 1998, é que foi inaugurada, na Vila Pôr-do-Sol, a Escola

Marista Santa Marta, oferecendo vagas da pré-escola até a 4ª série do Ensino Fundamental de

forma gratuita às crianças da comunidade, porém ainda não dando conta de abranger a sua

totalidade. Em sua dissertação, Vargas (2008) traz à tona a luta da comunidade pela

construção de uma ponte para dar acesso a esta escola:

Avoluma-se neste período a preocupação com as vias de acesso, pois o caminho até

à escola envolvia a travessia de uma sanga. Desde então começaram passeatas, envio

de cartas às autoridades municipais, as manifestações públicas com a participação

dos alunos. (2008, p. 21).

Scherer (2005, p. 19) relata que desde 1997 a Associação Comunitária do Alto da Boa

Vista já solicitava à Prefeitura Municipal a construção desta ponte, que por sua vez a

ignorava. Apenas após o início das aulas, quando um casal de irmãos foi levado sanga abaixo

em um dia de chuva intensa e com a subsequente intensificação da mobilização dos

educandos e da comunidade é que o poder público atendeu a reivindicação popular e

canalizou a sanga.

A Escola Marista Santa Marta tem se constituído ao longo dos anos como mais um

importante instrumento de conscientização e organização da comunidade, atuando com o

MNLM em diversas questões e abrindo suas portas para a realização de atividades que

beneficiem a Nova Santa Marta. Como exemplos de ações construídas pela escola com seus

educandos e por meio do Centro Social Marista (que possui uma equipe multiprofissional

composta por assistente social, psicóloga, pedagoga, enfermeira, dentistas), podemos destacar

diversos projetos extraclasse, como capoeira, teatro, dança de rua, aulas de informática,

cursos, atividades de geração de renda e atenção primária a saúde, o Projeto Cidadania,

Projeto Meio Ambiente, o Centro Marista de Inclusão Digital (CMID), a realização anual dos

mutirões da consciência ambiental, a caminhada pela paz, dentre outros eventos e atividades

voltadas para a comunidade e suas pautas. Um exemplo deste envolvimento com a

comunidade pode ser conferido na capa do jornal A Razão, de 04 de junho de 1999:

105

Figura 12 – Caminhada ecológica na Nova Santa Marta

Fonte: A Razão, 04/06/1999.

Outra questão relacionada a esta escola destacado por Scherer foi o fato de que a

criação desta foi um fator que motivou a que mais famílias viessem se instalar na Nova Santa

Marta, ampliando-a e gerando novas ocupações espontâneas nos campos em seu entorno,

como as ocupações Maristas I e II. Para este pesquisador, “o fato de surgirem mais famílias

dispostas a permanecer um longo período sem água encanada e energia elétrica comprova

ainda a necessidade do estado realmente investir em habitação” (2008, p. 48). Foi neste ano,

também, que ocorreu de forma coletiva a ocupação que originou a Vila 18 de Abril, “sendo no

início uma iniciativa de alguns taxistas e motoristas da cidade” (Idem, 2006, p. 10).

A ampliação das ocupações espontâneas nas áreas verdes adjacentes aos locais já

estabelecidos se dava, também, devido a prática relatada por Garcia, com base em Figueiró et

al (2001), de algumas prefeituras da região “cujas administrações chegam até mesmo a

contratar veículos para „despejar‟ parte de sua população excluída na área da fazenda Santa

Marta, transferindo assim uma parcela dos seus déficits habitacionais” (2006, p. 22) para

Santa Maria. Isto contribuía não apenas para ampliar o número de membros da ocupação,

mas, também, seus problemas internos (como furtos, violência, ocupações desordenadas e em

zonas de risco ambiental) e o próprio preconceito dos demais bairros da cidade para com a

“invasão dos sem-teto”.

Pode-se afirmar que um dos maiores obstáculos enfrentados pelos moradores da Nova

Santa Marta foi a superação do estigma sofrido por estes (chamados “invasores”, “sem-teto”,

termos amplamente disseminados pela mídia local), principalmente no centro da cidade, mas,

também, presente em outras vilas e bairros, algo que, também, contribuiu para a letargia dos

agentes governamentais, que possuíam outro público prioritário, assim como para uma

postura mais repressiva das forças policiais para com os moradores deste local. A ausência de

106

regularização fundiária determinava a inexistência de um endereço oficial, seja para o

recebimento de correspondências, seja para a abertura de um carnê em uma loja ou uma conta

em banco, o que, também, dificultava a vida e a busca por empregos aos moradores da

comunidade Nova Santa Marta algo que levou uma moradora a afirmar que “na hora que

procuramos serviço nos atendem normalmente, mas quando fornecemos o endereço, a vaga já

está preenchida” (WEBER, 2000, p. 49).

Estes estereótipos são reproduzidos inclusive por moradores de comunidades de baixa-

renda próximas à Nova Santa Marta, conforme apontou Melara (2008) em seus estudos sobre

a violência criminal em Santa Maria, como moradores do bairro Juscelino Kubitschek e da

Vila Jóquei Clube, que os apontam como os principais responsáveis pela criminalidade nesta

parte da região Oeste da cidade. Melara considera que existe todo um contexto social a partir

do qual se forma um “criminoso” na Nova Santa Marta, enquanto um reflexo da segregação

induzida, carências socioeconômicas e de infraestrutura, desemprego, preconceito, sendo que

“estes criminosos praticam pequenos delitos, pois são pessoas pobres e com baixo nível de

instrução, que se sujeitam a pequenos roubos e furtos na periferia pobre, no próprio bairro ou

no bairro vizinho” (2008, p. 154). Sua pesquisa, referente ao ano de 2003, assinala que:

Na zona oeste, a questão da criminalidade é representada principalmente pelos

bairros Nova Santa Marta e Juscelino Kubitschek. O bairro Nova Santa Marta

apresenta quantidades elevadas de presos oriundos de sua área. As principais causas

de prisão dos mesmos estariam atreladas às ocorrências de furtos e assaltos. Muitos

desses crimes podem estar vinculados à questão de consumo de drogas. Estima-se

que existam no bairro pequenos traficantes, os quais podem ser, ao mesmo tempo,

traficantes e consumidores de drogas. O bairro Juscelino Kubitschek destaca-se pela

elevada quantidade de ocorrências criminais presentes no local relacionadas

principalmente a furtos, roubos e agressões. As causas da quantidade elevada desses

crimes podem, em parte, estar ligadas aos presos do bairro Nova Santa Marta. Pelo

trabalho de campo realizado verifica-se também a existência, no bairro, de pequenos

traficantes e consumidores de drogas.

É importante salientar que a zona norte e oeste da cidade se caracterizam por uma

quantidade elevada de pessoas com um baixo nível salarial, baixos níveis de

instrução e uma infra-estrutura urbana deficiente. Apresentam também um número

elevado de ocupações clandestinas, as quais possuem características sócio-

econômicas, condições de habitação e saneamento básico ainda mais precárias.

Neste sentido, pode-se dizer que todos estes fatores, de certa forma, tendem a

influenciar no processo de criminalidade nesses locais. Já foi visto que a “pobreza” é

funcional ao sistema do tráfico de drogas e que muitos crimes decorrem deste, como

é o caso de alguns tipos de furtos e roubos. Verificou-se ainda, que na zona oeste, o

crime que ocorre com maior freqüência é o furto a residências, visando aparelhos de

som, eletrodomésticos, bicicletas, calçados e roupas, os quais são objetos de pouco

valor econômico, denunciando que os praticantes desses crimes seriam pessoas

pobres e as vítimas, na sua maioria, seriam pessoas de classe média-baixa. (2008, p.

158-159).

107

Percebe-se, assim, um vínculo entre exclusão social e a segregação espacial, elementos

que compõem a dinâmica do capital no ambiente urbano, com a questão da criminalidade

entre os pobres e que possui maior visibilidade devido à histórica dinâmica de repressão

seletiva, direcionada prioritariamente ao público periférico e, principalmente, aos jovens e

negros. Durante muitos anos, a principal forma de atuação do Estado na Nova Santa Marta se

deu basicamente por meio de seus aparatos repressivos, o que contribuiu para aumentar sua

fama enquanto um “local perigoso”, “onde só tem bandido”. A atuação dos grandes meios de

comunicação tende apenas a reforçar tais estigmas e estereótipos, contribuindo assim com a

criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, como podemos perceber analisando a

manchete na capa do jornal A Razão, de 04 de março de 1999 (Figura 13), em que os

manifestantes da ocupação do Km 2, articulados pelo MNLM, acamparam na praça central da

cidade, sendo tratados como “invasores” da área reivindicada:

Figura 13 – Ocupação ou invasão? Moradores da Ocupação Km 2 acampam na Praça Saldanha Marinho

Fonte: A Razão, 04/03/1999.

Foi visando acabar com este preconceito que, em 1999, a professora aposentada Ruth

Goulart realizou uma campanha junto às escolas e entidades para incentivar o uso do nome

“Nova Santa Marta” (SCHERER, 2005, p. 22), que passou a ser utilizado com maior

intensidade tanto pelos moradores, como na própria cidade, especialmente a partir de 2006,

quando a Nova Santa Marta passou a ser considerada um Bairro e existir no mapa urbano da

cidade.

Ainda no ano anterior (1998), o Movimento seguia pautando a municipalização da

área ocupada como forma de facilitar as negociações por regularização e infraestrutura. No

entanto, apenas o que se conseguiu foi que fosse firmado entre a Prefeitura (então sob gestão

108

de Osvaldo Nascimento) e o Governo Estadual um ato de intenções, nas vésperas das eleições

para o Governo do Estado, como ressalta Scherer:

Dia 21 de setembro de 1998, o Governador em exercício, Vicente Bogo, veio a

Santa Maria para assinar um ato de intenções entre os governos Estadual e

Municipal. Este ato de intenções previa uma transferência lenta e gradual de 304 ha

da Nova Santa Marta para responsabilidade da Prefeitura Municipal. O estado ficaria

com a responsabilidade de asfaltar as ruas durante o período de transição, não se

eximindo da responsabilidade de entregar a área com alguma melhoria, e o

Município ficaria com o restante das obrigações. Desta maneira acabaria em parte o

“jogo de empurra-empurra” que existira entre estado e Município. (2008, p. 49).

Na prática, tal transição não se efetivou, pois o Governo Estadual não se reelegeu e o

acordo assinado ficou apenas no plano das intenções, enquanto marketing eleitoral.

Entretanto, com o início do Governo da Frente Popular48

no Rio Grande do Sul, reabriu-se a

possibilidade de implementação de um projeto de Reforma Urbana para a Nova Santa Marta.

Assim, logo no início de 1999, em meados de fevereiro, os moradores da Nova Santa

Marta, em conjunto com o MNLM, realizaram uma audiência, em Porto Alegre, com o novo

Governador eleito (Figura 14) para cobrar não apenas melhorias, mas um projeto para a área,

algo pautado desde o princípio da ocupação, uma demanda com a qual o Governador Olívio

Dutra se comprometeu (SCHERER, 2008, p. 49-50). Somente então, e com a criação da

Secretaria Especial de Habitação (SEHAB), primeira secretaria estadual voltada

especificamente para a questão da habitação no Rio Grande do Sul, no Governo Olívio,

encontrou-se vontade política para que isto realmente se efetivasse. Assim, a questão da

municipalização da Nova Santa Marta foi deixada de lado pelo Governo e pelo Movimento,

assim como a cobrança aos moradores pelos terrenos por parte do Governo Estadual.

Figura 14 – Audiência da comunidade com o governador em Porto Alegre

Fonte: SCHERER, 2005, 23.

48

A Frente Popular era composta por PT, PCdoB, PSB e PCB, tendo sido vitoriosa nas eleições de 1998 no Rio

Grande do Sul.

109

Já no mês seguinte, iniciaram-se as tratativas entre o Governo Estadual, a Prefeitura, a

Câmara de Vereadores, a UFSM, a COHAB, a Fundação Estadual de Proteção ao Meio

Ambiente (FEPAM), associações comunitárias e entidades religiosas, para a construção do

projeto (A Razão, 06/03/1999), cujo esboço foi apresentado pelo Secretário Especial de

Habitação, Ary Vanazzi (um dos fundadores do MNLM no estado), em 15 de abril de 1999,

em Santa Maria, conforme noticiado pela mídia local:

Figura 15 – Comunidade Conquista Projeto Santa Marta

Fonte: A Razão, 15/04/1999.

As entidades citadas formaram uma comissão executiva que se reunia semanalmente

na Escola Marista, tendo por objetivo discutir e encaminhar as necessidades mais urgentes do

assentamento. Foi por meio desta, por exemplo, que foram criadas as caixas postais

comunitárias para o recebimento de correspondências, a criação de um escritório para

trabalhos técnicos na Escola Marista, o cercamento das áreas não ocupadas, a iluminação de

mais de 238 novos pontos, a abertura e o empedramento de diversas ruas, a criação de grupo

de geração de trabalho e renda e a ligação de telefones residenciais, dentre outros avanços

(SCHERER, 2005, p. 25).

O denominado “Projeto de Reorganização Espacial, Qualificação Urbana e

Regularização Fundiária Santa Marta”, ou apenas “Projeto Santa Marta”, visava transformar a

ocupação em um novo bairro. Para isto, previa um conjunto de melhorias ao assentamento

urbano, tais como “remoção das famílias das áreas de risco, abertura de ruas, instalação de

energia elétrica, saneamento básico, dentre outras prioridades” (PINHEIRO, 2002, p. 75), e

foi dividido em duas fases: uma de regularização fundiária, com a realização do levantamento

das condições físicas da área e do número e perfil das famílias para legalização dos lotes, e a

segunda de reorganização espacial e qualificação urbana (Ibidem, 2005).

110

Esta fase de levantamento das condições físicas e sociais da ocupação foi realizada por

uma comissão encabeçada pela UFSM, responsável pelo geoprocessamento da área e pela

realização de cadastramento socioeconômico com a aplicação de questionários aos moradores,

tendo apontado a presença de 3287 famílias (SCHERER, 2008, p. 51). Este processo gerou

diversos trabalhos e pesquisas, a exemplo da monografia de Santos (2000) sobre a qualidade

ambiental das Vilas 10 de Outubro e 7 de Dezembro, a qual, considerando diversos fatores

socioambientais49

, constatou a existência de uma baixa qualidade ambiental na maioria dos

lotes, e portanto, uma baixa qualidade de vida de seus moradores, fruto das desigualdades

socioeconômicas, educativo-culturais e ambientais propriamente ditas (SANTOS, 2000).

A partir do dia 16 de agosto de 1999, iniciaram-se as obras de melhorias urbanas na

Nova Santa Marta em parceria entre o Governo Estadual, Municipal e os moradores da

comunidade, de acordo com matéria publicada em A Razão de 17/08/1999:

Figura 16 – Inicia Projeto Santa Marta

Fonte: A Razão, 17/08/1999.

É importante destacar que o Projeto Santa Marta não previa ações apenas para a

comunidade da Nova Santa Marta, mas, também, para o conjunto da antiga fazenda, conforme

exposto na cartilha informativa do projeto, em que se apresentavam propostas de

49

Os principais fatores considerados nesta pesquisa foram lotação da casa, renda familiar, acesso a lazer,

escolaridade e acesso a informação, uso do solo e problemas ambientais, destino do lixo, destino do esgoto

sanitário e doméstico, fonte de abastecimento de água, acesso a saúde, regularização fundiária, existência de

parasitas, tipo de moradia, todos estes fatores que geram um ambiente adequado.

111

desenvolvimento econômico, rural e ambiental, como a revitalização do Distrito Industrial,

criação de assentamento da Reforma Agrária de Novo Tipo (inaugurado em 2000),

recuperação do lixão, criação de um Parque Florestal e de lazer, dentre outras. A ideia era

realizar políticas públicas integradas, envolvendo educação, cultura, lazer, saúde, transporte e

trabalho, para assim construir um projeto de desenvolvimento local autossustentável, de

ampla abrangência social e que representasse uma “ruptura de modelo”, alicerçada na

participação popular por meio de um processo de radicalização da democracia. Procurava-se,

assim, realizar um projeto transformador daquela realidade, e que ao mesmo tempo fosse

parte de um projeto societário alternativo ao que vinha sendo implementado em nível

nacional. A passagem abaixo elucida melhor o que foi dito aqui:

Esta integração de projetos – combinada com ações de inclusão social embasados na

participação popular –, faz da Santa Marta uma experiência inovadora que se

contrapõe à ausência de iniciativas e investimentos pela União em políticas sociais,

imposto pelo modelo que defende o Estado mínimo. (INFORMATIVO DO

PROJETO SANTA MARTA, 1999, p. 3).

A radicalização da democracia para definição de prioridades e políticas públicas foi

efetivada por meio da criação de um Conselho Popular da Nova Santa Marta, de caráter

deliberativo e fiscalizador, quando, em 6 e 7 de maio de 2000, foram realizadas assembleias

em que elegeram-se 130 delegados e 130 suplentes representantes de todas as quadras da

ocupação, além de possuir representantes de organizações da sociedade civil e instituições

públicas (que em sua totalidade não poderiam superar a 20% do número de delegados da

comunidade). A posse do Conselho Popular ocorreu em 20 de maio, na Escola Marista Santa

Marta, momento em que foi aprovado seu Regimento Interno. A solenidade de posse contou

ainda com a presença do Vice-Governador do Estado, Miguel Rosseto, do Secretario Especial

de Habitação, Ary Vanazzi, e do diretor do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem

(DAER), Hideraldo Caron (A Razão, 22/05/2000).

Outra importante ação pautada pela comunidade e realizada pelo Projeto foi a

construção da Escola Estadual Nova Santa Marta, inaugurada em julho de 2001, na Vila

Núcleo Central, ofertando todo o Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos

(SCHERER, 2008, p. 53).

Avançavam, também, entre 2001 e 2002, os trabalhos de reestruturação do

assentamento, utilizando-se do levantamento cartográfico realizado pela UFSM a fim de

implementar ações de organização das quadras e ruas, para assim se poder efetivar a

urbanização do local, principalmente das ocupações mais recentes e que ocorreram de forma

112

mais desordenada, como a Marista I e II, que a partir de então passaram a contar com água e

luz (Idem, 2008, p. 54). Podemos conferir, através da sequência de imagens da Figura 17, uma

parte do processo de transformações que a Nova Santa Marta vivenciou no período:

Figura 17 – Reorganização das Vilas Maristas I e II: a) residência sendo notificada por funcionários da prefeitura

e estado em 2002; b) projeção da rua no lugar da casa; c) rua já estruturada; d) rua após intervenção do PAC.

Fonte: SCHERER, 2008, p. 54; Arquivo pessoal, 2013.

Um grande, talvez o principal problema, colocado ao Governo Estadual para

implementar o Projeto Santa Marta, foi a questão da falta de recursos públicos para a

efetivação de um projeto deste porte, pois não haviam auxílios por parte do Governo Federal

para isto, o que limitou em muito a possibilidade de atuação do Governo estadual. Chegou-se,

inclusive, a se articular apoio de ONGs internacionais para viabilizar o Projeto, com a vinda

em 2001, por exemplo, da ex-primeira dama francesa Danielle Mitterrand (então presidenta

da Fundação France Libertés) à Nova Santa Marta (URRUTIA, 2002, p. 56) e, também, de

um representante da ONG espanhola Fundação Centro de Iniciativas e Investigações

Europeias no Mediterrâneo (CIREM) para auxiliar, através de cooperação técnica, na

elaboração do Plano Diretor do Projeto Santa Marta (BOLZAN, 2002, p. 87).

Tudo isto demonstra que, por mais que houvesse vontade política e real interesse do

Governo Olívio em solucionar as demandas da Nova Santa Marta e construir um projeto

113

participativo de Reforma Urbana, que se tornasse uma referência em termos de regularização

fundiária e reorganização espacial de uma região excluída e segregada, e mesmo contando

com uma parceria mais efetiva com a Prefeitura Municipal após a posse de Valdeci Oliveira

(PT), em 2001, isto foi insuficiente para implementar o Projeto Santa Marta na íntegra.

Seu grande mérito foi, justamente, ser o primeiro governo a dar importância real e ter

a coragem de romper com o ciclo de abandono e de estagnação em termos de políticas

públicas para com esta ocupação, apresentando um verdadeiro Projeto para a mesma.

Diversas melhorias em termos de infraestrutura e organização no assentamento foram

realizadas, assim como avanços na área da saúde e educação, porém ainda ficou inconclusa a

questão da regularização fundiária e a posse dos lotes por seus moradores. O Governo da

Frente Popular, com a candidatura de Tarso Genro, não conseguiu se reeleger e o Projeto

Santa Marta foi abandonado pelos governos seguintes, dando fim, também, a experiência do

Conselho Popular local. Nas palavras de Botega:

Infelizmente as mudanças de orientação política nos governos estaduais, que

tomaram posse, respectivamente, em 2003 e 2007, contiveram os avanços relativos a

este projeto entre 1999-2002. Mesmo assim, alguns progressos significativos foram

feitos na região, sobretudo no que diz respeito à educação. (2010, p. 88).

Outro avanço significativo relacionado à educação foi a conquista da construção de

uma escola municipal na Nova Santa Marta, em um local que havia sido preservado sem

moradias. O MNLM e os moradores da ocupação, já calejados de tantas batalhas e dos usos

eleitoreiros da Nova Santa Marta, com a realização de pequenas melhorias em vésperas de

eleições por parte de governantes, tinham consciência de que não bastava apenas eleger

representantes e esperar pela ação destes para se gerar as melhorias necessárias, conforme

explica Vanderlei dos Santos:

O movimento da moradia sempre tratou todos os governos como qualquer governo,

nossa pauta de reivindicação, fosse o governo que fosse, a gente nunca mudou um

item na pauta e nem vai mudar, o movimento tem uma política diferenciada, todo

governo tu tem que fazer tua pauta e levar lá, eles não vem cá pra ver o que precisa,

embora se tenha um governo de esquerda, quando é governo eles mudam

completamente (...) (ENTREVISTA realizada em 11/02/2013).

Partindo desta compreensão, e da crescente necessidade por mais educação na

comunidade, foi que, na Caminhada da Cruz do ano de 2003, realizada anualmente nas

Sextas-Feiras Santas, “dia em que a comunidade caminha em procissão, com uma cruz a ser

cravada no local eleito para abrigar a meta estabelecida para o ano” (MATTIONI, 2010, p.

114

77), os moradores decidiram pautar a criação de uma escola municipal, reivindicação esta que

foi atendida pela Prefeitura. Já no ano seguinte, em 06 de março de 2004, foi inaugurada, na

Vila Marista II, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Adelmo Simas Genro, garantindo

a oferta de mais de 700 vagas às crianças e EJA, abrigando, também, em suas dependências

uma Equipe de Estratégia Saúde da Família, além de desenvolver diversos projetos.

Outra luta relacionada à questão da educação foi a protagonizada pelos estudantes da

Escola Marista, em setembro de 2003, quando protestaram por melhorias no pontilhão que

ligava a vila Alto da Boa Vista com a 7 de Dezembro (Figura 18), de forma que “para forçar

uma solução os alunos fizeram cartas convidando o Secretário Municipal de Viação e

Transporte a participar da caminhada que reivindicava uma nova ponte de concreto”

(SCHERER, 2005, p. 29). Ainda em relação a esta escola, mais um avanço obtido foi a

ampliação de suas turmas, contemplando todos os anos do Ensino Fundamental a partir de

2006, quando os demais anos passaram a ser gradativamente implementados.

Figura 18 – Protesto contra a precariedade do pontilhão

Fonte: Blog Comunidade Nova Santa Marta50

.

Todo este processo histórico, narrado até aqui, demonstra que, apenas ocorreram

melhorias e avanços na Nova Santa Marta a partir de sua organização e luta. Após o fim do

Projeto Santa Marta, poucas foram as iniciativas levadas a cabo pelos governos estaduais, o

que fez com que diversos locais que haviam sido reformados, voltassem a se tornar precários,

e problemas cotidianos, como a falta de água periódica, seguisse ocorrendo.

50

Ver: <http://www.comunidadenovasantamarta.blogspot.com.br>.

115

O mesmo pode ser colocado em relação ao Governo Municipal, pois mesmo durante o

período em que Valdeci Oliveira foi Prefeito, chegou-se a promover algumas pequenas

melhorias na comunidade, no entanto, apenas após pressão, ficando ainda muito aquém do

necessário e do possível de ser realizado, dado o caráter contraditório de seus mandatos.

Em diversos momentos, como nos períodos de discussão sobre aumentos de tarifa do

transporte público na cidade, o MNLM se mobilizou em conjunto com o Movimento

Estudantil e posicionou-se de forma crítica à Prefeitura, a exemplo das mobilizações entre

abril e junho de 2005, que culminaram com o trancamento efetivado por estudantes,

sindicatos e militantes do MNLM, da empresa de transporte Medianeira, na manhã do dia 01

de junho (data da Jornada de Lutas pela Reforma Urbana51

), os quais, logo em seguida,

ocuparam o prédio da 8ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), ao lado do Colégio

Estadual Cilon Rosa, que estava há quatro anos abandonado (tendo se tornado um ponto de

prostituição e tráfico de drogas), para assim pautar sua reforma, o que de fato foi conquistado,

de forma que aquele prédio voltou a sediar a 8ª CRE – Figura 19. Nas semanas seguintes, o

MNLM também ocupou uma área no Cerrito, reprimida por milícias e pela ação da Brigada

Militar, além de um antigo terminal da Central Estadual de Abastecimento S.A.(CEASA), o

qual, posteriormente, foi demolido durante o Governo de Yeda Crusius, do Partido da Social

Democracia Brasileira (PSDB).

51

As pautas defendidas nesta mobilização eram: mudanças na política econômica do país; aumento do salário

mínimo regional; reforma urbana e agrária; qualidade no transporte, redução da tarifa e manutenção dos direitos;

reforma do prédio abandonado da 8ª CRE.

116

Figura 19 – Trancamento da empresa Medianeira de transporte e ocupação do prédio abandonado da 8ª CRE, em

01/06/2005

Fonte: Blog Cratera Urbana, 26/05/200752

.

Entre 20 de novembro e 07 de dezembro de 2006, foram realizadas diversas atividades

alusivas aos 15 anos da ocupação da Nova Santa Marta (Figura 20), organizadas pelo MNLM

e por escolas e entidades religiosas da comunidade, com o objetivo de valorizar o histórico do

local, mobilizar e conscientizar os moradores. Poucos dias depois, em 29 de dezembro, o

Prefeito assinou a Lei Complementar nº 42, instituindo uma nova divisão urbana municipal

(revogando a lei anterior, nº 2270 de 1986), de forma que, em seu artigo 49, designou-se a

Nova Santa Marta como um novo Bairro de Santa Maria (ver Figura 21), ainda que carecendo

de regularização fundiária (VARGAS, 2008).

Figura 20 – Ato referente aos 15 anos de ocupação da Nova Santa Marta

Fonte: Blog Comunidade Nova Santa Marta.

52

Ver: <http://crateraurbana.blogspot.com.br/2007/05/pra-no-dizer-que-no-falei-de-flores.html>.

117

Figura 21 – Mapa com a localização do Bairro Nova Santa Marta

Fonte: MELARA, 2008, p. 137.

3.2.2 “Com luta, com garra, o PAC sai na marra”

Uma grande possibilidade aberta no ano de 2007 foi a criação, por parte do Governo

Federal do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na modalidade “urbanização de

assentamentos precários”, o que motivou o MNLM a organizar um forte processo de

mobilização na Nova Santa Marta – que neste momento já contava com mais de 22 mil

moradores em cerca de 5 mil moradias – a fim de garantir a sua inclusão no programa. Em

articulação do Movimento com a CMP, as seis associações comunitárias do bairro, as escolas,

os centros sociais, a Sociedade Assistencial e Educativa Mãe Admirável (SAEMA), após

várias reuniões preparatórias, realizaram uma manifestação, contando com cerca de 300

pessoas, em 27 de abril de 2007, a qual bloqueou a rodovia, por mais de uma hora, em que se

exigiu uma audiência com o Prefeito e os demais níveis de governo.

Logo em seguida, em 03 de maio, reuniram-se com o Governo Estadual e, no dia 09

foram à Brasília reunir-se com o Ministério das Cidades e Secretário de Habitação e Prefeito,

118

conseguindo, assim, colocar a Nova Santa Marta como uma área de possível intervenção do

PAC. Além disso, foram realizados, também, um ato em Porto Alegre e uma audiência

pública com mais de 1500 pessoas no ginásio da Escola Marista (VARGAS, 2008, p. 152),

em que os representantes dos três níveis de poder alegaram que esta seria uma prioridade.

Em 13 de junho, também, foi realizada uma manifestação no centro da cidade, com

cerca de 300 pessoas das ocupações Canaã, Km2, Km3 e Nova Santa Marta, a fim de cobrar

melhorias emergenciais nos locais de ocupação, apoio para o PAC no Km2, Km3 e Nova

Santa Marta, além de Ensino Médio nos mesmos locais (Blog do MNLM-SM, 14/06/2007).

Tudo isto foi fundamental para garantir que, dos R$ 138,6 milhões de reais em investimentos

aprovados para projetos em Santa Maria, R$ 39,9 milhões fossem destinados para a Nova

Santa Marta, o que foi assegurado em 13 de agosto, quando saíram dois ônibus a Porto Alegre

para acompanhar a assinatura do termo de adesão.

119

Figura 22 – Trancamento da BR 258, em 27/04/2007, pela inclusão da Nova Santa Marta no PAC e

Manifestação das ocupações no centro da cidade em 13/06/2007

Fonte: Blog do MNLM SM e Diário de Santa Maria, 14/06/2007.

A importância da aprovação do PAC para o bairro não se dava apenas por permitir

investimentos em urbanização, infraestrutura e saneamento básico para o seu território, mas,

também, pelos investimentos em ações sociais inerentes ao programa e, principalmente, pelo

avanço no processo de regularização fundiária dos lotes, pois para ser realizado, também,

seria necessária a legalização da área, que ainda pertencia ao estado (MATTIONI, 2010, p.

86). Em sua dissertação, Mattioni apresenta outros benefícios que a implementação do PAC

poderia gerar para melhoria da qualidade de vida dos moradores:

A efetivação das obras de infraestrutura (principalmente saneamento, pavimentação

e habitação) está diretamente relacionada à melhoria do nível de Determinação

Social da Saúde no qual se encontram as condições de vida. Desta maneira, embora

não articulada intersetorialmente e com o propósito específico de melhorar a saúde,

as obras do PAC podem ser consideradas uma prática de Promoção da Saúde, pelo

impacto que representam nas condições de vida da comunidade. (2010, p. 85).

O passo seguinte seria, então, o repasse do território do Bairro para a Prefeitura de

Santa Maria, porém, após o Governo Estadual adiar por quatro vezes a transferência da área,

os moradores indignados ocuparam o escritório regional da COHAB-RS, em 13/11/2007

exigindo a demanda53

. Assim, o repasse ocorreu, ainda que de forma parcial, quando, em 30

de novembro de 2007, a Governadora Yeda Crusius veio a Escola Marista Santa Marta e, em

ato público, assinou um termo de uso da área pela Prefeitura (e não o repasse da escritura

53

Blog Diário da Cratera Urbana, 14/11/2007.

120

desta), o que permitia que se pudesse apenas abrir as licitações para escolha das empreiteiras

que fariam as obras e a regularização.

Figura 23 – Após muita pressão, Governadora assina termo de uso da Nova Santa Marta para Prefeitura

Fonte: MATTIONI, 2010, p. 87.

Para a abertura das licitações, também, se fazia necessário a aprovação de Projeto de

Lei na Câmara de Vereadores, autorizando a Prefeitura a fazer isto. Novamente, os moradores

da comunidade se mobilizaram para acompanhar a sessão da Câmara, no dia 13 de dezembro

de 2007, a fim de garantir a aprovação do Projeto de Lei nº 7017, que autorizava o Poder

Executivo a contratar financiamento com a CEF e oferecer garantias, em um total de R$

63.650.000,00, dos quais R$ 39,9 milhões54

destinados à Nova Santa Marta. Esta foi a sessão

da Câmara santa-mariense mais longa da qual se tem registro, tendo iniciado as 15hs da tarde

e finalizado as 7:30hs da manhã do dia seguinte. Os moradores permaneceram em vigília do

início ao final da sessão e o projeto foi aprovado por unanimidade (VARGAS, 2008, p. 24-

25). Aprovou-se, assim, um grande avanço, o que representou uma enorme conquista para

aqueles que, historicamente, foram abandonados pelo Estado, tendo em vista que os recursos

aprovados para este bairro eram maiores do que aqueles destinados a maioria dos municípios.

O projeto do PAC na Nova Santa Marta previa a pavimentação das ruas e a drenagem

pluvial nas sete vilas, a construção de 36 km de rede de esgoto, áreas de lazer e centros

comunitários, a construção de 145 casas para retirar moradores de áreas de risco, a realização

54

Com a contrapartida da Prefeitura, este valor subiria para R$ 42 milhões e complementação posterior ampliou

para cerca de R$ 50 milhões os recursos a serem investidos no bairro.

121

de melhorias em outras 355 casas e a regularização das 5 mil famílias, além de atividades de

trabalho social no decorrer da implementação (Diário de Santa Maria, 03/04/2010).

Assim, após vários meses de lutas, abriram-se as licitações, sendo que algumas obras

iniciaram, mas correndo o risco de serem paralisadas ou atrasadas. O motivo foi o fato de o

Governo Estadual ficar postergando o repasse da escritura da área para a Prefeitura55

, fator

necessário para que se pudesse assinar o contrato e a CEF pudesse liberar os recursos para as

empreiteiras. Logo, novamente os moradores precisaram se mobilizar para pressionar o

Governo Estadual a tomar esta atitude, quando, em 30 de abril de 2008, cerca de um ano após

a manifestação de trancamento da BR 258, mais de 300 pessoas foram para Porto Alegre se

manifestar em frente ao Palácio Piratini, obtendo então a promessa de que, em uma semana,

estaria tudo resolvido (Diário de Santa Maria, 01/05/2008, p. 6).

Figura 24 – Manifestação em Porto Alegre pressiona Governo a repassar a escritura da Nova Santa Marta ao

Município

Fonte: Blog do MNLM SM.

Somente após muitas lutas, disputas e negociações começaram a ser realizadas parte

das obras do PAC na Nova Santa Marta, como pavimentação e saneamento. No entanto, em

2009, muitas das ações previstas para a implementação do PAC simplesmente estavam

paralisadas, pois o jogo de empurra-empurra continuava. O Governo Estadual, descumprindo

sua palavra, ainda não havia repassado a escritura da área para a Prefeitura Municipal, agora

sob gestão de Cezar Schirmer (PMDB) e José Farret (PP), alegando problemas burocráticos.

Isto fez com que fosse necessária inclusive uma intervenção do Governo Federal, com a vinda

55

A principal hipótese que destaco para explicar esta letargia por parte do governo estadual é o fato de que 2008

era um ano de eleições municipais. Assim, sendo realizadas obras de melhorias em um município governado por

um partido rival, isto geraria um bônus político que poderia beneficiar o mesmo no pleito, assim como seus

candidatos a vereador. Ou seja, novamente o conservadorismo e interesses eleitoreiros prejudicaram a população

da Nova Santa Marta.

122

da Ministra-Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, a Santa Maria, em 23 de abril, para

vistoriar o andamento das obras e assinar ordens de serviços para pavimentação e drenagem

na Nova Santa Marta, agilizando, assim, parte das obras (Blog do MNLM-SM, 22/04/2009).

Apenas em 23 de setembro deste ano, após muita pressão sobre os governos Municipal

(pelo andamento das obras paradas em diversas locais56

) e Estadual, foi que a governadora

Yeda Crusius veio a Santa Maria repassar a escritura da área de 254 ha à Prefeitura, em

cerimônia realizada na Escola Marista Santa Marta, passando agora toda a responsabilidade

do andamento das ações do PAC no bairro para a Prefeitura (Diário de Santa Maria,

24/09/2009).

Figura 25 – Governadora repassa escritura da área para prefeito Cezar Schirmer, em 23/09/2009

Fonte: Diário de Santa Maria, 24/09/2009.

Tudo isto demonstra as dificuldades colocadas aos moradores da Nova Santa Marta e

demais ocupações urbanas da cidade para terem seus direitos garantidos, pois, mesmo após a

aprovação de recursos e políticas para tal, continuam sendo negligenciados pelos governantes.

Com a transferência da escritura da área para o Município, acreditava-se que se

encerrariam o jogo de empurra-empurra e a apatia do poder público, porém, o que se verificou

com o tempo, é que esta apenas mudou de endereço, demonstrando uma enorme falta de

interesse e vontade política. Os anos seguintes foram – e continuam sendo – anos dramáticos

aos moradores.

Isto se verifica quando observamos os diversos projetos e recursos que foram

aprovados para a Nova Santa Marta nos últimos anos – coisas muito difíceis de acontecer em

56

Como a retomada das obras paradas no Loteamento Cipriano da Rocha, lentas no Km2 ou sequer iniciadas,

como no Km3, além das ações de Trabalho Social e a criação de espaços de participação popular com controle

social nos projetos, sendo que, em todos os momentos, os coordenadores do PAC na cidade alegavam

compromisso com o seu andamento (Blog do MNLM, agosto e setembro de 2009).

123

comunidades periféricas – e que poderiam ser implementados, gerando, assim, dignidade e

melhores condições de vida. Bastaria para isto que houvesse a regularização fundiária, algo

que, infelizmente, vem sendo sistematicamente boicotado pelo Governo Municipal, desde

2009. Projetos como a construção da escola estadual de ensino técnico, as moradias pelo

Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, a Praça da Juventude, a creche e o próprio

PAC, todas foram aprovados pelos governos Estadual e Federal e estão todos emperrados na

burocracia da falta de legalização da área.

Um dos poucos avanços obtidos no último período (e que não dependia do Governo

Municipal) foi a implementação do Ensino Médio na Escola Estadual do Bairro, a partir de

2012, algo que vinha sendo pautado há vários anos, tendo em vista que as escolas do Bairro

ofereciam apenas o Ensino Fundamental para mais de 2000 estudantes, sendo que a maioria

destes jovens, quando o encerravam, ou paravam de estudar ou enfrentavam muitas

dificuldades para se manterem estudando (desde falta de vagas para todos nas escolas dos

bairros vizinhos, até dificuldades de pagar pelo transporte público), gerando assim alta

evasão. O início das aulas de Ensino Médio na Escola Estadual, em 2012 (e que já estava

aprovado desde 2011), se deu poucas semanas após o anúncio por parte do Governo do

Estado da construção de uma Escola de Ensino Técnico Estadual, a ser construída em área

localizada atrás da Escola Estadual já existente, com um investimento de R$ 7 milhões em

parceria com o MEC, vindo a beneficiar mais de 1,2 mil estudantes.

A bandeira do Ensino Médio e Técnico já vinha sendo pautada há anos, em diversas

reuniões, lutas e articulações construídas pela comunidade, como nos relata uma matéria

publicada no blog do MNLM. De acordo com o texto, esta luta se fortaleceu quando, em

novembro de 2009, uma comitiva da comunidade foi a Porto Alegre dialogar com a Secretaria

Estadual de Educação e com todos os deputados estaduais, conseguindo que o então Deputado

Estadual Dionilso Marcon (PT) apresentasse emenda de R$ 1 milhão ao orçamento estadual

de 2010 para construção da escola, mas que não foi votada devido ao Governo afirmar que a

emenda era desnecessária, pois garantiria o recurso, palavra que não foi cumprida.

No decorrer deste processo, foi realizada uma grande manifestação em 06/11/2009

(Figura 26 - primeira foto), com mais de 2 mil pessoas na Nova Santa Marta, a fim de exigir

esta demanda. Entre fins de 2010 e dezembro de 2011, a proposta foi apresentada em três

ocasiões distintas ao candidato e depois Governador Tarso Genro, que enfim se comprometeu

a efetivar a pauta na reunião realizada em dezembro de 2010, no Palácio Piratini (Figura 26 -

124

segunda foto), agendada após a realização da Marcha Estadual pela Reforma Urbana em

outubro deste mesmo ano (Blog do MNLM, 25/12/2012).

As obras da escola deveriam começar no início de 2013, no entanto, ocorreram alguns

impasses entre os governos Estadual e Municipal, em relação ao local em que será construída,

sendo necessário ainda que o Município repasse logo esta área ao estado, sob o risco do

recurso federal ser perdido.

Figura 26 – Na luta pelo Ensino Médio e Técnico: manifestação com 2 mil pessoas no bairro, em 06/11/2009 e

reunião com o governador, em dezembro de 2010

Fonte: Blog do MNLM SM.

Outro projeto aprovado para a área verde da Vila Pôr-do-Sol e que diz respeito a uma

necessidade muito importante da juventude, dos grupos culturais e dos moradores do bairro,

como a criação de espaços públicos de cultura, lazer e esportes, é o projeto “Praça da

Juventude” do Ministério do Esporte. O projeto visa a requalificação de espaços urbanos em

125

áreas de vulnerabilidade social, com investimentos na ordem de R$ 2 milhões e que

necessitam de uma contrapartida de 20% por parte do Município, para a construção de uma

praça com 8 mil metros quadrados, contendo ginásio poliesportivo, pista de skate, caminhada

e atletismo, auditório, teatro de arena e espaço para a terceira idade57

. A criação da praça

contribuiria muito na prevenção da violência no local, pois sem iluminação, as áreas verdes

são espaços em que muitos crimes já ocorreram, além de fomentar a cultura e a prática de

esportes entre todos, pois há carência de espaços de socialização no bairro. Colaboraria

também com as diversas expressões juvenis presentes no bairro, a exemplo do Movimento

Hip Hop, o qual é muito forte na zona Oeste da cidade.

Em 2010, a cidade de Santa Maria foi contemplada com a construção de uma praça,

sendo que, em 28 de maio deste ano, foi realizada uma grande Audiência Pública na Câmara

de Vereadores, ocasião em que mais de 200 pessoas – a maioria jovens da Nova Santa Marta

– discutiram a importância deste projeto. O local escolhido para a construção da Praça da

Juventude foi a Nova Santa Marta, justamente por esta ser um dos poucos locais a possuir

condições de receber um projeto desta dimensão, ao ser uma região periférica que não foi

ocupada de maneira desordenada, o que garantiu a preservação de suas áreas verdes por mais

de duas décadas. Entretanto, a construção da praça ainda não iniciou devido à falta de

legalização da área, correndo-se o risco de se perder esta oportunidade. O Movimento,

também, denuncia que o atual Governo não concluiu e nem fez manutenção da praça da Vila

Alto da Boa Vista, iniciada no Governo anterior58

.

Figura 27 – Jovens do bairro participam da Audiência Pública sobre a Praça da Juventude no dia 28/05/2010

Fonte: Arquivo pessoal.

57

Mais informações sobre o projeto Praça da Juventude em:

<http://www.esporte.gov.br/index.php/institucional/secretaria-executiva/praca-da-juventude>. 58

Ver as matérias “Abandono das áreas de lazer colabora com a violência na Periferia”, publicadas no blog do

MNLM, em 17/11/2011, com as fotos do ato realizado.

126

Ainda relacionada à questão da educação, são as notícias veiculadas, ao longo de

2013, acerca da construção de seis creches públicas na cidade com recursos do programa

Proinfância do Governo Federal, cujo convênio foi assinado em 2011 com o Município, mas

que ainda não saíram do papel (Diário de Santa Maria, 07/08/2013). Um dos locais que

receberá uma das creches é a Vila Pôr-do-Sol, e que oferecerá 250 vagas em dois turnos ou

125 vagas em turno integral. Se realizada, esta medida contribuirá tanto com a educação,

como com empregos e maior autonomia para mães e pais moradores do bairro.

Retomando a questão da implementação do PAC e, também, do Programa Minha

Casa, Minha Vida, algo que podemos perceber é que estas políticas, em nível nacional, são

disputadas por diferentes segmentos. Os grandes empresários, o capital imobiliário, as

incorporadoras e as construtoras atuam no sentido de aproveitar a demanda aquecida pelo

aumento de crédito público às famílias e, assim, obter grandes lucros. Isto gera uma

ampliação da disputa pela terra e pelos vazios urbanos para a construção de grandes

empreendimentos, a exemplo dos condomínios fechados. Por outro lado, os movimentos

sociais populares procuram apresentar propostas por meio de suas cooperativas, ainda que

com muitas dificuldades. Desta maneira, o mercado está vencendo esta disputa, dado as

condições colocadas.

Na cidade de Santa Maria, isto ocorre de maneira muito nítida, pois há um visível

direcionamento e priorização na atuação do poder público em prol do capital imobiliário e

uma postura de negligência para com as demandas populares de todas as regiões periféricas

da cidade. Em relação à Nova Santa Marta isto se expressa na forma de um verdadeiro boicote

à resolução de suas demandas e auxílio para execução de seus projetos, duramente

conquistados pela organização e mobilização popular.

O principal exemplo que nos permite constatar isto é o não interesse pela legalização

fundiária do Bairro, pois mesmo após todo o empenho para que a área fosse contemplada com

obras e verbas do PAC (que conta inclusive com recursos específicos para regularização

fundiária) e a escritura do terreno fosse repassada para o Município, o Governo local vem

postergando a realização da regularização a qual, enfim, permitiria que os diversos projetos

citados sejam realizados.

A leitura do blog do MNLM de Santa Maria nos dá dimensão do quanto o Governo

vem “enrolando” os moradores com falsas promessas. Enquanto isto ocorre, as obras e

projetos seguem parados, se deteriorando e correndo o risco de se perderem as verbas. Várias

manifestações foram realizadas nos últimos anos pelos moradores de diversas áreas oriundas

127

de ocupações, como a Vila Km 2, Bairro Km 3 e a Nova Santa Marta, pelo andamento das

obras do PAC, porém, o Governo segue insensível frente a isto. Em reportagem publicada

pelo jornal Diário de Santa Maria, no início de abril de 2010, apurou-se que apenas 44% das

obras do PAC estavam em andamento na cidade59

, sendo que, em relação ao bairro Nova

Santa Marta, 80% das ruas haviam sido asfaltadas ou calçadas, 90% da rede esgoto estaria

pronta, faltando ainda a construção das 145 casas para realocação dos moradores de áreas de

risco, melhorias em outras 355 e a regularização de todos os lotes, cujo prazo seria em 2012,

de acordo com o coordenador do PAC, para todos os moradores terem suas escrituras (Diário

de Santa Maria, 03/04/2010).

Em muitos momentos, o Movimento pela Moradia procurou e ainda procura dialogar

com o Governo, fazendo um esforço de organização e mobilização nas bases, porém este

sempre afirma que as coisas serão encaminhadas em breve, inclusive assinando documentos,

para logo em seguida descumprir sua palavra, de forma que aquilo que parecia ser um avanço

para os moradores, logo demonstra não ser uma realidade, gerando um processo de desgaste

entre os habitantes do bairro e os militantes do Movimento, assim como ampliando a

descrença acerca da possibilidade dos projetos realmente saírem do papel e serem concluídos.

Em 2010, o MNLM cadastrou centenas de famílias da Nova Santa Marta para

participarem de um empreendimento habitacional autogestionado, por meio do PMCMV

Entidades. Este programa permite que, por meio de cooperativas habitacionais tocadas pelo

próprio movimento social no Rio Grande do Sul, estas se tornem responsáveis por organizar e

cadastrar as famílias interessadas para assim elaborar, apresentar e executar os projetos de

moradias populares de qualidade e a baixo custo.

No entanto, se faz necessário que a prefeitura emita a certidão de lote de cada família

cadastrada neste empreendimento para que estas informações sejam entregues à CEF, os

contratos assinados e as casas executadas, documentos estes que nunca são liberados,

revelando que o Governo Municipal tem atuado no sentido de inviabilizar o projeto, pois

provavelmente entende que impedindo o MNLM de construir as moradias, estará o

enfraquecendo politicamente, além de disseminar boatos e inverdades acerca do movimento

para muitos moradores.

É neste sentido, buscando destravar a implementação do PAC e a realização do

PMCMV, que diversas assembleias da Nova Santa Marta ou apenas dos cadastrados no

MCMV foram realizadas nos últimos anos, a fim de discutir esta problemática e a dos demais

59

Confira o quadro publicado no jornal com o balanço do andamento das ações do PAC 1 na cidade em:

<http://www.clicrbs.com.br/pdf/7994542.pdf>.

128

projetos para o Bairro (exemplificadas pelas Figuras 28 e 29), encaminhando-se nestas

tentativas de negociação ou, também, nas manifestações públicas, dada a inoperância e má

vontade política do Governo local.

Figura 28 – Assembleia sobre o Minha Casa Minha Vida na Nova Santa Marta, em 14/03/2011, na qual

membros da Prefeitura assinaram documento com as pautas

Fonte: Blog do MNLM SM.

Figura 29 – Assembleia Geral da Nova Santa Marta, em 12/04/2011

Fonte: Blog do MNLM SM.

Em matéria alusiva aos quatro anos de luta pela implementação do PAC, na Nova

Santa Marta, o MNLM denunciava:

A situação está preocupante, as obras realizadas de infraestrutura e saneamento

realizadas até aqui apresentam diversos problemas, desde problemas na rede de

esgotos, na drenagem das águas da chuva, na pavimentação e nas redes de

distribuição de água, entre outros tantos. Quem anda hoje pelas ruas percebe a falta

de cuidado na realização das obras, o desleixo da Administração com obras desta

envergadura, pois além de não executar as obras com qualidade ainda não consegue

minimamente realizar a manutenção da infraestrutura destas áreas. Além disso a

129

prefeitura ainda não iniciou a intervenção nas áreas de risco nem o trabalho social

com as famílias, assim como não iniciou a construção das casas para os

reassentamentos. (BLOG MNLM SANTA MARIA, 28/04/2011).

Outro fato que muito preocupava a coordenação do MNLM e os moradores do Bairro

era a demora da Prefeitura em publicar o edital de licitação para contratação da empresa que

iria fazer a regularização fundiária. Nesse caso, a Prefeitura sempre alegava que iria fazer isto

até determinada data, porém não o fazia.

Assim, a assembleia, realizada em 06 de maio de 2011, deliberou pela realização de

uma manifestação em frente ao Centro Administrativo municipal, em 09 de maio (Figura 30),

a fim de apresentar a pauta de reivindicações relativas à Nova Santa Marta60

, ato este que,

também, pautou o início das obras do PAC no Km 3, contando com a participação do

Movimento Estudantil, devido as discussões sobre o aumento da tarifa do transporte. Durante

a manifestação, se conseguiu realizar uma reunião com membros da Prefeitura, a qual acabou

sendo “implodida” pelo Secretario de Ação Social, Cláudio Rosa, devido a ofensas proferidas

aos participantes, relatadas em matéria publicada na revista eletrônica O Viés. Ainda, de

acordo com esta reportagem, “a prefeitura, em nome dos Secretários presentes ao final da

discussão, fora da sala, assegurou que em cinco dias traria respostas e documentos oficiais

que outorgassem o início do trabalho reivindicado. Cinco dias.” (O Viés, 09/05/2011).

Figura 30 – Manifestação em frente a Prefeitura, em 09/05/2011

Fonte: Revista eletrônica O Viés.

60

Pauta de reivindicações para Prefeitura Municipal de Santa Maria, dia 09/05/2011: A) Regularização dos lotes:

licitação imediata dos serviços de topografia, cadastramento e registro dos lotes; quitação antecipada com

desconto quando o lote for destinado para financiamento para produção e melhoria habitacional; B) Obras de

infraestrutura e saneamento: realização de vistoria de todas as obras já realizadas; exigir das empresas executoras

a correção dos problemas encontrados nas obras; conclusão das redes de água, esgoto e energia; início imediato

do trabalho técnico social do PAC; solução para áreas de risco; início do trabalho de recuperação ambiental;

conclusão e manutenção da Praça do Alto da Boa Vista; C) Constituição de um Grupo de Trabalho para análise e

elaboração para propostas de utilização das áreas restantes da Antiga Fazenda Santa Marta; D) Constituição de

um Grupo de Trabalho para discutir e acompanhar a implantação da “Praça da Juventude” na Vila Pôr-do-Sol; E)

Construção de uma Unidade de Saúde e uma creche na Nova Santa Marta.

130

Entretanto, passado mais de um mês e tendo o MNLM ido semanalmente discutir com

a Prefeitura, o edital ainda não havia sido publicado, o que levou a realização de uma nova

assembleia, encaminhando a realização de um novo ato/vigília na noite do dia 15 de junho,

em frente ao Paço Municipal, o que, por sua vez, gerou novas reuniões com a Prefeitura (Blog

do MNLM SM, 13 e 16/06/2011).

Assim, somente após muita pressão e insistência, conseguiu-se a publicação do edital

de licitação para escolha da empresa responsável pelo serviço de regularização fundiária do

bairro, em 09 de julho, destinando R$ 1,1 milhão para levantamento topográfico, elaboração

dos memoriais descritivos, cadastramentos e providências cartoriais de aproximadamente

5500 lotes, em um prazo de 6 meses, sendo que cinco empresas apresentaram-se para

concorrência no processo licitatório, em 12 de agosto (Blog do MNLM SM, 13/07 e

12/08/2011).

Este fato gerou uma grande euforia e expectativas nos militantes do Movimento e

moradores da Nova Santa Marta, pois parecia que uma das primeiras bandeiras da ocupação,

realizada em 1991, enfim, seria atendida.

No final de 2011, além de apresentações teatrais e celebrações religiosas, outra

atividade realizada para rememorar os 20 anos de ocupação da antiga Fazenda Santa Marta foi

um protesto de bloqueio parcial da BR 258, em 08 de dezembro (Figura 31), como forma de

pressionar pela retomada das obras do PAC e pelo início do processo de regularização

fundiária da área, de forma que, após duas horas de manifestação, conseguiu-se agendar uma

audiência com a Prefeitura na própria comunidade para o dia seguinte, a fim de discutir as

suas pautas61

(Blog MNLM SM, 08/12/2011).

61

No panfleto distribuído no dia constam as seguintes reivindicações: Início do Trabalho técnico social do PAC

com espaço para participação da comunidade na gestão das obras; Retomada imediata das obras de infraestrutura

do PAC; Início das obras nas áreas de lazer; Legalização dos Terrenos; Início das Construções das 200 Casas

pelo programa Minha Casa Minha Vida; Início das Construções das 500 Casas pelo PAC para reassentar os

moradores de áreas de Risco; Construção da Escola de Ensino Médio; Melhoria na segurança pública;

Construção das unidades de saúde e ampliação do programa de agentes comunitários de saúde; Melhoria no

transporte coletivo.

131

Figura 31 – Manifestação na BR 258, em 08/12/2011

Fonte: Blog do DCE UFSM62

.

Na contramão das necessidades dos moradores da Nova Santa Marta, ainda no final de

2011, a Prefeitura Municipal tentou despejar os moradores que ocupavam lotes na Vila

Núcleo Central, o que exigiu mobilização e resistência para garantir a permanência destas

famílias e a retirada da ação de reintegração de posse (Blog do MNLM SM, 21 e 24/12/2011).

Ação semelhante já havia sido realizada, em abril deste mesmo ano, quando tentaram destruir

casas e despejar a força os moradores de um assentamento de caráter “rururbano” (para

moradia e produção de alimentos) existente desde abril de 2007 (Diário de Santa Maria,

14/04/2011), quando cerca de 70 famílias desempregadas, estimuladas pelo MNLM,

ocuparam uma área localizada entre a Escola Municipal e o Lixão da Caturrita (Diário de

Santa Maria, 01/05/2007).

Em meio a tantas disputas, resistência, lutas e negociações, os problemas continuavam

praticamente os mesmos, gerando angústia e impaciência. Em nova matéria sobre o

andamento das obras do PAC, em 1 em março de 201263

, o Diário de Santa Maria relatava

que, de acordo com a CEF, apenas 55,49% das obras haviam sido realizadas na Nova Santa

Marta, sendo que

Grande parte das frentes de obras previstas para as sete vilas do bairro seguem sem

previsão de retomada Só estão andando algumas obras de asfaltamento e de esgoto

que estavam paradas desde o governo Valdeci e foram reiniciadas em 2011. (Diário

de Santa Maria, 15/03/2012).

62

Ver: <http://dceufsm.blogspot.com.br/2011/12/o-movimento-nacional-de-luta-pela.html>. 63

Confira o quadro sobre a situação das obras do PAC em Santa Maria elaborada pelo jornal em 2012, no link:

<http://www.clicrbs.com.br/pdf/13167973.pdf>.

132

Desta forma, continuavam paradas a maioria das ações do PAC para o Bairro,

demonstrando a negligência e a má vontade política em se agilizar a resolução das demandas

dos bairros e vilas pobres da cidade, em contraste com as diversas ações empenhadas nas

áreas centrais.

Foi com grande alegria que o Movimento divulgou que iriam começar os trabalhos de

regularização fundiária do Bairro, a partir do dia 02 de abril de 2012, quando, em 28 de

março, o Prefeito Schirmer assinou a ordem de serviço para a empresa Engeplus Engenharia e

Consultoria Ltda., vencedora da licitação, dar início a esta tarefa. A partir de então, “cada

família assinará o seu contrato, iniciará o pagamento dos seus terrenos e receberá, finalmente,

o título de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, o qual, após cinco anos, será

convertido em Escritura Definitiva” (Blog do MNLM SM, 30/03/2012). Com isto, as famílias

poderiam acessar recursos do MCMV e outras políticas habitacionais, pois passariam a existir

legalmente e poderiam colocar os terrenos como garantia para participar destes projetos, pois,

em um prazo de cinco anos, pagando uma taxa de R$ 21,00, quitariam a escritura de seus

lotes, e seriam, enfim, proprietárias de seus terrenos, realizando o sonho daquelas pessoas que

ocuparam esta área pela primeira vez.

Ainda, ao longo de 2012 ocorreram algumas obras na Nova Santa Marta e em diversas

vilas da cidade, especialmente na véspera e durante a campanha eleitoral em que Schirmer e

Farret se reelegeram, obras estas que novamente foram estancadas em 2013. Isto indica, junto

ao fato da Prefeitura ter segurado, desde 2009 até 2012, o início da regularização fundiária do

Bairro, novamente o uso eleitoreiro destas medidas e do sofrimento das classes subalternas

por parte dos governantes locais, não interessados na resolução de seus problemas, mas sim

apenas em garantir suas carreiras políticas e a manutenção do poder nas mãos de uma

minoria, com a reprodução das desigualdades sociais.

Com relação à regularização fundiária, que de acordo com o processo licitatório em

seis meses deveria estar pronta, verifica-se que esta não ocorreu. Segundo relatos de membros

do MNLM, a empresa não finalizou o serviço, alegando falta de pagamento, ao mesmo tempo

em que a Prefeitura alega que o recurso “sumiu”. Este problema já foi denunciado pelo

Movimento junto a CEF, em Brasília, no entanto, ainda não há previsões de que seja

resolvido. Enquanto isto, continuam parados projetos importantes como a Praça da Juventude

e o MCMV, por falta de documentação, assim como a legalização dos cerca de 5500 lotes do

bairro.

133

Outra notícia preocupante é a da possibilidade da perda dos recursos do PAC,

publicada pelo Diário de Santa Maria, em maio de 2013, momento em que representantes do

Ministério das Cidades estavam em Santa Maria a fim de vistoriar obras e discutir a

reformulação de projetos, pois os prazos já estariam bastante apertados. Frente a isto, a

Prefeitura promete agilizar os trabalhos, repetindo o que falam há vários anos. A novidade em

seu discurso é a da possibilidade de alterar os objetivos dos investimentos do PAC 1 na

cidade, pois os recursos que deveriam ser alocados em projetos de saneamento básico,

pavimentação e habitação para as periferias da cidade podem não mais ser destinados a estes

setores, representando um enorme retrocesso e indicando quais são as prioridades do Prefeito

Municipal. De acordo com o jornal, “uma das apostas de Schirmer, sugeridas ao Ministério

das Cidades, é realocar recursos para uma incubadora empresarial no Distrito Industrial e para

a aquisição de lixeiras e abrigos de ônibus para o transporte público coletivo” (Diário de

Santa Maria, 24/05/2013).

Quanto ao MNLM, este segue suas lutas, seja no auxílio a ocupações que ocorrem na

cidade, seja pautando os projetos e demandas das ocupações e a Reforma Urbana como um

todo, em espaços institucionais, como a recentemente realizada 5ª Conferência das Cidades. O

Movimento tem se empenhado no último período, também, em fundar sua própria cooperativa

habitacional em nível municipal, a Cooperativa Habitacional de Trabalhadores/as Urbanos/as

(COOPTURB), partindo do acúmulo das experiências do MNLM em outros locais, a fim de

poder realizar projetos de produção e melhorias em moradia popular, assim como de trabalho

e geração de renda, como reciclagem, artesanato, etc. O MNLM, também, está realizando,

entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014 (dividido em duas etapas) o seu Encontro

Municipal, que além de discutir os problemas das ocupações (muitas das quais hoje já são

bairros ou vilas do Município, porém não tratados como tal), também, irá aprovar suas táticas

de luta para o próximo período, bem como uma nova Coordenação Municipal do Movimento.

Em relação à Nova Santa Marta, na atualidade, mais de 22 mil pessoas vivem neste

bairro, de acordo com o último censo. Este local é resultado da organização, empenho e

energia de milhares de pessoas, muitas das quais já se foram, outras que ainda estão

chegando. Sua História, conforme vista neste capítulo, é de muita resistência aos processos de

exclusão social inerentes ao modelo de urbanização capitalista historicamente existente no

País e que se expressou com muita intensidade na cidade de Santa Maria. Muitos avanços já

foram conquistados e muitos ainda estão por vir, com organização popular, consciência social

e luta coletiva.

134

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Que na cidade tranquila

Sarada cada ferida

Tudo se transforme em vida

Canteiro cheio de flores

Pra que só chorem, querido,

Tu e a cidade, de amores

Sebastian, Milton Nascimento

A partir da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o

direito a moradia adequada e a um nível de vida suficiente para todas as pessoas foram

reconhecidos mundialmente enquanto direitos humanos fundamentais para a vida das pessoas.

O Brasil é signatário da referida Declaração. Sua prática histórica, entretanto, tem se

configurado de forma contraditória a vários fundamentos preconizados por esta carta, dando a

entender que ela foi assinada mais “para inglês ver”, como um conjunto ideal de intenções e

não enquanto objetivos a serem perseguidos e efetivados, em especial no que diz respeito aos

direitos sociais.

Como vimos, no decorrer do presente trabalho, tudo isto não se deu por acaso, mas

sim faz parte da dinâmica e da lógica do capital na estruturação do espaço urbano, sendo a

segregação um elemento funcional a este, pois reduz os custos de reprodução da força de

trabalho e, portanto, seus salários. Logo, se este modo de produção econômico e da vida em

sociedade é injusto, excludente e degradante, consequentemente, suas cidades, também, o

serão.

As políticas habitacionais implementadas durante a maior parte da História do País

raramente foram voltadas aos segmentos de baixo poder aquisitivo, geralmente beneficiando

os setores mais capitalizados e politicamente influentes. Isto levou as classes dominadas a ter

de ocupar áreas de forma irregular, enquanto tática de sobrevivência, processo este que se

acentuou, a partir da segunda metade do século XX, devido a crescente expulsão dos

trabalhadores do campo.

As contradições de nossa urbanização, por outro lado, também, levaram a classe

trabalhadora a construir movimentos sociais populares urbanos, que a partir da compreensão

da dinâmica de exclusão social vigente, se organizaram para lutar pela reversão deste quadro,

realizando ocupações, pautando direitos e políticas públicas específicas a estes setores

135

postergados, de forma articulada a projetos de transformação mais gerais, do qual faz parte a

bandeira da Reforma Urbana e do Direito à Cidade.

Em Santa Maria, uma cidade marcada pela especulação imobiliária, tudo isto ocorreu

de maneira muito intensa, sendo assim que, no início dos anos 1990, ante a negação de seus

direitos básicos, como emprego, moradia, alimentação, saúde, etc., de forma organizada junto

ao MNLM, centenas de famílias passaram por cima das leis vigentes e ocuparam uma área

que não cumpria com sua função social, a antiga Fazenda Santa Marta. Deste momento em

diante, estes sujeitos sociais iniciaram a construção de uma nova etapa em suas vidas e na

própria História de Santa Maria.

Praticamente contra quase tudo e todos, a ocupação resistiu e se consolidou, crescendo

cada vez mais, assim como seus problemas. Muitos afirmavam que ela não daria certo, que

uma nova favela estava nascendo na cidade. Ledo engano, pois subestimaram a capacidade de

organização popular: aí se processava um assentamento que, em um período de apenas 15

anos, se tornou um dos maiores bairros da cidade, ainda que um bairro periférico, que muito

sofreu, e ainda sofre, com o preconceito e a violência, especialmente o preconceito e a

violência institucionais, expressos não apenas por ações repressivas, mas, principalmente, na

negação de direitos e cidadania.

Foram poucos os apoiadores e governantes que deram importância real a este espaço e

a estas pessoas. Percebe-se que pelo grande contingente populacional, em todos os pleitos

eleitorais, passam pela Nova Santa Marta muitos candidatos prometendo aos moradores que

em breve todos teriam os documentos legalizados de suas casas e que iriam trazer melhorias,

mas que, passados os pleitos, só retornam lá nas próximas eleições, repetindo as mesmas

promessas, ou se eleitos, apenas após muita pressão dos moradores.

Por meio do presente estudo, podemos perceber que a contribuição do MNLM para a

luta pela Reforma Urbana na Nova Santa Marta se deu de forma contínua, ao longo de todos

estes anos, desde a articulação das famílias, o planejamento e a realização da ocupação,

passando pela permanência, organização e consolidação da mesma, bem como pelo apoio e

pelo auxílio na estruturação de ocupações espontâneas na área e pela interlocução com

apoiadores internos e externos, chegando-se à pressão, à disputa e à negociação com os

diferentes níveis dos poderes públicos, governos e espaços institucionais, sempre visando

garantir direitos, projetos e melhorias na perspectiva da Reforma Urbana.

Ganha destaque a questão da busca de um planejamento urbanístico para a ocupação,

com a distribuição dos lotes respeitando um traçado e a manutenção de áreas verdes como

136

formas de evitar uma ocupação desordenada, que poderia gerar favelização. Isto permitiu a

construção de escolas e outras estruturas, além de ser um espaço de reserva no qual serão

implementados novos projetos.

Não foi nada fácil a garantia desta autogestão popular do território, segundo relatos de

quem vivenciou essa História, pois sempre havia novas famílias querendo se estabelecer

nestas áreas verdes, por exemplo, o que gerou diversos tensionamentos com as mesmas,

fazendo-se necessário um forte trabalho de conscientização nas ocupações. Este modelo de

ocupação planejada, em uma área deste porte, tornou a Nova Santa Marta uma referência em

termos de gestão popular do espaço e fez com que esta tenha se desenvolvido e avançado

muito em um curto período de tempo, se comparada com outras ocupações existentes na

cidade. Podemos comparar a evolução da ocupação por meio da Figura 32:

Figura 32 – Fazenda Santa Marta, em 1985, e Nova Santa Marta, em 2001

Fonte: SCHERER, 2008, p. 58.

Outra questão importante é a ambiental. Muitos alegam que a presença de um grande

aglomerado humano sobre aquele território teria gerado um forte impacto ambiental. As

pesquisas de Scherer (2005) apontam que os principais problemas ambientais na área se

deram anteriormente a ocupação, tendo se originado com o mau uso da terra, o intenso

desmatamento e a retirada das matas ciliares promovidos pelos donos da antiga Fazenda para

a criação de gado – as manchas brancas na primeira imagem da Figura 32 indicam áreas

desmatadas, e os traços brancos a ausência de mata ciliar nos córregos. Os moradores da Nova

Santa Marta, pelo contrário, plantaram muitas árvores, arborizando quase todo o bairro no

decorrer dos anos.

Já com relação aos problemas de acúmulo de lixo, isto ocorria e ainda ocorre em

alguns locais, devido à falta de recolhimento do mesmo, da mesma forma que a falta de

saneamento básico pode gerar esgotos a céu aberto. As escolas conquistadas pela

137

comunidade, também, realizam um intenso trabalho de conscientização ambiental com os

estudantes e moradores, contribuindo para minimizar o problema.

Verifica-se, também, o caráter democratizante dos movimentos sociais populares. Sua

atuação, além de dar voz a quem antes não possuía nenhum meio de se pronunciar, de forma

articulada em nível nacional, também, garantiu a elaboração e aprovação de um arcabouço de

normas e instrumentos jurídicos que permitiriam a democratização das cidades, mas que, no

entanto, vem sendo continuamente desrespeitadas pelo Estado e seus poderes. O caso da Nova

Santa Marta é ainda mais dramático quando vemos que, mesmo com a legislação atual a seu

favor, e a luta social tendo garantido a destinação dos recursos necessários para promoção de

uma verdadeira transformação daquele local, através de sua inclusão no PAC e outros

projetos, ainda assim há a falta de vontade política e o boicote por parte de governos elitistas

que não colaboram para efetivar estas conquistas.

Mesmo diante destes e de outros problemas, é importante reconhecer que a Nova

Santa Marta é um Bairro que, além de possuir um caráter simbólico na luta pela Reforma

Urbana, vem passando por mudanças nos últimos anos que alteraram suas feições, sendo um

exemplo concreto de que a transformação social de viés popular é possível e muda as vidas de

milhares de pessoas.

Por fim, cabe a constatação de que, para transformações mais profundas, não basta

apenas a eleição de representantes comprometidos com as causas populares. Faz-se

necessária, também, a luta social e a pressão permanente por uma Reforma Urbana que

combata a especulação imobiliária e altere o padrão de desenvolvimento urbano injusto e

insustentável que está em curso, socializando a propriedade, superando a dicotomia centro-

periferia, democratizando o espaço e sua gestão, incorporando a perspectiva ecológica nas

cidades, para que estas se tornem espaços mais integrados ao meio natural do qual fazemos

parte, assim como com o mundo rural, reduzindo ao máximo a poluição, a geração de dejetos

e detritos, e passando a produzir alimentos saudáveis através da agricultura urbana. Para isto,

faz-se necessário assimilar experiências da Permacultura64

, como bioconstruções, uso de

banheiros secos, reaproveitamento de águas, captação de águas da chuva, uso de tecnologias e

energias alternativas, telhados verdes, dentre outros, assim como ampliar as áreas verdes e

alterar o padrão de mobilidade urbana, criando ciclovias e priorizando o transporte público,

criando empresas públicas para tal. Nada disto será possível sem a realização de uma ampla 64

Para mais informações e exemplos sobre Permacultura em ambientes urbanos acesse:

<http://elementalsolucoes.com.br/permacultura-urbana-apresentando-solucoes-para-os-problemas-da-cidade/>.

Para um estudo um pouco mais aprofundado, ver o trabalho de Magrini (2009), disponível em:

<http://www.geografiaememoria.ig.ufu.br/downloads/330_Renato_Velloso_Magrini_2009.pdf>.

138

Reforma Agrária de orientação popular e agroecológica, que democratize o acesso a terra e

limite sua propriedade, ampliando a produção de alimentos saudáveis e baratos para toda a

população. Logo, as Reformas Agrária e Urbana são bandeiras fundamentais, que articuladas

com outras reformas estruturais, conformam um projeto alternativo de sociedade.

Esta grande mudança somente se viabilizará rompendo com a cultura de consumo

desenfreado e irresponsável, disseminada pelo mercado capitalista, no qual mais importa

lucrar, ter e consumir, do que compartilhar, ser e viver em harmonia. As crises econômica,

social, alimentar, urbana e ambiental, que vivemos atualmente em nível planetário, são

insolúveis nos marcos do capitalismo, tornando mais do que nunca necessário a sua superação

rumo a uma sociedade justa, democrática e equilibrada, a sociedade socialista.

Sabemos que este ideal não é consenso na sociedade em que vivemos, pois existe uma

minoria de privilegiados pelo atual modelo societário que por se beneficiarem com as mazelas

da maioria da população, atuam no sentido de mantê-la dividida e alienada. São indivíduos

que, por tanto amar o poder, acabaram perdendo o poder de amar.

A semente da mudança está em cada um de nós, em nossa unidade e diversidade. Para

que estas sementes floresçam e frutifiquem, precisamos regá-las e iluminá-las diariamente,

cuidando de todos os seus brotos com muito carinho e cooperação. Assim, somente com

muita consciência, organização e luta sob uma perspectiva crítica e radical, construiremos

uma hegemonia alternativa que criará as condições para as rupturas revolucionárias que irão

permitir a humanidade realizar a transição para a construção de uma nova era.

Há 22 anos, a Nova Santa Marta luta e resiste. E avança. Nada nunca foi fácil para

essa comunidade, que coletivamente superou enormes barreiras. Suas conquistas são resultado

de muito esforço e alimentam o sonho real de que outro mundo possível. Eis aí um grande

exemplo de que um “sonho que se sonha só é só um sonho, mas sonha que se sonha junto é

realidade!”.

139

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Entrevistas realizadas:

GONÇALVES, Suelen Aires. Entrevista ao autor via email, em 13/02/2013.

MOURA, Ana Patrícia; SCHUMACHER, Cristiano; RIBEIRO, Nilda Marlize; SANTOS,

Vanderlei. Entrevista coletiva ao autor, em 11/02/2013. Transcrita em 20/02/2013.

Duração: 38:02 min.

Jornais consultados, cedidos por Suelen Aires Gonçalves:

A Razão:

12-12-1991: Colonos sem-terra provocam polêmica

19-12-1991: Reintegração

24-03-1992: Começa a discussão sobre os lotes da Santa Marta

09-03-1993: Mais de 40 famílias cadastradas na área invadida na Santa Marta - Sem-teto

reivindicam 25 hectares na Santa Marta

10-03-1993: Cohab descarta pedido de reintegração de posse

30-03-1993: “Comissão” fatura com a cobrança de taxa na Fazenda Santa Marta

31-03-1993: Brigada Militar vai impedir a chegada de Sem-teto na S. Marta

01-04-1993: Brigada Militar envia policiamento a cavalo para Cohab Santa Marta

20-04-1993: Collares pede organização aos sem-teto da Santa Marta

19-05-1993: Movimento pela Moradia coordenou nova invasão – Fazenda Santa Marta sofre

nova invasão

01-09-1993: Ocupantes da Santa Marta dividem água contaminada com animais

06-01-1994: Água na Santa Marta não é potável: está infectada

19-01-1994: Escorpiões apavoram moradores da Vila Altos da Boa-Vista

09-08-1994: Cohab começa a legalizar assentamento dos sem-teto

10-08-1994: Moradores da vila Alto da Boa Vista sofrem com a falta de infra-estrutura

24-08-1994: Governo deverá decretar estado de calamidade

16-09-1994: Sem-teto da Santa Marta recebem rede de luz e água

09-08-1996: Moradores da Santa Marta fazem um mutirão para recuperar ruas

29-03-1995: Movimentos populares de SM participam de mobilização

10-06-1996: Fala Santa Maria – Sem-teto não. Sem-infraestrutura – Mais de 30 famílias sem

água

147

04-03-1999: Invasores do Km 2 protestam

06-03-1999: Parcerias discutem Nova Santa Marta

15-04-1999: “Sem-teto” vai ganhar projeto

04-06-1999: Caminhada ecológica na Santa Marta

17-08-1999: Reestruturação da Nova Sta Marta – Inicia reestruturação da Nova Santa Marta

22-05-2000: Conselho popular da Nova Santa Marta toma posse

Diário de Santa Maria:

01-05-2007: Área é invadida na Nova Santa Marta

01-05-2008: Pressão no Piratini

24-09-2009: A Santa Marta é da prefeitura

03-04-2010: O início de uma nova realidade

14-04-2011: Impasse na Santa Marta

15-03-2012: À espera das obras

24-05-2013: Incerteza ronda obras do PAC

07-08-2013: Seis escolas infantis do programa Proinfância serão construídas em até cinco

meses após o início das obras

148

ANEXOS

ANEXO 1 – ENTREVISTA VIA E-MAIL COM SUELEN AIRES

GONÇALVES

Entrevistador: Pedro Sergio da Silveira

Entrevistada: Suelen Aires Gonçalves

Data: 13/02/2013

1 – Quem é você?

Sou uma militante do MNLM desde 1995, quando ainda tinha nove anos de idade. Mas iniciei minha

militância realmente após meus 15 anos no ano de 2001, quando de fato iniciei minha participação

para além de acompanhar minha mãe nas atividades no Movimento.

2 – Você participou da ocupação? Quando você foi morar lá?

Não participei da ocupação em 1991, fui morar na ocupação no dia 20/02/1995.

3 – Por que ocupar? Por que no período havia um déficit muito grande no que tange a habitação.

Estávamos em busca de saúde pública para meu irmão e Santa Maria era a referência para a região.

Morávamos em Uruguaiana, na fronteira oeste e ocupamos a Nova Santa Marta por não ter condições

de pagar aluguel e arcar com os gastos da saúde de meu irmão.

4 – Fale sobre como era a ocupação quando você foi morar nela.

Bom, fui morar na vila 10 de outubro, na divisa com a vila Prado. Não existiam ruas delimitadas, não

tínhamos água encanada. Em 1998, iniciou uma revolução na vila, com o Governo Olívio iniciamos

arrumando as ruas, fazendo uma canalização do esgoto, contamos com água em todas as casas, iniciou

o debate de escolas e saúde na região...

5 – Havia muito preconceito com relação aos moradores da Nova Santa Marta?

Sim, muito. Eu estudava na escola Augusto Ruschi e recordo que para estudar lá foi um sacrifício,

somente consegui vaga pois tinha transferência da minha antiga escola em Uruguaiana em mãos. Após

isso percebi o preconceito por morar na ocupação, que era chamada de “sem-teto”. Meus colegas não

visitavam minha casa, por medo do local. Recordo, também, que estar com os pés sujos de barro

incomodava os demais na escola. Criamos então uma tática para evitar o constrangimento com a

sujeira: sacolas plásticas nos pés. Recordo, também, que meus pais tiveram muita dificuldade em

encontrar um emprego, pois quando diziam que moravam na ocupação as pessoas temiam. Foram anos

com essa sensação de insegurança que era transmitida pela mídia sobre a nossa ocupação!

149

6 – Quando/como decidiu participar do MNLM?

Quando fomos morar na ocupação minha família conheceu o MNLM e desde então iniciou esse

processo de vínculo real com o Movimento. Inicialmente estava apenas acompanhando minha família

nas reuniões e tal. Mas logo percebi que, também, deveria contribuir de alguma maneira.

7 – Como o MNLM se organiza?

Com reuniões periódicas e com pautas que tocavam toda a comunidade, por exemplo a educação na

comunidade.

8 – Quais são as principais contribuições do MNLM para as lutas e conquistas na Nova Santa

Marta?

Creio que se existe a NSM foi fruto na luta dos companheiros do MNLM. Sua contribuição vem desde

o inicio da ocupação, até a busca por recursos, por obras de infra na comunidade, de pensar a nossa

memória coletiva, enfim...

9 – Como foi/é a contribuição das mulheres no MNLM e na ocupação da Nova Santa Marta?

Creio que muito significativo. Pois no inicio da ocupação, como me relatavam, eram elas que davam

sustentação em todos os sentidos. Pois os homens saiam para o trabalho e elas tinham o papel de estar

na frente das pautas e zelando pelos barracos. Logo após elas lutaram por creches, e nesse período

percebi uma emancipação dessas mulheres em busca de trabalho e educação para elas e para seus

filhos. Elas eram a maioria nas reuniões, bem como até hoje e tivemos muitas lideranças mulheres na

ocupação.

10 – Qual a situação da Nova Santa Marta hoje? Quais suas principais demandas?

Hoje nossa demanda maior é pela regularização fundiária, nossa última etapa pelas obras do PAC a ser

implementada. Para que possamos dar um passo para implementar o Minha Casa Minha Vida. Minhas

energias estão para realizar mais essa conquista.

11 – Como tem sido a atuação do diferentes governos com relação ao MNLM e a Nova Santa

Marta?

A atuação dos governos petistas como aliados na busca por soluções às demandas foram satisfatórias,

pois todos os avanços foram em governos do PT. Nos demais governos encontramos muitas barreiras e

falta de diálogo para sanar nossas dificuldades.

Muito obrigado!

150

ANEXO 2 – ENTREVISTA COLETIVA COM MILITANTES DO MNLM

Entrevistador: Pedro Sergio da Silveira

Entrevistados: Ana Patrícia Moura, Cristiano Schumacher, Nilda Marlize Ribeiro e Vanderlei

Santos

Data: 11/02/2013

Transcrição: 20/02/2013

Duração: 38:02s

1 – Como é o seu nome, em qual ocupação mora e desde quando entrou no Movimento?

Meu nome é Cristiano Schumacher, eu moro na ocupação da Nova Santa Marta, no Alto da Boa

Vista, e entrei no Movimento em 1998 quando fui morar na Nova Santa Marta e depois participei de

todas as ocupações que o Movimento fez na cidade, como lá, em 1999, a ocupação do Km2, depois

teve as demais ocupações.

Vanderlei dos Santos, moro na Nova Santa Marta, participei da ocupação, em 1991, no dia 07 de

dezembro de 91, mas na verdade eu devo dizer que em 88 eu era sindicalista na época e militava no

Movimento Sindical e entrei como apoiador da ocupação e me tornei uma liderança do Movimento da

Moradia.

Ana Patrícia Moura, ocupei a Nova Santa Marta, em 1993, na Vila Alto da Boa Vista, foi quando

entrei pro Movimento da Moradia, participei, também, de outras ocupações como apoiadora,

trabalhando especificamente nas cirandas das crianças, fazendo oficinas de teatro, oficinas de

recreação, tanto nas ocupações que foram realizadas depois de 93 aqui no RS como, também, no

estado né no Fórum Social Mundial participei das ocupações e das oficinas.

Meu nome é Nilda Marlize Ribeiro, eu sou moradora da ocupação NSM desde 1992 quando eu

retornei pra Santa Maria, a ocupação já estava em andamento, as pessoas ainda todas moravam nas

barracas, foi quando começamos a construir os barracos de madeira, bem no início, ainda nos

primeiros meses da ocupação.

2 - A segunda pergunta é: por que ocupar?

Quem começa primeiro...

Vanderlei: acho que o porquê ocupar é, no ponto de vista do Movimento da Moradia tem vários

porquês, pela necessidade né, na época a gente percebia que o déficit habitacional da cidade era muito

grande, era muita gente pagando aluguel, muita gente morando nos fundos das casas dos pais, da casa

dos sogros, e o setor imobiliário era muito forte na época e vivia entorno disso, vivia sacrificando a

pobreza com o aluguel, e o aluguel como todos sabem “come mais do que o rancho”, até falta comida,

muitas vezes os pais não podiam sustentar os filhos de uma forma adequada, porque tinha que pagar o

aluguel, e esse dinheiro ia pros empresários e não se tornava em benefício dos moradores mais pobres

da cidade.

Ana Patrícia: No meu caso quando eu entrei pro Movimento foi assim uma admiração que eu tive

pelos militantes na época, a forma de adquirir uma moradia própria, eu sou de uma família que a vida

toda pagou aluguel, e pagava e ficava devendo, eu fui despejada várias vezes com minha família, com

meus pais, e quando eu conheci o histórico do Movimento eu me apaixonei pela luta, e a possibilidade

151

de poder ter uma casa própria, que ninguém na família tinha, e eu acreditei, apostei que era possível, e

foi quando eu ocupei, no Alto da Boa Vista, de princípio assim, fiquei bem assustada, com a atitude e

a forma que era, pra mim era tudo muito novo, era um desafio muito grande, a forma que foi realizada

a ocupação, pra mim foi uma surpresa muito grande, e pra mim foi uma felicidade saber que com a

luta do povo, da forma que foi, a gente conseguiu conquistar, adquirir a casa própria, então foi a

necessidade de ter a casa própria que me levou a militar no Movimento, e mesmo depois de adquirir a

minha casa eu continuo militando pra que outros possam vir a ter, acreditar que é possível.

Nilda: parecido assim com o que o Vanderlei conta e a Pati acabou de falar, eu venho, também, de

uma família bem grande, a gente morou de aluguel a vida toda, desde que saímos do interior, e a

dificuldade na cidade, de moradia digna, a gente pagava aluguel e vivia em moradias a vida toda, casas

muito ruins, barracos mesmo, e a gente pagava muito caro pelo aluguel, e uma cidade que não trata

com dignidade as pessoas que moram nessa cidade, alguma coisa está bastante errada, e a forma que o

Movimento encontrou, a forma que a gente encontra de diminuir essa diferença, essa desigualdade, é

cuidando do habitacional da nossa forma, que é ocupando, que é dando condições de luta, que é

pensando não só no futuro das nossas famílias, mas, também, no futuro da cidade.

Cristiano: ouvindo o que o pessoal falou, a ocupação na verdade se tornou uma ferramenta das

pessoas garantirem aquilo que não acontecia, garantir seu direito a morar, outras politicas públicas

acontecerem e tem muito do papel do Movimento, também, nesse resultado de politicas públicas,

durante um bom período foi a única forma de as pessoas garantirem sua moradia, era de fato com a

ocupação de terras.

3 - Então pessoal, que participou da ocupação mesmo dia 07 de dezembro foi só tu né Vanderlei,

tu pode contar como foi a organização antes da ocupação, como vocês chegaram ao ponto de

ocupar lá dia 07 de dezembro?

Vanderlei: na verdade é que desde 88 a gente reunia né, as lideranças sindicais da cidade reuniam-se e

faziam o debate entorno daquilo que era possível né, o que resolveria o problema da pobreza na cidade

em busca de um lugar certo pra morar, muita gente era trabalhadora de várias categorias da cidade e

não possuía sua casa, e assim na época os governos não tinham aquela questão de trabalhar políticas,

eram só planos eleitoreiros.. como a Santa Marta era uma enorme área que tavam devendo pra cidade,

ocupar a Santa Marta que era a maior área que tinha na região e que resolveria nosso problema, na

verdade na época, os governos anteriores da época, servia como plano eleitoral quando ia se elege o

próximo Governo do Estado, se dizia que iam construir casas populares, mas na verdade era só plano

eleitoreiro né, o Movimento fez o debate desde 88 ou 91 mudando a trajetória da cidade e com uma

política diferenciada através do Movimento a nível nacional e avançou na cidade o tema habitacional.

4 - O MNLM foi fundado em 90, então antes de 90 como vocês se identificavam, vocês se

consideravam um Movimento pela Moradia, como que vocês se reuniam?

Vanderlei: Não existia, a partir de 88 a gente começou a discutir de criar o Movimento da Moradia, o

movimento que satisfazesse a necessidade de construir casas pra famílias de baixa renda e aí sim, em

91 a gente formalizou o movimento pela moradia, legítimo, pra lutar pelas causas sociais.

5 - E teve gente de Santa Maria participando do 1º encontro lá em Belo Horizonte em 90?

Vanderlei: se teve foi um ou dois..

Cristiano: o Élso e o Zoé..

152

6 - E quem apoiou a ocupação naquele momento?

Vanderlei: num primeiro momento foi a Igreja Católica, não me recordo muito bem.. do Padre Carlos,

da Irmã Terezinha, e a partir daí se buscou apoio no Movimento Sindical, o Movimento Sindical foi

protagonista nisso, (....) alimentação, lona, e a vizinhança, também,, a vizinhança que era ao redor, a

gente conquistô, tinha uma necessidade de disputar aquela área que só servia pra burguesia, na época

tinha até uns aviõezinhos que servia só pra burguesia brincar, e tinha um latifundiário ali, tinha só bois

que pastavam ali, sem pagar nenhum tipo de arrendamento, então a gente tomou por iniciativa

denunciar, fazer o social assim né.

7 - E qual foi a postura da Prefeitura, dos governos Estadual e Nacional, qual foi a postura dos

governos?

Vanderlei: a postura do Governo Municipal foi totalmente contra, o Governo do Estado balançava pra

todos os lados, (Cristiano: quem era o governo da época?) Alceu Collares, PDT. Nós puxamos um

vínculo maior com um secretário dentro da casa civil, é o Renan Kurtz que depois veio atuar (Pedro:

veio pro PT depois né?), veio pro PT, trabalhar na prefeitura em Santa Maria, foi através desse elo que

a gente abriu um diálogo maior com o estado, que a gente conseguiu amenizar um pouco, mas foi

sofrido igual, fomos sitiados pela Brigada, fomos corrido pela Brigada, tomamo um pau...

8 - A Brigada ficou cercando a área da Nova Santa Marta até quando?

Vanderlei: nós ficamos dois dias sitiados, sem ninguém poder sair e nem entrar..

Nilda: depois ficou mais um tempo..

Vanderlei: teve um episódio em que boicotaram até o material pra quem tava construindo já, depois

que começaram a liberar a construção das casas, e eles queriam frear a questão de expandir a

ocupação, que na época era só duas ocupações, era a 7 de dezembro e o Alto da Boa Vista.

Nilda: no inicio, no inicio, era.. (..?..).. e nesse período que teve maior dificuldade com a Brigada..

9 - E quantas famílias tavam lá nesse momento?

Vanderlei: Eram muitas famílias, tinha muita gente.

Ana Patrícia: Já tinha saído o sorteio de posse, o Vanderlei já tava construindo..

10 - Eu li que no começo do Governo do Brito eles, também, botaram a polícia e cobraram das

famílias uma taxa..

Cristiano: foi a vez que o Vanderlei falou que foi proibido entrar material, saiu o sorteio da 7 e depois

saiu o Alto, e era o Governo Brito, e aí tudo piorou, tudo piorou, (...)

Vanderlei: Eles fizeram uma valeta na rua, que vários caminhão de cal e material voltava né..

Cristiano: e era uma cobrança ilegal..

11 - A pergunta agora é como o MNLM se organiza, quais são as principais atividades, enfim,

como o Movimento se organiza?

Cristiano: temos os encontros nacionais, estaduais e municipais, onde elegemos a direção. Nas

cidades o Movimento tem uma organização um pouco diferente de uma cidade para outra, tem

algumas cidades que mantém essa coisa de coordenação municipal mais atuante, outras cidades tem os

núcleos nas próprias comunidades onde nós somos do Movimento. Mas é muito gratificante, dá pra

viver algumas coisas, que eu acho que é interessante fazer esse vínculo que o Vanderlei falava da

153

década de 1990 ou de antes de 1990, 20 anos depois né, essa capacidade que o Movimento teve de

combinar essa coisa da ocupação, da luta direta como forma de resolver os problemas, com a

construção de políticas púbicas, muita gente não entendia por que que o Movimento ia pros

Conselhos, dialogava com os governos, é que a gente aprendeu que não adiantava só brigar, tinha que

resolver os problemas concretos das pessoas, e pra resolver o Movimento tinha que, também, ajudar a

construir, tanto é que já era década de 1990 eu acho, não participei disso mas eu tenho na memória, me

contaram, que foi o abaixo-assinado pelo Fundo da Habitação, que foi a 1ª lei de iniciativa popular que

foi apresentada em Brasília, isto foi feito no País afora, todos os municípios aonde tinha presença do

Movimento saiu a lei do Fundo e do Conselho Municipal de Habitação, e que em nível nacional ficou

anos em Brasília tramitando.

Ana Patrícia: Em Santa Maria a gente fez a coleta no calçadão, com intervenções teatrais, como uma

forma das pessoas se aproximarem, porque só o papel ali pra assinar a gente percebia que as pessoas

não chegavam perto, não se interessavam em só assinar, não entendiam muito o bem o que era, daí a

gente fez intervenções teatrais, só com os militantes, eu participei diversas vezes.

Cristiano: Tudo assim que tem avanço na área da Reforma Urbana no Brasil tem a presença do

MNLM e do povo aqui de Santa Maria de alguma forma, querendo o Fundo Nacional de Habitação, o

Estatuto da Cidade, as experiências de regularização fundiária que teve de vulto no estado, até por que

a Santa Marta chama muita atenção, é muito grande, nos planos diretores, nos Fóruns Sociais

Mundiais, então sempre teve uma participação muito forte de Santa Maria e do MNLM de Santa

Maria nessas conquistas, então se hoje a gente tem no Brasil Estatuto das Cidades, Ministério das

Cidades, tem muito, se procurar com atenção, vai encontrar em muitas lideranças de base reflexos

dessas discussões que foi feitas.

Voltando a questão da organização do Movimento, como o Movimento não se organiza na esfera da

produção as pessoas se mantem muito mais tempo organizadas enquanto elas tão resolvendo seus

problemas de território, de moradia, de escola, de saúde na volta, quando essas condições vão

melhorando as pessoas tendem a se afastar, pelo menos do cotidiano do Movimento.

12 - Qual a contribuição do MNLM pra luta e conquista da Nova Santa Marta?

Nilda: na questão da organização, e da informação das pessoas..

Cristiano: ocupar lá, as pessoas não participavam do Movimento, mas se espelhavam no que ele fazia,

até hoje é uma referência.

Vanderlei: na questão da autonomia, no momento que a pessoa conquista sua casa, deixa de pagar o

aluguel e aquele dinheiro que era pra pagar aluguel coloca na alimentação dos filhos, numa boa

educação, o comércio, também, cresce, dá pra ver que quem colocou mercado na NSM começou com

uma pecinha e hoje tem um prédio de dois pisos, e aqui na cidade é difícil quem tenha um mercado

grande, isso quer dizer que o pobre, também, compra e, também, consome, tem 4 ou 5 lojas de

material de construção, (...) muito do comércio na região Oeste se desenvolveu com aquele território

ocupado, que levou muita população pra ali, se for ver envolta do Km2, todo aquele trecho perto dos

trilhos do trem, se tu for no Km3, que é isolado, ali dentro tem vários pequenos mercados,

borracharia..

Ana Patrícia: e tem a educação, as escolas que a gente tem dentro da ocupação.

Cristiano: talvez a segunda grande briga de vocês no inicio foi colégio né, primeiro era ficar no

acampamento e segundo era conseguir vaga pra colocar todas aquelas crianças que tavam indo morar

na NSM, e hoje tem 3 colégios, 4ª escola já, então, também, trouxe pra região toda, jóquei clube,

prado (...)

154

13 - Quais as conquistas mais recentes que se teve agora na NSM?

Cristiano: O PAC é uma grande coisa, significa quase 70% das nossas reivindicações ao longo do

tempo, sendo resolvidas só agora.

Vanderlei: pouco mais da metade pronta, áreas verdes, meio ambiente, cultura pra periferia, Praça da

Juventude, tem a verba pra terminar isso, mas falta concluir, se já tivesse tudo pronto nós taria quase

satisfeito.

Cristiano: sempre falta uma coisinha né, já foi gasto 30 milhões, do total de recurso federal, do PAC

mais 20, da Escola Estadual Técnica mais 3, Praça da Juventude mais 1, na NSM tem pra investir mais

de 40 milhões de reais, assim como todas as ocupações da cidade. Então boa parte da geração de

emprego desde 2008 (já era pra tá pronto em 2011), nas empreiteiras, nas empresas do ramo da

construção estão acontecendo nas ocupações que a gente fez.

Ana Patrícia: empresas de transporte, o quanto ganham em cima das ocupações, a quantidade de

gente..

14 - E todas as regiões da Nova Santa Marta tem água, luz?

Cristiano: Falta alguma coisinha que vai ser concluída na obra do PAC..

Vanderlei: falta esgoto..

15 - Qual a situação da Nova Santa Marta hoje? Quais são as principais demandas e

necessidades?

Cristiano: PAC incompleto, Praça da Juventude, Centro Comunitário, reassentamento, legalização

dos terrenos, a partir do momento que legalizar os terrenos eles podem apresentar o terreno como

garantia e pegar o financiamento da Caixa pelo Minha Casa Minha Vida.

E outra característica bem interessante do Movimento é que se você olhar o mapa da cidade por cima ,

quando você ver uma ocupação organizada que tem ruas traçadas, áreas verdes grandes, essa ocupação

é do Movimento, discutir de não deixar que o projeto urbanístico saísse do alinhamento pra poder

fazer projetos depois, as únicas grandes áreas de Santa Maria em que se podia fazer empreendimentos

como a Praça da Juventude, escolas, obras, é na NSM onde foi preservado, lá tem quase 10hectares de

áreas verdes, 92 hectares ocupados.

Nilda: falta qualidade no transporte coletivo

16 - Vocês querem falar um pouco sobre a cooperativa do Movimento, sobre o Minha Casa

Minha Vida Entidades, que vocês têm projeto, como está esse processo todo?

Cristiano: O MCMV em Santa Maria ainda não teve muita realização na NSM. (...) E a ideia da

cooperativa, é uma questão muito antiga no Movimento, já teve várias experiências, várias idas e

voltas, e acho que a cooperativa aqui em Santa Maria ela nasce mais madura, por que ela pôde

acompanhar essas experiências todas que tiveram, pra o Movimento, também, entrar no aspecto da

produção, da economia, já que, vamos tratar assim, as demandas habitacionais já não são mais tão

gritantes quanto eram há um tempo atrás, hoje é necessário o Movimento se desafiar a estar discutindo

isto, que pra nós é uma novidade, lutar por terra, por infraestrutura, isso é uma coisa que a gente já

conhece, mas nesse aspecto da economia nem tanto.

Nilda: A posse da terra, da casa em si, a gente já está em processo, agora com a cooperativa a gente

quer dar qualidade a isto né.

155

17 - Como tem sido a atuação dos diferentes governos em relação ao MNLM e a NSM?

Cristiano: Tirando os governos que foram contrários a nós, os outros foram uma relação, acho como

devia de ser, com os conflitos que tinha que ter entre o Movimento e os governos, com alguns

avanços, alguns governos foram extraordinariamente abertos com a NSM, orgulhosos de buscar

desenvolver, acho que nos governos progressistas (aqueles de esquerda) o que muda talvez é o

tamanho do orgulho e da vontade de mexer com a NSM e com as pautas do Movimento, alguns mais

por obrigação, outros por desejo mesmo, mas em geral sempre teve aqueles que são totalmente contra

e aqueles que foram de alguma forma dialogáveis, é comum entre os partidos de centro-esquerda ter

uma visão de que aquilo que devia ser popular deveria ser olhado com mais atenção, no Governo

Olívio chegou a ter um processo de participação popular, teve intervenção de várias secretarias do

Governo do Olívio ao mesmo tempo na NSM, desde a área da assistência social, do trabalho, da

educação, da habitação, os outros nunca se teve isso, já o Olívio, se nós pudesse ter tido o presente de

ter o recurso federal do PAC do Lula e da Dilma com a gestão do Olívio, talvez a NSM fosse parte de

uma grande experiência, um exemplo de transformação de um território, de regularização fundiária, de

urbanização, de participação.. mas as coisas não aconteceram ao mesmo tempo né. (...) Talvez a

possibilidade da NSM ter entrado no PAC, além da nossa luta, foi o fato de que naquele período do

Governo do Olivio que se tentou implantar um projeto de regularização, que não era só legalizar os

terreno, era desenvolver o bairro todo.

Vanderlei: na verdade o Movimento, o Movimento da Moradia sempre tratou todos os governos como

qualquer governo, nossa pauta de reivindicação, fosse o governo que fosse, a gente nunca mudou um

item na pauta e nem vai mudar, o Movimento tem uma política diferenciada, todo governo tu tem que

fazer tua pauta e levar lá, eles não vem cá pra ver o que precisa, embora se tenha um governo de

esquerda, quando é governo eles mudam completamente, então, o Movimento sempre foi diferente,

por que se a gente pensasse que só ia ganhar a NSM com governos que fossem de partido tal, do

partido tal ou tal, teria escolhido o governo pra fazer a ocupação, mas a gente fez a ocupação durante

um governo do PDS contrário a tudo aquilo que o Movimento faz, e mesmo assim, foi sofrido, mas foi

gostoso que a gente ganhou na luta, foi sofrido mas ganhamo.

18 - E em relação aos governos Valdeci e Schirmer, quais são as opiniões do Movimento?

Cristiano: era aquilo que eu falava antes, o Valdeci, por diversos motivos tinha algum compromisso

com a nossa comunidade e com o Movimento, por ter feito militância de base, agora o Schirmer é um

governo de elite que não consegue imaginar o que é o sofrimento de uma pessoa num barraco de

madeira quando chove, não consegue ter noção da falta que faz a legalização de um terreno de uma

família de baixa renda, ele não tem noção do que é pisar no barro. Uma vez nos falaram “ah mas vocês

bateram mais no Governo do Valdeci do que bateram no Governo do Schirmer”, aí eu respondi que do

Schirmer nós não esperava nada, do Valdeci nós esperava muito e cobrava dele muito porque ele tinha

obrigação com nós, o Schirmer não tem nenhuma obrigação com nós a não ser o fato de ser prefeito,

não tem nenhum compromisso ou solidariedade de classe, acho que essa é a diferença, não é nem na

competência nem na administração, é no compromisso, entendeu.

19 - Agora a última pergunta, qual a contribuição das mulheres pra luta na NSM e pro

Movimento como um todo? As mulheres cumpriram algum papel na organização do

Movimento, estiveram nas manifestações, na coordenação do Movimento?

Ana Patrícia: Com certeza, inclusive geralmente nas ocupações a maior parte são mulheres, são as

que mais seguram a ocupação, as crianças, as mulheres, em torno de fazer os grupos de apoio,

cuidando da questão da saúde, da questão da própria ciranda, tem que organizar quem vai ficar com as

crianças, na questão da alimentação – acho que o Vanderlei pode colocar um pouco sobre isto né, que

a ocupação que eu participei foi mais a do Alto da Boa Vista, mas geralmente a gente faz um barracão

central onde ali vai ficar concentrada a questão da alimentação, é uma barraca onde ficam todos

entorno ali né, onde as pessoas se reúnem, onde é feitas as discussões sobre quem vai ficar responsável

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sobre determinada função. Mas as mulheres geralmente tão na liderança de frente, teve a Sandra

Feltrin, na época era advogada, era estagiária.

Cristiano: No início dos protestos sempre a maioria são mulheres, ao longo do tempo vai diminuindo

a participação das mulheres, mas mesmo assim, sem nenhum tipo de política de gênero ou de cota que

incentive a participação das mulheres, é um dos ambientes da política mais feminino, já teve

assembleias, reuniões de coordenação, de lideranças, aonde a maioria eram mulheres e a minoria

homens, reunião de 10 pessoas com 3 homens, então isso é muito comum. Com o passar do tempo

acaba tendo um debate de gênero legal pra fazer, acaba que vai ficando mais os homens nos espaços

de poder político e as mulheres vão se afastando do processo, na época do acampamento quem vai

bater panela na porta da prefeitura, quem vai lutar por água, essas necessidades fundamentais nesse

primeiro momento nos primeiros meses de acampamento é maior o número de mulheres na ativa, os

homens cumprem mais um papel de retaguarda, de trazer sustento pra casa, de segurança, acaba que

não convivem o dia todo no acampamento. Eu lembro que no Km2, por exemplo, eu passava o dia

inteiro no acampamento liberado pra essa tarefa, só com mulheres, eu só ia ver homens adultos de

noite, desde as 6hs da manhã até anoitecer tu convivia só com mulheres.. reuniões no fórum, com o

juiz, na maior parte das vezes foram mulheres e alguns quadros, que são homens que ficam ali

acompanhando o processo, geralmente vem de outra ocupação.

Vanderlei: na verdade divide o trabalho, o homem e a mulher trabalham, então na questão da

ocupação, ocupam a área de forma momentânea, pode durar pouco tempo como pode demorar

bastante, daí o casal passava a dividir as tarefas, e as mulheres que os maridos trabalham como

empregado, a mulher sai do emprego e garante o teto, a ocupação. (...) Então por isso que fica

flutuando, (...) viver o coletivo, dos filhos dela e os filhos das outras mulheres que tem que trabalhar

(...)

Cristiano: até o ano de dois mil e pouco era período de desemprego total né, de uma em cada quatro

pessoas, tu reunia muita gente em qualquer horário inclusive, mas tinha mais biscate pra homem do

que biscate pra mulher, (...), agora a luta da moradia é uma luta que tem muito a ver com as mulheres,

e essa coisa do abrigo da família. O Vanderlei lembrava que boa parte das mulheres que acampava tem

maridos com filhos, mas é, também, um momento de libertação, várias mulheres que se separam e

vão pro acampamento já separadas, deixa os maridos e os problemas tudo pra trás e começa uma vida

nova ali, é muito interessante perceber esse momento, várias mulheres que deixaram os maridos e às

vezes os maridos íam na ocupação e brigavam pra mulher voltar pra casa, é muito interessante.

20 - Algum comentário mais? Então eu agradeço pessoal, muito obrigado mesmo..

Cristiano: uma coisa muito interessante, quando o Vanderlei fala da NSM, ele fala de uma ocupação

articulada com ficha de orelhão..

Ana Patrícia: é uma das primeiras conquistas da ocupação foi o orelhão, depois de vários tempos (...)

(...)

“Brigadão” pessoal, pela atenção e disponibilidade de vocês!

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ANEXO 3 – MAPA DAS OCUPAÇÕES IRREGULARES NO ESPAÇO URBANO DE SANTA MARIA, RS

Fonte: PRADO (2010, p. 66).