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1 A ‘Procedimentalização’ do Direito Administrativo BENJAMIN ZYMLER Ministro do Tribunal de Contas da União Sumário I - Introdução II – Razões que levaram à procedimentalização do Direito Administrativo II.1 – Surgimento do Estado Social II.2 – A procedimentalização como elemento mitigador de frustrações II.3 A procedimentalização como movimento “‘contracircular” III – Alguns exemplos de recente procedimentalização do Direito Administrativo III.1 Tribunal de Contas da União III.2 Licitações e Contratos III.3 Concessões e Permissões de Serviço Público III.4 Constituição Federal IV – Princípios do Procedimento Administrativo V – Lei nº 9.784/99 VI – Aplicação da Lei nº 9.784/99 aos Tribunais de Contas VII - Conclusão

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A ‘Procedimentalização’ do Direito Administrativo

BENJAMIN ZYMLER

Ministro do Tribunal de Contas da União

Sumário

I - Introdução

II – Razões que levaram à procedimentalização do

Direito Administrativo

II.1 – Surgimento do Estado Social

II.2 – A procedimentalização como elemento mitigador

de frustrações

II.3 – A procedimentalização como movimento

“‘contracircular”

III – Alguns exemplos de recente procedimentalização

do Direito Administrativo

III.1 Tribunal de Contas da União

III.2 Licitações e Contratos

III.3 Concessões e Permissões de Serviço Público

III.4 Constituição Federal

IV – Princípios do Procedimento Administrativo

V – Lei nº 9.784/99

VI – Aplicação da Lei nº 9.784/99 aos Tribunais de

Contas

VII - Conclusão

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Introdução

Gostaria, inicialmente, de agradecer à Procuradora-Geral Dra.

Márcia Farias e ao Centro de Estudos Jurídicos do Ministério Público de

Contas do Distrito Federal pelo convite para proferir esta palestra, de tema

tão instigante.

O presente trabalho pretende apresentar uma breve exposição sobre o

Procedimento Administrativo. Particularmente, nos interessa perscrutar as

razões que levaram à tendência atual de procedimentalização do Direito

Administrativo brasileiro. Se ela despontava no horizonte, aparecendo

sistematicamente em leis mais recentes, não há negar que a Lei nº 9.784/99,

que regula o processo administrativo na Administração Pública Federal,

constitui o ponto culminante em que o paradigma administrativo brasileiro

passa a ser, definitivamente, o procedimento, e não mais o ato

administrativo.

Nesse contexto, exsurge a atualidade e a importância do tema. Se,

por um lado, a matéria é fascinante, em face das inovações que emergem

no seio da atividade estatal, de outro, urge reconhecer as dificuldades de

sistematização teórica presentes nesta etapa de transição caracterizada pela

inadequação dos institutos jurídicos.

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II. Razões que levaram à procedimentalização do Direito

Administrativo

II.1. Surgimento do Estado Social

A tendência recente de procedimentalização do Direito

Administrativo é decorrência direta do modelo jurídico de Estado adotado

pela Constituição Federal de 1988, qual seja, o Estado Social.

O Estado Liberal, engendrado por força do liberalismo do século

XVIII, tinha como um de seus cânones a interferência mínima na

propriedade e liberdade dos indivíduos. Este Estado tinha por alicerce a

idéia de que era necessário estimular a atividade econômica sem imiscuir-

se nos negócios privados. A função do Estado era permitir o

desenvolvimento econômico mediante, fundamentalmente, a garantia da

ordem, paz e segurança sociais.

Com as crises econômicas do século passado, mormente as advindas

de períodos de pós-guerra, o modelo do Estado Liberal, cuja premissa era a

intervenção mínima, viu-se incapaz de atender às novas demandas sociais.

Surgia, então, o Estado Social, detentor de novas perspectivas de atuação

— seja como indutor e regulador da atividade econômica, seja como

protetor de minorias excluídas.

Como bem lembrado, em feliz passagem, por Sundfeld1:

“Enquanto as clássicas declarações de direitos consagravam

basicamente a proteção do indivíduo contra o Estado, reservando àqueles

um espaço intangível de liberdade, as novas declarações passaram a se

1 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 1997, p. 54.

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ocupar também da proteção dos indivíduos em face do poder econômico e

em propiciar-lhes prestações estatais positivas.

O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para

ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do

nível cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer,

a extinção das injustiças na divisão do produto econômico).”

Vê-se, então, que o ponto marcante do Estado Social é a garantia de

direitos subjetivos dos particulares, oponíveis contra o Estado, que exigem

uma atuação comissiva da máquina estatal, tais como o direito à educação,

à saúde, à cultura etc.

A Constituição Federal de 1988 adotou o Estado Social como

modelo de Estado. Em seu preâmbulo, consigna que é função do Estado

assegurar o exercício “dos direitos sociais e individuais”. Os artigos 1º e

3º, inseridos no Título relativo aos Princípios Fundamentais, também

deixam claro a superação do modelo de Estado simplesmente garantidor

das liberdades individuais. O artigo 1º estabelece a cidadania e a dignidade

da pessoa humana como fundamentos da República. O artigo 3º, de seu

turno, afirma serem objetivos da República, entre outras coisas, a

construção de uma sociedade justa, solidária e livre da pobreza e da

marginalização.

De modo mais evidente ainda, o art. 6º dispõe que “São direitos

sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência

aos desamparados, na forma desta Constituição.”.

Além destes, o art. 7º elenca outra série de direitos sociais dos

trabalhadores urbanos e rurais, sem prejuízo de outros difundidos na

própria Constituição Federal e na legislação que dela deflui.

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O surgimento do Estado Social, além de trazer os direito sociais,

trouxe, também, a figura do Estado empreendedor, responsável pela

alavancagem do setor econômico. Num primeiro momento este papel foi

desenvolvido, em boa parte, pelas empresas estatais, voltadas para atuar em

áreas que demandavam um aporte vultoso de recursos.

Mais adiante, em decorrência da revitalização do ideário liberal

diante das dificuldades fiscais do Estados Sociais, iniciam-se as

privatizações, com a conseqüente diminuição do tamanho do Estado. No

entanto, mantiveram-se os direitos subjetivos que caracterizam o Estado

Social, o qual, agora, passa a atuar na regulação dos subsistemas sociais —

subsistema econômico, por exemplo. Tal regulação, consistente também na

elaboração de normas substantivas acerca de subsistemas sociais que dantes

eram intocáveis pelo Estado Liberal, torna-se, então, a principal forma de

atuação do novo Estado Social na busca de seus fins.

Agindo direta ou indiretamente, o natural agigantamento do Estado-

Regulador traz, inequivocamente, uma profusão de normas substantivas, as

quais servirão para normatizar as diferentes realidades atingidas pela ação

estatal. Afinal, quem quer os fins há de propiciar os meios. Como bem

ensina Bandeira de Mello2, “Ao contrário do que sucedia ao tempo do

Estado Liberal, quando era escassa a intervenção pública no seio da

Sociedade, a realidade social e econômica passou a ser havida como um

objeto sobre o qual devia incidir a ação transformadora do Poder Público,

tendo em vista o atingimento de finalidades havidas como prezáveis.”

Ocorre que a profusão de normas materiais, como tudo, possui

limites. A capacidade regulatória do direito não pode ser tida como

absoluta.

2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 424.

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A aventura da regulação desses setores da sociedade — neles

lançando conceitos jurídicos precisos, determinados — pode significar

nada mais do que uma ingênua tentativa.

A precisão substantiva — fruto da pulverização da ação regulatória

estatal —, vale destacar, pode levar à inutilização da norma jurídica pelo

simples decurso do tempo. Um fato juridicizado hoje pode, perfeitamente,

inexistir no curto prazo em razão da evolução social. Daí, se a norma é

posta com a pretensão de precisar os contornos deste fato de forma

absoluta, sua falta de plasticidade poderá torná-la inócua.

Surge, então, um dilema para o novo Estado Social. Ao mesmo

tempo que necessita regulamentar os subsistemas sociais com vistas à

disponibilização dos direitos sociais que lhe dão identidade, depara-se com

uma sobrecarga de produção normativa, que não mais alcança os resultados

prognosticados pelo legislador ou pelos órgãos regulamentadores.

Deste cenário surge a procedimentalização do Direito, e

particularmente a do Direito Administrativo, como forma de harmonizar a

necessidade de interferência do Estado nos subsistemas sociais e a

improficuidade do direito substantivo.

Ao criar normas adjetivas, procedimentais, é possível ao Estado

legiferante abrir mão de regulação extensiva, valendo-se, portanto, dos

conceitos jurídicos chamados “fluidos”, “imprecisos”. Estes conceitos, nos

dizeres de Bandeira de Mello3, possuem “um núcleo significativo e certo e

um halo circundante, uma auréola marginal, vaga ou imprecisa. Daí

resulta que haverá sempre uma zona de certeza positiva, da qual ninguém

duvidará do cabimento da aplicação do conceito, uma zona circundante,

onde justamente proliferação incertezas que não podem ser eliminadas

3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 373.

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objetivamente, e, finalmente, uma zona de certeza negativa, onde será

indisputavelmente seguro que descabe a aplicação do conceito.”.

A utilização destes conceitos elimina a necessidade de um maior

detalhamento do direito material. A vaguidade do conceito, na verdade, traz

em si a possibilidade de que nele seja albergado um número de casos

concretos bem maior do que os que seriam abarcados por um conceito

preciso. O procedimento surge então como mecanismo que permitirá, em

cada caso concreto, a obtenção de um resultado jurídico cujos lindes serão

definidos no transcorrer do procedimento, e não mais de forma apriorística.

Para que o uso destes conceitos traga proveitos ao Estado Social na

busca de seus objetivos, é fundamental, portanto, que surjam novos

mecanismos. É indispensável que exista uma seqüência de atos, de

autonomia relativa, estatuídos visando à consecução de um ato final. No

campo do Direito Administrativo, surge, então, o Procedimento

Administrativo.

É por meio deste método que será possível trazer o administrado para

o processo decisório de definição do conceito impreciso utilizado.

A procedimentalização não mais exerce apenas sua função clássica

de resguardar o administrado contra a Administração. Passa a ser, na

verdade, o método de atuação típico do Estado Social.

Surge a procedimentalização como uma reação à impossibilidade de

se regular por meio do direito substantivo, detalhadamente, todos os

campos pelos quais a Administração deve, à luz da Constituição Federal,

trafegar. Com efeito, surge um balanceamento: aumenta-se o detalhamento

das normas adjetivas e diminui-se o das substantivas.

Como conseqüência desta interação Administrado X Administração,

por meio de normas adjetivas, tem-se, outrossim, o surgimento de conceitos

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mais coerentes com a realidade regulada. Neste sentido, vale novamente

trazer à lume passagem de Bandeira de Mello4:

“Com isso também se enseja maior descortino para as atuações da

Administração, pois esta agirá informada, também, pela perspectiva

exibida pelo interessado, o qual pode acender luzes prestantes para

avaliação mais completa do assunto.”

II.2. A procedimentalização como elemento mitigador de

frustrações

A procedimentalização do Direito Administrativo deve ser entendida,

também, sob outra perspectiva. Esta perspectiva, na verdade, relaciona-se

com a função clássica do processo e do direito — a de permitir a

pacificação social.

Um dos consectários do Estado Social é a tensão advinda da não

obtenção dos direitos subjetivos públicos que são ofertados à população.

Obviamente, se existem utilidades às quais os cidadãos têm, à luz do

sistema normativo vigente, direito, a não obtenção delas gera,

inevitavelmente, uma cadeia social de frustrações. Sob este ângulo, o

Estado dito liberal era menos suscetível à instabilidade, eis que quando se

promete menos, menores são as decepções relativas ao descumprimento

das promessas. Como já disse, o Estado Social é marcado por prestações

positivas, fato que permite a assertiva de que é marcado por expectativas.

Tais expectativas, infelizmente há de se dizer, frustam-se, em boa

parte. Tais frustrações, no entanto, são mitigadas pelo processo, que é

4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 427.

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método impessoal e asséptico. Como nos mostra Niklas Luhmann5 em seu

Sociologia do Direito II, a legitimação do direito, que, em suas palavras, é

“o convencimento fatual da validade do direito ou dos princípios e valores

nos quais as decisões vinculativas se baseiam”, nasce a partir de sua

processualística.

A resolução dos conflitos mediante uma seqüência lógica e

predeterminada de atos que permita a participação do interessado impede o

surgimento de contendas eminentemente pessoais. No processo debatem-se

teses jurídicas. Tem o processo a capacidade de fazer com que a disputa

não seja entre o indivíduo “A” e o indivíduo “B”, mas entre as teses

jurídicas apresentadas por “A” e por “B”.

A estrutura de embate trazida pelo processo, é inegável, contribui

para a pacificação social. Com a procedimentalização, evita-se, também,

que a Administração faço uso de processos decisórios diferentes para

regular duas situações idênticas. Com isso, o processo faz com que a

Administração amolde sua atuação aos contornos do Princípio da Igualdade

— o qual, por ser incompatível com o tratamento desigual dos que se

encontram em situação de igualdade, contribui para a manutenção da paz

social.

Os recursos, previstos nas diferentes legislações que estabelecem

procedimentos administrativos, são um bom exemplo de como o processo

possibilita o arrefecimento dos ânimos. Primeiro porque diminuem a

chance de erros da Administração, permitindo que um posicionamento

prejudicial ao particular seja revertido. Ademais, tomando-se o ser-humano

médio, é fato que a possibilidade de acalmação frente duas decisões

desfavoráveis — uma ratificando a outra — é maior do que a decorrente de

uma única manifestação.

5 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1985, p. 61.

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II.3. A procedimentalização como movimento “contracircular”

Há de se entender a procedimentalização do Direito Administrativo,

ainda, como uma reação evolutiva natural ao modelo tradicional de

relacionamento existente — dentro do Estado Democrático de Direito —

entre a Administração, a Política e o Público. Tal modelo tradicional, e, por

conseguinte, o modelo heterodoxo, foram descritos por Niklas Luhmann

em sua análise da dinâmica interna do subsistema político, exposta no livro

“Política e Direito – Uma Visão Autopoiética”6, de minha autoria.

No modelo ortodoxo, Administração, Política e Público interagem da

seguinte forma: o Público elege os representantes do Poder Legislativo e

Executivo, cuja função é editar atos políticos. As leis e decisões políticas

são concretizadas pela Administração, em suas interações com o Público,

por meio de atos administrativos. É um movimento circular no qual

inexiste um centro de onde emane o fluxo hierarquizado do poder. Os

elementos principais deste movimento são as eleições, os atos políticos e os

atos administrativos.

Com o surgimento do Estado Social, e das conseqüências a ele

inerentes, ocorre uma sobrecarga deste modelo ortodoxo. Esta estrutura não

mais é suficiente para atender às ingerências que o Estado Social,

inevitavelmente, deve realizar no seio social com o intuito de viabilizar os

chamados direitos sociais.

Nasce, destarte, um movimento contracircular ao modelo ortodoxo.

Agora, convivem duas formas claras de interação entre Administração,

Poder Legislativo e Público: a primeira, tradicional, cujos elementos são as

6 ZYMLER, Benjamin. Política & Direito – Uma Visão Autopoiética. Curitiba, Ed. Juruá, 2002, p. 127-132.

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eleições, os atos políticos e os atos administrativos; a segunda, o modelo

contracircular.

Neste modelo heterodoxo (contracircular), a Política, por meio de

pautas partidárias preestabelecidas, sugere ao público o quê (o programa

partidário) e quem (os candidatos) eleger. O Público, por sua vez, exerce

sua influência sobre a Administração, mediante exercício do direito de

petição e pela participação em processos administrativos de formação da

vontade estatal. Finalmente, a Administração, por intermédio de seus

especializados corpos técnicos de assessoria e direção, produz e influencia

a seleção de projetos para a Política.

Assim sendo, surge o procedimento administrativo como faceta da

contracirculariedade, que é fruto da saturação do movimento circular.

Nota-se, mais uma vez, que a procedimentalização do direito

administrativo longe de ser mero casuísmo ou de ser, tão-somente, a

manifestação de uma preocupação com a manutenção de garantia dos

direitos dos administrados, é, com efeito, fruto de uma necessidade de

reação evolutiva do próprio Estado Social, que não mais consegue buscar

seus objetivos escorado, apenas, nos mecanismo clássicos de interação

entre Público, Administração e Política.

III. Alguns exemplos de recente procedimentalização do Direito

Administrativo

III.1. Tribunal de Contas da União

O Tribunal de Contas da União, órgão que auxilia o Congresso

Nacional no exercício do Controle Externo, vem sofrendo, desde o advento

da Constituição de 1988, ampliação de suas competências.

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Com o aumento das atribuições da Corte de Contas, houve,

progressivamente, incremento substancial na procedimentalização da sua

atuação.

Sobreveio, então, em substituição ao Decreto-Lei nº 199/67, que era

a lei orgânica do TCU, a Lei nº 8.443/92. Esta norma, como era de se

esperar, trouxe um maior detalhamento da inter-relação TCU X

administrado. Aspectos processuais que na norma antiga eram

mencionados de forma imprecisa e sintética, ganharam, no novo diploma,

configurações mais nítidas e analíticas. A título de exemplo, vale

mencionar que a Lei nº 8.443/92, ao contrário do Decreto-Lei, disciplina

com maior precisão os recursos cabíveis contra decisões proferidas em

processos de tomada ou prestação de contas.

Ao mesmo tempo, sobreveio uma profusão de normas

procedimentais de nível infralegal. Neste sentido, a Resolução TCU nº

36/2000 estabelece procedimentos sobre o exercício da ampla defesa no

âmbito do Tribunal de Contas da União. A preocupação em esmiuçar o

processo administrativo do TCU é nítida nesta norma, que, entre outras

coisas:

define como partes do processo as figuras do responsável e do

interessado, conceituando cada uma delas e estabelecendo a

forma como a última ingressa no processo;

assevera que são etapas do processo a instrução, parecer do

Ministério Público, julgamento e recursos;

disciplina a concessão de vista, a retirada de cópias e a juntada de

documentos;

regulamenta a forma como se exerce o direito de sustentação oral;

disciplina as medidas cautelares que podem ser proferidas pela

Corte de Contas.

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III.2. Licitações e Contratos

A título de exemplo do viés procedimentalista do Direito

Administrativo, há de se mencionar a Lei nº 8.666/93, que dispõe sobre

licitações e contratos na Administração Federal e que substituiu o Decreto-

Lei nº 2.300/86.

Do exame da Lei de Licitações e Contratos é possível extrair o

seguinte:

a Lei cria a figura das audiências; o art. 39 estabelece a

obrigatoriedade de os procedimentos licitatórios de grande vulto

financeiro serem precedidos de audiência aberta a todos os

interessados, os quais terão direito à obtenção das informações

pertinentes e à manifestação;

o art. 41 da 8.666/93, em seu parágrafo primeiro, regulamenta de

forma precisa a maneira pela qual os cidadãos podem insurgir-se

contra edital de licitação, coisa que não fazia o Decreto-Lei nº

2.300/86 em seu artigo correspondente (art. 33);

o art. 49 estabelece a possibilidade de a autoridade competente

para a aprovação do procedimento revogar a licitação, por razões

de interesse público decorrente de fato superveniente, e anulá-la,

por ilegalidade; o § 3º deste artigo, de seu turno, dispõe que tanto

na revogação quanto na anulação fica assegurado o contraditório

e a ampla defesa;

o art. 78 consigna hipóteses de rescisão do contrato; o parágrafo

único do art. 78, por sua vez, dispõe que os casos de rescisão

contratual devem ser motivados, assegurado o contraditório e a

ampla defesa.

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III.3. Concessões e Permissões de Serviço Público

A Lei nº 8.987/95, a qual dispõe sobre o regime de concessão e

permissão da prestação de serviço público, também pode servir como

exemplo da procedimentalização do Direito Administrativo e da

contracircularidade. O art. 3º desta norma estabelece que os usuários devem

cooperar com o poder concedente na fiscalização das concessões e

permissões. O art. 5º, por sua vez, consigna que o poder concedente deverá

publicar, previamente ao edital de licitação, ato justificativo da

conveniência da outorga de concessão e permissão de serviço público.

Da mesma forma que o artigo 39 da Lei de Licitações, os artigos

citados invertem o fluxo tradicional de relacionamento Administração X

Público. Não mais o administrado limita-se a ser o pólo passivo do ato

administrativo. Na perspectiva contracircular a que aludi, o Público

interage com a Administração — no presente caso a Administração pode

ser considerada como o Poder Concedente e o Concessionário, eis que este

recebe delegação daquele — dando-lhe “imputs” acerca da forma que ela

atua.

No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 30 estabelece que a

fiscalização do serviço público deverá ser feita não só pelo poder

concedente, mas também, periodicamente, nos termos de legislação

complementar, por comissão mista, composta por representantes do poder

concedente, da concessionária e dos usuários.

O art. 32 da Lei nº 8.987/95 disciplina a possibilidade de o poder

concedente, escorado em Decreto, intervir na concessão com o fito de

assegurar a prestação, a contento, do serviço público e o cumprimento da

legislação por parte do concessionário.

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A tendência procedimentalista surge quando o art. 33 determina a

obrigatoriedade de o poder concedente, no prazo de trinta dias após a

declaração da intervenção, instaurar processo administrativo com o

objetivo de comprovar as suas causas determinantes e de apurar

responsabilidades, assegurado o direito de ampla defesa. Ainda, estabelece

o artigo, por meio de seu parágrafo segundo, que o procedimento

administrativo deve ser concluído no máximo em 180 dias, sob pena de a

invalidação ser considerada inválida.

O art. 38 estabelece, em seu parágrafo primeiro, as hipóteses

ensejadoras da declaração, pelo poder concedente, da caducidade da

concessão — que é uma das formas de extinção da concessão. A referida

tendência surge no parágrafo segundo deste mesmo artigo, o qual

estabelece a necessidade de, antes de se declarar a caducidade da

concessão, instaurar procedimento administrativo com o intuito de apurar a

inadimplência da concessionária.

III.4. Constituição Federal

A participação popular na gestão da Administração — cuja

concretização só é possível mediante a procedimentalização, eis que não é

razoável que a interação Poder Público X administrado se dê à luz da

improvisação, variando a sua forma a cada caso concreto existente — pode

ser também vislumbrada em algumas passagens da Constituição Federal de

1988:

o art. 10 assegura a participação dos empregadores e

trabalhadores nos colegiados dos órgãos públicos nos quais seus

interesses profissionais ou previdenciários forem objeto de discussão

e deliberação;

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o art. 37, § 3º, estabelece a possibilidade de participação do

usuário, conforme consignado em lei, na Administração Pública

Direta e Indireta; tal lei, por sua vez, deverá regular, principalmente,

as reclamações referentes à prestação do serviço público e a

disciplina da representação contra exercício negligente ou abusivo de

cargo, emprego ou função na Administração Pública;

o art. 187 prevê que a execução e o planejamento da política

agrícola serão realizados, na forma da lei com a participação efetiva

do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais,

bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de

transportes;

o inciso VI do parágrafo único do art. 194 coloca que a

seguridade social deverá ser gerida de forma democrática e

descentralizada, mediante gestão quadripartite, com participação dos

trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos

órgãos colegiados.

Talvez o sintoma mais evidente do fenômeno de

procedimentalização pelo qual passa o Direito Administrativo seja a

publicação da Lei 9.784/99; passo, doravante, a comentar este diploma

legal. Antes, no entanto, julgo oportuno comentar, de forma breve, alguns

dos princípios do procedimento administrativo que, com certeza,

permearam a elaboração desta norma.

IV. Princípios do Procedimento Administrativo

Não há uniformidade absoluta entre os autores acerca dos princípios

do procedimento administrativo. Não há, sequer, consenso a respeito do

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nome a ser usado — se processo administrativo ou procedimento

administrativo. É comum serem dados nomes diferentes à vetores básicos

(princípios) que possuem o mesmo conteúdo, assim como também é

comum os autores divergirem quanto ao número de princípios que podem

ser extraídos do ordenamento jurídico. Mencionarei, destarte, alguns deles.

Princípio da Publicidade

Decorre diretamente da Carta Magna (art. 37 caput). A função da

Administração pública é cuidar do interesse público, o qual, por sua vez,

somente pode ser atingido mediante atuação escorada na lei. Poderes são

conferidos à Administração com vistas, tão-somente, a viabilizar o

cumprimento dos deveres para os quais se criou a figura do Estado. São

poderes adstritos à finalidade legal, donde decorre a necessidade de se

controlar o seu manejo, o que somente é possível com a publicidade dos

atos administrativos.

Sendo assim, os atos praticados no desempenho de função

administrativa — que é a função caracterizada pela gestão de interesse

públicos — deve estar a disposição, para fins fiscalizatórios, dos titulares

do poder, ou seja, dos membros da sociedade. A publicidade em um Estado

Democrático de Direito é a regra, somente permitindo-se procedimentos

sigilosos quando em jogo interesses públicos valiosos ou a defesa do direito

à privacidade.

Neste sentido, o inciso XXXIII da Constituição Federal dispõe que

“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu

interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas

no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo

sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

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Princípio da Oficialidade

É consectário direto do fato de a Administração existir para a

persecução dos interesses públicos. Se a finalidade é zelar pelo princípio da

legalidade, não pode a Administração limitar-se a combater ilegalidades

apenas quando os particulares contra elas se manifestam. Por este princípio,

encontra-se a Administração autorizada a instaurar procedimento e a rever

suas decisões de ofício, nos limites da lei, sempre que o atingimento dos

interesses coletivos a ela imponha tais atitudes.

É de notar que no procedimento administrativo a oficialidade é mais

ampla que no processo judicial; neste, a obrigatoriedade de impulsionar o

processo somente nasce após a quebra da inércia processual, a qual não

pode ser efetuada pelo Estado-Juiz.

Em nível jurisprudencial, a diretriz da autotutela dos atos

administrativos é firmada pela Súmula nº 473 do Supremo Tribunal

Federal, de seguinte teor:

“A Administração pode anular seus próprios atos eivados de vícios

que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-

los, por motivos de conveniência ou oportunidade respeitados os direitos

adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Princípio da Verdade Material

Diferentemente do processo judicial, onde, muitas vezes, da relação

jurídica surgem apenas interesses privados, o processo administrativo é

marcado pela presença inevitável de interesses públicos. Tal presença,

inclusive, faz com que haja autores que defendam a inaplicabilidade do

conceito de ato anulável ao direito administrativo, eis que este ramo

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jurídico é totalmente permeado por interesses coletivos, havendo de se

falar, tão-somente, em atos nulos. Eis que presentes interesses

predominantemente públicos no processo administrativo, não está a

Administração autorizada a contentar-se com a verdade formal. Há de se

buscar, sempre, a verdade substancial, não podendo a Administração

limitar-se às alegações dos interessados quando elas não têm o condão de

esclarecer a verdade dos fatos.

Princípio do Formalismo Moderado

Por tal princípio, a Administração não deve escorar-se em

formalismos exacerbados ao apreciar a manifestação dos interessados. O

formalismo só é tolerável nas hipóteses em que sua observância é

necessária ao atendimento do interesse público e à proteção dos interesses

dos administrados.

Justifica-se o menor rigor formal, em boa medida, pelo fato de a

interação Administração X administrado, na maioria das vezes, não ocorrer

no plano das contendas, das disputas. Assim sendo, pode-se admitir uma

maior condescendência com falhas procedidas no decorrer dos processos

administrativos. Sem embargo, nos procedimentos onde há competição,

como procedimentos licitatórios, há uma maior atrelamento ao formalismo

com vistas à observância do Princípio da Igualdade.

Decorre o informalismo, também, do fato de os processos

administrativos não demandarem atuação por meio de advogado, o que,

consequentemente, amplia a transigência em relação a falhas formais.

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V. Lei nº 9.784/99

A Lei nº 9.784/99, consoante seu art. 1º, regula o processo

administrativo no âmbito da Administração Federal Direta e Indireta.

No entanto, seu campo de incidência não se limita ao Poder

Executivo Federal, eis que, como sabido, o exercício da função

administrativa não é exclusivamente desenvolvida por este poder. Ao

desempenhá-la, estão os Poderes submetidos à Lei 9.784/99, consoante

dispõe o § 1º de seu art. 1º. É de observar que a aplicação ocorre apenas

subsidiariamente (art. 69) caso o procedimento administrativo seja regido

por legislação específica, como o caso do procedimento licitatório,

disciplinado pela Lei nº 8.666/93. Sobre esta subsidiariedade, voltarei a

comentar adiante.

Embora a Lei não lhes faça menção, é evidente que sua aplicação

estende-se ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas da União quando

tais órgãos desempenham funções administrativas. Quando desempenham

suas funções típicas, constitucionais, são regidos por legislação própria. O

TCU, por exemplo, é regido por normas da Carta Magna e pela Lei nº

8.443/92.

Em seu art. 2º, a Lei do Processo Administrativo explicita vários

princípios aos quais está submetida a Administração Pública. São eles a

legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,

moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse

público e eficiência.

Cumpre ressaltar que estes princípios defluem, de uma forma

explícita ou implícita, da Constituição Federal. São inerentes à atuação da

Administração em um Estado Democrático de Direito. O que a lei fez foi

repetir princípios já explícitos no art. 37 da Constituição Federal e

explicitar outros implícitos.

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21

No parágrafo único do artigo 2º a Lei determina que os processos

administrativos observem determinados critérios. Dentre eles, há alguns

que acabam por sintetizar princípios da Administração Pública. No inciso

V, por exemplo, fixa-se a necessidade de divulgação dos atos

administrativos, salvo as hipóteses de sigilo previstas na Constituição.

Tem-se, aqui, o Princípio da Publicidade. Já o inciso VI consagra o

Princípio da Proporcionalidade ao impor “adequação entre meios e fins,

vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida

superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse

público.” Inserido neste parágrafo único, há também o Princípio da

Oficialidade (inciso XII). O inciso XIII estabelece que a norma

administrativa deve ser interpretada de modo a garantir o alcance do fim

público a que se dirige, vedada a aplicação retroativa da nova interpretação.

Esta vedação é reflexo do ideal de Justiça Distributiva. Nesse mesmo

sentido, há a Súmula TCU nº 105, de seguinte teor: “A modificação

posterior da Jurisprudência não alcança aquelas situações constituídas à

luz de critério interpretativo anterior.”.

Mais adiante, em seu art. 11, a Lei 9.784/99 estabelece que a

competência é irrenunciável e que deve ser exercida pelos órgãos

administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de

delegação e avocação legalmente admitidos. No artigo seguinte, assevera

que um órgão administrativo e seu titular poderão, caso não exista

impedimento legal, delegar parte de sua competência a outros órgãos ou

titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados,

quando for conveniente, em virtude de circunstâncias de ordem técnica,

social, econômica, jurídica e territorial.

Destes dois artigos, surge certa incoerência. O primeiro (art. 11)

dispõe que o instituto da delegação só é possível nos casos legalmente

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previstos. Já o segundo (art. 12) faz crer que a delegação é viável sempre

que não haja óbice legal, o que é diverso de estar previsto legalmente.

Esta incoerência talvez possa ser dirimida pelo art. 13, o qual dispõe

que não podem ser objeto de delegação a edição de ato de caráter

normativo, a decisão de recursos administrativos e as matérias de

competência exclusiva do órgão ou autoridade. Haveria de se entender,

então, que esses são os casos de impedimento legal a que alude o art. 12 e

que, fora deles, todos os outros casos de delegação seriam legalmente

admitidos, nos termos do art. 11. Prevaleceria, destarte, uma interpretação

ampliativa das possibilidades de delegação.

Entretanto, interpretação em sentido contrário — e que impõe caráter

restritivo às possibilidades de delegação — também é plausível. É

perfeitamente razoável entender que a delegação só é permitida se não

versar sobre os casos do art. 13 e se estiver, de modo expresso, legalmente

prevista. Isto porque o art. 11, pela sua redação, coloca como regra o

exercício da competência pelos órgãos devidos e como exceção

(caracterizada pelo vocábulo “salvo”) a delegação. Quer dizer, faz entender

que a intenção da lei é realmente restringir o instituto da delegação. A

prática administrativa, vale lembrar, vem prestigiando o primeiro

entendimento.

Já para o caso da avocação, também contemplada no citado art. 11,

deve prevalecer a interpretação de que sua possibilidade realmente se limita

aos casos legalmente admitidos. Isto porque o art. 15, seguindo o art. 11,

impõe à avocação caráter incomum ao estabelecer que ela será permitida

excepcionalmente e por motivos relevantes devidamente justificados.

O art. 27 da Lei, inserido no capítulo destinado ao disciplinamento

da “Comunicação dos Atos”, traz a lume um dos princípios regedores do

Processo Administrativo — o da Verdade Material. Diz o artigo que o

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23

desatendimento das intimações não importa o reconhecimento da verdade

dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado.

Vê-se claramente que no Processo Administrativo, permeado que é

pelo interesse público, não se admite a verdade formal, predominante no

Processo Civil, onde, de regra, prevalecem interesses particulares. Portanto,

a revelia, que no Processo Civil acerca de direitos disponíveis torna o fato

incontroverso, a teor do art. 319 do CPC, no processo administrativo não

acarreta tal efeito.

O art. 29 da Lei nº 9.784/99, o qual é o primeiro destinado a

regulamentar a etapa de instrução do procedimento administrativo, retrata

de modo evidente o Princípio da Oficialidade. Diz o dispositivo que as

atividades de instrução destinadas à averiguação e comprovação dos dados

necessários à tomada de decisão são realizadas de ofício ou mediante

impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo de os

interessados proporem atuações probatórias.

Existem na norma artigos que demonstram, de forma cabal, o

movimento contracircular que mencionei. O artigo 31, ao regulamentar a

figura da “consulta pública”, traz o cidadão para dentro do processo

decisório da Administração. O artigo estabelece que a Administração

poderá abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros

desde que a matéria tratada no processo envolva interesse coletivo e que tal

procedimento não enseje prejuízo para o interessado. Por meio da consulta

pública, poderão os interessados, nos termos do § 1º do art. 31, examinar os

autos e apresentar alegações escritas.

Já o art. 32 disciplina figura semelhante à consulta pública, a

audiência pública. Assevera a norma que a Administração poderá, antes da

tomada de decisão, realizar audiência pública para debates sobre a matéria

do processo.

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A diferença mais notável entre a audiência pública e a consulta

pública reside no fato de a primeira fulcrar-se na oralidade. A norma fala

em “debates” acerca da matéria de interesse público. Já a consulta, por sua

vez, nos termos do § 1º do art. 31, apoia-se na apresentação de alegações

escritas, ou seja, na elaboração de peças formais. Obviamente, no decorrer

de uma audiência pública é possível que se reduzam declarações a termo e

que se entreguem peças escritas. No entanto, este não é o seu andamento

normal.

Por fim, o artigo 33 dispõe que os órgãos e as entidades

administrativas, sempre que presente matéria relevante, podem fazer uso de

outros meios de participação dos interessados, tanto diretamente quanto por

intermédio de organizações e associações. Quer dizer, faz com que as

hipóteses da audiência pública e da consulta pública sejam

exemplificativas.

O art. 45 estabelece a possibilidade de a Administração, nos casos de

risco eminente, adotar, sem a prévia manifestação do interessado, medidas

acautelatórias. O fundamento desta faculdade é o mesmo do que permeia o

poder geral de cautela conferido ao juiz pelo art. 798 do CPC: a

salvaguarda do interesse público. Afinal, no caso do processo judicial, a

medida cautelar determinada com supedâneo no poder geral de cautela

visa, antes de proteger o direito material da parte, à proteção da eficácia do

processo.

Finalizando a etapa de instrução, o art. 47 estabelece que o órgão por

ela responsável que não seja competente para emitir a decisão final deverá

elaborar relatório indicando o pedido inicial, o conteúdo das fases do

procedimento e a proposta de decisão, com a devida motivação. Após, será

o processo encaminhado para a autoridade competente para decidir o feito.

O art. 48 consigna que a Administração tem o dever de emitir

decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações,

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25

em matéria de sua competência. O artigo tem caráter meramente

explicitante. É evidente que a Administração tem o dever de decidir os

processos administrativos, mormente em virtude do Direito de Petição

consagrado na alínea “a” do inciso XXXIV do art. 5º da Constituição

Federal. Dizer que a Administração não tem o dever de posicionar-se sobre

as questões que lhe são postas seria o mesmo que, por uma via transversa,

tornar o Direito de Petição inócuo.

Já o art. 49 estabelece o prazo para que a Administração emita

decisão, o qual será de no máximo trinta dias, contados da conclusão da

instrução, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.

O art. 50 da Lei nº 9.784/99 trata da motivação dos atos

administrativos.

O primeiro comentário a ser feito acerca deste dispositivo é o de que

ele não representa um retrocesso em relação à procedimentalização do

direito administrativo. Com efeito, os atos — aos quais o caput faz alusão

— não devem ser tomados de forma estanque, isolada. De fato, o artigo

refere-se a atos administrativos inseridos no processo administrativo

engendrado na Lei nº 9.784/99. Prova disso é que os incisos que

complementam o caput tratam de atos que pressupõe um processo. O art.

50 determina, por exemplo, que os atos administrativos deverão ser

motivados quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; decidam processos

administrativos de concurso ou seleção pública; dispensem ou declarem a

inexigibilidade de processo licitatório; decidam recursos administrativos,

decorram de reexame de ofício; deixem de aplicar jurisprudência firmada

sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios

oficiais; e importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de

ato administrativo.

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26

Ainda falando sobre atos administrativos, o art. 53 consagra o

Princípio da Autotutela da Administração, unanimemente reconhecido pela

doutrina. Este princípio, corolário direto do dever de a Administração ater-

se à legalidade, ou seja, ao Princípio da Legalidade, também já havia sido

explicitado por meio da Súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal.

Com o art. 53, praticamente foi reproduzido o conteúdo da súmula.

Inovação mesmo ocorreu com o art. 54, que fixou em 5 anos o prazo para a

Administração anular os atos administrativos de efeitos favoráveis aos

administrados, contados da data em que foram praticados, salvo

comprovada má-fé.

Cumpre observar que o prazo de 5 anos é de decadência, não

obstante alguns autores como José dos Santos Carvalho Filho7 defendam

que seja de prescrição. A lei, no caput do art. 54, fala que o direito “decai”.

Mais adiante, no § 1º deste mesmo artigo, afirma que no caso de efeitos

patrimoniais contínuos o prazo de “decadência” contar-se-á da percepção

do primeiro pagamento. A menção expressa à decadência — considerando

que o projeto de lei foi elaborado por uma comissão de juristas do mais alto

gabarito, como, entre outros, Maria Zanella de Pietro e Adílson de Abreu

Dallari — é sem dúvida forte indicativo de que o prazo é realmente

decadencial.

É de notar, ainda, que a teor do art. 28 da Lei nº 9.784/99, o

interessado deve ser intimado antes que a Administração proceda à

anulação ou revogação de ato jurídico que afete sua órbita jurídica.

Obviamente, se da anulação ou da revogação puderem decorrer gravame ao

particular, a ele deve ser dada a oportunidade de manifestação acerca da

matéria. É o que deflui não só do art. 28 mas também do inciso LV do art.

5º da Constituição Federal.

7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2001, p. 256.

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27

O art. 55 trata da convalidação, instituto também já amplamente

debatido na doutrina. Diz o artigo que “em decisão na qual se evidencie

não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os

atos que apresentem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela

própria Administração.”

A norma estabelece como requisitos cumulativos da convalidação a

ausência de lesão a interesse público, de prejuízo a terceiros e, outrossim, a

presença de defeitos sanáveis. Presentes estas condições a Administração

poderá convalidar os atos. Ausentes, deverá invalidar o ato. A norma

merece alguns comentos.

O primeiro é o de que ao estabelecer que existem atos eivados de

defeitos sanáveis, e passíveis de serem convalidados, a norma firmou o

entendimento da existência de atos anuláveis. É importante a menção a isto

porque há autores, como o saudoso Hely Lopes Meirelles, que negam a

existência de atos administrativos anuláveis. Perfilham a tese de que

anulabilidade é instituto oriundo do direito privado, advindo da

possibilidade, inerente a esta seara do direito, da existência de vícios que

não afrontam o interesse público, mas tão-somente o interesse das partes. Já

no âmbito do direito público, afirmam estes autores, o regime-jurídico é

composto por normas de ordem pública, donde decorre que os vícios

encontrados em seus atos sempre violam interesses públicos, não havendo,

então, de se falar em atos anuláveis, mas sim em atos nulos.

A possibilidade ou não de se convalidar determinado ato ilegal

somente poderá ser examinada, a contento, caso a caso. Ante a infinidade

de situações nas quais se relacionam Administração e particulares, a

tentativa de categorizar, de prever, quais atos poderão ser convalidados, e

quais não poderão, muitas vezes possui pouco préstimo em termos práticos.

É evidente que há situações onde existe algum interesse público violado e,

também, algum prejuízo a terceiros e, mesmo assim, a mantença dos efeitos

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jurídicos do ato é essencial para que prejuízos maiores não surjam. Na

verdade, o que deve o aplicador do direito fazer é ponderar os malefícios

oriundos da invalidação e os decorrentes da convalidação. Sempre que

estes últimos, de forma clara, inequívoca, forem menores que os advindos

da invalidação, deverão ser mantidos os efeitos do ato administrativo. É a

única solução possível, sob pena de violentar-se um dos princípios sobre o

qual repousa todo o regime-jurídico administrativo: o da indisponibilidade

do interesse público.

Portanto, a categorização feita pela norma — em que pese o préstimo

que detém por seu caráter indicativo —, há de ser interpretada com cautela,

eis que não se pode admitir que o direito sirva para tutelar situações onde o

interesse público, incontrastavelmente, é violado. Há de se proceder sempre

uma “soma”, uma comparação entre os bens jurídicos em jogo. Feita a

análise e estando devidamente provado que o caminho menos traumático é

a convalidação, o “poderão” a que a norma alude transmuta-se em

“deverão”, sob pena, como já dito, de se negar valia ao Princípio da

Indisponibilidade do Interesse Público.

O capítulo XV da Lei nº 9.784/99 trata “do Recurso Administrativo e

da Revisão”.

Nos termos do art. 56, cabe recurso contra as decisões

administrativas por razões de legalidade e de mérito, ou seja, é possível que

sejam atacadas tanto decisões vinculadas quanto discricionárias. No caso

do provimento de recurso interposto com supedâneo em violação da lei, o

provimento terá, necessariamente, que concluir pela anulação da decisão

atacada. Já na hipótese em que a peça recursal oponha-se contra a

conveniência e oportunidade adotadas na decisão atacada, o provimento

terá como resultado a revogação da decisão administrativa.

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29

O recurso administrativo deve ser dirigido à autoridade que proferiu

a decisão. Caso a autoridade não a reconsidere no prazo de cinco dias,

encaminhará a peça recursal à autoridade superior.

Questão interessante é saber se o não-conhecimento do recurso pela

autoridade que proferiu o ato enseja a sua remessa para a autoridade

superior. José do Santos Carvalho Filho8, ao comentar o artigo, entende que

não deve ocorrer a remessa, a qual somente teria lugar no caso do

conhecimento seguido do não-provimento.

A verdade é que a Lei não é clara a respeito, o que torna a

interpretação deste autor possível. Entretanto, creio que a melhor

interpretação é a de que o recurso deve ser submetido à autoridade superior

nos casos de não-conhecimento. O § 1º do art. 56 afirma que “o recurso

será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a

reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade

superior.” É de notar que a não-reconsideração, que é o pressuposto do

encaminhamento, pode decorrer do não-conhecimento e do conhecimento

seguido do não-provimento. Ante este fato, e considerando que o processo

administrativo é totalmente permeado pelo Princípio da Verdade Real

que melhor pode ser obtida com uma dupla análise , reputo que o

recurso deva ser apreciado pela autoridade superior mesmo que não seja

conhecido.

De acordo com o art. 57 da Lei do Processo Administrativo, o

recurso administrativo tramitará, no máximo, por três instâncias

administrativas. Com isso, considerando a sistemática do § 1º do art. 56, é

possível a interposição de somente dois recursos para determinada decisão

administrativa.

8 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2001, p. 265.

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30

Quanto à legitimidade para interpor recursos, a lei, por meio do 58,

regulou-a de forma ampla. Neste sentido, têm legitimidade para recorrer os

titulares de direitos e interesses que forem parte no processo, os que

tiverem direitos e interesses indiretamente afetados pela decisão, as

organizações e associações representativas e os cidadãos ou associações,

quanto a direitos e interesses difusos. A intenção da lei, ao permitir

legitimação ampla, foi ganhar celeridade, evitando que novas demandas,

sobre a mesma matéria, fossem iniciadas.

O prazo para a interposição do recurso é de dez dias, contados a

partir da ciência ou da divulgação oficial da decisão recorrida (art. 59). A

autoridade competente, por sua vez, deve decidir o recurso no prazo de

trinta dias, prorrogáveis por igual período, a partir do recebimento dos

autos.

Cumpre ressaltar que o esgotamento do prazo não impede a

autoridade de apreciar a peça recursal. O dever de zelo pelo Princípio da

Legalidade autoriza o órgão competente a, mesmo ultrapassado o prazo

legal, manifestar-se acerca do provimento do recurso. Frise-se, no entanto,

que o prazo não deixa, por isso, de ter serventia, eis que a inércia da

Administração caracteriza violação de dever funcional, passível de punição,

e possibilita a impetração de ação judicial em virtude da lesão a direito

líquido e certo.

No art. 60 a Lei estabelece a possibilidade de que o recorrente, ao

interpor o recurso, junte os documentos que entenda convenientes. Tal

norma mostra claramente a influência do Princípio da Verdade Real no

Processo Administrativo. No Processo Civil, diferentemente, não é

permitido inovar em grau de recurso. A regra é a submissão ao Princípio da

Eventualidade, segundo o qual as partes devem manifestar-se, inclusive

fornecendo as provas de seu interesse, na primeira oportunidade processual

possível, sob pena de preclusão. A esfera administrativa, cujo o processo

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escora-se na verdade real e no formalismo moderado, apresenta lógica

diversa. O interesse público não comporta a satisfação com a verdade

meramente formal, o que acaba por mitigar a rigidez do processo.

Já o art. 61, objetivando não travar a atuação da Administração,

consigna que os recursos não têm efeito suspensivo. Entretanto, desde que

exista justo receio de difícil ou incerta reparação decorrente da execução da

decisão administrativa, tanto a autoridade recorrida quanto a superior

podem, a pedido ou de ofício, conferir efeito suspensivo ao recurso.

O art. 62 traz ao processo os interessados no julgamento do recurso

interposto. Dispõe o artigo que após a interposição do recurso o órgão

competente para dele conhecer deve intimar os interessados para que, no

prazo de cinco dias, apresentem suas alegações.

Ainda disciplinando os recursos, a Lei estabelece em seu artigo 63

que não serão conhecidos os recursos impetrados fora do prazo, perante

órgão incompetente, por quem não tenha legitimidade e após exaurida a

etapa administrativa.

O § 2º do art. 63 dispõe que o não-conhecimento do recurso não é

fato impeditivo de que a Administração reveja de ofício os atos ilegais,

desde que não ocorrida preclusão administrativa.

O comando é de capital importância. Retrata o poder de autotutela da

Administração, ou seja, o seu poder de, por iniciativa própria, rever seus

atos. Conforme já mencionei, este poder, gerado do Princípio da

Legalidade, já se encontrava, antes desta Lei, pacificado na doutrina e na

jurisprudência. Coube à Lei formalizá-lo, dando-lhe os contornos que lhe

são peculiares.

Malgrado a norma fale de atos ilegais, entendo que é possível

também rever os atos legais que se revelem inoportunos, inconvenientes.

Não há como pensar diferente. O recurso pode atacar não só ilegalidades,

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mas, também, atos legais que tragam prejuízo para os interessados, nos

termos do art. 56.

Ponto interessante é o limite ao poder de autotutela imposto pela

preclusão administrativa, a que a norma faz alusão. Preclusão, ensina a

mais autorizada doutrina, é a perda de uma faculdade processual é

gerada, portanto, após a instauração do processo. No caso dos recursos,

pode ocorrer em virtude do tempo; tem-se, então, a preclusão temporal.

Ocorre também em função da prática de ato incompatível com a vontade de

recorrer (preclusão lógica) e em virtude da apresentação do recurso cabível,

caso da preclusão consumativa.

Preclusão administrativa, também chamada pela doutrina de

preclusão dos efeitos internos do ato, liga-se, inexoravelmente, aos por

vezes criticados institutos da “coisa julgada administrativa” e do “trânsito

em julgado administrativo”.

Ocorre preclusão administrativa quando não é mais possível ao

interessado interpor recursos perante a Administração. Ou seja, caso a

esfera administrativa comporte a apresentação de dois recursos, ocorre a

preclusão administrativa quando não mais seja possível interpor o último

deles. Tal fato pode ocorrer em razão em virtude de este recurso já ter sido

apresentado (preclusão administrativa consumativa) ou de ter-se perdido o

prazo para a sua interposição (precusão administrativa temporal). Nestas

hipóteses, o § 2º do art. 63 obsta a atuação de ofício da Administração.

Ainda exemplificando, se dois recursos são cabíveis no âmbito

administrativo, o não-conhecimento do primeiro não impede — desde que

ainda seja possível interpor o segundo — que a Administração reveja o ato

ilegal, eis que não ocorreu preclusão administrativa.

Interessante ressaltar, dentro do exemplo dos dois recursos cabíveis,

que o fato de o segundo recurso não ser conhecido não enseja,

necessariamente, preclusão administrativa. Pode ocorrer de o segundo

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recurso, interposto dentro do prazo legal, ter sua admissibilidade

prejudicada em razão de ter sido dirigido à autoridade competente. Neste

caso, à luz do § 1º do art. 63, o prazo é devolvido ao recorrente. Não é

hipótese de preclusão administrativa, podendo a Administração, ainda, agir

por iniciativa própria. Outra hipótese de não-conhecimento do segundo

recurso que não gera preclusão administrativa é a do recurso interposto por

quem não seja legitimado. É evidente que se ainda há prazo para o

verdadeiro interessado interpor o último recurso, pode a Administração

rever o seu ato.

Linha interpretativa que pode ser traçada, de forma plausível, é a que

combina o § 2º do art. 63 com o caput do art. 54, o qual estabelece o prazo

decadencial de cinco anos.

A preclusão administrativa mencionada no § 2º do art. 63

estabeleceria o limite de atuação da Administração no curso de

determinada relação processual, ou seja, no âmbito de um processo já

existente. Uma vez ocorrida a preclusão, a Administração ainda poderia

exercer seu poder de Autotutela. Porém, agiria escorada no caput do art.

54, o que, de seu turno, somente seria possível, ante o limite da preclusão

administrativa do art. 63, caso se instaurasse novo procedimento

administrativo.

Mal comparando, a possibilidade de anulação com fulcro no art. 54

da Lei nº 9.784/99 pode ser assimilada, a partir do paradigma jurisdicional,

a uma ação rescisória. Esta comparação justificaria, inclusive, o prazo

decadencial de cinco anos criado pelo art. 54.

O art. 64 estabelece o poder de o órgão competente alterar a decisão

recorrida. O parágrafo único deste artigo, a seu turno, consigna a

possibilidade de “reformatio in pejus” desde que o recorrente seja

cientificado, antes da decisão, para que formule suas alegações. Mais uma

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vez, a Lei consagra a submissão da Administração aos Princípios da

Verdade Real e da Legalidade.

Interessante é notar a sistemática prevista pelo parágrafo único para

que se possa reformar a decisão para pior. O recorrente deve ser

cientificado antes da decisão para que apresente alegações. Portanto,

depreende-se que a autoridade é obrigada a antecipar a decisão gravosa ao

recorrente para que formule as devidas alegações. Deverá indicar

claramente que tomará, a princípio, decisão gravosa, a qual poderá ou não

ser confirmada a depender das novas alegações apresentadas.

O art. 65 traz a possibilidade de revisão das decisões que resultem

em sanções. Pelo dispositivo, tais decisões podem ser revistas a qualquer

tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou

circunstâncias relevantes suscetíveis de alterar a sanção aplicada.

É de ressaltar que para estes processos — ou seja, os que versem

sobre punição — existe vedação de “reformatio in pejus”. Dispõe o

parágrafo único do art. 65 que da revisão não poderá resultar agravamento

da sanção. Sendo assim, este parágrafo excepciona a regra geral fixada no

parágrafo único do artigo precedente, art. 64.

O art. 69, inserido no Capítulo intitulado “Das disposições finais”

traz comando de suma relevância e que tem sido fonte constante de

confusão por parte dos aplicadores do direito. Dispõe tal artigo que os

processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria,

aplicando-lhe subsidiariamente os preceitos da Lei nº 9.784/99.

A questão que se coloca, ante este preceito, é saber o que se deve

entender por aplicação subsidiária. Quais são seus limites, onde é cabível,

em que casos será permitida.

Como ponto de partida, é preciso ter como pressuposto que o

objetivo da Lei não foi regular os procedimentos para os quais já existia

legislação específica, caso, por exemplo, do procedimento fiscalizatório do

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Tribunal de Contas da União, regido pela Lei nº 8.443/92. Sua intenção foi,

entre outras coisas, disciplinar as situações onde havia inexistência de

normas regulamentadoras, e que, por isso, faziam com que o administrador

agisse movido pelo casuísmo e pela improvisação, em um total

descompasso com a racionalidade e com o respeito que deve ter para com o

administrado.

A subsidiariedade a que se reporta a norma, há de ter sua exegese

permeada por esta perspectiva. A função de subsidiar é a de ajudar,

auxiliar, contribuir para o bom andamento. Desta forma, a aplicação da Lei

nº 9.784/99 deve ser precedida, necessariamente, por um juízo de

conveniência e oportunidade pelos aplicadores da legislação específica.

Não basta o silêncio da legislação que rege os procedimentos

administrativos específicos, no caso do TCU o silêncio da Lei nº 8.443/92,

para que, de plano, se apliquem os artigos da Lei nº 9.784/99. Os

operadores do direito, muitas vezes, erram ao entender que todas as vezes

em que existe esse silêncio e que, de outro lado, existe norma a preenchê-lo

na Lei nº 9.784/99, é caso de aplicação subsidiária. A subsidiariedade não é

e nem pode ser matemática assim. O silêncio, malgrado seja elemento

necessário, longe está de ser suficiente.

Há de se analisar, primeiramente, se a interpretação sistemática da

norma específica é ou não capaz de solucionar o vazio normativo. Se for

capaz, afastada estará a aplicação subsidiária, eis que norma geral, feita

para disciplinar inúmeras realidades, não pode pretender abarcar casos

concretos inseridos em uma determinada realidade para qual já existe um

complexo normativo regulatório. Esta premissa, antes de ser jurídica, é

sobretudo lógica.

Não sendo possível, por meio da interpretação sistemática, preencher

a lacuna legal, deve o aplicador do direito, antes de se render à aplicação

subsidiária, analisar se a aplicação da Lei nº 9.784/99 se adapta às

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peculiaridades do procedimento específico. É aqui, a meu juízo, que se abre

espaço para um juízo de conveniência e oportunidade do administrador que

opera a legislação específica, o que é natural, eis que é ele quem domina as

filigranas desta realidade jurídica. Feito isto e chegando-se à conclusão de

que o comando da Lei nº 9.784/99 coaduna-se com os princípios, normas e

finalidades do procedimento específico, estará configurado o dever de

aplicação subsidiária.

Em síntese, a aplicação não deriva única e exclusivamente do

silêncio da legislação específica. Fosse assim, poder-se-ia chegar a

resultados paradoxais, inusitados, totalmente estranhos à finalidade do

processo específico. Por ser uma norma geral, é evidente que a Lei nº

9.784/99 nem sempre se amoldará aos vários procedimentos

administrativos existentes, muitos deles extremamente diferentes um dos

outros, eis que tratam de realidades díspares.

VI. Aplicação da Lei nº 9.784/99 aos Tribunais de Contas

O Tribunal de Contas da União, por meio da Decisão nº 1020/2000-

Plenário, posicionou-se acerca da aplicabilidade do art. 54 da Lei nº

9.784/99. Esta decisão julgou processo (TC 013.829/2000-0) de solicitação

da Procuradora-chefe da Procuradoria da União no Estado do Espírito

Santo com vistas a que o TCU se pronunciasse sobre a incidência do art. 54

da Lei nº 9.784/99 aos exames de aposentadoria realizados no desempenho

da competência descrita no art. 71, inciso III, in fine, da Constituição

Federal.

Nesta assentada, seguindo o Voto do eminente Ministro Marcos

Vilaça, entendeu o TCU que o desempenho de suas atribuições inserem-se,

de modo amplo, como atividade legislativa. Neste sentido, afirmou o

eminente Ministro-Relator que “Portanto, assim como não seria de se

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admitir que tivesse aplicação sobre o controle jurisdicional do Poder

Judiciário, a Lei do Processo Administrativo, estabelecendo as regras da

processualística peculiar da Administração, não pode se estender ao

controle externo parlamentar efetuado com o auxílio do Tribunal de

Contas, sob pena de subverter a lógica da distribuição e separação dos

poderes”

Ainda, asseriu o Relator que “No entanto, ressalte-se, a apreciação

pelo Tribunal de Contas corresponde, verdadeiramente, ao exercício da

função de controle externo, da índole do Legislativo, e não ao desempenho,

ainda que de modo complementar, de função administrativa...”.

Seguindo esta linha de raciocínio, o TCU prolatou o seguinte aresto:

“8.2 - responder à interessada que a Lei nº 9.784/99, que regula o

processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, não

tem aplicação obrigatória sobre os processos da competência deste

Tribunal de Contas, definida pelo artigo 71 da Constituição Federal, de

maneira que, em conseqüência, não cabe argüir acerca da inobservância

do artigo 54 da mencionada lei em apreciações de atos de concessão de

aposentadorias, reformas e pensões (artigo 71, inciso III, da C.F.);”

No âmbito do Tribunal de Contas do Distrito Federal, a

aplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99 também já mereceu análise. Por

meio da Decisão nº 1.675/2003, o TCDF decidiu “considerar inaplicável o

artigo 54 da Lei Federal nº 9.784/99, recepcionada no Distrito Federal

pela de nº 2.834/01, para obstar o exercício do controle externo a cargo do

Tribunal de Contas do Distrito Federal...”.

No âmbito do Poder Judiciário, há arestos do Tribunal de Justiça do

Distrito Federal no sentido da aplicação do art. 54 aos processos julgados

pelo TCDF.

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É de notar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, no Mandado de

Segurança nº 23.550-1, manifestou-se pela aplicação subsidiária da Lei nº

9.784/99 ao TCU nos seguintes termos:

“...de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de

Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo

federal (L. 9.784/99)...”.

Recentemente, decisão do TCU foi atacada por meio de Mandado de

Segurança (nº 24.495-0). Alegou a impetrante que a decisão do TCU havia

desrespeitado o prazo decadencial estabelecido no art. 54 da Lei nº

9.784/99.

A Relatora do Mandado de Segurança, Ministra Ellen Gracie,

indeferiu a concessão da medida liminar. Afirmou a Ministra: “Em prévio

exame, entendo que as informações apontam no sentido da correção do ato

atacado e da não ocorrência do prazo decadencial.”.

É importante frisar que, malgrado o TCU tenha posicionado-se pela

não aplicação do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos processos submetidos ao

seu julgamento, o Princípio da Segurança Jurídica — que é de onde deflui

este artigo — é explicitamente contemplado na Lei nº 8.443/92 em seu

artigo 35, o qual prevê o Recurso de Revisão.

Tal artigo dispõe que é possível a interposição, ao Plenário, de

Recurso de Revisão contra decisão definitiva. Esta interposição, da qual

não decorre efeito suspensivo, é cabível uma só vez, pelo responsável, seus

sucessores, ou pelo Ministério Público junto ao TCU, dentro do prazo de

cinco anos, nas seguintes hipóteses:

erro de cálculo nas contas;

falsidade ou insuficiência de documentos em que se tenha

fundamentado a decisão recorrida;

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superveniência de documentos novos com eficácia sobre a prova

produzida.

O Recurso de Revisão, cabível nos processos de prestação de contas

ou tomada de contas, mesmo especial, possui natureza similar à da ação

rescisória, consoante o art. 288 do Regimento Interno do TCU.

O Recurso de Revisão, vale notar, acaba por inserir, nos processos

afetos à jurisdição do TCU, o Princípio da Segurança Jurídica em um

contexto procedimental. Diferentemente ocorreria caso houvesse a

aplicação do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos processos desta Corte, o que, na

verdade, far-se-ia à luz de uma perspectiva estanque, destoante, por certo,

da moderna tendência de procedimentalização do Direito Administrativo.

A existência do Recurso de Revisão é capaz de solucionar, de modo

razoável, a questão da aplicação do art. 54 da 9.784/99 aos processos em

que há julgamento de contas.

No entanto, o Recurso de Revisão não é aplicável aos processo em

que o TCU aprecia, para fins de registro, os atos de admissão de pessoal e

de concessão de aposentadorias, reformas e pensões. Estes processos são,

justamente, os que apresentam maior questionamento quanto à aplicação do

art. 54 da Lei nº 9.784/99.

Tal questionamento, vale dizer, não ocorre por acaso. O

procedimento pelo qual o TCU julga contas diferencia-se, sobremaneira, do

procedimento administrativo típico. É, de fato, um procedimento especial,

onde o interessado é chamado a interagir no âmbito do TCU, seja por meio

de citação, seja por meio de audiência. Já o procedimento pelo qual o TCU

aprecia atos de admissão e de concessão apresenta menor grau de

peculiaridade em relação ao processo de julgamento das contas, eis que se

aproxima, de certo modo, do processo administrativo comum. Se é possível

afirmar, com bom grau de certeza, que o art. 54 da Lei nº 9.784 não se

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aplica ao julgamento dos processos de contas — mormente pela existência

do Recurso de Revisão — , o mesmo não pode se fazer em relação à

aplicação deste dispositivo aos processos de admissão e concessão. A

aplicação a estes processos, sem dúvida, merece as mais profundas

reflexões, tanto por parte dos órgãos de Controle Externo quanto parte do

Poder Judiciário. É, por certo, matéria tormentosa.

VII. Conclusão

O Direito Administrativo, nascido da necessidade de se regular o

Estado no desempenho de suas funções administrativas, passa,

inegavelmente, por um processo de transformação, decorrente, em boa

parte, do advento do Estado Social e de sua transformação a partir do

reaquecimento das idéias liberais.

A profusão de direitos subjetivos surgidos com o Estado Social fez

com o Poder Público devesse intervir em uma diversidade de subsistemas

sociais com o intuito de garantir tais direitos ou de criar condições

propícias para que outros agentes possam fazê-lo.

A regulação necessária ao atingimento deste mister não pode ser

realizada apenas com supedâneo na pulverização das normas de direito

substantivo. Isto é inviável. Não há como pretender penetrar — de forma

responsável e consciente — em todas as searas acorbertadas pelo manto

regulatório do Poder Público sem que se utilize o procedimento

administrativo, que é o meio mais eficiente de se trazer o particular para

dentro do processo decisório.

A necessidade de procedimentalização brota, também, da

imperiosidade de se mitigar as frustrações dos titulares de direitos

subjetivos, as quais nunca foram tão grandes, em virtude da multiplicação

das expectativas criadas pelo Estado Social.

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Como conseqüência desta procedimentalização, surge a necessidade

de que os agentes públicos estejam aptos a interagir com os subsistemas

sociais que agora — sob a perspectiva de um movimento contracircular —

participam mais ativamente da gestão administrativa. Isto implica, para a

Administração — mormente na definição de conceitos imprecisos

colocados em normas substantivas —, uma utilização maior de seu Poder

Discricionário, o que, inevitavelmente, significa agir com ponderação,

sempre com o intuito de encontrar a melhor solução situada nos limites da

lei.