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A ‘Procedimentalização’ do Direito Administrativo
BENJAMIN ZYMLER
Ministro do Tribunal de Contas da União
Sumário
I - Introdução
II – Razões que levaram à procedimentalização do
Direito Administrativo
II.1 – Surgimento do Estado Social
II.2 – A procedimentalização como elemento mitigador
de frustrações
II.3 – A procedimentalização como movimento
“‘contracircular”
III – Alguns exemplos de recente procedimentalização
do Direito Administrativo
III.1 Tribunal de Contas da União
III.2 Licitações e Contratos
III.3 Concessões e Permissões de Serviço Público
III.4 Constituição Federal
IV – Princípios do Procedimento Administrativo
V – Lei nº 9.784/99
VI – Aplicação da Lei nº 9.784/99 aos Tribunais de
Contas
VII - Conclusão
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Introdução
Gostaria, inicialmente, de agradecer à Procuradora-Geral Dra.
Márcia Farias e ao Centro de Estudos Jurídicos do Ministério Público de
Contas do Distrito Federal pelo convite para proferir esta palestra, de tema
tão instigante.
O presente trabalho pretende apresentar uma breve exposição sobre o
Procedimento Administrativo. Particularmente, nos interessa perscrutar as
razões que levaram à tendência atual de procedimentalização do Direito
Administrativo brasileiro. Se ela despontava no horizonte, aparecendo
sistematicamente em leis mais recentes, não há negar que a Lei nº 9.784/99,
que regula o processo administrativo na Administração Pública Federal,
constitui o ponto culminante em que o paradigma administrativo brasileiro
passa a ser, definitivamente, o procedimento, e não mais o ato
administrativo.
Nesse contexto, exsurge a atualidade e a importância do tema. Se,
por um lado, a matéria é fascinante, em face das inovações que emergem
no seio da atividade estatal, de outro, urge reconhecer as dificuldades de
sistematização teórica presentes nesta etapa de transição caracterizada pela
inadequação dos institutos jurídicos.
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II. Razões que levaram à procedimentalização do Direito
Administrativo
II.1. Surgimento do Estado Social
A tendência recente de procedimentalização do Direito
Administrativo é decorrência direta do modelo jurídico de Estado adotado
pela Constituição Federal de 1988, qual seja, o Estado Social.
O Estado Liberal, engendrado por força do liberalismo do século
XVIII, tinha como um de seus cânones a interferência mínima na
propriedade e liberdade dos indivíduos. Este Estado tinha por alicerce a
idéia de que era necessário estimular a atividade econômica sem imiscuir-
se nos negócios privados. A função do Estado era permitir o
desenvolvimento econômico mediante, fundamentalmente, a garantia da
ordem, paz e segurança sociais.
Com as crises econômicas do século passado, mormente as advindas
de períodos de pós-guerra, o modelo do Estado Liberal, cuja premissa era a
intervenção mínima, viu-se incapaz de atender às novas demandas sociais.
Surgia, então, o Estado Social, detentor de novas perspectivas de atuação
— seja como indutor e regulador da atividade econômica, seja como
protetor de minorias excluídas.
Como bem lembrado, em feliz passagem, por Sundfeld1:
“Enquanto as clássicas declarações de direitos consagravam
basicamente a proteção do indivíduo contra o Estado, reservando àqueles
um espaço intangível de liberdade, as novas declarações passaram a se
1 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 1997, p. 54.
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ocupar também da proteção dos indivíduos em face do poder econômico e
em propiciar-lhes prestações estatais positivas.
O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para
ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do
nível cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer,
a extinção das injustiças na divisão do produto econômico).”
Vê-se, então, que o ponto marcante do Estado Social é a garantia de
direitos subjetivos dos particulares, oponíveis contra o Estado, que exigem
uma atuação comissiva da máquina estatal, tais como o direito à educação,
à saúde, à cultura etc.
A Constituição Federal de 1988 adotou o Estado Social como
modelo de Estado. Em seu preâmbulo, consigna que é função do Estado
assegurar o exercício “dos direitos sociais e individuais”. Os artigos 1º e
3º, inseridos no Título relativo aos Princípios Fundamentais, também
deixam claro a superação do modelo de Estado simplesmente garantidor
das liberdades individuais. O artigo 1º estabelece a cidadania e a dignidade
da pessoa humana como fundamentos da República. O artigo 3º, de seu
turno, afirma serem objetivos da República, entre outras coisas, a
construção de uma sociedade justa, solidária e livre da pobreza e da
marginalização.
De modo mais evidente ainda, o art. 6º dispõe que “São direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição.”.
Além destes, o art. 7º elenca outra série de direitos sociais dos
trabalhadores urbanos e rurais, sem prejuízo de outros difundidos na
própria Constituição Federal e na legislação que dela deflui.
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O surgimento do Estado Social, além de trazer os direito sociais,
trouxe, também, a figura do Estado empreendedor, responsável pela
alavancagem do setor econômico. Num primeiro momento este papel foi
desenvolvido, em boa parte, pelas empresas estatais, voltadas para atuar em
áreas que demandavam um aporte vultoso de recursos.
Mais adiante, em decorrência da revitalização do ideário liberal
diante das dificuldades fiscais do Estados Sociais, iniciam-se as
privatizações, com a conseqüente diminuição do tamanho do Estado. No
entanto, mantiveram-se os direitos subjetivos que caracterizam o Estado
Social, o qual, agora, passa a atuar na regulação dos subsistemas sociais —
subsistema econômico, por exemplo. Tal regulação, consistente também na
elaboração de normas substantivas acerca de subsistemas sociais que dantes
eram intocáveis pelo Estado Liberal, torna-se, então, a principal forma de
atuação do novo Estado Social na busca de seus fins.
Agindo direta ou indiretamente, o natural agigantamento do Estado-
Regulador traz, inequivocamente, uma profusão de normas substantivas, as
quais servirão para normatizar as diferentes realidades atingidas pela ação
estatal. Afinal, quem quer os fins há de propiciar os meios. Como bem
ensina Bandeira de Mello2, “Ao contrário do que sucedia ao tempo do
Estado Liberal, quando era escassa a intervenção pública no seio da
Sociedade, a realidade social e econômica passou a ser havida como um
objeto sobre o qual devia incidir a ação transformadora do Poder Público,
tendo em vista o atingimento de finalidades havidas como prezáveis.”
Ocorre que a profusão de normas materiais, como tudo, possui
limites. A capacidade regulatória do direito não pode ser tida como
absoluta.
2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 424.
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A aventura da regulação desses setores da sociedade — neles
lançando conceitos jurídicos precisos, determinados — pode significar
nada mais do que uma ingênua tentativa.
A precisão substantiva — fruto da pulverização da ação regulatória
estatal —, vale destacar, pode levar à inutilização da norma jurídica pelo
simples decurso do tempo. Um fato juridicizado hoje pode, perfeitamente,
inexistir no curto prazo em razão da evolução social. Daí, se a norma é
posta com a pretensão de precisar os contornos deste fato de forma
absoluta, sua falta de plasticidade poderá torná-la inócua.
Surge, então, um dilema para o novo Estado Social. Ao mesmo
tempo que necessita regulamentar os subsistemas sociais com vistas à
disponibilização dos direitos sociais que lhe dão identidade, depara-se com
uma sobrecarga de produção normativa, que não mais alcança os resultados
prognosticados pelo legislador ou pelos órgãos regulamentadores.
Deste cenário surge a procedimentalização do Direito, e
particularmente a do Direito Administrativo, como forma de harmonizar a
necessidade de interferência do Estado nos subsistemas sociais e a
improficuidade do direito substantivo.
Ao criar normas adjetivas, procedimentais, é possível ao Estado
legiferante abrir mão de regulação extensiva, valendo-se, portanto, dos
conceitos jurídicos chamados “fluidos”, “imprecisos”. Estes conceitos, nos
dizeres de Bandeira de Mello3, possuem “um núcleo significativo e certo e
um halo circundante, uma auréola marginal, vaga ou imprecisa. Daí
resulta que haverá sempre uma zona de certeza positiva, da qual ninguém
duvidará do cabimento da aplicação do conceito, uma zona circundante,
onde justamente proliferação incertezas que não podem ser eliminadas
3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 373.
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objetivamente, e, finalmente, uma zona de certeza negativa, onde será
indisputavelmente seguro que descabe a aplicação do conceito.”.
A utilização destes conceitos elimina a necessidade de um maior
detalhamento do direito material. A vaguidade do conceito, na verdade, traz
em si a possibilidade de que nele seja albergado um número de casos
concretos bem maior do que os que seriam abarcados por um conceito
preciso. O procedimento surge então como mecanismo que permitirá, em
cada caso concreto, a obtenção de um resultado jurídico cujos lindes serão
definidos no transcorrer do procedimento, e não mais de forma apriorística.
Para que o uso destes conceitos traga proveitos ao Estado Social na
busca de seus objetivos, é fundamental, portanto, que surjam novos
mecanismos. É indispensável que exista uma seqüência de atos, de
autonomia relativa, estatuídos visando à consecução de um ato final. No
campo do Direito Administrativo, surge, então, o Procedimento
Administrativo.
É por meio deste método que será possível trazer o administrado para
o processo decisório de definição do conceito impreciso utilizado.
A procedimentalização não mais exerce apenas sua função clássica
de resguardar o administrado contra a Administração. Passa a ser, na
verdade, o método de atuação típico do Estado Social.
Surge a procedimentalização como uma reação à impossibilidade de
se regular por meio do direito substantivo, detalhadamente, todos os
campos pelos quais a Administração deve, à luz da Constituição Federal,
trafegar. Com efeito, surge um balanceamento: aumenta-se o detalhamento
das normas adjetivas e diminui-se o das substantivas.
Como conseqüência desta interação Administrado X Administração,
por meio de normas adjetivas, tem-se, outrossim, o surgimento de conceitos
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mais coerentes com a realidade regulada. Neste sentido, vale novamente
trazer à lume passagem de Bandeira de Mello4:
“Com isso também se enseja maior descortino para as atuações da
Administração, pois esta agirá informada, também, pela perspectiva
exibida pelo interessado, o qual pode acender luzes prestantes para
avaliação mais completa do assunto.”
II.2. A procedimentalização como elemento mitigador de
frustrações
A procedimentalização do Direito Administrativo deve ser entendida,
também, sob outra perspectiva. Esta perspectiva, na verdade, relaciona-se
com a função clássica do processo e do direito — a de permitir a
pacificação social.
Um dos consectários do Estado Social é a tensão advinda da não
obtenção dos direitos subjetivos públicos que são ofertados à população.
Obviamente, se existem utilidades às quais os cidadãos têm, à luz do
sistema normativo vigente, direito, a não obtenção delas gera,
inevitavelmente, uma cadeia social de frustrações. Sob este ângulo, o
Estado dito liberal era menos suscetível à instabilidade, eis que quando se
promete menos, menores são as decepções relativas ao descumprimento
das promessas. Como já disse, o Estado Social é marcado por prestações
positivas, fato que permite a assertiva de que é marcado por expectativas.
Tais expectativas, infelizmente há de se dizer, frustam-se, em boa
parte. Tais frustrações, no entanto, são mitigadas pelo processo, que é
4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 2000, p. 427.
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método impessoal e asséptico. Como nos mostra Niklas Luhmann5 em seu
Sociologia do Direito II, a legitimação do direito, que, em suas palavras, é
“o convencimento fatual da validade do direito ou dos princípios e valores
nos quais as decisões vinculativas se baseiam”, nasce a partir de sua
processualística.
A resolução dos conflitos mediante uma seqüência lógica e
predeterminada de atos que permita a participação do interessado impede o
surgimento de contendas eminentemente pessoais. No processo debatem-se
teses jurídicas. Tem o processo a capacidade de fazer com que a disputa
não seja entre o indivíduo “A” e o indivíduo “B”, mas entre as teses
jurídicas apresentadas por “A” e por “B”.
A estrutura de embate trazida pelo processo, é inegável, contribui
para a pacificação social. Com a procedimentalização, evita-se, também,
que a Administração faço uso de processos decisórios diferentes para
regular duas situações idênticas. Com isso, o processo faz com que a
Administração amolde sua atuação aos contornos do Princípio da Igualdade
— o qual, por ser incompatível com o tratamento desigual dos que se
encontram em situação de igualdade, contribui para a manutenção da paz
social.
Os recursos, previstos nas diferentes legislações que estabelecem
procedimentos administrativos, são um bom exemplo de como o processo
possibilita o arrefecimento dos ânimos. Primeiro porque diminuem a
chance de erros da Administração, permitindo que um posicionamento
prejudicial ao particular seja revertido. Ademais, tomando-se o ser-humano
médio, é fato que a possibilidade de acalmação frente duas decisões
desfavoráveis — uma ratificando a outra — é maior do que a decorrente de
uma única manifestação.
5 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1985, p. 61.
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II.3. A procedimentalização como movimento “contracircular”
Há de se entender a procedimentalização do Direito Administrativo,
ainda, como uma reação evolutiva natural ao modelo tradicional de
relacionamento existente — dentro do Estado Democrático de Direito —
entre a Administração, a Política e o Público. Tal modelo tradicional, e, por
conseguinte, o modelo heterodoxo, foram descritos por Niklas Luhmann
em sua análise da dinâmica interna do subsistema político, exposta no livro
“Política e Direito – Uma Visão Autopoiética”6, de minha autoria.
No modelo ortodoxo, Administração, Política e Público interagem da
seguinte forma: o Público elege os representantes do Poder Legislativo e
Executivo, cuja função é editar atos políticos. As leis e decisões políticas
são concretizadas pela Administração, em suas interações com o Público,
por meio de atos administrativos. É um movimento circular no qual
inexiste um centro de onde emane o fluxo hierarquizado do poder. Os
elementos principais deste movimento são as eleições, os atos políticos e os
atos administrativos.
Com o surgimento do Estado Social, e das conseqüências a ele
inerentes, ocorre uma sobrecarga deste modelo ortodoxo. Esta estrutura não
mais é suficiente para atender às ingerências que o Estado Social,
inevitavelmente, deve realizar no seio social com o intuito de viabilizar os
chamados direitos sociais.
Nasce, destarte, um movimento contracircular ao modelo ortodoxo.
Agora, convivem duas formas claras de interação entre Administração,
Poder Legislativo e Público: a primeira, tradicional, cujos elementos são as
6 ZYMLER, Benjamin. Política & Direito – Uma Visão Autopoiética. Curitiba, Ed. Juruá, 2002, p. 127-132.
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eleições, os atos políticos e os atos administrativos; a segunda, o modelo
contracircular.
Neste modelo heterodoxo (contracircular), a Política, por meio de
pautas partidárias preestabelecidas, sugere ao público o quê (o programa
partidário) e quem (os candidatos) eleger. O Público, por sua vez, exerce
sua influência sobre a Administração, mediante exercício do direito de
petição e pela participação em processos administrativos de formação da
vontade estatal. Finalmente, a Administração, por intermédio de seus
especializados corpos técnicos de assessoria e direção, produz e influencia
a seleção de projetos para a Política.
Assim sendo, surge o procedimento administrativo como faceta da
contracirculariedade, que é fruto da saturação do movimento circular.
Nota-se, mais uma vez, que a procedimentalização do direito
administrativo longe de ser mero casuísmo ou de ser, tão-somente, a
manifestação de uma preocupação com a manutenção de garantia dos
direitos dos administrados, é, com efeito, fruto de uma necessidade de
reação evolutiva do próprio Estado Social, que não mais consegue buscar
seus objetivos escorado, apenas, nos mecanismo clássicos de interação
entre Público, Administração e Política.
III. Alguns exemplos de recente procedimentalização do Direito
Administrativo
III.1. Tribunal de Contas da União
O Tribunal de Contas da União, órgão que auxilia o Congresso
Nacional no exercício do Controle Externo, vem sofrendo, desde o advento
da Constituição de 1988, ampliação de suas competências.
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Com o aumento das atribuições da Corte de Contas, houve,
progressivamente, incremento substancial na procedimentalização da sua
atuação.
Sobreveio, então, em substituição ao Decreto-Lei nº 199/67, que era
a lei orgânica do TCU, a Lei nº 8.443/92. Esta norma, como era de se
esperar, trouxe um maior detalhamento da inter-relação TCU X
administrado. Aspectos processuais que na norma antiga eram
mencionados de forma imprecisa e sintética, ganharam, no novo diploma,
configurações mais nítidas e analíticas. A título de exemplo, vale
mencionar que a Lei nº 8.443/92, ao contrário do Decreto-Lei, disciplina
com maior precisão os recursos cabíveis contra decisões proferidas em
processos de tomada ou prestação de contas.
Ao mesmo tempo, sobreveio uma profusão de normas
procedimentais de nível infralegal. Neste sentido, a Resolução TCU nº
36/2000 estabelece procedimentos sobre o exercício da ampla defesa no
âmbito do Tribunal de Contas da União. A preocupação em esmiuçar o
processo administrativo do TCU é nítida nesta norma, que, entre outras
coisas:
define como partes do processo as figuras do responsável e do
interessado, conceituando cada uma delas e estabelecendo a
forma como a última ingressa no processo;
assevera que são etapas do processo a instrução, parecer do
Ministério Público, julgamento e recursos;
disciplina a concessão de vista, a retirada de cópias e a juntada de
documentos;
regulamenta a forma como se exerce o direito de sustentação oral;
disciplina as medidas cautelares que podem ser proferidas pela
Corte de Contas.
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III.2. Licitações e Contratos
A título de exemplo do viés procedimentalista do Direito
Administrativo, há de se mencionar a Lei nº 8.666/93, que dispõe sobre
licitações e contratos na Administração Federal e que substituiu o Decreto-
Lei nº 2.300/86.
Do exame da Lei de Licitações e Contratos é possível extrair o
seguinte:
a Lei cria a figura das audiências; o art. 39 estabelece a
obrigatoriedade de os procedimentos licitatórios de grande vulto
financeiro serem precedidos de audiência aberta a todos os
interessados, os quais terão direito à obtenção das informações
pertinentes e à manifestação;
o art. 41 da 8.666/93, em seu parágrafo primeiro, regulamenta de
forma precisa a maneira pela qual os cidadãos podem insurgir-se
contra edital de licitação, coisa que não fazia o Decreto-Lei nº
2.300/86 em seu artigo correspondente (art. 33);
o art. 49 estabelece a possibilidade de a autoridade competente
para a aprovação do procedimento revogar a licitação, por razões
de interesse público decorrente de fato superveniente, e anulá-la,
por ilegalidade; o § 3º deste artigo, de seu turno, dispõe que tanto
na revogação quanto na anulação fica assegurado o contraditório
e a ampla defesa;
o art. 78 consigna hipóteses de rescisão do contrato; o parágrafo
único do art. 78, por sua vez, dispõe que os casos de rescisão
contratual devem ser motivados, assegurado o contraditório e a
ampla defesa.
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III.3. Concessões e Permissões de Serviço Público
A Lei nº 8.987/95, a qual dispõe sobre o regime de concessão e
permissão da prestação de serviço público, também pode servir como
exemplo da procedimentalização do Direito Administrativo e da
contracircularidade. O art. 3º desta norma estabelece que os usuários devem
cooperar com o poder concedente na fiscalização das concessões e
permissões. O art. 5º, por sua vez, consigna que o poder concedente deverá
publicar, previamente ao edital de licitação, ato justificativo da
conveniência da outorga de concessão e permissão de serviço público.
Da mesma forma que o artigo 39 da Lei de Licitações, os artigos
citados invertem o fluxo tradicional de relacionamento Administração X
Público. Não mais o administrado limita-se a ser o pólo passivo do ato
administrativo. Na perspectiva contracircular a que aludi, o Público
interage com a Administração — no presente caso a Administração pode
ser considerada como o Poder Concedente e o Concessionário, eis que este
recebe delegação daquele — dando-lhe “imputs” acerca da forma que ela
atua.
No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 30 estabelece que a
fiscalização do serviço público deverá ser feita não só pelo poder
concedente, mas também, periodicamente, nos termos de legislação
complementar, por comissão mista, composta por representantes do poder
concedente, da concessionária e dos usuários.
O art. 32 da Lei nº 8.987/95 disciplina a possibilidade de o poder
concedente, escorado em Decreto, intervir na concessão com o fito de
assegurar a prestação, a contento, do serviço público e o cumprimento da
legislação por parte do concessionário.
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A tendência procedimentalista surge quando o art. 33 determina a
obrigatoriedade de o poder concedente, no prazo de trinta dias após a
declaração da intervenção, instaurar processo administrativo com o
objetivo de comprovar as suas causas determinantes e de apurar
responsabilidades, assegurado o direito de ampla defesa. Ainda, estabelece
o artigo, por meio de seu parágrafo segundo, que o procedimento
administrativo deve ser concluído no máximo em 180 dias, sob pena de a
invalidação ser considerada inválida.
O art. 38 estabelece, em seu parágrafo primeiro, as hipóteses
ensejadoras da declaração, pelo poder concedente, da caducidade da
concessão — que é uma das formas de extinção da concessão. A referida
tendência surge no parágrafo segundo deste mesmo artigo, o qual
estabelece a necessidade de, antes de se declarar a caducidade da
concessão, instaurar procedimento administrativo com o intuito de apurar a
inadimplência da concessionária.
III.4. Constituição Federal
A participação popular na gestão da Administração — cuja
concretização só é possível mediante a procedimentalização, eis que não é
razoável que a interação Poder Público X administrado se dê à luz da
improvisação, variando a sua forma a cada caso concreto existente — pode
ser também vislumbrada em algumas passagens da Constituição Federal de
1988:
o art. 10 assegura a participação dos empregadores e
trabalhadores nos colegiados dos órgãos públicos nos quais seus
interesses profissionais ou previdenciários forem objeto de discussão
e deliberação;
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o art. 37, § 3º, estabelece a possibilidade de participação do
usuário, conforme consignado em lei, na Administração Pública
Direta e Indireta; tal lei, por sua vez, deverá regular, principalmente,
as reclamações referentes à prestação do serviço público e a
disciplina da representação contra exercício negligente ou abusivo de
cargo, emprego ou função na Administração Pública;
o art. 187 prevê que a execução e o planejamento da política
agrícola serão realizados, na forma da lei com a participação efetiva
do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais,
bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de
transportes;
o inciso VI do parágrafo único do art. 194 coloca que a
seguridade social deverá ser gerida de forma democrática e
descentralizada, mediante gestão quadripartite, com participação dos
trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos
órgãos colegiados.
Talvez o sintoma mais evidente do fenômeno de
procedimentalização pelo qual passa o Direito Administrativo seja a
publicação da Lei 9.784/99; passo, doravante, a comentar este diploma
legal. Antes, no entanto, julgo oportuno comentar, de forma breve, alguns
dos princípios do procedimento administrativo que, com certeza,
permearam a elaboração desta norma.
IV. Princípios do Procedimento Administrativo
Não há uniformidade absoluta entre os autores acerca dos princípios
do procedimento administrativo. Não há, sequer, consenso a respeito do
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nome a ser usado — se processo administrativo ou procedimento
administrativo. É comum serem dados nomes diferentes à vetores básicos
(princípios) que possuem o mesmo conteúdo, assim como também é
comum os autores divergirem quanto ao número de princípios que podem
ser extraídos do ordenamento jurídico. Mencionarei, destarte, alguns deles.
Princípio da Publicidade
Decorre diretamente da Carta Magna (art. 37 caput). A função da
Administração pública é cuidar do interesse público, o qual, por sua vez,
somente pode ser atingido mediante atuação escorada na lei. Poderes são
conferidos à Administração com vistas, tão-somente, a viabilizar o
cumprimento dos deveres para os quais se criou a figura do Estado. São
poderes adstritos à finalidade legal, donde decorre a necessidade de se
controlar o seu manejo, o que somente é possível com a publicidade dos
atos administrativos.
Sendo assim, os atos praticados no desempenho de função
administrativa — que é a função caracterizada pela gestão de interesse
públicos — deve estar a disposição, para fins fiscalizatórios, dos titulares
do poder, ou seja, dos membros da sociedade. A publicidade em um Estado
Democrático de Direito é a regra, somente permitindo-se procedimentos
sigilosos quando em jogo interesses públicos valiosos ou a defesa do direito
à privacidade.
Neste sentido, o inciso XXXIII da Constituição Federal dispõe que
“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
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Princípio da Oficialidade
É consectário direto do fato de a Administração existir para a
persecução dos interesses públicos. Se a finalidade é zelar pelo princípio da
legalidade, não pode a Administração limitar-se a combater ilegalidades
apenas quando os particulares contra elas se manifestam. Por este princípio,
encontra-se a Administração autorizada a instaurar procedimento e a rever
suas decisões de ofício, nos limites da lei, sempre que o atingimento dos
interesses coletivos a ela imponha tais atitudes.
É de notar que no procedimento administrativo a oficialidade é mais
ampla que no processo judicial; neste, a obrigatoriedade de impulsionar o
processo somente nasce após a quebra da inércia processual, a qual não
pode ser efetuada pelo Estado-Juiz.
Em nível jurisprudencial, a diretriz da autotutela dos atos
administrativos é firmada pela Súmula nº 473 do Supremo Tribunal
Federal, de seguinte teor:
“A Administração pode anular seus próprios atos eivados de vícios
que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-
los, por motivos de conveniência ou oportunidade respeitados os direitos
adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
Princípio da Verdade Material
Diferentemente do processo judicial, onde, muitas vezes, da relação
jurídica surgem apenas interesses privados, o processo administrativo é
marcado pela presença inevitável de interesses públicos. Tal presença,
inclusive, faz com que haja autores que defendam a inaplicabilidade do
conceito de ato anulável ao direito administrativo, eis que este ramo
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jurídico é totalmente permeado por interesses coletivos, havendo de se
falar, tão-somente, em atos nulos. Eis que presentes interesses
predominantemente públicos no processo administrativo, não está a
Administração autorizada a contentar-se com a verdade formal. Há de se
buscar, sempre, a verdade substancial, não podendo a Administração
limitar-se às alegações dos interessados quando elas não têm o condão de
esclarecer a verdade dos fatos.
Princípio do Formalismo Moderado
Por tal princípio, a Administração não deve escorar-se em
formalismos exacerbados ao apreciar a manifestação dos interessados. O
formalismo só é tolerável nas hipóteses em que sua observância é
necessária ao atendimento do interesse público e à proteção dos interesses
dos administrados.
Justifica-se o menor rigor formal, em boa medida, pelo fato de a
interação Administração X administrado, na maioria das vezes, não ocorrer
no plano das contendas, das disputas. Assim sendo, pode-se admitir uma
maior condescendência com falhas procedidas no decorrer dos processos
administrativos. Sem embargo, nos procedimentos onde há competição,
como procedimentos licitatórios, há uma maior atrelamento ao formalismo
com vistas à observância do Princípio da Igualdade.
Decorre o informalismo, também, do fato de os processos
administrativos não demandarem atuação por meio de advogado, o que,
consequentemente, amplia a transigência em relação a falhas formais.
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V. Lei nº 9.784/99
A Lei nº 9.784/99, consoante seu art. 1º, regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Federal Direta e Indireta.
No entanto, seu campo de incidência não se limita ao Poder
Executivo Federal, eis que, como sabido, o exercício da função
administrativa não é exclusivamente desenvolvida por este poder. Ao
desempenhá-la, estão os Poderes submetidos à Lei 9.784/99, consoante
dispõe o § 1º de seu art. 1º. É de observar que a aplicação ocorre apenas
subsidiariamente (art. 69) caso o procedimento administrativo seja regido
por legislação específica, como o caso do procedimento licitatório,
disciplinado pela Lei nº 8.666/93. Sobre esta subsidiariedade, voltarei a
comentar adiante.
Embora a Lei não lhes faça menção, é evidente que sua aplicação
estende-se ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas da União quando
tais órgãos desempenham funções administrativas. Quando desempenham
suas funções típicas, constitucionais, são regidos por legislação própria. O
TCU, por exemplo, é regido por normas da Carta Magna e pela Lei nº
8.443/92.
Em seu art. 2º, a Lei do Processo Administrativo explicita vários
princípios aos quais está submetida a Administração Pública. São eles a
legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse
público e eficiência.
Cumpre ressaltar que estes princípios defluem, de uma forma
explícita ou implícita, da Constituição Federal. São inerentes à atuação da
Administração em um Estado Democrático de Direito. O que a lei fez foi
repetir princípios já explícitos no art. 37 da Constituição Federal e
explicitar outros implícitos.
21
No parágrafo único do artigo 2º a Lei determina que os processos
administrativos observem determinados critérios. Dentre eles, há alguns
que acabam por sintetizar princípios da Administração Pública. No inciso
V, por exemplo, fixa-se a necessidade de divulgação dos atos
administrativos, salvo as hipóteses de sigilo previstas na Constituição.
Tem-se, aqui, o Princípio da Publicidade. Já o inciso VI consagra o
Princípio da Proporcionalidade ao impor “adequação entre meios e fins,
vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida
superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público.” Inserido neste parágrafo único, há também o Princípio da
Oficialidade (inciso XII). O inciso XIII estabelece que a norma
administrativa deve ser interpretada de modo a garantir o alcance do fim
público a que se dirige, vedada a aplicação retroativa da nova interpretação.
Esta vedação é reflexo do ideal de Justiça Distributiva. Nesse mesmo
sentido, há a Súmula TCU nº 105, de seguinte teor: “A modificação
posterior da Jurisprudência não alcança aquelas situações constituídas à
luz de critério interpretativo anterior.”.
Mais adiante, em seu art. 11, a Lei 9.784/99 estabelece que a
competência é irrenunciável e que deve ser exercida pelos órgãos
administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de
delegação e avocação legalmente admitidos. No artigo seguinte, assevera
que um órgão administrativo e seu titular poderão, caso não exista
impedimento legal, delegar parte de sua competência a outros órgãos ou
titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados,
quando for conveniente, em virtude de circunstâncias de ordem técnica,
social, econômica, jurídica e territorial.
Destes dois artigos, surge certa incoerência. O primeiro (art. 11)
dispõe que o instituto da delegação só é possível nos casos legalmente
22
previstos. Já o segundo (art. 12) faz crer que a delegação é viável sempre
que não haja óbice legal, o que é diverso de estar previsto legalmente.
Esta incoerência talvez possa ser dirimida pelo art. 13, o qual dispõe
que não podem ser objeto de delegação a edição de ato de caráter
normativo, a decisão de recursos administrativos e as matérias de
competência exclusiva do órgão ou autoridade. Haveria de se entender,
então, que esses são os casos de impedimento legal a que alude o art. 12 e
que, fora deles, todos os outros casos de delegação seriam legalmente
admitidos, nos termos do art. 11. Prevaleceria, destarte, uma interpretação
ampliativa das possibilidades de delegação.
Entretanto, interpretação em sentido contrário — e que impõe caráter
restritivo às possibilidades de delegação — também é plausível. É
perfeitamente razoável entender que a delegação só é permitida se não
versar sobre os casos do art. 13 e se estiver, de modo expresso, legalmente
prevista. Isto porque o art. 11, pela sua redação, coloca como regra o
exercício da competência pelos órgãos devidos e como exceção
(caracterizada pelo vocábulo “salvo”) a delegação. Quer dizer, faz entender
que a intenção da lei é realmente restringir o instituto da delegação. A
prática administrativa, vale lembrar, vem prestigiando o primeiro
entendimento.
Já para o caso da avocação, também contemplada no citado art. 11,
deve prevalecer a interpretação de que sua possibilidade realmente se limita
aos casos legalmente admitidos. Isto porque o art. 15, seguindo o art. 11,
impõe à avocação caráter incomum ao estabelecer que ela será permitida
excepcionalmente e por motivos relevantes devidamente justificados.
O art. 27 da Lei, inserido no capítulo destinado ao disciplinamento
da “Comunicação dos Atos”, traz a lume um dos princípios regedores do
Processo Administrativo — o da Verdade Material. Diz o artigo que o
23
desatendimento das intimações não importa o reconhecimento da verdade
dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado.
Vê-se claramente que no Processo Administrativo, permeado que é
pelo interesse público, não se admite a verdade formal, predominante no
Processo Civil, onde, de regra, prevalecem interesses particulares. Portanto,
a revelia, que no Processo Civil acerca de direitos disponíveis torna o fato
incontroverso, a teor do art. 319 do CPC, no processo administrativo não
acarreta tal efeito.
O art. 29 da Lei nº 9.784/99, o qual é o primeiro destinado a
regulamentar a etapa de instrução do procedimento administrativo, retrata
de modo evidente o Princípio da Oficialidade. Diz o dispositivo que as
atividades de instrução destinadas à averiguação e comprovação dos dados
necessários à tomada de decisão são realizadas de ofício ou mediante
impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo de os
interessados proporem atuações probatórias.
Existem na norma artigos que demonstram, de forma cabal, o
movimento contracircular que mencionei. O artigo 31, ao regulamentar a
figura da “consulta pública”, traz o cidadão para dentro do processo
decisório da Administração. O artigo estabelece que a Administração
poderá abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros
desde que a matéria tratada no processo envolva interesse coletivo e que tal
procedimento não enseje prejuízo para o interessado. Por meio da consulta
pública, poderão os interessados, nos termos do § 1º do art. 31, examinar os
autos e apresentar alegações escritas.
Já o art. 32 disciplina figura semelhante à consulta pública, a
audiência pública. Assevera a norma que a Administração poderá, antes da
tomada de decisão, realizar audiência pública para debates sobre a matéria
do processo.
24
A diferença mais notável entre a audiência pública e a consulta
pública reside no fato de a primeira fulcrar-se na oralidade. A norma fala
em “debates” acerca da matéria de interesse público. Já a consulta, por sua
vez, nos termos do § 1º do art. 31, apoia-se na apresentação de alegações
escritas, ou seja, na elaboração de peças formais. Obviamente, no decorrer
de uma audiência pública é possível que se reduzam declarações a termo e
que se entreguem peças escritas. No entanto, este não é o seu andamento
normal.
Por fim, o artigo 33 dispõe que os órgãos e as entidades
administrativas, sempre que presente matéria relevante, podem fazer uso de
outros meios de participação dos interessados, tanto diretamente quanto por
intermédio de organizações e associações. Quer dizer, faz com que as
hipóteses da audiência pública e da consulta pública sejam
exemplificativas.
O art. 45 estabelece a possibilidade de a Administração, nos casos de
risco eminente, adotar, sem a prévia manifestação do interessado, medidas
acautelatórias. O fundamento desta faculdade é o mesmo do que permeia o
poder geral de cautela conferido ao juiz pelo art. 798 do CPC: a
salvaguarda do interesse público. Afinal, no caso do processo judicial, a
medida cautelar determinada com supedâneo no poder geral de cautela
visa, antes de proteger o direito material da parte, à proteção da eficácia do
processo.
Finalizando a etapa de instrução, o art. 47 estabelece que o órgão por
ela responsável que não seja competente para emitir a decisão final deverá
elaborar relatório indicando o pedido inicial, o conteúdo das fases do
procedimento e a proposta de decisão, com a devida motivação. Após, será
o processo encaminhado para a autoridade competente para decidir o feito.
O art. 48 consigna que a Administração tem o dever de emitir
decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações,
25
em matéria de sua competência. O artigo tem caráter meramente
explicitante. É evidente que a Administração tem o dever de decidir os
processos administrativos, mormente em virtude do Direito de Petição
consagrado na alínea “a” do inciso XXXIV do art. 5º da Constituição
Federal. Dizer que a Administração não tem o dever de posicionar-se sobre
as questões que lhe são postas seria o mesmo que, por uma via transversa,
tornar o Direito de Petição inócuo.
Já o art. 49 estabelece o prazo para que a Administração emita
decisão, o qual será de no máximo trinta dias, contados da conclusão da
instrução, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada.
O art. 50 da Lei nº 9.784/99 trata da motivação dos atos
administrativos.
O primeiro comentário a ser feito acerca deste dispositivo é o de que
ele não representa um retrocesso em relação à procedimentalização do
direito administrativo. Com efeito, os atos — aos quais o caput faz alusão
— não devem ser tomados de forma estanque, isolada. De fato, o artigo
refere-se a atos administrativos inseridos no processo administrativo
engendrado na Lei nº 9.784/99. Prova disso é que os incisos que
complementam o caput tratam de atos que pressupõe um processo. O art.
50 determina, por exemplo, que os atos administrativos deverão ser
motivados quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; decidam processos
administrativos de concurso ou seleção pública; dispensem ou declarem a
inexigibilidade de processo licitatório; decidam recursos administrativos,
decorram de reexame de ofício; deixem de aplicar jurisprudência firmada
sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios
oficiais; e importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de
ato administrativo.
26
Ainda falando sobre atos administrativos, o art. 53 consagra o
Princípio da Autotutela da Administração, unanimemente reconhecido pela
doutrina. Este princípio, corolário direto do dever de a Administração ater-
se à legalidade, ou seja, ao Princípio da Legalidade, também já havia sido
explicitado por meio da Súmula nº 473 do Supremo Tribunal Federal.
Com o art. 53, praticamente foi reproduzido o conteúdo da súmula.
Inovação mesmo ocorreu com o art. 54, que fixou em 5 anos o prazo para a
Administração anular os atos administrativos de efeitos favoráveis aos
administrados, contados da data em que foram praticados, salvo
comprovada má-fé.
Cumpre observar que o prazo de 5 anos é de decadência, não
obstante alguns autores como José dos Santos Carvalho Filho7 defendam
que seja de prescrição. A lei, no caput do art. 54, fala que o direito “decai”.
Mais adiante, no § 1º deste mesmo artigo, afirma que no caso de efeitos
patrimoniais contínuos o prazo de “decadência” contar-se-á da percepção
do primeiro pagamento. A menção expressa à decadência — considerando
que o projeto de lei foi elaborado por uma comissão de juristas do mais alto
gabarito, como, entre outros, Maria Zanella de Pietro e Adílson de Abreu
Dallari — é sem dúvida forte indicativo de que o prazo é realmente
decadencial.
É de notar, ainda, que a teor do art. 28 da Lei nº 9.784/99, o
interessado deve ser intimado antes que a Administração proceda à
anulação ou revogação de ato jurídico que afete sua órbita jurídica.
Obviamente, se da anulação ou da revogação puderem decorrer gravame ao
particular, a ele deve ser dada a oportunidade de manifestação acerca da
matéria. É o que deflui não só do art. 28 mas também do inciso LV do art.
5º da Constituição Federal.
7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2001, p. 256.
27
O art. 55 trata da convalidação, instituto também já amplamente
debatido na doutrina. Diz o artigo que “em decisão na qual se evidencie
não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os
atos que apresentem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela
própria Administração.”
A norma estabelece como requisitos cumulativos da convalidação a
ausência de lesão a interesse público, de prejuízo a terceiros e, outrossim, a
presença de defeitos sanáveis. Presentes estas condições a Administração
poderá convalidar os atos. Ausentes, deverá invalidar o ato. A norma
merece alguns comentos.
O primeiro é o de que ao estabelecer que existem atos eivados de
defeitos sanáveis, e passíveis de serem convalidados, a norma firmou o
entendimento da existência de atos anuláveis. É importante a menção a isto
porque há autores, como o saudoso Hely Lopes Meirelles, que negam a
existência de atos administrativos anuláveis. Perfilham a tese de que
anulabilidade é instituto oriundo do direito privado, advindo da
possibilidade, inerente a esta seara do direito, da existência de vícios que
não afrontam o interesse público, mas tão-somente o interesse das partes. Já
no âmbito do direito público, afirmam estes autores, o regime-jurídico é
composto por normas de ordem pública, donde decorre que os vícios
encontrados em seus atos sempre violam interesses públicos, não havendo,
então, de se falar em atos anuláveis, mas sim em atos nulos.
A possibilidade ou não de se convalidar determinado ato ilegal
somente poderá ser examinada, a contento, caso a caso. Ante a infinidade
de situações nas quais se relacionam Administração e particulares, a
tentativa de categorizar, de prever, quais atos poderão ser convalidados, e
quais não poderão, muitas vezes possui pouco préstimo em termos práticos.
É evidente que há situações onde existe algum interesse público violado e,
também, algum prejuízo a terceiros e, mesmo assim, a mantença dos efeitos
28
jurídicos do ato é essencial para que prejuízos maiores não surjam. Na
verdade, o que deve o aplicador do direito fazer é ponderar os malefícios
oriundos da invalidação e os decorrentes da convalidação. Sempre que
estes últimos, de forma clara, inequívoca, forem menores que os advindos
da invalidação, deverão ser mantidos os efeitos do ato administrativo. É a
única solução possível, sob pena de violentar-se um dos princípios sobre o
qual repousa todo o regime-jurídico administrativo: o da indisponibilidade
do interesse público.
Portanto, a categorização feita pela norma — em que pese o préstimo
que detém por seu caráter indicativo —, há de ser interpretada com cautela,
eis que não se pode admitir que o direito sirva para tutelar situações onde o
interesse público, incontrastavelmente, é violado. Há de se proceder sempre
uma “soma”, uma comparação entre os bens jurídicos em jogo. Feita a
análise e estando devidamente provado que o caminho menos traumático é
a convalidação, o “poderão” a que a norma alude transmuta-se em
“deverão”, sob pena, como já dito, de se negar valia ao Princípio da
Indisponibilidade do Interesse Público.
O capítulo XV da Lei nº 9.784/99 trata “do Recurso Administrativo e
da Revisão”.
Nos termos do art. 56, cabe recurso contra as decisões
administrativas por razões de legalidade e de mérito, ou seja, é possível que
sejam atacadas tanto decisões vinculadas quanto discricionárias. No caso
do provimento de recurso interposto com supedâneo em violação da lei, o
provimento terá, necessariamente, que concluir pela anulação da decisão
atacada. Já na hipótese em que a peça recursal oponha-se contra a
conveniência e oportunidade adotadas na decisão atacada, o provimento
terá como resultado a revogação da decisão administrativa.
29
O recurso administrativo deve ser dirigido à autoridade que proferiu
a decisão. Caso a autoridade não a reconsidere no prazo de cinco dias,
encaminhará a peça recursal à autoridade superior.
Questão interessante é saber se o não-conhecimento do recurso pela
autoridade que proferiu o ato enseja a sua remessa para a autoridade
superior. José do Santos Carvalho Filho8, ao comentar o artigo, entende que
não deve ocorrer a remessa, a qual somente teria lugar no caso do
conhecimento seguido do não-provimento.
A verdade é que a Lei não é clara a respeito, o que torna a
interpretação deste autor possível. Entretanto, creio que a melhor
interpretação é a de que o recurso deve ser submetido à autoridade superior
nos casos de não-conhecimento. O § 1º do art. 56 afirma que “o recurso
será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a
reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade
superior.” É de notar que a não-reconsideração, que é o pressuposto do
encaminhamento, pode decorrer do não-conhecimento e do conhecimento
seguido do não-provimento. Ante este fato, e considerando que o processo
administrativo é totalmente permeado pelo Princípio da Verdade Real
que melhor pode ser obtida com uma dupla análise , reputo que o
recurso deva ser apreciado pela autoridade superior mesmo que não seja
conhecido.
De acordo com o art. 57 da Lei do Processo Administrativo, o
recurso administrativo tramitará, no máximo, por três instâncias
administrativas. Com isso, considerando a sistemática do § 1º do art. 56, é
possível a interposição de somente dois recursos para determinada decisão
administrativa.
8 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2001, p. 265.
30
Quanto à legitimidade para interpor recursos, a lei, por meio do 58,
regulou-a de forma ampla. Neste sentido, têm legitimidade para recorrer os
titulares de direitos e interesses que forem parte no processo, os que
tiverem direitos e interesses indiretamente afetados pela decisão, as
organizações e associações representativas e os cidadãos ou associações,
quanto a direitos e interesses difusos. A intenção da lei, ao permitir
legitimação ampla, foi ganhar celeridade, evitando que novas demandas,
sobre a mesma matéria, fossem iniciadas.
O prazo para a interposição do recurso é de dez dias, contados a
partir da ciência ou da divulgação oficial da decisão recorrida (art. 59). A
autoridade competente, por sua vez, deve decidir o recurso no prazo de
trinta dias, prorrogáveis por igual período, a partir do recebimento dos
autos.
Cumpre ressaltar que o esgotamento do prazo não impede a
autoridade de apreciar a peça recursal. O dever de zelo pelo Princípio da
Legalidade autoriza o órgão competente a, mesmo ultrapassado o prazo
legal, manifestar-se acerca do provimento do recurso. Frise-se, no entanto,
que o prazo não deixa, por isso, de ter serventia, eis que a inércia da
Administração caracteriza violação de dever funcional, passível de punição,
e possibilita a impetração de ação judicial em virtude da lesão a direito
líquido e certo.
No art. 60 a Lei estabelece a possibilidade de que o recorrente, ao
interpor o recurso, junte os documentos que entenda convenientes. Tal
norma mostra claramente a influência do Princípio da Verdade Real no
Processo Administrativo. No Processo Civil, diferentemente, não é
permitido inovar em grau de recurso. A regra é a submissão ao Princípio da
Eventualidade, segundo o qual as partes devem manifestar-se, inclusive
fornecendo as provas de seu interesse, na primeira oportunidade processual
possível, sob pena de preclusão. A esfera administrativa, cujo o processo
31
escora-se na verdade real e no formalismo moderado, apresenta lógica
diversa. O interesse público não comporta a satisfação com a verdade
meramente formal, o que acaba por mitigar a rigidez do processo.
Já o art. 61, objetivando não travar a atuação da Administração,
consigna que os recursos não têm efeito suspensivo. Entretanto, desde que
exista justo receio de difícil ou incerta reparação decorrente da execução da
decisão administrativa, tanto a autoridade recorrida quanto a superior
podem, a pedido ou de ofício, conferir efeito suspensivo ao recurso.
O art. 62 traz ao processo os interessados no julgamento do recurso
interposto. Dispõe o artigo que após a interposição do recurso o órgão
competente para dele conhecer deve intimar os interessados para que, no
prazo de cinco dias, apresentem suas alegações.
Ainda disciplinando os recursos, a Lei estabelece em seu artigo 63
que não serão conhecidos os recursos impetrados fora do prazo, perante
órgão incompetente, por quem não tenha legitimidade e após exaurida a
etapa administrativa.
O § 2º do art. 63 dispõe que o não-conhecimento do recurso não é
fato impeditivo de que a Administração reveja de ofício os atos ilegais,
desde que não ocorrida preclusão administrativa.
O comando é de capital importância. Retrata o poder de autotutela da
Administração, ou seja, o seu poder de, por iniciativa própria, rever seus
atos. Conforme já mencionei, este poder, gerado do Princípio da
Legalidade, já se encontrava, antes desta Lei, pacificado na doutrina e na
jurisprudência. Coube à Lei formalizá-lo, dando-lhe os contornos que lhe
são peculiares.
Malgrado a norma fale de atos ilegais, entendo que é possível
também rever os atos legais que se revelem inoportunos, inconvenientes.
Não há como pensar diferente. O recurso pode atacar não só ilegalidades,
32
mas, também, atos legais que tragam prejuízo para os interessados, nos
termos do art. 56.
Ponto interessante é o limite ao poder de autotutela imposto pela
preclusão administrativa, a que a norma faz alusão. Preclusão, ensina a
mais autorizada doutrina, é a perda de uma faculdade processual é
gerada, portanto, após a instauração do processo. No caso dos recursos,
pode ocorrer em virtude do tempo; tem-se, então, a preclusão temporal.
Ocorre também em função da prática de ato incompatível com a vontade de
recorrer (preclusão lógica) e em virtude da apresentação do recurso cabível,
caso da preclusão consumativa.
Preclusão administrativa, também chamada pela doutrina de
preclusão dos efeitos internos do ato, liga-se, inexoravelmente, aos por
vezes criticados institutos da “coisa julgada administrativa” e do “trânsito
em julgado administrativo”.
Ocorre preclusão administrativa quando não é mais possível ao
interessado interpor recursos perante a Administração. Ou seja, caso a
esfera administrativa comporte a apresentação de dois recursos, ocorre a
preclusão administrativa quando não mais seja possível interpor o último
deles. Tal fato pode ocorrer em razão em virtude de este recurso já ter sido
apresentado (preclusão administrativa consumativa) ou de ter-se perdido o
prazo para a sua interposição (precusão administrativa temporal). Nestas
hipóteses, o § 2º do art. 63 obsta a atuação de ofício da Administração.
Ainda exemplificando, se dois recursos são cabíveis no âmbito
administrativo, o não-conhecimento do primeiro não impede — desde que
ainda seja possível interpor o segundo — que a Administração reveja o ato
ilegal, eis que não ocorreu preclusão administrativa.
Interessante ressaltar, dentro do exemplo dos dois recursos cabíveis,
que o fato de o segundo recurso não ser conhecido não enseja,
necessariamente, preclusão administrativa. Pode ocorrer de o segundo
33
recurso, interposto dentro do prazo legal, ter sua admissibilidade
prejudicada em razão de ter sido dirigido à autoridade competente. Neste
caso, à luz do § 1º do art. 63, o prazo é devolvido ao recorrente. Não é
hipótese de preclusão administrativa, podendo a Administração, ainda, agir
por iniciativa própria. Outra hipótese de não-conhecimento do segundo
recurso que não gera preclusão administrativa é a do recurso interposto por
quem não seja legitimado. É evidente que se ainda há prazo para o
verdadeiro interessado interpor o último recurso, pode a Administração
rever o seu ato.
Linha interpretativa que pode ser traçada, de forma plausível, é a que
combina o § 2º do art. 63 com o caput do art. 54, o qual estabelece o prazo
decadencial de cinco anos.
A preclusão administrativa mencionada no § 2º do art. 63
estabeleceria o limite de atuação da Administração no curso de
determinada relação processual, ou seja, no âmbito de um processo já
existente. Uma vez ocorrida a preclusão, a Administração ainda poderia
exercer seu poder de Autotutela. Porém, agiria escorada no caput do art.
54, o que, de seu turno, somente seria possível, ante o limite da preclusão
administrativa do art. 63, caso se instaurasse novo procedimento
administrativo.
Mal comparando, a possibilidade de anulação com fulcro no art. 54
da Lei nº 9.784/99 pode ser assimilada, a partir do paradigma jurisdicional,
a uma ação rescisória. Esta comparação justificaria, inclusive, o prazo
decadencial de cinco anos criado pelo art. 54.
O art. 64 estabelece o poder de o órgão competente alterar a decisão
recorrida. O parágrafo único deste artigo, a seu turno, consigna a
possibilidade de “reformatio in pejus” desde que o recorrente seja
cientificado, antes da decisão, para que formule suas alegações. Mais uma
34
vez, a Lei consagra a submissão da Administração aos Princípios da
Verdade Real e da Legalidade.
Interessante é notar a sistemática prevista pelo parágrafo único para
que se possa reformar a decisão para pior. O recorrente deve ser
cientificado antes da decisão para que apresente alegações. Portanto,
depreende-se que a autoridade é obrigada a antecipar a decisão gravosa ao
recorrente para que formule as devidas alegações. Deverá indicar
claramente que tomará, a princípio, decisão gravosa, a qual poderá ou não
ser confirmada a depender das novas alegações apresentadas.
O art. 65 traz a possibilidade de revisão das decisões que resultem
em sanções. Pelo dispositivo, tais decisões podem ser revistas a qualquer
tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou
circunstâncias relevantes suscetíveis de alterar a sanção aplicada.
É de ressaltar que para estes processos — ou seja, os que versem
sobre punição — existe vedação de “reformatio in pejus”. Dispõe o
parágrafo único do art. 65 que da revisão não poderá resultar agravamento
da sanção. Sendo assim, este parágrafo excepciona a regra geral fixada no
parágrafo único do artigo precedente, art. 64.
O art. 69, inserido no Capítulo intitulado “Das disposições finais”
traz comando de suma relevância e que tem sido fonte constante de
confusão por parte dos aplicadores do direito. Dispõe tal artigo que os
processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria,
aplicando-lhe subsidiariamente os preceitos da Lei nº 9.784/99.
A questão que se coloca, ante este preceito, é saber o que se deve
entender por aplicação subsidiária. Quais são seus limites, onde é cabível,
em que casos será permitida.
Como ponto de partida, é preciso ter como pressuposto que o
objetivo da Lei não foi regular os procedimentos para os quais já existia
legislação específica, caso, por exemplo, do procedimento fiscalizatório do
35
Tribunal de Contas da União, regido pela Lei nº 8.443/92. Sua intenção foi,
entre outras coisas, disciplinar as situações onde havia inexistência de
normas regulamentadoras, e que, por isso, faziam com que o administrador
agisse movido pelo casuísmo e pela improvisação, em um total
descompasso com a racionalidade e com o respeito que deve ter para com o
administrado.
A subsidiariedade a que se reporta a norma, há de ter sua exegese
permeada por esta perspectiva. A função de subsidiar é a de ajudar,
auxiliar, contribuir para o bom andamento. Desta forma, a aplicação da Lei
nº 9.784/99 deve ser precedida, necessariamente, por um juízo de
conveniência e oportunidade pelos aplicadores da legislação específica.
Não basta o silêncio da legislação que rege os procedimentos
administrativos específicos, no caso do TCU o silêncio da Lei nº 8.443/92,
para que, de plano, se apliquem os artigos da Lei nº 9.784/99. Os
operadores do direito, muitas vezes, erram ao entender que todas as vezes
em que existe esse silêncio e que, de outro lado, existe norma a preenchê-lo
na Lei nº 9.784/99, é caso de aplicação subsidiária. A subsidiariedade não é
e nem pode ser matemática assim. O silêncio, malgrado seja elemento
necessário, longe está de ser suficiente.
Há de se analisar, primeiramente, se a interpretação sistemática da
norma específica é ou não capaz de solucionar o vazio normativo. Se for
capaz, afastada estará a aplicação subsidiária, eis que norma geral, feita
para disciplinar inúmeras realidades, não pode pretender abarcar casos
concretos inseridos em uma determinada realidade para qual já existe um
complexo normativo regulatório. Esta premissa, antes de ser jurídica, é
sobretudo lógica.
Não sendo possível, por meio da interpretação sistemática, preencher
a lacuna legal, deve o aplicador do direito, antes de se render à aplicação
subsidiária, analisar se a aplicação da Lei nº 9.784/99 se adapta às
36
peculiaridades do procedimento específico. É aqui, a meu juízo, que se abre
espaço para um juízo de conveniência e oportunidade do administrador que
opera a legislação específica, o que é natural, eis que é ele quem domina as
filigranas desta realidade jurídica. Feito isto e chegando-se à conclusão de
que o comando da Lei nº 9.784/99 coaduna-se com os princípios, normas e
finalidades do procedimento específico, estará configurado o dever de
aplicação subsidiária.
Em síntese, a aplicação não deriva única e exclusivamente do
silêncio da legislação específica. Fosse assim, poder-se-ia chegar a
resultados paradoxais, inusitados, totalmente estranhos à finalidade do
processo específico. Por ser uma norma geral, é evidente que a Lei nº
9.784/99 nem sempre se amoldará aos vários procedimentos
administrativos existentes, muitos deles extremamente diferentes um dos
outros, eis que tratam de realidades díspares.
VI. Aplicação da Lei nº 9.784/99 aos Tribunais de Contas
O Tribunal de Contas da União, por meio da Decisão nº 1020/2000-
Plenário, posicionou-se acerca da aplicabilidade do art. 54 da Lei nº
9.784/99. Esta decisão julgou processo (TC 013.829/2000-0) de solicitação
da Procuradora-chefe da Procuradoria da União no Estado do Espírito
Santo com vistas a que o TCU se pronunciasse sobre a incidência do art. 54
da Lei nº 9.784/99 aos exames de aposentadoria realizados no desempenho
da competência descrita no art. 71, inciso III, in fine, da Constituição
Federal.
Nesta assentada, seguindo o Voto do eminente Ministro Marcos
Vilaça, entendeu o TCU que o desempenho de suas atribuições inserem-se,
de modo amplo, como atividade legislativa. Neste sentido, afirmou o
eminente Ministro-Relator que “Portanto, assim como não seria de se
37
admitir que tivesse aplicação sobre o controle jurisdicional do Poder
Judiciário, a Lei do Processo Administrativo, estabelecendo as regras da
processualística peculiar da Administração, não pode se estender ao
controle externo parlamentar efetuado com o auxílio do Tribunal de
Contas, sob pena de subverter a lógica da distribuição e separação dos
poderes”
Ainda, asseriu o Relator que “No entanto, ressalte-se, a apreciação
pelo Tribunal de Contas corresponde, verdadeiramente, ao exercício da
função de controle externo, da índole do Legislativo, e não ao desempenho,
ainda que de modo complementar, de função administrativa...”.
Seguindo esta linha de raciocínio, o TCU prolatou o seguinte aresto:
“8.2 - responder à interessada que a Lei nº 9.784/99, que regula o
processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, não
tem aplicação obrigatória sobre os processos da competência deste
Tribunal de Contas, definida pelo artigo 71 da Constituição Federal, de
maneira que, em conseqüência, não cabe argüir acerca da inobservância
do artigo 54 da mencionada lei em apreciações de atos de concessão de
aposentadorias, reformas e pensões (artigo 71, inciso III, da C.F.);”
No âmbito do Tribunal de Contas do Distrito Federal, a
aplicabilidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99 também já mereceu análise. Por
meio da Decisão nº 1.675/2003, o TCDF decidiu “considerar inaplicável o
artigo 54 da Lei Federal nº 9.784/99, recepcionada no Distrito Federal
pela de nº 2.834/01, para obstar o exercício do controle externo a cargo do
Tribunal de Contas do Distrito Federal...”.
No âmbito do Poder Judiciário, há arestos do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal no sentido da aplicação do art. 54 aos processos julgados
pelo TCDF.
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É de notar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, no Mandado de
Segurança nº 23.550-1, manifestou-se pela aplicação subsidiária da Lei nº
9.784/99 ao TCU nos seguintes termos:
“...de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de
Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo
federal (L. 9.784/99)...”.
Recentemente, decisão do TCU foi atacada por meio de Mandado de
Segurança (nº 24.495-0). Alegou a impetrante que a decisão do TCU havia
desrespeitado o prazo decadencial estabelecido no art. 54 da Lei nº
9.784/99.
A Relatora do Mandado de Segurança, Ministra Ellen Gracie,
indeferiu a concessão da medida liminar. Afirmou a Ministra: “Em prévio
exame, entendo que as informações apontam no sentido da correção do ato
atacado e da não ocorrência do prazo decadencial.”.
É importante frisar que, malgrado o TCU tenha posicionado-se pela
não aplicação do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos processos submetidos ao
seu julgamento, o Princípio da Segurança Jurídica — que é de onde deflui
este artigo — é explicitamente contemplado na Lei nº 8.443/92 em seu
artigo 35, o qual prevê o Recurso de Revisão.
Tal artigo dispõe que é possível a interposição, ao Plenário, de
Recurso de Revisão contra decisão definitiva. Esta interposição, da qual
não decorre efeito suspensivo, é cabível uma só vez, pelo responsável, seus
sucessores, ou pelo Ministério Público junto ao TCU, dentro do prazo de
cinco anos, nas seguintes hipóteses:
erro de cálculo nas contas;
falsidade ou insuficiência de documentos em que se tenha
fundamentado a decisão recorrida;
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superveniência de documentos novos com eficácia sobre a prova
produzida.
O Recurso de Revisão, cabível nos processos de prestação de contas
ou tomada de contas, mesmo especial, possui natureza similar à da ação
rescisória, consoante o art. 288 do Regimento Interno do TCU.
O Recurso de Revisão, vale notar, acaba por inserir, nos processos
afetos à jurisdição do TCU, o Princípio da Segurança Jurídica em um
contexto procedimental. Diferentemente ocorreria caso houvesse a
aplicação do art. 54 da Lei nº 9.784/99 aos processos desta Corte, o que, na
verdade, far-se-ia à luz de uma perspectiva estanque, destoante, por certo,
da moderna tendência de procedimentalização do Direito Administrativo.
A existência do Recurso de Revisão é capaz de solucionar, de modo
razoável, a questão da aplicação do art. 54 da 9.784/99 aos processos em
que há julgamento de contas.
No entanto, o Recurso de Revisão não é aplicável aos processo em
que o TCU aprecia, para fins de registro, os atos de admissão de pessoal e
de concessão de aposentadorias, reformas e pensões. Estes processos são,
justamente, os que apresentam maior questionamento quanto à aplicação do
art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Tal questionamento, vale dizer, não ocorre por acaso. O
procedimento pelo qual o TCU julga contas diferencia-se, sobremaneira, do
procedimento administrativo típico. É, de fato, um procedimento especial,
onde o interessado é chamado a interagir no âmbito do TCU, seja por meio
de citação, seja por meio de audiência. Já o procedimento pelo qual o TCU
aprecia atos de admissão e de concessão apresenta menor grau de
peculiaridade em relação ao processo de julgamento das contas, eis que se
aproxima, de certo modo, do processo administrativo comum. Se é possível
afirmar, com bom grau de certeza, que o art. 54 da Lei nº 9.784 não se
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aplica ao julgamento dos processos de contas — mormente pela existência
do Recurso de Revisão — , o mesmo não pode se fazer em relação à
aplicação deste dispositivo aos processos de admissão e concessão. A
aplicação a estes processos, sem dúvida, merece as mais profundas
reflexões, tanto por parte dos órgãos de Controle Externo quanto parte do
Poder Judiciário. É, por certo, matéria tormentosa.
VII. Conclusão
O Direito Administrativo, nascido da necessidade de se regular o
Estado no desempenho de suas funções administrativas, passa,
inegavelmente, por um processo de transformação, decorrente, em boa
parte, do advento do Estado Social e de sua transformação a partir do
reaquecimento das idéias liberais.
A profusão de direitos subjetivos surgidos com o Estado Social fez
com o Poder Público devesse intervir em uma diversidade de subsistemas
sociais com o intuito de garantir tais direitos ou de criar condições
propícias para que outros agentes possam fazê-lo.
A regulação necessária ao atingimento deste mister não pode ser
realizada apenas com supedâneo na pulverização das normas de direito
substantivo. Isto é inviável. Não há como pretender penetrar — de forma
responsável e consciente — em todas as searas acorbertadas pelo manto
regulatório do Poder Público sem que se utilize o procedimento
administrativo, que é o meio mais eficiente de se trazer o particular para
dentro do processo decisório.
A necessidade de procedimentalização brota, também, da
imperiosidade de se mitigar as frustrações dos titulares de direitos
subjetivos, as quais nunca foram tão grandes, em virtude da multiplicação
das expectativas criadas pelo Estado Social.
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Como conseqüência desta procedimentalização, surge a necessidade
de que os agentes públicos estejam aptos a interagir com os subsistemas
sociais que agora — sob a perspectiva de um movimento contracircular —
participam mais ativamente da gestão administrativa. Isto implica, para a
Administração — mormente na definição de conceitos imprecisos
colocados em normas substantivas —, uma utilização maior de seu Poder
Discricionário, o que, inevitavelmente, significa agir com ponderação,
sempre com o intuito de encontrar a melhor solução situada nos limites da
lei.