parnaso de alem tumolo
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BENEDITO FERNANDO PEREIRA
PSICOGRAFIA E AUTORIA: Um estudo estilstico-discursivo em Parnaso de alm-tmulo
UNIVERSIDADE DO VALE DO SAPUCA POUSO ALEGRE 2008
BENEDITO FERNANDO PEREIRA
PSICOGRAFIA E AUTORIA: Um estudo estilstico-discursivo em Parnaso de alm-tmulo
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao curso de Letras da Universidade do Vale do Sapuca, como requisito parcial para a obteno do grau de Licenciado em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Teixeira Martins
UNIVERSIDADE DO VALE DO SAPUCA POUSO ALEGRE 2008
BENEDITO FERNANDO PEREIRA
PSICOGRAFIA E AUTORIA: Um estudo estilstico-discursivo em Parnaso de alm-tmuloTrabalho de Concluso de Curso defendido em 04 de fevereiro de 2009, e aprovado pela banca examinadora constituda pelos professores:
Prof. Dr. Ronaldo Teixeira Martins Orientador
Prof. Dr. Mrian dos Santos Examinadora
Agradeo e dedico este trabalho Ao Grande Arquiteto do Universo, Senhor de todas as coisas; aos professores do Curso de Letras, pelos valiosos ensinamentos que me possibilitaram compreender melhor a linguagem; aos colegas, parceiros na amizade e na construo do conhecimento; aos professores Ronaldo e Mrian, sem os quais esta realizao no seria possvel.
Que importa quem fala, disse algum, que importa quem fala? Samuel Beckett
PEREIRA, Benedito Fernando. Psicografia e autoria: um estudo estilstico-discursivo em Parnaso de alm-tmulo. 2008. Trabalho de concluso de curso Curso de Letras, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Eugnio Pacelli. Universidade do Vale do Sapuca, Pouso Alegre, 2008.
RESUMO
O espiritismo brasileiro estabeleceu um tipo de literatura peculiar, de grande aceitao pelo pblico, mesmo pelos no adeptos doutrina de Kardec: a literatura psicogrfica. Marco inicial deste fenmeno foi a publicao da antologia medinica Parnaso de alm-tmulo, em 1932, pelo mdium Chico Xavier, livro que rene poemas atribudos a 56 poetas nacionais e estrangeiros. A coletnea causou polmica nos meios intelectuais do pas devido questo autoral que encerra: seriam efetivamente os poemas dos autores que os assinaram? Esta questo interessante no mbito dos estudos literrios e discursivos devido aos aspectos ticos, ideolgicos e legais que representa. Atentos a esse fato e ao quase descaso do meio acadmico pelo assunto, nos propusemos analisar a seo atribuda a Olavo Bilac na referida coletnea, tomando como base estudos crticos da sua obra e conceitos da Anlise de Discurso, na busca da configurao autoral dos textos medinicos. Primeiramente foi realizado um cotejo entre os 10 sonetos medinicos e poemas escritos em vida pelo poeta, no qual procuramos verificar a existncia ou no de correspondncia estilstica entre os textos. Em seguida, fizemos uma anlise discursiva dos sonetos, na qual observamos pontos de intertextualidade entre a mediunidade e a obra de Bilac. Os dados obtidos apontam para uma grande proximidade estilstica entre os textos, o que sugere identidade autoral. Contudo, verificou-se que o discurso do autor espiritual afasta-se em alguns pontos do discurso de Bilac, o que se deve ideologia esprita veiculada pelo Parnaso e que faz dele um livro de persuaso. Palavras-chave: Literatura comparada. Psicografia e autoria. Poesia medinica. Parnaso de alm-tmulo e discurso.
ABSTRACTThe Brazilian Spiritism has established a peculiar kind of literature, largely accepted by the public, even by those who are not adept to the Kardecs doctrine: the psychographic literature. This phenomenon got started in 1932 following the publication of the mediumistic anthology Parnaso de alm-tmulo, by the medium Chico Xavier. This book groups together poems that are attributed to 56 Brazilian and foreign poets. The mediumistic poems caused polemic in the intellectual environments of the country due to questions related to its authorship: were in fact the poems written by the authors who signed them? This problem is interesting for the literary and discursive studies in their ethic, ideological and legal aspects. Because of this and because this theme is almost ignored by the academic studies, we decided to discuss about it in this paper. Then, we proposed to analyze the section attributed to Olavo Bilac in the anthology based on critical studies about his work and some concepts from Discourse Analysis. This study aims to clear some aspects of the authorship of the mediumistic texts. So, first we made a comparison between the 10 mediumistic sonnets and those written by the living poet, in order to verify the existence or not of a stylistic correspondence between them. In sequence, we made an analysis of discourse of the sonnets, in which we observed some elements of intertextuality between the Bilacs work alive and dead. The data we collected showed that the stylistic features of the mediumistic text are very close to those used by Bilac when living. This fact points to an authorial coincidence of the poems. However, we verified that the discourse of the spiritual author stands back in some aspects from the Bilac one, what is explained by the spiritist ideology of Parnaso, whose discourse configures it as a persuasion book. Key-words: Compared Literature. Psychography and authorship. Mediumistic poetry. Parnassus Beyond the Tomb and discourse.
SUMRIO
1 2 2.1 2.2 3 4 5 5.1 5.2 5.2.1 5.2.2 5.2.3 5.2.4 6 6.1 6.1.1 6.1.2 6.1.3 6.1.4 6.1.5 6.2 6.3 6.3.1 6.3.2 6.3.3 6.3.4 6.3.5 6.4 6.5 6.6 6.7 7 7.1 7.2 8 9
INTRODUO A PRESENA DO FENMENO ESPRITA O espiritismo na academia Literatura e mediunidade AS ORIGENS DO AUTOR COMO SUJEITO DE DIREITO SUJEITO E AUTORIA: PRESSUPOSTOS TERICOS CHICO XAVIER X OLAVO BILAC Chico Xavier, o mdium Olavo Bilac, o poeta A poesia bilaquiana Bilac lrico e pico: primeira fase Bilac histrico-filosfico: segunda fase Caractersticas formais da potica bilaquiana ANLISE CONTRASTIVA: O ESTUDO DA FORMA O vocabulrio Do adjetivo Do verbo Do substantivo Do advrbio Preciosismo A mtrica O ritmo O ritmo na palavra O ritmo no verso O ritmo na estrofe O enjambement Direo do movimento rtmico A rima Figuras de efeitos sonoros Correo gramatical Figuras de linguagem O DISCURSO DE UM AUTOR ESPIRITUAL As condies de produo do Parnaso Olavo Bilac por Chico Xavier: ainda a mesma voz? INTERPRETAO DOS DADOS CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
8 11 11 15 18 25 32 32 39 41 44 47 48 50 51 51 52 53 54 55 57 62 63 64 66 69 71 74 79 83 84 90 90 93 106 110 112
1. INTRODUO
Iniciado na Frana com Allan Kardec, na segunda metade do sculo XIX, o Espiritismo chegou ao Brasil no incio do sculo XX, adaptou-se cultura local ganhando uma multido de adeptos e, em poucas dcadas, converteu nossa terra no maior pas esprita do mundo. Essa corrente filosfico-religiosa responsvel por uma vasta literatura que abrange praticamente todos os gneros literrios: contos, romances, poesias, cartas e obras de cunho filosfico, religioso e cientfico. Essa literatura sucesso de vendas no pas, e constitui um dos maiores files do mercado editorial nacional1. Destaca-se a, tanto pelo nmero de livros publicados (mais de 400) quanto pela quantidade de obras vendidas, o mdium mineiro Francisco Cndido Xavier, o Chico Xavier, falecido em 2002. A grande maioria das obras espritas escrita por pessoas que renegam a sua autoria, e atribuem essa produo literria a um outro sujeito, em geral, o esprito de um autor j falecido. O processo pelo qual se escrevem as obras, conhecido como psicografia, assemelhase a um ditado: um sujeito-autor dita o texto, um outro anota o ditado. Outras vezes, as obras so escritas com o mdium em transe. Em ambos os casos, cabe pessoa que recebe a mensagem apenas o papel de escrevente mecnico, de medianeiro entre as esferas material e espiritual, sem participao intelectual na criao dos significados. Desse modo, a autoria do texto acabado no pode ser dada a quem o colocou no papel, mas a quem o produziu efetivamente. Ora, todo texto traduz um discurso e mostra um estilo que refletem a sua autoria, o sujeito que efetivamente o criou. Essa autoria pode ser, ento, identificada por meio de uma anlise textual cuidadosa que lance mo de ferramentas adequadas para tal, e que leve em considerao a questo contextual de produo da enunciao. No caso da produo literria de carter medinico, temos de considerar,A literatura esprita o mais novo fenmeno editorial no pas. Embora a Federao Esprita Brasileira conte apenas oito milhes de adeptos da doutrina, estima-se que 20 milhes de brasileiros comunguem de alguma forma das idias de Allan Kardec. Nos ltimos dez anos, o mercado editorial brasileiro cresceu 75%. A venda de livros com vis espiritualista dobrou. Hoje, um em cada dez clientes entra em livrarias para comprar obras que trazem ditames enviados por espritos. (...) Com exceo de Zibia Gasparetto, os mdiuns no costumam embolsar direitos autorais. Na Lmen, que no nasceu de sociedades beneficentes, os autores costumam indicar a conta de entidades assistenciais para o depsito do lucro obtido com a venda dos livros. O campeo de todos eles, o baiano Divaldo Pereira Franco, de 76 anos, lanou no incio de maio [de 2003] seu 186 ttulo. Com o lpis na mo, em transe, registra o que as entidades lhe contam por at 20 horas por dia. Consegue fazer um livro em trs semanas. Afirma ter psicografado 160 espritos diferentes. Entre eles, Victor Hugo, que lhe teria ditado oito obras. J vendeu 7,5 milhes de exemplares longe das grandes livrarias, mas vive dos rendimentos como funcionrio pblico aposentado. Em meio sculo de carreira poderia ter embolsado R$10 milhes em direitos autorais. Doou tudo a uma creche. (POCA, 2003).1
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sobretudo, a peculiaridade do contexto de produo dos textos ao procurarmos identificar a sua autoria. Neste tipo de produo de texto, h fatores particulares que podem fazer a diferena no momento de se analisar o contedo, o estilo e o discurso: por exemplo, no ser o texto psicografado uma espcie de traduo feita pelo mdium (ainda que inconscientemente) de um original de autor e, por isso, incorra no apagamento da voz do intermedirio (como tradutor), tpica do que ocorre nos processos de traduo e que garante a confiabilidade do texto aos olhos do leitor? Neste caso, restariam resduos da individualidade do sujeito-escritor falando no texto psicografado por meio do discurso, e misturando-se com o discurso e com o estilo do sujeito-autor? O que se espera da enunciao de um sujeito-autordefunto, ou seja, de algum que passou pela experincia da morte? O transe da morte afetaria esse sujeito em seu estilo? E em seu discurso? Qual relao intertextual pode ser estabelecida entre a produo literria de um autor realizada em vida e a realizada aps a morte? Essa segunda produo pode ser considerada como parte da obra do autor? Tratar o assunto da psicografia, especialmente as atribudas a nomes consagrados da literatura, mostra-se particularmente interessante, principalmente numa sociedade como a nossa, que tanto valoriza a questo da autoria, mormente do ponto de vista jurdico. Este trabalho mostra-se relevante ainda para a Teoria da Literatura, sobretudo no que diz respeito ao pastiche, ao plgio e teoria da traduo. Assim, com o objetivo de discutir essas questes inerentes produo literria medinica, mais especificamente a configurao autoral, foi feita uma anlise estilsticodiscursiva em 10 sonetos psicografados por Chico Xavier e atribudos ao poeta Olavo Bilac, publicados na coletnea de poemas medinicos Parnaso de alm-tmulo, em 1935.2 Esse poeta foi escolhido por apresentar um bom nmero de poemas na obra medinica passveis de comparao com textos seus publicados e analisados em vida. Alm disso, relativamente abundante a crtica das obras do autor disponvel no mercado, o que facilitou sobremaneira a pesquisa. A anlise baseou-se em elementos da Anlise do Discurso e da Teoria Literria, em especial, da Estilstica, aplicados no cotejo entre os referidos poemas na busca da identidade autoral. Este trabalho est estruturado do seguinte modo: primeiramente, faz-se um breve comentrio sobre a relevncia de se tratar esse tipo de tema em ambiente universitrio e traase um pequeno histrico das relaes existentes entre a mediunidade psicogrfica e a Literatura em todos os tempos. No terceiro captulo procuramos mostrar como a noo deO Parnaso de alm-tmulo foi publicado em 1932, sendo aumentado e reajustado nas sucessivas reedies. Poemas atribudos a Olavo Bilac comeam a aparecer na coletnea somente a partir da segunda edio, de 1935.2
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autor foi-se constituindo ao longo do tempo e ganhou a importncia que tem hoje em nossa sociedade. No captulo seguinte, so apresentadas as noes bsicas sobre sujeito e autoria, segundo a Anlise de Discurso, que serviram de base para nosso estudo. No captulo cinco passamos a discutir mais de perto o nosso tema, apresentando os sujeitos em questo nos textos a serem analisados: Chico Xavier e Olavo Bilac. O captulo seguinte dedicado inteiramente ao cotejo entre os poemas de Bilac e os a ele atribudos por Chico Xavier, na busca de correspondncias entre a composio dos sonetos em seus aspectos formais. No captulo sete, faz-se uma anlise dos poemas do ponto de vista discursivo, observando os objetivos do livro Parnaso de alm-tmulo e seu contexto de produo. Em seguida, fazemos a interpretao dos dados das anlises realizadas anteriormente. Logo depois, o trabalho encerrado com as concluses que se puderam depreender do estudo realizado.
2. A PRESENA DO FENMENO ESPRITA
2.1 O espiritismo na academia O Espiritismo surgiu em meados do sculo XIX na Frana, influenciado pelo positivismo reinante na Europa de ento, como uma proposta de naturalizao do alm: este seria, tambm, um objeto para a investigao cientfica, definvel e quantificvel pelo mtodo experimental. Foi, em outros termos, uma proposta de unio da religio com a cincia, baseada no estudo cientfico dos fenmenos ditos paranormais, muito em voga na ento. O meio cientfico da poca, por estar ainda em formao, procurava firmar-se nas sociedades europias e tinha um forte componente anticlerical em sua constituio. Assim, a busca pelo desconhecido e o apelo razo em detrimento da revelao nos moldes religiosos, eram pontos em comum entre os cientistas e o kardecismo nascente. O filsofo e antroplogo Lewgoy (2006, p. 157) nos informa queO espiritismo de Kardec nasce envolto no ethos secular e anticlerical na Frana de Napoleo III, onde a cincia um smbolo iluminista e uma bandeira instituinte dos movimentos progressistas e laicos das mais variadas matizes polticas, como socialistas, maons e espritas. No ainda plenamente cristalizado, o campo cientfico da poca tem um breve flerte com aliados de um horizonte ideolgico cientificista ainda em expanso, no qual a pesquisa psi parecia coadunar-se com uma srie de expectativas que remontavam crtica iluminista religio e a crena nos poderes libertadores da cincia e da razo. De fato, o sculo XIX tem uma aguda conscincia do desconhecido como fenmeno tangvel, material e pesquisvel, evocvel por desbravadores, cientistas e literatos, que viam nesse contato o desbravamento da ltima fronteira cientfica.
Assim, muitos cientistas, literatos e filsofos famosos da poca se interessaram pelo espiritismo e tornaram-no objeto de vrias de suas pesquisas. Nomes como William Crookes, Camille Flammarion, Charles Richet (Nobel de Medicina), Paul Gibier, Csar Lombroso, entre outros, tiveram participao ativa como investigadores de fenmenos psquicos, e se tornaram referncias cientficas no mundo esprita (LEWGOY, 2006). Com o tempo, porm, recrudesce a crtica dos opositores tentativa de unio entre cincia e religio (notadamente a Igreja, mas no s), que pretendia validar a verdade cientfica no lugar da verdade religiosa. Deste embate de foras, o espiritismo fez valer mais o seu aspecto religioso que o cientfico, sobretudo ao chegar ao Brasil no final do sculo XIX (LEWGOY, 2006, p. 165). As pretenses cientficas do espiritismo seriam a base da Parapsicologia, rea que, uma vez dissociada do movimento esprita, curiosamente, seria
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amplamente utilizada pela Igreja Catlica na refutao dos pressupostos espritas ao longo do sculo XX. Chegando ao Brasil, o espiritismo despertou o interesse, inicialmente, dos grupos literrios, sendo intensamente estudado e vivenciado em sesses particulares por grandes nomes da nossa literatura, como Artur Azevedo, Rui Barbosa, Monteiro Lobato e Menotti del Picchia, entre outros (RIZZINI, 1992). Mas em nossa terra, a doutrina adquiriu, desde o incio, uma feio religiosa muito mais forte do que a que tinha na Frana. Esse aspecto, segundo Almeida (2000, p. 34), deve-se, em parte, ao substrato religioso de cunho animista j existente no pas, trazido pelos africanos durante a escravido, as religies afro-brasileiras: a invocao dos mortos, praticada nas senzalas ao ar livre, agora estava sendo sacramentada pelos espritas e ameaava invadir a casa grande. Assim, o espiritismo foi, no incio, uma religio de elite no Brasil. Naturalmente, isso provocou a indignao e a reao da Igreja. Outra fora que se posicionou contra o espiritismo no Brasil, por essa poca, foi a Psicologia, ento em fase de implantao e validao de seus pressupostos no pas (ALMEIDA, 2007). Os psicanalistas e psiclogos passaram a ver e a tratar o fenmeno esprita (propriamente a mediunidade) como histeria e a religio como causadora de casos de loucura (LEWGOY, 2006). O debate se estendeu por toda a primeira metade do sculo XX e resultou no banimento da fenomenologia esprita da Academia, relegando-a Parapsicologia (considerada como pseudo-cincia), e a mediunidade passou a ser vista como caso de esquizofrenia pela classe mdica. Almeida (2007, p. 3-4) nos d mais detalhes do assunto:No Brasil da primeira metade do sculo XX, tanto a Psiquiatria como o Espiritismo estavam em busca de legitimao, de seu espao cultural, cientfico e institucional dentro da sociedade brasileira. Estes dois atores sociais estavam ligados s classes urbanas intelectualizadas e defendiam diferentes vises e abordagens teraputicas relacionadas questo da mente e da loucura. Ambos disputavam um mesmo espao no campo cientfico, cultural, social e institucional, buscando a afirmao da prpria legitimidade. Este conflito se manifestou atravs de constantes embates entre psiquiatras e espritas. Os mdicos publicaram teses, artigos e livros no mbito acadmico sobre a "loucura esprita" e a necessidade de combat-la atravs do controle governamental sobre os centros espritas, proibio da divulgao do Espiritismo, combate ao charlatanismo supostamente praticado por mdiuns, tratamento e internao dos mdiuns, considerados graves doentes mentais. Os espritas tambm publicaram livros, escreveram artigos em peridicos espritas, produziram uma tese em medicina (que foi reprovada) e fundaram hospitais psiquitricos espritas. Os espritas, alm de negarem ser a mediunidade uma forma ou causa de loucura, defendiam o Espiritismo e criticavam a Psiquiatria por sua limitada eficcia e por no considerar as possveis causas espirituais no tratamento da loucura. Este embate atingiu tambm a imprensa leiga, gerando um grande nmero de matrias sobre o tema em jornais de ampla circulao. A resoluo deste conflito se relaciona com o alcance de insero e de legitimao social pelos dois grupos, mas em campos diferentes. A Psiquiatria conquistou o seu
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espao majoritariamente no meio mdico-acadmico, enquanto o Espiritismo se legitimou basicamente dentro do campo religioso. Entretanto, as representaes sobre a doena mental junto sociedade brasileira apresentam influncias dos dois grupos. Grande parte da populao busca tratamentos espirituais complementares aos psiquitricos. As representaes psiquitricas e espritas sobre os transtornos mentais so muitas vezes vistas mais como complementares do que como antagnicas.
Na Europa houve, com o tempo, o desinteresse por parte da comunidade cientfica pela pesquisa psi, o que fez com que o espiritismo (que a procurava legitimar-se pela cincia) casse no esquecimento. No Brasil, o espiritismo se fixaria mais como religio do que como cincia, sobretudo aps o advento do mdium mineiro Chico Xavier nos anos de 1930. E est muito longe do esquecimento, como prova o sucesso de sua literatura no pas. Todos esses movimentos sociais que presidiram criao, expanso e implantao do espiritismo como movimento religioso so os responsveis histricos pelo seu afastamento do ambiente acadmico, quando fora do mbito da Teologia. A ponto de o prprio cientista passar, aqui, a ser visto como inimigo potencial da doutrina: quanto mais o espiritismo se popularizou no Brasil mais o cientista universitrio foi sendo suspeito de vaidade e materialismo e as referncias de sbios passam a ser cada vez mais buscadas nos pesquisadores do passado (LEWGOY, 2006, p. 163). Da o desconforto em tratar assuntos dessa natureza em ambiente universitrio atualmente. Alm disso, a Universidade brasileira, to jovem e to afeita a pensar conforme autores importados, como salienta Incontri (2003), costuma alienar alguns objetos de estudo, fazendo-os estranhos comunidade cientfica, como se o fossem tambm para a sociedade em que esto inseridos e legitimados:Mesmo quando o objeto o Brasil, os mtodos so importados, a ponto de antroplogos, socilogos, economistas brasileiros (exceo feita a alguns do quilate de Darcy Ribeiro ou Srgio Buarque de Holanda) olharem fenmenos de nosso pas com um olhar europeu ou americano, como se fssemos exticos para ns mesmos. O Espiritismo, mas tambm a Umbanda e o Candombl, entram nesse contexto, pois alguns estudos antropolgicos e sociolgicos a respeito assumem um discurso de distanciamento, como se tudo isso no fizesse parte da nossa cultura. Ou seja, aquilo que representativo entre ns s entra na universidade como objeto quase folclrico, nunca como voz representativa de um segmento. Um adepto do Candombl ou do Espiritismo far uma tese sobre os seus respectivos objetos, enquadrando-os numa cientificidade supostamente isenta, o que significa dizer, por exemplo, que os orixs ou os espritos so categorias do imaginrio.
A autora, doutora em Pedagogia pela USP, prope o estudo de temas ligados ao espiritismo na universidade, em vrias reas do conhecimento, como uma possibilidade de independncia acadmica, de contestao cientfica e de criao de parmetros
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genuinamente nacionais do pensar na cincia. Quem critica o estudo desses temas em ambiente universitrio, alegando no serem eles objetos de estudo acadmico, no est fazendo mais do que repetir o discurso cientificista j cristalizado e paralisado na instituio Universidade, e reflete uma viso acrtica em relao aos fundamentos e objetivos da prpria cincia. Ainda segundo Incontri (2003),Se os acadmicos espritas brasileiros compreenderem de fato a que vem o Espiritismo, percebero que o pensamento esprita, assumido como uma viso de mundo, um mtodo de conhecer e, portanto, um novo paradigma justamente uma possibilidade original de filosofar, de fazer histria ou cincia. E essa originalidade pode ser uma contribuio esprita cultura brasileira e, ao mesmo tempo, uma contribuio brasileira cultura internacional. [...] O Brasil atualmente o nico pas que pode fazer isso, se abdicarmos da colonizao intelectual, pois foi na Europa e nos EUA que os estudos espritas foram silenciados.
Alm disso, precisamos lembrar que negar, simplesmente, no uma atitude cientfica. Se no h provas cabais de que o fenmeno autntico, tambm no as h de que no seja. Desse modo, temos visto alguns trabalhos realizados nos ltimos anos, que abordam a temtica esprita sob diversos ngulos e em diversas reas do saber: na rea de Letras (Teoria Literria e Lingstica), temos as teses de mestrado (2001) e doutorado (2008) de Alexandre Caroli Rocha, que analisa a psicografia de Chico Xavier no Parnaso de almtmulo e no caso Humberto de Campos (UNICAMP); Thais M. Chinellato, que estuda em sua tese de mestrado (USP 1993) romances psicografados e atribudos a John Wilmot Rochester; ngela Maria de O. Lignani, que em seu mestrado (UFMG 2000), estuda o romance H dois mil anos..., psicografado por Chico Xavier e atribudo a Emmanuel. Nas reas da Pedagogia e da Filosofia, temos o trabalho de doutorado de Dora Alice Colombo (USP 2001), que discute os pressupostos filosficos da pedagogia esprita no Brasil, e o trabalho de mestrado (UNICAMP 2006) de Alessandro C. Bigheto, que analisa a obra pedaggica esprita de Eurpedes Barsanulfo. Na rea das Cincias da Religio, temos a tese de mestrado de Carlos A. T. Morini (PUC 2007), que estuda a influncia dos estmulos somato-sensoriais na induo do transe medinico; Adilson R. do Amaral trabalha em seu mestrado (PUC 2006) a histria, memria e permanncia do Terreiro de So Domingos; na rea de Histria, temos as teses de Anglica A. S. Almeida, que em seu mestrado (UNICAMP 2000) estuda a histria do espiritismo em Trs Rios, e no doutorado (UNICAMP 2007), trabalha a relao da Psiquiatria com o espiritismo no Brasil. Alm desses, vrios outros trabalhos, em outras reas, poderiam ser citados ainda.
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Assim, tambm ns procuramos fazer de nosso trabalho um estudo pautado por uma viso mais abrangente dos fenmenos sociais e culturais peculiares a nossa sociedade, e j constituintes e representativos dela: o espiritismo e o fenmeno da psicografia esto difundidos por todo o pas e, acreditamos, merecem estudos srios que levantem dados que nos permitam uma melhor compreenso do seu processo de construo e de significao em nosso meio.
2.2 Literatura e mediunidade A Histria universal nos mostra que fenmenos paranormais sempre estiveram ligados odissia humana neste mundo, desde a mais remota Antiguidade. o caso, por exemplo, de Joana dArc, herona da Guerra dos Cem Anos, que afirmava ouvir vozes que lhe diziam como proceder para tirar a cidade de Orleans do domnio ingls. Tambm o filsofo Schopenhauer era atormentado por vises e alheamentos durante os quais produzia sem o saber; chegou at a escrever um ensaio sobre o assunto no qual afirma: meus postulados filosficos produziram-se em mim sem que eu nisso interviesse, nos momentos em que tinha a vontade como que adormecida... Minha pessoa era tambm, por assim dizer, estranha obra (apud RIZZINI, 1992, p. 21). Descartes, segundo seu bigrafo Briere de Boismont, ao cabo de longo repouso era instado por invisvel pessoa para continuar com as pesquisas da verdade (ibidem, p. 21). O mesmo ocorria com Scrates (ibidem, p. 20). Entre os polticos famosos, temos os casos de George Washington, que era mdium vidente e ouvinte; Lincoln, Eisenhower e Roosevelt promoviam sesses medinicas em plena Casa Branca e delas participavam com interesse (ibidem, p. 21). O professor de Histria Antiga, Dr. Vicente Dobroruka, em excelente artigo que faz parte de sua tese doutoral em Oxford, analisa casos evidentes de psicografia em textos sagrados da tradio judaico-crist no perodo do Segundo Templo. O autor nos mostra, inclusive, a naturalidade com que essa prtica ocorria na Antiguidade judaica:A idia de um autor mecnico escrevendo algo que lhe ditado ou que ele enxerga diante de si est intimamente ligada idia de possesso, embora no seja indissocivel da mesma, e esta era familiar aos judeus do perodo do Segundo Templo. Casos de possesso so narrados com freqncia no NT [Novo Testamento], em Josefo e na literatura rabnica. Flon, ao comentar o carter sagrado da traduo grega do texto hebraico [Antigo Testamento, cuja traduo resultou na Septuaginta], v o processo de traduo e de legitimao tcnica, por assim dizer, da mesma em termos sobrenaturais. Ele afirma que, aps cada sbio judeu ter sido trancado separadamente para executar a
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traduo, cada um produziu um texto exatamente igual ao de seu colega. (DOBRORUKA, 2007, p. 2).
No mbito da literatura, nosso foco imediato, temos a presena do sobrenatural em casos como o de Victor Hugo, que era esprita convicto e praticante; Conan Doyle, criador do famoso personagem Sherlock Homes, que era estudioso de espiritismo e chegou a escrever uma obra tratando do assunto; Balzac, que se dizia mdium curador; Musset, que via e ouvia espritos e caia em transe freqentemente; Leon Tolstoi, que costumava freqentar sesses de espiritismo; Oscar Wilde, que estudou espiritismo para escrever O Fantasma de Canterville; Beecher-Stowe, que chegou a declarar que seu famoso romance A Cabana do Pai Toms, era obra medinica, e no de sua criao intelectual. (RIZZINI, 1992; BOZZANO, 1998). Muitos outros casos poderiam ser citados ainda, especialmente no sculo XIX, quando surgiu o espiritismo e, com ele, a promessa de compreenso cientfica dos fenmenos. Sobre a presena da onda esprita na literatura europia e americana da poca, Anatole France, um ctico, na Revue Lustre, em 1890, disse:[...] um certo conhecimento das Cincias Ocultas tornou-se necessrio para a compreenso de certas obras literrias do perodo. A magia ocupou um lugar importante na imaginao de nossos poetas e romancistas. A fascinao pelo invisvel se apoderou deles; a idia do desconhecido os perseguiu e o tempo voltou a Apuleio e Flegon de Tales. (apud MERCIER, 1969).
Ao longo do sculo XX, veramos surgir no Brasil uma literatura tambm marcada pela temtica espiritualista, no somente aquela prpria da doutrina esprita (psicografada ou no), mas tambm de literatura convencional. o caso, por exemplo, de Monteiro Lobato, que era esprita assumido, e cujas convices ficaram marcadas em sua obra; e de Augusto dos Anjos que, segundo Ademar Vidal (apud RIZZINI, 1992, p. 218), participava de sesses medinicas no Engenho Pau dArco, onde nasceu, nas quais era mdium psicgrafo. At mesmo Guimares Rosa, que em um artigo publicado no jornal O Estado de Minas, em 26 de novembro de 1967, se confessava mdium de vrios tipos de mediunidades, ainda que a contragosto:Tenho de segredar que, embora por formao ou ndole oponha escrpulo crtico a fenmenos paranormais e em princpio rechace a experimentao metapsquica, minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gnero de fatos. Sonhos premonitrios, telepatia, intuies, sries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. [...] No plano da arte e criao, j de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistrio e equivalente s vezes quase reza, decerto se propem mais essas manifestaes. Talvez seja correto eu confessar como tem
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sido que as estrias que apanho diferem entre si no modo de surgir. A Buriti (NOITES DO SETO), por exemplo, quase inteira, assisti, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sbado, substituindo-se a penosa verso diversa, apenas tambm sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do rio (PRIMEIRAS ESTRIAS) veio-me na rua, em inspirao pronta e brusca, to de fora, que instintivamente levantei as mos para peg-la, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. [...] Quanto ao GRANDE SERTO: VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido por foras ou corrente muito estranhas. [...] Tudo isso verdade. Dobremos de silncio. (apud RIZZINI, 1992, p. 203-204).
Assim, seja como mdiuns (crentes ou no), ou como interessados no assunto, muitos literatos trabalharam, e muitos continuam trabalhando, com a espiritualidade (ou por meio dela) at nossos dias. Esse fato, aliado ao interesse que o tema desperta no grande pblico, mesmo que no adepto do espiritismo, e que faz do gnero um dos mais lidos do pas, tambm justifica tratarmos o assunto mais acuradamente. Se observarmos a literatura esprita, especificamente a produzida por meio da psicografia, nos deparamos de imediato com uma questo fundamental concernente a esse tipo de texto, tanto para o espiritismo como doutrina, como para a Teoria da Literatura e para a Anlise de Discurso (doravante AD), como reas do saber dedicadas ao estudo de textos: o problema da autoria. Para o espiritismo, a autoria da mensagem importante para a validao de seu contedo aos olhos dos fiis, de modo que a assinatura confere ao texto quase que um carter de infalibilidade (DI LUCIA, 2005). Para as reas de estudo de texto, esse tipo de literatura apresenta aspectos de interesse para a investigao, tais como a questo do estilo e do discurso que compem a enunciao e que configuram um sujeito como o autor do texto. Hoje, no contexto social em que vivemos, falar de autoria no significa falar somente da autoridade que essa noo confere a uma obra, mas ela est implcita na prpria noo de obra: atribuir a um determinado sujeito um texto significa inserir este texto no conjunto que constitui a sua obra, e que confere a esse sujeito, alm de uma AUTORIDADE do dizer, uma RESPONSABILIDADE pelo que diz. Neste sentido, a obra, considerada como produto intelecto-material, reflete esse sujeito e confere-lhe direitos e deveres aos olhos da lei. Mas, nem sempre a autoria teve a importncia que tem atualmente. Como se deu a formao histrica da noo de sujeito-autor nesses moldes? O que seria, de acordo com as modernas concepes da AD, um autor? Onde est o autor no texto? Como podemos recuper-lo? Nos captulos seguintes, procuraremos esclarecer estas questes e relacion-las com o caso da psicografia.
3. AS ORIGENS DO AUTOR COMO SUJEITO DE DIREITO
Neste captulo, partindo de conceitos bsicos da AD, quais sejam a opacidade e a incompletude da linguagem, a questo da interpretao, da autoria e do silncio, buscaremos mostrar os aspectos sociais e as circunstncias histricas que deram origem noo de autor como sujeito de direito, que temos em nossos dias. De incio, podemos dizer que as palavras no so neutras, elas carregam valores e conceitos que so variveis no tempo (ORLANDI, 2007). Isso significa que a lngua determinada historicamente: o sentido sempre pode ser outro, dependendo do contexto sciohistrico de produo da enunciao e de sua interpretao. Essa espessura da linguagem a razo da opacidade do discurso. Orlandi (2007, p. 52) diz que a condio da linguagem a incompletude, sendo que nem sujeitos, nem sentidos esto completos, mas se constituem ao mesmo tempo. Em decorrncia disso, os sujeitos so sempre levados a interpretar. A interpretao inerente linguagem, sendo, assim como ela, simblica. Mas o processo de significao, embora seja aberto, no livre. Por um lado, ocorre que nem todos esto em condies de interpretar, nem todos podem, dentro das injunes sociais em que se encontram, significar e fazer significar. Por outro lado, no tudo que se pode dizer segundo o contexto. Essas caractersticas da linguagem tm implicaes tremendas na questo da autoria, tanto em seu aspecto lingstico quanto jurdico. Hoje se d muita importncia autoria, mas se voltarmos no tempo e observarmos como a questo autoral e o movimento interpretativo eram vividos no passado, nos daremos conta de que nem sempre foi assim. Sujeitos e discursos se movem na histria, nunca sendo os mesmos em pocas diferentes. Na Idade Mdia, por exemplo, tnhamos um sujeito religioso, seguidor apenas das leis de Deus, ou mais precisamente, da Igreja. Toda a organizao social era justificada pela vontade divina e o texto que regulamentava esse sistema era a Bblia. A pena pela desobedincia ao sistema era a danao eterna, a perda da alma. Neste momento da histria, era a Igreja a detentora nica do poder de interpretar os textos sagrados: apenas a sua voz valia. Por essa poca, o chamado argumento de autoridade era a forma de validao dos sentidos mais comumente usada. Rodriguez (2002) nos informa que argumento de autoridade aquele em que se utiliza da lio de pessoa conhecida e reconhecida em determinada rea do saber para corroborar a tese do argumentante. Assim, o argumento de autoridade, que teve incio na Antigidade Clssica,
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alcanou seu apogeu no perodo medieval, notadamente no perodo conhecido como Escolstica (sc. XII d.C.). Nesse tempo, a frmula Aristteles disse encerrava qualquer debate: no se permitia questionar as afirmaes do filosofo grego, nem reinterpret-las. Pelo menos, no a todos. Para Foucault (1992, p. 49), formas como essa no eram, a rigor, frmulas de um argumento de autoridade; eram indcios que assinalavam os discursos destinados a serem recebidos como provados. Targino (2005) nos informa do poder dos monges copistas daquele tempo, que, com freqncia, alteravam os textos que copiavam e, num gesto de re-significao, de reinterpretao, se tornavam co-autores das obras. Essas alteraes so, basicamente, uma re-fixao de sentido. Oficialmente, porm, como se tratava de texto revelado, a autoria era atribuda somente a Deus. J no fim da Idade Mdia, temos um mundo marcado pela tenso entre f e razo que faz surgir uma nova sociedade: surgem novas ideologias e, conseqentemente, novos discursos e novos sujeitos. A expanso econmica provocada pelas Grandes Navegaes e o abalo das bases religiosas medievais ocorrida na Reforma Protestante, marcam profundamente o homem do tempo e comeam a plasmar uma nova forma-sujeito. ento que a religio substituda pelo Direito: ao sujeito medieval que se submetia religio, sobrepe-se o sujeito de direito, que se submete s leis. O cdigo de leis no mais a Bblia, mas a Constituio; os indivduos no tm mais que obedecer Igreja, mas ao Estado, e no so mais os padres os senhores da interpretao, mas os juristas e advogados. Nesse tempo (sculo XV), o alemo Gutenberg inventou a imprensa e, com isso, provocou uma revoluo da escrita e da leitura sem precedentes. Surgiu uma nova concepo de autor, na medida em que estes passaram a assumir suas obras e tirar lucro delas, o que no ocorrera at ento. Ainda Targino (2005, p. 2):No entanto, a escrita e a tipografia impem uma nova concepo de autor na Idade Moderna, graas ao nvel vertiginoso da especializao do conhecimento humano, dando lugar diviso de trabalho e segmentao de atividades. Como decorrncia, os autores profanos assumem a criao. Mas o fazem, quase sempre, individualmente. Sua obra, literria, artstica ou cientfica, , antes de tudo, a propagao do seu eu, o que demanda unidade estilstica, coerncia conceptual e originalidade, mas lhe confere status, prestgio, poder e, sobretudo, autoridade. o autor-deus! o refro de outrora: est escrito, e como tal, incontestvel e imaculado!
Isso tambm fez com que os autores, agora escrevendo com relativa liberdade (sujeitos-autores senhores do dizer e do interpretar, os autores-deuses), preocupassem os governantes, uma vez que suas obras tinham o poder de movimentar as multides e faz-las insurgir-se contra o Estado. Neste sentido, Foucault (1992) coloca que, historicamente, as
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obras passam a ter autor somente quando se tornam transgressoras, e, por isso, passveis de punio. Alm disso, por esse tempo, as publicaes passaram a ser mercadorias de compra e venda, tendo tambm um valor monetrio e no somente artstico ou filosfico. Sua propriedade ou apropriao passou, ento, por esses dois motivos principais, a constituir um problema de ordem legal. Segundo Christofe (1996, p. 87),Antes da imprensa, as violaes do que viriam a ser os direitos do autor consistiam basicamente no plgio. Furtava-se a produo alheia, para obter prestgio e glria. Nas relaes que envolviam o escritor e sua obra, no havia interesses econmicos, e plagiar, embora eticamente condenvel, no era problema legal. Os governantes comearam a se preocupar com a produo escrita quando perceberam que, na difuso das obras, gerada pelo desenvolvimento da imprensa, havia uma fora social e poltica capaz de abalar qualquer poder. Surgiram, assim, os privilgios concedidos pelos governantes aos editores, com o objetivo de efetivar a censura das idias, por razes de ordem poltica ou religiosa. Tais privilgios constituram a primeira forma de interveno do poder pblico sobre as atividades e editorao e publicao.
nesse momento que verificamos, pela primeira vez, a interdio do dizer, o silenciamento imposto pelo Estado ao sujeito. Christofe (1996) nos informa, ainda, que, em seguida, procurou-se resguardar os interesses econmicos dos editores em relao a outros editores. Os autores, neste primeiro momento, no eram favorecidos por direito algum, at mesmo porque os editores estavam mais interessados nos clssicos antigos do que em obras novas. Mas, com o tempo, os autores tambm adquiriram direitos sobre a comercializao de suas obras:Os privilgios foram, portanto, inicialmente concedidos aos editores e no aos autores. [...] Com o passar do tempo, os escritores puderam tambm solicitar o privilgio de venda sobre suas obras, o que significava obter permisso oficial para que seus escritos fossem publicados e vendidos. O privilgio era, segundo Martins (1985), um privilgio de venda, e no um privilgio autoral. (CHRISTOFE, 1996, p. 89).
Segundo a autora, os direitos autorais, numa forma parecida com a que temos hoje, surgiram durante a Revoluo Francesa, no sculo XVIII, tendo como base as idias iluministas que viam o homem como criador de sua obra. Assim, os privilgios do lugar noo de propriedade literria e intelectual (CHRISTOFE, 1996). Segundo Lajolo & Zilberman (1996, apud CHRISTOFE, 1996, p. 90), os escritores do Romantismo nascente foram seus primeiros beneficirios:O Romantismo identificando o literrio com o novo, nico e original, e o trabalho do escritor como atividade particular e solitria, expresso ntima de um indivduo,
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ajuda a difundir o privilgio do texto. Ao sublinhar valorativamente a inventividade e o subjetivismo, ele rompe com a tradio medieval e clssica, que encarava os atos de escrita, literrios ou no, como retomada ou imitao de outros j existentes e consagrados. Para essa tradio, escrever era reescrever; o Romantismo proclamou o contrrio, destacando a criatividade do texto e a genialidade do autor.
Desse modo, nos sculos XVIII e XIX, com o crescimento do mercado editorial, surge uma legislao especfica de proteo da propriedade intelectual, tanto das editoras em relao s obras, quanto dos autores como tais (TARGINO, 2005). Como vemos, os acontecimentos dessa poca marcaram os indivduos enquanto sujeitos, tanto como sujeitos de direito como quanto sujeitos-autores. A consolidao da autoria em seu aspecto jurdico foi um processo lento que acompanhou as transformaes histricas e sociais que, do ponto de vista da AD, so tambm discursivas e subjetivas. Somente quando o Estado se constituiu como fora coercitiva do sujeito, que este iniciou o seu processo de individualizao: o sujeito, para exercer seus direitos e cumprir seus deveres, precisava ser reconhecvel, identificvel dentro do meio social. Essa condio bsica para o funcionamento do Direito e , tambm, segundo Foucault (1992), uma das caractersticas fundamentais da funo-autor. Ao falar mais especificamente do autor de textos literrios, Foucault coloca que o autor no s um escritor, mas um nome que d identidade e autoridade ao texto:(...) se descubro que Shakespeare no nasceu na casa em que se visita hoje como tal, a modificao no vai alterar o funcionamento do nome do autor; mas se se demonstrasse que Shakespeare no escreveu aqueles Sonetos que passam por seus, a mudana seria de um outro tipo; j no deixaria indiferente o funcionamento do nome de autor. E se se provasse que Shakespeare escreveu o Organon de Bacon muito simplesmente porque o mesmo autor teria escrito as obras de Bacon e as de Shakespeare, teramos um terceiro tipo de mudana que alteraria inteiramente o funcionamento do nome do autor. O nome do autor no , portanto, um nome prprio exatamente como os outros. (1992, p. 43).
Para Pfeiffer (1995, p. 29), apenas quem conseguiu inserir-se dentro das exigncias de legibilidade de seu dizer e, portanto, da visibilidade do seu ser, que tem o direito interpretao (...). S tem aval a interpretar quem estiver sob o domnio do UNO. Assim, a iluso de centralidade, de voz nica, foi atribuda juridicamente ao sujeito moderno, quando na condio de sujeito-autor. Esse novo sujeito, centralizado e, portanto, discernvel da sociedade moderna, foi, aos poucos, ganhando espao na Europa, com o surgimento de leis que resguardavam os seus direitos e deveres como autor. Christofe (1996, pp. 91-92) comenta que
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Em 1791, a Frana regulamentou a representao pblica das obras nos teatros franceses e, em 1793, publicou a lei que regulamentou a reproduo dessas obras. Essa lei, conhecida como lei de Lakanau, apontada como a primeira lei sobre propriedade literria (Shneider, 1991). Nela consta que os autores dos escritos de qualquer gnero... gozaro, durante sua vida inteira, do direito exclusivo de vender, fazer vender, distribuir suas obras... e que seus herdeiros e cessionrios gozaro dos mesmos direitos durante o espao de dez anos aps a morte dos autores (Vieira Manso, 1987: 15). Nos textos legais subseqentes, o prazo de proteo prolongado: vinte anos (1810), trinta anos (1824) e cinqenta anos (1866). Com o reconhecimento da noo de propriedade literria, legitimam-se as relaes entre o autor e o texto escrito. Os direitos dos autores deixam de ser decorrentes das concesses arbitrrias do poder e passam a ser compreendidos como decorrentes da ordem natural das coisas, da criao intelectual (UNESCO, 1981).
Mas, e no Brasil? A partir de quando o nosso Direito comeou a considerar o autor e seus direitos? Segundo Christofe (1996), no Brasil, os Direitos Autorais passaram a constar nas leis a partir de 1827, funcionando apenas nos meios universitrios, mais especificamente nas Faculdades de Direito de Olinda e de So Paulo, como forma de proteger a produo de seus professores (p. 92). Ainda segundo a autora, a regulamentao geral da lei veio a ocorrer pouco depois, em 1830, com a promulgao do Cdigo Criminal, embora ainda no fossem conferidos verdadeiros direitos autorais civis (p. 92). Os direitos autorais civis que constituiriam o Direito Autoral Brasileiro s foram criados de fato com a Constituio de 1891, que dava garantias ao autor quando do registro de sua obra (CHRISTOFE, 1996). Depois disso, a criao do Cdigo Civil foi a grande mudana nos direitos de autor. Segundo Christofe (1996, p. 93),Em 01-01-1917, com o advento do Cdigo Civil, o Direito Autoral perde a sua autonomia legislativa, passando a ser considerado, simplesmente, uma propriedade (Lei n.3.701 de 1-1-1916 arts 649 673 Da propriedade literria, cientfica e artstica). Regulamenta-se tambm o contrato de edio, no Direito das Obrigaes.
Atualmente, a Lei n 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta os Direitos Autorais no Brasil. Essa , resumidamente, a histria da autoria e dos direitos de autor no ocidente. No Brasil, em 1944, um caso particular de atribuio de autoria acionaria a justia e seria o mais polmico do gnero pelo seu ineditismo, tanto na jurisprudncia nacional quanto internacional: a viva do escritor Humberto de Campos entrou em juzo contra Chico Xavier e a editora Federao Esprita Brasileira, requerendo a comprovao ou no da autoria do escritor nos textos psicografados pelo mdium. A famlia do famoso escritor, ento titular dos direitos autorais de sua obra, sentia-se incomodada com a presena no mercado de cinco
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ttulos que levavam o nome do falecido autor na capa3. Segundo eles, os livros vinham sendo vendidos a sua revelia com grande xito de livraria, dado o fato de ser atribuda a quem, como Humberto de Campos, sempre desfrutou, como escritor, de grande popularidade entre o pblico brasileiro de todos os nveis intelectuais. (apud TIMPONI, 1978, p. 11). A famlia, na pessoa viva do escritor, Catharina Vergolino de Campos, pedia justia provas da autoria ou no dos textos atribudos ao falecido marido. No caso de ser comprovada a autoria, a famlia requeria os direitos autorais da obra psicografada do escritor. Segundo Souto Maior (2004, p. 92),O processo prometia. Se o juiz renegasse a autenticidade dos textos, Chico e o presidente da Federao Esprita Brasileira estariam sujeitos a pagar indenizao por perdas e danos e a ser presos por falsidade ideolgica. Se o meritssimo reconhecesse os livros como obras do alm, atestaria a existncia de vida aps a morte e teria de decidir se os direitos autorais deveriam, ou no, ser repassados aos herdeiros do morto-vivo. [...] A defesa contestou todos os pedidos da acusao. O argumento bsico era simples: no era funo do Poder Judicirio declarar, por sentena, se uma obra literria foi escrita ou no por um morto. Um veredicto, contra ou a favor do ru, iria ferir a liberdade religiosa garantida na Constituio. Resumindo: O petitrio ilcito e juridicamente impossvel.
O Cdigo Civil diz que a personalidade civil comea no nascimento, com vida, do ser humano, e se extingue com a sua morte, ressalvados os direitos do nascituro desde sua concepo. Desse modo, os textos psicografados no ofenderiam os direitos autorais de seus supostos autores, e nem os de seus sucessores, j que o autor a quem atribudo o texto, por se encontrar morto e, portanto, no tendo mais personalidade civil, j no faz jus proteo conferida pelo Estado. Em outras palavras, o Direito no est apto a arbitrar questes que ultrapassem o limite da vida fsica. De fato, a sentena de 23 de agosto de 1944, do Dr. Joo Frederico Mouro Russell, juiz de Direito em exerccio na 8 Vara Cvel do antigo Distrito Federal, negou o direito viva, acatando a argumentao da defesa de que a existncia da pessoa natural termina com a morte, e que, conseqentemente, com a morte se extingue a capacidade jurdica de adquirir direitos (SOUTO MAIOR, 2004). Este caso estava encerrado, mas, ao longo do sculo XX, outros casos envolvendo a psicografia ainda seriam questes judicirias polmicas no Brasil4.
Os livros eram: Brasil, corao do mundo, ptria do evangelho; Crnicas de alm-tmulo; Boa Nova; Novas mensagens e Reportagens de alm-tmulo. 4 Em outro caso, a psicografia ajudou a inocentar um jovem acusado de assassinato: a defesa apresentou, no dia do julgamento, cinco cartas psicografadas por Chico Xavier em que a vtima afirmava que a arma teria disparado acidentalmente. O acusado acabou absolvido e, segundo foi publicado pela imprensa, pela primeira vez em toda a histria jurdica do mundo, um juiz de Direito apia sua deciso em uma mensagem vinda do Alm". (CHAVES, 1995).
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Se por um lado o posicionamento judicial no caso Humberto de Campos resolveu o problema do ponto de vista jurdico, por outro, no o resolveu do ponto de vista literrio: se um autor morto no dono, por assim dizer, dos textos psicografados e a ele atribudos, como ento inserir esses textos em sua obra? Esse um problema bastante complexo que, para ser resolvido, demandaria um novo parmetro de classificao de obras literrias, o que, acreditamos, os crticos ainda no esto nem interessados, nem preparados para estabelecer. O trabalho a que nos propomos o cotejo entre poemas psicografados e atribudos a Olavo Bilac na busca da identidade autoral fundamenta-se na noo de autoria segundo a Teoria da Literatura e a AD. Quais seriam esses fundamentos? o que se discute no captulo seguinte.
4. SUJEITO E AUTORIA: PRESSUPOSTOS TERICOS
Por ser o texto literrio o que vamos tratar em nossas anlises, devemos considerar autoria no domnio lingstico, como aquela dos autores consagrados no mbito da Literatura. Interessa-nos ver a autoria na tessitura textual em suas dimenses discursiva e estilstica. Neste sentido, basicamente, procuraremos responder seguinte pergunta: onde e como identificar o sujeito-autor? Para tanto, importante que retomemos autores como Foucault (1992), Orlandi (2007) e Possenti (1993 e 2003), que delimitam a nossa noo de sujeito e de autor. Mas, para discutirmos a questo da autoria, ser preciso tecer, primeiramente, algumas consideraes sobre a noo de sujeito do discurso e o seu desenvolvimento ao longo da histria. Segundo Brando (1997), no incio, no se considerava a subjetividade da linguagem: a lngua era um objeto externo que representava a realidade. Com o tempo, essa viso clssica seria questionada, passando-se a refletir sobre o papel do falante na linguagem: a lngua constitui o sujeito e este ocupa uma posio central no discurso. No momento seguinte, passam a ser consideradas as influncias histricas e ideolgicas sobre o sujeito: sua fala reflete o tempo e o espao social, situando-o em relao ao outro. Aqui, o sujeito no mais a origem do sentido, mas heterogneo, constitudo pelas falas de outros. Em seguida, Bakhtin colocar que a lngua no um sistema monolgico, mas um fenmeno interacional. Assim, as palavras so dialgicas e do dialogismo depende o seu sentido. O discurso se constitui de outros discursos numa relao histrica, social e ideolgica de interdependncia. Nessas bases, surge a teoria da polifonia, segundo a qual o autor assume vrias vozes em seu discurso, sendo que nenhuma se sobrepe s demais. Por seu lado, a psicanlise encara o sujeito como um efeito de linguagem, um ser dividido entre o consciente, o inconsciente e o outro; sujeito cuja integralidade pode ser recuperada pelo analista na e pela palavra durante a regresso. Desse modo, o Eu descentrado, mas mantm a iluso de centralidade, pois procura delimitar o outro e exercer a dominncia controlando sua linguagem. Para a AD, ainda segundo Brando (1997), o sujeito constri sua identidade na interao com o outro e o espao dessa interao o texto, onde se d a unidade e o sentido. Para Pcheux (apud BRANDO, 1997), o sentido das palavras constitudo num processo histrico, social e ideolgico de formao discursiva do falante. O discurso , ento, um efeito
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de sentido entre locutores posicionados em diferentes pontos de vista. O sujeito se coloca como fonte nica do seu dizer, apagando as influncias externas e explicitando seu pensamento por meio de um trabalho estratgico de seleo lingstica. Ele realiza, desse modo, um trabalho com a lngua, mobilizando seus recursos expressivos de modo a adequ-la a si e a seus objetivos. Isso possvel, segundo Possenti (1993), porque a linguagem parcialmente estruturante e parcialmente estruturada. Esse processo, que se verifica por meio de escolhas feitas pelo falante, deixa marcas de subjetividade na linguagem que se traduzem no discurso. A lngua pode ser entendida, dessa forma, como um sistema de enunciao e de individuao do falante: no discurso que o locutor se torna sujeito. Desse modo, o sujeito constitui a lngua e constitudo por ela, na medida em que, ao apropriar-se dela, no o faz passivamente, mas realiza uma atividade de adaptao que trabalho. A lngua aprendida e se estrutura na interao entre interlocutores. Obviamente, para que haja uma correta interpretao dos efeitos de sentido que constituem o discurso, necessrio que os falantes partilhem dos mesmos pressupostos, das mesmas referncias. Por isso, segundo o autor, a lngua fruto de um processo cognitivo e comunicativo. De acordo com Possenti (1993), cada falante um ser constitudo histrica e socialmente que est sempre sujeito s presses da coletividade. A lngua construda pela sociedade num processo que trabalho e no qual cada sujeito desempenha uma atividade individual. O resultado dessa atividade com e sobre a linguagem avaliado socialmente e recebe um determinado valor. Pode-se dizer ento, que a linguagem o resultado da tenso entre o individual e o coletivo. Para Possenti (1993), qualquer entidade maior que a frase j constitui discurso, sendo que este nico e necessariamente significativo. A se manifesta a subjetividade atravs do que chamamos estilo. O objetivo da AD, de acordo com o autor, deve ser descobrir como e em quais circunstncias se d a atividade discursiva, como o discurso ganha uma determinada forma e um sentido, e como se depreende dele um sentido especfico. Tambm interesse do lingista conhecer as variaes de estilo que produzem efeitos de sentido determinados e que permitem analisar as diferentes facetas do sujeito do discurso. Em termos gerais, na materialidade do discurso que se conhece o estilo, e no interior do estilo que se mostra o sujeito. Possenti (1993) chama a ateno, ainda, para o fato de que a identificao do estilo, assim como as anlises estilsticas feitas pelos lingistas, deve ter um teor diferente daquelas realizadas pelos crticos literrios. Os lingistas buscam depreender noes menos vagas e mais controlveis na anlise estilstica, tendo como base as concepes de lngua. Desse
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modo, o foco de suas anlises ser o instrumento de expresso, o material lingstico e os recursos usados, tanto para a expresso do sujeito, como para compatibilizar a produo com os tempos e os fatores coercitivos envolvidos no processo. Esse trabalho coloca alguns problemas aos lingistas na medida em que exige deles certas definies como qual seja a natureza do sujeito, da enunciao, do discurso e do estilo. Na AD, Bakhtin um dos principais nomes a teorizar sobre esse assunto. Retomando Bakhtin, Possenti (1993) encara o sujeito como no-autnomo e noassujeitado. Para ele, o sujeito se define atravs de uma ao diferenciada num espao individual. Logicamente, ele sofrer presses neste processo: a presena do outro. Desse modo, o discurso configura-se como um todo formado por vrias vozes, que tem uma constituio histrica e social, e que guarda em si espaos para a manifestao particular do sujeito. E porque sempre se dirige a um interlocutor, pressupe uma atitude dialgica na qual, dos vrios sentidos possveis, um especificamente deve prevalecer. As possibilidades de escolha oferecidas pela lngua na construo do enunciado no so maneiras diferentes de dizer a mesma coisa, mas cada uma produz um efeito especfico em cada discurso (POSSENTI, 1993). Esse efeito de sentido deve, ainda, ser partilhado entre os falantes para que haja uma correta interpretao. Sobre esse aspecto, Riffaterre (1971, p. 131) coloca:O conjunto da mensagem participa do estilo, mas so os efeitos que lhe do estrutura. So os elementos marcados que permitem ao leitor [interlocutor] reconhecer um estilo e limitam a liberdade de decodificao: a estilstica , portanto, a parte da lingstica que estuda a percepo da mensagem.
Vemos assim, que precisamente no espao do sujeito que dialoga com o outro que se verifica o estilo. Por isso, Possenti (1993) diz que o estilo a chave para a definio de uma personalidade em termos lingsticos. interessante observar que isso se d devido caracterstica da linguagem de no representar explicitamente o real: a lngua no dada, mas se constitui de forma descentralizada, de vrios discursos na sociedade de falantes. Como os falantes so, eles mesmos, constitudos por discursos diversos, previsvel que seu prprio discurso aparea por vezes marcado pela ambigidade e pela contradio. De qualquer forma, a construo do significado do enunciado (efeito de sentido) sempre ser resultado da ao do falante, de uma atividade com e sobre a linguagem, visando construo de uma realidade (ainda que relativa). Desse modo, o estilo deve ser buscado no resultado do trabalho com o material
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lingstico que o falante/sujeito faz para se significar explicitamente, sem, contudo, precisar ser explcito. O estilo mostra-se, ento, como o lugar do sujeito no discurso. Ora, todo texto como materialidade da linguagem traz em si um discurso. Sabemos pela AD que no h discurso sem sujeito, porque a lngua precisa do enunciador para ser realizada: necessrio que algum fale. Por seu lado, tambm no h sujeito sem ideologia, porque o sujeito constitudo social e historicamente. Mas esse sujeito no sempre o mesmo em todas as situaes: h posies-sujeito, que se traduzem em falas ou vozes diferentes segundo a posio que este ocupe em dado contexto. Depreende-se disso, ento, que o sujeito em situao de discurso (uma das caractersticas do sujeito-autor) no coincide com o sujeito emprico. Em outras palavras, no se fala de indivduo, mas de sujeito de um dizer: o primeiro nico, o segundo no. Assim, segundo Pfeiffer (1995, p. 46),(...) no importa o sujeito emprico, mas o processo de disperso deste que constri uma iluso de unidade passvel de referencialidade. Neste sentido, vale mais, no que diz respeito a um texto, a rede significante que o constitui do que seu contedo significativo. Isso porque, se falamos na disperso do sujeito e sua conseqente falta de interesse em um autor real-emprico, tambm temos que falar da materialidade histrica do discurso que se encontra no significante. Os sentidos tambm esto dispersos, prontos para serem ditos de acordo com a rede de funes discursivas que se estabelece em um dado discurso. O sentido sempre pode ser outro sendo recortado em sua possibilidade de formulao pelo interdiscurso (histria). Assim que sujeito e discurso esto em contnuo movimento, que fica marcado na materialidade histrica que, no nosso caso, a lngua mais especificamente a sua forma significante. Fica claro, ento, que no se est pensando em UM sujeito autor, mas na sua constituio dispersiva.
por isso que muitos filsofos estruturalistas, como Barthes, num desdobramento dessa idia, pregam o desaparecimento da figura do autor, considerando-o como um sujeito no real. Barthes (1988) chega a desconsiderar a existncia de um autor e da sua individualidade no momento de analisar a obra. Para ele, h como que um apagamento das vozes que constituem o sujeito, uma perda de identidade, a morte do autor, por assim dizer, que desaparece na obra. Pfeiffer (1995) coloca, ainda, como razo para o desaparecimento da figura do autor enquanto sujeito, a necessidade de neutralidade do olhar que ocorre em nossos dias, o que exige que o texto tenha uma voz universal e seja, por isso mesmo, desprovido de individualidade. Isso, segundo a autora, mostra o paradoxo no qual se insere o sujeito ao ocupar a posio de autor: ao mesmo tempo em que ele tem que ser discernvel, tem que ser universal, o que resulta na homogeneizao e na higienizao. O sujeito tem que se
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presentificar como UNO, discreto, determinado, pois que se submete determinao da lngua (Pfeiffer, 1995, p. 46). Em resposta s teorias que anunciavam a morte do autor, Foucault (1992) no texto O que um autor?, discute a questo da autoria historicamente constituda, e aponta para a relao existente entre autor e obra. Segundo ele, a obra algo difcil de delimitar sem a noo de autoria por serem uma inerente outra. Assim, o conhecimento do autor fundamental para se falar de um texto: para se interpretar, primordial conhecer a maneira como o texto aponta para a figura que lhe exterior e anterior, pelo menos em aparncia (Foucault, 1992, p. 34). Para ele, o autor no est morto, mas apenas transposto a um anonimato transcendental, numa espcie de deslocamento. Esse deslocamento deixa um espao livre onde Foucault identifica as formas do discurso s quais denomina de funo-autor: Trata-se, sim, de localizar o espao deixado vazio pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartio das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaos, as funes livres que esse espao deixa a descoberto (Foucault, 1992, p. 41). Desse modo, entende-se que Foucault coloca a funo-autor como uma das caractersticas da funo-sujeito. Para muitos estudiosos, segundo Pfeiffer (1995), esse texto de Foucault , na verdade, uma afirmao de que a autoria existe, ainda que restrita a obras e a discursividades. Com a inteno de colocar o autor como algo alm da obra, Orlandi (2007, p. 75) considera que a prpria dimenso textual do dizer j condio suficiente para a existncia do autor:Para Foucault, o princpio da autoria no vale para tudo nem de forma constante: h discursos [...] que precisam de quem os assine, mas, segundo Foucault, no de autores. Em meu trabalho desloquei essa noo de modo a considerar, diferena de Foucault, que a prpria unidade do texto efeito discursivo que deriva do princpio da autoria. Dessa maneira, atribumos um alcance maior e que especifica o princpio da autoria como necessrio para qualquer discurso, colocando-o na origem da textualidade. Em outras palavras: um texto pode at no ter um autor especfico, mas, pela funo-autor, sempre se imputa uma autoria a ele.
Com isso, Orlandi (2007) estende a noo de autoria a qualquer texto, mesmo queles sem um nome de autor declarado. Segundo ela, a autoria uma funo enunciativa do sujeito (que determinada pelo contexto) quando este est na situao de produtor de texto. Por isso, o peso da responsabilidade que cai sobre o autor. Nas palavras da autora:
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Retomamos ento Foucault: o princpio do autor limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. assim que pensamos a autoria como uma funo discursiva: se o locutor se representa como eu no discurso e o enunciador a perspectiva que esse eu assume, a funo discursiva autor a funo que esse eu assume enquanto produtor de linguagem, produtor de texto. Ele , das dimenses do sujeito, a que est mais determinada pela exterioridade contexto scio-histrico e mais afetada pelas exigncias de coerncia, no contradio, responsabilidade, etc. (ORLANDI, 2007, p. 75).
Assim, entende-se que a autora toma o texto como base para a anlise da configurao autoral. Ainda em Foucault (1992), vemos que a idia de autor est intimamente ligada de propriedade intelectual e de responsabilidade: , pois, uma noo que atinge as esferas do Direito. No mbito da nossa pesquisa, esse aspecto da autoria de extrema importncia, uma vez que nos propomos a analisar textos que, devido s condies particulares em que foram produzidos e atribudos a um autor consagrado, envolve questes de cunho jurdico, como o plgio, o pastiche e os direitos autorais. Para encerrar essas consideraes, tomemos mais uma vez Possenti (2003) que da mesma forma que Orlandi (2007), baseando-se em Foucault (1992), vai efetuar um deslocamento da noo de autoria. Segundo o autor, a autoria se caracteriza pela singularidade e por tomadas de posio do sujeito (ento autor), de modo que no se pode encontrar o autor se no pelas marcas subjetivas inscritas no texto. Neste sentido, o discurso, mais uma vez, se mostra como estrutura e acontecimento, o lugar da instabilidade: instabilidade que provoca fissuras onde se mostra a voz do sujeito (neste caso, do sujeito-autor) atravs do que chamamos estilo. Corroborando essa tese, Barros (2003, p. 149) afirma queOs sujeitos particulares textualizam, por assim dizer, o discurso, a partir de e em meio aos diversos outros discursos e outros sujeitos. O texto o lugar dessa constituio do singular; o texto o lugar onde se exercita a construo de uma identidade, em forma de um discurso, um conhecimento que se prope, justamente porque o discurso pode ser entendido como estrutura e como acontecimento, simultaneamente.
Desse modo, tendo como base as idias foucaultianas, Orlandi (2007) focaliza o texto como o local de encontro do sujeito e Possenti (2003) o coloca nas fissuras do dizer que esto inscritas no texto: o estilo. Ser precisamente a que descobriremos o autor. tomando essa concepo de autoria baseada no estilo e no discurso, e assumindo, por nossa parte, a posio de analista-leitor, que se discutem os textos psicografados por Chico Xavier e atribudos a Olavo Bilac no livro Parnaso de alm-tmulo. O trabalho leva em conta aspectos da forma, do contedo e dos efeitos de sentido nos poemas psicografados, e procura verificar a possibilidade de encaixe desses mesmos textos na obra do autor.
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No captulo que segue, traamos algumas caractersticas biogrficas dos envolvidos na produo dos textos psicografados: o mdium mineiro Francisco Cndido Xavier e o poeta Olavo Bilac. O objetivo destes textos mostrar as diferentes histrias pessoais que conformam as formaes discursivas de ambos os sujeitos. Ao falar de Olavo Bilac, no nos limitamos a traar um perfil biogrfico, mas procuramos levantar dados referentes sua fortuna crtica, fundamental para a apreciao de sua obra e para sua identificao como sujeito-autor, o que crucial em nossas anlises.
5. CHICO XAVIER X OLAVO BILAC
5.1 Chico Xavier, o mdium No Brasil, o expoente mximo da literatura esprita foi o mineiro Francisco Cndido Xavier, ou Chico Xavier, que deixou, ao falecer em 2002, o total de 412 livros e uma infinidade de cartas pessoais recebidos do mundo espiritual. Chico Xavier nasceu Francisco de Paula Cndido, na cidade mineira de Pedro Leopoldo, em 1910. Filho do operrio e vendedor de bilhetes de loteria Joo Cndido Xavier, e da dona-de-casa e lavadeira Maria Joo de Deus, Chico era apenas um dos nove filhos do casal. Quando o menino tinha cinco anos de idade, sua me adoece repentinamente e vem a falecer. Antes de morrer, porm, ela e o marido, decidem distribuir os filhos entre parentes dispostos a cri-los. Chico passou a viver, a partir da, com a madrinha, dona Rita de Cssia, e comeou ento a tortura do garoto, como nos informa Machado (1984, apud IBSEN, 2005, p. 27):Na dispora da famlia Xavier, Chico vai para a casa da madrinha, dona Maria Rita de Cssia, velha amiga de sua me. Ali comeariam as atribulaes do menino [...]. A qualquer pretexto, a vara de marmelo cantava no lombo do menino. Para pescoes, taponas e belisces dispensavam-se pretextos. [...] um de seus caprichos consistia em enfiar garfos no ventre do garoto. O suplcio durava horas.
A madrinha de Chico achava que ele estivesse com o diabo no corpo e, por isso, o tratava como o fariam os padres da Inquisio. Foi neste perodo de sua vida que o futuro mdium comeou a ver o esprito de sua me, que o consolava e dizia para ter pacincia. Nas palavras do mdium:No quintal da casa em que eu morava, via freqentemente minha me desencarnada em 1915 e outros Espritos, mas as pessoas que me cercavam ento no conseguiam compreender minhas vises e notcias e acreditavam francamente que eu estivesse mentindo ou que estivesse sob perturbao mental. (apud BARBOSA, 1997, p. 2627).
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Em 1917, Joo Cndido decidiu casar-se novamente. Uma das primeiras providncias da nova esposa, dona Cidlia, foi trazer de volta casa paterna todos os filhos de Joo Cndido5. Foi assim que Chico, ento com sete anos, ganhou uma nova me. Uma vez reunida a famlia, dona Cidlia resolveu colocar os enteados na escola. Dada a misria em que viviam, esse era um problema a mais. Foi ento que tiveram a idia de cultivar e vender verduras. Com o dinheiro arrecadado com o trabalho, no incio de 1919, Chico Xavier e seus irmos puderam comear a freqentar as aulas no Grupo Escolar So Jos. No foi aluno brilhante, chegando a repetir o quarto ano primrio. [...] Muitas vezes, durante as aulas, Chico ouvia vozes de espritos, ou sentia mos sobre as suas, guiando os movimentos na escrita, sem que os demais alunos percebessem (MACHADO, 1984, apud IBSEN, 2005, p. 30). O pai de Chico pensou em intern-lo num hospcio, mas dona Cidlia interveio. Resolveram que o melhor a fazer era confi-lo ao padre Sebastio Scarzelli, ento proco de Pedro Leopoldo. O sacerdote, aps ouvir o caso e conversar com o menino, considerou tudo aquilo como fantasias da idade, e sugeriu a Joo Cndido que afastasse Chico de livros e jornais que deviam estar impressionando o garoto. Alm disso, Chico devia participar de novenas, rezar 1000 ave-marias e acompanhar as procisses com uma pedra de 15kg amarrada na cabea (SOUTO MAIOR, 2004, p. 27). Aps mais essa srie de torturas que, pelo menos, o livraram do sanatrio, Chico, ainda por conselho do padre, devia comear a trabalhar: talvez o trabalho duro refrescasse a cabea o menino. Foi ento que com nove anos, Chico comeou a trabalhar como tecelo. Entrava s 3h da tarde, saa 1h da manh, dormia at as 6h, ia para a escola, saa s 11h, almoava, dormia uma hora depois do almoo, entrava de novo na fbrica. (SOUTO MAIOR, 2004, p. 27). Essa rotina apertada de trabalho no impediu que Chico terminasse o curso primrio em 1923. Depois disso, sua professora, dona Rosria Laranjeira, quis lev-lo a Belo Horizonte para que continuasse seus estudos. O pai, contudo, no permitiu: o dinheiro que Chico ganhava era indispensvel para ajudar a manter a casa. Foi assim que Chico Xavier abandonou os estudos e passou a dedicar-se integralmente ao trabalho. Em 1925, ingressou no comrcio, primeiramente como servente de cozinha em um bar e, depois, em um armazm. Em ambos trabalhava cerca de 13 horas por dia. Mas a rotina fatigante no afastara as assombraes de Chico. Em 1927, quando tinha j 17 anos, sua irm caula, Maria da Conceio, ficou seriamente enferma, com acessos
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Joo Cndido teve com dona Cidlia mais seis filhos, somando 15 no total.
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de loucura. Nem padre, nem mdicos souberam tratar o caso. Foi ento que Joo Cndido resolveu pedir auxlio a um casal de amigos espritas, Carmem e Jos Percio, residentes em Curvelo, cidade a 100km de Pedro Leopoldo. Segundo eles, aquele era um caso de obsesso:Pela manh, em 7 de maio de 1927, o casal atacou com passes e rezas a doena: um esprito obsessor. Chico acompanhou o ritual e participou, assim, de sua primeira experincia no espiritismo. Nesse dia, recebeu de Jos Hermnio Percio explicaes sobre os fantasmas que o cercavam desde menino, foi apresentado ao Evangelho Segundo o Espiritismo e a O Livro dos Espritos, de Allan Kardec, e conheceu uma palavra-chave: mediunidade. (SOUTO MAIOR, 2004, p. 31).
Com o tratamento, a irm melhorou e, pouco a pouco, curou-se completamente. Depois desse episdio, Chico passou a se interessar pelo espiritismo, abandonou a Igreja e, junto com familiares, fundou o primeiro centro esprita da cidade. Foi ali que, aos 17 anos, recebeu as primeiras comunicaes espirituais por meio da escrita. interessante observar que, no incio, as mensagens no vinham assinadas:Todo aprendizado um exerccio de pacincia e humildade. Chico sentiu isso quando as mensagens psicografadas comearam a se amiudar. O exerccio era extenuante. O mdium tinha de se amoldar, digamos, s mos dos espritos. Pior do que carregar pedra. Chico sentia como se um cinto de ferro fosse lhe comprimindo a cabea aos poucos. O brao parecia se mineralizar, virar barra de ferro, pesado, mas arrastado por uma fora muito grande. Ficava extenuado. O estado psicolgico oscilava entre extremos de bom e mau humor. Haveria interveno do subconsciente do mdium nas mensagens recebidas? possvel. Tanto assim que, durante os quatro anos que durou a aprendizagem, os espritos no assinavam as mensagens. (MACHADO, 1984, apud IBSEN, 2005, p. 37).
medida que ia se desenvolvendo na psicografia, os textos se multiplicavam. O alto contedo moral das mensagens fez, ento, com que Chico sentisse a necessidade de publiclas:Mas public-las com o nome de quem? O mdium sentia escrpulos. Afinal, no se tratava de obras suas. Em conversa com o irmo Jos Cndido, e alguns amigos de Pedro Leopoldo, estes mostraram-se favorveis publicao. Mas, para dissipar as dvidas, resolveram escrever para o Aurora, um jornal esprita do Rio de Janeiro, expondo o problema. Assinar ou no assinar? Incio Bittencourt, diretor da publicao, respondeu que no via nenhum inconveniente em publicar aquelas pginas com o nome do mdium. Ningum poderia afirmar se eram ou no de Chico. Foi a partir da que o nome F. Xavier (como Chico assinava) comeou a figurar em vrias publicaes, assinando, sobretudo, poesia. Seus trabalhos apareciam no Jornal das Moas e no Suplemento Literrio de O Jornal, ambos do Rio de Janeiro, e no Almanaque de Lembranas Luso-Brasileiro, editado em Portugal. (MACHADO, 1984, apud IBSEN, 2005, p. 40).
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Nesse tempo, o mdium colocou no papel um soneto intitulado Nossa Senhora da Amargura, cuja autora no se identificara. O poema foi publicado em Lisboa, no Almanaque de Lembranas, no ano de 1931, e lhe valeu uma carta elogiosa da redao do peridico. Anos depois, o mdium viria a saber, por meio de seu guia, que a autora do soneto era a poetisa Auta de Souza. Chico comentaria ento: Recebi elogios por um trabalho que no me pertencia. (MACHADO, 1984, apud IBSEN, 2005, p. 41). Vemos que, desde o incio de sua carreira como mdium psicgrafo, Chico Xavier viu-se s voltas com o problema da autoria dos textos que recebia. Com apenas o primrio completo, vivendo em uma pequenina cidade do interior de Minas e s voltas com o trabalho pesado que lhe tomava todo o tempo, o mdium se sabia incapaz de produzir, por ele mesmo, os textos que colocava no papel. medida que se aperfeioavam seus dons medinicos, os autores espirituais passaram a assinar os textos. Em 1932, vrias poesias psicografadas e devidamente assinadas por eminentes autores brasileiros e portugueses, foram reunidas em livro, o qual foi editado e publicado pela Federao Esprita Brasileira, com o ttulo de Parnaso de alm-tmulo. Foi o incio da produo editorial de Chico, que alcanaria, at o fim de sua vida, o total de 412 ttulos, entre eles vrios best-sellers, tendo alguns tiragem superior aos dos prprios autores em vida. A publicao de Parnaso de alm-tmulo foi, tambm, o incio da polmica em torno do mdium. Em sua primeira edio, de 1932, o livro Parnaso de alm-tmulo era formado por um conjunto de 59 poemas atribudos a 14 poetas j falecidos, brasileiros e portugueses. Nas edies seguintes, foram acrescentadas novas composies e novos poetas, at que, a partir da 6 edio, de 1955, o livro estabilizou-se com 259 poemas atribudos a 56 autores (ROCHA, 2001). A publicao do livro causou enorme alarde no meio literrio brasileiro nas dcadas de 30 e 40 pelo seu ineditismo: um trabalho de alto nvel literrio escrito por um homem humilde, que atribua a autoria da obra aos espritos que assinavam os textos. Souto Maior (2004, p. 46), bigrafo de Chico Xavier, comenta queA coletnea de 59 poemas assinados por defuntos ilustres chegou s livrarias em 1932 e provocou alvoroo. Os cticos enfrentavam dilemas. Se os versos foram criados mesmo pelo jovem de Pedro Leopoldo, por que ele no assumia a autoria? Por que trocava a possvel consagrao como poeta de talento ou como imitador genial pela inevitvel suspeita de ser um impostor, um mentiroso?
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O escritor Zeferino Brasil, integrante da Academia Rio-grandense de Letras, traduziu a perplexidade geral numa crnica publicada no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre: Ou os poemas em apreo so de fato dos autores citados e foram realmente transmitidos do alm ao mdium, ou o Sr. Francisco Cndido Xavier um poeta extraordinrio, capaz de imitar os maiores gnios da poesia universal. Os mais desconfiados folheavam o Parnaso de Alm-Tmulo e arriscavam palpites psicanalticos sobre o autor. O matuto, leitor compulsivo, dono de memria prodigiosa, incorporava o estilo dos poetas inconscientemente. Os versos vinham de seu subconsciente. Chico deveria ser estudado como um caso de esquizofrenia. Outros, menos freudianos, defendiam uma tese simples e direta: o livro era pura jogada de marketing. Francisco Cndido Xavier queria chamar a ateno. Em breve, ele convocaria a imprensa mineira, estufaria o peito e revelaria: Estes poemas foram escritos por mim mesmo. Sou poeta. O dia da confisso demorava a chegar. O autor no s insistia em renegar o mrito dos versos como dispensava o dinheiro arrecadado com a publicao. Reverteu todos os direitos autorais para a Federao Esprita Brasileira, responsvel pelo lanamento da coletnea, e comeou a repetir o bordo que o acompanharia nas seis dcadas seguintes: O livro no meu. dos espritos.
Nota-se que foram o componente literrio e a questo da autoria, os principais elementos responsveis pela polmica causada pelo livro. Os poemas teriam sido, de fato, criados pelos poetas que os assinaram? Em meio polmica, Humberto de Campos, ento membro da Academia Brasileira de Letras, e um dos mais importantes escritores e jornalistas da poca, escreveu um artigo no Dirio Carioca, em 10 de julho de 1932, no qual declarou identificar nos versos escritos por Chico Xavier os estilos dos respectivos autores espirituais. Segundo o autor, sente-se, ao ler cada um dos autores que veio do outro mundo para cantar neste instante, a inclinao do senhor Francisco Cndido Xavier para escrever a la manire de ou para traduzir o que aqueles altos espritos soprarem ao seu ouvido (1932, apud SOUTO MAIOR, 2004, p. 48). Para outros crticos, porm, os textos psicografados no conseguiam passar pelo crivo de uma anlise literria bem feita. Neste sentido, o crtico literrio Osrio Borba, a pedido do Dirio de Minas, escreveu:A concluso de minha percia totalmente negativa [...]. As pessoas que se impressionam pela semelhana dos escritos medinicos de Chico Xavier com os deixados pelos seus indigitados autores, ou so inteiramente leigas sem maior discernimento em matria de literatura, ou deixaram-se levar ligeiramente por uma primeira impresso. Se examinarem corretamente a literatura psicogrfica, vero que tal semelhana de pastiche, mais precisamente, de caricatura. O pensamento das psicografias [de Chico Xavier] absolutamente indigno do pensamento dos autores a quem so imputados, e a forma em geral e a tcnica potica, ainda piores. E h inmeros casos de pardia e repetio de temas, frases inteiras, versos, alm dos plgios. (BORBA, 1958).
Como se v, muitas vozes de relevo se levantaram pr e contra a psicografia do mdium de Pedro Leopoldo. O fato que Chico no dispunha de formao educacional que
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facilitasse a criao de uma obra do vulto de Parnaso. Rocha (2001, p. 187) descreve o mdium como um homem simples, que(...) no tinha o perfil do erudito homem de letras, conhecedor das tcnicas de versificao e com acesso aos meios intelectuais; em vez disso, em 1931 (ano em que foram escritos os poemas da 1 edio de Parnaso), Chico Xavier era um jovem de 21 anos que trabalhava como caixeiro num armazm das 7h s 20h em Pedro Leopoldo, pequena cidade mineira onde sequer havia biblioteca pblica e onde ele estudara at o quarto ano do primrio.
No havia tempo, nem espao para a Literatura na vida do mdium, que sempre vivera na pobreza, e desde cedo se habituara ao trabalho rduo para ajudar a famlia numerosa. Ento, como explicar o fenmeno Chico Xavier? Pastiche6? Plgio? Mistificao? Ou realidade? Nem todos esto de acordo com a teoria do pastiche: para Teixeira (1944, apud TIMPONI, 1978, pp. 314-315),No caso vertente no se pode admitir, como explicao o pastiche literrio; uma maravilhosa capacidade de imitao do estilo. To-pouco sumarizar a interpretao em simples caso de fraude ou mistificao, por prvia elaborao de composies literrias simuladamente escritas de momento como se ento recebidas, ou simples reproduo por memria, de trabalhos alheios adrede e meditadamente redigidos. Tais argumentos so por demais elementares e insubsistentes e s podem ser esposados por quem jamais viu como Chico Xavier os elabora e em que condies os escreve. [...] Fazer pastiche, imitar o estilo de prosadores e poetas la manire de depende de pendor e jeito especiais, exige prvia e diuturna leitura dos autores a imitar; paciente esforo de elaborao, de retoques, de policiamento da produo conseguida e isto em tentativas que demandam tempo. Faz-lo, como Chico Xavier o costuma, de improviso, numa elaborao e redao instantneas, sem segundos sequer de meditao para coordenar idias, passando em sucesso ininterrupta da prosa ao verso, da pgina de fico para a de filosofia, ou moral; trasladando a composio para o papel em escrita manual vertiginosa que qualquer no consegue em trabalho de cpia ou quando reproduz um assunto que tenha de cor alguma coisa de inexplicvel, que no est ao alcance de qualquer imitador de estilos ou amadores de contrafao literria. Mas, v que tal maravilha seja admissvel: imita-se o estilo; a tcnica do verso; o rimrio preferido; o meneio da frase; a escolha do vocabulrio; a feio e natureza das imagens. Mas, e as manifestaes de cultura, de erudio, nos mais diversos assuntos, que o contexto revela? Tambm isso se pode imitar, improvisar? Como explicar, dentro da imitao do estilo, as citaes certas e adequadas de datas e fatos histricos; de acontecimentos e personalidades; os apropsitos elucidativos do tema; as referncias, comparaes e conceitos cientficos, crticos, filosficos, literrios, que somente um lastro de conhecimentos variados, sedimentados e sistematizados no tempo permitem e s dominados por leituras e estudos pregressos, devidamente meditados? Tudo isso passvel de imitao, de improvisao? Improvisar cultura, erudio, conhecimento, crer em cincia infusa; admitir sabedoria de gerao espontnea; conceber erudio congnita ou hereditria. No. O subconsciente recebe, registra, acumula e reproduz, fiel ou deformado, mas Pasticho [fr. pastiche]: obra literria ou artstica em que se imita grosseiramente o estilo de outros escritores, pintores, msicos, etc. (LAROUSSE, 2001).6
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somente o que passou pela porta crtica da conscincia. No cria do nada. Conhecimento no se improvisa; adquire-se.
O problema da autoria dos textos psicografados, porm, no abandonaria o mdium por muito tempo, e dariam azo a questes de ordem jurdica, cujo auge seria o caso, j citado, de Humberto de Campos, em 1944. Desse modo, o estudo da questo da literatura psicogrfica mostra-se relevante, tanto para a Teoria da Literatura (sobretudo no que diz respeito ao pastiche, ao plgio e teoria da traduo), e, em nosso caso, tambm para a AD, ao abordarmos a questo da autoria, do sujeito e do discurso nesse tipo de texto. Em todos os casos, esse tema, como j se viu, de particular interesse, sobretudo para o Direito contemporneo. Mas, fazer um estudo estilstico-discursivo de um texto psicografado requer algumas consideraes particulares, uma vez que esse tipo de texto apresenta peculiaridades referentes ao seu processo de criao e (suposta) autoria. Dois pontos principais devem ser levados em conta, como assinala Rocha (2001), ao se analisar esse tipo de literatura: os pressupostos literrios inerentes obra e o contexto de produo. Ainda segundo o autor, o emaranhado de estilos literrios diferentes presentes no Parnaso de alm-tmulo (sendo que cada estilo corresponde a uma individualidade autoral), serve de prova de identidade dos autores. Segundo ele, esse seria o objetivo geral do livro: provar a existncia da vida aps a morte:[...] o problema da vida aps a morte [...] colocado como uma equao a ser resolvida pela reproduo de consagradas vozes poticas que, de acordo com o pressuposto de que o estilo literrio um ndice confivel da personalidade do escritor, poderiam ser identificadas com as originais e, neste caso, ganhariam o estatuto de documento atestando a continuidade da vida dos poetas. (ROCHA, 2001, p. 187).
Isso coincidiria com o discurso da filosofia Kardecista, que, criada na atmosfera positivista do sculo XIX, procura estudar e provar de modo racional os fenmenos at ento legados ao irracional e ao sobrenatural. Corroboraria na prova o fato de serem os textos colocados no papel por uma pessoa cuja educao escolar no fosse suficiente para realizar obra semelhante por sua prpria conta (ROCHA, 2001). Sobre o mdium e o contexto de produo, o autor chama a ateno para a velocidade em que os textos so escritos e a relativa conscincia de Chico ao escrev-los:Das especificidades relativas a esse tipo de produo escrita, registre-se primeiro a velocidade com que os textos so grafados no papel. O mesmo Melo Teixeira disse que essa redao instantnea independe da natureza do texto, podendo tratar-se de prosa ou poesia, de filosofia ou moral etc. Ademais, diferentes textos podem ser escritos sem interrupo: uma carta seguida por um poema, por exemplo. Outro
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observador, o escritor argentino Humberto Mariotti, comentou que o mdium escreveu um soneto em apenas um minuto; Agripino Grieco, que acompanhou uma sesso medinica em 1939, declarou que Chico Xavier escrevia com uma celeridade vertiginosa, com uma agilidade que no teria o mais desenvolto dos rasistas de cartrio. Um segundo aspecto a considerar a distino, pelo menos aparente, entre o estado de conscincia de Chico Xavier, ao mesmo tempo concentrado e lcido, e o texto que vai sendo escrito, cujo fluxo ideativo parece prescindir do exerccio de elaborao intelectual do mdium, que consegue tratar de assuntos alheios ao texto que est escrevendo (ROCHA, 2001, pp. 202-203).
So essas caractersticas que particularizam a produo da literatura medinica, e permitem a Chico Xavier afirmar, sem receios, que a autoria dos textos pertence a individualidades que no ele. Numa atitude coerente com esse posicionamento, os direitos autorais dos livros so sempre revertidos para a editora ou doados para instituies de caridade (ROCHA, 2001).
5.2 Olavo Bilac, o poeta Olavo Brs Martins dos Guimares Bilac viveu em uma poca conturbada no Brasil e no mundo. Em 1865, quando nasceu o poeta, o Brasil estava em guerra contra o Paraguai. A estava seu pai, Brs Martins dos Guimares Bilac que, com a patente de major, exercia a funo de mdico cirurgio do exrcito nos campos de batalha (JORGE, 2007). Homem de esprito severo e nacionalista, Martins Bilac se havia oferecido para trabalhar gratuitamente como voluntrio nas campanhas brasileiras no sul. Segundo Carvalho (1942), a severidade do pai e a atmosfera militarista em que nasceu o poeta sero decisivas na formao de Bilac, marcando-o por uma postura de certa forma contraditria ao longo da vida: se, por um lado, as histrias de guerra contada pelos veteranos (incluindo seu pai) que o fascinavam, ajudaro a formar suas idias patriticas e militaristas, por outro, seu carter bomio (que no era aceito pelos rigores paternos) o tornar crtico em relao s autoridades. Desde a infncia, Olavo Bilac foi aluno brilhante. Jorge (2007) comenta que, no colgio onde estudava, o garoto participava de um parlamento mirim, no qual eram discutidas desde questes metafsicas at regras de gramtica (p. 35). Criana inteligente e sonhadora, sempre questionar a pedagogia da tortura praticada pelos professores de ento, chegando mesmo a comparar os sofrimentos e injustias de que ele e seus colegas eram vtimas na escola, com os sofrimentos vividos pelos escravos negros. Mas o tempo passa. Terminados os estudos bsicos, com 15 anos apenas, Bilac foi matriculado no curso de Medicina na