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MENTE, HOMEM E MÁQUINA Paul Sagal Revisão científica de M. S. Lourenço Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Tradução de Desidério Murcho Investigador da Sociedade Portuguesa de Filosofia Gradiva, 1995 Colecção Filosofia Aberta, 3 ÍNDICE PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA.................................. PREFÁCIO...................................................... O PRIMEIRO DIA........................................................... O SEGUNDO DIA............................................................ O TERCEIRO DIA........................................................... QUATRO HORAS DEPOIS...................................................... DEPOIS DE ALMOÇO......................................................... BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA.....................................

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Page 1: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

MENTE, HOMEM E MÁQUINA

Paul Sagal

Revisão científica de M. S. Lourenço

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Tradução de Desidério Murcho

Investigador da Sociedade Portuguesa de Filosofia

Gradiva, 1995

Colecção Filosofia Aberta, 3

ÍNDICE

PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA...............................................

PREFÁCIO....................................................................................

O PRIMEIRO DIA..........................................................................................

O SEGUNDO DIA..........................................................................................

O TERCEIRO DIA..........................................................................................

QUATRO HORAS DEPOIS..............................................................................

DEPOIS DE ALMOÇO....................................................................................

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA......................................................

Page 2: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

PREFÁCIO

É um prazer, intelectual e não só, ter a oportunidade de rever

Mente, Homem e Máquina, ao fim de mais de dez anos. Esta

circunstância oferece-me a oportunidade de melhorar o diálogo, e de

fazer algumas correcções e clarificações, baseadas nos novos

desenvolvimentos entretanto ocorridos na vastíssima literatura filosófica

sobre os tópicos tratados em Mente, Homem e Máquina; nos comentários

dos leitores, professores e estudantes que leram o livro; e na minha

reapreciação do material tratado neste livro, de alguma forma esporádica

ao longo destes dez anos, durante os quais o usei nas minhas aulas de

introdução à filosofia. Parece ser consensual que Mente, Homem e

Máquina tem algumas coisas boas: é acessível a estudantes com

relativamente poucos conhecimentos de filosofia, ao mesmo tempo que

oferece uma leitura estimulante, por vezes até com algum humor; detém-

se sobre o argumento Gödel-Church-Lucas, procurando torná-lo tão

acessível quanto possível; e tratam-se, num «pequeno» livro, um

conjunto relativamente vasto de assuntos, desde o problema da

mente/corpo e da existência de outras mentes, até ao problema do livre

arbítrio. Nesta segunda edição tentei preservar estas características

supostamente boas. As modificações principais são as seguintes: 1)

Tentei tornar claro que o que chamo o argumento Gödel-Church contra o

mecanicismo é na verdade o conhecido e controverso argumento do

filósofo britânico J. R. Lucas. Daí que o refira em geral como o argumento

Gödel-Church-Lucas. 2) O importante argumento de John Searle do

Quarto Chinês, que é uma nova versão, muito útil pedagógica e

filosoficamente, do argumento do jogo da imitação de Turing, é agora

apresentado numa versão simplificada, e discutido de maneira a ter em

conta algumas das críticas importantes à conclusão de Searle que são

comuns na literatura filosófica. Veio a verificar-se que na verdade esta

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Page 3: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

discussão crítica seguiu de perto a discussão apresentada na primeira

edição deste livro. 3) Phil, um dos personagens do diálogo, oferece um

novo argumento, vagamente baseado no trabalho de Tarski sobre a

verdade e sobre o paradoxo do mentiroso, para mostrar que as pessoas

são na verdade inferiores às máquinas. O argumento é oferecido não

tanto pelo seu valor intrínseco, mas para oferecer ao leitor uma prática

acrescida no uso de alguns dos conceitos básicos da discussão anterior

do argumento Gödel-Church. 4) Acrescentei uma passagem sobre o

problema dos qualia, que são características qualitativas da experiência

(como a propriedade de ter uma cor), numa tentativa de me concentrar

no que é possivelmente o problema crucial do mecanicismo. Esta

discussão detém-se no famoso ensaio What Mary Didn’t Know, de Frank

Jackson, mas penso que a forma como ele é discutido é de alguma

maneira original, ou pelo menos pouco habitual. Tenho também em conta

a importante resposta recente de D. C. Dennett, que defende o

mecanicismo contra o argumento de Jackson. Fiz muitas outras

alterações além destas, mas a maioria são pequenas e têm o propósito

de clarificar e eliminar algumas passagens menos felizes. Tenho a

convicção razoável de que esta segunda edição é melhor do que a

primeira -- mas o juízo definitivo cabe ao leitor. Gostaria de agradecer

aos meus colegas Richard Ketchum e Timothy Cleveland pelas suas

participações em discussões sobre os tópicos cobertos pelo diálogo. É

claro que todos os erros, obscuridades e dificuldades são da minha

responsabilidade. Agradeço especialmente à equipa editorial da Hackett

as sugestões construtivas, as críticas e a ajuda em geral.

Agradeço ainda a Tina Lujan pela ajuda com o dactiloescrito.

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Em memória de George Berry

Para a Karen

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Page 5: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

MENTE, HOMEM E MÁQUINA

Participantes:

Stu: estudante

Phil: filósofo

Matt: matemático

O PRIMEIRO DIA

Stu acabou de chegar, depois de mais uma sessão do torneio de

xadrez, onde perdeu, frente ao computador Fischkov III.

Stu: Detesto perder, especialmente com os computadores. Como

podem eles pensar melhor do que eu se na realidade nem sequer podem

pensar?

Phil: Tens assim tanta certeza que eles não podem pensar? Talvez

existam mais coisas que podem pensar do que pensas.

Stu: Deves estar a brincar. Os computadores pensam tanto quanto

um papagaio ou um disco. Os discos e os papagaios limitam-se a fazer

sons. Mas não há nenhum pensamento por detrás dos sons.

Phil: Mas como sabes que não há pensamento por detrás dos sons?

Como sabes quando há pensamento?

Stu: Sei pelo menos, com certeza, quando eu estou a pensar. É

como se ouvisse o som dos meus próprios pensamentos. Talvez o

pensamento seja uma espécie de conversa interior, mantida connosco

mesmos.

Phil: Como sabes que existe pensamento por detrás desses «sons»

que dizes ouvir? Como podes de todo dizer que eu estou a pensar? Não

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podes ouvir a minha conversa interior, pois não? Como sabes sequer que

ela existe?

Stu: Posso perguntar-te.

Phil: Claro que podes, mas se o fizeres e eu responder «Sim», não

podes fazer nada para verificar se a minha resposta é verdadeira ou não.

Se perguntasses ao papagaio se ele está a conversar consigo mesmo, ele

diria talvez igualmente que sim.

Stu: Bom, o pensamento não é apenas a conversa interior. O

pensamento é o tipo de processo que acompanha a conversa, processos

como a conceptualização, o raciocínio e coisas desse género.

Phil: Em primeiro lugar deixa-me notar que, mesmo quando me

observo a pensar, existem com certeza mais coisas para além de uma

espécie de conversa, como é o caso da capacidade de formar imagens

mentais: posso pensar no último dia em que fui pescar e «ver» o lago

onde estive. Ao mesmo tempo, tenho uma espécie de conversa interior

sobre o lago. Mas acabaste de afirmar que o pensamento não é apenas

isto. Afirmas que existe o que algumas pessoas chamam «os processos

mentais superiores». Deixa-me perguntar-te o seguinte: alguma vez te

observaste a conceptualizar?

Stu: De facto não.

Phil: Mas então como sabes de todo que conceptualizas?

Stu: Como podia eu usar conceitos senão os formasse de alguma

maneira?

Phil: Portanto, inferes a existência desses actos mentais. Mas tens

de me explicar o que entendes por usar conceitos. Como é que usas os

conceitos?

Stu: Quando produzo juízos sobre cadeiras ou monstros, uso os

conceitos de cadeira e monstro.

Phil: Por que razão não dizes apenas que sabes usar os termos

«cadeira» e «monstro»? Não poderemos dispensar a referência aos

conceitos e à conceptualização e falar unicamente de aprender e usar

uma linguagem? Nesse caso, a questão interessante é a de saber se as

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Page 7: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

máquinas podem aprender e usar uma linguagem. Se podem, então

parece que a tua objecção principal contra a tese que defende que as

máquinas pensam se evapora.

Stu: Estou a ver onde estás a tentar chegar. Parece realmente mais

claro falar do uso de uma linguagem do que de conceitos. Se há uma

coisa que um jogador de xadrez como eu aprecia é a clareza. No entanto,

parece que não me disseste claramente o que é o pensamento. Defendes

que qualquer uso de uma linguagem implica a existência de

pensamento? Parece que os papagaios usam uma linguagem, mas eles

não pensam, pois não? Nem todos os usos de uma linguagem envolvem

pensamento -- ou será que apenas os usos de uma linguagem que

envolvem pensamento podem contar como usos de uma linguagem?

Parece que estamos a andar em círculos -- definimos pensamento em

termos do uso de uma linguagem, e explicamos o uso de uma linguagem

em termos de um uso de uma linguagem que envolva pensamento.

Admito que não comecei da melhor maneira, isto é, com uma definição

de pensamento ou raciocínio. Mas parece que tu também não ofereceste

uma tal definição.

Phil: É verdade que o ideal seria começar com uma definição. Mas

há diferentes tipos de definições. Os filósofos ocupam-se com definições

desde o tempo de Sócrates. Sócrates costumava fazer perguntas

ambiciosas, como «o que é a justiça?», «o que é a virtude?», «o que é o

conhecimento?» Será que nos podemos limitar a consultar o dicionário

para responder a Sócrates, ou para resolver o nosso problema?

Definições lexicais ou de dicionário não oferecem em geral a clarificação

que procuramos. O dicionário oferece-nos provavelmente qualquer coisa

mais ou menos semelhante a uma lista de sinónimos. Mas esses

sinónimos precisariam igualmente de ser definidos. É claro que não

podemos continuar a definir eternamente. Mas é verdade que precisamos

de chegar a algo mais inteligível do que o ponto de partida. Que

desejamos nós de uma definição de pensamento? Acho que precisamos

de uma definição útil que possa oferecer critérios, uma combinação de

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condições necessárias e suficientes que identifiquem o pensamento.

Afinal, o que desejamos saber é se o Fischkov III e outras máquinas desse

género podem pensar, pelo que precisamos de um qualquer processo

que teste se existe pensamento ou não. Se usarmos termos como

«conceptualizar» e «raciocinar», temos de garantir que esses termos

estão ligados a critérios observacionais ou verificáveis. Sempre que

possível, é preferível referir coisas concretas, como falar, manter uma

conversa ou realizar cálculos.

Stu: Concordo que devemos tentar alcançar uma definição prática

ou praticável de pensamento. Estou no entanto convencido que as

máquinas não podem pensar. O Fischkov III ganhou-me, mas não pensa.

Eu não pensei o suficiente, mas o Fischkov não pensa nada.

Phil: Admites no entanto que precisamos de critérios para saber se

tens ou não razão. A tua ideia tem de ser reformulada assim: de acordo

com os critérios aceitáveis de pensamento a, b, c, o Fischkov não pensa.

Stu: Está bem, dá-me tu os critérios.

Phil: Não posso. Temos de concordar ambos com os critérios. Só

depois podemos avaliar a tua afirmação acerca do computador. Tens a

certeza que o Fischkov não pensa; logo, parece que para ti jogar bem

xadrez não é um critério suficiente para determinar a existência de

pensamento.

Stu: Estou tão disposto a conceder que o Fischkov pensa como

estou disposto a conceder que a minha máquina de calcular pensa. O

Fischkov limita-se a calcular as várias hipóteses dos movimentos das

peças com muita antecedência. Eu seria um jogador de xadrez muito

melhor se pudesse calcular com a mesma antecedência que o Fischkov.

Phil: Mas que fazes tu exactamente quando jogas que o Fischkov

não faz?

Stu: Eu jogo segundo planos e com objectivos estratégicos, usando

tácticas que me permitem alcançar os meus objectivos.

Phil: Mas como sabes que tens esses planos, objectivos e tácticas?

É outra vez um caso em que falas contigo mesmo sobre estas coisas?

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Stu: É.

Phil: Mas então como sabes que o Fischkov não está a falar com ele

mesmo acerca dessas coisas? Podes ou não inferir que o computador

pensa, a partir do facto de jogar?

Stu: Agora apanhei-te! Eu já vi o programa do Fischkov, e tudo o

que ele faz é calcular: se o meu adversário fizer isto e eu fizer aquilo, e se

depois ele fizer assim e eu fizer assado, ele come-me a rainha. É assim

que o computador faz todos movimentos. É completamente mecânico.

Phil: O Fischkov tem de saber pelo menos que perder a rainha é

mau. Ele tem de fazer algo mais do que calcular -- tem de avaliar

situações. O Fischkov atribui portanto valores a situações.

Stu: Mas o Fischkov não decide fazer um ataque de minorias, ou um

ataque na ala de rei, ou uma medida profilática do tipo que Nimzowitch

fazia.

Phil: E se o Fischkov pudesse responder a perguntas acerca de

conceitos estratégicos como os que acabaste de mencionar? Admitirias

assim que o Fischkov pensa? Não defendes com certeza que pensar bem

em xadrez é um processo interior misterioso e milagroso?

Stu: Receio que continuo a acreditar nesses processos internos.

Tens tentado afastar-me cada vez mais do valor da introspecção, mas

talvez não deva deixar-te fazer isso.

Phil: Está bem, vamos então falar um pouco mais acerca da

introspecção. Supõe que são necessárias algumas condições internas, só

acessíveis introspectivamente, para que exista pensamento. Não tens

com certeza acesso a estes fenómenos com respeito a outros seres

pensantes. Mas apesar de não poderes entrar na minha cabeça, suponho

que acreditas que penso. Além disso, com base em critérios

behavioristas, negas certamente que as roseiras pensam. Por isso, por

que razão havemos de entrar nesta questão dos processos internos? É

claro que admito que nos resta ainda o problema difícil sobre a relação

entre os processos internos e os critérios behavioristas.

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Page 10: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

Stu: Por agora admitirei que se o Fischkov pudesse manipular com

êxito conceitos estratégicos...

Phil: Quer dizer, se o seu programa contivesse termos estratégicos,

ou se com base no seu programa e na maneira como ele joga lhe

pudéssemos atribuir certos conceitos estratégicos.

Stu: Está bem, como queiras. Se o que afirmas é verdade, admitirei

que em certo sentido máquinas como o Fischkov podem pensar. Mas

repara: nós somos pensadores versáteis, somos mais do que jogadores

de xadrez. O nosso pensamento no xadrez está relacionado com o nosso

pensamento noutras áreas. O tipo especial de pensamento necessário

para jogar xadrez pode ser simulado por um computador, mas não é pura

e simplesmente suficiente para caracterizar o pensamento em geral.

Jogar xadrez, ou poder jogar xadrez, pode ser uma condição necessária

para a existência do pensamento, mas não é uma condição suficiente. O

pensamento humano tem de ser versátil, tem de poder ser aplicado a

situações muito diferentes. Planear antecipadamente jogadas de xadrez é

uma coisa, mas planear em geral é outra coisa muito diferente. Lá

porque uma máquina pode jogar xadrez -- e mesmo que possa responder

adequadamente a perguntas sobre a forma como o faz -- não se segue

que possa pensar, pelo menos como nós pensamos. A capacidade para

pensar exige um comportamento mais complexo do que a capacidade

para jogar xadrez.

Phil: Se jogar xadrez não é uma condição suficiente, temos de

encontrar outra maneira de estabelecer critérios que possam fornecer as

condições necessárias e suficientes do pensamento. Parece que já

admitimos que se um agente qualquer X joga xadrez, com um certo grau

de complexidade, então X pensa, num grau idêntico de complexidade.

Um matemático chamado Turing sugeriu um jogo mais ambicioso que, se

fosse ganho por uma máquina, confirmaria o facto de a máquina pensar.

Segundo Turing, ser capaz de ganhar neste jogo é uma condição

necessária e suficiente para que uma máquina pense. Turing chama-lhe o

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jogo da imitação.1 Vejamos se estarias disposto a participar neste jogo. O

jogo da imitação é uma competição entre um ser humano, A, e um

computador, B. Fazem-se perguntas a A e a B, e o objectivo de A ao

responder a essas perguntas é convencer um juiz, C, que ele, A, é o ser

humano; e o objectivo de B é fazer C identificá-lo erradamente como

humano, ou pelo menos não conseguir identificar nenhum dos dois como

uma máquina. Seria injusto e desnecessário deixar C ver A ou B. Afinal de

contas, a aparência exterior não tem qualquer relação com as respostas

às nossas perguntas. Não queremos que B seja discriminado só porque é

uma máquina «feia». Por isso, escondemos A e B, que imprimem as suas

respostas num ecrã ou em papel, para que a aparência da resposta não

denuncie quem é quem. Repara que este jogo exige muito mais à

máquina do que o xadrez; ela vai ter de enfrentar um conjunto muito

vasto de perguntas. Não concordas que, se pudesses ter uma conversa

inteligente com uma máquina, seria uma tolice negar que ela podia

pensar?

Stu: Existem algumas máquinas que consigam ganhar o jogo da

imitação?

Phil: Não é esse o ponto. Mesmo que não existam de facto, hoje em

dia, quaisquer máquinas que possam ganhar o jogo, a simples

possibilidade de poderem existir no futuro força-te a concluir que as

máquinas podem pensar. Nesse caso, já não tens razão para ficar

horrorizado quando se defende que as máquinas podem pensar.

Stu: Parece que tenho de conceder que existe a possibilidade de

fazer um tipo qualquer de experiência crucial para decidir se as máquinas

podem pensar. Mas continuo a pensar que o jogo da imitação é um

bocado suspeito. Não tenho a certeza se conseguir ganhar o jogo é um

critério aceitável para a existência de pensamento. Deixa-me ver se

consigo explicar-me melhor. Que se prova realmente se um computador

ganhar o jogo da imitação? Prova-se apenas que um computador pode

ser programado de maneira a conseguir imitar-nos. Mas quando nós 1 A. N. Turing, «The Imitation Game», in A.R. Anderson, org., Minds and Machines (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 1964).

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pensamos, quando existe verdadeiro pensamento, não estamos a imitar

seja o que for. Tal como no que diz respeito ao Fischkov, o pensamento

envolve algo mais do que aquilo que está presente neste caso. Um

gravador imita muito bem a voz humana; o resultado final é o mesmo,

mas não podemos com certeza afirmar que um gravador canta da

mesma maneira que nós. Por mais complexa que seja a imitação, não

passa de uma imitação. Talvez se possa formular esta ideia assim: a

máquina só pode imitar o produto final do nosso pensamento -- imprime

respostas que são semelhantes às respostas que nós, humanos,

imprimimos. Mas a máquina não pode imitar o pensamento que está por

detrás dessas respostas.

Phil: Bom, parece que voltámos ao mesmo. Afirmas outra vez que

não se trata apenas do que as máquinas podem fazer (como jogar

xadrez, por exemplo); trata-se antes da maneira como o fazem. Como

deves recordar-te já lidámos antes com este problema. Notámos quão

difícil é explicar noções como «o pensamento que está por detrás» de

uma acção, a não ser que esse pensamento seja qualquer coisa como

falar ou escrever para nós mesmos; mas por que razão não pode uma

máquina fazer isso? E afinal como pensam exactamente os seres

humanos? Que sabemos nós acerca disso? Os psicólogos concordam

todos com alguma teoria? Afinal, há muitas teorias diferentes sobre a

maneira como os seres humanos pensam. Sabes o suficiente sobre o

pensamento humano para que o teu argumento seja defensável?

Stu: Continuo a pensar que as máquinas têm de fazer mais do que

conseguir ganhar o jogo da imitação, para podermos afirmar que

pensam. Afinal de contas, por mais complexo que seja o jogo da imitação,

não passa de um jogo.

Phil: Isso não é verdade. O jogo da imitação é o jogo dos jogos.

Qualquer jogo pode ser considerado parte do jogo da imitação. Podes

pedir a B para jogar às damas, ao galo, e até mesmo à batalha naval.

Stu: Mas o pensamento é mais do que jogar todos esses jogos.

Phil: É o quê?

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Stu: O pensamento tem sempre um objectivo. Nós não nos

limitamos a pensar; pensamos com objectivos...

Phil: Estás a dizer que as máquinas não têm objectivos, fins,

intenções e assim por diante?

Stu: Exactamente. Talvez as máquinas possam jogar xadrez, mas

não podemos dizer que pensam a não ser que joguem com um objectivo

qualquer, como ganhar, ou divertir-se, ou outro objectivo humano

qualquer.

Phil: Não quero aborrecer nem irritar-te, mas vou adoptar uma vez

mais a minha estratégia do costume: como sabes que tens objectivos?

Não é como se dissesses por vezes a ti mesmo «o meu objectivo é este»,

ou «é isto que quero», ou ainda «agora gostava de jogar xadrez»? Por

vezes acontece teres gostado de praticar certas actividades no passado;

e assim, se nada de relevante mudou, queres fazer essas coisas outra

vez.

Stu: Posso aceitar a tua formulação. Mas não faz com certeza

sentido afirmar que uma máquina gosta de fazer o que quer que seja. É

verdade que a máquina pode «dizer» que gosta de qualquer coisa, mas

não pode realmente gostar. Não pode gostar de seja o que for porque

não sente nada. Provavelmente já devia ter dito isto antes.

Phil: Diz-me que coisas sentiste da última vez que jogaste um bom

jogo de xadrez -- ou ténis, tanto faz. Onde estava exactamente o teu

sentimento de contentamento? No estômago, na cabeça, nos cotovelos?

Penso que damos muita importância ao que sentimos. É claro que

sentimos coisas, como cócegas, dores, sensações de conforto e calor;

mas o nosso pensamento não parece envolver nada disso de forma

essencial. E depois, é claro, temos o velho problema de determinar como

sabes que as outras pessoas sentem coisas. Com certeza que admites

que sabes, ou pelo menos que acreditas, baseado em dados fidedignos,

que as pessoas sentem coisas. Inferes ou não que as pessoas sentem

coisas baseado no comportamento delas? Se adoptas esta posição

behaviorista com respeito às pessoas, por que não aceitas o

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Page 14: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

behaviorismo com respeito às máquinas? Espero que não sejas um

fanático anti-máquinas!

Stu: O behaviorismo só parece fazer sentido em relação às pessoas.

Se não tenho a certeza de estar a lidar com pessoas, então não tenho a

certeza de estar a lidar com um comportamento, ou pelo menos com um

comportamento humano. O que me preocupa é parecer que só posso

usar critérios behavioristas se já souber quem é o ser humano -- ou pelo

menos o candidato a ser humano -- e quem é a máquina. Para distinguir

as máquinas das pessoas eu devia ter outra maneira qualquer que fosse

independente do argumento behaviorista que determina que os agentes

sentem.

Phil: Era o que ia dizer...

Stu: Mas espera, ainda não desisti. Que dizes a este outro

argumento? Um -- só os seres vivos podem sentir coisas. Dois -- um

computador não é um ser vivo. Três -- logo, um computador não pode

sentir nada. Logo, um computador não é um ser humano.

Phil: Há um conjunto de coisas a dizer sobre este argumento. Em

primeiro lugar, fico sempre impressionado com o apelo a argumentos.

Mas por que razão hei-de aceitar a premissa um do argumento? A noção

de ser vivo não é suficientemente clara. Onde traçamos a linha entre a

vida e a ausência de vida? Por exemplo, os vírus são seres vivos? Será

evidente que os seres inanimados não podem sentir coisas? Ou talvez os

computadores possam ser considerados seres vivos, segundo algumas

definições razoáveis de ser vivo.

Stu: Deves estar a brincar. Se uma máquina é um ser vivo, desisto.

As máquinas são exemplos claros de seres inanimados. Isto é verdade

por mais vago que seja o conceito de ser vivo.

Phil: Mesmo que conceda o que afirmas, ainda não mostraste que

os seres inanimados não podem pensar. Não me parece que tenhas feito

um grande progresso.

Stu: Estou a ver que te sentes confiante, o que é óptimo. Admito

que não fui muito longe; mas, afinal de contas, sou apenas um estudante

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Page 15: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

-- é verdade que sou um estudante de matemática, mas ainda assim sou

apenas um estudante. Por outro lado, és um professor de filosofia. Este

não tem sido por isso um debate justo. Conheço um professor de

matemática que tenho a certeza que pode lidar contigo mais em pé de

igualdade. Já discuti com ele este problema da mente/máquina e posso

assegurar-te que ele não é nenhum simpatizante do mecanicismo. Na

verdade, ele disse-me várias vezes que conhece uma refutação

matemática do mecanicismo. Estás disposto a encontrares-te amanhã

connosco, para ver se podes refutar a refutação dele? Ou só discutes com

estudantes?

Phil: Tal como deves saber, nós filósofos investigamos a verdade

até onde essa investigação nos conduzir -- mesmo que nos conduza a um

professor de matemática. Traz-me lá então o teu professor de

matemática.

O SEGUNDO DIA

Matt: Stu disse-me que lhe dava jeito uma ajuda, por isso cá estou.

Sei que vocês, os filósofos, são por vezes bastante rudes. E até aposto

que muitos filósofos discordam de ti. Tenho a certeza que o argumento

que vou apresentar não é tão simples como os outros que vocês

discutiram. O meu argumento exige, entre outras coisas, uma

compreensão de um resultado lógico-matemático conhecido por teorema

de Gödel, umas das grandes descobertas científicas do século vinte.

Aliás, não é apenas uma grande descoberta científica, mas também uma

grande descoberta filosófica, uma vez que este teorema, explicado e

interpretado de maneira conveniente, prova de uma vez por todas que o

homem não é uma máquina, e que as máquinas não pensam. Ouvi dizer

que sabes algumas coisas sobre máquinas de Turing e sistemas

matemáticos formais; por isso, não deves ter muita dificuldade em seguir

o argumento.

Phil: Sou todo ouvidos.

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Page 16: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

Matt: Parece que nós temos, de facto, uma ideia intuitiva de

máquina. O termo português «máquina» vem da palavra grega que

significa «invenção engenhosa». Parece que apresentaste exemplos do

tipo de máquinas que estamos a discutir, como o Fischkov, por exemplo.

Mas qual é a essência de uma máquina? Não é com certeza o facto de ter

engrenagens, válvulas, transístores ou microchips. Para poder aplicar o

resultado lógico-matemático de Gödel ao problema homem/máquina,

precisamos de ter uma maneira de relacionar a nossa noção intuitiva de

máquina com a noção de Gödel de sistemas ou teorias formais.

Precisamos de uma propriedade lógica ou matemática que represente a

nossa noção intuitiva ou filosófica de «mecânico». Por outras palavras,

precisamos de um princípio de ligação. Repara que o princípio de ligação

tem de ter um pé na lógica matemática e outro na filosofia ou na

psicologia. Felizmente, temos um princípio desse género à nossa

disposição. Não é um teorema lógico-matemático, mas antes uma tese --

ou até uma hipótese; uma explicação de uma noção intuitiva em termos

matemáticos. Esta tese é conhecida como «a tese de Church». Antes de

apresentá-la, quero tornar precisa a nossa noção intuitiva de máquina.

Precisamos de fazer isto para poder dar o devido valor ao que a tese de

Church afirma.

Primeiro de tudo, faço uma distinção entre dispositivos físicos e

mecânicos. Nem todos os dispositivos físicos são mecânicos, e os

dispositivos mecânicos não têm de ser físicos. As máquinas têm de ter

estados discretos, e as suas operações têm de poder ser descritas em

termos discretos.* Isto é mais ou menos o mesmo que dizer que as

máquinas são computadores digitais, ou computadores que têm estados

discretos. Podemos agora supor que o comportamento de qualquer

máquina pode ser descrita pelo input e pela sucessão dos seus estados. A

tese de Church, o nosso princípio de ligação, pode exprimir-se como se

* Para que uma quantidade seja discreta tem de poder ser colocada numa relação um-um com o conjunto dos números naturais. Intuitivamente: as maçãs são uma quantidade discreta (são contáveis), mas a água não é uma quantidade discreta (não é contável). (N. do T.)

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Page 17: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

segue: O que pode ser calculado por uma máquina é computável.2

Precisamos agora de explicar o termo «computável». Podemos usar o

termo simplesmente para denotar «computável por uma máquina de

Turing». Há muitas noções equivalentes de computável, uma das quais é

a representabilidade num sistema formal. Vou usar indiscriminadamente

a expressão «computável por uma máquina de Turing» e a interpretação

de computável num sistema formal. Um sistema formal pode ser visto

com vantagem como um conjunto de instruções dadas a um pateta

(perdoa-me esta expressão grosseira). As sucessões de símbolos podem

ser examinadas unicamente a partir da sua configuração, e algumas

podem ser identificadas como axiomas e outras como regras dadas; estas

últimas permitem também que se gerem teoremas a partir dos axiomas.

Nada precisa de ser compreendido; o único requisito é as configurações

ou formas serem reconhecidas. Estamos agora em condições de dar o

devido valor ao poder da tese de Church, e de ver como nos oferece, em

conjunção com o teorema de Gödel, uma refutação hábil do

mecanicismo.

Dada a tese de Church, é fácil de ver que todas as máquinas são

equivalentes a máquinas de Turing ou sistemas formais. Como espero

que te recordes, estas máquinas de Turing ou máquinas idealizadas têm

um número finito de configurações internas. Cada uma destas

configurações representa um estado da máquina. Em cada um destes

estados a máquina lê uma fita magnética na qual surgem certos

símbolos. A fita está dividida em unidades discretas em cada uma das

quais um símbolo de um certo alfabeto pode ser gravado. A máquina

pode ler uma dessas unidades discretas de cada vez, e tem capacidade

para gravar e apagar a fita. Uma máquina de Turing pode ser

inteiramente descrita por uma tabela mecânica que mostra passo a

passo como a máquina opera. Graças à tese de Church e outras tese

relacionadas com esta que não irei explicar, podemos assim falar

2 «O que pode ser calculado por uma máquina» é a nossa formulação da expressão «efectivamente calculável» de Church.

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Page 18: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

indiferentemente de máquinas, máquinas de Turing, e sistemas formais.

Mas já falei muito. Ainda estás aí?

Phil: Ainda cá estou, e penso que segui a maior parte do que

disseste, apesar de não fazer ideia de onde queres chegar com tudo isto.

Realmente, concordo que precisamos de uma boa definição de máquina,

mas a tese de Church, que te parece tão óbvia, não conseguiu

convencer-me. Parece realmente captar o que há de mecânico nas

máquinas. (Não há aqui uma distinção que pode ser relevante entre

analógico e digital?) Talvez precise de pensar um pouco mais sobre isto.

Não vejo que tenhas de facto argumentado a favor da tese de Church.

Não mencionaste o teorema de Gödel há bocado? Onde entra ele no teu

argumento contra o mecanicismo?

Matt: Era aí que eu ia chegar. Gödel, ou talvez tenha sido Gödel e o

próprio Church, mostraram -- quer dizer, provaram -- que todos os

sistemas formais têm certas limitações. (Não te esqueças que se os

sistemas formais têm limitações, as máquinas que lhes correspondem

também têm limitações.) Tomemos um sistema formal para a aritmética,

um sistema que possa exprimir as operações de adição e multiplicação.

Se este sistema formal contiver todas as verdades desta aritmética como

consequências lógicas dos axiomas do sistema, então diz-se que o

sistema é completo, o que é um conceito muito importante. Há uma

maneira de garantir que um sistema é completo. Sabes como é?

Phil: Sei. Mas podes responder à tua pergunta em atenção a Stu.

Matt: Uma maneira de tornar um sistema completo é fazê-lo ser

inconsistente: todas as frases da aritmética se seguem de um conjunto

inconsistente de premissas. É por isso que é tão importante evitar as

contradições: das contradições segue-se seja o que for. Só nos

interessam sistemas formais completos e consistentes. A propósito,

supõe que existe uma só frase da aritmética que não é um teorema (isto

é, que não é derivável) no sistema formal; o que se segue daí?

Phil: Dado o que já disseste, mesmo que exista apenas uma frase

da aritmética que não é derivável, isso significa que o sistema é

18

Page 19: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

consistente. A propósito, consegues provar que de uma contradição se

segue seja o que for? Podes demonstrar isso a uma pessoa que não sabe

lógica, como Stu?

Matt: Claro. Que queres que deduza? Escolhe o que quiseres.

Phil: Prova-nos que 2 + 2 = 5.

Matt: Deixa-me começar por escrever as frases inconsistentes ou

contraditórias. Vamos chamar-lhes «P» e «não P». Elas são as premissas

do argumento. Vamos chamar «Q» à frase «2 + 2 = 5». Vou agora

deduzir «Q» a partir de «P» e «não P». Primeiro posso escrever «P». A

justificação é o facto de se tratar de uma premissa. Depois escrevo «P ou

Q». «P ou Q» segue-se de «P». Se uma frase é verdadeira, então essa

mesma frase, conectada através de «ou» com qualquer outra frase,

forma uma frase maior que é também verdadeira. Se é verdade que

«hoje é quinta-feira», então «hoje é quinta-feira ou a lua é feita de

queijo» é também verdadeira.

Phil: Acho que compreendo.

Matt: Agora posso escrever «não P». Afinal, trata-se de outra

premissa. Mas se «P ou Q» é verdadeira e «não P» é verdadeira, então é

óbvio que «Q» tem de ser verdadeira. Estás portanto a ver que deduzi

que «2 + 2 = 5». Estás a ver por que razão as pessoas com uma

educação lógica e matemática odeiam as contradições. As contradições

estragam o pensamento racional.

Phil: Está bem, estou a ver por que desejamos sistemas que sejam

simultaneamente consistentes e completos. Não podemos tê-los?

Matt: Não, nem sempre. Gödel mostrou que qualquer sistema

formal que inclua a aritmética da adição e da multiplicação tem de ser

inconsistente ou incompleto -- ou, o que é o mesmo, que se o sistema é

consistente, então é incompleto. Esta é a conclusão de Gödel. Vejamos

como ele chegou lá.

Consideremos um sistema formal axiomático para a aritmética. Tais

sistemas têm por objectivo sistematizar as verdades da aritmética. O que

se procura é um sistema que seja simultaneamente completo -- isto é,

19

Page 20: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

em que todas as verdades sejam teoremas (ou seja, consequências

lógicas dos axiomas; e os axiomas são, é claro, consequências lógicas

deles mesmos) -- e consistente (tem de haver pelo menos uma frase da

aritmética que não é um teorema, pois se o sistema fosse inconsistente,

todas as frases da aritmética, tanto as verdadeiras como as falsas,

seriam teoremas). A linguagem para o nosso sistema aritmético contém

símbolos como «1», «13», «+», «=», tal como símbolos lógicos. A maior

parte das frases será da forma «1 + 1 = 2», ou «8 ´ 3 = 24». Uma

demonstração é unicamente uma sucessão destas frases, começa com

axiomas e termina com uma consequência lógica desses axiomas. Não te

esqueças que o que é ou não uma demonstração é unicamente uma

questão mecânica, algo que o nosso pateta ou a máquina de Turing pode

manipular. É tudo uma questão de ter a forma ou a configuração certa.

No sistema aritmético falamos de números e de relações numéricas. O

que Gödel mostrou foi que há uma maneira de usar as frases aritméticas

do sistema para falar não apenas de números, mas também das frases

do sistema. As frases aritméticas podem ser codificadas de forma a

poderem receber uma interpretação de acordo com a qual essas frases

dizem qualquer coisa acerca de si próprias. Não temos de nos preocupar

com os detalhes da técnica de Gödel, chamada numeração de Gödel, mas

penso que posso dar-te um esboço da ideia. Listamos o vocabulário

empregue no sistema, e atribuímos um numeral a cada símbolo. As

combinações de símbolos, em particular as frases, terão numerais que

resultam da combinação dos seus símbolos constituintes. Cada frase

recebe assim um número de Gödel único por meio do seu numeral de

Gödel único. As propriedades das frases são representadas por

propriedades aritméticas; por exemplo, «é um axioma» e «é um

teorema» serão representadas por propriedades aritméticas. O nosso

código permite-nos dizer exclusivamente na linguagem aritmética que,

por exemplo, a frase «7 ´ 6 = 42» é um teorema. Podemos pôr as coisas

de maneira menos vaga. Chamemos S ao sistema formal de aritmética. A

cada fórmula de S, incluindo as frases, atribui-se um numeral e um

20

Page 21: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

número únicos. Este processo permite-nos codificar derivações lógicas e

até nos fornece uma versão codificada da relação de demonstração, que

será unicamente um functor aritmético complicado (ou uma função

aritmética, se passarmos da referência aos numerais para a referência

aos números).* Por outras palavras, se [m] tem a versão aritmética da

relação de demonstração com [n] (ou se [m] é uma demonstração de [n],

em que as letras entre parênteses são números ou variáveis de

números), então pode dizer-se que a frase codificada por [n] é um

teorema de S. É assim que através da codificação, em S, podemos falar

de demonstrabilidade ou teoremicidade e de não demonstrabilidade ou

não teoremicidade. Mas se estamos a falar de teoremicidade, a nossa

linguagem é gramatical, sintáctica, metalinguística, metamatemática.

O que Gödel conseguiu foi a aritmetização da sintaxe da aritmética.

Gödel mostrou que podemos usar a matemática para falar acerca da

matemática, que podemos usar a matemática para fazer

metamatemática. Entre as frases que podemos exprimir no nosso código

aritmético está a frase «‘F’ não é um teorema», em que «F» é ela própria

a frase «‘F’ não é um teorema». «F» diz assim de ela própria que não é

um teorema. Há uma frase do nosso sistema aritmético, chamemos-lhe

«F», que diz, segundo o nosso código, que ela própria não é um teorema.

O que Gödel concluiu foi que, se o sistema aritmético em causa é

consistente, então «F» tem de ser indecidível nesse sistema, porque «F»

diz de si própria que não é um teorema. Isto porque se o sistema

contivesse «F», seguir-se-ía que «F» seria um teorema, mas «F» diz

(segundo o código) que «F» não é um teorema. Assim, «F» seria um

teorema, porque o sistema contê-la-ía, e «F» não seria um teorema

porque «F» diz que «F» não é um teorema. Logo, «F» seria e não seria

um teorema. Bom, se considerarmos por outro lado que «F» não é um

teorema, então talvez «não-F», a frase que afirma que «‘F’ é um

teorema», seja um teorema. Mas se «não-F» é um teorema, então «F» é

um teorema; mas «F» é a frase «‘F’ não é um teorema». Logo, temos

* «2» e «II», são numerais (ou nomes) diferentes do mesmo número: dois. (N. do T.)

21

Page 22: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

outra vez a contradição: «F» é um teorema e «F» não é um teorema. «F»

é assim uma frase aritmética indecidível do nosso sistema. Diz-se por isso

que «F» é uma frase indecidível. Qualquer sistema axiomático formal

para a aritmética que inclua a adição e a multiplicação terá uma frase

indecidível. O que temos aqui é, pois, uma limitação que todos os

sistemas formais com um certo âmbito têm: se são consistentes, então

são incompletos. Este é o famoso resultado da incompletude de Gödel.

Aplica-se a sistemas formais, ou às máquinas de Turing -- e, se

aceitarmos a tese de Church de que uma máquina é unicamente uma

realização de um sistema formal ou de uma máquina de Turing, então

Gödel demonstrou uma limitação das máquinas em geral, ou pelo menos

de qualquer máquina modesta que possa fazer aritmética. Dado este

resultado, suponho que já estás a ver qual vai ser o próximo passo do

argumento.

Phil: Já estou realmente a ver, mas gostava muito de ter algum

tempo para rever o argumento de Gödel. Sabes que nós filósofos não

vemos muitas vezes argumentos apresentados desta forma. Dá-me

algum tempo para pensar um bocado, e talvez até para ler qualquer

coisa. Depois terei muito prazer em ver-te dar os últimos retoques no teu

argumento. O argumento de Gödel como uma refutação do mecanicismo

-- estou espantado.

O TERCEIRO DIA

Phil: Estou pronto para te deixar concluir a tua «refutação» do

mecanicismo (homem = máquina). Tenho no entanto algumas perguntas

já prontas para ti.

Matt: Está bem. Gödel provou que os sistemas formais

suficientemente ricos para conter a aritmética da adição e da

multiplicação ou são inconsistentes ou incompletos. Se são consistentes,

então são incompletos; isto é, há algumas frases verdadeiras que não são

demonstráveis no sistema. As máquinas de Turing, ao imitar estes

22

Page 23: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

sistemas formais exibirão uma limitação paralela; serão incapazes de

imprimir todas as verdades da aritmética. A frase «F», em que «F» = «‘F’

não é demonstrável» -- a frase de Gödel --, indecidível para as máquinas,

representa o que um autor chamou «o calcanhar de Aquiles do

mecanicismo». Nós somos diferentes das máquinas; somos superiores em

pelo menos um aspecto: podemos identificar algumas verdades que as

máquinas não podem. De facto, sabemos que a frase de Gödel é

verdadeira. Deixa-me reformular isto: qualquer simulação mecânica da

mente tem de incluir uma máquina que possa gerar as verdades da

aritmética. Afinal, a aritmética é algo que a mente humana consegue

dominar. Mas há um aspecto no qual a simulação da mente tem de

falhar: a componente aritmética não será capaz de exibir a verdade de

certa frase, que nós podemos. Isto mostra que uma simulação mecânica

da mente é impossível; a mente não é uma máquina. Lá se vai também o

Fischkov III! Foi um filósofo inglês chamado Lucas que surgiu com este

argumento, mas orgulho-me, como matemático, de o ter adoptado.

Phil: Parece-me que tens uma espécie de argumento do jogo da

imitação, em que a pessoa que faz as perguntas consegue distinguir o

homem da máquina fazendo perguntas de natureza metamatemática. Se

a pessoa que faz as perguntas conhecer os resultados de Gödel e Church,

o ser humano consegue ganhar o jogo. O meu argumento da máquina de

Turing ressuscitou para me vir assombrar.

Matt: Acho que se quiseres podes ver o meu argumento dessa

maneira.

Phil: Pergunta-se à máquina: «Podes demonstrar ‘F’, a frase de

Gödel?» E ela responde: «Não posso demonstrar ‘F’ e não posso

demonstrar ‘não F’. ‘F’ é para mim uma frase indecidível.» É claro que

esta frase «F» é de facto uma frase da aritmética. Codificada, «F» afirma

que «F» não é demonstrável. Quando um ser humano responde à mesma

questão, a resposta é: «Apesar de a frase ser indemonstrável no sistema,

vejo que é verdadeira.» (Para «afirmar» que uma frase é verdadeira, as

máquinas imprimem-nas, enquanto os sistemas formais as incluem como

23

Page 24: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

teoremas.) Concedo-te que a máquina não consegue decidir se «F» é

verdadeira ou não. Mas que te faz ter a certeza que o ser humano

consegue decidir?

Matt: Não se trata de ver a sua verdade como uma frase da

aritmética. Afinal, é provável que a máquina seja melhor em aritmética

do que nós. Trata-se da interpretação codificada; i.e., é «F» enquanto

uma frase metamatemática ou sintáctica que nos permite reconhecer a

sua verdade. Sabemos que «F» é verdadeira, em que «F» = «‘F’ não é

um teorema», porque se «F» fosse falsa, o sistema seria inconsistente;

mas nós sabemos que o sistema é consistente; logo, «F» tem de ser

verdadeira. «[...] qualquer ser racional poderia seguir o argumento de

Gödel, e ficar convencido que apesar de a fórmula de Gödel ser

indemonstrável no sistema dado, ela é no entanto, por essa mesma

razão, realmente verdadeira.»3

Phil: Não vejo por que razão não pode a própria máquina seguir o

argumento de Gödel. Afinal, a máquina que participa no jogo da imitação

é mais do que uma máquina de aritmética; não há coisa alguma no

argumento de Gödel que uma máquina não possa dominar.

Matt: Não percebeste o ponto. A componente aritmética da

máquina tem a sua frase de Gödel, mas a máquina mais inclusiva, que

contém a componente aritmética, tem a sua própria frase de Gödel. É

esta frase que a máquina mais inclusiva não pode dominar, mas que nós

podemos. Repara, nenhuma máquina, por mais inclusiva que seja,

conseguirá evitar a frase de Gödel; logo, será incapaz de defender a sua

própria consistência -- mas nós, humanos, podemos ver que a máquina é

consistente.

Phil: Mas como podes ter assim tanta certeza que o sistema mais

compreensivo é consistente, e que portanto a sua «F» é verdadeira? Só

porque apelas para a consistência do sistema aritmético que codifica até

mesmo o sistema mais inclusivo? Mas então por que razão não poderia a

máquina fazer uma coisa análoga? Afinal, a máquina pode demonstrar 3 J. R. Lucas, «Minds, Machines and Gödel», in A.R. Anderson, org., Minds and Machines, p. 47.

24

Page 25: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

que se M (a máquina) é consistente, então «F». («F» não é

demonstrável.) Continuas a ter de mostrar a consistência de M, o que

concedo que M não pode demonstrar.

Matt: Estás a ficar muito bom nestes argumentos. Posso mostrar

que M é consistente porque eu, incluindo a minha componente

aritmética, sou consistente, e se supõe que M me representa.

Phil: Muito bem, mostra-me como consegues defender a tua própria

consistência. Estou a ver que poderás ter de assumir a tua consistência.

Mas não consigo ver como conseguirás demonstrá-la.

Matt: Bom, deixa-me recordar-te que o segundo teorema de Gödel

mostrou que uma máquina não pode provar a sua própria consistência,

mas

parece próprio e razoável que uma mente afirme a sua própria consistência:

próprio, porque apesar de as máquinas, tal como poderíamos esperar, serem

incapazes de reflectir completamente sobre o seu próprio desempenho e

sobre os seus próprios poderes, a capacidade para ter este tipo de auto-

consciência é no entanto precisamente o que esperamos das mentes; e

razoável, pelas razões justamente dadas. Não só podemos dizer

simplesmente que sabemos que somos consistentes, à parte os nossos

erros, como assumimos em qualquer caso que o somos, se é que o

pensamento é de todo possível. Além disso, nós somos selectivos: ao

contrário das máquinas consistentes, não diremos indiscriminadamente tudo

e mais alguma coisa; e finalmente, nós podemos de certa maneira decidir

ser consistentes, no sentido em que podemos resolver não tolerar

inconsistências no nosso pensamento e no nosso discurso, e eliminar as

inconsistências se alguma vez aparecerem, retirando e cancelando um dos

lados da contradição.4

Phil: As coisas estão a ficar cada vez mais curiosas. Começaste com

um argumento baseado no teorema de Gödel e na tese de Church, e

acabaste com o que me parecem ser afirmações vagas e metafísicas

sobre a auto-consciência humana e a consistência da mente humana.

4 Ibid., p. 56.

25

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Não tenho sequer a certeza se faz sentido dizer que os seres humanos

são consistentes ou inconsistentes. Mas, se faz sentido, tenho um

argumento interessante na manga. Penso que devias olhar outra vez

para a estratégia do teu argumento. Tentaste usar o primeiro teorema de

Gödel para refutar o mecanicismo; mas depois reparaste na exigência de

consistência do segundo teorema. Tiveste de mostrar que apesar de a

máquina não poder lidar com o problema da consistência, (segundo

teorema de Gödel), um ser humano poderia fazê-lo. Argumentaste que o

sistema era consistente porque as mentes humanas são consistentes; e

as mentes humanas podem estabelecer a sua consistência porque são

pela sua própria natureza auto-conscientes.

Matt: Espera aí. Não vês que isso é o âmago do meu argumento? As

máquinas são objectos inanimados, que não podem consequentemente

reconhecer a sua própria consistência.

Phil: Mas que é exactamente um objecto inanimado -- ou um ser

vivo, tanto faz? E como passas de ser vivo para auto-consciente? Parece

que as coisas vão de mal a pior. Pensava que ias usar um argumento

matemático.

Matt: Admito que o meu argumento parece ser mais uma questão

de análise conceptual do que de demonstração matemática. A chave é o

conceito de (auto-)consciência. Tens de ver que, por exemplo,

o conceito de um ser consciente é, implicitamente, diferente de um objecto

não consciente. Quando dizemos que um ser consciente sabe algo, não

estamos apenas a dizer que ele o sabe, mas também que ele sabe que o

sabe, e que ele sabe que sabe que o sabe, e assim por diante, até onde

quisermos ir; há aqui, reconhecemos, um infinito, mas não é uma regressão

ao infinito no mau sentido, uma vez que são as perguntas que ficam de fora,

e não as respostas.5

5 Ibid., p. 57.

26

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Phil: A tua fuga para a análise conceptual parece-me uma completa

derrota. Por que precisaste afinal do teorema de Gödel? Por causa da

natureza especial das frases de Gödel, que são auto-referenciais?

Matt: Acertaste mesmo em cheio. Nós, humanos, temos a auto-

reflexão necessária para responder às perguntas de Gödel, mas uma

máquina não pode fazer nada com as frases de Gödel.

Phil: Talvez sejas mais esperto do que eu, mas não vejo que a auto-

referência seja uma propriedade inerente das frases de Gödel. A auto-

referência não se deve simplesmente à sua codificação particular? A frase

aritmética «F = ela mesma» não precisa de envolver qualquer auto-

referência. Em qualquer caso, estás disposto a aceitar que todo o teu

argumento intricado, a tua «refutação» do mecanicismo, se apoia neste

ponto?

Matt: Tenho impressão que neste caso tenho de evocar o meu

direito a ficar calado. Confiava tanto neste argumento até à nossa

discussão, que agora não sei como reagir. Os filósofos têm uma

reputação bem merecida de confundir as pessoas.

Phil: Não te parece que apesar de toda a tua confusão estás agora

melhor? Agora, pelo menos, sabes que não sabias. Tenho mais algumas

perguntas para te fazer sobre o teu argumento. Mas, antes de te fazer

essas perguntas, e como fiz o meu trabalho de casa, tenho um contra-

argumento semi-original para te confundir ainda mais.

O argumento original tentava mostrar que todas as máquinas

teriam de ser ou inconsistentes ou incompletas. Esta era a limitação das

máquinas que nos tornava a nós, humanos, superiores. Nós éramos

completos sem ser inconsistentes. Mas não estaremos nós, falantes do

português, numa situação ainda pior do que as máquinas? As máquinas

não podem codificar a noção comum de verdade da língua portuguesa

(estão limitadas à demonstrabilidade) porque têm a limitação de Gödel; a

suposição de que a aritmética poderia codificar completamente o

português e a noção de verdade, uma suposição que Gödel não fez, tem

de ser falsa. O máximo a que as máquinas podem chegar, como vimos, é

27

Page 28: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

à demonstrabilidade. As máquinas afirmam verdades provando

teoremas. Mas nós podemos (justificadamente) afirmar verdades sem

demonstrar seja o que for. Só precisamos de uma certa justificação.

Demonstrabilidade é o mais próximo que as máquinas conseguem chegar

à verdade. A suposição de que a codificação aritmética do português

pode ser expressivamente completa é, como indicámos acima, um erro.

Isto parece ser apenas outra maneira de mostrar a nossa superioridade

sobre a aritmética e as suas realizações mecânicas. Nós podemos

distinguir a verdade da demonstrabilidade, mas as máquinas não podem.

A frase de Gödel, como te lembras, era tal que a máquina não podia

demonstrá-la; no entanto, nós podíamos «ver» a sua verdade. Se não

fosse verdadeira, a aritmética e aquela parte do português que inclui a

aritmética seria inconsistente, e portanto todo o nosso português seria

inconsistente; mas nós «sabemos», ou «vemos» que isto não é o caso.

Mas não é antes uma vantagem que a máquina não possa exprimir a

verdade da maneira como nós o fazemos em português? E isto porquê?

Bom, porque infelizmente podemos muito bem produzir o que parece

uma frase perfeitamente correcta em português que diz de si própria não

que não é demonstrável, mas que não é verdadeira; e.g., «F não é

verdadeira», em que «F» designa «‘F’ não é verdadeira» («F» é uma

abreviatura de «‘F’ não é verdadeira».) Uma vez que demos à outra frase

(a frase da demonstrabilidade) o nome de Gödel, vamos chamar a esta

outra a frase de Tarski, em nome do grande lógico polaco que

desenvolveu a teoria semântica da verdade, Alfred Tarski. O português,

ao contrário da aritmética, contém frases de Tarski. Mas qualquer

linguagem que contenha uma frase de Tarski tem de ser inconsistente,

pois as frases de Tarski são verdadeiras se e só se são falsas (e são falsas

se e só se são verdadeiras). Logo, o português é inconsistente; logo,

quem fala português (inglês, ou francês, tanto faz) é inconsistente. Mas

as máquinas que usam uma linguagem aritmética não são

necessariamente inconsistentes; Gödel mostrou apenas que elas são ou

inconsistentes ou incompletas; mas não é melhor ser ou inconsistente ou

28

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incompleto do que ser inconsistente? Não é a incompletude, por exemplo,

um vício ou uma fraqueza menor? Por isso, não acaba o argumento de

Gödel-Church-Lucas por demonstrar a nossa inferioridade em relação aos

robôs, em vez de demonstrar a nossa superioridade em relação a eles?

Matt: Tem piedade de mim e deixa-me ir para casa tomar umas

aspirinas. Quando a minha cabeça ficar mais clara, voltarei para voltar a

ser castigado. Talvez nessa altura consiga virar o feitiço contra o

feiticeiro. Em qualquer caso, é um belo sonho.

QUATRO HORAS DEPOIS

Matt: Estou de volta, e já me sinto melhor. A minha confiança

voltou. Até te deixo começar!

Phil: Quero falar mais um bocadinho da tese de Church, que é, em

termos gerais, a tese que identifica uma máquina com uma realização de

um sistema formal ou máquina de Turing. Não tenho a certeza se

devemos aceitar esta definição; afinal, é uma definição ou explicação, e

não um resultado matemático ou lógico. É claro que sem a tese de

Church todo o teu argumento (assim como a minha réplica) se

desmorona logo desde o início, uma vez que não poderias argumentar a

partir das limitações dos sistemas formais (do sistema de Gödel) para

chegar às limitações das máquinas em geral.

Matt: Mas quase toda a gente aceita a tese de Church.

Phil: Achas que isso é um argumento?

Matt: A sério, a tese de Church fornece-nos uma explicação precisa

do conceito intuitivo de processo mecânico. A tese de Church explica os

processos mecânicos em termos de noções matemáticas, tais como

sistemas formais e máquinas de Turing. Além disso, o facto de diferentes

explicações dos processos mecânicos -- quer em termos de sistemas

formais, quer em termos de máquinas de Turing -- acabarem por ser

equivalentes, oferece-nos mais uma confirmação indirecta da tese de

Church. Por outras palavras, a tese de Church (recursividade), a tese de

29

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Turing (máquina de Turing), e a tese de Kleene-Post (sistemas formais),

acabam por ser equivalentes. Admito no entanto que não se pode nunca

demonstrar que uma noção intuitiva como a de um processo mecânico é

equivalente a uma expressão matemática precisa, expressa em termos

de máquinas de Turing ou de sistemas formais. Se achas que nada disto

é persuasivo, desafio-te a arranjar uma explicação melhor, ou pelo menos

a arranjar uma alternativa à tese de Church. Aliás, nem sequer me deste

ainda uma só razão para duvidar da tese de Church. Achas que as

máquinas podem fazer mais do que a tese de Church afirma?

Phil: Bom, quero primeiro recordar-te que o teu argumento, mau

como é, apoia-se completamente na aceitação da tese de Church.

Concedo-te que a aceitação da tese de Church nos permite falar de uma

maneira precisa sobre máquinas. Aprecio o que ganhamos em clareza,

mas exige-se mais de uma boa explicação do que a clareza e a precisão

da expressão que a explica (explicans); é também necessário que a

expressão explicans capture adequadamente a noção intuitiva que

pretende explicar. Ainda me sinto perturbado, por exemplo, com a

distinção analógico/digital…

Matt: Ainda não me deste nenhuma alternativa clara à tese de

Church. Parece-me que, a menos que o faças, as nossas possibilidades de

lidar com o problema mente/máquina estão seriamente limitadas. A tese

de Church dá-nos uma maneira de compreender o conceito de máquina,

e fá-lo de maneira matematicamente elegante.

Phil: Talvez exista uma maneira alternativa, matematicamente

elegante, de representar as máquinas, ou talvez não exista sequer uma

tal explicação matematicamente elegante. Afinal, não temos de ficar

desesperados por não conseguirmos explicar isto de uma maneira

elegante. A clareza e a precisão não querem necessariamente dizer

clareza e precisão matemáticas.

Matt: Bom, é melhor pensar duas vezes antes de abandonar a via

da matemática. Lembra-te que vocês não estavam a sair-se muito bem

antes de termos examinado a minha «refutação» do mecanicismo.

30

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Phil: Apesar de não estar preparado para aceitar a tese de Church

sem mais argumentos, é claro que não penso ser esta a parte mais fraca

do teu argumento. Essa honra cabe à tua conversa vaga sobre a

consciência, a auto-consciência, e a consistência humana.6 Há com

certeza vantagens em aceitar a tese de Church. Tal como notaste, a tese

de Church dá-nos uma maneira precisa de falar sobre máquinas.

Acontece que acredito que se pode argumentar que a tese de Church se

aplica também a nós. Os seres humanos podem ser vistos como

realizações de máquinas de Turing (ou, claro, realizações de sistemas

formais). Temos de nos recordar que as máquinas de Turing são objectos

matemáticos e não objectos físicos. Se uma máquina pode desempenhar

uma certa acção, esta pode ser representada como uma acção de uma

máquina de Turing.

Matt: Claro, concedo-te o último ponto. Aliás, como te deves

recordar, eu usei a noção de máquina de Turing para ajudar o meu ponto

contra o mecanicismo.

Phil: Pois, mas agora eu quero dar a volta às coisas e argumentar

que tu e eu somos MT’s (máquinas de Turing), ou melhor, realizações em

carne e osso de MT’s. Falámos imenso sobre máquinas, mas muito pouco

sobre seres humanos. Tem sido quase como se tivéssemos assumido

possuir uma explicação clara de ser humano, como se tivéssemos algo

como uma tese de Church para o ser humano. Que é um ser humano?

Temos a famosa resposta que afirma ser um animal racional; mas é claro

que estes termos carecem eles mesmos de explicação. Em termos

estruturais, tem sido afirmado que o homem tem um corpo e uma mente,

sendo a mente responsável pelo pensamento e pela consciência. É claro

que o homem tem também um cérebro, que faz parte do seu corpo.

Quanto às relações precisas entre a mente e o corpo, entre a mente e o

cérebro, entre estados mentais e estados físicos, existem muitas

respostas, mas não há consenso quanto a uma única resposta

6 A melhor tentativa que conheço de dar sentido ao apelo de Lucas à auto-consciência e temas semelhantes está em D. Hofstadter, Metamagical Themes, «On the Seeming Paradox of Mechanizing Creativity».

31

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defensável. Acho que não conseguiremos resolver o problema da

mente/corpo, nem o problema de saber se o homem é uma máquina, a

não ser que desenvolvamos respostas melhores a estas questões.

Matt: Nunca achei que o que vocês, os filósofos, chamam o

problema da mente/corpo fosse assim tão difícil. É só uma questão de

prestar atenção a alguns factos óbvios e ao significado da identidade --

um termo, a propósito, com o qual nós matemáticos estamos bastante

familiarizados. Os estados mentais não podem ser idênticos a estados

físicos porque estamos directamente conscientes de muitos dos nossos

próprios estados mentais, e não obtemos ou inferimos este conhecimento

a partir da observação, ou a partir do nosso próprio comportamento, ou a

partir da observação do nosso cérebro. Logo, os estados mentais têm

pelo menos uma propriedade que os estados físicos não têm; portanto, os

estados mentais não são idênticos a estados físicos. Em qualquer caso,

estes problemas da mente/corpo não se levantam, pura e simplesmente,

em relação às máquinas. E isto porque as máquinas não têm estados

mentais. Mas por que não continuas com o teu argumento? Vem aí um

argumento, ou não?

Phil: Claro! Quero argumentar que a mesma dificuldade e as

perguntas que levantei atrás (e que penso estarem por responder)

podem ser levantadas também em relação às máquinas de Turing.7 Por

exemplo, o problema mente/corpo tem um análogo no caso das MT’s. Por

outras palavras, os problemas que habitualmente se pensa serem

distintivos dos seres humanos não são afinal nada distintivos. E se isto é

verdade, não há razão para não classificar os seres humanos juntamente

com as MT’s.

Matt: O que pretendes fazer -- desculpa-me que o diga -- parece-me

um argumento tortuoso e nada prometedor. Mas vou deixar-te prosseguir

com a tua analogia.

Phil: Uma MT é idêntica ao seu programa, e o seu programa ou

tabela de instruções é unicamente uma sucessão de instruções que 7 O argumento que se segue é o de Hilary Putnam. Ver «Mentes e Máquinas» in A. R. Anderson’s Mind’s and Machines.

32

Page 33: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

especificam em cada caso o que fazer dado um certo input; por exemplo,

apagar o símbolo do input, imprimir um símbolo, mover para a esquerda,

e entrar no próximo estado (seguir o próximo conjunto de instruções).

Quando uma MT está a seguir um certo conjunto de instruções tais como

a, podemos dizer que está num estado a. Dados o input e o estado,

podemos prever o que a MT vai fazer a seguir. A estes estados da MT

podemos chamar estados lógicos ou de programação -- que

correspondem aos nossos estados mentais.

Os filósofos fazem desde há muito perguntas sobre o nosso

conhecimento de estados mentais; alguns parecem ser estados nos quais

podemos estar sem o saber. Podemos, por exemplo, ter ciúmes sem o

saber. Como sabemos quando temos ciúmes? Limitamo-nos pura e

simplesmente a observar o nosso próprio comportamento. Para que uma

MT tivesse ciúmes, teria de dar corpo ao seu estado mental de uma

maneira adequada, através de dispositivos perceptivos ou sensoriais.

Existem contudo alguns dos nossos estados mentais que são diferentes.

Estar nestes estados mentais é saber que estamos a ter uma certa

experiência. «Como é que sabes que tens uma dor de cabeça? Sei,

porque tenho uma dor de cabeça.» A MT pode imitar isto se for

programada para imprimir que está num certo estado se e só se estiver

nesse estado. (Programamo-la assim, tal como nós fomos programados

para dizer «ai» quando temos dores.) Neste segundo tipo de estado

mental, não temos de saber nada sobre o nosso estado corpóreo para

saber que estamos num determinado estado mental. Analogamente,

também em relação aos estados lógicos ou de programação da MT não é

necessário qualquer conhecimento de estados corpóreos. Em relação aos

estados corpóreos, quer o homem quer a MT precisam de sensores

especiais, ou dispositivos observacionais. Quer para o homem quer para

a máquina, as leis que relacionam estados mentais (lógicos) com estados

corpóreos ou cerebrais têm de ser baseadas na experiência. Qualquer

afirmação de identidade entre um estado lógico e um estado físico -- por

exemplo, sempre que estou no estado 236 as luzes 73 e 227 estão

33

Desidério Murcho, 03-01--0001,
Page 34: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

acesas -- requer uma interpretação especial da identidade; isto é, requer

o «é» da identificação teórica: por exemplo, o «é» de «a luz é radiação

electromagnética», ou «a água é H2O». O que é importante notar é que

há um análogo exacto do problema da identificação mente/corpo

(cérebro) para as MT’s: o problema de identificar estados lógicos e físicos.

E há até um análogo para as MT’s de outro problema filosófico

importante: o problema das outras mentes, o problema de como

podemos conhecer os pensamentos ou estados mentais dos outros

apesar de não podermos «estar dentro» das mentes das outras pessoas,

nem de sentir os seus sentimentos, ou pensar os seus pensamentos, e

assim por diante. Este «conhecimento» é claramente uma questão de

inferência a partir do comportamento, incluindo o comportamento verbal,

dos outros. O problema das outras mentes para uma MT é o problema de

identificar os estados lógicos de outra MT. Para nós, outras MT’s, isto é

também uma questão de inferência.

Matt: Está bem, concordo que esses problemas das MT’s são

semelhantes a muitos problemas tradicionais sobre a natureza do

homem e do conhecimento humano. Mas tudo isso são analogias,

semelhanças; que poderá isso mostrar? Não pode com certeza mostrar

que o homem é uma máquina, uma MT com corpo. No máximo,

mostraste que há um certo número de aspectos em que o homem e as

MT’s são similares. Como pode esse argumento filosófico fantasioso ser

usado para sustentar o mecanicismo?

Phil: Para começar, porque o meu argumento mostra que o homem

não é afinal assim tão especial; isto é, as MT’s partilham todos esses

problemas com os seres humanos. Se vais responder ao problema

mente/corpo afirmando que a mente é uma coisa diferente do corpo,

terás de dizer que os estados lógicos de uma MT são distintos dos seus

estados estruturais ou físicos. Se o teu argumento da mente/corpo te

conduzisse, generosamente, a conceder que os seres humanos têm

almas, serias obrigado, por um raciocínio paralelo, a conceder que as

MT’s têm almas. O meu argumento é deveras subtil e indirecto. Ao

34

Page 35: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

sublinhar as semelhanças entre os seres humanos e as MT’s, estou a

mostrar-te quão difícil te será encontrar argumentos contra a tese

homem = máquina. Defendo que sempre que produzires um argumento

que exiba uma qualquer propriedade «especial» do homem, eu serei

capaz de produzir um argumento paralelo que te mostra que também as

MT’s exibem essa propriedade «especial». De facto, esta tem sido

sempre a minha estratégia.

Matt: Bem, continua a parecer-me que o que disseste é mais uma

promessa do que um argumento. Além disso, é claro que se o meu

argumento «matemático» a partir das limitações dos sistemas formais (o

argumento de Lucas) é bom, então não serás capaz de cumprir a tua

promessa. Haverá pelo menos uma área em que há qualquer coisa

«especial» (que é afinal ver a verdade das frases de Gödel) que nos

distingue das máquinas.

Phil: Se o teu argumento for bom! Esse «se» é uma grande

palavrinha, uma vez que vimos que o teu argumento tinha vários

problemas. Mas isso agora já se sabe.

Matt: Continuo a acreditar no valor do meu argumento -- um ser

humano não pode ser representado por um qualquer sistema formal. Nós

podemos manipular símbolos de uma maneira que os sistemas formais

não podem. O que preciso fazer é clarificar esta ideia de maneira tal que

impeça a tua objecção à minha tentativa anterior. Talvez me tenha

baseado excessivamente no teorema de Gödel. Talvez haja algum

argumento mais geral. Se não puder encontrar um, desisto

completamente desta linha de argumentação, e ataco-te com um outro

argumento menos «matemático».

Phil: Por que não fazemos um intervalo? Eu pago-vos um Big Mac, a

ti e ao Stu, e depois voltamos a atacar o problema.

35

Page 36: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

DEPOIS DE ALMOÇO

Matt: Cá estou eu outra vez, para continuar a ser castigado.

Phil: Não achas que me tens castigado tanto quanto eu a ti?

Matt: Não sei ao certo, mas talvez o meu Big Mac me tenha trazido

um novo vigor intelectual. Parece-me que o pensamento humano não é

formal, não é finito e definido. O pensamento humano é intuitivo,

informal e auto-consciente. Podemos ver coisas de maneira intuitiva,

compreendemos totalidades. Nenhuma máquina poderá jamais reflectir

completamente sobre si mesma. Tal reflexão exigiria que se

adicionassem componentes indefinidamente.

Phil: Até agora, parece-me que estás apenas a repetir algumas das

tuas afirmações prévias.

Matt: Está bem, vê lá então isto: os sistemas formais abstraem do

significado. Só se preocupam com formas simbólicas, ou com símbolos no

papel. Qualquer sistema formal, um sistema de símbolos no papel, é

susceptível de mais do que uma interpretação. Sem uma mente que

forneça um único significado intencionado, as máquinas são

necessariamente incompletas. Nunca podemos propriamente dizer que as

máquinas, enquanto realizações de sistemas formais, compreendem seja

o que for. Um escritor -- um cientista e filósofo, a propósito -- colocou a

questão nestes termos:

[...] um sistema dedutivo formalizado é um instrumento que precisa de uma

mente que o use, de uma maneira não completamente determinada pelo

próprio instrumento, para que possa atingir o seu propósito lógico; mas a

mente da pessoa que usa esse instrumento não precisa de um propósito

lógico [...] Aqui repousa a diferença entre mente e máquina.8

E eu até encontrei um argumento arrasador contra a tua posição.

Vou apresentar-te o Polícia de Trânsito Robô.

8 Michael Polanyi, «Note on the Hypothesis of Cybernetics», The British Journal for the Philosophy of Science 2, 1951, p. 314.

36

Page 37: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

O Polícia de Trânsito Robô, construído em Toledo e programado no

Cal Tech, está numa plataforma no centro da Times Square, na baixa de

Manhattan. Os automóveis passam por ele... em trânsito lento, se isso é

de todo possível na baixa de Manhattan, e perguntam-lhe onde fica isto e

aquilo, e.g., como é que se vai para a Grant’s Tomb? O Polícia de Trânsito

Robô recita apressadamente as respostas certas, e por vezes até aponta

para o caminho certo. Por vezes admite que não sabe, ou acrescenta

«Essa é difícil!». Por vezes até faz comentários sobre o estado do tempo.

Além disso, o Polícia de Trânsito Robô é muito bem-parecido: 1,80m,

ruivo, por vezes alcunhado de «Ruço» ou «O’Hara». Bom, parece-me que

já disse o suficiente para que vejas quão idiota é o teu próprio jogo da

imitação enquanto estratégia para determinar a inteligência humana.

Com certeza que não acreditas que o Polícia de Trânsito Robô

compreende realmente seja o que for que lhe digam, e nem o que ele diz;

no entanto, o seu comportamento é perfeitamente apropriado. De acordo

com John Searle -- um filósofo que tanto eu como Stu temos em alta

consideração -- o Polícia de Trânsito Robô não compreende seja o que for

porque carece de intencionalidade, «essa característica de certos estados

mentais pela qual eles são direccionados para objectos e estados de

coisas no mundo».9

Phil: É verdade que encontraste um argumento diferente, mas se é

melhor ou não... Para conseguires o teu ponto precisas de uma teoria ou

uma explicação do significado. Como é que os seres os humanos

compreendem? Podes responder a esta pergunta? Se não, como podes

insultar a máquina? O problema do significado, da semântica, parece

todo ele bastante obscuro. Se pudéssemos fornecer regras de significado

para uma linguagem -- e isso é afinal o que se espera que os dicionários

façam --, não vejo por que não poderíamos acrescentá-las ao programa

do computador. Seria como adicionar um dicionário ao programa. É claro

que admito que o uso correcto do dicionário não é por si só a

compreensão da linguagem. Podias pegar num dicionário de Romeno-9 Ver John Searle, «Minds, Brains and Programs» (o Argumento do Quarto Chinês), in Hofstadter and Dennett.

37

Page 38: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

Romeno na livraria esotérica da esquina e aprender todas as

equivalências romenas. Mas a menos que pudesses compreender alguns

dos termos através de uma ligação directa com a experiência,

independente do dicionário, não se poderia dizer que compreendias

romeno. Num certo sentido, saberias o que cada palavra romena queria

dizer, mas não serias capaz de ligar qualquer palavra romena ao mundo.

Logo, tem de existir uma maneira qualquer de sair do círculo das

definições de dicionário para uma outra explicação qualquer do

significado, que ligue as palavras ao mundo. Por que não poderia uma

MT, ou melhor, uma MT com um corpo, aprender a dizer «gato» quando

está perante um gato? E esta parece ser uma característica do Polícia de

Trânsito Robô. Se dizemos que estas regras são ostensivas (porque

exibem, ou apontam), então as regras ostensivas e um dicionário

forneceriam à nossa MT a capacidade suficiente para lidar com a nossa

objecção. Só causas alguma dificuldade à máquina quando tratas os

significados como entidades de um tipo especial, e a compreensão dos

significados como certos processos misteriosos. Mas a obscuridade é um

preço demasiado elevado para pagar pela vitória de uma disputa.

Recentemente, alguns filósofos meus amigos explicaram como

certas características de programas de software e afins podem ser

factores cruciais para a explicação da compreensão. Pensas que é óbvio

que o Polícia de Trânsito Robô carece de compreensão porque tens sem

dúvida uma ideia muito simplista do seu programa -- pensas que é

apenas um conjunto de regras para transformar símbolos. Sem dúvida

que pensas também que por mais complexo que seja um programa desse

tipo, por mais níveis que tenha, continua a ser formal, ou sintáctico, e isto

não é o tipo de coisa que possa contribuir para a compreensão, ou para

qualquer outra propriedade mental. Mas como podes ter tanta certeza

que «conceitos de software de nível intermédio» não fazem a diferença?10

Matt: Desculpa, mas continuas a fazer ilusionismo; tens uma teoria

do mental imaculado. Surpreendentemente, parece que tiveste pouca

10 A citação é de Dennett, Consciousness Explained.

38

Page 39: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

dificuldade em enfrentar o meu último desafio; mas se lidar com o

significado é assim tão fácil, por que não lidaste com ele antes?

Phil: Em primeiro lugar, sublinhei que a questão do significado é

bastante obscura. Em segundo lugar, introduziste qualquer coisa nova na

nossa conversa: o significado e a sua conexão com a compreensão. Uma

máquina não compreende aritmética porque é apenas uma realização de

um sistema formal para a aritmética, porque só pode produzir teoremas

aritméticos. Compreender a aritmética exige mais do que isto. (A

gramática ou a sintaxe tem de ser complementada com a semântica --

talvez até com a pragmática, que dá conta dos usos da linguagem e dos

seus utentes). Saber apenas como se podem combinar séries de

símbolos, saber apenas que séries são gramaticais, não nos dá a

possibilidade de saber o que significam as séries de símbolos gramaticais.

Uma máquina devia ser capaz de fazer somas, multiplicações, etc.; devia

ser capaz de contar objectos; talvez até de resolver problemas. Algumas

destas capacidades vão para além dos sistemas formais. Mas não há

razão para pensar que uma máquina não poderá fazer também estas

coisas. Para contar objectos precisaria de ter sensores; para resolver

problemas teria talvez de ter algumas regras adicionais de tradução,

assim como regras para resolver problemas -- a menos, é claro, que

exista algo nestas regras que impossibilite a sua representação num

programa de computador. A menos que exista uma espécie de limite de

Gödel para estas regras, uma máquina pode em princípio manipular o

significado -- isto é, compreender. Não nos devemos esquecer que há

também o hardware.

Matt: Falemos um pouco mais da compreensão. Repito, as

máquinas podem ser capazes de computar, mas não são capazes de

compreender.

Phil: Está bem; mas nesse caso desafio-te uma vez mais a explicar-

me exactamente o que achas que é a compreensão.

Matt: Receio não poder dizer-te exactamente o que é. A

compreensão é algo que a mente faz. É um acto mental.

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Page 40: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

Phil: É o acto no qual os significados são apreendidos? Vai ser difícil

explicar este acto de apreensão mental. Não podes oferecer-nos uma

definição de compreensão que tenha algum valor? Uma definição que nos

ofereça uma maneira de dizer se «algo» compreende ou não? O meu

ponto é este: não precisamos de nos envolver na questão dos

significados e das interpretações. Só precisamos de falar do sistema

formal e do seu uso; da máquina e da maneira através da qual ela

interage com os objectos do mundo.

Matt: Cá está outra vez o teu behaviorismo. Insistes em interpretar

todos os conceitos mentais em termos de comportamento. O que queres

é um teste behaviorista ou um critério para a compreensão. Talvez

descubras um, mas nunca serás capaz de capturar a essência da

compreensão.

Phil: Nada sei sobre a essência da compreensão. Mas parece-me

que se desejamos que um termo tenha sentido, temos de olhar para a

maneira como é usado. Como diz Wittgenstein: não perguntes pelo

significado, pergunta pelo uso. Debaixo de que circunstâncias dizemos

que alguém compreende algo? Quando compreende um estudante ou

uma estudante de matemática, digamos, o teorema de Pitágoras (a2+b2

= c2)? É quando ele ou ela consegue relacionar o teorema com outras

frases da geometria, quando ela aplica o teorema para resolver

problemas…Compreender a teoria de Newton envolve a capacidade de

responder a perguntas sobre as suas componentes, de a relacionar com

outras teorias; e, é claro, ser capaz de usar a teoria para resolver

problemas.

Matt: As máquinas podem computar, podem produzir teoremas,

mas não podem compreender. Na verdade, mesmo que as máquinas

pudessem estabelecer o género de relações de que acabaste de falar,

continuaria a negar que elas pudessem compreender. Receio que o

obstáculo seja outra vez o teu behaviorismo, a tua ênfase no

desempenho de tarefas. Uma coisa é poder ser verificado; outra coisa é a

verdade.

40

Page 41: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

Phil: Que raio! Diz-me que mais pode ser a compreensão do que a

capacidade de desempenhar o tipo de coisas que mencionei. Acreditas

realmente que a compreensão envolve alguma experiência ou sensação

especial? Talvez penses que a compreensão pode ser explicada em

termos do fenómeno «Aha!», uma espécie de iluminação mental (a

lâmpada acesa da banda desenhada).

Matt: Deves estar a ler o meu pensamento; mas o que há de errado

em identificar a compreensão com a experiência do «Aha!»? Quer dizer,

com a experiência do «Aha! Agora estou a ver! Agora compreendo!»?

Phil: O «Aha!» está sempre presente quando compreendes?

Matt: Não, nem sempre.

Phil: Está o «Aha!» presente quando não compreendes, mas apenas

pensavas ter compreendido?

Matt: Sim, acho que sim.

Phil: Então como podes identificar a compreensão com esta

experiência? Além disso, é duvidoso que exista uma experiência única

que esteja presente sempre que compreendes algo. Também aqui estou

a seguir Wittgenstein: se calhar deves ler o seu Livro Azul ou as

Investigações Filosóficas. Mas não quero que fiques com a ideia que o

meu argumento é unicamente um argumento de autoridade. Por isso diz-

me: que deixei eu de fora na minha explicação da compreensão?

Matt: Mas a compreensão é basicamente um processo informal, que

não pode ser explicado num conjunto de regras explícitas. Há uma

dimensão tácita na compreensão. Pensa uma vez mais na compreensão

envolvida no domínio de uma língua. Nenhum formalismo pode capturar

este processo. Como disse Polanyi,

Falar uma língua é comprometermo-nos com a dupla indeterminação que

resulta de nos apoiarmos simultaneamente no formalismo e na nossa

reapreciação contínua deste formalismo em função da sua relação com a

experiência. Pois não só permanecemos incapazes de dizer tudo o que

sabemos, em ultima análise devido ao carácter tácito de todo o nosso

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Page 42: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

conhecimento, como também nunca podemos saber exactamente o que

implica o que dizemos, em virtude do carácter tácito do significado.11

Phil: É difícil responder a isto. Não sei se compreendo

completamente o que tu e Polanyi afirmam. Se conseguires mostrar-me

que compreendes esta caracterização da compreensão, então penso que

posso mostrar-te que uma máquina pode compreender no sentido que

introduziste. Se não consegues mostrar-me que compreendes, que

queres que faça? Parece haver um toque de misticismo nos teus

comentários. Não podes esperar que seja quem for, homem ou máquina,

possa dizer o indizível.

Matt: Por vezes soas como se estivesses a falar por todos os

filósofos; como se o behaviorismo, ou qualquer coisa desse género, se

tivesse tornado a filosofia oficial da mente e do homem. O teu

Wittgenstein fala por todos? Afastaste alguns dos meus argumentos

ainda antes de eu os oferecer. Pareces estar especialmente à vontade no

que respeita ao significado e à compreensão. Também reparei que não

apelas muitas vezes à tradição filosófica na apresentação dos teus

argumentos. Quase não ouvi falar de Platão, Aristóteles, Descartes ou

Kant.

Phil: Tens razão. É verdade que não citei muitos nomes. Mas por

que haveria de apelar para a autoridade, quando os argumentos valem

por si mesmos? É claro que podia ter mencionado Wittgenstein e Ryle

mais frequentemente, assim como outros filósofos contemporâneos. A

propósito, tu e o Stu têm-se revelado grandes seguidores de Descartes,

que realçava a distinção entre a mente e o corpo. Pareces ser simpático

ao que Gilbert Ryle chamou a teoria da mente do «fantasma na

máquina». Ryle «refuta» esta concepção no seu The Concept of Mind.12

Penso que afinal de contas o problema da mente/máquina só se tornou

realmente agudo nesta época, com os computadores digitais sofisticados;

11 Michael Polanyi, Personal Knowledge (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1958)12 Gilbert Ryle, The Concept of Mind (Nova Iorque: Barnes and Noble, 1949)

42

Page 43: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

não é por isso de espantar que me fique pelos filósofos e pela filosofia

contemporâneos.

Matt: Bom, o filósofo és tu; mas, da maneira como vejo as coisas,

estás a vender um produto muito velho (o materialismo), e tenho a

certeza que houve muitas discussões do materialismo na tradição

filosófica. Apesar de não ter o hábito de ler os filósofos, pelo menos os

profissionais, li alguns que afastarias sem dúvida como filósofos

populares -- «populares» porque o público em geral consegue

compreendê-los, o que parece ser um crime grave. Mortimer Adler é um

desses filósofos, com o qual aprendi o seguinte argumento, baseado no

trabalho de Aristóteles e de São Tomás. Com base na nossa discussão até

agora, duvido mesmo que o argumento te seja familiar; provavelmente

não é suficientemente contemporâneo para o teu gosto. O argumento

pretende mostrar que a compreensão exige uma componente imaterial, e

portanto que uma concepção materialista do homem, uma concepção

como a tua, não pode ser adequada. Tal como o vejo, o teu tipo de

behaviorismo é materialista -- e eu acho que consigo refutar o

materialismo.

Phil: Vamos lá atacar então o argumento -- mas lembra-te que não

me intimidas com grandes nomes como Aristóteles, Aquino e Adler. E a

propósito, nego que o meu behaviorismo filosófico (a minha insistência

em fornecer uma análise dos termos mentais em termos de

comportamento e programas mecânicos) me comprometa com o

materialismo. Mas continua.

Matt: Quando compreendemos qualquer coisa -- por exemplo, o que

é ser um homem --, compreendêmo-lo através de um conceito. Sem

conceitos não poderíamos compreender. Mas os conceitos não são coisas

materiais, porque todas as coisas materiais são indivíduos, tais como

homens individuais ou palitos; no entanto, o conceito de homem não é

idêntico a indivíduo algum: é uma coisa universal. As coisas materiais não

podem lidar com conceitos, mas a compreensão exige esta capacidade

para lidar com conceitos. Logo, a compreensão exige algo mais do que o

43

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cérebro, uma vez que o cérebro é uma coisa material. Tem de haver uma

parte imaterial no homem, uma mente, um intelecto, de maneira a que o

homem possa compreender. E se o pensamento exige a compreensão,

então as máquinas, que são coisas materiais, não podem pensar. Por

outro lado, se os seres humanos são necessariamente seres pensantes,

então as máquinas não podem ser humanas. Apesar de não ser uma

demonstração matemática, este argumento parece-me bastante bom.

Phil: No teu argumento usaste uma certa teoria psicológica, ou

filosófico-psicológica. Essa teoria tenta explicar como a compreensão é

possível. De acordo com esta teoria, se o João compreende o que é uma

porta é porque formou ou apreendeu o conceito porta. Por que razão

devemos aceitar esta teoria? Tudo o que sabemos é que o João sabe

reagir apropriadamente às portas e às perguntas sobre portas, etc. Ele

aprendeu a fazer as discriminações apropriadas, tal como um pombo

pode aprender a discriminar objectos vermelhos de objectos de outra cor.

Estás disposto a dizer que os pombos são parcialmente imateriais?

Matt: Mas há uma diferença entre discriminação perceptiva e

compreensão intelectual. Ao contrário dos pombos, nós podemos

compreender a vermelhidão, ou a triangularidade. Podemos responder a

perguntas sobre os próprios objectos abstractos.

Phil: Quando dizes que podemos compreender a própria

vermelhidão pareces querer dizer que sabemos como usar o termo

«vermelhidão». Mas que este uso pressuponha um conceito imaterial de

vermelhidão é uma questão ainda em aberto. Para mim, é apenas uma

questão de estar apropriadamente condicionado. Neste caso, o processo

de condicionamento é mais complexo do que o necessário para que o

pombo distinga os objectos vermelhos; mas é ainda um caso de

condicionamento. Como Guilherme de Occam disse (estás a ver, acabei

de apelar para uma autoridade) as entidades não devem ser

multiplicadas sem necessidade. Quem precisa por isso de conceitos,

especialmente de conceitos que são coisas imateriais? Por que não

considerar os conceitos unicamente como uma classe de símbolos? Por

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exemplo, o conceito homem seria uma classe de expressões sinónimas:

«ser racional», por exemplo, seria um membro desta classe.

Matt: Acabaste de falar da classe de expressões sinónimas. Mas

não são as classes objectos abstractos, ou imateriais? A classe dos cães

não ladra, pois não?

Phil: Bom ponto! Mas neste caso podemos tratar as classes como

predicados, expressões linguísticas de um certo tipo. Admito que há

questões controversas. Estamos mergulhados no problema dos

universais. Contudo, parece que nada disto serve os teus propósitos.

Arriscas-te a acabar por mostrar que os computadores sofisticados não

são coisas materiais, e que têm alguns elementos espirituais. Se eles

puderem passar performance tests reconhecidos sobre a compreensão,

como podes evitar atribuir a compreensão aos computadores?

Matt: Recuso-me simplesmente a admitir que seja o que for que

possua uma parte imaterial possa ser uma máquina. As máquinas são

materiais por definição.

Phil: Pensava que as máquinas eram por definição realizações de

sistemas formais, ou máquinas de Turing. Era o que defendias antes.

Lembra-te do teu argumento matemático de Gödel e Church. Não há

razão para afirmar que as realizações de sistemas formais de MT’s têm

de ser materiais. Pode ser uma suposição natural, mas não é necessária.

Parece que abandonaste a tua definição abstracta e matemática de

máquina.

Matt: Bom. Vamos directos à questão! Vou pôr as minhas cartas na

mesa. Há um exemplo na literatura filosófica, a tua literatura, um

exemplo do qual não te deves ter apercebido e que eu e as pessoas com

as quais o discuti achamos absolutamente irresistível. É a refutação do

mecanicismo tal como o definimos, em termos de software ou programa.

Tal como o interpreto, o exemplo usa uma distinção que remonta ao

princípio deste século, e ao trabalho de Bertrand Russell (que por seu

turno pode ter tido alguma ajuda de G. E. Moore). Distingue-se o

conhecimento por contacto, que é o conhecimento directo pela

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experiência, do conhecimento por descrição, que é o conhecimento

indirecto através do conhecimento da verdade de frases declarativas

acerca de um qualquer assunto, que pode ou não ser matéria de

conhecimento por contacto. O exemplo, que é uma experiência mental,

parece que vem de um filósofo chamado «Jackson», e é mais ou menos

isto: trata-se da Mary, uma neurocientista que está trancada num quarto

todo decorado a preto e branco, e que só percepciona o resto do mundo

através de uma televisão a preto e branco. Ela sabe tudo o que há para

saber; tem um conhecimento completo da neurofisiologia da visão: toda

a neurofisiologia, física, etc., sobre a aparência de um pôr-do-sol a cores,

por exemplo. Mas todo o conhecimento que tem, todo o seu programa

admiravelmente completo, não pode prepará-la para a maneira como as

coisas parecerão quando ela deixar finalmente o quarto. Ela terá de

aprender isto pela experiência, por contacto. Apesar de completo, o

conhecimento por descrição não é suficiente. E é precisamente aqui que

nós humanos diferimos de qualquer máquina possível. Espero que

percebas que esta é a razão pela qual as tuas respostas ao meu Polícia

de Trânsito Robô, ou as respostas de outros filósofos à experiência

mental do quarto chinês de John Searle, nunca poderão ser convincentes.

Phil: Bom, devo dizer-te que conheço a história da Mary. Na

verdade, tenho pensado bastante sobre ela. Até dei um seminário de pós-

graduação que foi em grande parte dedicado a ela…

Matt: E se fosses directo à questão? Tens uma resposta ou não?

Phil: A experiência mental não é tão simples como parece.

«Conhecimento neurofisiológico completo». Que cobre esta expressão?

Talvez o conhecimento actual não permita que a Mary reconheça as

cores quando sair do quarto, mas como podemos ter a certeza de que o

conhecimento completo não o permitirá? Talvez exista qualquer facto da

sua estrutura neurológica cujo conhecimento lhe permita reconhecer que

a relva é verde e o sangue vermelho.

Matt: Bom, ela poderia reconhecer essas coisas, identificá-las

correctamente. Mas o ponto não é esse. Quando ela sair do quarto irá

46

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pela primeira vez poder ver as cores. Acrescentou-se qualquer coisa nova

ao que a Mary já sabia, um conhecimento por contacto que nenhum

conhecimento por descrição, nenhum programa, pode cobrir. Tu e os teus

exemplos estão sempre a tentar cobrir um hiato que não pode ser

coberto. A humanidade não pode resultar dos programas mecânicos. Por

mais complexo, convoluto ou completo que seja o software, nunca

conseguirá esse resultado. Por isso, continuo a dizer em relação a este

exemplo o que disse em relação aos teus outros exemplos e argumentos

-- é uma espécie de magia!13

Uma vez que todos estes argumentos «matemáticos» e «tipo

Turing» não parecem ter-nos conduzido muito longe, por que não rejeitar

algumas das suas premissas? A definição abstracta de máquina era

talvez demasiado abstracta (até tu deves conceder isso). Nós, os

matemáticos, gostamos realmente do tipo de clareza e precisão que

conseguimos com esse tipo de caracterizações abstractas. Na verdade,

parece que ambos admiramos a elegância da explicação de máquina

conseguida pela tese de Church. Mas parece-me que será mais profícua

uma concepção de máquina mais terra-a-terra. Dada essa concepção,

acho que posso oferecer argumentos adicionais para defender que as

máquinas não podem compreender, nem pensar, nem ser humanas.

Phil: É claro que já levantei problemas suficientes à tua teoria da

compreensão e ao seu conceito peculiar de conceito para dar conta desse

argumento; mas gostava que falasses mais sobre a tua nova concepção

terra-a-terra de máquina, uma concepção que parece garantir que as

máquinas são materiais e que nós não somos máquinas.

Matt: Não há muito a dizer acerca dela; é apenas uma questão de

senso comum educado. As máquinas, pelos menos para os nossos

propósitos, são unicamente computadores digitais de alta tecnologia com

equipamento robô adicional. O equipamento robô adicional permite a

imitação das características físicas humanas. Mas a mente ou o cérebro

13 Para uma tentativa mais detalhada, mas em última análise não completamente convincente, de refutar o «exemplo de Mary», ver D. Dennett, Consciousness Explained, especialmente pp. 398-406.

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do robô é o computador. Era provavelmente isto que Turing queria dizer

com «máquina» quando levantou a questão de saber se as máquinas

podem pensar, e eu penso que devemos regressar a esta ideia. Quando

aceitei a caracterização mais abstracta de máquina feita por Turing (em

termos de máquina de Turing), procurava uma refutação rápida do

mecanicismo. Mas tu pegaste então na minha caracterização abstracta e

tentaste convencer-me que nós, humanos, somos afinal máquinas.

Phil: Não estamos a voltar para trás outra vez? Parece que

desistimos do teste de Turing, o jogo da imitação; ou tens outro teste em

mente? Talvez queiras que a tua posição seja completamente imune a

quaisquer testes, caso em que só aceitas uma definição de máquina que

torne logicamente impossível que uma máquina possa pensar, tão

impossível como é a um solteiro ser casado. Essa seria uma maneira de

conseguires «ganhar» a disputa, mas por um preço muitíssimo elevado.

Há ou não um aspecto empírico no teu problema? Na verdade, terias de

persuadir-nos a falar segundo a tua maneira, na qual máquina e

pensamento são logicamente incompatíveis. Como poderias fazer isto?

Será que, de alguma maneira, achas que seria muito perigoso não o

fazer?

Matt: Ui! Puseste muitas palavras na minha boca. Na verdade,

penso que de facto seria muito perigoso deixar as máquinas pensar, ou

melhor, falar como se as máquinas pudessem pensar. Isto tornaria os

homens em máquinas; destruiria a concepção de homem como uma

pessoa, como um animal racional com livre arbítrio; e isso é o próprio

núcleo da nossa cultura e civilização. Estaríamos, nas palavras do teu

professor e amigo behaviorista, B. F. Skinner, para além da liberdade e

da dignidade. Não seríamos livres de escolher por nós mesmos a nossa

vida, de procurar a felicidade à nossa maneira, pelo uso da nossa razão

autónoma. Como máquinas, seríamos uns bonecos -- talvez uns bonecos

um pouco melhores do que os outros animais, mas mesmo assim

bonecos. Todo o nosso comportamento seria, em princípio, previsível a

partir dos estímulos de entrada e dos estados do nosso programa. (E

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mesmo que houvesse espaço para algum elemento aleatório, isso

dificilmente seria o livre arbítrio da capacidade humana de agir.) A nossa

moral seria, é claro, reduzida a cinzas. Não poderia existir

responsabilidade para bonecos. É claro que a religião acabaria

juntamente com moral. Acho por isso muitíssimo perigosa a tese que

afirma que o homem é uma máquina.

Phil: Pode ser perigosa, mas o nosso objectivo é a verdade, ou pelo

menos a crença justificada, ou não?

Matt: Não há maneira de podermos pensar em nós como máquinas.

Falamos das máquinas em termos de programas e estados, de input e

output. Muitas vezes conhecemos o programa da máquina porque

construímos a máquina. Temos um registo do input. É razoável falar do

que a máquina fará. Mas não é razoável falar do que a máquina devia

fazer, ou do que a máquina está moralmente obrigada a fazer. Admito

que por vezes falamos das outras pessoas como se fossem máquinas:

«Avisei-te que o Jorge ia partir a raquete de ténis; isso é mesmo dele.» É

como se soubéssemos o suficiente sobre o seu programa, ou o seu

carácter, e a história dos seus inputs, ou a história do seu

condicionamento, para podermos prever e explicar de maneira bastante

precisa o comportamento do Jorge. Mas nunca podemos olhar para nós

mesmos desta maneira. Podemos tratar o Jorge como se não fosse

moralmente responsável, mas sabemos que nós somos responsáveis. Nós

agimos; escolhemos o que devemos fazer. Não andamos a prever o nosso

próprio comportamento. Muitas vezes não sabemos o que faremos até o

fazermos, e não o fazemos até o termos escolhido.

Phil: Muito interessante. Mas não poderiam existir máquinas que

tivessem dificuldade em pensar sobre elas próprias como máquinas, isto

é, que tivessem dificuldade em descrever-se a si mesmas na linguagem

que usamos para falar dos computadores digitais sofisticados? Além

disso, conforme aumenta o nosso conhecimento da genética, psicologia e

tecnologia, como sabemos que um dia não será bastante natural pensar

em nós mesmos como máquinas? Podemos, por exemplo, vir a achar

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natural falar do estímulo de certas fibras no cérebro, em vez de falar de

dor.14 Não estou a dizer que poderemos vir a abandonar totalmente, ou

de uma só vez, a nossa maneira quotidiana de falar, mas apenas que

esta linguagem alternativa pode tomar gradualmente o lugar da outra. É

possível, não é?

Matt: Estás a tratar o problema da mente/máquina como se ele

fosse empírico, como se os factos científicos pudessem um dia levar-nos

a modificar as nossas mais profundas convicções acerca dele. Um

triângulo euclidiano nunca terá quatro lados. E, num certo sentido, não

podemos permitir que esta tese seja verdadeira. Além disso, afirmas que

a minha atitude é intelectualmente irresponsável. Não é. Mesmo na

ciência se retêm algumas hipóteses, se elas forem suficientemente

básicas, apesar de surgirem dados contrários ou experiências

recalcitrantes. Deves recordar que este tipo de conservadorismo nos

ofereceu a descoberta do planeta Neptuno. Bom, as hipóteses ou

princípios sobre o estatuto especial dos seres humanos são pura e

simplesmente os mais básicos que temos. É com certeza natural que não

estejamos dispostos a testar tais princípios. A própria natureza da

actividade intelectual, tanto científica como filosófica, pressupõe as

noções de liberdade e responsabilidade. O progresso numa simples

ciência, tal como a informática, não pode jamais ser mais importante do

que o compromisso para com o carácter único do homem e da

personalidade humanas. Estás portanto a ver que nenhum teste ou

conjunto de testes empíricos, nem mesmo um tão engenhoso como o

jogo da imitação de Turing, ou o «progresso» na investigação em

inteligência artificial, podem forçar-nos a desistir dos nossos princípios

morais fundamentais. Quando temos de escolher entre a ciência e a

moral, a moral tem de prevalecer. Acho que Immanuel Kant (repara que

me apoio noutros filósofos para além de Mortimer Adler) chamou a isto a

primazia da razão prática (moral).

14 Penso que este ponto foi pela primeira vez defendido por Feyarabend.

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Phil: Realmente, estás a usar as armas mais pesadas -- nada mais,

nada menos, do que Immanuel Kant. Levantaste tantas questões novas e

importantes no teu pequeno discurso, que nem sei por onde começar.

Mostraste, pelo menos, que algumas questões da filosofia da ciência e da

filosofia moral têm algum impacto no nosso problema da mente/máquina.

É interessante como os grandes problemas da filosofia parecem misturar-

se uns com os outros. O que fizeste foi assumir como verdadeiras certas

posições em relação a essas questões, e, uma vez concedida a

razoabilidade dessas posições, concluíste que as máquinas não podem

pensar, que é logicamente ou conceptualmente impossível que as

máquinas pensem. Suponho que o que temos de fazer é examinar

criticamente algumas das posições que assumiste. Não faço isto sem um

certo medo. Conduziste-nos para a mais profunda controvérsia filosófica.

Até admito ter alguma simpatia pelo que defendeste.

Tomemos a filosofia da ciência em primeiro lugar. Afirmas que os

princípios fundamentais da ciência são tratados como se fossem imunes

a argumentos ou refutações da experiência. Podemos sempre fazer

ajustamentos apropriados algures nas nossas teorias, de maneira a

salvar as hipóteses. Admito que por vezes a história da ciência reflecte

realmente esta atitude, tal como no tratamento da evolução, ou de

princípios fundamentais da economia, ou da lei do efeito na psicologia

operativa, ou até mesmo no tratamento da física de Newton, pelo menos

até certo ponto. Mas se esta aproximação conservadora fosse verdadeira

tornaria o progresso na ciência impossível. Como poderia a tua

perspectiva dar conta, por exemplo, da vitória de Einstein sobre Newton?

A teoria de Newton foi testada e verificou-se que deixava muito a desejar;

foi testada e refutada, não foi?

Matt: Os resultados dos testes nunca nos obrigaram a desistir de

Newton. Poderíamos ter feito ajustes em certas partes da teoria para

salvar Newton. Os ajustes não foram feitos porque a comunidade

científica julgou que o custo de salvar Newton era demasiado elevado.

Acho que a simplicidade e a elegância da teoria de Einstein foram as

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razões desse juízo. Existem ainda cientistas e filósofos que se mantêm ao

lado de Newton. Eles não são irracionais nem loucos; pensam unicamente

que os conceitos de Newton são demasiado básicos para que os

abandonemos. O meu argumento é que os princípios morais

fundamentais, os princípios da liberdade e da responsabilidade, são pura

e simplesmente demasiado básicos para permitir que possam ser

derrubados pelo argumento de Turing, ou por qualquer outro. Nenhum

argumento pode jamais forçar-nos a admitir que o homem é uma

máquina, porque aceitar tal argumento exigiria que desistíssemos de

princípios morais fundamentais. A atitude racional a tomar é preferir a

dignidade do homem aos argumentos mecanicistas.

Phil: Precisas de uma teoria da racionalidade que fundamente esse

argumento. Estamos perante problemas cada vez maiores. Na verdade,

alguns filósofos caracterizariam essa tua última abordagem como

irracional. Pareces permitir que os juízos valorativos se sobreponham aos

factos objectivos. Se um princípio é importante, se estás profundamente

comprometido com um princípio, recusas-te a permitir que os factos

interfiram. Mas não será verdade, por outro lado, que a racionalidade nos

obriga a submeter tantas frases declarativas quanto possível aos testes

mais severos, especialmente as mais importantes? Sir Karl Popper

defende que a ciência progride através de um processo de conjecturas

(palpites) e refutações. Nesta perspectiva, a racionalidade não permite

que coisa alguma seja por princípio imune à refutação. Parece-me que o

nosso problema consiste em escolher entre diferentes conceitos de

racionalidade, ou talvez descobrir uma combinação apropriada. Seria

dogmático insistires na superioridade da tua própria ideia de

racionalidade.15

Matt: Pela primeira vez, pareces um pouco inseguro. A filosofia da

ciência é uma área que conheço relativamente bem. Deixa-me esboçar

um argumento que te vai fazer ficar ainda mais desconfortável. A ciência

supõe o estudo livre e racional. Se o estudo livre e racional fosse 15 Para um tratamento de algumas das complexidades deste conceito, ver Robert Nozick, Rationality.

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impossível, a ciência também o seria. Se o homem é uma máquina, não

pode existir estudo livre e racional. Se o mecanicismo for um resultado

científico, tem de ser um resultado do estudo livre e racional, logo o

mecanicismo não pode ser um resultado científico. Logo, podemos

afastar o mecanicismo como inconsistente com a própria ideia de ciência

e de estudo científico.

Phil: Estou a ver que não há maneira de evitar o confronto directo

com o famoso, ou infame, problema do livre arbítrio. Argumentaste que

se o homem é uma máquina, não pode ter livre arbítrio. Apesar de

surpreendente, há filósofos, como eu próprio, que não aceitam isto. O

comportamento das máquinas é reconhecidamente determinado: dado o

input, o programa determina o output. (Um dispositivo que gere

aleatoriedade não afecta o tema do livre arbítrio. Acontecimentos

aleatórios não se confundem com o livre arbítrio.) No entanto, podemos

considerar que algumas das acções das máquinas são livres. Se estás ao

pé de uma máquina (robô) e eu a empurro contra ti, o empurrão não é

um acto livre da máquina. Se cair um braço da máquina porque foi

injectado com uma certa substância, a queda do braço não é um acto

livre. Mas as coisas seriam diferentes se a máquina fosse programada

para cortar o seu próprio braço; nesse caso, o acto seria voluntário. Nesta

perspectiva, as acções humanas são livres quando são o resultado do

nosso carácter, quando se pode dizer com propriedade que as acções são

nossas. Acções forçadas ou compelidas não são livres. Considerações

análogas fazem com que se possa afirmar que uma máquina só age

livremente quando age a partir do seu programa. Nesta perspectiva --

uma perspectiva que, a propósito, tem sido defendida por filósofos

notáveis (Hobbes, Hume, Schlick e muitos contemporâneos) -- o

determinismo é compatível com a liberdade. Na verdade, chama-se por

vezes compatibilismo a esta perspectiva. Um outro nome para esta

perspectiva é determinismo moderado. Esta é a perspectiva que está

mais de acordo com a maneira como comummente falamos, não

devendo por isso ser rejeitada de ânimo leve. Por outro lado, o

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determinista duro defende que o determinismo é verdadeiro e que o livre

arbítrio é incompatível com o determinismo. Em contrapartida, os

libertários aceitam, como os deterministas duros, que o livre arbítrio e o

determinismo são incompatíveis, mas sustentam que a opção aceitável é

a do livre arbítrio. Tu, meu amigo, és claramente um libertário.

Matt: Aceito o rótulo de boa vontade. Mas tenho no entanto

dificuldade em compreender como pode existir um filósofo, e ainda

menos um bom filósofo, que leve a sério o determinismo moderado. A

questão central, tal como eu a vejo, é a de saber se o carácter de um

homem ou o programa de uma máquina podem ser livremente

escolhidos. Se não podem ser livremente escolhidos, como podem as

acções que são consequência do carácter ou do programa ser

considerados livres?

Phil: Tenho colegas no departamento de filosofia que também têm

dificuldade em digerir o determinismo moderado. Estes colegas

caracterizam a noção de liberdade do determinista moderado como

excessivamente «anémica». «Como poderemos ser livres», perguntam

eles, «quando não temos nenhum controlo último sobre o que fazemos?»

É claro que quando lhes peço para explicarem o que querem dizer com

«controlo último», não se saem muito bem. Se pensares sobre isso, acho

que concordarás que quando falamos de acções livres, queremos referir

aquelas acções que não são compelidas nem resultam da coerção. A

causalidade não é, afinal de contas, a compulsão. Admito que o problema

do livre arbítrio é difícil; mas por que havemos de mexer onde não nos

dói, por que havemos de levantar problemas sobre a liberdade última e a

responsabilidade, quando na vida quotidiana não vemos qualquer

necessidade de levantar tais problemas?16 Em qualquer caso, prefiro mil

vezes David Hume a Espinosa e a B. F. Skinner.

Matt: Estou desapontado. Pensei que os filósofos tinham a

obrigação de enfrentar estes problemas profundos.

16 Para uma discussão do problema do livre arbítrio, ver o diálogo dedicado a este assunto de Clifford Williams, Free Will and Determinism (Indianapolis: Hackett Publishing Co., 1980).

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Phil: Não me parece que seja justo exigir neste momento que

resolvamos um problema tão notável como o do livre arbítrio. Teríamos

de falar pelo menos mais um dia para o resolver.

Matt: Parece então que também não podemos resolver o nosso

problema da mente/máquina. Parece que chegámos a um beco sem

saída. Portanto, Stu e eu podemos ter afinal razão acerca do desgraçado

Fischkov.

Phil: Não sejas assim tão apressado a desistir. Tenho mais uma

linha de argumentação que gostaria de tentar contigo.

Matt: Força.

Phil: Esta nova linha de argumentação é semelhante em alguns

aspectos ao jogo da imitação; envolve uma espécie de experiência.17

Construímos um robô tão sofisticado quanto possível. Tentamos

programar o robô para usar o português da maneira como nós o usamos.

Isto pode revelar-se difícil, pois podemos não saber o português

suficiente para formular regras adequadas que conduzam ao domínio da

língua. A alternativa seria construir uma espécie de máquina de Turing

bebé, para que ela pudesse aprender a língua não através de regras

explícitas, mas pela experiência, pela exposição às contingências, com

diria B. F. Skinner. (É aliás assim que as pessoas aprendem a sua língua

materna.) Assumindo que este esforço seria bem sucedido, programamos

o robô de maneira a dizer sempre a verdade, e a nunca mentir. É claro

que ele poderia enganar-se. Feito isto, fazemos então ao nosso robô

perguntas como «Pensas?», «Tens sentimentos?», «És consciente?». Com

base nas suas respostas podemos determinar precisamente a relação

entre a mente e a máquina.

Matt: Claro que o teu robô poderia ser incapaz de responder às

perguntas. Que farias nesse caso?

Phil: Tinha de tentar comprar um robô melhor.

Matt: Mas talvez as perguntas não possam pura e simplesmente ser

respondidas por qualquer robô.

17 Que deriva de uma sugestão de Michael Scriven.

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Phil: Se for esse o caso, talvez isto seja suficiente para distinguir o

homem da máquina.

Matt: E que farias se as máquinas respondessem «Não» a todas

essas perguntas? Não terias a tentação de ver a resposta negativa como

um sinal de que não tinhas o robô que desejavas, e que precisavas de um

modelo melhor? Não consigo ver como poderias chegar a satisfazer-te

com uma resposta negativa. E mesmo que ele respondesse «Sim»…

Phil: Que achas da minha experiência decisiva?

Matt: Acho que há muitos «ses» em relação à tua experiência, tais

como o domínio da língua portuguesa e a dificuldade em distinguir

respostas negativas de respostas não comprometedoras, e respostas

positivas. É no entanto uma ideia intrigante -- ser uma máquina a

resolver o problema da mente/máquina. Se isto é o melhor que

consegues apresentar neste momento, então é óbvio que estás a ficar

sem ideias. Eu já estou sem ideias desde há um bom bocado.

Neste momento estou um pouco confuso. Quando começámos a

nossa discussão tinha a certeza que existia um hiato insuperável entre o

homem e a máquina. Já tinha discutido o assunto com alguns

matemáticos e informáticos meus amigos, e todos concordámos que o

homem é inimitável. Admito que alguns de nós acreditávamos nisto de

maneira religiosa, mas a maior parte fomos especialmente convencidos

pelo argumento de Gödel-Church-Lucas. Agora todos os meus

argumentos foram esvaziados, pelo menos até um certo grau, e chegaste

mesmo a usar alguns dos meus conceitos técnicos. No entanto, não

demonstraste a verdade da posição mecanicista. Por outras palavras, não

sei agora que a minha posição está errada e a tua certa. O que agora sei

é que não sabia afinal o que pensava saber. O que me confunde de

alguma maneira é o facto de me teres conduzido a este estado sem que

tu próprio saibas qual é a posição correcta sobre o problema

homem/máquina.

Phil: Tens sem dúvida razão quando dizes que não sei qual é a

posição correcta. Isto é um resultado claro da nossa discussão. Se sei

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alguma coisa -- e é claro que não afirmo ser o único a sabê-lo -- é como

fazer perguntas e como argumentar; como aduzir razões a favor e contra

diversas posições. E todos sabemos agora muito mais sobre o problema

do que sabíamos antes. Isto mostra que podemos saber muito sobre um

problema sem saber qual é a solução. Ficámos melhor depois da nossa

discussão? Tens de ser tu próprio a responder a esta pergunta. Agora

compreendemos pelo menos alguns dos problemas envolvidos na

tentativa de relacionar o homem e a máquina. Isto é mais do que a maior

parte das pessoas pode afirmar. Quanto à questão de saber por que

razão essa compreensão é tão importante... Não é a possibilidade de

compreender o que faz o homem (e talvez algumas máquinas) tão

importante?

Stu: Por mais agradável que fosse ouvir-vos falar sobre a

compreensão, tenho de me ir embora. Vou jogar esta noite com outra

máquina, a Capaspassky. Dava-me jeito uma vitória; espero que Capa

esteja aborrecida, que não consiga concentrar-se no jogo, e que faça

jogadas estúpidas…

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

I

Anderson, Alan Ross, org., Minds and Machines. Englewood Cliffs, Nova

Jérsia: Prentice-Hall, Inc., 1964. Continua a ser uma excelente

antologia de ensaios fundamentais. É o texto auxiliar que melhor

complementa o presente diálogo. Os ensaios de Turing, Scriven,

Lucas e Putnam são especialmente valiosos.

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Page 58: Paul Sagal - Mente Homem e Maquina.doc

II

Adler, Mortimer, The Difference of Man and the Difference It Makes.

Cleveland: World Publishing Company, 1968.

Delong, Howard, A Profile of Mathematical Logic. Boston: Addison Wesley,

1970.

Dennett, Daniel C., Consciousness Explained. Boston: Little, Brown, 1991.

Hofstadter, Douglas, Gödel, Escher, Bach. Nova Iorque: Basic Books,

1979.

Hofstadter, Douglas, e Dennett, Daniel C., The Mind’s I. Nova Iorque:

Basic Books, 1981. (Uma colecção de ensaios importante, com

respostas dos autores. Inclui o ensaio do quarto chinês de Searle.)

Polanyi, Michael, Personal Knowledge. Nova Iorque: Harper & Row, 1964.

Ryle, Gilbert, The Concept of Mind. Londres: Hutchinson, 1949.

Sagal, Paul T., Skinner’s Philosophy. Washington, D.C.: University Press of

America, 1981.

Searle, John R., «Minds, Brains, and Programs», in The Mind’s I, org.

Hofstadter e Dennett, p. 3 e ss. (Originalmente publicado com o

mesmo título em The Behavioral and Brain Sciences, vol. 3, 1980.

Cambridge University Press.)

Skinner, B. F., Contingencies of Reinforcement. Nova Iorque: Appleton-

Century-Crofts, 1969.

Smullyan, Raymond, Forever Undecided. Nova Iorque: Random House,

1990. (Não foi muito usado neste diálogo, mas é uma leitura

complementar fascinante.)

Webb, Judson, «Metamathematics and the Philosophy of Mind.» in

Philosophy of Science, 1967. (Serviu de inspiração para grande

parte dos argumentos usados neste diálogo.)

Wittgenstein, Ludwig, O Livro Azul. Lisboa: Edições 70, 1991.

Wittgenstein, Ludwig, O Livro Castanho. Lisboa: Edições 70, 1990.

58

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Wittgenstein, Ludwig, Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1994 (2.a edição).

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