pesquisa cuidadosa

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1 POR UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: Em busca de uma ética alternativa ao paradigma do descuido 1 Pâmela Marconatto Marques Introdução Se partirmos do pressuposto de que a realidade social responde no idioma em que é perguntada, como nos sugere Boaventura de Sousa Santos (2012), somos levados a imaginar que o idioma em que elaboramos as perguntas com que interpelamos o social se constitui não somente de nosso repertório teórico, mas da postura metodológica/epistemológica que faz com que transformemos o material à nossa disposição em problema. Nesse sentido, realizar uma reflexão sobre essa postura implica trazer à evidência isso é, tornar consciente e manifesto o geralmente obscuro, muitas vezes intuitivo, caminho por meio do qual se faz pesquisa e produz conhecimento, discutindo os fundamentos epistemológicos da pesquisa social. Essa é a tarefa a qual será dedicado o presente estudo: mais do que apontar molduras prontas às quais ajustar a matéria a ser apreendida durante a pesquisa social, refletir sobre as (des)preocupações com que se empreende o caminho da pesquisa, sondando algumas formulações epistêmicas interessantes que se refletem em posturas ético-metodológicas mais sensíveis, que aqui propomos chamar pesquisa cuidadosa. É sobre seus desafios, limites e potências que se destina o presente trabalho. Pesquisa em Colaboração x Pesquisa em detrimentoSomente um sujeito consciente da complexidade dos mecanismos que agem sobre si (ou consigo) quando interpela o social é capaz de produzir 1 Documento de Trabalho 41, CLACSO, resultado do Seminário Metodologias em co-labor, ministrado em sua Plataforma de Formação Virtual no 1º semestre de 2014.

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metodologia, Ciencias sociais, epistemologia

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    POR UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO

    NAS CINCIAS SOCIAIS:

    Em busca de uma tica alternativa ao paradigma do descuido1

    Pmela Marconatto Marques

    Introduo

    Se partirmos do pressuposto de que a realidade social responde no

    idioma em que perguntada, como nos sugere Boaventura de Sousa Santos

    (2012), somos levados a imaginar que o idioma em que elaboramos as

    perguntas com que interpelamos o social se constitui no somente de nosso

    repertrio terico, mas da postura metodolgica/epistemolgica que faz com

    que transformemos o material nossa disposio em problema.

    Nesse sentido, realizar uma reflexo sobre essa postura implica trazer

    evidncia isso , tornar consciente e manifesto o geralmente obscuro,

    muitas vezes intuitivo, caminho por meio do qual se faz pesquisa e produz

    conhecimento, discutindo os fundamentos epistemolgicos da pesquisa social.

    Essa a tarefa a qual ser dedicado o presente estudo: mais do que apontar

    molduras prontas s quais ajustar a matria a ser apreendida durante a

    pesquisa social, refletir sobre as (des)preocupaes com que se empreende o

    caminho da pesquisa, sondando algumas formulaes epistmicas

    interessantes que se refletem em posturas tico-metodolgicas mais sensveis,

    que aqui propomos chamar pesquisa cuidadosa. sobre seus desafios,

    limites e potncias que se destina o presente trabalho.

    Pesquisa em Colaborao x Pesquisa em detrimento

    Somente um sujeito consciente da complexidade dos mecanismos que

    agem sobre si (ou consigo) quando interpela o social capaz de produzir

    1 Documento de Trabalho 41, CLACSO, resultado do Seminrio Metodologias em co-labor,

    ministrado em sua Plataforma de Formao Virtual no 1 semestre de 2014.

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    pesquisa cuidadosa, ou seja, aquela que no descuida do que pesa sobre as

    decises que, como cientistas sociais, tomamos antes, durante e depois de ir a

    campo, escapando tanto do racionalismo dogmtico quanto do relativismo

    ingnuo. Tal atitude pressupe comprometerse en una serie de niveles, no

    solamente con la temtica que se investiga, pero con la manera como se

    produce esta temtica, se le plantea como problema y se le dan respuestas

    (Speed y Solano, 2008). Requer a superao da lgica extrativa de

    conhecimento que impera nas investigaes sociais, marcada, por exemplo,

    pela imposio de uma agenda que, embora externa comunidade estudada,

    espera-se seja atendida por ela com rapidez, coerncia e docilidade; pela

    despreocupao com a atribuio de autoria a conhecimentos compartilhados

    conosco por autoridades e/ou lideranas populares; pela naturalidade com que

    se impe o no retorno comunidade estudada dos resultados a que se

    chegou mediante a sua colaborao, ou, ainda, pela incapacidade de sequer

    cogitar produtos da investigao alm do texto cientfico, capazes de apoiar as

    lutas em que se debatem os grupos pesquisados.

    A lucidez sobre o modo como se observa, trata, reflete, evidencia,

    descreve o mundo social e se retorna a ele, tudo isso faz parte de uma

    investigao cuidadosa em lugar do paradigma de descuido que compe as

    tessituras epistemolgicas com as quais fazemos cincia. Poderia mesmo dizer

    que essa se trata de uma investigao hiperconsciente de si mesma, de suas

    miopias e pontos-cegos, que vem sendo buscada e esboada por inmeros

    coletivos latino-americanos dedicados a pensar epistemologias ps-coloniais

    nos ltimos anos2. Uma das apostas mais promissoras nesse sentido o

    desenvolvimento de metodologias de pesquisa em colaborao. No af de

    lanar luz sobre sua emergncia, proponho o movimento de entend-la por sua

    inverso: se houve necessidade de falar-se em pesquisa em colaborao

    porque o paradigma hegemnico o da pesquisa feita em detrimento. Nesse

    2 Apesar de mencionarmos especificamente a Amrica Latina aqui, reforamos, no entanto,

    que essas epistemologias se afirmam como desdobramento das possibilidades de autocrtica e no de localizao geogrfica. Ao contrrio, Mignolo (2007) prope a mestiagem discursiva como possibilidade de escavar uma outra linha de construo discursiva a partir de outras linhagens de pensamento. No caso do poscolonialismo essa linhagem no se daria sobre a fixidez de localizaes geogrficas, mas de um acontecimento: a colonialidade.

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    sentido, ao falar em pesquisa cuidadosa x pesquisa sem cuidado (ou

    descuidada), refiro-me mesma lgica extrativista e unilateral que

    denunciada pelas metodologias em colaborao.

    O trabalho em co-labor, como vem sendo chamado nos contextos latino-

    americanos em que vem sendo desenvolvido, ingressa nesse cenrio como

    possibilidade emergente de uma maneira outra de fazer pesquisa. Surge como

    quebra seguida de reorganizao de nosso fazer cientfico, interpelando

    nossas mais elementares ferramentas, como o tradicional projeto de pesquisa,

    seus elementos e as temporalidades em que se enclausura.

    As metodologias em co-labor admitem o fardo colonial que pesa sobre

    nossas investigaes e a arrogncia acadmica com que costumamos realiza-

    las (Speed & Solano, 2008: pg66). Impem a vontade de comprometer-se em

    outros nveis com a realidade social que descrevemos e assumir as

    dificuldades de um caminho ainda por ser traado nas Cincias Sociais, mais

    atento ao outro em todas as suas manifestaes, tendo-o, de fato, como co-

    autor do empreendimento que se quer realizar. Sua proposta se insere em um

    projeto de descolonizao acadmica que pressupe admitir a diversidade de

    experincias levadas a cabo no mundo, fora do cnone cientfico e sem

    depender dele, e que resultam de saberes legtimos que seguem regendo a

    vida daqueles que pesquisamos ao alvedrio de nossa razo indolente, que

    costuma buscar na realidade social apenas o que lhe falta (Santos, 2007).

    Aubry (2011) indica o campo de conhecimento da cincia como un muy

    pequeo recorte del grande conocimiento de la vida y experiencia. Essa

    imagem da cincia como conjunto limitado subverte a lgica de que ela prpria

    e outras formas de conhecimento tratem-se de saberes apartados e

    incomunicveis e reclama uma postura de humildade do cientista que implica,

    em alguma medida, na necessidade de desaprender o aprendido a partir da

    comunicao com o grupo investigado. Boaventura de Sousa Santos (2006)

    afirma algo semelhante ao mencionar a ignorncia como ponto de chegada,

    uma vez que admiti-la essencial para uma postura de abertura e

    aprendizagem com o outro.

  • 4

    Pelo empoderamento epistemolgico do subalterno

    Em minha experincia pessoal com a pesquisa no Haiti, que j se

    prolonga por sete anos, deparei-me com a grande dificuldade de colocar-me

    em contato com meus interlocutores principais na pesquisa sobre a

    Universidade Haitiana: os estudantes universitrios daquele pas. Como as

    entrevistas que havia projetado realizar durante meu mestrado em Educao

    no puderam ser feitas pessoalmente - j que no consegui levantar fundos na

    Universidade para uma nova ida ao Haiti - o correio eletrnico me pareceu o

    caminho natural para faz-lo sem maiores dificuldades. Aps meses de

    tentativa de receber resposta alguma dos alunos que eu j havia conhecido em

    minha primeira viagem ao Haiti, e de inmeros e-mails escritos em ingls,

    espanhol, francs (porque em algum momento imaginei que o problema

    pudesse estar no idioma), passei a refletir sobre as causas do que acontecia.

    O primeiro movimento que fiz, inspirada nas lgicas de pesquisa em co-

    labor (Speed & Solano, 2008) foi o de compreender o que ocorria no somente

    como causalidade ou m sorte, mas como no resposta ativamente executada

    pelos alunos contatados. Essa no resposta pensada como ao, me fez

    percebe-la como resistncia, ainda que no planejada ou articulada, desses

    jovens universitrios. Como recusa colaborao com uma estrangeira em

    mais esse nvel, apesar de minhas boas intenes. Metodologicamente,

    percebo que estive tentando comunicar-me de maneira assimtrica com esses

    sujeitos, j que, o tempo todo, trataram-se das perguntas que formulei

    unilateralmente e que deveriam obedecer ao tempo de resposta ditado por

    mim, ignorando as lutas e enfrentamentos com os quais se debatiam naquele

    momento e as respostas mais urgentes que exigiam:

    Los procedimientos de los actores sociales no son los del investigador convencional. Este ltimo irrumpe con sus presupuestos tericos, el tema de su tesis, un encargo acadmico de su institucin; es decir, con preocupaciones abstractas originadas en sus lecturas o sus maestros; como asesor de una agencia oficial, internacional o civil, o por los intereses de quienes le proporcionaron la beca o los fondos para su investigacin. Al contrario, los comisionados por mandato de otros compaeros de lucha cargan con la

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    responsabilidad de dar a sus comunidades una respuesta a preguntas endgenas: un conflicto que transformar de manera constructiva, una situacin resentida como problemtica, o un desafo colectivo que resolver; en suma, una respuesta comprometedora a luchas concretas: polticas, ecolgicas, laborales, agrarias, de produccin y comercializacin o de convivencia, etctera, de una realidad local, regional o hasta ms amplia (Aubry, 2011. pg.62).

    Percebo, assim, que segui tentando falar por eles, contando com a

    legitimidade que sua apario em meu trabalho me conferiria e sem nada a

    lhes oferecer em contrapartida, no fazendo outra coisa que lhes invadir a vida

    que corria em seu prprio ritmo, com suas temporalidades e exigncias

    estranhas pesquisa. Acerca dessa atitude extrativa, Freire (1973) afirma que

    toda invasin sugiere, obviamente, un sujeto que invade. Sugere ainda que:

    El invasor reduce los hombres del espacio invadido a meros objetos de su accin () el primer acta, los segundos tienen la ilusin de que actan, en la actuacin del primero; ste dice la palabra, los segundos, prohibidos de decir la suya, escuchan la palabra del primero; el invasor piensa, en la mejor de las hiptesis, sobre los segundos, jams como ellos; stos son pensados por aquellos. (Freire, 1973:21).

    A construo freiriana dialoga, assim, com os dilemas com que se debate

    a investigao em co-labor: possvel ocupar outro lugar na pesquisa que no

    aquele de invasor? Para avanar em relao a essa crtica, me parece

    interessante um movimento de empoderamento metodolgico dos invadidos.

    Freire segue a citao reproduzida acima afirmando que El invasor prescribe,

    los invadidos son pasivos frente a su prescripcin. Com base, principalmente,

    na experincia que vivi com os estudantes haitianos, proponho dois

    movimentos hermenuticos que desafiam a afirmao freiriana: 1) O

    entendimento de que os silncios, a no-colaborao, o no entusiasmo, o no

    esforo de compreenso mtua, o esquecimento, que tendem a ser assumidos

    como passividade dos invadidos, podem constituir resistncia, atitude potente

    de rechao ao que imposto verticalmente. 2. A aposta de que os invadidos

    no ouvem passivamente a palavra do outro sem que haja, incontinente, ato

    mental de valorao, dvida, refutao, oposio, transfigurao do ouvido.

    Mais: de que haja, depois da partida do invasor, um momento de subverso

  • 6

    de sua palavra, em que ela questionada, posta em debate, transformada em

    chiste, pardia, entre os invadidos.

    Rita Laura Segato admite que, diferente do que afirma Spivak em Pode o

    Subalterno falar? de que no, eles no podem no somente podem como

    o fazem, mas entre eles3. Assim, no se trata de salv-los da alienao em

    que se encontram, mas de criar as condies de possibilidade para que falem

    conosco e no somente entre eles. Esse movimento no me parece possvel

    de ser empreendido apenas estando entre eles (como o observador total de

    Garfinkel), mas necessita de uma postura outra onde os sentidos sobretudo a

    audio - sejam elevados a um novo patamar.

    A ressignificao dos sentidos na pesquisa cuidadosa

    Impe-se, para a realizao de uma pesquisa sob o paradigma do

    cuidado, uma escuta aberta surpresa, capaz de ouvir o novo sem reduzi-lo

    imediatamente ao j conhecido, de ouvir e lidar com - o que no responde

    necessariamente s questes de pesquisa, o que desestabiliza as hipteses

    com que vamos a campo, o que coloca arestas em um trabalho cientfico que

    se pretende redondo. Trata-se de uma postura ativa e generosa, de respeito e

    humildade, em que se houve o outro que fala sem pressa, sem cortes, sem

    converso imediata em texto ou concluses, que implica maturao da palavra

    ouvida at que, junto dos demais sujeitos de pesquisa, decida-se o que fazer

    com ela. H, a, um tempo que se expande como uma coluna de ar, permitindo

    o respiro, a distenso, a dilatao do processo mediante o qual se apreende ou

    desvenda uma dada narrativa. Tempo para que ela repercuta e produza efeitos

    sobre o pesquisador.

    Essa postura me parece incorporar de modo potente o debate que vem

    sendo realizado pela antroploga britnica Marilyn Strathern. Em Parcial

    Conections, Strathern (2004) sugere que o campo de pesquisa constitudo

    de partes/partculas que, somadas, no do origem a um todo fechado,

    completo, uno. O que est em questo o tipo de conexo que pode ser

    3 A fala de Segato integra uma srie de entrevistas realizadas pela antroploga Vernica Gago

    (Universidad Nacional de San Martin) por ocasio do aniversrio da obra de Spivak e est disponvel no link: https://www.youtube.com/watch?v=SdYN0yx5Q2Y

  • 7

    concebida entre essas partes/partculas/entidades que tm diferentes origens,

    no obedecem a escalas comuns, no so comparveis, no esto no mesmo

    registro, mas trabalham em comunho.

    Nesse contexto, admite-se que se um no pode definir completamente o

    outro, j que nenhuma posio oferece um contexto em que se verifique

    superposio completa de um em relao ao outro, tampouco a perspectiva de

    uma parte/partcula pode subsumir-se perspectiva da outra. As conexes

    entre as mesmas so, assim, parciais porque nenhuma entidade nica criada

    entre as partes. O exemplo dado por Strathern o do organismo e da mquina,

    cuja conexo o que define o cyborg, e que, apesar de justapostos, no

    podem ser conectados numa relao parte/totalidade, j que um no pode

    definir completamente o outro. Strathern aposta nos espaos entre estas

    justaposies como o lugar de potncia dessas conexes instveis, onde o

    indecifrado/indecifrvel pode se localizar, onde o no traduzido pode seguir

    projetando-se sobre os envolvidos nessa constelao (inclusive sobre o leitor),

    graas brecha. Esse movimento altera o status epistemolgico da lacuna. Ao

    invs de ser percebida como algo que falta e portanto, que fracassa - ela

    entendida como lugar de infinita possibilidade de manifestao do devir.

    Essa suspenso das certezas que acompanha a proposta de Strathern4

    comunica-me com uma recente experincia entre os Mbi Guaran,

    comunidade indgena que vive prximo Itapu, na grande Porto Alegre/RS. O

    Cacique Vher Poty explicava ao pblico visitante, composto de alunos e

    funcionrios da UFRGS, as distintas razes de alma que poderiam ter os seres

    humanos (ele prprio vinha do trovo) diante do que acenvamos nossas

    cabeas, assentindo. Ao perceber esse movimento, Ver no hesitou em

    suspender a fala e dirigir-se a ns mais ou menos nos seguintes termos:

    Parem de dizer que entenderam. Estamos falando de algo difcil, profundo,

    que no pode ser entendido assim to rpido. Escutem uma vez e pensaro

    que entenderam. Escutem outra e vero que h um elemento fora do lugar.

    Escutem uma terceira e percebero que h mais coisas que no se encaixam.

    Na quarta vez vero que no haviam entendido nada. Talvez na quinta possam

    4 A suspenso das certezas tambm aparece em Latour e Stangers como potente caminho

    metodolgico.

  • 8

    comear de novo. Essa experincia entre os Mbi guarani, de modo mais

    potente que qualquer teoria, ensinou-me a desconfiana em relao rapidez

    com que produzimos ideias-certezas durante nossas pesquisas e a importncia

    da atitude com que escutamos falar.

    Gladys Tzul, intelectual feminista guatemalteca, trabalha com "escutar

    falar" como categoria em seu pensamento5. Ela refere-se, entretanto, ao sujeito

    investigado e no ao investigador, em uma atitude de espreita, de averiguao

    das condies de possibilidade de sua prpria fala, quando cala o pesquisador.

    Trata-se de um clculo a partir da fala do outro hegemnico, do desvelamento

    antecipado de sua atitude e expectativa diante da voz subalterna, cujo

    resultado conduz ao silenciamento ou vocalizao estratgicos.

    Outra dimenso dos silncios que me parece central a uma investigao

    que se pretende cuidadosa aquela que se impe entre os sujeitos

    investigados, enquanto grupo que tambm se processa assimetricamente. A

    antroploga boliviana Slvia Riveira Cusicanqui admite essa dimenso como

    uma das limitaes da investigao-ao participativa (IAP) medida que,

    ainda que determinado pesquisador se proponha a ouvir um grupo subalterno,

    geralmente ouve determinados indivduos em detrimento de outros,

    reproduzindo (e mesmo reforando) relaes de poder assimtricas em seu

    interior. Isso ganha ainda mais peso se levarmos em conta que a IAP pretende-

    se pesquisa em colaborao com pretenso descolonizadora, ou seja: capaz

    de produzir empoderamentos, deslocamentos, rotas de fuga de relaes de

    poder opressoras no interior dos grupos estudados.

    Mais uma vez se coloca, como fantasma6 (Deleuze, 1974) o problema de

    Spivak, que conduz aos questionamentos: Quem fala quando um grupo de

    pesquisadores se prope a ouvir um grupo subalterno? Quem se escuta falar

    e que vozes seguem inauditas, interditadas para a fala? Em que medida entra

    5 Para ver mais, sugiro a leitura da entrevista realizada pelo CES com Tzul, disponvel em

    http://alice.ces.uc.pt/news/?p=3013 6 Gilles Deleuze aponta que os fantasmas, como prope a psicanlise, seriam efeitos de

    realidade e poderiam ultrapass-la. Os fantasmas seriam da natureza do trao, como prope Derrida, e no faria diferena definir o fantasma como verdadeiro ou falso. Os fantasmas so sempre verdadeiros. Eles podem reproduzir os sentimentos que marcaram um acontecimento e perpetu-lo, pois ultrapassam limites temporais e, segundo Gilles Deleuze, nem ativos nem passivos, nem internos nem externos, nem imaginrios nem reais, os fantasmas tm realmente a impassibilidade e a idealidade do acontecimento (DELEUZE, 1988: p. 218)

  • 9

    ou deve ser incorporada ao nosso repertrio tico enquanto cientistas sociais a

    preocupao com a criao de condies de possibilidade para que outras

    falas emerjam nesse processo de escuta? /deve ser/pode ser nossa essa

    atribuio?

    Aubry afirma que el conocimiento cientfico que genera un investigador

    tiene una dimensin tica a partir de la implicacin de sus resultados, su uso,

    para qu est produciendo conocimiento o a qu tipo de proyecto est

    abonando. A preocupao que demonstra, assim como Cusicanqui, me parece

    ser a mesma a que me somo: saber como os saberes produzidos em dilogo

    com as comunidades investigadas podem auxili-las no mnimo no

    prejudic-las - em suas lutas concretas.

    No caso de meus sujeitos de pesquisa os universitrios haitianos - esse

    cuidado com a dimenso da escuta torna-se ainda mais valioso ao assumir

    como hiptese que o modo como empreendemos estudos sobre a pobreza

    pressupe-na como espao vazio de sentidos e saberes, pronto a ser

    preenchido pela razo hegemnica. Os haitianos (vistos como bloco

    homogneo de negros-pobres) situam-se justamente nesse lugar despropriado,

    deslegitimado, vazio, interditado para a fala. Nesse sentido, somente

    avanamos se ousarmos compreend-los ( pobreza e ao Haiti) fora do

    paradigma da incompletude. Avanamos mais se ousarmos ir alm do

    ilemorfismo denunciado por Jos Carlos dos Anjos (2014) como processo pelo

    qual o pensamento subalterno reduzido matria a ser ajustada no formato

    de nossas armaduras tericas hegemnicas. Esse processo, apesar de muitas

    vezes emergir de pesquisas que se querem crticas e engajadas, mantm

    inalteradas as frmulas hegemnicas de produo de conhecimento, j que o

    conhecimento subalterno segue restrito matria, deixando de produzir seus

    efeitos enquanto forma. Tambm esse movimento sinaliza a busca de uma

    metodologia cuidadosa com a qual fazer pesquisa.

    Por fim, a dimenso da escuta tambm se abre como caminho para ser

    afetado (Favret-Saada, 1990) em campo e, imerso nesse novo estado de

    sensibilidade, ser capaz de produzir de forma distinta, de criar outras

    possibilidades para descrever esse encontro. Nesse sentido, Ixtik e Berrio

    (2010) propem um mtodo colaborativo de otra manera, levando em

  • 10

    considerao as limitaes pelas quais passamos em nossas instituies de

    pesquisa. As autoras admitem que o mtodo colaborativo seja iniciativa de um

    dos lados envolvidos na investigao, podendo ser aceito ou refutado pelo

    outro. O captulo de que so autoras na obra Conocimientos y prcticas

    polticas: reflexiones desde nuestras prcticas de conocimiento situado

    compe um interessante relato de experincia com mulheres indgenas da

    regio dos Chiapas, Mxico, que se dobra sobre si, pensando-se crtica e

    metodologicamente. Merecem destaque as perguntas sugeridas pelas autoras

    para viabilizar a investigao colaborativa con quienes se puede/debe trabajar

    de este modo? Sujetos constituidos polticamente y ampliamente

    reconocidos? Con luchas prontas con las cuales nos identificamos? Cmo

    se plantea la agenda conjunta? (Ixtik; Berrio, 2010:13).

    Ademais da contribuio metodolgica do trabalho, ao refletir sobre as

    questes postas acima, tambm aparece como novidade o entendimento das

    autoras, ao trabalhar com "los dolores del pasado" das mulheres envolvidas na

    pesquisa, da afetividade como uma experincia social significativa que pode

    emergir da situao de investigao e, quando o faz, mobiliza os envolvidos,

    evidenciando que fazer pesquisa tambm pode implicar ser atravessado,

    afetado no encontro que se d em campo e que pede escrita cientfica que

    ouse e experimente ao comunicar a tica e a esttica desse atravessamento7.

    Boaventura de Sousa Santos vem propondo pensarmos em uma

    participao observada8 como contraponto observao participante e

    que consiste no registro das impresses que emergem ao estar junto desses

    atores, cientes de que algo simtrico ao que realizamos em relao a eles se

    d em relao a ns, sujeitos estranhos quele espao, cuja presena coloca

    em cheque o desenrolar cotidiano da vida e faz emergir tenses e

    reorganizaes nos fazeres e discursos.

    7 Com efeito, a ideia do pesquisador neutro, assim como a insistncia, tanto a leiga quanto a

    acadmica, em perceber a paixo como algo alheio, seno oposto razo e ao fazer cientfico tornam-se problema. Rousseau, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, j sugeria que no possvel conceber porque aquele que no tivesse desejo ou medo se daria ao trabalho de pensar. Da a percepo de que sem paixo (temores e desejos), a pesquisa corre o risco de transformar-se num relatrio desencarnado, que nada aposta ou experimenta. 8 Boaventura fez uso desse termo interessante durante a Summer School Epistemologias do

    Sul, de que participei em Junho desse ano, em Curia/Portugal.

  • 11

    Lugar para o silncio da escuta atenta, da maturao rumo ao

    entendimento denso, que comporta o ainda no. Lugar para a palavra do

    outro capaz de desestabilizar relaes de poder constitudas, afirmar novos

    lugares, descolonizar. Espao e tempo dilatados para uma investigao que

    assuma seus lugares instveis e seja capaz de viajar, de projetar-se e dobrar-

    se sobre si mesma, corrigindo rotas. Esse me parece um caminho cuidadoso.

    Um caminho que no se percorre solitariamente e que exige pensar a

    investigao cientfica como exerccio tico, compartilhado, mas, sobretudo,

    afetivo (capaz de afetar e produzir afetos) que se traa com e em direo ao

    outro.

    Referncias:

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    Dos Anjos, Jos Carlos Gomes (2014) Contestao e Democracia na

    Perspectiva dos Subalternos. Palestra ministrada durante a Escola de Altos

    Estudos Sociedade Civil, Democracia e Contestao, realizada em novembro

    de 2014 no mbito do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFRGS.

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    indgenas y acadmicas en la construccin del conocimiento In: Leyva Solano,

    et. al Conocimientos y prcticas polticas: reflexiones desde nuestras prcticas

  • 12

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    CIESAS, PDTG-USM, UNICACH.

    Latour, Bruno. Segunda fonte de incerteza: a ao assumida; Terceira fonte

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