pirenne - a expansão do islã no mediterrâneo

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 Henri Pirenne Maomé e Carlos Magno O impacto do Is lã sobre a civilização europeia TR DUÇÃO Regina Schõpke e auro Baladi PRESENT ÇÃO Flávia Maria Schlee Eyler TR DUÇÃO D S EXPRESSÕES EM L TIM ntônio Mattoso 00TRAPODTO EDITOR PUC

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Henri Pirenne - Maomé e Carlos Magno: Capítulo 6

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  • Henri Pirenne

    Maom e Carlos Magno O impacto do Isl sobre a civilizao europeia

    TRADUO Regina Schpke e Mauro Baladi

    APRESENTAO Flvia Maria Schlee Eyler

    TRADUO DAS EXPRESSES EM LATIM Antnio Mattoso

    (00TRAPODTO EDITORA

    PUC RIO

  • ..

    V~--~~-~/.~;;

    PUC RIO

    Reitor Pe. Jesus Horta) Snchez, S.J.

    V ice-Reitor Pe. Josaf Carlos de Siqueira, S.J.

    Vice-Reitor para Assuntos Acadmicos Prof. Jos Ricardo Bergmann

    Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

    Vice-Reitor para Assuntos Comunitrios Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio

    Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern Sim, S.J.

    Decanos Prof Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

  • CAPTULO 4

    A expanso do Isl no Mediterrneo

    A invaso do Isl Para compreender a expanso do Isl no sculo VII, nada mais sugestivo do que compar-la, em sua investida sobre o Imprio Romano, s invases germnicas. Estas ltimas so a culminn-cia de uma situao muito antiga, mais velha mesmo que o Im-prio, e que pesou mais ou menos fortemente sobre toda a sua histria. Quando o Imprio, arrombadas as suas fronteiras, abandona a luta, seus invasores logo se deixam absorver por ele e, na medida do possvel, do continuidade sua civilizao, entrando na comunidade sobre a qual ela repousa.

    Antes da poca de Maom, ao contrrio, o Imprio no teve - ou teve poucas - relaes com a pennsula Arbica.* Para proteger a Sria contra os bandos nmades dos habitantes dos desertos contentou-se em construir um muro, mais ou menos como, no norte da Bretanha, havia construdo um contra as in-vases dos pictos; mas esse limes srio, do qual reconhecemos ainda hoje algumas runas atravs do deserto, no em nada comparvel ao Reno ou ao Danbio.556

    O Imprio jamais o considerou um de seus pontos sensveis, nem estacionou ali uma grande parcela das suas foras milita-res. Tratava-se de uma linha de vigilncia atravessada pelas ca-ravanas que traziam perfumes e ervas aromticas. O Imprio Persa, tambm vizinho da Arbia, agira do mesmo modo em relao a ela. No havia nada a temer de bedunos nmades da

    intil falar aqui do reino de Palmira, destruido no sculo III, situado no norte da peninsula. 555

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  • III NNII'INI NNl

    pl'llnsula, cuja civilizao estava no estgio da tribo, cujas cren-as religiosas mal superavam o fetichismo e que passavam o tempo fazendo guerra uns aos outros ou pilhando as caravanas que iam do sul para o norte, do Imen para a Palestina, a Sria e a pennsula do Sinai, passando por Meca e Y athreb (a futura Medina).

    Ocupados em seus conflitos seculares, nem o Imprio Ro-mano nem o Imprio Persa parecem ter suspeitado da propa-ganda por meio da qual Maom, em meio a uma luta confusa de tribos, daria ao seu povo uma religio que logo se projetaria sobre o mundo, junto com sua dominao. O Imprio estava com a corda no pescoo, enq~anto Joo Damascenot ainda via no Isl uma espcie de cisma anlogo s heresias precedentes.557

    Quando Maom morre, em 632, nada revela o perigo que se manifestar de maneira fulminante dois anos depois. Nenhuma medida havia sido tomada na fronteira. A ameaa germnica chamara incessantemente a ateno dos imperadores, mas o ataque rabe os surpreendeu. Em certo sentido, a expanso do Isl foi um acaso, se entendermos isso como a consequncia imprevisvel de diversas causas que se combinam. O sucesso do ataque se explica pelo esgotamento desses dois imprios que es-tavam nas margens da Arbia, o romano e o persa, na sequn-cia da longa luta que os havia levantado um contra o outro e que finalmente coroara a vitria de Heraclius sobre Chosroes (morto em 627).558

    Bizncio acabava de reconquistar o seu brilho, e seu futuro parecia assegurado pela queda do inimigo secular, o que lhe restitua a Sria, a Palestina e o Egito. A Santa Cruz, outrora ar-rebatada, era reconduzida triunfalmente pelo vencedor a Cons-tantinopla. O soberano da ndia enviava felicitaes a Hera-clius, e o rei dos francos, Dagoberto, conclua com ele uma paz

    1 Monge cristo (675-749) nascido em Damasco, considerado o maior telogo de seu tempo. [N.T.]

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  • MAOM~ E CARLOS MAGNO

    perptua. Depois disso, poder-se-ia esperar, dever-se-ia esperar ver Heraclius retomar no Ocidente a poltica de Justiniano.

    verdade que os lombardos ocupam uma parte da Itlia e os visigodos, em 624, retomam de Bizncio os seus ltimos pos~ tos na Espanha, mas o que isso comparado com o formidvel reerguimento que acaba de se realizar no Oriente?

    O esforo - muito grande, sem dvida - esgota o Imprio. O Isl arranca dele bruscamente as provncias que a Prsia aca-bara de lhe devolver. Heraclius {610-641) assiste impotente primeira manifestao dessa nova fora que desorienta o mun-do e o desvia. 559

    A conquista rabe, que se desencadeia ao mesmo tempo so-bre a Europa e a sia, sem precedentes. S possvel compa-rar a rapidez dos seus sucessos com aquela com que se consti-turam os imprios mongis de um tila ou, mais tarde, de um Genghis Khan ou de um Tamerlo. Mas estes ltimos foram to efmeros quanto a conquista do Isl ser duradoura. Ainda hoje essa religio tem fiis em quase toda parte onde ela se imps no governo dos primeiros califas. Sua difuso fulminante um ver-dadeiro milagre, comparada lenta progresso do cristianismo.

    Ao lado dessa irrupo, o que so as conquistas por tanto tempo paralisadas e to pouco violentas dos germanos, que, depois de alguns sculos, s conseguem roer a borda da Ro-mnia?

    por pedaos inteiros que o Imprio desaba diante dos ra-bes. Em 634 eles se apoderam da fortaleza bizantina de Bothra (Bosra), do outro lado do Jordo. Em 635, Damasco cai diante deles; em 636, a batalha de Yarmouk lhes d toda a Sria. Em 637 ou 638, Jerusalm lhes abre as portas, enquanto, na direo da sia, eles conquistam a Mesopotmia e a Prsia. Chega a vez do Egito de ser atacado. Pouco depois da morte de Heraclius {641), Alexandria tomada, e logo todo o pas ocupado. Con-tinuando sempre, a expanso submerge as possesses bizanti-nas da frica do Norte.

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  • HtNNI I'IRlNNE

    Tudo isso se explica, sem dvida, pelo imprevisto, pela de-sordem dos exrcitos bizantinos desorganizados e surpreen-didos por uma nova maneira de combater, pelo descontenta-mento religioso e nacional dos monofisistas e dos nestorianos na Sria (aos quais o Imprio no quer fazer nenhuma conces-so), bem como da Igreja Copta do Egito, e pela fraq\}eza dos persas.* Mas essas razes so insuficientes para explicar um triunfo to total. A magnitude d.os resultados obtidos despro-porcional importncia do conquistador.**

    A grande questo que se coloca saber por que os rabes, que no eram mais numerosos que os germanos, no so ab-sorvidos como eles pelas populaes dessas regies de civiliza-o superior, das quais se apoderam. Tudo consiste nisso. Exis-te apenas uma resposta, e ela de ordem moral. Enquanto os germanos no tm nada para opor ao cristianismo do Imprio, os rabes so exaltados por uma nova f. Isso, e apenas isso, os torna inassimilveis. Pois, quanto ao resto, eles no tm, do mesmo modo que os germanos, nenhuma preveno contra a civilizao daqueles que conquistam. Ao contrrio, a assimilam com uma rapidez espantosa. Na cincia, filiam-se escola dos gregos; na arte, dos gregos e dos persas. Nem mesmo so fa-nticos, pelo menos no incio, e no pretendem converter os sditos. Mas querem faz-los obedecer ao Deus nico, Al, ao seu profeta Maom e, j que ele era rabe, Arbia. Sua religio universal , ao mesmo tempo, nacional. So servidores de Deus.

    Isl significa resignao ou submisso a Deus. Muulmano quer dizer submisso. Al uno e lgico. A partir disso, todos os seus servidores tm o dever de imp-lo aos incrdulos, aos infiis. Aquilo a que eles se propem no , como dissemos, a converso, mas a sujeio.562 isso que trazem consigo. Aps a

    "Se os rabes venceram, porque o mundo que eles atacavam estava prestes a cair em runas".560

    Dawson v no entusiasmo religioso a causa essencial das conquistas. 56 '

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  • MAOM~ E CARLOS MAGNO

    conquista, s querem tomar, como um butim, a cincia e a arte dos infiis, que cultivaro em honra de Al. Tomam deles at mesmo as instituies, medida que elas lhes so teis. So le-vados a isso, alis, pelas prprias conquistas. Para governar o Imprio que fundaram, no podem mais se apoiar em institui-es tribais, assim como os germanos no puderam impor as suas ao Imprio Romano. A diferena que em toda parte onde esto, dominam. Os vencidos so sditos, so os nicos a pagar impostos, esto fora da comunho dos crentes. A barreira in-transponvel. Nenhuma fuso pode haver entre as populaes conquistadas e os muulmanos. Que contraste formidvel com um Teodorico, que se coloca a servio dos vencidos e procura assimilar-se a eles!

    Entre os germanos, o vencedor vai espontaneamente at o vencido. Entre os rabes o contrrio: o vencido vai ao vence-dor, e s pode ir servindo, como ele, a Al e lendo, como ele, o Coro, ou seja, aprendendo a lngua, que lngua santa e, ao mesmo tempo, lngua mestra.

    Nenhuma propaganda nem mesmo - como entre os cris-tos depois do triunfo da Igreja - nenhuma opresso religio-sa. "Se Deus tivesse desejado", diz o Coro, "ele teria feito um nico povo de todos os homens." Condena-se em termos apro-priados a violncia contra o erro. 563 S se exige a obedincia a Al, obedincia exterior vinda de seres inferiores, degradados, desprezveis, tolerados, que vivem na abjeo. isso que in-tolervel e, para o infiel, desmoralizante. No se ataca a sua f. Ela ignorada, e esse o meio mais eficaz de separ-lo dela e conduzi-lo a Al, que lhe devolver a dignidade e lhe abrir as portas da cidade muulmana. por isso que a religio obriga o muulmano a tratar o infiel como sdito. Que venha o infiel. Ao vir, ele rompe com sua ptria e com seu povo.*

    * Alis, tambm se ia para o Isl por interesse. Na frica, segundo Ibn Khaldun, os brberes apostasiaram doze vezes em setenta anos. 564

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  • HENRI PIRENNE

    O germano se romaniza a partir do momento em que entra na Romnia. O romano, ao contrrio, se arabiza a partir do momento em que conquistado pelo Isl.* Pouco importa que, at em plena Idade Mdia, em meio aos muulmanos tenham subsistido pequenas comunidades de coptas, nestorianos e, so-bretudo, judeus. Nem por isso a ambincia deixa de se~ profun-damente transformada. H um corte, uma clara ruptUra com o passado. O novo senhor no mais permite que, no raio onde ele domina, uma influncia possa escapar ao controle de Al. Seu direito, baseado no Coro, toma o lugar do direito romano. Sua lngua toma o lugar do grego e do latim.

    Ao se cristianizar, o Imprio havia mudado de alma, se possvel diz-lo; ao se islamizar, ele muda ao mesmo tempo de alma e de corpo. A sociedade civil to transformada quanto a sociedade religiosa.

    Com o Isl, um novo mundo se introduz nessas praias me-diterrnicas onde Roma havia espalhado o sincretismo da sua civilizao. Efetua-se uma ciso que dura at os nossos dias. s margens doMare Nostrum estendem-se doravante duas civili-zaes diferentes e hostis. Se, em nossos dias, a europeia subor-dinou a asitica, ela no a assimilou. O mar, que havia sido o centro da Cristandade, torna-se a sua fronteira. A unidade me-diterrnica rompida.

    A primeira expanso se desacelera no governo do califa Othman. Seu assassinato, em 656, abre uma crise poltica e re-ligiosa que no cessa at o advento de Moawiah, em 660.

    Estava na ordem das coisas que um poder dotado de uma fora de expanso tal como a do Isl devesse se impor em toda a bacia do grande lago interior. E, de fato, ele se esforou para isso. Desde a segunda metade do sculo VII ele pretende se tornar uma potncia martima nessas guas onde domina Bi-

    Na Espanha, no sculo IX, mesmo os cristos no sabem mais o latim; traduzem-se para o rabe os textos dos concilios.

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    zncio, sob o reinado de Constncio II (641-668). Os navios rabes do califa Moawiah (660) comeam a invadir as guas bi-zantinas. Ocupam a ilha de Chipre e, no longe da costa da sia Menor, alcanam uma vitria naval sobre o imperador Cons-tncio II. Apoderam-se de Rodes e avanam at Creta e a Sic-lia. 565 Depois fazem do porto de Czico uma base naval, a partir da qual, em vrias ocasies, sitiam Constantinopla, que usa vi-toriosamente o fogo grego,t at que, em 677, eles renunciam empreitada.*

    O avano para a frica, inic\ado em 647 por Ibn Sad, emir do Egito, culmina com uma vitria sobre o exarca Gregrio. No entanto, as fortalezas construdas no governo de Justiniano no sucumbem, e os brberes, esquecendo a velha hostilidade aos romanos, cooperam com eles contra o invasor. Uma vez mais se revela a importncia da frica, cuja conquista pelos vnda-los havia outrora provocado o declnio defensivo do Imprio no Ocidente. Dela dependia a segurana da Siclia e da Itlia, a passagem martima para o Ocidente. Para poder defend-la, Constncio II, aps a ltima visita a Roma feita por um impe-rador bizantino, se estabelece em Siracusa.

    Nessa poca, as perturbaes do califado levam a um re-pouso. Porm, o advento de Moawiah, em 660, faz a luta ser retomada. Em 664, uma nova grande incurso gera uma nova derrota dos bizantinos. O exrcito que eles haviam enviado a Hadrumete vencido, e a fortaleza de Djelula tomada, aps o que os invasores se retiram. 567 Porm, para ao mesmo tempo evitar os retornos ofensivos dos bizantinos, que conservam as cidades da costa, e conter os brberes do macio de Aures, em

    t Mistura viscosa que flutuava e queimava (mesmo em contato com a gua), muito usada pelos bizantinos. Armazenada em vasos de barro, podia ser lanada de mura-lhas e de barcos diretamente sobre o inimigo. A composio qumica dessa arma per-manece desconhecida, pois os bizantinos esconderam ou destruram a frmula. [N.T.[

    Eles atacam Constantinopla em 668 e 669. Em 673, inauguram um bloqueio que dura cerca de cinco anos.566

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    670 Ogba-ben-Nafi funda Kairuan, "praa de armas" do Isl at o final dos tempos.568 Dela partem ataques-relmpago, acom-panhados de massacres, contra os brberes que permanecem nas montanhas. Em 681, Ogba, em um formidvel avano, atinge o Atlntico. Porm, uma reao dos brberes e dos ro-manos varre tudo isso. O prncipe brbere Kossayla entra como vencedor em Kairuan, e os brberes que haviam abraado o Isl apressam-se a abjurar.569 Os bizantinos passam ofensiva. Ven-cidos em Kairuan, os muulmanost recuam para Barka, onde so surpreendidos e massacrados por um corpo de desembar-que bizantino (689). Seu chefe morre na batalha.570

    Essa vitria, que devolve a costa da frica aos bizantinos, ameaa toda a expanso rabe no Mediterrneo. Mas os rabes, que so obstinados, voltam carga. Cartago tomada de assal-to (695). O imperador Lencio v o perigo e equipa uma frota, que, comandada pelo patrcio Joo, retoma a cidade.

    Por seu lado, os brberes, agrupados sob o governo da mis-teriosa rainha Kahina, arrasam o exrcito rabe perto de Te-bessa e o expulsam para a Tripolitnia.571

    Porm, no ano seguinte, Hassan retoma o ataque e apo-dera-se de Cartago (698), cuja conquista dessa vez definitiva. Os habitantes fogem. Logo substitui-se a cidade antiga por uma nova capital situada no fundo do golfo: Tnis, cujo porto de Halq al-Wadi torna-se a grande base do Isl no Mediterrneo. Os rabes, que finalmente tm uma frota, dispersam os navios bizantinos. O domnio do mar doravante lhes pertence. Em breve, os gregos no conservaro mais do que Septem (Ceuta), com alguns restos da Mauritnia Segunda e de Tingitana, Maiorca, Minorca e raras cidades na Espanha. Ao que parece, eles transformam essas possesses esparsas em um territrio que ainda subsiste dez anos.572

    t O texto original traz "os muulmanos de Kossayla", o que parece ser um lapso dos editores. [N.T.]

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  • MAOM~ E CARLOS MAGNO

    Acaba, desde ento, a resistncia dos brberes governados pela rainha Kahina. Acuada no Aures, ela massacrada. Sua ca-bea enviada ao califa.

    Nos anos seguintes imprime-se a marca rabe. Musa Ibn Noayr submete o Marrocos e impe o Isl s tribos brberes.573

    Esses novos convertidos conquistaro a Espanha. Ela j ha-via sido assediada ao mesmo tempo que a Sardenha e a Siclia. Era a consequncia necessria da ocupao da frica. Em 675, os rabes haviam atacado a Espanha por mar, mas foram recha-ados pela frota visigtica. 574 '

    O estreito de Gibraltar no podia deter os conquistadores; os visigodos desconfiavam disso. Em 694, o rei Egica acusa os judeus de conspirar com os muulmanos - talvez, com efeito, as perseguies que sofriam os levassem a esperar a conquista do pas. Em 710, quila, rei de Toledo, deposto por Rodrigo, duque de Btica, foge para o Marrocos, onde, sem dvida, soli-cita ajuda dos muulmanos, que tiram proveito dos aconteci-mentos. Em 711, um exrcito estimado em 7 mil brberes, sob o comando de Tarik, atravessa o estreito. Quando Rodrigo vencido na primeira refrega, todas as cidades se abrem ao con-quistador que, apoiado em 712 por um exrcito de. reforo, conclui a tomada do pas. Em 713, Mua, o governador da fri-ca do Norte, proclama na capital de Toledo a soberania doca-lifa de Damasco. 575

    Por que se deter na Espanha? Esta se prolonga, alm do mais, na Narbonnaise. Mal a submisso da pennsula se com-pleta e, em 720, os muulmanos apoderam-se de Narbona; depois sitiam Toulouse, arrancando assim o primeiro pedao do reino franco. O rei, impotente, nada faz. O duque Eudes da Aquitnia os repele em 721, mas Narbona permanece em suas mos. Em 725, parte da uma nova e formidvel investida. Carcassonne tomada, e os cavaleiros do crescente avanam at Autun, saqueada em 22 de agosto de 725.

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    Nova incurso em 732 pelo emir da Espanha, Abd-er-Rhaman. Partindo de Pamplona, ele atravessa os Pirineus e marcha sobre Bordeaux. Eudes, derrotado, foge para junto de Carlos Martel. Do Norte parte, finalmente, a reao contra os muulmanos, dada a impotncia que o Sul manifesta. Carlos marcha com Eudes ao encontro do invasor e o alcana na mes-ma passagem de Poitiers onde Clvis outrora derrotou os visi-godos. O choque ocorre em outubro de 732. Abd-er-Rhaman vencido e morto,* mas o perigo no est afastado. Ele se trans-fere agora para a Provena, ou seja, para o mar. Em 735, o go-vernador rabe de Narbona, Iussef Ibn Abd-er-Rhaman, apo-dera-se de Arles, apoiado por alguns cmplices que encontra no prprio pas. 576

    Depois, em 73 7, os rabes tomam A vignon com o apoio de Maucontus e estendem suas devastaes at Lyon e a Aquit-nia. Carlos marcha novamente contra eles. Retoma A vignon e ataca Narbona, diante da qual derrota um exrcito rabe de re-foro, vindo por mar. Mas no pode tomar a cidade. Retorna para a Austrsia com um imenso butim, porque tomou, des-truiu e queimou Maguelona, Agda, Bziers e N1mes.577

    Esses sucessos no impedem uma nova incurso dos rabes na Provena em 739. Dessa vez, eles tambm ameaam os 1om-bardos. Carlos, com o auxlio destes, os expulsa uma vez mais.578

    Tudo o que se segue obscuro, mas parece que os rabes submetem novamente a costa provenal e mantm-se nela por alguns anos. Pepino os expulsa dali em 752, mas ataca Narbo-na inutilmente.579 S consegue apoderar-se dela, definitivamen-te, em 759. Essa vitria assinala, se no o fim das expedies contra a Provena, pelo me~os o da expanso muulmana pelo

    Essa batalha no tem a importncia que lhe atribuda. No comparvel vit-ria alcanada sobre tila. Marca o fim de uma incurso, mas, na realidade, no de-tm nada. Se Carlos tivesse sido vencido, disso s teria resultado uma pilhagem mais considervel.

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    continente ocidental.* Do mesmo modo que Constantinopla resistiu ao grande ataque de 718 e protegeu com isso o Oriente, aqui as foras intactas da Austrsia, os vassalos dos carolngios, salvam o Ocidente.

    No Oriente, a frota bizantina consegue afastar o Isl do mar Egeu, mas, no Ocidente, o mar Tirreno cair em seu poder.

    As expedies contra a Siclia se sucedem em 720, 727, 728, 730, 732, 752 e 753. Interrompidas por um momento por algu-mas perturbaes civis na frica,585 so retomadas em 827 no governo do emir aglabita Siadet Al I, que se aproveita de uma revolta contra o imperador para tentar um ataque-surpresa contra Siracusa. Uma frota rabe deixa Susa em 827, mas os bizantinos partem energicamente para a guerra, e uma frota bi-zantina faz com que o cerco a Siracusa seja levantado.

    Os muulmanos recebem reforos da Espanha e depois da frica. Em agosto-setembro de 831, apoderam-se de Palermo aps um cerco de um ano, conquistando assim uma base de-fensiva na Siclia. Apesar desse fracasso, a resistncia dos bizan-tinos prossegue energicamente no mar e em terra. No entanto, eles no podem impedir que os muulmanos, ajudados pelos napolitanos, se apoderem de Messina em 843. Em 859, a sede da resistncia bizantina vencida. Siracusa sucumbe; em 21 de maio de 878, aps uma defesa heroica.

    Enquanto o Imprio Bizantino luta para salvar a Siclia, Car-los Magno est s voltas com os muulmanos nas fronteiras da Espanha. Em 778, ele envia um exrcito que fracassa diante de Saragoa; a retaguarda se deixa massacrar em Roncevaux. Re-

    Ainda existiro muitas devastaes na Provena. Em 799, os sarracenos pilham as cos-tas da Aquitnia, sem dvida, pelo lado do Atlntico.580 J em 768, os mouros inquie-tam os arredores de Marselha. 58' Em 778, eles ameaam a Itlia.'" Em 793, atacam a Setimnia.583 Em 813, pilhagem de Nice e de Civita Vecchia; em 838, pilhagem de Marselha. Em 848, tomada de Marselha. Em 847 e 850, devastao da Provena. Em 889, estabelecimento dos rabes em Saint-Tropez e em La Garde-Freynet. Pelo lado do Atlntico, existem alguns sarracenos, vindos da Espanha no sculo VIII, na ilha de Noirmoutier.584

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    solve ento se manter na defensiva at o momento em que, com os sarracenos invadindo a Setimnia (793), ordena contra eles uma marcha pela Espanha (795),586 na qual seu filho Lus, rei da Aquitnia, se apoiaria em 801 para apoderar-se de Barcelo-na. Aps diversas expedies infrutferas, conduzidas notada-mente pelo missus Ingoberto em 810, Tortosa cai igualmente nas mos de Lus em 811. Em contrapartida, ele fracassa diante de Huesca e no avana mais.587

    Carlos Magno encontra uma resistncia extremamente viva na Espanha. Eginhard exagera quando relata que ele ocupou todo o pas at o Ebro. De fato, ele s tocou no rio em dois pontos: no vale alto, ao sul de Navarra, e no vale baixo, em Tortosa, admitindo-se que essa cidade tenha sido verdadeira-mente ocupada. 588

    Carlos Magno praticamente no pode tirar proveito da to-mada de Barcelona porque no tem frota. Nada pode fazer con-tra os sarracenos que esto em Tnis, dominam as costas da Espanha e ocupam as ilhas. Tenta defender as Baleares e con-segue sucessos passageiros. Em 798, os muulmanos devastam essas ilhas.589 No ano seguinte, cedendo s solicitaes dos ha-bitantes, Carlos Magno lhes envia tropas, sem dvida trans-portadas nos navios dos baleares. Essa demonstrao militar parece ter sido eficaz, j que as insgnias rabes foram enviadas como trofus ao rei.590 No vemos, no entanto, que os francos tenham se mantido nessas ilhas.

    Carlos Magno guerreia na regio dos Pirineus quase todo o tempo. As agitaes que perturbam o mundo muulmano so lucrativas para ele. A fundao do califado ommiade de Cr-dova, em 765, direcionado c.ontra o dos abassidas de Bagd, lhe favorece, j que ambos tinham interesse em poupar os francos.

    Carlos Magno praticamente no obtm sucesso nos outros pontos do Mediterrneo. Em 806, os sarracenos apoderam-se da pequena ilha de Pantellaria e vendem na Espanha, como es-

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    cravos, os monges que l encontram. Carlos faz com que eles sejam resgatados.591 No mesmo ano, seu filho Pepino, rei da It-lia, tenta expulsar os sarracenos da Crsega, onde eles se esta-beleceram. Equipa uma frota e, segundo os historigrafos ca-rolngios, torna-se senhor da ilha. Porm, em 807, ela recai em poder dos inimigos. 592

    Logo, Carlos envia contra eles o condestvel Burchard, que os fora a se retirar depois de um combate no qual eles perdem treze navios. Mas a vitria, mais uma vez, efmera: em 808, o papa Leo III, falando a Carlos das medidas que toma para a defesa da costa italiana, pede que ele se encarregue da Crse-ga.593 V-se, com efeito, que em 809 e em 810 os sarracenos ocupam a Crsega e a Sardenha.

    A situao se agrava quando a frica, atormentada por per-turbaes endmicas, organiza-se sob a dinastia dos aglabitas, que reconhecem o califa de Bagd, Harum-al-Raschid.

    Em 812, os sarracenos da frica, apesar da chegada de uma frota grega comandada por um patrcio e reforada por alguns navios de Gaeta e de Amalfi, pilham as ilhas de Lampedusa, Ponza e Ischia. Leo III pe as costas da Itlia em estado de aler-ta,594 e o imperador lhe envia seu primo Wala para auxili-lo. Carlos pe-se tambm em contato com o patrcio Jorge, que assina uma trgua de dez anos com o inimigo. Nada disso le-vado em conta, e a guerra no mar no apaziguada; apenas a destruio de uma frota sarracena de cem navios por uma tem-pestade, em 813, arrefece um pouco as incurses dos rabes da Espanha, que no cessam de pilhar Civita Vecchia, Nice, a Sar-denha e a Crsega, de onde trazem quinhentos cativos.

    Em meio s guerras, no entanto, h esforos diplomticos. Pepino envia uma embaixada a Bagd em 765. Em 768, recebe na Aquitnia alguns enviados dos sarracenos da Espanha, vin-dos por Marselha. Em 810, Harum-al-Raschid despacha uma embaixada para junto de Carlos Magno, que em 812 assina um tratado com El-Hakem, o Espanhol.

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  • HENRI PIRENNE

    Essas tentativas no tm consequncia. Cada vez mais inca-paz de resistir s frotas muulmanas, Carlos Magno resigna-se defensiva, evitando com dificuldade os golpes que recebe.

    A situao pioraria depois da morte de Carlos Magno. Em 828, Bonifcio da Toscana avana com uma pequena frota, des-tinada proteo da Crsega e da Sardenha, at as costas da frica, entre Cartago e tica. * Suponho que ele se tenha apro-veitado do fato de que os muulmanos estavam naquele mo-mento ocupados na Siclia. Porm, alguns anos mais tarde, a Itlia, ao norte das cidades bizantinas, uma presa para os mu-ulmanos. Brindisi e Tarento so devastadas (838), Bari con-quistada (840), a frota de Bizncio e de Veneza, derrotada. Em 841, os muulmanos devastam Ancona e a costa dlmata at Cattaro. E Lotrio, em 846, no esconde que teme a anexao da Itlia.596**

    Em 846, setenta navios atacam Ostia e Porto, avanam asso-lando tudo at os muros de Roma e profanam a igreja de So Pedro. A guarnio de Gregoripolis no pode det-los. So fi-nalmente repelidos por Guido de Espoleto. A expedio de Lo-trio, no ano seguinte, no consegue retomar Bari.

    Em 849, por instigao do papa, Amalfi, Gaeta e Npoles constituem uma liga contra os sarracenos e renem em Ostia uma frota que Leo IV vem abenoar.599 Ela consegue uma grande vitria naval sobre os sarracenos. Ao mesmo tempo, o papa cerca com um muro o burgo do Vaticano e faz dele a Civitas Leonina (848-852).600***

    Em 852, o papa estabelece em Porto, que fortifica, alguns corsos que fugiram da ilha, mas a nova cidade no prospera. Ele cria tambm Lepolis para substituir Civita V ecchia, esvaziada

    Hartmann observa que a nica expedio alm-mar tentada pelos francos.595 A Provena, nessa mesma poca, tambm foi pilhada, em 849.597 E viria a s-lo

    novamente em 890.598 Lotrio ordena, em 846, uma subscrio em todo o Imprio para a construo des-

    se muro.

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    pelo terror que inspiram os sarracenos.601 Do mesmo modo, restaura Orta e Ameria na Toscana, para fornecer refgio aos habitantes quando das incurses muulmanas.* Nada disso im-pede que os muulmanos, em 876 e 877, devastem a Campnia romana. O papa implora em vo ao imperador de Bizncio. Os desastres que este ltimo sofre naquele momento na Siclia, onde Siracusa sucumbe (878), no lhe permitem intervir. Final-mente, o papa forado a pagar anualmente aos mouros 20 mil mancusi de prata para escapar dos ataques-surpresa; so simples bandos de piratas que s se propem pilhagem. Em 883, a abadia do Monte Cassino incendiada e destruda. 603 Em 890, a abadia de Farfa sitiada e resiste durante sete anos. Subiaco destruda. O vale do Anio e Tvoli so devastados. Os sarrace-nos constituem uma praa de armas no longe de Roma, em Saracinesco, e outra nos montes Sabinos, em Ciciliano.

    A Campnia romana torna-se um deserto: redacta est terra in solitudinem [a terra foi reduzida ao abandono]. S em 916 a calma renascer, quando Joo X, o imperador, os prncipes do sul da Itlia e o imperador de Constantinopla, que envia algu-mas galeras a Npoles, foram a cidade e suas vizinhas a aban-donar a aliana com os sarracenos e, unidos a elas, finalmente derrotam no Garigliano os terrveis invasores.

    Pode-se dizer que desde a conquista da Espanha e, sobretu-do, da frica, o Mediterrneo ocidental tornou-se um lago mu-ulmano. Desprovido de frota, o Imprio Franco nada pode fa-zer. Os nicos que ainda possuem frota so Npoles, Gaeta e Amalfi. Mas seus interesses comerciais os levam a abandonar Bizncio, demasiado longunqua, para se aproximar dos mu-ulmanos.

    Graas a essa defeco,. os sarracenos puderam, finalmente, tomar a Siclia. A frota bizantina mais poderosa que a das ci-dades martimas italianas, graas ao fogo grego, que faz dela um

    Pilhagem das costas italianas em 872.602

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  • HENRI PIRENNE

    temvel meio de guerra. Porm, com a Siclia tomada, ela est quase completamente separada do Ocidente, onde s faz raras e inteis aparies. Mas ela permitiu aos imperadores que sal-vaguardassem o seu Imprio, que , sobretudo, costeiro.* Foi graas a ela que as guas ao redor da Grcia permaneceram li-vres e que a Itlia escapou finalmente do domnio do Isl. Trin-ta anos depois de conquistada pelos muulmanos em 840, Bari retomada pela frota do imperador Baslio, equipada com qua-trocentos navios.605** o fato essencial que impede os muul-manos de fincar p na Itlia, mantendo nela a soberania bizan-tina e garantindo a segurana de Veneza.

    Tambm por causa da sua frota Bizncio pde conservar uma espcie de supremacia sobre Npoles, Amalfi e Gaeta, cuja poltica consistia em transitar entre o imperador, o duque de Benevento e at mesmo os muulmanos, para conservar a au-tonomia necessria ao comrcio.

    A expanso islmica no pode, portanto, englobar todo o Mediterrneo. Ela o circunda pelo leste, pelo sul e pelo oeste, mas no pode abocanhar o norte. O antigo mar romano torna-se o limite entre o Isl e a Cristandade. Todas as antigas pro-vncias mediterrnicas conquistadas pelos muulmanos gravi-tam doravante na direo de Bagd.***

    Pelo mesmo golpe, o Oriente foi separado do Ocidente. Des-faz-se o vnculo que a invaso germnica havia deixado subsis-tir. Agora, Bizncio apenas o centro de um imprio grego,

    A frota defende Bizncio no somente contra os muulmanos, mas tambm contra os francos. Em 806, basta o envio de uma frota, contra a qual Carlos Magno nada pode fazer, para que ele renuncie a Veneza. Os francos, no mar, dependem das fro-tas italianas. Em 846, Lotrio, como no tem frota, pede que os venezianos ataquem os sarracenos de Benevento navali expedicione.6ll4

    Lus II havia fracassado em sua campanha realizada na Itlia de 866 a 873, em con-sequncia da discrdia que se manifestara entre ele e os italianos, que por um mo-mento chegaram a faz-lo prisioneiro.606

    Falando da frica, Marais diz: "Esto destrudas as pontes entre ela e a Europa crist. Ela vive com os olhos fixos em Bagd ou no Cairo."

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  • MAOM~ E CARLOS MAGNO

    para o qual no h mais nenhuma possibilidade de uma pol-tica justiniana. Est reduzido a defender as suas ltimas posses-ses. Seus postos mais ocidentais so Npoles, Veneza, Gaeta e Amalfi. A frota ainda permite que se conserve o cantata com elas, impedindo assim o Mediterrneo oriental de tornar-se um lago muulmano. Porm, o Mediterrneo ocidental no tem nenhuma outra funo. Ele, que havia sido a grande via de co-municao, agora uma barreira intransponvel.

    O Isl rompe a unidade mediterrnica que as invases ger-mnicas haviam deixado subsistir.

    Eis a o fato mais essericial da histria europeia desde as guerras pnicas. Trata-se do fim da tradio antiga. o come-o da Idade Mdia, no mesmo momento em que a Europa es-tava em via de se bizantinizar.

    O fechamento do Mediterrneo ocidental Enquanto o Mediterrneo permaneceu cristo, a navegao oriental manteve o comrcio com o Ocidente. A Sria e o Egito eram os seus principais centros; essas duas ricas provncias fo-ram as primeiras a cair sob a dominao do Isl. Seria um erro evidente acreditar que essa dominao extinguiu a atividade econmica. Houve grandes problemas, constata-se uma emi-grao considervel de srios para o Ocidente, mas no poss-vel crer que a estrutura econmica tenha desmoronado. Da-masco torna-se a primeira capital do califado. As especiarias no cessam de ser importadas, o papiro de ser fabricado, os portos de funcionar. Se pagam o imposto, os cristos no so molestados. O comrcio continua, mas a sua direo mudou.*

    evidente que, em plena guerra, o vencedor no' deixa seus sditos traficarem com o vencido. E quando a paz reanima a

    * A propsito do fechamento do Mediterrneo ocidental pelo Isl (no ocorre a mes-ma coisa no Oriente), ver o texto do cristo rabe Yahya-Ibn-Said, da Antiquia, que, no sculo XI, relata que depois do papa Agato ( 678-681) ele no possui a lista dos "patriarcas de Roma".607

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  • HlNRI PIRENNE

    atividade nas provncias conquistadas, o Isl a orienta para os novos destinos que lhe apresenta a imensido das suas con-quistas.

    Novas vias comerciais se abrem, ligando o mar Cspio ao Bltico atravs do Volga; e os escandinavos, cujos mercadores frequentavam as margens do mar Negro, deve~ ter tomado imediatamente o novo caminho. Como prova disso, temos as numerosas moedas orientais encontradas em Gothland.

    certo que as perturbaes causadas pela conquista da Sria (634-636) e depois do Egito (640-642) impedem momentanea-mente a navegao.* Os navios teriam sido requisitados para a frota que o Isl organizou em seguida no mar Egeu. No se veem, alm disso, mercadores passando no meio das frotas hos-tis, a no ser para tirar proveito das circunstncias, como mui-tos deles tiveram que fazer para se livrar da pirataria.

    De meados do sculo VII em diante torna-se impossvel a navegao a partir dos portos muulmanos do mar Egeu para os portos que permanecem cristos; se subsiste alguma coisa disso, quase nada.

    De Bizncio e das costas que ela defende em torno de si, a navegao pode se manter, protegida pela frota, em direo s outras regies gregas da Grcia, do Adritico, da Itlia meridio-nal e da Siclia, mas dificilmente se admitir que ela tenha po-dido aventurar-se alm disso. J em 650 o Isl ataca a Siclia.

    A devastao contnua do territrio, de 643 a 708, pe fim, incontestavelmente, ao movimento comercial da frica. Aps a tomada de Cartago e a fundao de Tnis em 698 desapare-cem os raros vestgios que se conservaram.

    A conquista da Espanha em 711 e, imediatamente depois, a insegurana em que vive a costa da Provena tornam imposs-vel a navegao comercial no Mediterrneo ocidental. E os l-

    No por acaso que a srie das moedas pseudoimperiais na Glia interrompida em Heraclius (610-641).608

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  • MAOMt E CARLOS MAGNO

    limos portos cristos no podem manter entre eles algum mo-vimento martimo, j que no tm frota, ou tm to pouca que ~ quase nada.

    Assim, pode-se afirmar que, por volta de 650, a navegao wm o Oriente cessa com as regies situadas a leste da Siclia e, na segunda metade do sculo VII, extingue-se em toda a costa do Ocidente.

    No incio do sculo VIII, desaparece completamente. No h mais trfico mediterrnico, a no ser nas costas bizantinas; como diz Ibn Khaldun (com'a reserva que preciso fazer para Bizncio): "Os cristos no podem mais fazer flutuar uma t-bua no mar", doravante entregue aos piratas sarracenos. No s-culo IX, eles apoderam-se das ilhas, destroem os portos, fazem incurses por toda parte. O vazio se faz no grande porto de Marselha, que havia sido outrora a principal etapa entre o Oci-dente e o Levante. A antiga unidade econmica do Mediter-rneo rompida e continuar assim at a poca das Cruzadas. Ela havia resistido s invases germnicas, mas cede diante do avano irresistvel do Isl.

    Como o Ocidente poderia ter resistido? No existe frota en-tre os francos. A dos visigodos est aniquilada. O inimigo, ao contrrio, est bem preparado. O porto de Tnis e seu arsenal so inexpugnveis. Em toda a costa elevam-se os Ribat, postos semirreligiosos e semimilitares que se correspondem entre si e mantm um permanente estado de guerra. Os cristos nada podem fazer contra essa potncia martima; o fato de que eles no fazem nem mesmo uma nica pequena incurso contra a costa da frica a prova mais manifesta disso.

    preciso insistir nesse ponto, pois excelentes eruditos no admitem que a conquista muulmana tenha produzido uma ruptura to clara. Chegam a acreditar que os mercadores srios continuam a frequentar, como outrora, a Itlia e a Glia no de-correr dos sculos VII e VIII. verdade que Roma acolhe gran-

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  • HENRI PIRENNE

    de quantidade de srios durante as primeiras dcadas que se se guem conquista da Sria pelos rabes. E preciso que sua in fluncia e seu nmero tenham sido considerveis para que v-rios deles, como Srgio I (687-701) e Constantino I (708-715), fossem elevados ao papado. De Roma, muitos desses refugia-dos, cujo prestgio assegurado pelo conhecimento., da lngua grega, espalham-se logo em direo ao norte, levando consigo manuscritos, marfins e ourivesarias que haviam trazido de sua ptria. Os soberanos carolngios os empregam, tendo em vista uma renovao literria e artstica. Carlos Magno encarrega al-guns deles de revisar o texto dos Evangelhos. Provavelmente, um de seus compatriotas de~ou em Metz um texto grego das Laudes, t mencionado no sculo IX.

    Deve-se tambm considerar uma prova da penetrao sria no Ocidente, depois do sculo VII, a influncia que a arte da sia Menor exerce sobre o desenvolvimento da ornamentao na poca carolngia. No se ignora, alm disso, que muitos ecle-sisticos da Francia vo at o Oriente para venerar os santu-rios da Palestina e voltam de l abastecidos no somente de re-lquias, m~s tambm de manuscritos e de ornamentos de igreja.

    um fato bem conhecido que Harum-al-Raschid, desejoso de cooptar Carlos Magno para a luta contra os ommiades, deu-lhe o tmulo de Cristo* e, ao mesmo tempo, um vago proteto-rado sobre os lugares santos.

    Todos esses fatos, por mais interessantes que sejam para a histria da civilizao, no o so para a histria econmica. A imigrao de sbios e de artistas no estabelece em nada a existncia de relaes comerciais entre os seus pases de origem e aquele no qual procuram refgio. Afinal, o sculo XV, que viu

    t A orao das Laudes destina-se a santificar o perodo da manh, consagrando a Deus as atividades do dia que comea. [N.T.]

    Segundo Kleinclausz, Harum s deu ao imperador o tmulo de Cristo.609 Bdier, re-tomando a questo, pensa que sem que tenha havido concesso do protetorado, Harum concedeu a Carlos uma "autoridade moral" sobre os cristos da Palestina.610

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    !untos eruditos bizantinos fugirem para a Itlia diante dos tur-n 1s, no precisamente a poca em que Constantinopla deixa de ser um grande porto? No se deve confundir a circulao de llll'rcadorias e a de peregrinos, eruditos e artistas. A primeira supe uma organizao dos transportes e relaes permanentes dl' importao e de exportao; a segunda efetua-se ao acaso das circunstncias. Para que se possa afirmar a persistncia da navegao sria e oriental no mar Tirreno e no golfo de Lyon, aps o sculo VII, preciso provar que Marselha e os portos da Provena permanecem em contato com o Levante depois dessa data. Ora, o ltimo texto que se pode invocar a esse respeito o documento para Corbie, de 716.*

    Segundo esse texto, ainda nessa poca o entreposto do fisco cm Marselha ou em Fos estaria cheio de especiarias e de azeite, ou seja, de produtos originrios da sia e da frica. Creio, no entanto, que existe a um arcasmo. Estamos lidando com um ato que confirma antigos privilgios para a abadia de Corbie; verossmil que ele reproduza textos anteriores. impossvel, com efeito, que o azeite da frica ainda pudessse ser importa-do naquele momento. Seria possvel admitir, verdade, que os cellarium fisci [armazns do fisco] vivessem dos seus estoques, mas isso no indcio da existncia de relaes comerciais ati-vas em 716. Em todo caso, trata-se da derradeira meno que temos de produtos orientais armazenados nos portos da Pro-vena. Quatro anos depois, alis, os muulmanos desembarcam nessas costas e pilham o pas. Marselha est morta nessa poca. Em vo poder-se- alegar, para provar a sua atividade, a passa-gem de peregrinos indo para o Oriente. certo que semelhan-tes peregrinaes, no podendo se efetuar atravs do vale do Danbio - ocupado pelos varos e depois pelos hngaros -,

    * R. Buchner considera que o comrcio ainda existe nessa data, notadamente porque a abadia de Saint-Denis no faz mais do que confirmar os seus privilgios. Em 695, ela obtm uma villa em troca de uma renda em dinheiro levantada no tesouro pblico.""

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  • HENRI PIRENNE

    supem travessias martimas. Porm, observamos que todas as vezes que possvel conhecer os itinerrios seguidos, os de-votos viajantes embarcam nos portos da Itlia bizantina. So Willibaldo, o futuro bispo de Eichstdt, embarca em 726 em Gaeta, depois de ter transposto os Alpes. Madalveus, bispo de Verdun, indo para Jerusalm, toma na Aplia, por volta de 776, um navio que est de partida para Constantinopla.*,,

    As cartas de So Bonifcio mostram os anglo-saxes chegan-do a Rma por terra, submetendo-se travessia dos Alpes, em vez de tomarem o caminho de Marselha. de Tarento que par-te, no sculo IX, o monge Bernardo para chegar a Alexandria.**

    No temos mais um nico texto sobre a presena de merca-dores srios ou orientais. Alm disso, constatamos que, a partir do sculo VIII, todos os produtos que eles importam no so mais encontrados na Glia. No h rplica contra esse fato.***

    Logo de incio desaparece o papiro. Todas as obras escri-tas no Ocidente em papiro que conhecemos so do sculo VI ou do sculo VII. At 659-677, a chancelaria real merovngia servia-se exclusivamente de papiro. Depois aparece o perga-minho.****

    Ainda existe alguma navegao no sculo VIII. Por exemplo, os papas enviam mui-tas vezes seus embaixadores a Pepino marino itinere por causa dos lombardos. Po-rm, o prprio fato de que isso seja indicado mostra que excepcional. Do mes-mo modo, os embaixadores enviados pelos califas a Pepino e a Carlos vinham por Marselha, Porto, Veneza e Pisa.

    Buchner fornece outros exemplos dos quais se deduz que no existe mais navega-o entre Marselha e Roma. Kleinclausz relata equivocadamente que os legados enviados por Carlos Magno a Bizncio so embarcados em Marselha.612

    Eu bem sei que seria preciso entregar as armas se os Capp~ citados em 877 pela Capitular de Kiersy,613 fossem mercadores srios, como supe M. Thompson."14 Porm, para admitir isso, seria necessrio supor como ele que Cappi no passa da forma latinizada de Kapila em slrio, que significa um mercador. Porm, alm do fato de que se trata de uma impossibilidade lingustica, preciso prestar ateno ao fato de que a expresso Cappi s designa os judeus. Por fim, esse famoso apax legomenon se deve, sem dvida, a uma m leitura de Sirmond, que, em 1623, edi-tou esse texto de acordo com um manuscrito hoje desaparecido.

    O primeiro ato real em pergaminho de 12 de setembro de 677.

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    Alguns atos privados ainda so escritos sobre esse material - retirado, sem dvida, de antigos estoques - at por volta do final do sculo VIII. Depois ele no mais encontrado.

    Isso no pode ser explicado pela cessao da sua fabricao, j que ela continuou a existir, como provam at a evidncia os belos atos em papiro do sculo VII guardados no Museu Arabe do Cairo. A desapario do papiro na Glia decorre, portanto, da diminuio, e depois interrupo, do comrcio. O pergami-nho parece ter sido pouco difundido, de incio. Gregrio de Tours, que o chama de membrana, s o cita uma vez615 e parece indicar que era fabricado pelos monges para o seu uso. Ora, sa-bemos como so tenazes os usos de chancelaria. Se, no final do sculo VII, as reparties do rei haviam deixado de se servir do papiro, porque tornara-se muito difcil se abastecer dele.

    O uso do papiro conservou-se um pouco na Itlia. Os papas se serviram dele pela ltima vez em 1057. Ser necessrio ad-mitir, como Bresslau, que eles usavam velhos estoques? Ser que ele vinha da Siclia, onde os rabes introduziram a sua fa-bricao no sculo X? Essa provenincia siciliana discutvel. Parece-me verossmil que ele fosse obtido pelo comrcio com os portos bizantinos: Npoles, Gaeta, Amalfi e Veneza.

    Porm, na Glia, ele acabou de vez. As especiarias, assim como o papiro, desaparecem dos tex-

    tos aps 716.* Os estatutos de Adalhardo de Corbie no men-

    Tem-se negado isso invocando um texto que figura na sequncia dos famosos estatu-tos do abade Adalhardo de Corbie, em um manuscrito cuja redao Levillain estabe-lece em pouco depois de 986.616 Ora, corno esses estatutos foram compostos em 822, concorda-se geralmente em estabelecer a redao desse texto entre 822 e 986. Se fos-se assim, deduziramos disso que teria sido possvel continuar nessa poca, ou em todo caso depois de 822, a se abastecer de papiro no mercado de Carnbrai e, desde ento, em toda a Glia. Todavia, extraordinrio constatar que nada vem confirmar esse texto. De fato, no existe ai nenhuma dificuldade. O texto em questo no for-ma um conjunto com os estatutos; trata-se de urna adio posterior que remonta, sem dvida, poca rnerovngia. O texto consiste, essencialmente, em urna longa lis-ta de especiarias que os monges de Corbie podiam comprar no mercado de Carnbrai. Ora, basta percorrer essa lista para encontrar nela, acrescidos de alguns outros, todos

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  • HUII fiiiiNNI

    donam mais do que o pulmentaria, ou seja, uma espcie de cal-do de ervas.618

    As especiarias devem ter desaparecido ao mesmo tempo que o papiro, pois vinham pelos mesmos navios. Percorramos as Capitulares. Nelas so citadas, em matria de especiarias e de produtos exticos, somente algumas plantas apropriadas para serem cultivadas nas villae,619 tais como a garana, 'o cominho ou as amndoas.620 Porm, P pimenta, o cariofilo [cravo-da-n-dia], o spico [nardo], a canela, as tmaras e os pistaches no so mais encontrados nelas nem uma nica vez.

    Entre os alimentos que sero servidos aos funcionrios em viagem, as tractoriae carolngias mencionam po, carne de por-co, galinhas, ovos, sal, verduras, legumes, peixe e queijo, mas nenhuma especiaria.621

    Do mesmo modo, a tractoria "de conjectu missis dando",622 de 829, enumera como alimentos a fornecer aos missi quaren-ta pes, carne de porco ou de cordeiro, quatro galinhas, vinte ovos, oito sesteiros de vinho, duas pipas de cerveja e duas pipas de trigo. Um cardpio rstico.

    As Capitula episcoporum,623 de 845-850, atribuem aos bispos, quando dos seus deslocamentos, cem pes, carne de porco, cin-quenta sesteiros de vinho, dez galinhas, cinquenta ovos, um cordeiro, um leito, seis pipas de aveia para os cavalos, trs car-roas de feno, mel, azeite e cera. Mas, em tudo isso, no h con-dimentos.

    Pelas cartas de So Bonifcio v-se como as especiarias ha-viam se tornado raras e caras. Ele recebe ou envia presentes que consistem em pequenas quantidades de incenso.624 Em 742-743, um cardeal lhe envia aliquantum cotzumbri quod incensum, Do-mino o !fera tis [um pouco de cotzumbri, algum incenso, vs

    os produtos citados na carta de 716 para Corbie. Nada mais simples primeira vista -e foi aquilo que no deixaram de fazer- do que explicar essa concordncia pela continuidade da exportao. Mas isso , infelizmente, impossvel.617

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    ofereais ao Senhor].625 Em 748, um arquidicono de Roma faz-lhe tambm uma pequena remessa de especiarias e de perfu-mes.626 Essas ddivas comprovam a raridade das especiarias no norte dos Alpes, j que elas constituem ali preciosos presentes. Observe-se, alm do mais, que todas vm da Itlia. O porto de Marselha no as recebe mais. Os cellarium fisci [armazns do fisco] esto vazios, ou at mesmo - o que muito provvel-foram incendiados pelos sarracenos. E as especiarias no so mais um artigo de comrcio normal. Se um pouco delas ainda chega, por vendedores ambuJantes.

    Em toda a literatura daquele tempo, muito abundante, pra-ticamente no se trata mais disso. possvel afirmar, diante dessa carncia, que no final do sculo VII e no comeo do VIII as especiarias desaparecem da alimentao corrente. S reapa-recem no sculo XII, quando da reabertura do mar.

    Ocorre o mesmo, naturalmente, com o vinho de Gaza, que tambm desaparece. O azeite no mais exportado da frica. O que ainda existe vem da Provena. a cera que fornece do-ravante a iluminao para as igrejas.

    Do mesmo modo, o uso da seda parece bem estranho para a poca. Encontro apenas uma meno a ela nas Capitulares.*

    Sabe-se como Carlos Magno era simples nas suas vestimen-tas. A corte certamente o imitou. Porm, sem dvida, essa sim-plicidade, que contrasta to fortemente com o luxo merovn-gio, foi-lhe imposta.

    De tudo isso foroso concluir que cessou a importao oriental como consequncia da expanso islmica.

    Outro fato impressionante a rarefao progres~iva do ouro. possvel perceb-lo pela moedagem do ouro merovn-

    *Nos Brevium Exempla compostos por volta de 810, onde se trata da presena, no te-souro de uma igreja, de uma dalmatica sirica, de fanones lineos serico paratos, de linteamina serico para ta, de ma nicas sericeas auro et margaritis para tas et alia sericeas e de plumatium serico indutum.627 So todos ornamentos de igreja, mas um certo n-mero, sem dvida, remonta ao perodo anterior.

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  • HINRI itiUNNE

    gio do sculo VIII, cujas peas contm uma mistura de prata cada vez maior. Manifestamente, o ouro deixa de vir do Orien-te. Continua a circular na Itlia, mas se rarefaz na Glia a pon-to de renunciarem a servir-se dele como moeda. A partir de Pe-pino e de Carlos Magno s se cunha dinheiro de prata, a no ser com rarssimas excees. O ouro s retomar ~eu lugar no sistema monetrio na mesma poca em que as especiarias reto-marem o seu na alimentao.

    Eis a um fato essencial e que vale mais do que todos os tex-tos. foroso admitir que a circulao do ouro era uma conse-quncia do comrcio, j que onde o comrcio se conservou -ou seja, no sul da Itlia- o ouro tambm se conservou.

    o enfraquecimento do comrcio oriental e do trfico mar-timo tem como consequncia a desapario dos mercadores de profisso no interior do territrio. Eles quase nunca mais apa-recem nos textos. Todas as menes que encontramos podem ser interpretadas como aplicando-se a mercadores ocasionais. No vejo mais, nessa poca, um nico negociator do tipo mero-vngio, ou seja, emprestando dinheiro a juros, fazendo-se en-terrar em um sarcfago e doando bens aos padres e s igrejas. Nada nos mostra que existam ainda, nas cidades, colnias mer-cantis ou um domus negotiantum. Como classe, os mercadores desapareceram. O comrcio no desapareceu - impossvel imaginar uma poca sem nenhuma troca -, mas assumiu ou-tro carter. Como veremos, o esprito da poca lhe hostil, a no ser nos territrios bizantinos. Alm disso, a restrio do sa-ber ler e escrever entre os leigos torna impossvel a manuten-o de uma classe de pessoas vivendo normalmente da venda e da compra. A desapario do emprstimo a juros comprova, por sua vez, a regresso econmica produzida pelo fechamento do mar.

    No se deve acreditar que os muulmanos da frica e da Es-panha, ou mesmo da Sria, poderiam ter tomado o lugar dos antigos comerciantes do Levante bizantino. Logo de incio, h

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    uma guerra permanente entre eles e os cristos. Eles no pen-sam em traficar, mas em pilhar. Nenhum texto menciona um s deles estabelecido na Glia ou na Itlia. Os comerciantes mu-ulmanos no se instalam fora do Isl. Se fazem o comrcio, o fazem entre si. No encontramos um nico indcio de algum trfico que teria existido, depois da conquista, entre a frica e os cristos- a no ser, como j foi dito, naquilo que concerne aos cristos do sul da Itlia. Porm, nada semelhante se consta-ta em relao queles da costa da Provena.

    Nessas condies, o que resta para sustentar o comrcio so os judeus, numerosos em toda parte. Os rabes no os expul-saram nem os massacraram, e os cristos no mudaram de atitude em relao a eles. Eles constituem, portanto, a nica classe cuja subsistncia se deve aos negcios. E so ao mesmo tempo, pelo contato que conservam uns com os outros, o ni-co vnculo econmico que subsiste entre o Isl e a Cristandade - ou, se preferirem, entre Oriente e Ocidente.

    Veneza e Bizncio possvel dizer que a invaso islmica foi to decisiva para o Oriente quanto para o Ocidente da Europa. Antes dela, o im-perador de Constantinopla ainda o imperador romano. A po-ltica de Justiniano em relao a isso caracterstica. Ele pre-tende manter todo o Mediterrneo sob autoridade imperial. Depois dela, pelo contrrio, o imperador est reduzido defen-siva nas guas gregas. O Isl o fixa e o absorve. Toda explicao para sua poltica est a. O Ocidente est doravante fechado para ele.

    Uma vez perdida a frica- especialmente Cartago, que ela ainda obstinou-se em defender em condies desastrosas-, a esfera de ao da poltica bizantina no mais ultrapassar a It-lia, da qual s conseguir conservar o litoral. No interior, Bi-zncio no pode mais resistir aos lombardos. Sua impotncia

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  • HENRI PIRENNE

    provocar a revolta do pas e a defeco do papa. O Imprio s luta agora pela Siclia, o Adritico e as cidades do sul, que para ele constituem postos avanados e cada vez mais autnomos.

    A expanso do Isl morreu nas fronteiras bizantinas. Ela ar-rebatou as provncias srias, egpcias e africanas, explorando em parte as diferenas de nacionalidades. Mas o bl~co grego re-sistiu. E ao resistir salvou a Europa e, sem dvida, com ela, o cristianismo.

    O choque foi duro: atacada duas vezes na poca de pleno vi-gor do Isl, Bizncio deveu a vitria sua frota. A cidade per-maneceu, apesar de tudo; a grande potncia martima.

    De todos os prolonga~entos bizantinos para o oeste, o mais importante e o mais original a extraordinria Veneza, o mais curioso xito da histria econmica de todos os tempos, jun-tamente com as Provncias Unidas.t Os primeiros habitantes das ilhotas arenosas e desoladas da laguna so desgraados que fugiam das hordas de tila no sculo V, quando do ataque con-tra a Aquileia. Outros vieram quando da ocupao franca da stria na poca de Narses628 e, sobretudo, por ocasio da inva-so lombarda. Assim, toda essa faixa de terras marinhas po-voou-se, um xodo primeiramente momentneo e depois defi-nitivo. Grado recolhe a maior parte dos fugitivos de Aquileia, cujo bispo adota o ttulo de patriarca e passa a ser o lder espi-ritual da nova V encia. Caorle, no esturio do Livenza, recebe os emigrantes e o bispo de Concrdia. Depois h Heracliana e Aquileia, perto do rio Piave. Os moradores de Altinum refu-giam-se em Torcello, Murano e Mazzorbo. Os de Pdua esta-belecem-se em Malamocco e em Chioggia. No incio, o grupo de ilhotas onde mais tarde crescer Veneza o mais fracamente ocupado: Rialto, Olivolo, Spinalunga e Dorsoduro s recebem alguns pescadores.629

    tEstado que antecedeu os atuais Pases Baixos entre 1579 e 1795, agrupando sete pro-vncias da regio. [N.T.]

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    Na primitiva Vencia dos sculos VI e VII, o centro religioso era Grado, o centro poltico era Heracliana e o centro comer-cial era Torcello. Escapando aos vencedores de terra firme, a administrao bizantina ali se manteve, representada por. al-guns funcionrios e alguns tribuni.

    Existe a uma populao essencialmente martima, descrita por Cassiodoro e que faz pensar na da Holanda primitiva. "Pa-rece de longe que os barcos deslizam sobre a campina, pois no se percebem seus cascos."63 Compreende-se como tal vida foi favorvel expanso da energia e da engenhosidade. Primeira-mente, ela se baseia na pesca e na fabricao do sal, que os bar-cos iam trocar por trigo no litoral. O nico centro comercial da regio o porto de Comacchio, na embocadura do P, fre-quentado por navios bizantinos que trazem azeite e especiarias. Comacchio, sem dvida, tira proveito da cessao do trfico oriental com o golfo de Lyon. Um tratado de comrcio, assina-do por volta de 715 entre a cidade e Luitprando,t no qual se faz meno pimenta, mostra que o porto estava em contato com o Levante.631

    Sem dvida, os venezianos logo imitam os seus vizinhos. Em todo caso, seu comrcio nasce no decorrer do sculo VIII. Em 787-791, seus mercadores so excludos de Ravena a pedido de Carlos Magno -o que prova que eles no queriam reconhec-lo como rei dos lombardos;632 com isso, refora-se a aliana de-les com Bizncio. Suas relaes com o imperador, muito dis-tante, s lhes trazem vantagens. Seu ideal a autonomia sob o governo de um ou dois doges que eles elegem e que so ratifi-cados por Bizncio.

    De tempos em tempos surgem desavenas. Veneza ento se volta para o imperador franco. Em 805 ela envia uma embaixa-da a Carlos para colocar-se sob seu protetorado. Porm, esse

    t Rei dos lombardos. [N.T.]

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  • HENRI PIRENNE

    procedimento est antes vinculado s lutas entre partidos nas cidades e aos conflitos com Grado - cujo patriarca solicitara a proteo de Carlos em 803.633 Nesse momento, Veneza acaba de se impor s pequenas cidades da costa dlmata e teme, sem d-vida, uma reao de Bizncio. Esse incidente foi pouco notado, mas nem por isso deixou de ter grande importncia. Em res-

    ..

    posta embaixada dos venezianos, Carlos anexa imediatamen-te a cidade ao reino da Itlia. Seu Imprio tem, desde ento, a oportunidade de tornar-se uma potncia martima e de fincar p na Dalmcia, mas ele no aproveita isso. Bizncio, ao con-trrio, v instantaneamente o perigo. Logo no ano seguinte, Nicforo envia uma frota que obtm imediatamente a submis-so de Veneza. Carlos no reage: limita-se a oferecer refgio em seus Estados para o patriarca de Grado.634

    Em 807 Pepino, rei da Itlia, estabelece uma trgua com Ni-cetas, o comandante da frota, e os venezianos enviam os culpa-dos para o exlio. Ele recompensa seus partidrios com o ttulo de espadrios. mt

    O negcio era por demais tentador para que se ficasse nisso. Em 81 O, Pepino, tendo tomado emprestados os navios de Co-macchio, retoma Veneza e a costa dlmata.636 Porm, uma fro-ta bizantina comandada por Paulo, prefeito de Cefalnia, obri-ga-o a abandonar as conquistas. Ele morre em 8 de julho desse mesmo ano. Carlos se apressa a convidar para irem a Aix os le-gados bizantinos, com os quais firma a paz, deixando-lhes Ve-neza e as cidades da stria, da Librnia e da Dalmcia. Essa paz torna-se um tratado definitivo em 13 de janeiro de 812: o Im-prio Carolngio renuncia ao mar, no qual ele acabava de com-provar a sua impotncia de maneira gritante.637 Veneza decidi-damente gravitaria Iia rbita bizantina e assinalaria, no limite

    t Ou "porta-espadas". Tratava-se do menor dos trs graus de uma ordem nobilirquica militar bizantina. O primeiro era o protoespadrio e o segundo era o espadarocandi-dato. [N.T.]

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  • MAOM~ E CARLOS MAGNO

    do Ocidente, o comeo de um outro mundo. Sua piazza prova isso melhor do que qualquer texto.

    A paz de 812 d a Veneza uma situao excepcionalmente favorvel. a condio da sua grandeza futura.638 Por um lado, sua unio com o Imprio trava a expanso do Oriente, e isso sem ameaar a sua autonomia, j que o Imprio precisa de seu apoio na luta contra o Isl. Por outro lado, ela lhe abre o Oci-dente, pois, mesmo renunciando a possu-la, Carlos Magno lhe reconhece o direito de fazer comrcio no Imprio Franco. In-tangvel no oeste, ela s tem que temer Comacchio, que con-trola a embocadura do P. Assim, em 875, ela destri a rival, que desaparece definitivamente. Doravante, do seu comrcio dependero os mercados e os portos da Alta Itlia: Pvia, Cre-mona, Milo etc.639

    Resta o perigo sarraceno. Aqui, o interesse de Veneza coin-cide com o do imperador. Desde 828, ele solicita a colaborao dos seus navios de guerra. Em 840, Veneza envia sessenta na-vios contra Tarento em auxlio do Imprio. Por isso os muul-manos queimam Ancona e capturam os navios venezianos.640 Em 867-871, Veneza atua contra Bari por mar, em acordo com os bizantinos e com Lus II, que ataca a cidade por terra. Os muulmanos atacam a Dalmcia em 872 e sitiam Grado em 875. Mas Veneza conserva o domnio do Adritico e, com ele, assegura a navegao para o Levante, o que, alis, no a impede de traficar com o Isl. O imperador interditou o comrcio com os sarracenos da Sria e do Egito desde 814-820, mas os vene-zianos, embora combatendo o infiel, comerciam com ele. de Alexandria que uma frota de dez navios traz, em 827, as rel-quias de So Marcos, roubadas tanto dos cristos quanto dos muulmanos da cidade.641

    O grande comrcio de Veneza o dos escravos eslavos da costa dlmata. Em 876, o doge o probe, mas inutilmente. Em meados do sculo IX os mercadores chegam a vender alguns es-cravos cristos aos muulmanos.642

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  • HENRI PIRENNE

    O tratado de comrcio assinado por Veneza com Lotrio, em 840,643 que a apresenta como uma cidade essencialmente mercantil, probe a venda de escravos cristos e a de eunucos. Veneza , por excelncia, um porto e um mercado; retoma o papel que outrora cabia a Marselha. De l embarcam os passa-geiros para o Levante e so exportadas para o ,Egito as madeiras para construo.

    Do Oriente chegam para ela as especiarias e a seda, que so logo reexportadas, atravs da Itlia, para P via e Roma. 644 Sem dvida, devia haver tambm algum transporte para alm dos Alpes,645 embora o comrcio por essa via tenha sido insignifi-cante naquela poca.

    Veneza tambm tem como mercado toda a costa dlmata. com ela, sem dvida, que se faz o comrcio mais ativo.

    Comparada ao Ocidente, Veneza outro mundo. Seus ha-bitantes tm esprito mercantil e no se embaraam com as in-terdies ao turpe lucrum.* Tal mentalidade , pura e simples-mente, aquela que desapareceu no mundo ocidental e na Itlia depois das conquistas rabes, mas que ainda se mantm em V e-neza e nas outras praas bizantinas da Itlia meridional.

    Bari, por exemplo, permanece completamente grega e con-servar suas instituies municipais bizantinas at o governo de Bohemond.647 Embora Bari tenha sido ocupada pelos muul-manos at 871, seu "sulto" entrega permisses de navegao aos monges que partem para Jerusalm e os recomenda ao cali-fa de Bagd. 648

    Ocorre o mesmo com Salerno, Npoles, Gaeta e Amalfi, na costa ocidental. So portos essencialmente ativos e, assim como Veneza, s conservam um lao muito frouxo com Bizncio. Tambm lutam pela autonomia contra o duque de Benevento. O interior do seu territrio muito mais rico que o de Veneza, pois Benevento conserva sua moeda de ouro e eles no esto

    A esse respeito, ver a curiosa histria de So Graud de Aurillac. 646

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    longe de Roma, que, por causa de suas igrejas e do afluxo dos peregrinos, permanece grande consumidora de especiarias, perfumes, tecidos preciosos e papiro. Mantm-se, alm disso, no ducado de Benevento uma civilizao bastante refinada. Paulo Dicono ensina ali o grego princesa Adelperga. O du-que Arichis, no final do sculo VIII, constri uma igreja de San-ta Sofia que embeleza com ornamentos vindos de Constantino-pla. Ele se vangloria de receber do Oriente tecidos de seda e de prpura, vasos de ouro e de prata cinzelada, assim como pro-dutos da ndia, da Arbia e da Etipia.649

    preciso insistir no fato de que os duques de Benevento conservam a moeda de ouro* e at mesmo o sistema monet-rio bizantino.650 A continuidade da unidade mediterrnica, que mais tarde desapareceria, ainda visvel aqui.

    Essas cidades martimas do sul conservam uma frota. Em 820, piratas sarracenos capturam oito navios mercantes que voltavam da Sardenha para a Itlia.651 Devemos supor que com navios da frota foi feita a expedio de Bonifcio da Toscana frica em 828, pois sabemos que houve, com esse propsito, um entendimento entre os dois imperadores.

    O papa fala a Carlos Magno de naves Graecorum gentis [na-vios gregos] que mandou queimar em Civita Vecchia. Talvez esses navios subissem s vezes at a costa da Provena e no s-culo IX aparecessem em Marselha e em Arles. Porm, sua nave-gao gravita em direo ao Levante, e sua rbita bizantina. O que no os impede, tanto quanto os venezianos, no somen-te de manter contato com os portos rabes da Espanha e da frica, mas at mesmo, como os napolitanos, de s vezes vir em socorro destes ltimos no ataque Siclia.

    Em 879, o almirante grego enviado para defender a Siclia detm numerosos navios mercantes que, apesar da guerra, fa-ziam comrcio entre a Itlia e a Siclia. Ele lhes toma o azeite

    Eles pagam em soldos de ouro as suas multas aos soberanos francos.

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  • HINRI PIRENNE

    - prova de que vinham da frica - em tamanha quantidade que o preo do produto cai, em Constantinopla, a uma quantia irrisria. 652

    Esse comrcio dos portos da Itlia meridional com os mu-ulmanos era tambm um comrcio de escravos. O papa lhes censura por isso.653 J em 836, o tratado entre ~poles e o du-que de Benevento reconhece para os mercadores da cidade a li-berdade comercial maisextensa no ducado - que, sem dvida, no pode passar sem eles. Mas ele lhes probe de comprar escra-vos lombardos para fazer o trfico.654 Isso nos informa que esses escravos vinham da Lorrtbardia, ou seja, do Imprio Franco.

    No entanto, esses mesmos vendedores de carne humana ob-tm em favor do papa uma grande vitria martima contra a stia em 849. E So Janurio recebe em Npoles uma venera-o to grande quanto So Marcos em Veneza.

    Dessas cidades, Amalfi a mais puramente mercantil. Ela s tem um pequeno territrio montanhoso cujas florestas lhe for-necem a madeira para a construo de navios que singram at a Siria.655

    De resto, no existe entendimento entre todos esses merca-dores e o duque de Benevento. No existe entendimento nem mesmo entre eles. Por volta de 830, Npoles, para resistir ao duque, apoia-se nos sarracenos. Ela tambm alia-se a eles, por volta de 870, contra sua rival Amalfi e depois, em 880, contra a influncia bizantina, que havia se tornado novamente poderosa depois de Basilio I.656 Nesse momento, Gaeta tambm se apro-xima dos sarracenos, depois volta-se novamente para o papa, que faz algumas concesses ao seu hypatos [comando supremo, cnsul em Roma].657 Em 875, navios de todas as cidades do sul, unidos aos dos sarracenos, pilham a costa romana, e Luis II de-clara que Npoles tornou-se uma outra frica.658 Em 877, o papa Joo VIII, pelo dinheiro e pela excomunho, busca inutil-mente separar Amalfi dos sarracenos. No entanto, nesse mes-

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  • MAOM E CARLOS MAGNO

    mo ano, a cidade se compromete a proteger contra eles o lito-ral do sul da Itlia.659

    A primeira vista, a poltica dessas cidades comerciais parece to confusa quanto poderia ser. Ela se explica pela preocupa-o constante e exclusiva de proteger o comrcio. Suas alianas com os muulmanos no impedem que elas resistam a todo custo s tentativas de conquista por parte deles.

    Em 856, os sarracenos, que desejam se apoderar da Itlia meridional, atacam ao mesmo tempo por Bari e pelo oeste, as-saltam Npoles e destroem Misena.660 As cidades querem mui-to comerciar com eles, mas no pretendem ser submetidas ao seu jugo nem deixar que eles dominem suas guas. Sua polti-ca, nesse aspecto, semelhante dos venezianos: desconfiam de tudo o que no vem delas mesmas e no querem obedecer a ningum, e, ao mesmo tempo, so rivais implacveis; para des-truir umas s outras, no hesitam em aliar-se com os muul-manos. assim que Npoles os ajuda, em 843, a se apoderar de Messina, arrancada ao Imprio Bizantino do qual a prria Npoles, no entanto, faz parte. Mas, tambm aqui, essas cida-des s aceitam uma sujeio puramente fornal a Bizncio. S a ameaa direta contra a sua prosperidade as faz agir. por cau-sa disso que elas no apoiam, em 846, os esforos de Lotrio contra os muulmanos, assim como no apoiaro mais tarde os de Lus II.661 Gay disse muito bem:

    Por uma fora invencvel, os Estados martimos- Gaeta, N-poles, Amalfi- so sempre reconduzidos para a aliana sarra-cena. [ ... ] Para eles, o essencial guardar o litoral e assegurar os interesses do seu comrcio. Negociando com os sarracenos, tm sua parte no butim e continuam a enriquecer. A poltica de Npoles e de Amalfi , antes de tudo, a poltica de mercadores que vivem da pilhagem tanto quanto do comrcio regular.662

    por isso que eles no ajudam o imperador a defender a Siclia. Sua poltica foi como a dos holandeses no Japo no s-culo XVII. Alis, com quem eles poderiam ter feito comrcio se

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  • HENRI PIRENNE

    tivessem deixado de lado o litoral muulmano? O Oriente per-tence a Veneza.

    Resumamos. O Mediterrneo cristo est dividido em duas bacias, a leste e a oeste, cercadas pelos territrios do Isl. Estes, terminada a guerra de conquista no final do sculo IX, formam um mundo parte, que se basta a si mesmo e se orienta na di-reo de Bagd. para esse ponto central que ~e encaminham as caravanas da sia e a.grande rota que, pelo Volga, vai dar no Bltico. de l que os produtos se irradiam para a frica e a Espanha. Os prprios muulmanos no fazem nenhum comr-cio com os cristos, ms no se fecham a estes ltimos. Eles os deixam frequentar os seus portos, trazer-lhes escravos e madei-ra e levar aquilo que desejam comprar.

    A atividade da navegao crist s tem continuidade, alis, no Oriente, e com o Oriente se reata a ponta avanada do sul da Itlia. Ali Bizncio soube conservar o domnio do mar, man-tendo o Isl afastado. Os navios continuam a circular de Vene-za, ao longo da costa adritica e da costa grega, para a grande cidade do Bsforo. Eles no deixam de visitar por acrscimo os portos muulmanos da sia Menor, do Egito, da frica, da Si-clia e da Espanha. A prosperidade cada vez maior dos territ-rios muulmanos, passado o perodo de expanso, converte-se em vantagem para as cidades martimas da Itlia. Graas a tal prosperidade, conserva-se uma civilizao avanada na Itlia meridional e no Imprio Bizantino, com cidades, moedagem de ouro, mercadores de profisso - em resumo, uma civilizao que conserva as suas antigas bases.

    No Ocidente, ao contrrio, a costa do golfo de Lyon e da Riviera at a embocadura do Tibre, devastada pela guerra e pe-los piratas - aos quais os cristos no puderam resistir, pois no tinham frota -, no mais que um deserto e um alvo de pirataria. Os portos e as cidades so abandonados. O lao com o Oriente cortado e nenhuma relao se estabelece com as costas sarracenas. a morte. O Imprio Carolngio apresenta

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  • MAOM E CARlOS MAGNO

    um impressionante contraste com o Bizantino: puramente ter-restre, no pode se mover; os territrios mediterrnicos, outro-ra os mais vivos desses pases, e que conservavam a vida do con-junto, so agora os mais pobres, os mais desertos e .;>s mais ameaados. Pela primeira vez na histria o eixo da civilizao ocidental empurrado para o norte; durante numerosos scu-los ele se manter entre o Sena e o Reno. E os povos germni-cos, que at ali s tinham desempenhado o papel negativo de destruidores, agora sero chamados a desempenhar um papel positivo na reconstruo da civilizao europeia.

    A tradio antiga se rompe porque o Isl destruiu a antiga unidade mediterrnica.

    img042_2Rimg042_1Limg023_2Rimg024_1Limg024_2Rimg025_1Limg025_2Rimg026_1Limg026_2Rimg027_1Limg027_2Rimg028_1Limg028_2Rimg029_1Limg029_2Rimg030_1Limg030_2Rimg031_1Limg031_2Rimg032_1Limg032_2Rimg033_1Limg033_2Rimg034_1Limg034_2Rimg035_1Limg035_2Rimg036_1Limg036_2Rimg037_1Limg037_2Rimg038_1Limg038_2Rimg039_1Limg039_2Rimg040_1Limg040_2Rimg041_1Limg041_2R