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POLÍTICA EDUCACIONAL E IMÁGINÁRIO SOCIAL NO RIO GRANDE DO SUL DOS POSITIVISTAS (1889/1930) Berenice Corsetti UNISINOS [email protected] Introdução Cenário regional onde se efetivou uma experiência histórica peculiar, no campo da educação brasileira, o Rio Grande do Sul, na Primeira República, desenvolveu uma política educacional marcada por características muito específicas, próprias desse momento histórico. O trabalho que apresentamos pretende tratar, no contexto dessa política, de um de seus aspectos, ou seja, a construção do imaginário coletivo cujo esclarecimento nos permite compreender a hegemonia ideológica conseguida pelos dirigentes republicanos de orientação positivista. A partir de uma tipologia de fontes primárias que consideramos muito significativa para esse fim, ou seja, os relatórios da Secretaria do Interior e Exterior, onde estava situada a Instrução Pública, a legislação do período e a Revista UNITAS, revista oficial da Arquidiocese de Porto Alegre, foi possível descortinar a forma como foi construído o imaginário social legitimador do poder político republicano. O grupo político que assumiu, com o advento da República, a direção da política estadual, buscou implementar um projeto de modernização conservadora que visou consolidar o modelo capitalista como base do desenvolvimento regional. Nesse processo, a educação teve um papel significativo, já que a ela foi atribuída a tarefa de formar o cidadão dos novos tempos do capitalismo. Ao assumir o governo do Rio Grande do Sul, os dirigentes republicanos pautaram-se por uma clara orientação positivista, tendo, na obra de Augusto Comte, a matriz ideológica inspiradora de sua ação política. Dedicaram-se a estruturar a máquina administrativa do Estado, traçando e executando uma série de políticas públicas, atuando nos campos da higiene pública, serviço policial, obras públicas, organização judiciária, estrutura fundiária, entre outros. Em termos educacionais, o governo de orientação positivista moveu-se em

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POLÍTICA EDUCACIONAL E IMÁGINÁRIO SOCIAL NO RIO

GRANDE DO SUL DOS POSITIVISTAS (1889/1930)

Berenice Corsetti

UNISINOS

[email protected]

Introdução

Cenário regional onde se efetivou uma experiência histórica peculiar, no campo da

educação brasileira, o Rio Grande do Sul, na Primeira República, desenvolveu uma política

educacional marcada por características muito específicas, próprias desse momento

histórico. O trabalho que apresentamos pretende tratar, no contexto dessa política, de um de

seus aspectos, ou seja, a construção do imaginário coletivo cujo esclarecimento nos permite

compreender a hegemonia ideológica conseguida pelos dirigentes republicanos de

orientação positivista. A partir de uma tipologia de fontes primárias que consideramos

muito significativa para esse fim, ou seja, os relatórios da Secretaria do Interior e Exterior,

onde estava situada a Instrução Pública, a legislação do período e a Revista UNITAS,

revista oficial da Arquidiocese de Porto Alegre, foi possível descortinar a forma como foi

construído o imaginário social legitimador do poder político republicano.

O grupo político que assumiu, com o advento da República, a direção da política

estadual, buscou implementar um projeto de modernização conservadora que visou

consolidar o modelo capitalista como base do desenvolvimento regional. Nesse processo, a

educação teve um papel significativo, já que a ela foi atribuída a tarefa de formar o cidadão

dos novos tempos do capitalismo.

Ao assumir o governo do Rio Grande do Sul, os dirigentes republicanos pautaram-se

por uma clara orientação positivista, tendo, na obra de Augusto Comte, a matriz ideológica

inspiradora de sua ação política. Dedicaram-se a estruturar a máquina administrativa do

Estado, traçando e executando uma série de políticas públicas, atuando nos campos da

higiene pública, serviço policial, obras públicas, organização judiciária, estrutura fundiária,

entre outros. Em termos educacionais, o governo de orientação positivista moveu-se em

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função de interesses específicos, que previam a utilização da educação como instrumento

de modernização.

Nesse sentido a ação governamental, além de jogar com a sua política educacional

para ampliar o nível de formação dos gaúchos pela diminuição do analfabetismo, entre

outros elementos, demonstrou sua compreensão de que a moral e a educação constituiriam-

se nos principais elementos de garantia da ordem social e promotores da acomodação dos

indivíduos à sociedade. A escola foi, assim, um dos mecanismos de construção da

hegemonia do projeto do grupo dirigente. Para tanto, a política educacional do Rio Grande

do Sul, na Primeira República, conjugou iniciativas governamentais com, sobretudo, o

apoio à iniciativa privada.

Nesse contexto, a política educacional envolveu ações específicas destinadas à

constituição de um imaginário social legitimador de seu projeto, que estaremos analisando,

à luz dos elementos empíricos obtidos na investigação sobre o tema. Trata-se, portanto de

um trabalho historiográfico, desenvolvido a partir de fontes primárias, analisadas a partir de

uma leitura hermenêutica e de uma metodologia de caráter dialético.

1. A política educacional do Rio Grande do Sul na Primeira República

A política educacional implementada pelos republicanos positivistas, na Primeira

República, integrou uma estratégia mais abrangente de ação do Estado, que atuou de forma

interventora no âmbito da sociedade, desenvolvendo uma série de políticas entre as quais

teve destaque a relativa à educação, a qual se caracterizou por quatro aspectos, articulados

entre si pelos dirigentes do Estado: a intervenção da bancada gaúcha no parlamento

nacional, a atuação do governo gaúcho a nível estadual, a mediação com a Igreja Católica e

a construção de um imaginário republicano criador da “consciência nacional”.

Em relação ao primeiro aspecto, a articulação da atuação do Rio Grande do Sul a

nível nacional foi feita sobretudo por Pinheiro Machado. A bancada gaúcha seguiu

rigorosamente o programa do PRR, que no campo educacional previa: liberdade de ensino

pela supressão do ensino superior e secundário; liberdade de profissões, pela supressão dos

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privilégios escolásticos ou acadêmicos; liberdade, laicidade e gratuidade do ensino

primário; educação e instrução popular; ensino técnico-profissional.1

Na prática, a idéia central era a da “liberdade de ensino”, que balizou a atuação da

bancada gaúcha no Congresso Nacional, sempre que a questão polêmica da educação foi

debatida e deliberada.. Em síntese, foi possível perceber que a bancada gaúcha, através de

seu trabalho persistente e coeso no Parlamento Federal, contribuiu significativamente para,

por um lado, impedir uma maior ação do Estado Nacional no campo do ensino elementar e

secundário e, por outro, garantir esse espaço para a iniciativa privada ampliar sua

penetração.

Articulada com essa atuação nacional, a ação do governo gaúcho revelou a

utilização da educação como instrumento da política de modernização do Estado, tendo

sido marcada por características que resumem a importante intervenção dos dirigentes

positivistas em relação ao setor, conforme exposto abaixo:

a) Expansão do ensino público primário, como ação fundamental do Estado;

b) Estímulo e apoio, inclusive com verbas públicas, ao ensino técnico-profissional e

superior privados;

c) Nacionalização do ensino, especialmente nas regiões coloniais;

d) Utilização da escola como instrumento de política de saúde preventiva, através da

formação da “consciência sanitária da população”, bem como de assistência social;

e) Contenção de despesas com a expansão do ensino, através dos mecanismos das

subvenções escolares e do envolvimento das municipalidades;

f) Centralização administrativa e uniformização pedagógica;

g) Controle pleno do ensino público e liberdade à iniciativa privada;

h) Utilização da escola pública para a formação da mentalidade adequada ao processo de

modernização conservadora promovido pelo Estado;

i) Diferenciação dos saberes, como parte da própria lógica da dominação e da construção

do processo de modernização capitalista patrocinado pelos dirigentes republicanos de

orientação positivista.

1 TAMBARA, E. Positivismo e Educação - A educação no Rio Grande do Sul sob o Castilhismo (1995),

p. 160.

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Em paralelo, a política educacional republicana incluiu, através de uma acomodação

de interesses, um relacionamento importante entre o PRR e a Igreja Católica que, mesmo

não isento de divergências, serviu à concretização dos projetos por eles desenvolvidos. O

apoio da Igreja foi elemento relevante no processo de dominação republicana no Rio

Grande. Por outro lado, o favorecimento à Igreja, oportunizado pelos republicanos, facilitou

a recomposição da posição pretendida pela instituição, que atravessava crise expressiva

desde o século XIX, particularmente com a implantação da República e a separação entre o

Estado e a Igreja. Enquanto a Igreja solidificava novamente sua força na região, os

republicanos obtinham o seu concurso para conquistar apoio político especialmente das

populações coloniais e, também, das camadas médias e do proletariado.2

Todavia, essa acomodação não foi simples, tendo sido marcada por conflitos e

desavenças. A educação se constituiu em campo permanente de disputa. Particularmente a

questão da expansão do ensino, elemento fundamental da política educacional pretendida

pelos republicanos, foi aresta difícil de ser aplainada. Desde o início da gestão republicana,

a ocupação dos espaços educacionais situou uma disputa permanente entre o público e o

privado, especialmente na região colonial, onde a questão da nacionalização do ensino era

também da maior relevância, nos marcos da ação política republicana.

Especialmente nas regiões coloniais, o Estado estabeleceu um processo de disputa

com a Igreja Católica, no que concerne ao ensino primário. Essas regiões eram

fundamentais para o projeto de desenvolvimento dos dirigentes republicanos, que não

hesitaram em avançar num terreno em que a Igreja considerava sua absoluta prerrogativa.

As desavenças tornavam-se mais acirradas quanto mais se expandia o ensino público. A

disputa com a Igreja, no campo do ensino primário, sinalizou que o Estado não abria mão

de ser o educador por excelência do trabalhador que o capitalismo necessitava para sua

consolidação e pleno desenvolvimento. Não foi por outra razão que o Estado investiu de

forma expressiva no ensino primário e foi nesse nível que, no período em estudo se

concretizou sua preponderância no setor. A Igreja, por seu lado, teve presença

predominante no ensino secundário.

A compreensão da política educacional implementada pelos dirigentes gaúchos

implica na percepção de outro de seus ângulos, ou seja, a construção do imaginário social 2 Sobre o assunto, cf.: GIOLO, J. Estado, Igreja e Educação no RS da Primeira República (1997).

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que, tendo a escola como instrumento primordial, foi elaborado com a finalidade de

projetar os valores indispensáveis à consolidação do modelo capitalista de sociedade,

defendido solidamente pelos republicanos positivistas. Esta projeção implicou em dar

relevância à construção de uma subjetividade que, em paralelo ao processo concreto de

modernização proposto, atuou na direção desejada pelos dirigentes do Estado, ou seja, dar

suporte de legitimação e adesão ao projeto que estava sendo implantado.

2. A construção do imaginário republicano

A compreensão da política educacional implementada pelos dirigentes gaúchos, no

período de nossa análise, exige que percebamos um de seus ângulos, que comumente tem

sido inserido de forma diluída no plano político-ideológico sem que se delimite, com maior

precisão, sua importância, fundamentalmente para o processo de consolidação da

hegemonia almejada pelo PRR. Referimo-nos à construção do imaginário social que, tendo

a escola como instrumento primordial, foi elaborado e integrou a política educacional posta

em prática pelos republicanos.

No Rio Grande do Sul, a educação teve este significado, ou seja, projetar os valores

indispensáveis à consolidação do modelo capitalista de sociedade, defendido solidamente

pelos republicanos positivistas. Esta projeção implicou em dar relevância à construção de

uma subjetividade que, em paralelo ao processo concreto de modernização proposto, atuou

na direção desejada pelos dirigentes do Estado, ou seja, dar suporte de legitimação e adesão

ao projeto que estava sendo implantado.

Nesse sentido, interessa-nos abordar, nesta parte do trabalho, os instrumentos

utilizados e a ação desenvolvida pelos dirigentes rio-grandenses, no sentido de conquistar o

imaginário social, bem como a forma como isso integrou a política educacional por eles

implementada no período de seu governo.

O tratamento da questão do imaginário social, no âmbito do processo de

consolidação capitalista no Rio Grande do Sul, na Primeira República, deve ser situada não

apenas na análise dos instrumentos através dos quais esse imaginário foi construído, mas

também no entendimento da estratégia política dos republicanos, utilizada para

implementar as reformas vinculadas ao seu projeto de modernização do Estado. Para tanto,

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a construção do imaginário republicano se constituiu numa das táticas políticas dos

positivistas rio-grandenses.

2.1. Os instrumentos de construção do imaginário republicano

No sentido antes exposto, foram utilizados meios que incluíram fundamentalmente a

palavra escrita, os símbolos cívicos e os rituais. Em paralelo, a ação mediadora com a Igreja

Católica possibilitou a manipulação dos símbolos e sentimentos religiosos, bem a gosto da

perspectiva ideológica do positivismo.

A palavra escrita e falada foi um instrumento largamente utilizado pelos

positivistas, em sua ação pela consolidação do domínio republicano. Seu uso foi feito

através dos mais distintos canais, como jornais, particularmente o oficial do PRR, A

Federação, como outras publicações, conferências públicas, cerimônias, enfim, em todos

os veículos e eventos em que a oportunidade de expressar a mensagem republicana se

colocou. Nesse momento, além da defesa veemente dos princípios programáticos,

destacava-se a reafirmação dos valores cívicos que distinguiam os republicanos de seus

oponentes liberais, como a transparência no trato da coisa pública, a moralidade

administrativa, as virtudes dos líderes, a excelência do regime, a defesa intransigente da

Constituição.

a) O mito da origem

Em tudo isso se situava um aspecto da construção do imaginário cuja relevância

merece ser destacada. Referimo-nos ao mito da origem3, através do qual os republicanos

procuraram estabelecer uma versão dos fatos que, desde o início da República, dava

legitimidade à fração político-partidária que ascendera ao poder. Colocando-se contra as

forças do passado, os positivistas buscavam destruir a oposição liberal. Os acontecimentos

então, situados numa versão mitificada da verdade, transmitiam a superioridade do novo

momento histórico. 3 Utilizamos para a abordagem da construção do imaginário republicano a proposta metodológica implícita na

obra de José Murilo de Carvalho, A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (1990). O autor centrou em alguns elementos que foram orientadores de nosso enfoque, conforme apresentamos nessa parte do texto.

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Exemplo típico dessa formulação foi a sistemática identificação realizada entre o

liberais rio-grandense e a monarquia e desta com o atraso ou a inviabilização das soluções

desejadas pelo povo gaúcho. As dificuldades atravessadas pelo Rio Grande eram associadas

à carência de medidas no sentido de sua solução, sendo tudo isso atribuído aos liberais e à

monarquia.

A condenação da monarquia, em nome do progresso, fez parte do arsenal teórico

dos positivistas. Em paralelo, foi desenvolvida a idéia da ditadura republicana, com o apelo

a um Executivo forte e intervencionista. Dessa forma, o progresso foi associado à ditadura e

à ação do Estado e, portanto, às políticas sociais. Explicam-se assim os exemplos apontados

anteriormente neste trabalho, das falas recuperadas dos dirigentes políticos e educacionais

republicanos, imputando ao “regime decaído” o atraso da educação no Rio Grande,

especialmente no tocante à problemática da não-integração das regiões coloniais, a pouca

presença da escola pública primária nessas regiões, entre outros elementos integrantes da

verdade mitificada pelos positivistas.

Para a construção do imaginário social, a escola foi posta na fala republicana como

sua realização fundamental. Os documentos de época sinalizaram essa realidade, que

perpassou toda a Primeira República e pode ser sintetizada pela manifestação de Oswaldo

Aranha, em 1928:

O Estado ministra o ensino público primário, gratuito e leigo. A instrução popular é obra da República. Iniciou-se em 1900 e, desde então, vem dia a dia acentuando sua ação fecunda pela alfabetização e preparação das crianças, pela ação de um professorado culto e dedicado e pela aplicação de leis oportunas e sábias.4

A manifestação de Oswaldo Aranha reflete a tônica dos discursos republicanos, em

relação à educação pública, a qual pode ser encontrada ao longo de todo o período de nosso

estudo. A referência ao caráter leigo pontuava a separação entre a Igreja e o Estado, aspecto

que interessava particularmente a setores dos segmentos médios urbanos, como militares,

intelectuais e professores.

4 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior, em 25.08.1928, p. 11. O grifo é nosso.

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Ao contrário de um apelo abstrato ao povo, os positivistas colocavam a proposta de

incorporação do proletariado à sociedade moderna, de uma política social a ser

implementada pelo Estado, o que colocou a escola pública no centro da argumentação dos

dirigentes republicanos. Bastante expressiva foi a manifestação de Protásio Alves, no

contexto peculiar do final da Primeira Guerra Mundial, como podemos observar abaixo:

A guerra a que foi obrigada a nossa pátria provocou uma crise fecunda de patriotismo, agitou todas as camadas sociais e criou um momento histórico no qual germinarão e rapidamente crescerão as sementes que produzem os fatores da civilização e engrandecem os países. É mais do que nunca oportuno todo o esforço tendente a fazer da escola a oficina que lapide o caráter, onde se forme o cidadão, forte física e moralmente. É o momento de incrementar o trabalho que já vem sendo feito, de tornar brasileiras todas as crianças que nascem no Brasil. É o momento de chegar-se até o sacrifício para multiplicar as escolas capazes desses objetivos.5

Alardeadas por todos os cantos, as falas oficiais iam sinalizando a obra da

República, particularmente através da escola. De forma muito especial, a construção do

imaginário republicano tendo como instrumento a escola pública, foi ressaltada de maneira

inequívoca:

... o ensino público no Rio Grande do Sol passou, pouco a pouco, por completa transformação. A antiga escola dos primeiros tempos da República, que conservava o aspecto ainda dos tempos coloniais, onde o filho do proletário isolado aprendia a ler sob o regime da palmatória, olhando para as outras crianças que passavam para os colégios particulares, como privilegiados da sorte, gerando sentimentos de inveja e outros mais baixos, foi substituída por colégios e outras escolas onde, ao lado da educação completa, a criança tem o sentimento de igualdade de origem, só quebrada pelo mérito que o esforço individual conquista. A escola pública, que humilhava ao que transpunha as suas portas, pois a freqüência significava indigência, hoje é procurada indistintamente; os seus umbrais são altos para deixar passar a todos de cabeça erguida.6

5 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior, de 04.09.1918, p. X-XI. O grifo é nosso. 6 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 04.09.1918, p. XI. O grifo é nosso.

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Portanto, não apenas as posições filosóficas dos positivistas iam no sentido da

integração social, mas também as suas realizações. A escola pública, como obra dos

positivistas, situou-se na raiz do mito de origem da República no Rio Grande do Sul.

b) O mito do herói

Noutra direção, o regime republicano rio-grandense utilizou o mito do herói para

construir o imaginário coletivo como parte de sua política educacional, o que significou a

criação do panteão cívico republicano, destacando as figuras que deviam servir de modelo

para a comunidade gaúcha. Nesse sentido, a ação republicana foi em parte articulada com a

Igreja Católica.

A identidade coletiva relaciona-se, na tradição brasileira, com a construção de

heróis. No Rio Grande do Sul o esforço de transformação dos responsáveis pela

proclamação da República em heróis do novo regime foi significativo. Suas qualidades

foram alardeadas em jornais, livros, manifestações cívicas, monumentos. Seus nomes foram

dados a ruas e praças das cidades rio-grandenses. A própria legislação do período indicou o

referido esforço. Exemplo típico disto está expresso na lei n°25, de 24 de novembro de

1898, que orçou a receita e despesa do Estado para o exercício de 1899, a qual designou a

quantia de até 100:000$000 para a construção da estátua do Marechal Floriano Peixoto.7 Na

mesma direção, situaram-se as verbas destinadas, no plano das despesas extraordinárias do

Estado, para a construção dos monumentos destinados a consagrar as figuras do Marechal

Deodoro e do General Osório.8

Em nível do processo de “heroificação” dos dirigentes republicanos rio-grandenses,

destacaram-se as ações relacionadas com a promoção das figuras de Júlio de Castilhos,

Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, sem dúvida lideranças que simbolizavam a

República positivista do Rio Grande. Verbas extraordinárias foram destinadas para a

construção de monumento glorificador à memória de Júlio de Castilhos e para a edificação

de monumento ao Senador Pinheiro Machado. Além disso, a legislação do período

7 Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1898, p. 228. 8 Relatório da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul de 1922.

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espelhou a autorização para o governo adquirir o prédio onde nascera Borges de Medeiros,

transformando-o em estabelecimento de ensino.9

Se o estabelecimento dos monumentos e outros prédios públicos tinham a função

educativa de propiciar a identificação simples e cotidiana dos heróis republicanos, à escola

esteve reservada a tarefa de sistematizar a sua divulgação através de diversas práticas.

Nesse sentido, os ingredientes religiosos contidos no próprio positivismo oportunizaram

que, no plano de sua relação com a Igreja Católica, a simbologia relativa ao mito do herói

fosse reforçada, com a inclusão dos santos católicos no rol dos heróis a serem considerados

pelos fiéis rio-grandenses. Aprofundemos esse aspecto.

Durante os dezessete anos de publicação de sua revista oficial UNITAS, o trabalho

doutrinário da Igreja, no plano educacional, evidenciou-se através da divulgação de

modelos ideais e de valores necessários à formação humana e cristã.

A Igreja Católica procurou educar através de modelos insistentemente colocados

como referência de perfeição a ser imitada. Os Santos cristãos são o exemplo de maior

relevância. Considerados os “Gigantes do Catolicismo”, os Santos mereceram todo o

destaque por parte da Igreja, como podemos observar pelo que segue:

Os que se distinguiram nas ciências, nas conquistas, na política, são grandes pensadores, grandes conquistadores, grandes estadistas, porém grandes homens são só os santos, porque os santos são grandes pela sua grandeza pessoal, individual, sem o aparato de inúmeros recursos; grandeza essa conquistada por mil sacrifícios e sofrimentos, lutas interiores e esforços maravilhosos... Lutas tenazes e longas feriram os santos no terreno nobre do próprio peito, antes de aparecer ao mundo com essa envergadura moral, que a todos arrancava respeito. Incontestavelmente foram os santos os primeiros em generosidade, dedicação, respeito aos outros, em prontidão de sofrer, em humildade, altruísmo, paciência, abnegação, energia, mansidão e justiça.10

Através da UNITAS, a Igreja gaúcha reforçou nas Seções Doutrinárias o

procedimento de utilização dos Santos como referência:

9 Leis, Decretos e Atos de 1906 e 1908 e Relatório da Secretaria da Fazenda de 1919. 10UNITAS, Ano X, nº 6, Julho de 1923, p.185/186.

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A grandeza dos santos jamais fez retroceder a civilização, nem por um só passo, jamais a sua glória foi conquistada à custa do mais leve sofrimento alheio, de um lágrima sequer de um ente por eles oprimido. E não pode deixar de ser assim; porque a santidade é a perfeição do homem no mais alto grau possível de ordem e harmonia, de respeito e justiça, é a plenitude da paz, conquistadas pelo sacrifício do egoísmo inato, e dos sentimentos humanos, hubilados segundo o sublime modelo que é Jesus Cristo.11

E assim foram resgatados numerosos personagens do universo santificado da Igreja,

sempre reforçando virtudes especiais que interessava à Igreja local evidenciar. Santo

Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, São Domingos Gusmão,

Santa Catarina de Sena, Santa Francisca Romana, Santa Brígida, Santa Joana D’Arc, São

Jerônimo, Santa Terezinha, enfim, em tempo de grandes perturbações eram eles que

traziam a paz e o conforto, eram os maiores benfeitores da humanidade e um “estímulo para

o ideal do homem viandante no caminho da eternidade”.

Outras personalidades, verdadeiros heróis da história da Igreja, foram trazidos como

modelos a serem seguidos pelo clero e pelos cristãos do Rio Grande. Dante Alighieri foi um

exemplo preferido e bastante compreendido sobretudo nas regiões coloniais de origem

italiana. Diversos números de UNITAS recuperaram sua imagem. A Carta encíclica do

papa Bento XV, de 30 de abril de 1921, referente ao sexto centenário da morte de Dante e

dirigida em especial aos “professores e alunos de todos os institutos de ensino literário e de

cultura superior”, foi publicada na íntegra, com o destaque para os valores que tornaram

essa figura do Humanismo um modelo “digno da nossa imitação”. Devendo “tornar-se o

mestre da doutrina cristã para os alunos”, aquele que “ensina aos sábios e estadistas o

verdadeiro caminho da glória”, o discípulo de S. Tomás de Aquino, “enriquecido de quase

todas as ciências de seu tempo e versado, principalmente, na sabedoria cristã”, a figura de

Dante Alighieri foi resgatada como exemplo a ser seguido.

Outras figuras de origem italiana foram trazidas por UNITAS, como modelos ideais.

Assim foi feito com a figura do professor José Toniolo, sobre quem a revista assim se

referiu:

11UNITAS, Ano X, nº 7-8, julho/agosto de 1923, p. 221.

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Todos reconhecem nele o professor exímio que por mais de cinqüenta anos ilustrou com seu saber as universidades da Itália, o campeão da ação católica,.... o conselheiro de Leão XIII nos memoráveis dias em que foi elaborada a encíclica Rerum Novarum, o economista e sociólogo de valor incontestável, o adversário enérgico do agitador alemão, a cujo apelo opôs este outro: ‘operários de todo mundo, uni-vos em Cristo’, proclamando bem alto que a democracia ou será cristã ou não será democracia... Mas, o que talvez nem todos conhecem no professor Toniolo, é a sua profunda piedade cristã, fonte perene de toda a sua larga e laboriosa vida12.

Como é possível perceber, não foram apenas valores como fé, sabedoria,

obediência, gratidão, justiça, entre outros, que foram destacados como virtude. Os valores

políticos e sociais também ganharam indicação no procedimento pedagógico adotado pela

Igreja do Rio Grande do Sul e, entre eles, estavam a democracia cristã e o repúdio ao

comunismo. Articulando modelos ideais com os valores a serem difundidos, a Igreja rio-

grandense foi afirmando um modelo de sociedade idealizada segundo os padrões católicos,

que acabaram por se constituir em prática complementar ao trabalho de mitificação

desenvolvido pelo Estado, em relação aos seus heróis republicanos.

Essa situação se explica se considerarmos que o positivismo Comteano, base

ideológica dos republicanos rio-grandenses, a partir de 1845 passou a integrar elementos

religiosos e utópicos, decorrentes da “regeneração moral” de Comte provocada por seu

encontro com Clotilde de Vaux. A partir de então o sentimento foi colocado em primeiro

plano, deslocando a razão, base de sua obra anterior, para uma posição subordinada. A

filosofia Comteana evoluiu, então, na direção de uma religião da humanidade, com sua

teologia, seus rituais, suas biografias de santos. Pretendendo ser uma concepção laica,

fundia o religioso com o cívico, ou melhor dizendo, o cívico tornava-se religioso. Os santos

da nova religião eram os grandes homens da humanidade, os rituais eram as festas cívicas,

a teologia era a sua filosofia, os novos sacerdotes eram os positivistas. Comte substituiu a

caridade católica pelo sentimento de altruísmo, situando na base da sociedade instituições

de solidariedade, aos moldes do comunitarismo católico. Hierarquizadas, ali estavam a

família, a pátria e, no ápice do processo, a humanidade.13

12UNITAS, Ano VII, nº 10-12, outubro de 1920, p. 212. 13 CARVALHO, José Murilo de, A formação das almas (1990), p. 130.

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Ficou, portanto, evidente o processo através do qual o Estado gaúcho e a Igreja

Católica afinaram-se na prática real e concreta de construção de um imaginário coletivo

que, de forma clara, serviu aos interesses das duas instituições na busca de sua legitimação.

Outros valores foram assim alicerçados, como a autoridade, a pátria, a hierarquia e,

sobretudo, a defesa da república.14

c) Os rituais

Tudo isso nos leva à análise de um outro instrumento de construção do imaginário

social no Rio Grande do Sul, ou seja, os rituais, expressos através das comemorações e

festas cívicas destinadas à propaganda eficiente dos valores da modernidade republicana. A

escola, mais uma vez, contribui eficazmente nessa tarefa, conforme indicam as fontes de

época:

... ao lado da educação intelectual, é preciso que se incutam também as noções morais e cívicas, destinadas a dar aos futuros cidadãos a necessária intuição dos indeclináveis deveres inerentes aos diversos encargos que a sociedade lhes tem reservado. A verdadeira educação é, na frase do filósofo, aquela que nos prepara para a vida completa. Além disso, o sentimento de pátria não deve ficar amortecido nos tenros corações de nossos patrícios; é necessário que seja cultivado por incessantes referências aos sucessos da nossa história, proveitosamente expostos.15

A utilização da escola no processo de construção do imaginário republicano, onde o

pressuposto da integração social era fundamental, foi de relevância indiscutível,

particularmente na região colonial sobre a qual os interesses dos positivistas se voltavam

significativamente. No início do século, os rituais destinados a consolidar os valores da

República eram comuns a elas, como o exemplo que expomos abaixo permite perceber:

14 Jaime Giolo destaca o esforço dos republicanos , no processo de construção de sua hegemonia no Rio

Grande do Sul, esses valores, bem como a construção do discurso completo do regime e de seus heróis, com a participação da Igreja. Cf.: GIOLO, Jaime (1997), p. 284 a 306.

15 Relatório do Inspetor Regional da 4a. Região Escolar, José Penna de Moraes, em 16.12.1897, no Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 30.07.1898, p. 539.

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... as escolas públicas existentes nas colônias comemoram as nossas datas nacionais com emocionante ardor patriótico. As escolas particulares, onde somente se ensinava a língua alemã, vão desaparecendo à proporção que se vão criando escolas públicas, que são avidamente procuradas pela população colonial. Quem se dedicar a um simples exame da vida colonial no Rio Grande do Sul, não poderá, de boa fé, deixar de reconhecer, que tantos os descendentes aqui nascidos, como os próprios colonos oriundos da Europa, vivem consagrados conosco, colaborando ativamente na obra coletiva do engrandecimento nacional.16

As festas escolares eram verdadeiros rituais destinados a modelar condutas. Foi o

que vimos instaurado nas escolas rio-grandenses, especialmente as públicas, tendo sido

igualmente uma prática corriqueira nas escolas particulares. O caráter desses encontros não

era apenas laudatório das personalidades mitificadas. Serviam ainda para estimular

condutas “positivas”, reforçando os comportamentos recomendados com o estímulo de

premiações, as quais eram distribuídas aos alunos de melhor desempenho. Os demais

alunos, pela exclusão das premiações eram devidamente punidos por sua atuação

insatisfatória. Atingia assim o ritual escolar seu intento.

Nesses momentos ritualísticos da escola, participavam as autoridades locais de

maior expressão, que eram normalmente as que distribuíam os prêmios, geralmente doados

pelo inspetor regional e pelos professores. A história registrou diversas dessas solenidades,

das quais selecionamos a realizada em Santa Maria, em 1898. O ato foi realizado no Teatro

Treze de Maio, que havia sido convenientemente ornamentado. Estavam presentes as

famílias, bem como as autoridades, representadas nas figuras do juiz da comarca, do

intendente municipal, do sub-chefe da polícia, do comandante do 1o. regimento da Brigada

Militar ali estacionado e o juiz distrital. Além desses, estavam presentes os integrantes do

conselho distrital. Os prêmios foram entregues pelo presidente do conselho distrital e pelo

intendente do município, auxiliados por damas “respeitáveis” da comunidade local. O

Inspetor Regional, ao relatar o fato às autoridades educacionais, testemunhou a grande

vantagem dessa prática, que deveria ser seguida em todo os Estado.17

16 Relatório do Inspetor Geral da Instrução Pública, Manoel Pacheco Prates, no Relatório da Secretaria do

Interior e Interior de 15.08.1901, p. 104. 17 Relatório do Inspetor Regional da 4a. Região Escolar, José Penna de Moraes, em 18.12.1898, no relatório

da Secretaria do Interior e Exterior de 1o.06.1899, p. 136.

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Emblemática da importância dos rituais escolares, como instrumento da política do

Estado no plano educacional, foi a festa realizada pela Escola Complementar na praça de

desportos do Futebol Clube Porto Alegre, em 1928. Descrita na Revista da Instrução

Pública e relatada pelo Inspetor Geral, a festa espelhou, de forma bastante significativa,

esse meio utilizado pelos republicanos para a construção do imaginário coletivo

envolvendo a escola. Observemos alguns aspectos desse evento, que tinha a finalidade de

comemorar a data da independência nacional:

Já muito antes da hora marcada, as amplas arquibancadas do “stadium” estavam repletas de famílias e começavam a chegar os grupos de alunas da Escola Complementar, animando todo o amplo recinto com a nota encantadora da sua jovialidade e juventude. Notava-se, em todos os semblantes, a mais simpática expectativa e ansiedade e, quando teve início a festa, a impressão recebida pela assistência foi a mais agradável que se possa imaginar, diante a precisão, beleza e harmonia com que foram executadas as lindas evoluções e provas ginásticas, pelas gentis meninas. Os aplausos vibrantes, que coroavam cada parte do programa, bem demonstram quanto agradou a belíssima festa, pela sua inteligente organização e magnífica execução. A festa ... teve brilhantismo excepcional, verdadeiramente inédito em Porto Alegre, não só pela sua execução como pela finalidade educativa, porque, além de sua utilidade física, a solenidade revestiu-se de funda expressão cívica.18

Valendo-se desses momentos que mobilizavam a comunidade, os líderes

republicanos eram promovidos, em meio a um clima de enorme motivação e entusiasmo,

ficando subjacentes os valores que davam legitimação ao regime. Nesses instantes de

congraçamento entre a comunidade e seus dirigentes, o reforço à autoridade, à hierarquia e

ao poder instituído estiveram presentes:

Nas arquibancadas do F.B.C. Porto Alegre, premia-se uma multidão calculada em dez mil pessoas, composta do que a nossa capital tem de mais representativo na sua sociedade, reinando, nessa imensa massa de povo, um grande frêmito de entusiasmo à proporção que os números de ginástica iam sendo executados pelas alunas da Escola. Às nove horas, tendo chegado S. Exa. O Sr. Presidente do Estado, dr. Getúlio Vargas, acompanhado de sua

18 Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública, Luis de Freitas e Castro, em 30.07.1929, no relatório da

Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 46-7.

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exma. família, e o ilustre dr. Oswaldo Aranha, secretário do Interior e sua exma. família, teve início a festa ...19

Junto ao Presidente do Estado e ao Secretário do Interior e Exterior estavam

diversas autoridades civis e militares. A presença destacada das famílias das autoridades

buscava possibilitar a identificação simples e imediata dessa instituição, em nível do

imaginário social. O destaque dado aos dirigentes maiores do Estado sinalizava não só o

aspecto da autoridade, mas a personificação dos heróis que deveriam ficar registrados pela

população presente ao evento. Este elemento foi reforçado, na cerimônia que estamos

analisando:

O S. presidente do Estado foi recebido à entrada do clube, pelo diretor e mais professores da escola, indo até o seu camarote entre alas de alunos e vitoriado não só pelos alunos da Escola como pela multidão que ali se encontrava, que prorrompeu em palmas e vivas a S. Exa., tocando a banda da Brigada o hino rio-grandense. Também o dr. Oswaldo Aranha, secretário do Interior, foi recebido pelo diretor e professores da Escola, sendo ovacionado pelos alunos e pelo povo.20

A utilização de figuras heróicas nos rituais escolares caracterizou a educação rio-

grandense, sob a influência do positivismo. Próprio dele foi também a manipulação dos

símbolos, que analisamos a seguir.

d) Os símbolos

A utilização de símbolos foi muito peculiar na caracterização dos meios utilizados

para a construção do imaginário republicano através da escola. Nesse sentido, percebeu-se a

presença do hino rio-grandense, da bandeira e do hino brasileiros, indicados no próprio

programa da comemoração realizada pela Escola Complementar:

19 Relatório do Diretor Geral da Instrução Pública, Luis de Freitas e Castro, em 30.07.1929, no relatório da

Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 47. 20 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 47.

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O programa executado obedeceu aos seguintes números: 1o. Hino rio-grandenses entoado pelos alunos, acompanhados pela banda da Brigada Militar, que causou grande entusiasmo. 2o. Marchas rítmicas, executadas por 32 alunas, cujo efeito empolgou a multidão, rompendo o Sr. Presidente do Estado em palmas, quando terminou o número, durando bastante os aplausos. 3o. Exercícios de ginásticas calistênica, lindos, úteis e graciosos exercícios, que encheram de entusiasmo a assistência. 4o. Todas as alunas formaram, letra a letra, a palavra Brasil, que causou deslumbrante efeito pois, nessa ocasião, todas as alunas colocaram gorros de cor amarela, umas, outras verdes, formando a cor da bandeira nacional e, em seguida, ao som da banda, cantaram o hino brasileiro.21

A simbologia republicana teve no hino e na bandeira suas duas maiores expressões.

Inseridos nos eventos públicos de massa, representavam a identificação instantânea dos

valores da República. Representação dos novos tempos, esses dois elementos estavam

presentes em todas as solenidades cívicas, complementando com sua presença os rituais

desenvolvidos.

2.2. As ações republicanas na construção do imaginário social

A importância conferida, em termos estratégicos, à construção do imaginário

coletivo como parte da política educacional dos republicanos positivistas, pode ser

percebida através das disposições relativas às comemorações, estabelecidas no novo

regulamento da Instrução Pública, elaborado e aprovado pelo governo do Estado, em 1927.

Esse regulamento determinava que deveriam ser comemoradas, como grandes datas

nacionais e estaduais, as expostas no quadro abaixo.

21 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 20.08.1929, p. 48.

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DATAS COMEMORATIVAS DE EVENTOS OFICIAIS DO RIO GRANDE DO SUL:

1927

DATAS EVENTOS

24 de fevereiro Promulgação da Constituição Federal

21 de abril Glorificação de Tiradentes

22 de abril Descobrimento do Brasil

13 de maio Abolição da escravatura

14 de julho Independência dos povos americanos e promulgação da Constituição do Estado

7 de setembro Proclamação da independência nacional

20 de setembro República de Piratini

12 de outubro Descoberta da América

15 de novembro Proclamação da República

19 de novembro Instituição da bandeira nacional

FONTE: Decreto n° 3.898, de 04.10.1927. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul

de 1927, p. 534.

Se as datas selecionadas já são bastante expressivas, pelo que representam em

termos da história tradicional, os encaminhamentos determinados pelo dispositivo legal

complementavam o cenário, no tocante à construção do imaginário republicano, conforme

podemos apreciar no parágrafo 1o do artigo 102 do referido regulamento, que estabelecia

que do programa deveriam constar, além de uma preleção do professor relativa à data,

hinos e cantos cívicos, de molde a despertar, nos alunos, sentimentos de amor à pátria. Por

outro lado, era vedado, aos estabelecimentos de ensino público, qualquer manifestação

coletiva além das enunciadas na lei, salvo autorização especial da Secretaria do Interior e

Exterior.22 Como vemos, as escolas públicas só podiam praticar os rituais determinados

pelo Estado republicano, consagrando-a como instrumento ativo de elaboração dos

elementos que, em nível da subjetividade, interessavam ao grupo que detinha o poder no

Rio Grande.

O apoio governamental aos rituais republicanos pode ser bem aquilatado através da

legislação da época, que indica as verbas concedidas, anualmente, para tal fim. No

orçamento previsto para o exercício de 1911, estava destinada a quantia de 6:000$000 para

22 Decreto n° 3.898, de 04.10.1927. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de

1927, p. 534.

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a realização das festas nacionais na capital.23 Assim, paralelamente à ação realizada através

da escola, a promoção dos eventos que interessavam à promoção da República estava

incluída nas decisões políticas dos governantes do Estado.

Nessa linha de argumentação, vale a pena observarmos as dotações destinadas ao

Centro Republicano “Júlio de Castilhos”, de Porto Alegre, para organizar os festejos

cívicos relativos à passagem do dia 15 de novembro. Data emblemática da República,

movimentava as escolas e, no plano mais geral, a sociedade como um todo. Em 1916, o

governo republicano concedeu 4:000$000 especificamente para esse fim, quantia que foi

aumentada para 5:000$000 em 1917, 10:000$000 em 1919, 12:000$000 em 1920 e

015:000$000 em 1921.24

O empenho republicano em oportunizar, tanto por meio da escola como através de

ações articuladas que envolvessem o conjunto da sociedade, a concretização desses

eventos, revelou o conteúdo político do direcionamento que pretenderam dar à construção

do conjunto de valores necessários à sua legitimação. Nessas performances públicas, que

buscavam envolver um número expressivo de participantes, como foi o caso que a festa

escolar da Escola Complementar nos permitiu visualizar, estava a demonstração de uma

identidade social comum, centrada nos ideais republicanos. O estava sendo construído,

portanto, era, em nível do imaginário coletivo, uma afirmação positiva do regime que se

apresentava publicamente para ser identificado pelos cidadãos.

Cabe ressaltar que essa estratégia republicana teve seu impacto mais abrangente, em

relação aos eventos mais significativos, na área urbana, destinando-se portanto aos

segmentos médios e ao operariado. Todavia, as pequenas escolas rurais, sobretudo as

subvencionadas, foram utilizadas como espaço privilegiado para a construção do

imaginário republicano, como instrumento da política do Estado nos mais distantes locais

do Rio Grande, situação que era deixada entrever pelo testemunho seguinte:

[...] em modestas escolas subvencionadas espalhadas pelo vasto território do Estado, donde constantemente nos chegam, pelos jornais locais e por nossos

23 Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1910, p. 53. 24 Leis n° 205, de 25.11.1916, 219, de 23.11.1917, 243, de 18.11.1919, 258, de 11.11.1920 e 270, de

29.10.1921.

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fiscais, as notícias de comemorações cívicas em datas nacionais, significativas de que, ao lado da modesta instrução literária, elas se vão impondo também à sociedade pelos complementos da educação.25

A importância conferida às comemorações cívicas pelos dirigentes republicanos

ficou estampada no decreto baixado, em 1922, por Borges de Medeiros, concedendo aos

alunos dos estabelecimentos estaduais de ensino dez dias de férias destinadas à participação

nas homenagens dedicadas à passagem do centenário da independência nacional.26

Argumentando sobre necessidade de associar todos os alunos das escolas públicas nos

eventos dessa data oficial, reconheciam os dirigentes gaúchos a relevância que davam aos

rituais republicanos.

A prática positivista incluiu ainda, no plano da construção do imaginário

republicano, a alegoria da mulher, bem menos relevante em termos de Rio Grande do Sul,

se bem que presente. O papel destinado à mulher, por Augusto Comte, possibilitou a

alegorização da figura feminina, símbolo da Humanidade. Exemplo da tentativa realizada

no Rio Grande do Sul está expressa no monumento erguido a Júlio de Castilhos, que foi

inaugurado em 1913. Compõe-se de uma pirâmide em cujo topo domina a figura da

República em forma de mulher, tendo aos pés um globo onde se distinguem vinte e uma

estrelas, que representam a Federação, e o lema “Ordem e Progresso”.

No plano educacional, a figura feminina passou, no período republicano, a ser

considerada a educadora por excelência. Vários testemunhos históricos podem ser

encontrados nessa direção. A promoção da mulher para a carreira do magistério teve

implicações que pretendemos analisar no 4o. capítulo deste trabalho. Por ora, resta salientar

que a alegoria feminina foi inserida no conjunto dos elementos que buscaram constituir o

imaginário republicano, como uma das tentativas táticas que revelaram, em termos

estratégicos, a prática republicana.

25 Relatório de Protásio Alves, Secretário do Interior e Exterior, em 04.0.1918, p. XI. 26 Decreto n° 3.022, de 05.09.1922. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de

1922, p. 325-6.

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Considerações finais

Manipulando símbolos e mitos, utilizando-se dos rituais cívicos, os dirigentes

positivistas gaúchos envolveram particularmente a escola pública para alicerçar os valores

indispensáveis à adesão da sociedade ao seu projeto de desenvolvimento do Estado. A

política educacional da época, portanto, jogou com a subjetividade inerente ao processo de

construção da consciência coletiva, em paralelo ao desenvolvimento bastante objetivo que

davam à modernização conservadora do Rio Grande.

O papel reservado à escola foi particularmente especial no envolvimento da

sociedade como um todo. O apelo à integração social via escola foi inegável e refletiu a

visão dos positivistas que dirigiam o Estado. Entretanto, não podemos esquecer de salientar

que esta integração era pretendida numa sociedade profundamente desigual e hierarquizada,

com cada indivíduo no seu lugar, realizando o seu papel social nos marcos do projeto

republicano. Sem dúvida alguma, a importância conferida à educação merece destaque, sem

deixarmos de perceber, todavia, que essa valorização teve, como objetivo central, a

constituição de uma sociedade que devia se modernizar, nos parâmetros do sistema

capitalista.

A política educacional adotada no Rio Grande do Sul, na Primeira República, visou

atender a uma necessidade represada ao longo de todo o Império em termos educacionais e

que aflorou nos anos iniciais da fase republicana, ou seja, o acesso à escola. Todavia, a

opção da classe dirigente rio-grandense, se por um lado deu vazão a esses anseios

ampliando expressivamente a rede escolar, refletiu a visão de mundo e os próprios

interesses dos setores dominantes do Rio Grande, que utilizaram o imaginário social para

legitimar seu projeto autoritário, elitista e excludente.

Referências bibliográficas

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GIOLO, Jaime. Estado, Igreja e Educação no RS na Primeira República. Tese de

Doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação/USP, 1997.

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TAMBARA, E. Positivismo e Educação: a educação no Rio Grande do Sul sob o

Castilhismo. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 1995.