pró-reitoria de pós-graduação e pesquisa

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA Pedras: dificuldades, persistência e superação um estudo estilístico em Cora Coralina. ROSILENE MORATO MATEUS Orientadora: Profª .Drª. Magalí Elisabete Sparano Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2015

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Page 1: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Pedras: dificuldades, persistência e superação – um estudo estilístico em Cora Coralina.

ROSILENE MORATO MATEUS

Orientadora: Profª .Drª. Magalí Elisabete Sparano

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO 2015

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UTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

M377p Mateus, Rosilene Morato.

Pedras: dificuldades, persistência e supereração – um estudo estilístico em Cora Coralina / Rosilene Morato Mateus. -- São Paulo; SP: [s.n], 2015.

96 p. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Magalí Elisabete Sparano. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul.

1. Análise do discurso 2. Ethos 3. Estilística 5. Coralina, Cora, 1889 - 1985. I. Sparano, Magalí Elisabete. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 81’42(043.3)

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Pedras: dificuldades, persistência e superação – um estudo estilístico em Cora Coralina.

Rosilene Morato Mateus

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada pela Banca Examinadora em 13/02/2015.

BANCA EXAMINADORA:

Profª. Drª. Magalí Elisabete Sparano

UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Profª. Drª. Alessandra Ferreira Ignez

UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul

Profª. Drª. Isabel de Andrade Moliterno

FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas

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A Deus, fonte de toda minha esperança, inspiração e sustento;

à minha mãe e à minha filha pelo amor, dedicação e paciência de ambas, incentivando-me a continuar;

a quem me disse sim, num momento em que

outros diziam não!

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AGRADECIMENTOS Nenhum dever é mais importante do que a gratidão.

Cicero

A Deus, que me sustentou em tudo, ao longo desta jornada.

A minha filha e minha mãe, grandes incentivadoras e companheiras de

todas as horas.

A minha tia Eolinda, que me ensinou a amar a Língua Portuguesa e que

sempre se mostrou pronta a me ajudar e me apoiar nos momentos em que precisei.

A minha família pela compreensão das ausências nos encontros aos quais

eu nunca estava presente.

A Irleide, amiga que Deus escolheu para ser minha irmã, pela força,

incentivo e por ter sido quem me apresentou Cora Coralina.

A todos que direta ou indiretamente se fizeram presentes neste percurso.

Às Professoras Doutoras Alessandra Ferreira Ignez e Isabel de Andrade

Moliterno por comporem minha banca de qualificação, por lerem meu trabalho e por

fazerem indicações que foram de fundamental relevância para o encaminhamento da

conclusão deste estudo.

Há muitos anos, logo que terminei a graduação, eu tive um desejo: o de

fazer um Mestrado e que ele fosse orientado por ela: professora de uma postura

inquestionável com seus alunos. Nunca poderia imaginar que ele se concretizasse.

Mas, como as escrituras dizem: “deleita-te no Senhor e Ele concederá os desejos de

teu coração”. Deus assim o fez! Minha Professora tornou-se primeiramente minha

Amiga e, um dia, minha Orientadora.

Em especial, quero agradecer a minha Orientadora, Prof.ª Dr.ª Magalí E.

Sparano, por ter sido tão fundamental não só em minha vida acadêmica, mas também

em minha vida pessoal e profissional. Sua presença, seus ensinamentos, seus

conselhos, seu apoio, seu carinho e sua vigilância que me alicerçaram e me

impulsionaram a avançar e chegar a esta dissertação.

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MATEUS, R.M. Pedras: dificuldades, persistência e superação – um estudo estilístico em Cora Coralina. 2015. 104 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

RESUMO

Nesta dissertação temos por objetivo analisar os poemas “O Chamado das

Pedras”, presente no livro Vintém de Cobre (1995 e 2007); “Aninha e Suas Pedras”,

do livro Poemas dos Becos de Goiás (2006); “Pedras”, de Meu Livro de Cordel

(2002); e o conto “Cântico da Volta”, de Villa Boa de Goyaz (2008), de Cora Coralina,

considerando as escolhas linguístico-discursivas dos traços lexicais, mórficos e

sonoros presentes nesses textos para a construção dos sentidos.

Neste estudo, utilizamos o aparato teórico da Estilística para observar os

diferentes valores expressivos do vocábulo “pedra”, traço linguístico recorrente no

corpus selecionado, que assume, a partir de reincidentes contextos da vida dos

enunciadores, metaforizando as ideias de rejeição, persistência e superação.

Em diálogo com a Análise do Discurso de linha francesa, analisamos também

como as referidas escolhas linguístico-discursivas feitas pelos diferentes enunciadores

dos textos em estudo corroboram constituição dos respectivos ethe.

Os principais autores em que nos baseamos para essa pesquisa são:

MARTINS, N. S ([1989] 2012); LAPA, M.R ([1982] 2011); MANGUENEAU D. ([1986]

1996; [1998] 2011; [1997] 1989), BENVENISTE, E. ([1966] 1989, [1974] 1995);

LAKOFF, G. ([1980] 2002).

Palavras Chave: Cora Coralina, Análise do Discurso, Ethos, Estilística, Metáfora da Pedra.

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MATEUS, R.M. Stones: difficulties, persistence and overcoming - a stylistic study

in Cora Coralina. 2015. 104 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade

Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

ABSTRACT

In this dissertation our aim is analyze the poems “O Chamado das Pedras” in

the book Vintém de Cobre (1995 e 2007); “Aninha e Suas Pedras” from the book

Poemas dos Becos de Goiás (2006); “Pedras” from the Meu Livro de Cordel (2002)

and a short story “Cântico da Volta” from the Villa Boa de Goyaz (2008) by Cora

Coralina, considering the linguistic and discursive choices of lexical, morphic and

sonorous traits present in these texts for the construction of the senses.

In this study, we used the theoretical apparatus of Stylistic to observe the

different expressive values of the word "stone", recurrent linguistic feature in the

selected corpus, that takes on from recurring contexts of life of enunciators,

metaphorising of rejection, persistence and overcoming ideas.

In dialogue with the Analysis of French Discourse also analyze how these

linguistic-discursive choices made by different enunciators of texts in study support for

the constitution of their ethe.

The principal authors we based this study are: MARTINS, N. S ([1989] 2012);

LAPA, M.R ([1982] 2011); MANGUENEAU D. ([1986] 1996; [1998] 2011; [1997] 1989),

BENVENISTE, E. ([1966] 1989, [1974] 1995); LAKOFF, G. ([1980] 2002).

Keywords: Cora Coralina, Stylistic, Discourse Analysis, Ethos, Metaphor of Stone.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................9

CAPÍTULO 1:

UM POUCO SOBRE A TRAJETÓRIA DE CORA CORALINA ..............................13

CAPÍTULO 2:

UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A PRODUÇÃO CORALINIANA .........................25

2.1 POEMA ...............................................................................................................26

2.2 CONTO ...............................................................................................................30

2.2.1. Cântico ...................................................................................................35

CAPÍTULO 3:

ENUNCIADORES E ENUNCIAÇÃO .......................................................................36

CAPÍTULO 4:

CAMINHO DAS PEDRAS .......................................................................................45

4.1 O CHAMADO DAS PEDRAS ...................................................................................49

4.2 ANINHA E SUAS PEDRAS ......................................................................................62

4.3 DAS PEDRAS ......................................................................................................70

4.4 O CÂNTICO DA VOLTA .........................................................................................78

CONCLUSÃO ..........................................................................................................93

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................95

ANEXO ....................................................................................................................98

As cocadas ...........................................................................................................98

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INTRODUÇÃO

[...] Poeta, não somente o que escreve. É aquele que sente a poesia,

se extasia sensível ao achado de uma rima, à autenticidade de um verso[...]

(CORALINA , 2007, p. 214).

Conhecer o universo que os poemas de Cora Coralina abarcam é estar pronto

para deslumbrar-se com a forma com que trata sobre assuntos variados, como

escreve sobre temáticas que reconstroem a realidade e a atualidade de seu discurso

literário.

Na leitura de seus textos, podemos observar um elo entre o passado e o

presente em que se insere, sem meias palavras - mas com meias confissões -, em

que construiu um estilo único de “ler a vida dando-lhe conotações próprias”

(DENÓFRIO, 2008, p. 16)

Os aspectos expressivos da língua podem ser observados no uso vivo e

espontâneo da linguagem no cotidiano da vida humana. Segundo Bally, (Apud Martins,

2012, p. 20), um mesmo conteúdo pode ser expresso de diferentes modos e distingue

o conteúdo linguístico do conteúdo estilístico, a informação neutra do suplemento

subjetivo a ela acrescentado.

É exatamente esse aproveitamento diferenciado dos traços linguísticos que se

destaca na obra coraliniana. Ela faz poesia valendo-se de temas pouco explorados,

guiando o leitor por novos caminhos, mostrando, por exemplo, a possibilidade

expressiva do lixo nos becos de Góiás ou, em outros aspectos, que uma sociedade

preconceituosa despreza.

Outro exemplo é o predominante uso do vocábulo “pedra”. Observamos as

metáforas obtidas com a reiteração desse vocábulo, sugerindo dificuldades,

persistência e superação no corpus selecionado que nos chamou a atenção e nos

intrigou, já que, de acordo com Lakoff, “a essência da metáfora é compreender e

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experienciar uma coisa em termos de outra”, entendendo que “metáfora significa

conceito metafórico” (LAKOFF & JOHNSON, 1980, 2002; 48), ou seja, os conceitos

que governam nosso pensamento e que também governam a maneira como nos

comportamos no mundo e nos relacionamos com as outras pessoas.

A partir de nossa observação e considerando esse uso metafórico do vocábulo

“pedra” na obra em estudo, selecionamos três poemas e um conto a fim de analisá-los

e descobrirmos os sentidos atribuídos a essa unidade lexical e de mostrar o quanto as

análises estilísticas podem corroborar a compreensão de um texto, já que, como

ressalta Henriques, “a Estilística é o estudo dos recursos expressivos e impressivos da

língua e da adequação de seu uso.” (HENRIQUES, 2011, p. 2). São eles: “O Chamado

das Pedras”, presente no livro Vintém de Cobre (1995 e 2007), “Aninha e Suas

Pedras”, do livro Poemas dos Becos de Goiás (2006); “O Chamado das Pedras”, de

Vintém de Cobre (1995 e 2007); “Pedras”, de Meu Livro de Cordel (2002) e o conto

“Cântico da Volta” de Villa Boa de Goyaz (2008).

O primeiro, "O Chamado das Pedras”, atribui ao vocábulo dois sentidos

diferentes: o ligado à rejeição, e o ligado às suas origens. Nesse poema, o enunciador

rende-se às suas origens para um reencontro consigo mesmo. O poema seguinte,

“Aninha e Suas Pedras”, trata do encorajamento que o enunciador dá a Aninha no

sentido de superar as dificuldades da vida, relacionando o vocábulo “pedras” a

superação. O terceiro poema, “Das Pedras”, metaforiza o vocábulo como dificuldades,

mostrando um enunciador que constrói um ethos resiliente e corajoso, que aproveita

as experiências negativas como alicerce para novas conquistas. O último texto

analisado, um conto, “O cântico da Volta”, como no segundo poema, metaforiza o

vocábulo “pedras” como dificuldades, mas também ratifica a superação e a alegria de

um enunciador que, apesar de relacionar sua infância a um “berço de pedras”, constrói

um ethos resistente que volta às origens de sua vida para o seu recomeço.

O vocábulo “pedra” ganha especial expressividade quando metaforizado como

rejeição na condição de “pedrinha rejeitada” pela mãe. No poema “Menina Mal-

Amada”, o sufixo -inha coloca o vocábulo no diminutivo, sugerindo o desprezo

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enfrentado pelo enunciador em ter seus escritos atribuídos a outra pessoa. O sufixo

diminutivo pode exprimir várias conotações. Tanto Martins quanto Lapa descrevem as

tonalidades afetivas que o sufixo pode assumir. Segundo Martins (2012, p. 146), ele

pode exprimir, por um lado, sentimentos positivos como carinho, apreciação etc. e, por

outro, sentimentos negativos como desdém, gozação, desprezo, ironia. Lapa (1987, p.

93) explica a relação desses valores afetivos com a ideia de pequenez contida nesse

sufixo.

[...] Afinal menina moça, depois adolescente. Meus pruridos literários, os primeiros escritinhos, sempre rejeitada. Não, ela não. Menina atrasada da escola da mestra Silvina Alguém escreve para ela... Luis do Couto, o primo. Assim fui negada, pedrinha rejeitada, até a saída de Luís do Couto Para São José do Duro, muito longe... Vamos ver, agora, como faz a Coralina... Passei a ser détraqué... (CORALINA, 2007, p.116)

Carlos Drummond de Andrade também usa a metáfora da “pedra” para tratar da

produção coraliniana, talvez, valendo-se de um mecanismo intertextual, referindo-se a

Cora Coralina como “diamante”, ou seja, uma “pedra” preciosa, caracterizando-a como

raridade. Seu uso sugere a superação das dificuldades encontradas ao longo da vida,

saindo da condição de menina rejeitada pela mãe para a poeta reconhecida por

Drummond e, posteriormente, por todo o Brasil.

[...] “Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão”[...] [...] “Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil” Carlos Drummond de Andrade (Jornal do Brasil, cad. B, 27 – 12 – 80)

Dessa forma, diante do exposto, este estudo justifica-se pela possibilidade de

se ampliar os estudos estilístico-discursivos da obra coraliniana, considerando as

diferentes imagens que o vocábulo “pedra” assume nos textos escolhidos como eixo

condutor desta análise, assim como o seu ponto de contato.

Dessa forma, em meio a essas agradáveis e intrigantes leituras, surge o

objetivo desta pesquisa em analisar, valendo-se do aparato teórico da Estilística, os

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valores expressivos que o vocábulo “pedra” vai assumindo ao longo da tessitura dos

textos selecionados como corpus de análise, considerando-se as escolhas lexicais,

mórficas e sonoras, sabendo-se que, conforme Martins (2012, p. 97), os aspectos

expressivos das palavras não podem estar completamente separados dos aspectos

sintáticos e contextuais.

Ainda como objetivo deste estudo, temos a análise de como as escolhas

linguísticas feitas pelos enunciadores dos textos selecionados corroboram a

construção de sentido e a formação de seus ethe, que descrevem um indivíduo que

enfrenta dificuldades, persiste e supera os desafios da vida.

O corpus será analisado a partir do eixo teórico da Estilística, tendo como base

autores como MARTINS, N. S ([1989] 2012); LAPA, M.R ([1982] 2011);

MANGUENEAU D. ([1986] 1996; [1998] 2011; [1997] 1989), BENVENISTE, E. ([1966]

1989, [1974] 1995) HENRIQUES, C.C. (2011); LAKOFF, G. ([1980] 2002).

O trabalho foi desenvolvido a partir dos propósitos metodológicos estabelecidos

pela pesquisa bibliográfica, estando dividido em quatro partes, além da Introdução e

Conclusão. No primeiro capítulo, apresentaremos a trajetória de Cora Coralina; no

segundo, uma breve explanação sobre a produção coraliniana, dando ênfase aos

gêneros discursivos escolhidos para as análises, o poema e o conto. No capítulo

terceiro, discorreremos sobre os enunciadores presentes nos textos selecionados e,

no quarto, as análises do corpus selecionado para a pesquisa.

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CAPÍTULO 1: UM POUCO SOBRE A TRAJETÓRIA DE CORA CORALINA

A obra de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (1889-1985), Cora Coralina,

é um dos marcos em nossa literatura.

Nascida em Goiás, em 1889, Cora teve uma trajetória literária peculiar. Embora

escrevesse desde moça, tinha 76 anos quando seu primeiro livro foi publicado, e 90

anos quando sua obra chegou às mãos de Carlos Drummond de Andrade –

responsável por sua apresentação ao mercado nacional. Desde então, sua literatura

vem conquistando crítica e público.

Cora Coralina não se filiou a nenhuma corrente literária, porém sua obra foi

modulada pelo modernismo. Com um estilo pessoal, foi poeta e uma grande contadora

de histórias e coisas de sua terra. O cotidiano, os causos, a velha Goiás, as

inquietações humanas são temas constantes em sua obra, considerada por vários

autores um registro histórico-social de seu tempo.

Ela mesma declarou mais de uma vez, em entrevistas e depoimentos, que só

foi capaz de fazer poesia depois das conquistas dos modernistas, da adoção do verso

livre:

[...] Este livro: Versos... não. Poesia... não. Um modo diferente de contar velhas estórias. (CORALINA, 2006, p. 27)

Cora Coralina é um modelo ímpar de poeta, que transita entre o popular e o

erudito. Detentora de um delicado lirismo, uma de suas principais características é a

empatia, que pode ser percebida em seus escritos nos quais toma a voz dos obscuros,

excluídos da sociedade, elementos da natureza e até de simples objetos usados no

dia a dia.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, mulher simples, doceira de profissão,

tendo vivido longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários, produziu

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uma obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, em particular dos

becos e ruas históricas de Goiás.

Casou-se em 1910, com o advogado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem se

mudou, no ano seguinte, para o interior de São Paulo. Nesse Estado, passou quarenta

e cinco anos, vivendo inicialmente nas cidades de Avaré e Jaboticabal e, depois, na

capital, onde chegou em 1924.

Com a morte do marido, Ana ficou ainda com três filhos para acabar de criar.

Sem se deixar abater, vendeu livros em São Paulo, mudou-se para Penápolis, onde

passou a vender linguiça caseira e banha de porco que ela mesma preparava. Mudou-

se em seguida para Andradina, até que, em 1956, retornou para Goiás.

Durante esses anos, Cora não deixou de escrever, produzindo poemas ligados

à sua história, à ligação com a cidade em que nascera e ao ambiente em que fora

criada.

Preocupada em entender o mundo, no qual estava inserida, e, ainda,

compreender o real papel que deveria representar, Cora parte em busca de respostas

no seu cotidiano, vivendo cada minuto, na complexa atmosfera da Cidade de Goiás,

que permitiu a ela, a descoberta de como a simplicidade pode ser, o melhor caminho

para atingir a mais alta riqueza de espírito.

Cora Coralina soube ler a sua história, dando-lhe uma conotação própria.

Semeou entre pedras de sua vida e, com elas, alicerçou o seu caminho, percorrido

com simplicidade, persistência e muito trabalho. Do trabalho colheu sua safra.

Na seleção realizada pela professora Darcy França Denófrio, em “Melhores

Poemas” (2008), são ressaltadas características representativas da produção de Cora.

A maneira como subdividiu os poemas nos revela as principais vertentes de seu

enunciador: Aninha, mesclando a herança lírica, a manifestação épica e o

compromisso social. (DENÓFRIO, 2008, p. 27). De acordo com Denófrio, a obra de

Cora Coralina alcançou transcendência e revela um pensamento com características

do movimento modernista:

[…] Portanto, é legítimo que essa mulher, que nasceu no século XIX (1889) e conviveu com tantos poetas e prosadores de discursos

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anacrônicos, mesmo estreando como poetisa aos 76 anos, apresente uma poesia com algumas daquelas inconfundíveis marcas do Modernismo brasileiro. Libertária por temperamento, sua poesia só poderia mesmo assumir este rosto. Jamais tolerou a métrica e, se chegou a usar a rima, não o fez do modo convencional, uma vez que sua alma reclamava mais esta liberdade – a criadora -, carro-chefe da estética de 22 (DENÓFRIO, 2008, p. 19).

Denófrio afirma que não foi sem razão que a poeta parodiou Manuel Bandeira,

moderno de que esteve mais próxima devido à inserção de sinais biográficos na obra

e por ser o poeta que soube elevar à categoria literária a prosa coloquial, sendo o

“mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos dentro da literatura brasileira”

(DENÓFRIO, 2008, p. 20).

Segundo Denófrio, os críticos, na estreia de Cora Coralina em livros, insistiram

em considerá-la mais prosadora do que poeta. Assim avaliavam, com o intuito de

menosprezar a produção em versos e toda sua obra, pois seus contos eram

publicados apenas esporadicamente em alguns jornais. A professora afirma que

“talvez lhes faltasse, àquele momento, algum conhecimento teórico”, (DENÓFRIO,

2008, p. 25) referindo-se à teoria de Emil Staiger sobre a prevalência dos traços

estilísticos dos gêneros e legitimando suas intercomunicações.

Para a compreensão dos caminhos desenvolvidos pelos críticos, torna-se

necessário percorrermos o legado da poeta, relacionando quais foram suas obras e os

principais temas explorados.

Não nos atentaremos aos livros infantis por não encontrarmos apontamentos

sobre eles. Serão apresentadas, por ordem de publicação, características gerais de

seus livros, partindo dos prefácios e ressalvas na busca de pistas para visualizarmos

as condições em que foram escritos e que influenciaram a elaboração de seu trabalho,

além das opiniões de críticos sobre eles.

O primeiro livro que pertence ao legado de Cora Coralina é: “Poemas dos

Becos de Goiás e Estórias Mais”, publicado em 1965 pela Editora José Olympio. Foi o

livro de estreia da poeta.

Após um distanciamento físico e temporal de 45 anos, a maior e melhor parte

da obra foi escrita depois de seu reencontro com a Cidade de Goiás, quando

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reescreve e registra as relações de um passado que vivenciou e/ou que ouviu contar

em sua terra natal e revelar a violência simbólica em desfavor dos “obscuros”. Ela

dialoga com as lembranças das experiências vividas ou percebidas na infância:

[…] Quarenta anos decorridos! Outros tantos que iniciei o retorno, numa migração inconsciente e obscura, tenaz e muda, tendo a Serra Dourada como sigla, os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra. (CORALINA, 2008, p. 107)

Em razão de ser o seu primeiro livro, “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias

Mais” constituiu a obra que propiciou consideráveis análises críticas e transformou-se

em cartão de visitas da poeta, sendo considerado, sob o ponto de vista estético, seu

melhor trabalho.

João Benedito Martins Ramos, jornalista e amigo da autora, foi o primeiro crítico

da sua obra publicada em livro. O prefácio da primeira edição de “Poemas dos Becos

de Goiás” – “Cora Brêtas – Cora Coralina: miniaturista de mundos idos, que assim ela

eterniza”, (CORALINA, 2006, p.9) foi escrito por ele. Suas análises ressaltam a origem

ontodinâmica dos poemas com destaque para “Oração do Milho”.

Ele escreve que, apesar da aparente sutilidade, a obra se reveste de um poder

surpreendente e a poeta, na posição de “guia”, nos leva a passear por seus poemas e

conhecer personagens diversos, inclusive aqueles, historicamente silenciados como

os escravos, as prostitutas, os delinquentes, entre outros. Ramos afirma ser “uma

surpresa e um gosto notar o conhecimento da vida rural expresso e implícito em

muitos deles” (CORALINA, 2006, p. 10). O autor diz que o fato de uma mulher revelar

intimidades pessoais e sociais torna-se inovador, uma vez que:

[…] Cora Coralina – autora – prometeu algo diferente ao leitor, e cumpriu tudo – em forma e conteúdo. […] história com uma delicadeza de mulher, um bom humor de mulher pura e uma nitidez de mulher sábia – miniaturista de mundos idos, que se revela – intimidades pessoais e sociais que ela assim eternizou (CORALINA, 2006, p. 11).

Para Oswaldino Marques, também no prefácio dessa publicação: “sua obra

constitui, sem favor algum, uma das mais bem sucedidas invenções da sensibilidade

feminina de nosso país” (CORALINA, 2006, p. 14). Alguns poemas da obra destacam-

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se, a exemplo de “Vintém de Cobre” e “Do Beco da Vila Rica”, registros do estatuto

familiar, das relações de classe, da fetichização da poupança doméstica; “Evém

Boiada”, demonstrativo da “lida pecuária” e das “vicissitudes da vida rural”; “Rio

Vermelho” e “Velho Sobrado”, transubstanciações do tempo em matéria emocionada;

“O Palácio dos Arcos”, representações de “vivências brasílicas”; e “Caminho dos

Morros”, reminiscente de “O Recado do Morro de Guimarães Rosa”. O escritor ressalta

o “Poema do Milho” e “Oração do Milho”, considerando o primeiro, “indiscutivelmente,

a obra-prima de Cora Coralina. Nele se contém talvez a mais brilhante poetização da

febre genésica vegetal que conheço” (CORALINA, 2006, p. 17).

Curiosamente, em todos os livros editados em vida – “Poemas dos Becos de

Goiás e Estórias Mais”, “Meu Livro de Cordel” e “Vintém de Cobre: Meias confissões

de Aninha” e, em “Estórias da Casa Velha da Ponte” (livro por ela organizado e

publicado postumamente), Cora Coralina apresenta ressalvas antes de iniciar sua

obra.

Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais” existem quatro ressalvas:

“Duas palavras especiais”, “Este livro”, “Ao leitor” e “Ressalva”. Na primeira,

confidencia a dificuldade enfrentada para a publicação e a gratidão ao escritor

Tarquínio J. B. de Oliveira por “tirar o livro do limbo dos inéditos” e à universidade

Federal de Goiás por incorporá-lo à coleção Documentos Goianos que constituiu “um

marco desta época, a fim de cumprir relevante papel a serviço do futuro” (CORALINA,

2006, p. 21).

Na segunda ressalva, demonstra o desejo de ter suas obras sempre acessíveis

ao público, podendo “sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por gerações que

hão de vir, de gerações que vão nascer” (CORALINA, 2006, p. 24).

Na terceira ressalva, desafia o leitor com três propostas:

[…] “Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do passado antes que o Tempo passe tudo a raso. É o que procuro fazer para a geração nova, sempre atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições, sociologia e folclore de nossa terra. “Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida”. (CORALINA, 2006, p. 25)

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A análise dessas ressalvas tem muito a nos revelar, primeiro como justificativa

prévia aos juízos críticos apressados, já que foi tão criticada por muitos. Também

informa a quem sua obra é direcionada: geração nova, gente moça, aqueles que

possivelmente no futuro compreenderiam a dimensão de seus símbolos.

A publicação da segunda edição de “Poemas dos Becos de Goiás”, em 1978,

pela Editora da Universidade Federal de Goiás, contribuiu para que a obra de Cora

ganhasse repercussão nacional. Um dos exemplares foi encaminhado ao poeta Carlos

Drummond de Andrade, que, não possuindo referências sobre a poeta, enviou uma

carta à universidade:

“Rio de Janeiro, 14 de julho de 1979. Cora Coralina. Não tenho o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu Carlos Drummond de Andrade.” (BRITTO, 2009, p. 259)

A segunda obra de Cora Coralina, “Meu Livro de Cordel”, foi publicada em

1976, numa edição restrita, em Goiás, por P.D. Araújo e, durante alguns anos,

permaneceu esgotado.

O livro, exclusivamente de poemas, quarenta e três produções, divide-se em

duas partes, uma direcionada a questões mais universais que contemplam a natureza,

valores humanos, passagens bíblica; outra intimista.

Esse livro possui uma ressalva que justifica seu título: “pelo amor que tenho a

todas às estórias e poesias de Cordel”, “irmãos do Nordeste rude, de onde um dia veio

meu pai para que eu nascesse e tivesse vida”, e aponta os sujeitos de sua

contemplação: “assim o quero numa ligação profunda e obstinada com todos os

anônimos menestréis nordestinos” (CORALINA, 2002, p. 5).

Essa obra foi citada por Carlos Drummond que promoveu a poeta, provocando

a aceitação de sua obra:

“Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1981. Querida Cora Coralina. Você me deu grande alegria oferecendo-me o “Meu Livro de Cordel”: Poesia tão pura, tão humana, tão comunicativa! Você tem o dom de cativar os

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leitores com os seus versos cheios de alma, de sentimento da terra e de comunhão fraterna com os humildes. O abraço comovido e grato, e a profunda admiração de seu amigo Carlos Drummond de Andrade.” (BRITTO, 2009, p. 262)

Já seu terceiro livro, “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, foi

publicado em 1983, pela Editora da Universidade Federal de Goiás. Sua característica

mais intimista já pode ser observada nas criações anteriores, como exemplo em suas

produções em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais” com o subtítulo

“Freudiana” - “Minha Infância” e “Vintém de Cobre”.

Os setenta e cinco poemas da obra estão dispostos em três partes: “Meias

confissões de Aninha” (aspectos relativos ao cotidiano, à família, à situação da mulher,

à situação da criança, à terra e à sua volta à terra natal); “Ainda Aninha..”.

(observações sobre problemas, inovações e sugestões com ênfase à educação, seção

em que os títulos dos poemas explicitam falas, premonições, confissões, reflexões,

recados, mensagens, considerações, conclusões e lembranças); e “Nos Reinos de

Goiás” (temáticas relacionadas à cidade e o fazer de tudo: poesia). Prefaciando a

primeira edição (1983), a historiadora Lena Castello Branco Ferreira Costa entende

que a arte maior de Cora Coralina consiste em “recolher da memória do tempo todo

um mundo de coisas e fatos quotidianos e pessoas simples, transfigurando-os,

emprestando-lhes contornos universais” (CORALINA,1995, p. 17). Em sua análise, diz

que se deve abstrair a ancianidade da autora e a aparente fragilidade e se atentar à

profundidade das mensagens, pois a inquietude da poeta, além de acompanhar o

ambiente em que se insere, revela ocorrências do Brasil e do mundo.

Ressalta, ainda, que sua obra tardia – melhor dizendo, que nos foi dada a

conhecer tardiamente – é expressão literária de alto nível e apresenta, igualmente,

conteúdo sociológico inigualável.

O crítico Oswaldino Marques escreve ser o livro, sem exageros, exemplo de

completa transfusão de uma existência em uma criação literária. Ele afirma que “todos

os quadrantes da lida humana - individual e social” estão nele capturados, notando

“uma carga densa de vivência convertida em ciência” (CORALINA, 1995, p.26) e

destaca poesias como “A Gleba me Transfigura”, “Aninha e suas Pedras”, “Mãe, Irmã

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Bruna”, “Segue-me”, “Sombras”, “Coisas do Reino da Minha Cidade”, “Várias...”, “Meu

amigo” e “Para o meu Visitante Eduardo Melcher Filho”.

Porém, o real reconhecimento perante a crítica e perante o público e demais

agentes foi propiciado com a crônica “Cora Coralina, de Goiás” que o poeta Carlos

Drummond de Andrade publicou em 1980 no Jornal do Brasil. De acordo com Britto,

estaria reconhecida a singularidade, originalidade e valoração artística que tornar-se-ia

o marco da divulgação nacional da figura humana e da obra de Mulher-Monumento

(BRITTO, 2009, p. 260-261).

Inicia-se, assim, o processo de superexposição na mídia, multiplicada pelas

homenagens que a poeta recebe nos últimos anos de vida:

Cora Coralina, de Goiás. “Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaina moderna. Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos: “Vive dentro de mim (...) Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve o Ode às Muletas como a Oração do Milho.(...). Assim é Cora Coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os becos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. (...) Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilado na solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi

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homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecer critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios. Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesmo se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de analfabetismo”. Opõe à morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”. Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira”. Carlos Drummond de Andrade. (Jornal do Brasil, cad. B, 27-12-80).

No prefácio do livro também encontramos a carta de Drummond:

Rio de Janeiro, 7 de outubro, 1983. Minha querida amiga Cora Coralina. Seu “Vintém de Cobre” é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial, e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós todos que nascemos no Brasil e amamos a poesia. (...) Do seu Drummond.

Em “Vintém de Cobre”, novamente quatro ressalvas antecedem os poemas:

“Cântico Excelso”, “Este livro, meias confissões de Aninha”, “O Cântico de Aninha” e

“Cântico Primeiro de Aninha”. A autora demonstra a gratidão por sua única professora

e oferece seu livro à Mestra Silvina e a sua escola primária, imagem que toma o lugar

de todas as cenas em sua noite de autógrafos. Em “Este livro, meias confissões de

Aninha”, descreve ser um livro “tumultuado, aberrante, da rotina de se fazer e ordenar

um livro”, indo à publicidade sem pretensões, de consequências ocorridas nos Reinos

de Goiás. Ainda afirma que muitos identificarão com sua obra - “estas coisas também

se passaram comigo” - demonstrando a consciência de recriar e poetizar os caminhos

ásperos de uma dura caminhada e, por fim dialoga em “O Cântico de Aninha” e

“Cântico Primeiro de Aninha” sobre o vintém da infância que lhe faltou e sua trajetória

de vida. (CORALINA, 1995, p. 43-48).

Apesar de estrear na literatura, escrevendo em prosa, Cora Coralina faleceu

poucos meses antes de ver seu sonhado livro de contos publicado. O livro “Estórias da

Casa Velha da Ponte”, 1985, foi organizado pela autora e lançado postumamente com

a ressalva “Nada novo”:

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“O conto é uma modalidade literária ingrata e não raro surpreendente. Quando acreditamos, ufanos, que sua motivação, seu pequeno enredo seja original de uma cidade, e nossa a primazia de o contar, vemos com surpresa que outras cidades também reivindicam o mesmo assunto e que outros contistas já garimparam na lavra. Concluímos, portanto, que o enredo seja de toda parte e de todos que escrevem, ressalvando apenas o estilo de cada um e os recursos próprios de quem escreve e conta. Por isso nos resguardamos dos juízos apressados. A autora” (CORALINA, 2006, p. 5).

A ressalva, além de constituir proteção ante “juízos apressados”, na advertência

“nada novo”, demonstra a consciência da poeta a respeito da universalidade de sua

arte.

Em 1989, nas comemorações do centenário de nascimento da autora, a

escritora Dalila Teles Veras selecionou dezoito contos inéditos de Cora Coralina. O

título da obra remete a um dos contos da coletânea “O Tesouro da Casa Velha”, sendo

prefaciada pela própria organizadora.

No prefácio, Veras afirma ser a autora “essencialmente poeta uma vez que a

poesia não se dá apenas na forma de versos” é uma insuperável contadora de

estórias (sem ‘h’, do cotidiano, composta por verdades e mentiras). (VERAS, 2002, p.

5).

Em seu entendimento, os contos selecionados são registros histórico-sociais

em forma de contos ou poemas, que não são meros retratos da realidade, pois

possuem uma narrativa peculiar com a utilização de palavras em desuso, resgatando

uma linguagem já perdida, mas que, na sua voz, ganha um encanto especial,

atribuindo-lhe um caráter inovador. (VERAS, 2002, p. 6).

Veras reconhece o risco de se publicar uma obra póstuma em se tratando de

sua veracidade e utiliza-se do mesmo argumento, apresentado na ressalva de

“Estórias da Casa Velha da Ponte”, que adverte o leitor da inexistência de algo novo

“(no sentido de inovação, de novidade vanguardeira, lançadora de moda), pois é mais

uma fatia de um todo que se manteve coerente durante a existência da poeta”

(VERAS, 2002, p. 8). A obra é composta de poemas que viraram contos com pitadas

de bom humor e críticas severas aos costumes.

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O mais recente livro de Cora Coralina, constituído em prosa e verso, “Villa Boa

de Goyaz”, foi publicado em 2001, nas comemorações do título de Patrimônio Mundial

outorgado pela UNESCO à cidade de Goiás,com prefácio escrito pelos próprios

editores, dando-nos apenas as informações em que contexto foi elaborado.

Sua temática retrata a cidade de Villa Boa de Goyas, patrimônio material e

humano do interior brasileiro com suas lendas, tradições e interferências a partir de

vinte produções, das quais cinco são poemas.

A crítica também se referia à ausência de densidade poética nos versos, mais

narrativos do que líricos. As palavras de Denófrio retratam essas primeiras

im(pressões):

[…] A crítica, em Goiás, após a estréia de Cora Coralina em 1965, naturalmente muito antes de ela ser proclamada por Drummond, em 1980, como a pessoa mais importante de nosso estado (a partir de quando o que se ouviu foi o silêncio), fez restrições ao tom lírico narrativo de seus poemas. Quase todos os críticos, quando não lhe torciam o nariz, batiam na mesma tecla: ‘é mais prosadora, do que poeta’. Talvez lhes faltasse, àquele momento, algum conhecimento teórico (DENOFRIO, 2008, p. 24-25,).

Mesmo com as cartas de Drummond e os prêmios de âmbito nacional,

conferidos, as universidades mantiveram-se praticamente indiferentes ao legado de

Cora Coralina. Ela, muitas vezes, é lembrada como a velhinha que declamava versos

com voz trêmula, por ter publicado seus livros na maturidade.

“No passado, seus escritos, embora aprovados por entendidos, eram discriminados por muitos: ‘aluna atrasada da Mestra Silvina’. Sua poesia foi igualmente considerada menor, até que o maior dos poetas brasileiros de então, Carlos Drummond de Andrade, a considerasse importante. Mesmo assim, em meados da década de 80, uma renomada universidade (...) considerou sua obra inconsistente para uma defesa de tese, desencorajando certa mestranda a prosseguir em seu trabalho.” (DENÓFRIO, 2008, p. 341).

Após ter sido reconhecida por renomados escritores como Carlos Drummond de

Andrade e recebido títulos de alcance nacional, como o Prêmio de Poesia no Primeiro

Encontro da Mulher na Arte e Personalidade Cultural da União Brasileira dos

Escritores, Rio de Janeiro (1982), o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista

de Críticos de Arte (1984) e o Troféu Juca Pato da União Brasileira dos Escritores e

Folha de São Paulo, no mesmo ano, além do título de Drª. Honoris Causa pela

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Universidade Federal de Goiás (1983), a Academia Goiana de Letras a aceitou em seu

quadro em 1984. Portanto, alguns meses antes de sua morte, dispensando-a da

disputa por uma vaga, ela assistiu à sua própria consagração.

Finalizando, Denófrio escreve que Cora Coralina mereceria ser resguardada de

duas coisas: “de um antecipado juízo de valor negativo, como fizeram no passado, e

da comiseração. Do primeiro porque é um mesquinho preconceito. Da segunda,

porque sua obra verdadeiramente a dispensa” (DENÓFRIO, 2008, p. 347).

É sabido que a crítica ainda tem um longo caminho a trilhar, mas nossa

intenção com este trabalho é tentar avançar nesses caminhos e sugerir pistas para

compreender como, por meio dos recursos linguísticos e estilísticos, Cora Coralina,

valendo-se das metáforas obtidas com o vocábulo pedra, constrói o retrato sobre sua

história, seu tempo e seu lugar.

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CAPÍTULO 2: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A PRODUÇÃO CORALINIANA

Segundo Marcuschi, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as

atividades do cotidiano, sendo entidades sócio-discursivas e formas de ação social.

Não são instrumentos estanques e enrijecedores. Eles se caracterizam como eventos

textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos (DIONISIO, 2002, p.19). Cora

Coralina, com uma habilidade admirável, mescla os gêneros, apresentando-os de

forma híbrida, isto é, assumindo a forma de outro gênero:

[...] São Poemas que viraram contos, personagens que mudaram de nomes, girando em ciranda ao redor de Casa Velha da Ponte e dos Becos encantados da Velha Goiás...[...]. Imagens que se sucedem, a cada vez enriquecidas de novos detalhes, novas óticas, de tom sempre lírico, mesclado com pitadas de humor e severas críticas de costumes[...] (CORALINA, 2002, p. 8).

Assim, como já citado neste estudo, a última ressalva do livro “Poemas dos

Becos de Goiás e Estórias Mais” diz: “(...) “Este livro: Versos... não. Poesia... não. Um

modo diferente de contar velhas estórias” revela suas relações com o modernismo, a

partir da utilização dos versos livres que margeiam as fronteiras da prosa, deixando

clara a presença do gênero híbrido em sua obra.

Denófrio, no prefácio de “Melhores Poemas”, faz o apontamento de Staiger no

qual se refere que uma das características da arte moderna pauta-se na

miscegenação dos gêneros, pondo abaixo a teoria clássica dos gêneros:

“Apenas chamo a atenção para um ponto: uma obra exclusivamente dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica ou dramática” (Staiger in Denófrio, 2008, p.25)

Então, o que existe é a predominância de traços estilísticos sobre um gênero ou

outro.

De acordo com as características do modernismo, seguido por Cora, em sua

poesia há a ausência de metrificação, emprego do verso livre, aproveitamento poético

da linguagem cotidiana, ausência de limites entre o poético e o não poético: tudo pode

ser tema de poesia; interesse pelo homem comum, pela ordem social, pelo cotidiano;

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abandono da concepção de arte como imitação; gosto pela ironia e pela polêmica;

poesia participante, empenhada na realidade contemporânea; tendência à abertura, à

multiplicidade de sentidos e interpretações, entre outras características.

Ela poetizou, com muita habilidade, situações do cotidiano, os costumes, as

crenças, as tradições e os valores de sua cidade, a cumplicidade com os

discriminados e seu percurso de vida, temáticas que são encontradas em sua obra em

poemas livres, cânticos, odes, orações e contos, porém não se prendendo às

convenções estipuladas pelo gênero, mas colocando a linguagem e a forma a favor do

conteúdo poético.

Na sequência deste trabalho, uma pequena explanação nos gêneros escolhidos

para o corpus deste trabalho.

2.1 Poema

Histórica e universalmente o termo “poema” nos remete à poesia, ou seja,

sempre que falamos em poesia, pensamos em poema ou vice-versa, o que é um

equívoco, pois é possível termos um poema sem, contudo, haver poesia.

Octávio Paz, em “O arco e a lira”, faz uma interessante colocação quando diz

que o que distingue um poema de um tratado em verso, um quadro de uma estampa

didática, um móvel de uma escultura é a poesia (PAZ, 1982, p. 24). Assim, o uso e o

destino da linguagem nas mãos de prosadores e poetas nos fazem distinguir o sentido

da diferença entre ambos.

O que se nota, segundo Massaud Moisés, é a tendência para um

estabelecimento duma aliança entre a categoria abstrata (poesia) e a categoria formal

(poema).

Seja em prosa ou em verso, o termo poema designa um texto “caracterizado

por uma unidade de forma e sentido, em que a organização dos segmentos regulares

ou dos períodos e parágrafos encerra uma unidade de sentido...” (MOISÉS, 2000,

p.91), na qual a poesia pode inscrever-se ou não.

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De acordo com Massaud Moisés, o poema pode dividir-se em lírico ou épico.

Determinadas formas têm estilo próprio de determinada espécie. No poema épico,

temos o poema, o poemeto, a epopeia e as do poema lírico são especialmente as

seguintes: o soneto, a ode, a canção, a balada, a oração, entre outras.

Encontramos, na obra de Cora Coralina, gêneros híbridos, um diálogo entre o

épico, o lírico e o dramático. O enunciador de seus poemas poetiza fatos dramáticos

que aconteceram em um Beco. Segundo Massaud Moisés, uma das características da

poesia épica é girar em torno de um assunto memorável, ilustre, sublime e solene,

prendendo-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo (MOISÉS, 2013,

p. 155).

Becos de Goiás Becos da minha terra...

A construção da obra está calcada na memória de seu passado e as escolhas

lexicais e sintáticas usadas pelo enunciador em seus poemas e contos evidenciam o

grau de importância que ele dá ao lugar, situação ou objeto descrito, elevando-os,

deixando claras as relações com seu mundo interior, mostrando fortemente seu

caráter emocional e, assim, o lirismo em sua produção, fazendo com que um simples

Beco, por exemplo, torne-se um lugar ilustre, já que se solidariza com o drama das

pessoas que vivem lá:

Becos de Goiás Becos da minha terra... Amo tua paisagem triste, ausente e suja. [...] E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja. Sem infância, sem idade. [...] Amo e canto com ternura Todo o errado da minha terra. [...] (CORALINA, 2006, p. 92)

Segundo Kayser W. (1985, p.390), na situação épica, o narrador encontra-se

em frente do que vai contar. Afastado, o narrador contempla e conta a história:

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[...] Conto a estória dos becos, dos becos da minha terra, suspeitos... mal afamados onde família de conceito não passava. “Lugar de gentinha” - diziam, virando a cara. De gente do pote d’água. De gente de pé no chão. Becos de mulher perdida. Becos de mulheres da vida. Renegadas, confinadas na sombra triste do beco. Quarto de porta e janela. Prostituta anemiada, solitária, hética, engalicada, tossindo, escarrando sangue na umidade suja do beco.

Também como características épicas, encontramos no poema os três

elementos estruturais que, segundo Kayser, compõem a força épica:

“Personagens, evento e espaço são as três substâncias com as quais se constrói o mundo épico. Como tal pode acontecer, explica-o a investigação das estruturas das obras em que foi construído um mundo épico” (Kayser, 1985, p. 396)

O espaço, “... o Beco, local onde se dá a ação dos personagens.

[...] Becos mal assombrados. Becos de assombração...

Os personagens,

[...] Capitão-mor – alma penada, terror dos soldados, castigados nas armas. [...] Mulher-dama. Mulheres da vida, perdidas. [...]

E o acontecimento, o narrador conta a história das prostitutas que viviam nos

Becos e que eram perseguidas pelo Capitão-Mor.

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Porém, Cora Coralina, apesar de seguir a narratividade em seus poemas, usa

versos livres, não se prendendo aos decassílabos presentes nos poemas épicos

clássicos.

Ao discorrermos o poema, tanto o evento quanto o espaço nos colocam

constantemente numa tensão no que há de vir, o que corrobora para evidenciar

também o dramático na produção coraliniana:

“... À força de ser constantemente interpelado, o respectivo eu vê-se constrangido a resoluções e, portanto, a juízos; o mundo dramático é mais espiritual, mais normativo do que o épico. Enquanto, assim, as figuras estão permanentemente coordenadas – ao outro - e colocadas na tensão do que há de vir; enquanto, por outro lado, também o espaço, sempre que não é palco neutral, está cheio de tensão...”(Kayser, 1985, p. 408).

Becos mal assombrados. Becos de assombração... Altas horas, mortas horas... Capitão-mor – alma penada, terror dos soldados, castigados nas armas. Capitão-mor – alma penada, num cavalo ferrado, chispando fogo, descendo e subindo o beco, comandando o quadrado – feixe de varas... Arrastando espada, tinindo esporas... Mulher-dama. Mulheres da vida, perdidas, começavam em boas casas, depois, baixavam pra o beco. Queriam alegria. Faziam bailaricos. - Baile Sifilítico - era ele assim chamado. O delegado-chefe de Polícia - brabeza - dava em cima... Mandava sem dó, na peia. No dia seguinte, coitadas, cabeça raspada a navalha, obrigadas a capinar o Largo do Chafariz, na frente da Cadeia. Becos da minha terra... [...] Têm poesia, têm drama. O drama da mulher da vida, antiga, Humilhada, malsinada. [...] Um irmão vicentino comparece. Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara Uma passagem de terceira no grande coletivo de São Vicente

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Uma estação permanente de repouso – no aprazível São Miguel. Cai o pano.

(CORALINA, 2006, p. 93-95)

Assim, constatamos o lirismo na poética coralineana, dialogando com o épico e

o dramático que perpassam a sua poesia.

Embora a escolha de Cora Coralina em entitular seus poemas líricos com

vocábulos que nos remetem às formas como Ode, Cântico, Oração, seus valores,

muitas vezes, não estão ligados à estrutura e sim ao aspecto semântico de cada um

deles.

2.2 Conto

No que se refere à prosa, temos na obra de Cora Coralina os contos, que não

constituem espécies; são configurações do conteúdo. O conto, segundo Hênio

Tavares, é sintético e monocrônico; desenvolve-se como um fato pretérito,

consumado; os fatos percorrem uma direção linear. Sua forma é a narrativa, o

ambiente é único, ou quase único e visa à exposição de uma situação única, poucos

personagens, prevalecem em primeira pessoa, sobretudo em que o contista seleciona

a óptica onisciente ou de observador:

“Todos os elementos da narrativa devem convergir para um único objetivo: e ocasionar um único efeito no leitor: ofertar-lhe uma imagem, um aspecto, do dia a dia multitudinário” (MOISÉS, 2013, p.90)

Tanto o passado como o futuro àquele episódio é irrelevante. Quando,

porventura, importa mencionar os acontecimentos precedentes, o contista sintetiza-os

em poucas linhas.

O conto tradicional identifica-se pela estrutura rigorosa de começo, meio e fim;

epílogo imprevisto próximo da realidade concreta e histórica. O conto, dito moderno,

sublinha a atmosfera poética, ou seja, como afirma Campos, o escritor volta-se para a

materialidade mesma da linguagem – a função poética, inclusive quando esteja,

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aparentemente, fazendo aquilo que, convencionalmente, se chamaria “prosa”

(CAMPOS, 1977, p. 33), buscando uma retratação de cenas intimistas ou

introspectivas. Porém, sua estrutura continua a mesma, ou seja, unidade dramática,

unidade de tempo, unidade de espaço, número reduzido de personagens, diálogo

dominante, descrição e narração:

“... o conto “realista” ou o “moderno” exibem diferenças de pormenor ou de grau, mas a substância ou a estrutura de base permanece ou é análoga” (MOISÉS, 2013, p.90).

Os contos coralinianos, apesar de apresentarem uma elaboração que busca

simplicidade, possuem um grande poder de comunicação com o leitor em seus

enredos que são narrados de forma direta, com as qualidades do contador oral, talvez

por isso mais perto do conto popular que do literário. O mesmo estilo aparece nos

poemas, com o emprego de alguns arcaísmos que não chegam a ser pretensiosos,

pois faziam parte da linguagem usual da infância da poeta, dando ao texto um certo

sabor exótico de passado, de material encontrado num cofre, de tesouro de casa

velha, desafiando a curiosidade do leitor.

Influenciada pelo modernismo, em um estilo carregado de vida, ao qual não

falta um toque de ironia, ela registra fatos com peculiaridade narrativa, resgatando

uma linguagem, muitas vezes em desuso que, em sua voz, ganha legitimidade. Ela

mesma dizia que “a língua é móvel, os gramáticos é que a querem estática, solene,

rígida. Só o povo a faz renovada e corrente”. (CORALINA, 2002, p. 6)

A escolha lexical ganha especial expressividade e dá um especial colorido a

sua fala, e tem como intuito não só inovar a linguagem, já que, segundo ela, “... que é

a nossa gíria senão o buscar de velhas palavras e dar-lhes outros significados?”

Mostra também a intenção de denunciar uma sociedade com hábitos conservadores,

como, por exemplo, o uso da palmatória como instrumento pedagógico; expressões

como “meia-sola e conserto” (situação de remediar), “de afogadilho” (às pressas),

“variar” (delirar), “arribar” (recuperar, sarar), “taludo” (desenvolvido, corpulento), que os

dicionários registram, mas que ninguém mais conhece. Tais expressões enriquecem

os relatos cotidianos, experiências de pessoas comuns, dos oprimidos, dos

esquecidos que possuem como pano de fundo a “Velha Goiás”:

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“Foi a velha Honorata quem acabou de criar o sobrinho, quando a mãe morreu e deixou o moleque amarelo, lombriguento, feioso e com um jeito de retardo. Deu foi muito trabalho prá Sinhá Norata. Como ela não tinha filhos e o marido já estava “em bom lugar”, tomou amizade ao sobrinho e fez o possível para ele arribar, e arribou mesmo. Arribou e entrou na escola taludo.” (CORALINA, 2006, p. 31)

Como observa Lapa, “as palavras se encontram subordinadas a uma escala de

valores expressivos” (LAPA, 1977, p. 2), ou seja, pode-se acrescentar uma carga

emotiva à simples comunicação de um fato.

Partindo disso, o valor expressivo que se lhes atribui permite trabalhar-se com

elas das mais variadas formas, porém, vale lembrar que o uso também está

subordinado às regras impostas pela norma, mas sempre existe a variação individual

dentro de qualquer grupo social, pois, por mais que se aceitem os limites e as

imposições da sociedade onde se vive, o poeta dificilmente perderá sua originalidade,

sua visão de mundo e o desejo de expressá-las, usando as palavras conforme lhe

parecer melhor. Lapa nos confirma:

“As palavras suscitam em nós as imagens das coisas a que se referem; mas como essas coisas podem revestir vários aspectos, cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto pessoal, aquele que particularmente lhe interessa.” (LAPA, 1977, p. 4)

Nos fragmentos do conto a seguir, “As Cocadas” (CORALINA, 2002, p. 85-86),

cujo texto na íntegra se encontra em anexo neste trabalho, encontramos o respeito às

regras e um alto teor de emoção e sentimento, retratando suas sensações intimistas,

já que o enunciador critica as tradições, a rigidez dos costumes, a obediência à custa

de permanente ameaça de castigos, a supressão das vontades e, como resposta, o

sentimento de revolta. Partindo de uma situação corriqueira, comum no passado, o

conto é uma narrativa em primeira pessoa, curta, direta e, ao mesmo tempo, detalhista

e dolorida, misturada com uma revolta contida sobre uma menina que ajuda a prima na

preparação de cocadas. Porém, no momento de ganhar a recompensa pelo trabalho,

muitas cocadas, seu desejo frustra-se, pois a prima lhe oferece apenas dois doces que

não satisfazem sua imensa necessidade.

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As Cocadas Eu devia ter nesse tempo dez anos.[...] Tinha ajudado a fazer aquela cocada.[...] Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma sentada oito, dez, mesmo. [...] De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. [...] Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro. (VERAS, 2002, p.85-86)

A decepção do enunciador ao receber apenas duas cocadas, quando gostaria

de comer oito ou até dez, é evidenciada pelo numeral dois e intensificada,

ironicamente, pelo o advérbio só e pela pontuação que sugerem o quão perplexo ficou

ao receber tão pouco diante do que esperava.

[...] Duas cocadas só... [...]

O enunciador deseja tanto aquelas cocadas que as personifica a ponto de vê-

las dançarem em sua frente:

[...] De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente.

A revolta sentida pelo enunciador transforma-se em dor, por não ter sido

corajoso para expressar sua necessidade, deixando-se dominar pelo medo. O uso dos

adjetivos “decidida, resoluta e malcriada”, e “cínica” permite inferir o tratamento para

quem quebrasse as regras impostas pela sociedade vigente. Esses adjetivos remetem

à ideia de como as pessoas consideravam o enunciador, embora nem todos os

vocábulos sejam negativos, tais como “decidida e resoluta”. Numa época de educação

rígida, as futuras mulheres portadoras dessas qualidades não eram bem aceitas, o

que torna os adjetivos citados verdadeiros insultos.

[...] “Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.” (VERAS, 2002, p.85-86).

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Cora Coralina possuía suas peculiaridades, o seu próprio modo de escrever

poesia e contos. Ela não escrevia com a erudição dos moldes parnasianos, pois fazia

questão de mostrar sua liberdade de expressão, inserindo a espontaneidade da língua

falada sem deixar de marcar seus escritos com um forte lirismo como foi observado no

conto “As Cocadas”.

Por meio dos gêneros híbridos, em que se mesclam a narrativa, a subjetividade

e as manifestações dramáticas, Cora escreve poemas que levam o interlocutor a

refletir sobre questões que envolvem as classes menos favorecidas como os menores

abandonados, a mulher roceira e as prostitutas, valendo-se de uma linguagem

admiravelmente expressiva.

[…] “não escrevo jamais de forma consciente e raciocinada, e sim Impelida por um impulso incontrolável. Sendo assim, tenho a consciência de ser autêntica.” (CORALINA, 2009, p. 226) [...] “Vive dentro de mim A mulher da vida. Minha irmãzinha... Tão desprezada, Tão murmurada... Fingindo alegre seu triste fado.”

Além do uso de versos livres, pode ser observada também uma forte

característica em sua obra – um enunciador que constrói um ethos irreverente e crítico

aos conceitos da sociedade da época.

[…] “A rua… a rua!... (Atração lúdica, anseio vivo da criança, Mundo sugestivo de maravilhosas descobertas) - proibida às meninas do meu tempo. Rígidos preconceitos familiares, Normas abusivas de educação - emparedavam.” (CORALINA, 2008, p. 95)

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Segundo Denófrio, também se pode observar o uso de palavras em liberdade

como um “auxiliar poderosíssimo”, não se prendendo a regras preconcebidas,

terminadas sempre com um ponto final.

[...] “As pragas todas, conluiadas. Carrapicho. Amargoso. Picão. Marianinha. Cururu-de-espinho Pé de galinha. Colchão.” (CORALINA, 2006, 162)

Assim, pode-se perceber a influência do Modernismo na obra coraliniana na

questão da ruptura dos gêneros como o que se observa nas obras de Oswald de

Andrade e Mário de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros, grandes contribuidores

de poder inventivo à literatura brasileira.

2.2.1. Cântico

De uma forma geral, cântico refere-se a toda composição poética destinada ao

canto. Segundo Massaud Moisés, o cântico resiste a uma conceituação precisa, ou

seja, principia por ser um canto religioso, em louvor a Deus. Hoje, é um hino amoroso

em que transparece um sentimento de adoração, de culto a um ente querido, levado à

divindade, ou seja, toda espécie de canção que transpareça uma paixão vibrante.

Apesar de Cora Coralina nomear um conto como “cântico”, o texto não segue a

estética que o gênero requer. Percebemos que está mais ligado à temática do que,

necessariamente, ao gênero.

Esse aspecto será mais desenvolvido na análise do “Cântico da Volta”, em que

o enunciador evidencia a paixão por sua casa, por sua cidade já no título do conto.

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CAPÍTULO 3: ENUNCIADORES E ENUNCIAÇÃO

Neste capítulo, serão discutidas a presença de diferentes enunciadores e

consequentes níveis de enunciação na obra coraliniana, que ora é Ana Lins, ora

Aninha, ora Cora Coralina, ora outros enunciadores anônimos.

No conjunto da obra percebe-se a ocorrência de diferentes enunciadores que

revelam e ocultam um “eu” que se propõem, ao mesmo tempo, enunciador

descomprometido e biográfico.

Ana, mulher libertária, não se conformava com o conservadorismo que a

sociedade lhe impunha. Assim, ancorada em suas memórias, para se posicionar

contra esse sistema, usou a poesia para denunciar suas angústias e aflições, mas a

usou também para expressar sua alegria e sua ligação com suas origens.

[…] Aninha, impressionada, escreve uma crônica a respeito [da aparição do Cometa Halley, em maio de 1910] e leva para o Dr. Acácio avaliar e decidir se vale a pena encaminhar ao professor Brasil, que tem o semanário local. Aprovada por ambos, sai num domingo. Mas, ainda aí, a jovem não tem coragem de colocar o seu verdadeiro nome e entabula com o professor a escolha de um pseudônimo, que acaba adotando definitivamente: Cora. Poucos ficam sabendo realmente quem é a autora do artigo, porém são unânimes: - Está muito bom. [...] Acrescenta Coralina ao Cora, pois acha que soa melhor. (TAHAN, 2002, p. 48,49)

Ela adotou, então, o pseudônimo de Cora Coralina, sugerindo uma forma de

resistência, já que, ocultando seu nome oficial, poderia ter sua criação livre de rótulos

e preconceitos a uma mulher que ocupou por tão pouco tempo os bancos escolares,

dona de casa e pela própria condição de ser mulher.

Segundo Maingueneau, por escritor ou sujeito falante, temos o responsável por

desempenhar o papel de produtor do enunciado, o indivíduo cujo trabalho físico e

mental permitiu produzir o enunciado.

A escritora, Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, é a instância que o texto

coloca como responsável por sua enunciação.

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O pseudônimo é o corte que o discurso literário estabelece entre a instância

produtora, Ana, e a que assume a enunciação, Cora Coralina. (MAINGUENEAU,

1996, p. 87).

“Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nasceu em Vila Boa de Goiás, 20 de agosto de 1889.” (CORALINA, 2007, p. 5)

O que para Maingueneau é escritor, para Ducrot é o autor empírico.

O sentido do enunciado, segundo Oswald Ducrot, é polifônico. O sujeito num

enunciado não é único, ao contrário, contém pelo menos três vozes: sujeito empírico,

locutor (L) e enunciador (E). O sujeito empírico é o autor efetivo de um enunciado e,

portanto, não é objeto de análise; o locutor é o responsável pelo enunciado; e o

enunciador é o responsável pelos pontos de vista nele expressos. Os enunciadores

são argumentadores.

Portanto, Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas é distinto do locutor, Cora

Coralina, que é o responsável pelo enunciado e, sendo assim, é ele quem deixa as

suas marcas de subjetividade pelo texto, mesmo que ambos se coincidam

habitualmente no discurso oral. (DUCROT, 1987, p. 182)

[...] Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado. Preconceitos de classe. Preconceito de cor e de família. Preconceitos econômicos. Férreos preconceitos sociais.[...] (CORALINA, 2002, p. 84)

O emprego da língua é entendido como um mecanismo total e constante que,

de um modo ou de outro, afeta a língua inteira (BENVENISTE, 1989, p. 82).

Relacionada com o emprego da língua está a definição de enunciação como sendo o

colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização.

Assim, o texto só existe a partir do ato de enunciação, que se materializa no

enunciado, cujo sentido é inscrito pelo locutor que articula a linguagem de acordo com

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suas intenções. É o ato de apropriação da língua que introduz aquele que fala na sua

fala, ou seja, o ato por meio do qual se constrói a relação homem-mundo, mediada por

ela.

De acordo com Benveniste, o texto sempre espera por uma interpretação, pois

locutor e alocutário referem e correferem e ele ressalta: “o que escreve se enuncia ao

escrever e, no interior de sua escrita, ele faz os indivíduos se enunciarem”

(BENVENISTE, 1989, p. 90).

O locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, por meio deste, a

enunciadores cujos pontos de vista e cujas atitudes ele organiza e assimila, prevendo

um outro em situação de discurso. "Direi que o enunciador está para o locutor assim

como a personagem está para o autor" (DUCROT, 1987, p. 192). O locutor pode ser

comparado a um narrador, que é dado como a fonte de um discurso. Mas as atitudes

expressas no discurso são atribuídas a enunciadores que mostram seus pontos de

vista no texto, são as figuras responsáveis pela produção de sentidos no enunciado e

mostram o ponto de vista de onde se posiciona o locutor.

Os poemas de Cora abarcam vários assuntos como a crítica à sociedade da

época de sua infância, a vida do campo, da cidade, as coisas cotidianas, a situação da

mulher, as memórias dos becos de Goiás, entre outros. Assim, Cora Coralina elege

vários enunciadores, identificados por marcas linguísticas e discursivas, contribuindo

com a construção de sentido de seus poemas e contos.

Segundo Benveniste, ao se apropriar individualmente do aparelho formal da

língua, o locutor enuncia sua posição com marcas linguísticas específicas. Como tal,

ele implanta o outro, o alocutário, diante de si. Cada produção de discurso constitui um

centro de referência interno. Nele emergem marcas de pessoa (relação eu-tu), de

ostensão, de espaço e de tempo, em que eu é o centro da enunciação.

É somente pela enunciação que certos signos passam a existir. Assim, o locutor

instaura um enunciador que prevê um outro em uma situação discursiva. Esse

enunciador, identificado pelo pronome eu no caso reto ou oblíquo, elíptico ou não; pela

desinência verbal ou pelas marcas temporais, é a manifestação, por excelência da

subjetividade e do centro da enunciação, que faz as escolhas lexicais, seja em sua

estrutura, seu posicionamento no interior da frase ou em seu som, de modo que

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consiga envolver o seu coenunciador em uma situação de enunciação. A seguir, será

apresentado um quadro, no qual estarão exemplificados alguns enunciadores

encontrados na obra da autora:

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ESCRITOR(Maingueneau)/

AUTOR (Ducrot )

LOCUTOR

ENUNCIADOR

LOCALIZAÇÃO

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas CORA CORALINA Menina rejeitada [...]Tanta coisa me faltou. Tanta coisa desejei sem alcançar. Hoje, nada me falta, me faltando sempre o que não tive. Era eu uma pobre menina mal amada. Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento. Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente irreversível. Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha. (CORALINA, 2007, p.119)

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas CORA CORALINA Defensor dos excluídos [...]Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. [...] Vive dentro de mim A mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo alegre o seu triste fado. (CORALINA, 2006, p. 31-32)

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ESCRITOR(Maingueneau)/

AUTOR (Ducrot )

LOCUTOR ENUNCIADOR LOCALIZAÇÃO

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas CORA CORALINA Elemento da natureza – humilde, pequeno

[...] Senhor, nada valho Sou a planta humilde dos quintais pequenos E das lavouras pobres Meu grão perdido por acaso Nasce e cresce na terra descuidada Ponho folhas e arte Se me ajudardes, Senhor Mesmo planta do acaso Solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos O grão perdido inicial Salvo por milagre Que a terra fecundou. [...] (CORALINA, 2006, p. 156)

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas CORA CORALINA Autobiográfico Nasci numa rebaixa de serra entre serras e morros. “Longe de todos os lugares”. Numa cidade de onde levaram O ouro e deixaram as pedras. Junto a estas decorreram a minha infância e adolescência. (CORALINA, 2002, p. 81)

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas CORA CORALINA Menina inconformada Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. [...]Vi quando foi batida e estendida na tábua.Vi quando foi cortada em losangos [...] (CORALINA, 2002, p. 85)

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Chegamos, então, à noção de ethos. De acordo com Amossy (2008),

qualquer ato de tomar a palavra implica, necessariamente, “a construção de uma

imagem de si” (2008, p. 9), ou seja, a construção da imagem do locutor daquele

discurso. Independentemente de tratar de discurso oral ou escrito, formal ou

informal, a imagem do locutor será construída por meio dele. Além disso, diz a

autora, a apresentação de si por meio do discurso acontece de forma deliberada,

proposital ou não. Dessa forma, o estilo, as competências linguísticas e

enciclopédicas, as crenças implícitas são elementos suficientes para a

representação de si mesmo via discurso:

a maneira de dizer autoriza a construção de uma verdadeira imagem de si, na medida que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relação entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. (AMOSSY, 2008, p. 17).

A construção de si no discurso não é uma representação estática e

delimitada, mas, antes, uma forma dinâmica, construída pelo locutário por meio das

escolhas feitas pelo locutor.

Essa imagem de si construída com o objetivo de garantir o sucesso do ato

oratório era designada pelos antigos como ethos.

Vem de Aristóteles, na Retórica, o conceito de ethos traduzido em português

por “caráter”. Assim diz Aristóteles:

“Persuade-se pelo caráter (pelo ethos) quando o discurso é de tal natureza que torna o orador digno de fé, porque as pessoas honestas nos inspiram uma confiança maior e mais imediata. [...] Mas é necessário que esta confiança seja o efeito do discurso, não de um juízo prévio sobre o caráter do orador.” in (AMOSSY, 2008, p.70).

É nesses termos que Ducrot (1984), apud Ruth Amossy (2008, p. 15), afirma

que:

“Analisar o locutor L no discurso consiste não em ver o que ele diz de si mesmo, mas em conhecer a aparência que lhe conferem as modalidades de sua fala.” É nesse ponto preciso que Ducrot recorre à noção de ethos: “O ethos está ligado a L, o locutor como tal: é como origem da enunciação que ele se vê investido de certos caracteres que, em contra-partida, tornam essa enunciação aceitável ou recusável”.

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Ducrot integra o ethos em sua teoria polifônica:

Um dos segredos da persuasão tal como analisada a partir de Aristóteles é, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favorável, imagem que seduzirá o ouvinte e captará sua benevolência. Esta imagem do orador é designada como ethos. É necessário entender por isso o caráter que o orador atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua atividade oratória. Não se trata de afirmações auto-elogiosas que ele pode fazer de sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afirmações que podem ao contrário chocar o ouvinte, mas da aparência que lhe confere a fluência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, os argumentos (DUCROT, 1987, p. 188-189).

Assim, o ethos age de maneira lateral, implica uma experiência sensível do

discurso, mobilizando a afetividade do destinatário.

É, pois, de acordo com essa consideração de Ducrot, que Maingueneau

(2005) desenvolve uma noção de ethos que, ao afastá-lo da retórica clássica, insere-

o em uma concepção que o considera como presente em todas as manifestações

discursivas:

Minha primeira deformação (alguns dirão ‘traição’) do ethos consistiu em reformulá-lo em um quadro da análise do discurso que, longe de reservá-lo à eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, propõe que qualquer discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de um tom que indica quem disse. (MAINGUENEAU, 2005, p. 72).

Assim, de acordo com tal citação, percebemos que, para Maingueneau, o

ethos constitui-se em uma dimensão discursiva que faz parte da identidade de um

posicionamento discursivo. Dessa forma, pode-se dizer que o ethos é mostrado no

discurso por meio das escolhas do locutor, ou seja, por meio de sua maneira de se

exprimir.

Voltando a Benveniste (1989, p. 87), o que caracteriza a enunciação é a

acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja real ou imaginado, individual

ou coletivo, que se pode denominar quadro figurativo da enunciação. Assim, a

asserção, a interrogação, a intimação e ainda algumas modalidades formais como

os modos (optativo, subjuntivo) também são usadas pelo enunciador que, ao se

enunciar, influencia o comportamento do coenunciador.

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Percebemos isso no fragmento a seguir que, com a escolha do uso dos

verbos na forma imperativa, o enunciador constrói um ethos de alguém que não se

conforma em ser derrotado e impulsiona seu coenunciador a reagir às situações

adversas e continuar a lutar sem perder a visão das singularidades da vida:

Não te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. [...] (CORALINA, 2007, p.148).

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CAPÍTULO 4: CAMINHO DAS PEDRAS

Conforme Lapa, em volta de certas palavras, se estabelece uma atmosfera

fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente,

palavras mais evocadoras do que outras (LAPA, 1991, p. 12). Confirmamos isso

com a observação do vocábulo “pedra” que apresenta um valor expressivo

significante na obra coraliniana. No singular ou no plural, ela aparece inúmeras

vezes em poemas e contos e chegou-se a dizer que, em sua poesia, só havia pedra.

As imagens metaforizadas pelo vocábulo evocam imobilidade, dificuldades,

dor, mas também superação e resistência.

As “pedras” resistiram e testemunharam diferentes épocas, sustentaram a

vida da cidade onde Cora nasceu e são o elo entre o presente e o passado: sua

infância, sua adolescência, sua maturidade, seu retorno a Goiás. Daí a identificação

com sua trajetória, que resistiu a todas as adversidades e voltou para reencontrar

suas origens: foi quando ouviu os ecos do passado, voltou para sua cidade e criou

um de seus enunciadores: “Aninha”.

As pedras assumem vários sentidos, dentre eles, os de:

Acusação, rejeição

A rejeição é a ausência de empatia, de credibilidade, é a ausência do amor,

do reconhecimento. É um sentimento que, muitas vezes, pode paralisar o outro

quanto a crescer, a continuar. O enunciador dos trechos abaixo, por meio de suas

escolhas lexicais, constrói o ethos de alguém que foi incompreendido, acusado e

rejeitado.

[...] Tudo deserto. A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos me atiram pedras. (CORALINA, 2002, p. 94)

[...]

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Não, ela não. Menina atrasada da escola da mestra Silvina... Alguém escreve para ela... Luís do Couto, o primo. Assim fui negada, pedrinha rejeitada, até a saída de Luís do Couto para São José do Duro, muito longe, divisa com a Bahia. [...] (CORALINA, 2007, p. 116)

Dificuldades

As pedras estiveram evidenciadas em vários poemas da obra, por um

enunciador que não teve reconhecimento de seu talento, que decidiu sair e

encontrar algo novo, que passou quarenta e cinco anos longe de sua cidade natal,

lutando pela sobrevivência, até a decisão de retornar e retomar a vida de onde a

deixou.

[...] Mãos tenazes e obscuras feridas na remoção de pedras e tropeços, quebrando as arestas da vida. Mãos alavancadas Na escava de construções inconclusas. Mãos pequenas e curtas de mulher que nunca encontrou nada na vida. Caminheira de uma longa estrada. Sempre a caminhar. Sozinha a procurar, o ângulo prometido, a pedra rejeitada. (CORALINA, 2002, p. 63-64) [...] Entre pedras cresceu minha poesia. Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores. (CORALINA, 2002, p. 11)

Resistência

De acordo com Ecléa Bosi (Apud DENÓFRIO, 2006, p. 153), as pedras têm

fundamental importância na memória dos velhos. As lembranças estão ligadas às

pedras das cidades em que viveram, estando em seus afetos de uma maneira muito

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arraigada. O simples fato de haver um desnível, uma forma diferente de um simples

calçamento ou o alicerce de construções, pode levar a lembranças e situações

vividas anteriormente.

As pedras possuem a ideia de pedra fundamental, ou seja, suas origens são o

elemento essencial que sustentaram o enunciador em sua trajetória. Como as

pedras são o fundamento de uma construção, são a base sólida de que ela

necessita para chegar à altura programada, sem cair. Suas origens fazem o elo

entre o presente e o passado, algo que resistiu ao tempo. Assim como as pedras, o

enunciador do poema a seguir resistiu a todas as adversidades, podendo retornar às

suas raízes.

A casa da escola inda é a mesma. - Quanta saudade quando passo ali! Rua Direita, nº 13 Porta pesada, Escorada com a mesma pedra Da nossa infância. (CORALINA, 2006, p. 63)

Voltei. Ninguém me conhecia. Nem eu conhecia alguém. Quarenta e cinco anos decorridos. Procurava o passado no presente e lentamente fui identificando a minha gente, Minha escola primária. A sombra da velha Mestra A casa, tal como antes. Sua pedra escorando a pesada porta. (CORALINA, 2007, p. 135)

Superação

Superação é triunfar sobre as dificuldades. A mais evidente prova de sua

superação foi a decisão de voltar e recomeçar. A partir das experiências acumuladas

pelos obstáculos enfrentados, o enunciador dos poemas a seguir foi capaz de dizer

“não” ao primeiro sentido dado à palavra “pedra”, não permitindo que a rejeição o

paralisasse. Em sua trajetória, não se deixou amargar; pelo contrário, lutou

bravamente pelo sustento de sua família, não deixando o que mais amava fazer:

escrever. Assim, como as pedras, o enunciador eternizou os seus versos.

[...] escuto a voz das pedras: Volta... Volta... Volta... [...]

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(CORALINA, 2002, p. 95)

Ajuntei todas as pedras Que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta E no alto subi. [...] Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude Dos meus versos. (CORALINA, 2002, p. 11) [...] Foi assim que cheguei a este livro sem referências a mencionar. [...] Apenas a autenticidade da minha poesia arrancada aos pedaços do fundo da minha sensibilidade, e este anseio: procuro superar todos os dias. Minha própria personalidade renovada, despedaçando dentro de mim tudo o que é velho e morto. Luta, a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. (CORALINA, 2002, p. 84)

Ao avaliarmos os fragmentos acima citados, percebemos que o vocábulo

“pedra”, quando ligado à resistência, denota a ativação da memória, possuindo a

característica de narratividade, enquanto que, quando metaforiza as dificuldades e

superação, possui um aspecto lírico, mostrando que a vida não precisa ser amarga

por conta das adversidades encontradas ao longo do caminho.

Este livro foi escrito por uma mulher que no tarde da Vida recria e poetiza sua própria Vida. (CORALINA, 2006, p. 27)

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4.1 O Chamado das Pedras

Segundo Lakoff (1980), as expressões metafóricas linguísticas que usamos

refletem os conceitos metafóricos que regem nosso pensamento, nossas atividades.

Assim, esses conceitos dirigem a maneira como nos vemos e como nos

comportamos e nos relacionamos com as outras pessoas e com o mundo. (LAKOFF,

1980, 2002, p. 45, 46)

Nesta análise, será feita uma explanação sobre os traços estilísticos que o

enunciador de Cora Coralina retrata, a partir de suas memórias, o fato que o fez

voltar e retomar sua vida do ponto em que um dia deixou, para assumir o risco de

percorrer um caminho que lhe era desconhecido: “O Chamado das Pedras”. Saiu

sozinho e, durante seu percurso, desiludiu-se por não encontrar aquilo que esperava

e também por não possuir ninguém que o amparasse. Até que ele obedece ao

“chamado das pedras” e decide voltar às suas origens para o reencontro consigo

mesmo.

O poema é construído com verbos no presente do indicativo que ganham

especial expressividade, já que o enunciador usa esse tempo verbal para

presentificar o passado. Segundo Vargas (2011, p. 38), isso é possível, pois a sua

intenção é retratar com exatidão o grau de seu sentimento. Lapa (1998) acrescenta

que é como aproximar de nós o passado, como uma lente que nos faz ver melhor os

objetos distantes. E, ainda, que “o nosso espírito tende a tornar presentes, vividos

atualmente, fatos que se deram no passado ou se sucederão no futuro”. (LAPA,

1998, p.184, 190).

O enunciador procura representar com exatidão o que se passou, para que o

coenunciador participe da construção de sentido daquilo que, para ele, deixou

marcas até o momento da enunciação. Assim, o presente do indicativo dos verbos

ganha um grande valor expressivo, pois elimina a distância entre o coenunciador e o

fato descrito pelo enunciador.

Por meio do uso de traços lingüísticos, tais como a referenciação, a sintaxe e

o som, o tema sobre a busca intimista do enunciador é desenvolvido, contribuindo

com a construção de sentido do poema.

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50

O Chamado das Pedras

A estrada está deserta.

Vou caminhando sozinha

Ninguém me espera no caminho

Ninguém acende a luz

5 A velha candeia de azeite

de há muito se apagou

Tudo deserto

A longa caminhada.

A longa noite escura.

10 Ninguém me estende a mão.

E as mãos atiram pedras.

Sozinha...

Errada a estrada.

No frio, no escuro, no abandono.

15 Tateio em volta e procuro a luz.

Meus olhos estão fechados.

Meus olhos estão cegos.

Vêm do passado.

Num bramido de dor.

20 Num espasmo de agonia

Ouço um vagido de criança.

É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...

Na estrada deserta

25 Sempre a procurar

o perdido tempo que ficou pra trás

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51

Do perdido tempo.

Do passado tempo

escuto a voz das pedras:

30 Volta... Volta...Volta...

E os morros abriam para mim

Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas

Que ouvia na distância

35 Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou

Das velhas cumeeiras:

Porque não voltou...

Porque não voltou...

40 - E a água do rio que corria

Chamava... chamava...

Vestida de cabelos brancos

Voltei sozinha à velha casa deserta.

Como já citado neste estudo, as pedras têm fundamental importância na

memória dos velhos (BOSI, 1994, p. 452). As lembranças estão ligadas às pedras

das cidades em que viveram, estando em seus afetos de uma maneira muito

arraigada, estabelecendo um elo entre o presente e o passado. Assim, percebemos

a origem do enunciador metaforizada pelo vocábulo “pedras” já no título do poema.

É de suas origens o chamado:

O Chamado das Pedras

O enunciador metaforiza sua vida com a expressão “a estrada está deserta”.

A escolha do substantivo “estrada” para representar sua jornada sugere o próprio

discorrer da vida e o adjetivo “deserta” mostra a total ausência de vigor e

Page 52: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

52

entusiasmo, além da falta de companhia. Ele pode não estar afastado de pessoas,

mas abandonado por aquelas que fazem sentido para ele:

A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha.

Notamos, também, que a sonoridade da frase conota essa solidão e tristeza.

A estrutura melódica da frase reforça a cadência rítmica, contribuindo para a

construção de sentido, já que o acento de intensidade recai sobre as sílabas que

sugerem o quão melancólico e solitário encontra-se o enunciador. Podemos

observar no 1º. verso que também as vogais orais /a/ e /ɛ/ em “estrada” e em

“deserta” dão amplidão aos vocábulos, expressando o quão extensa e árida está sua

vida:

A estrada está deserta.

Ele tem consciência de não poder contar com apoio, mas, naquele momento,

toma uma atitude e se empreende em seu destino, aceitando o risco de caminhar

sozinho, para, talvez, mudar a história. De acordo com Maingueneau (1996, p. 42) “o

aspecto verbal constitui uma informação pela qual o sujeito enunciador encara o

desenrolar de um processo, seu modo e manifestação no tempo”, por isso, o uso da

perífrase com o presente do indicativo do verbo ir na primeira pessoa + o gerúndio

do verbo caminhar, tempo usado uma única vez no poema, mostra que a ação se

inicia, concomitantemente à sua decisão de sair e se prolonga por todo o seu

percurso. O uso da primeira pessoa marca mais uma vez sua solidão, ninguém o

acompanha, ele está isolado:

A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha.

O vocábulo “sozinha” ganha especial expressividade nessa construção, e

mostra uma característica do enunciador, já que, segundo Larbaud (apud LAPA,

1998, p. 9), a palavra “só” exprime, na sua concisão desesperada, o extremo da

solidão e do abandono. Quando se lhe acrescenta o diminutivo -zinho, esse sufixo

não é apenas lógico, exprime, admiravelmente, a atitude do espírito dobrado sobre

si próprio, na solidão (LAPA, 1998, p. 9). Ele se sente extremamente só.

Page 53: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

53

A combinação da fricativa /v/, das oclusivas /k/ e /d/ com a nasalidade das

vogais /I/ e /ã/ do verbo no gerúndio alude ao movimento de caminhar e das

dificuldades encontradas durante todo o percurso, já que o vocábulo inicia e termina

com consoantes oclusivas sugerindo as dificuldades:

A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha.

O uso da anáfora nos versos seguintes com o uso do vocábulo “ninguém”

intensifica a consciência dessa solidão, pois percebemos que a sequência das

vogais nasais /I/ e /ãj̃/ exprimem a tristeza em que se encontra o enunciador:

Ninguém me espera no caminho. Ninguém acende a luz.

A única certeza que o enunciador possui é que está só e sem esperança.

Essa situação é metaforizada por “velha candeia de azeite”. O substantivo concreto

candeia de azeite, aqui, tem um valor abstrato, intensificando sua expressividade,

sugerindo que a alma ousada e esperançosa já não existe mais. O uso do pretérito

perfeito, que indica uma ação completa, confirma que a esperança não existe mais.

O enunciador tem clareza de seu estado de espírito. É o que nos sugerem os versos

5 e 6 dessa estrofe, já que o azeite, sua esperança, combustível para que a candeia

permaneça acesa, acabou há muito tempo, pois ela se apagou.

A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha. Ninguém me espera no caminho. Ninguém acende a luz. A velha candeia de azeite de há muito se apagou.

A cadência dos versos é marcada por ditongos decrescentes que também

sugerem o extinguir da luz, ou seja, o encerrar de sua esperança, além de ser uma

frase declarativa que denota a intenção comunicativa do enunciador em afirmar que

a esperança se acabou:

A velha candeia de azeite

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54

de há muito se apagou.

Na segunda estrofe, o enunciador evidencia sua solidão iniciando o verso

com o pronome indefinido tudo, que não só engloba todas as circunstâncias da vida,

mas também mostra a insegurança do enunciador em sua trajetória. Como na

estrofe anterior, o enunciador usa a anáfora para enfatizar quão dura e difícil é a sua

trajetória. Ele não enxerga o fim. Isso é comprovado pela escolha lexical longa, na

qual o acento de intensidade recai sobre a primeira sílaba, e também pela

combinação na nasal /õ/ com a lateral alveolar /l/, sugerindo a extensão da

caminhada:

Tudo deserto. A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos atiram pedras.

Em todos os versos da segunda estrofe, percebemos a aliteração das

consoantes oclusivas /t/ e /d/ que sugerem a dificuldade, os obstáculos vividos pelo

enunciador:

Tudo deserto. A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos atiram pedras.

O vocábulo “pedra” aparece pela primeira vez no poema metaforizando a

rejeição, as calúnias e difamações sofridas pelo enunciador em sua investida, ou

seja, as pessoas que poderiam ajudá-lo foram as mesmas que o difamaram:

Tudo deserto. A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos atiram pedras

Page 55: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

55

A reiteração do vocábulo sozinha, no início da segunda estrofe, associada às

reticências e à pontuação dos versos seguintes mostram o lamento do enunciador,

pois imprimem ao texto pausa e silêncios, sugerindo que o enunciador faz uma

reflexão sobre sua escolha:

Sozinha... Errada a estrada. No frio, no escuro, no abandono. Tateio em volta e procuro a luz. Meus olhos estão fechados. Meus olhos estão cegos. Vêm do passado.

A expressividade do adjetivo errada é intensificada pela sua inversão no início

da frase, sugerindo que ele está errante na vida, sem destino, sem a certeza de que

a escolha foi certa. A aliteração das oclusivas, /t/ e /d/ também confirmam a

dificuldade enfrentada por essa escolha:

Sozinha... Errada a estrada.

A circunstância na qual se encontra é evidenciada ganhando um grande valor

expressivo pela enumeração do terceiro verso que vem acompanhada pela

reiteração da preposição em + o: no frio, no escuro e no abandono, acompanhadas

de substantivos. Formam adjuntos adverbiais, remetendo-nos à situação de

desproteção, de insegurança em que o enunciador está imerso, já que denotam a

ausência de vida, de alegria (LAPA, 1998, p. 234):

No frio, no escuro, no abandono. Tateio em volta e procuro a luz.

A seleção lexical combinada com a estrutura melódica da frase confirma a

expressividade discursiva na construção de um ethos desesperançoso e desiludido,

já que os acentos tônicos recaem sobre sílabas que intensificam esse tom. Também

no aspecto fônico, os sons fechados corroboram a ideia de escuridão, solidão e

tristeza vivenciadas pelo enunciador:

No frio, no escuro, no abandono.

Page 56: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

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O enunciador refere-se aos olhos como fechados e cegos, metaforizando sua

situação estática, sem perspectiva, intensificando, assim, sua desesperança. Ele

não vê perspectiva de melhora:

No frio, no escuro, no abandono. Tateio em volta e procuro a luz. Meus olhos estão fechados. Meus olhos estão cegos. Vêm do passado.

Mesmo com um sinal de vida, o nascimento de seu filho, sua desesperança

continua. Isso fica claro com a reiteração da contração da preposição “em” com o

artigo “um” - “num”. Neste emprego, a preposição “em” relaciona-se a algo ou a

alguém que está junto de, no interior de um determinado local. (HOUASIS, 2001,

p.2035). Seus gritos de dor misturam-se com o gemido da criança:

Num bramido de dor. Num espasmo de agonia Ouço um vagido de criança. É meu filho que acaba de nascer.

A expressividade sonora da assonância da vogal /i/, combinada com os sons

nasais nos dois primeiros versos dessa estrofe, marcam o eco da agonia do

enunciador misturado ao gemido da criança:

Num bramido de dor. Num espasmo de agonia

O sentido do segundo verso dessa estrofe só é completado no verso

seguinte, já que possui um ritmo encadeado pelo enjambement, sugerindo a

intensidade da agonia:

Num bramido de dor. Num espasmo de agonia Ouço um vagido de criança. É meu filho que acaba de nascer.

A pontuação também chama a atenção. O ponto final do primeiro verso

sugere que a dor cessa, porém o enjambement do segundo verso sugere também a

continuidade da agonia, que não se encerra nem com o vagido, nem com o

nascimento de seu filho:

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57

Num bramido de dor. Num espasmo de agonia Ouço um vagido de criança. É meu filho que acaba de nascer.

Mais uma vez, o vocábulo “sozinha” acompanhado pelas reticências,

separando-o do advérbio, marcam uma pausa para a reflexão do enunciador: sua

trajetória continua solitária, sem ajuda e sem apoio de ninguém, metaforizada pelo

sintagma na estrada deserta. O uso do advérbio sempre, mostra que ele faz desta

procura uma busca constante de respostas que ficaram em seu passado:

Sozinha... Na estrada deserta, Sempre a procurar o perdido tempo que ficou pra trás.

Percebe-se, também, nessa estrofe, a aliteração das consoantes oclusivas

surdas e sonoras /p/, /t/, /d/ e /k/ que corroboram essa dificuldade de se encontrar:

Sozinha... Na estrada deserta, Sempre a procurar o perdido tempo que ficou pra trás.

Segundo Martins (2012, p. 209), a inversão é o processo de colocar em

evidência, com a intenção de dar ênfase, um termo que se deseja privilegiar. Assim,

a inversão na ordem direta da frase no primeiro verso da sexta estrofe, iniciando-se

com a reiteração do sintagma perdido tempo da estrofe anterior e, com o acréscimo

da preposição de + o artigo o, reforçam a procedência de seu sofrimento. Vem do

passado a origem de seu pesar, sugerindo que não valeu a pena sua decisão de

iniciar, sozinha, sua caminhada:

Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras:

O conflito vivido pelo enunciador entre o presente e o passado leva-o, agora,

a dar ouvidos à sua consciência metaforizada pelas “pedras”, que clamam pela sua

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58

volta. “As pedras”, aqui, assumem uma outra conotação, elas estão ligadas à sua

essência, aos seus valores, às suas raízes, à sua terra natal:

Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras:

A construção da sétima, oitava e nona estrofes, com versos iniciados pela

conjunção “e”, intensifica seu sentimento, associando o polissíndeto a uma ladainha

que se repete constantemente, exprimindo a linguagem da alma de seu enunciador

que, aos poucos, vai internalizando o chamado de sua consciência às suas origens.

Volta... Volta... Volta... E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais.

A reiteração do verbo voltar no imperativo, associada à pontuação, sugere

não uma ordem insistente, mas um clamor, como única condição para retomar a

própria vida, de reaver a esperança:

Volta... Volta... Volta... E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais.

A ligação com suas origens é tão grande e de fundamental importância para o

enunciador que a segurança em estar num espaço que lhe é familiar é metaforizada

pelos imensos braços vegetais. Somente o lugar de onde saiu lhe oferece esse

abrigo. O uso de um adjetivo anteposto e outro posposto embeleza e carrega de

expressividade o substantivo braços, criando uma adjetivação “sanduíche”,

remetendo à imagem dos morros de sua cidade; indicando que, lá, reencontrará

abrigo e segurança:

Volta... Volta... Volta... E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais.

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59

As marcas expressivas da assonância da vogal /i/ na oitava estrofe sugerem o

badalar dos sinos e, no último verso, como na estrofe anterior, a reiteração do verbo

“vir” no imperativo chamam-no, insistentemente, para o movimento de volta:

E os sinos das igrejas Que ouvia na distância Diziam: Vem... Vem... Vem...

Esse clamor é intensificado pela repetição do verbo voltar e vir na forma

imperativa, já que, de acordo com Teles (1970, p. 48), o objetivo da repetição é o de

ativar a imaginação e levar o leitor a prolongar em si aquele instante do ato criador

em que o esforço da intuição e da inteligência pressiona o material linguístico,

amoldando-o ao individualismo da fala, denotando a intensificação do movimento e

da continuidade da ação, além da combinação das reticências com aliteração da

consoante constritiva fricativa /v/ que sugere um tempo para o percurso de volta:

Volta... Volta... Volta...

Vem... Vem... Vem...

Os substantivos concretos pedras, os sinos, o canto das rolinhas e o barulho

do rio assumem o valor do substantivo abstrato saudade e o remetem à relação

profunda e intensa que o enunciador tem com o lugar em que passou sua infância e

adolescência, personificando-os a ponto de ouvir de todos o mesmo chamado:

volta!:

Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras: Volta... Volta...Volta... E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais. E os sinos das igrejas Que ouvia na distância Diziam: Vem... Vem... Vem... E as rolinhas fogo-pagou Das velhas cumeeiras:

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Porque não voltou... Porque não voltou... E a água do rio que corria Chamava... chamava...

O verbo dizer elíptico, o paralelismo sintático e o uso da conjunção porque

associados à pontuação, sugerem uma nova pausa para a reflexão e a explicação

da razão de estar nessa melancolia: é necessário voltar e retomar a vida do ponto

do qual partiu:

E as rolinhas fogo-pagou Das velhas cumeeiras: Porque não voltou... Porque não voltou... E a água do rio que corria Chamava... chamava...

O recurso expressivo da introdução do pretérito imperfeito em:

Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras: 30 - Volta... Volta...Volta... E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais. E os sinos das igrejas Que ouvia na distância 35 - Diziam: Vem... Vem... Vem... E as rolinhas fogo-pagou Das velhas cumeeiras: Porque não voltou... Porque não voltou... 40 - E a água do rio que corria Chamava... chamava...

faz com que o coenunciador sinta as impressões do enunciador que, para ele, são

intermináveis. E isso só é possível por meio da construção de um ethos que inicia

desesperançoso, mas que, no final, mostra-se disposto a mudar essa condição.

Quanto a essa construção, retomando Ducrot, quando integra o ethos em sua teoria

polifônica:

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61

Um dos segredos da persuasão tal como analisada a partir de Aristóteles é, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favorável, imagem que seduzirá o ouvinte e captará sua benevolência. Esta imagem do orador é designada como ethos. É necessário entender por isso o caráter que o orador atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua atividade oratória. Não se trata de afirmações auto-elogiosas que ele pode fazer de sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afirmações que podem ao contrário chocar o ouvinte, mas da aparência que lhe confere a fluência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, os argumentos (DUCROT, 1987, p. 188-189).

Assim, o ethos age de maneira lateral; implica uma experiência sensível do

discurso, mobilizando a afetividade do destinatário.

Partindo da afirmação de Lapa de que existe uma íntima solidariedade entre o

substantivo e o adjetivo e, portanto, uma impossibilidade na separação das duas

categorias, é possível compreender a adjetivação “sanduíche” em velha casa

deserta, na qual o substantivo casa está cercado de adjetivos que ganham especial

expressividade, pois nos sugerem a familiaridade com o lugar físico e a certeza de

se estar só. “Quando o adjetivo está logo depois do substantivo, tende a conservar o

valor próprio, objetivo, intelectual; quando está antes, tende a embrandecer-se,

adquirindo matização afetiva”.(LAPA, 2012, p. 126, 127)

O enunciador rende-se e volta para reencontrar a esperança perdida. Ao

inverter a ordem da frase, ele enfatiza que o tempo passou com o uso do sintagma

vestida de cabelos brancos. A sonoridade, pela aliteração da consoante constritiva

fricativa /v/, também sugere o movimento de volta e a fluidez do próprio tempo:

Vestida de cabelos brancos

Ele, então, termina seus versos com o pretérito perfeito do verbo voltar,

indicando o resultado de sua escolha, concluindo seu dever. Ao reiterar os

vocábulos sozinha e deserta, alude no final ao início de sua trajetória, sozinha e sem

ninguém.

Voltei sozinha à velha casa deserta.

Page 62: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

62

4.2 Aninha e suas Pedras

Segundo Benveniste (1989), a enunciação é um processo de apropriação no

qual o locutor se apropria do aparelho formal da língua e se enuncia. Quando o

locutor, por meio de um ato individual de apropriação da língua, enuncia, ele

implanta o outro diante de si, pois toda enunciação supõe alguém que fala para

outro alguém. “Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua”

(BENVENISTE, 1989, p. 83).

O poema é construído numa relação eu-tu, na qual o enunciador, E,

responsável pelo enunciado, dirige-se a Aninha, incentivando-a a se posicionar em

uma situação de reinvenção, de pró-atividade, de criatividade e de luta, na intenção

de transcender as circunstâncias e eternizar sua obra.

Temos, então, uma relação entre o eu e o tu que somente se produz por meio

da enunciação e que é observada pelo uso de pronomes pessoais e pela desinência

verbal da segunda pessoa do singular do indicativo e do imperativo, que comprovam

“aquele que fala” e “aquele” para quem o discurso é dirigido” (BENVENISTE, 1995,

p.250)

O enunciador mostra-se otimista e constrói um ethos de alguém que encoraja

Aninha a se posicionar e sair de uma condição de contrariedade, superando os

obstáculos e usando sua ausência para recomeçar.

O vocábulo “pedras” remete ao campo semântico das dificuldades,

metaforizando os obstáculos encontrados na vida.

Serão observados os traços expressivos no poema a partir da Estilística da

enunciação, da palavra e do som.

Aninha e suas Pedras

Não te deixes destruir...

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

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63

Recria tua vida, sempre, sempre.

5 Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

10 Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso

aos que têm sede.

As primeiras observações acerca do conceito de metáfora devem-se à

Poética de Aristóteles. Segundo Massaud Moisés (2013), no Dicionário de Termos

Literários:

[...] “ As primeiras observações acerca do conceito de metáfora consiste em transportar para uma coisa o nome da outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie para a espécie de outra, ou por analogia.[...] (MOISÉS, 2013, p. 293)

É o que se pode constatar no título do poema com a alusão do vocábulo

“pedras” às dificuldades da vida:

Aninha e suas Pedras

Ainda no título, o uso do pronome possessivo “suas” ganha especial

expressividade por sua significação não ter a ver com a posse, mas nesse contexto,

denotar a familiaridade que Aninha tem com essas dificuldades (LAPA, 1998, p.

147):

Aninha e suas Pedras

A estrofe é iniciada com um conselho que, ao mesmo tempo, é uma reflexão

em relação ao posicionamento a ser tomado. Isso pode ser comprovado pela

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entonação do primeiro verso que é intensificada pelo uso das reticências que

possuem um grande valor expressivo, já que a supressão do pensamento denota a

intenção que o enunciador deseja alcançar com seu conselho, a reflexão:

Não te deixes destruir...

De acordo com Amossy (2008), qualquer ato de tomar a palavra implica,

necessariamente, “a construção de uma imagem de si” (AMOSSY, 2008, p. 9), ou

seja, a construção da imagem do locutor daquele discurso, ou seja, seu ethos.

O uso do advérbio não no início do verso nega a possibilidade de desânimo.

A escolha lexical combinada com a estrutura melódica da frase confirma o tom de

encorajamento do enunciador, uma vez que o acento de intensidade recai sobre as

sílabas tônicas dos verbos que, modificados pelo advérbio, indicam o

posicionamento a ser tomado:

Não / te / dei / xes / des / tru / ir... 3ª 6ª

O enunciado negativo contém duas proposições, ou seja, existem dois atos

ilocutórios. O primeiro, A1, é uma assertiva quanto à fragilidade do alocutário, e o

segundo, A2, uma negação em relação ao primeiro. O locutor coloca em cena dois

enunciadores: o E1 que sustenta que o alocutário está se destruindo, pois ele está

imerso em tantas dificuldades que está propenso a se abater e o E2, que o instiga,

ou seja, o sentido de seu enunciado está ligado à sua intenção, que é de levá-lo a

reagir. O uso do verbo no imperativo implica em uma relação dinâmica e imediata do

enunciador com o seu outro, numa referência necessária ao tempo da enunciação.

Ele se apropria dos recursos linguísticos e usa a construção sintática para enunciar

sua expectativa (BENVENISTE, 1989, p. 86), ou seja, seu intuito é de

encorajamento:

Não te deixes destruir...

Quanto ao aspecto fônico, Maurice Grammont e Henri Morier (apud

MARTINS, 2012, p. 46) salientam que os fonemas apresentam potencial expressivo

de acordo com a natureza de sua articulação, mas as ideias que sugerem só se

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65

percebem quando correspondem à significação das palavras ou da frase, ou seja, o

seu valor oculto só é posto em evidência pela significação.

A aliteração das oclusivas “t” e “d”, em negrito, combinadas com os sons

nasais, sublinhados, sugerem a existência das dificuldades nessa empreitada e o

sofrimento que se tem durante esse percurso:

Não te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

Nos versos 2 e 3, os verbos ajuntar e construir no gerúndio mostram um

processo contínuo, que é reiterado pela extensão dos vocábulos, já que as

dificuldades não deixam de existir e que, apesar e a partir disso, é preciso que se

reinvente uma nova história:

Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

A aliteração dos sons oclusivos espalha-se por toda a estrofe numa

combinação com os sons nasais, que também corroboram com essa sugestão, além

de denotar a dor, inevitável, nessa construção:

Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

Lapa (1988, p. 126) afirma que o adjetivo anteposto ao substantivo oferece

riquíssimas possibilidades de expressão. Assim, ao usar o vocábulo novas

anteposto ao vocábulo “pedras”, o enunciador não descarta a possibilidade de

obstáculos surgirem:

Ajuntando novas pedras

A estrofe termina com o sintagma nominal novos poemas, também com o

adjetivo anteposto ao substantivo. Agora, essa escolha corrobora para enfatizar a

renovação dessa história:

e construindo novos poemas.

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Dessa maneira, um ethos persistente vai-se formando na tessitura do texto:

[...] qualquer discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de um tom que indica quem disse. (MAINGUENEAU, 2005, p. 72). Não te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

A fórmula para essa construção é simples. Numa estrofe curta, a mais curta

do poema, com apenas três versos, o enunciador começa cada frase com os verbos

criar, mover e começar no imperativo, o que marca uma ordem dada vigorosamente.

Esses verbos, acrescidos do prefixo re-, que remete a, também, um processo

contínuo de repetição de ações.

O uso do imperativo, aqui, remete a Benveniste. Segundo ele (1989, p. 87), o

que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro,

seja real ou imaginado, individual ou coletivo. Assim, a asserção, a interrogação, a

intimação são usadas pelo enunciador que, ao se enunciar, influencia o

comportamento do coenunciador:

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Essa sugestão é intensificada com a reiteração do advérbio sempre no

primeiro verso e no uso da conjunção copulativa “e”, no segundo, confirmando a

ideia de um movimento ininterrupto, não se prostrando diante das dificuldades:

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Segundo Cunha, a repetição do advérbio é uma forma de intensificá-lo. Essa

repetição morfológica encontra justificativa, uma vez que “a repetição intensifica o

grau de tensão que parte do poeta para o leitor, criando uma rede de significações”

(MICHELETTI, 1997, p.155).

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Percebe-se que o locutor busca, com essa repetição, um recurso expressivo

que sintetize o pensamento que quer externar, o encorajamento, ou seja, o

enunciador “empurra” Aninha a um movimento constante de recriação da própria

existência.

De acordo com Maingueneau, o ethos constitui-se em uma dimensão

discursiva que faz parte da identidade de um posicionamento discursivo. Dessa

forma, pode-se dizer que o ethos é mostrado no discurso por meio das escolhas do

enunciador, ou seja, por meio de sua maneira de se exprimir.

Assim, o enunciador atinge o ponto desejado com a expressão sempre

sempre, já que a repetição não se dá só na repetição da palavra, mas também na

repetição da ideia:

Recria tua vida, sempre, sempre.

A construção de sua obra, o jardim, só é possível, a partir da superação de

seus percalços – a remoção das pedras e o fazer doces sugerem dar suavidade à

vida:

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

No que se refere ao som, o tom de ânimo e encorajamento espalha-se pela

estrofe e é marcado pela combinação de sons oclusivos, em negrito, e vibrantes, em

itálico, que aceleram o ritmo, o que corrobora a ideia de que não há tempo a perder:

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

A terceira estrofe inicia-se com o verbo que é formado por duas consoantes

fricativas combinadas com a vogal /a/ que dão leveza e amplidão a esta construção,

transformando uma vida, para muitos, insignificante, em um poema, ou seja, dar

continuidade às ações inciadas. De novo, removendo os obstáculos e recriando-se:

Faz de tua vida mesquinha um poema.

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68

Existe uma quebra de expectativa neste verso, já que para uma vida

mesquinha, não se espera resultados belos como um poema. Há, também nesses

versos, ecos do ditado popular “fazer de um limão, uma limonada” e as escolhas

lexicais corroboram para ratificar um ethos otimista:

Faz de tua vida mesquinha um poema.

O resultado da transformação e recriação da própria existência é a única

garantia de eternizar a sua obra. Os sons fricativos constritivos e sibilantes, pelo seu

caráter contínuo, colaboram com a sugestão de que realmente sua obra perdure às

gerações futuras:

E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

Na última estrofe, o locutor usa uma frase assertiva com os termos em ordem

direta com a intenção de valorizar aquilo que é expresso no enunciado e convencer

da importância que os versos têm àqueles que deles podem se apropriar:

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

O sintagma nominal Esta fonte, metaforizando os versos, ganha especial

expressividade, já que por fonte, segundo o dicionário HOUASIS, temos local de

onde vem ou onde se produz algo; procedência, origem, proveniência, algo que

brota em abundância, manancial, torrente. Isto é, é abundante o que se pode

apreender a partir de seus versos:

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

O aspecto fônico deixa claro isso, pois o vocábulo fonte é formado pela

fricativa /f/ (sublinhada), seguida de uma vogal nasal e encerra-se na oclusiva /t/ (em

negrito), que remete à origem, ao fluir do conhecimento sim, mas no vocábulo,

também, estão postos obstáculos e dificuldades a serem ultrapassados por aqueles

que estão ávidos por ele:

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

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69

Segundo Lapa (1998), o uso do imperativo afirmativo marca uma ordem dada

com energia, em que se manifesta fortemente a vontade do ordenante (LAPA, 1998,

p. 193). Pelo uso da forma imperativa dos verbos tomar e vir, o enunciador chama

seu coenunciador a se apropriar daquilo que é dele, continuar a escrever, apesar de

tudo. O ethos mostra-se, aqui, otimista, encorajador e incisivo:

Toma a tua parte. Vem a estas páginas

Porém, com o uso do imperativo negativo, o enunciador mostra-se duvidoso

quanto ao resultado, já que a dúvida é a característica do modo conjuntivo (LAPA,

1998, p. 143):

e não entraves seu uso aos que têm sede.

O fato de o conselho ser dado e o caminho seguido, não significa que não

haverá dificuldades e o som também corrobora essa sugestão. Mais uma vez os

sons oclusivos são percebidos em todos os versos da estrofe, indicando esses

obstáculos:

Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.

O conselho continua no terceiro verso da última estrofe que se inicia com o

verbo vir no imperativo que o chama para mergulhar nessa fonte e desfrutar daquilo

que a literatura pode oferecer. Isso pode ser ratificado pela formação do vocábulo

por uma consoante fricativa seguida da vogal nasal em que sugere esse movimento.

O enunciador termina o poema como iniciou seus versos, com o uso do advérbio

não, que, mais uma vez, não admite parada, estagnação, mas determina que não

haja embaraços aos que querem delas, das páginas, desfrutar:

Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.

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70

4.3 Das Pedras

Neste poema, encontramos um enunciador que relata, com um tom resiliente

sobre as dificuldades e as superações pelas quais passou no decorrer da vida. Um

enunciador que se adapta às dificuldades, não desanima e, apesar dos obstáculos,

mantém-se disposto a lutar e fortalecer-se para alcançar a superação. Somente em

seu desfecho é que concluímos que seja seu percurso literário.

Segundo Lakoff (1980), a metáfora para a maioria das pessoas está restrita à

linguagem, uma questão mais de palavras do que de pensamento ou ação, porém

ela está infiltrada na vida cotidiana, não só na linguagem, mas no pensamento e nas

próprias ações das pessoas, pois o nosso sistema conceptual ordinário, no qual não

só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico (Lakoff, p. 45):

[...] os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões de intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira e o modo como nos relacionamos com as outras pessoas. (LAKOFF, 1980, p. 45)

Assim, as metáforas, como expressões linguísticas, são possíveis

precisamente por existirem metáforas no sistema conceptual de cada um nós. Nesse

poema, o vocábulo “pedra” metaforiza as dificuldades enfrentadas em todas as

instâncias de sua vida.

O enunciador relata as situações que o restringiram e revela sua angústia,

limitação, mas também sua resiliência e a superação de suas dificuldades. Em

relação aos obstáculos, retira do peso das pedras a doçura de seus versos, pois das

lembranças em relação às injustiças e julgamentos a que esteve exposto tira a força

para reconstruir-se, que se traduz em um encontro consigo mesmo.

Por meio do uso de recursos linguísticos tais como: enumeração, aspecto do

verbo e som, o tema sobre a trajetória do enunciador que apresenta um ethos

literário é desenvolvido, contribuindo com a construção de sentido do poema.

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71

Das Pedras

Ajuntei todas as pedras

que vieram sobre mim.

Levantei uma escada muito alta

e no alto subi.

5 Teci um tapete floreado

e no sonho me perdi.

Uma estrada,

um leito,

uma casa

10 um companheiro

Tudo de pedra

Entre pedras

cresceu a minha poesia

Minha vida...

15 Quebrando pedras

e plantando flores

Entre pedras que me esmagavam

Levantei a pedra rude

dos meus versos

O vocábulo “pedras”, segundo Houasis, apresenta significação vinculada à

rigidez, dureza, insensibilidade, aridez, mas é dessa ausência que o enunciador do

poema em análise fez seus versos. Assim, no título, a expressão “Das Pedras”

ganha expressividade pelo estranhamento inicial que causa no leitor. A preposição

de, na contração da preposição de + as, artigo = das, segundo Cunha, C. indica

procedência (entre outros tantos sentidos da partícula de, uma palavra gramamtical),

sugerindo no contexto as circunstâncias nas quais se constituiu sua obra: em meio a

dificuldades. O uso dessa preposição associada a um substantivo forma uma

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72

locução adverbial e está posta para acrescentar à metáfora “das pedras” um alto

poder evocativo de dificuldade e de superação.

Martins também nos acrescenta quanto à expressividade no uso de palavras

gramaticais:

[...] “palavras gramaticais podem perder, em certos empregos, esse valor gramatical e tornar-se meros elementos de realce ou ainda receber um valor nocional, aproximando-se de palavras lexicais” (MARTINS, 2012, p. 100)

No aspecto fônico, observamos a combinação das oclusivas /p/ e /d/ e das

vogais orais /Ɛ/ e /a/ na formação do vocábulo, corroborando, também, essa

sugestão:

Das Pedras

O vocábulo “pedras”, no primeiro verso, sugere as dificuldades vivenciadas

por ele:

Ajuntei todas as pedras

que vieram sobre mim.

O enunciador usa nos dois primeiros versos desta estrofe verbos no pretérito

perfeito que não significam ações acabadas como sugere, prioritariamente, esse

tempo verbal, pois possuem aspectos resultativos. De acordo com VARGAS (2011,

p. 18), as formas verbais, responsáveis, também pela construção de sentido, não

podem ser analisadas somente em sua constituição morfológica ou função sintática.

É preciso que analisemos o aspecto dos verbos em contexto e a expressividade que

conotam:

Ajuntei todas as pedras

que vieram sobre mim.

A estrofe mostra que o enunciador assume uma posição e, a partir daí, dá um

rumo diferente às suas ações: o de construção de seu ser e de sua obra. O verbo

ajuntar no pretérito perfeito é marcado pelo aspecto perfectivo, pois a ação foi

concluída num momento anterior à enunciação, (MAINGUENEAU, 1996, p. 44). Ele

apresenta o aspecto resultativo da ação do enunciador, ou seja, ele toma uma

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73

atitude em relação à posição conformista que adotara, pois levou um determinado

tempo para tomar uma decisão quanto ao que fazer com os impedimentos que teria

que ultrapassar. Isso pode ser percebido na flexão do verbo vir no pretérito-mais-

que-perfeito, que denota uma situação anterior ao pretérito perfeito, ou seja, primeiro

ele passa pelas dificuldades, pelas críticas e, só então, posiciona-se em, a partir

delas, reerguer-se. Sua composição com consoantes fricativas /v/ e /h/ sugerem o

fluir do tempo para que essa ação se conclua. O enjambement no verso sugere a

mesma ideia e a combinação de fonemas nasais remetem a um ethos de alguém

corajoso, mas que fala com um tom de lamento, de dor:

Ajuntei todas as pedras

que vieram sobre mim.

Segundo Amossy, todo aquele que toma a palavra para se comunicar cria

uma imagem de si mesmo pelo discurso que profere. O que implica dizer que o

discurso carrega as marcas daquele que enuncia. Essas marcas podem ser

percebidas na enunciação pela expressividade que o vocábulo “pedras” assume

nesses versos, já que metaforiza todas as difamações, injustiças e julgamentos

pelos quais o enunciador passou.

Compreendendo a construção do ethos como a imagem de si no discurso,

afirma-se que qualquer discurso pressupõe a construção de certa imagem daqueles

que estão envolvidos no processo enunciativo (AMOSSY, 2008, p. 9) e, tendo como

metáfora a percepção de si na realidade, observamos um ethos que se sente

apedrejado, mas que está disposto ao enfrentamento da situação.

A imagem produzida pela colocação estratégica do vocábulo “pedra” sobre o

pronome oblíquo mim corrobora essa afirmação:

Ajuntei todas as pedras que vieram sobre mim.

O efeito de sentido produzido pelo verbo levantar, no terceiro verso, indica o

desenvolvimento do processo percorrido pelo enunciador que é marcado pelo

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74

aspecto inceptivo do verbo, responsável pelo início da ação.(VARGAS, 2011, p. 23-

24)

A sua extensão corrobora a ideia do tempo despendido para a tomada de

posição, mas mostra o lado positivo de ajuntar as “pedras”, descrito nos versos

anteriores, mesmo que elas sejam a essência de sua dor. Sua insegurança é

registrada na altura da escada, metáfora de sua estrada existencial, o caminho a ser

percorrido em busca de seu sonho; com o uso do adjetivo alta, amplificado pelo

advérbio muito. O enunciador mostra sua ousadia em enfrentar a empreitada,

finalizando o verso com o verbo subir, no pretérito perfeito, que apresenta um

aspecto resultativo, uma ação definitivamente concluída (VARGAS, 2011, p. 19):

Levantei uma escada muito alta

e no alto subi.

O verbo tecer, no início do quinto verso, apresenta um aspecto durativo, pois

é dotado de um tempo intrínseco ao desenrolar da ação expressa por ele. O

enunciador leva um tempo para idealizar e realizar seu sonho metaforizado por

tapete floreado, porém, o aspecto resultativo do verbo perder, no pretérito perfeito,

finaliza o sexto verso, sugerindo que seu sonho seja, ao mesmo tempo, uma

desilusão:

Teci um tapete floreado

e no sonho me perdi.

O enunciador constitui a segunda estrofe com a enumeração de substantivos

concretos, metaforizando a razão da existência humana: estrada = seu percurso de

vida; leito = seu destino, seu repouso; casa = sua realização material; companheiro

= realização emocional. Todos são tratados como “pedras”, ou seja, tudo conseguido

e vivenciado com muita dificuldade:

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Uma estrada, um leito, uma casa, um companheiro. Tudo de pedra.

Nesta estrofe, os sons oclusivos /t/, /d/, /k/, /p/ dos substantivos também

fortalecem a sugestão dos obstáculos e dificuldades em todas as estâncias de sua

vida:

Uma estrada, um leito, uma casa, um companheiro. Tudo de pedra

O vocábulo “pedras”, aqui, sugere algo consistente, dificultoso, onde as raízes

profundas crescem entre suas frinchas, revelando, assim, a dificuldade das palavras

e dos versos germinarem em meio aos obstáculos encontrados durante a vida. A

inversão da ordem direta da frase, associada à sua estrutura melódica também

evidenciam essa asserção, uma vez que o substantivo pedras e o verbo crescer no

pretérito perfeito fundem-se, remetendo-se à imagem das frinchas, onde, com

dificuldade as raízes se alojam e se alicerçam, mesmo que demore um determinado

tempo:

En – tre pe - dras

1 2 3 4

cres - ceu - a – mi - nha po – e – si - a.

1 2 3 4 5 6 7 8

As reticências, no meio da estrofe, fazem a transição do tempo nas flexões

verbais, do pretérito perfeito do verbo crescer para o gerúndio dos verbos quebrar e

plantar, sugerindo que a partir de um passado de superação, cria-se um presente

continuado, que não se finda. A combinação dos sons oclusivos com os das vogais

nasais promove um prolongamento dos fonemas, sugerindo que sua dificuldade é

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constante, porém faz-se necessário um enfrentamento das situações, resolvendo as

adversidades, abrindo espaço para novas experiências:

Entre pedras cresceu a minha poesia. Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores.

A pontuação e a quebra da estrutura sintática do terceiro verso dessa estrofe

indicam que o enunciador para e faz uma reflexão, tirando um juízo de valor:

Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores.

As metáforas indicam a relação lírica entre pedras/entraves e flores/poesia. O

enunciador não se deixa amargar pelos percalços da vida, pelo contrário, apesar

deles, ainda tem forças para poetizar sua trajetória:

Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores.

A inversão da ordem direta da frase corrobora para, mais uma vez, evidenciar

quão grandes foram as dificuldades enfrentadas pelo enunciador. A flexão do verbo

esmagar, no pretérito imperfeito, possui um aspecto durativo, expressando a

continuidade do sofrimento vivido por ele e confirma sua superação quando, no

próximo verso, o verbo levantar mostra o resultado de todo o processo realizado:

Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude dos meus versos.

Mais uma vez, a imagem produzida pela colocação do pronome me entre o

vocábulo “pedras” e o verbo esmagar ganha especial expressividade, mostrando o

quanto o enunciador sentia-se oprimido naquela situação:

Entre pedras que me esmagavam

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O vocábulo “pedra” no penúltimo verso possui uma conotação diferente das

outras menções ao longo do poema. Ele configura uma sutil ironia do enunciador, já

que, uma vez escritos, os versos são como as pedras: resistentes ao tempo,

eternizados:

Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude dos meus versos.

O enunciador encerra o poema com a mesma coragem que iniciou. Os

obstáculos enfrentados fundam-se em si mesmos. O adjetivo “rude” aponta para a

mesma significação das pedras. Segundo HOUAISS, uma das definições desse

vocábulo é “árduo, de difícil realização”. Seus versos, eternizados ao custo de

muitas dificuldades:

Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude dos meus versos.

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4.4 O Cântico da Volta

Nesta análise, discorreremos sobre os elementos estilísticos que demonstram

como, a partir de seus sentidos sensoriais, a memória do enunciador é acionada,

fazendo com que ele reviva sentimentos e atitudes significativos que marcaram sua

infância, adolescência e vida adulta. O conto retrata impressões que ele tem quando

se vê diante de sua casa na cidade, da qual se ausentou por mais de 40 anos. Seus

sentidos são acionados e tudo que vê, ouve e sente remete-o a lembranças que

ressignificam seu passado. Lembranças que o encorajaram a enfrentar pessoas e

situações em seu retorno. A sua volta não é somente à cidade física, mas ao lugar

onde estão suas raízes, seus valores, “o seu berço de pedras”. Lugar, onde muitas

situações vividas por ele marcaram sua alma.

Apesar de este texto fazer parte dos contos coralinianos, são observadas

nesta análise características de um poema em prosa, o que enriquece ainda mais a

obra da autora.

Visualmente não se diferencia do conto pela forma como as linhas estão

dispostas na página, porém percebe-se que não há a noção de anterioridade. Assim,

a narrativa, uma das características do conto, está suspensa.

A prosa está a favor da subjetividade, ou seja, o que é evidenciado é a

expressão do enunciador. O que percebemos é uma construção melódica e rítmica

das frases e a escolha de um vocabulário preocupado com a imagem poética:

O poema em prosa constitui uma dualidade [...] na qual o primeiro termo diz respeito à matéria (poesia) e o segundo à forma (a disposição graficamente tradicional da prosa). De onde se manifestarem ao mesmo tempo no poema em prosa uma força anárquica, destruidora, que conduz à negação das formas existentes e uma força organizadora, que tende a construir um ‘todo’ poético; e a própria expressão poema em prosa sublinha essa duplicidade: quem escreve em prosa se revolta contra as convenções métricas e estilísticas; quem escreve um poema visa criar uma forma organizada, fechada em si mesma, subtraída ao tempo. Os dois pólos estabelecem uma contínua tensão dialética, correspondente ao embate entre a ‘organização artística’ e a ‘anarquia destruidora’, entre duas modalidades de ‘ordem’: a anarquia equivale à ‘ordem que se deseja fundar’, e a outra reflete a que parece existir no mundo dos seres e objetos (BERNARD, 1959: 444, 449). Ao fim da pugna, a

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vitória sorri à poesia: do contrário, não procederia a expressão ‘poema em prosa’. O ritmo segue uma modulação mais atenta às unidades melódico-semântico-emotivas que à sintaxe, e muitas vezes os segmentos frásicos articulam-se com relativa simetria, que lembra a regularidade do verso. E o ‘eu’ impera sobre o ‘não-eu’.(MOISÉS, 2013, p. 366-367)

Serão analisados os elementos presentes na materialidade lingüística, como

a enumeração de adjetivos, paralelismos sintáticos e os sons que contribuem para a

expressividade do texto e sua construção de sentido.

O Cântico da Volta

1 Velha casa de Goiás. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa

2 Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedá e calda e calda grossa – doce de figo ou caju.

3 Um tacho de cobre areado referve numa trempre de pedras. Uma braçada de lenha e gravetos acende o fogo ancestral.

4 A “porta do meio”, com sua aldrava de palmatória, sempre cerrada, como no tempo das Sinhás-Moças. A “porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.

5 A cidade-mãe nem me surpreendeu, nem me desencantou.

6 Conservada, firme, bem empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender.

7 Valiosa e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram e estas pedras manuseadas por gente rude e estes muros e beirais anacrônicos.

8 Relembra Bandeiras e minerações passadas. Muita lenda de ouro remanescente, que os antigos enterravam na espessura dos paredões socados. Achados empolgantes, buscas sugestivas, atrações singulares e assombrações de permeio, criando um rico folclore local.

9 Sombras do passado deslizam pelas ruas estreitas e curtas, quebradas em ângulos imprevistos, abrindo-se em largos de simetria obsoleta.

10 Vou identificando os da minha geração e encarando de frente e inquirindo de perto os que sabem mais do que eu.

11 A cidade bicentenária, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se sustenta

12 Soldadas suas casas, paredes com paredes, portas com portas; agrupadas e unidas, num esforço tenaz e expressivo de apoio e coordenação defensiva.

13 Sentiu com altivez o tremendo impacto da mudança. Não se despovoou nem se desagregou com grande expoliação.

14 No seu progresso atual, sente-se um novo sentido de ajustamento, solidariedade e união dos que ficaram, se impondo com dignidade ao respeito e admiração dos que partiram.

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15 Sobrevive aqui, ainda e sempre, o mesmo determinismo histórico que fez viver e florescer, dentro desta muralha de serras e rodeada destas águas vivas, uma autêntica civilização que, no enluramento de dois séculos, se considerou um dia madura e apta para ser mudada, sem se esfarelar, deixando ainda, para os pósteros, raízes fortes e sementes fecundas.

16 Goiânia! O Grande milagre de Goiás e da gente goiana!

17 Quarenta anos decorridos!

18 Outros tantos que iniciei o retorno, numa migração inconsciente e obscura, tenaz e muda, tendo a Serra Dourada como sigla, os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

19 A vestal vigilante da minha saudade sempre conservou acesa a candeia votiva da ternura pelo meu duro berço de pedras.

20 Os morros verdes parece que vestiram para mim galas vegetais; festivo azul lavado dos ares, e no meu cansado coração, uma festa maior: - a festa da Volta às origens da Vida.

21 Plena Semana Santa.

22 A riqueza cromática dos sinos veste a cidade de uma velha mística religiosa, sonora e vaga, a que as procissões e andores de Dolorosas dão vida e cor.

23 A cidade lendária me toma nos braços, me enlaça e prende. Euforia e levitação...

24 Sinto-me renascer para o Canto Novo!

25 A Benção do Fogo! O Canto das Profecias!

26 Aleluia... Aleluia...

27 O Rio Vermelho, de águas avolumadas, corre, como sempre cantando e pulando de pedra em pedra, como nos dias da minha infância.

28 Menina que passa na ponte, menina que pára, que espia o rio.

29 Eu me revejo em ti. Pequena, magriça, feia, despenteada, de jeito rebelde.

30 Sou eu mesma que me reencontro em você, pequena goiana, incerta, desgraciosa, marcada pelo ferro em brasa de um destino duro.

31 Ouço as lavadeiras do rio Vermelho.

32 Vejo, metidas n’água, as tradicionais mulheres da terra. Cafusas, morenas, trigueiras, e retintas, de idade indefinida; têm a seu cargo fazer limpa a roupa suja da cidade (sem alusão malina).

33 Quando de tarde, atravessam as ruas, grandes trouxas alvacentas, equilibradas nas trunfas, têm um cheiro infante e gostoso de gente limpa, água e sabão.

34 Batem roupa o dia todo, à moda antiga, acompanhando com o compasso do tempo o ritmo da correnteza.

35 Sabem histórias do peixe encantado, tantas vezes encontrado, perdido e procurado

36 Andam de angorras com a Mãe d’água. Nas durezas do ofício, se valem de São Caetano, bom santo, solícito e camarada, não é santo enjoado,

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de difícil atenção, e por isso, na volta do dia, elas vestem de colorido as margens do velho rio, ou seja, os altares do Santo amigo.

37 A cidade vai num anseio de valorização e progresso que sacode e empolga todo o Estado.

38 A juventude, inteiramente desintegrada do passado, enfeita as ruas e namora, confiante num melhor destino.

39 E a gente da velha ala?

40 Enraizada como velhas figueiras, agarrada às tradições e aos encantamentos da terra, sustentáculos, colunas e cariátides; embasamento, concreto e arcabouço, amparo e anteparo da cidade frustada.

41 Velhas sentinelas que morrem no posto de honra; defensores tenazes e valentes do que aqui resta, de quanto aqui ficou, qual seja, o valioso Patrimônio histórico e cultural e as nobres tradições de Goiás.

42 Uma nova esperança acena no horizonte.

43 Com a expansão de Goiânia e com a possibilidade da mudança da Capital Federal para o planalto, Goiás será, sem dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país.

44 Assim compreendam seus assistentes e responsáveis, impedindo, em tempo, maiores atentados ao seu feitio característico e tradicional que merece ser inteligentemente resguardado.

45 Para ti, cidade-mater, este cântico perdido de quem volta às origens da Vida.

O enunciador do conto mostra-se saudoso e o ethos construído nele se

mostra resistente à ação do tempo, conservando a disposição ao encontro consigo

mesmo.

O enunciador evidencia a paixão por sua casa, por sua cidade já no título do

conto, pois o cântico só é possível a partir do momento em que toma uma atitude de

voltar às suas origens. Percebemos isso no uso da preposição de, em de + a, que

denota a origem e a causa desse louvor:

O cântico da Volta

O amor pela casa é percebido no tom de saudosismo do enunciador, pela

escolha do adjetivo velha que ganha especial valor expressivo, já que ele o usa com

a intenção de demonstrar o grau de afetividade que possui pelo lugar, com o qual

mantém uma profunda ligação. Seu uso mostra o quanto é querida. Segundo

Bechara (2009, p. 142) “O adjetivo é a classe de lexema que se caracteriza por

constituir a delimitação, isto é, por caracterizar as possibilidades designativas do

substantivo”. Assim, podendo reduzi-lo ou ampliá-lo. A colocação do adjetivo

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anteposto ao substantivo adquire uma matização afetiva e, assim, enfatiza esse

carinho e importância que a casa possui para ele:

Velha casa de Goiás. [...]

O próximo período confirma esse sentido ao iniciar-se com termos que

retomam o sintagma como quem se refere ao lar, ou seja, lugar onde se encontra

refúgio, com o qual se mantém laços: acolhedora, amiga.

[...] Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa.

O enunciador mostra também sua proximidade e deixa evidente suas marcas,

estabelecendo uma relação eu-tu com a casa onde morou, colocando-a na posição

de seu coenunciador pelo uso do verbo recender na segunda pessoa do imperativo.

[...] Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa. [...]

O passado traz consigo uma imensa carga de emoções para o enunciador,

que faz uso do presente do indicativo dos verbos recender, vir, referver e acender no

presente do indicativo, com a intenção de fazer com que o seu alocutário aproxime-

se do passado e sinta as mesmas sensações que emanam de suas lembranças:

[...] Velha casa de Goiás. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de gente boa. Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resendá e calda grossa – doce de figo ou caju. Um tacho de cobre areado referve numa trempe de pedras. Uma braçada de lenha e gravetos acende o fogo ancestral.[...]

O olfato do enunciador ativa as reminiscências da infância, lembranças

guardadas em sua memória e, nesse momento, ele, novamente, apropria-se do

lugar de onde, um dia, saiu e a escolha do adjetivo familiar para caracterizar o cheiro

que é exalado pelas flores dos jardins sugere que o enunciador sente-se em casa,

novamente.

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[...] Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resendá e calda grossa – doce de figo ou caju. [...]

A construção do quarto parágrafo não traz somente a descrição do lugar, mas

traz, com ela, a imagem de uma condição social vivida pelo enunciador em tempos

passados. A porta do meio, sempre cerrada, reserva um lugar fechado, separado,

específico para pessoas privilegiadas socialmente, metaforizadas por Sinhás-Moças,

tratamento respeitoso utilizado pelos escravos ao se referirem a suas patroas. O uso

das aspas evidencia o status daquele lugar e o uso do advérbio sempre sugere a

condição contínua daquela porta, que se mantinha fechada. O aspecto fônico

também corrobora essa sugestão, já que o vocábulo sempre é formado por uma

consoante fricativa e uma vogal nasal (negritado) que dá prolongamento a esse

estado:

[...] A “porta do meio”, com sua aldrava de palmatória, sempre cerrada, como no tempo das Sinhás-Moças. [...]

Ao contrário do lugar privilegiado somente para alguns, a porta da rua, para

todos, também traz consigo um sentido significativo para o enunciador, o que

observamos com o destaque também das aspas. O corredor, onde ela é situada é

definido pela construção binária de adjetivos a fim de expressarem com precisão as

características do lugar: formado por placas de pedras que, com o passar das

pessoas e do tempo, exibem brilho, metaforizada pelo piso das gerações:

[...] “A porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.[...]

A condição dessa porta também é enfatizada pelo advérbio sempre que,

agora, vem acompanhado pelo adjetivo aberta, que nos sugere a acessibilidade à

cidade.

[...] “A porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.[...]

O período formado pelo paralelismo sintático de orações coordenadas

sindéticas aditivas mostra que tudo continua igual, apesar do tempo, pois ele diz que

o que viu na cidade não o surpreendeu e, ainda, acrescenta que também não o

desencantou. A conjunção nem é uma negativa que expressa sua contradição, é

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mais amena que o advérbio não, que expressaria uma circunstância mais

categórica, ou seja, o uso da conjunção nem denota que o que poderia desencantá-

lo, na verdade não o desencantou:

[...] A cidade mãe nem me surpreendeu, nem me desencantou.

Outro sentido é ativado, o da visão, quando faz referência à cidade por meio

da enumeração dos adjetivos, sendo o último intensificado pelo advérbio bem.

Caracterizam-na de maneira que nos remete à imagem fiel de sua preservação,

colocando em relevo um caráter afetivo crescente do enunciador:

[...] Conservada, firme, bem empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender.[...]

Essa preservação também é evidenciada na estrutura melódica da frase, já

que os adjetivos utilizados são paroxítonos, nos quais o acento de intensidade recai

sobre sílabas que reforçam o valor expressivo de cada um deles:

[...] Conservada, firme, bem empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender.[...]

O paralelismo sintático enfatiza as características da cidade e reitera a

profunda ligação do enunciador com seus lugares, de uma maneira encantadora:

[...] Conservada, firme, bem empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender.[...]

A construção binária de adjetivos antepostos ao substantivo madeirama,

carregam uma conotação valorativa ao trabalho árduo dos escravos.

[...] Valiosa e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram, [...]

Segundo Martins (2012, p. 148), os sufixos de coletivo, além de exprimirem a

ideia de quantidade ou de grandeza, podem carregar uma conotação afetiva,

valorativa ou depreciativa. Dessa forma, o vocábulo madeira ganha um especial

valor expressivo, quando acrescido do sufixo coletivo -ama, já que ele tem uma

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85

função específica de aumentar, exagerar a quantidade de material manuseado pelos

escravos, assim, também, valorizando o seu trabalho:

[...] Valiosa e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram, [...]

Essa ideia também é percebida na estrutura melódica da frase, em que o

acento de intensidade recai, prioritariamente, sobre sílabas que reforçam essa

sugestão, contribuindo, assim, para a construção de sentido do período:

Valiosa e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram, e estas pedras manuseadas por gente rude e estes muros e beirais anacrônicos.

A questão temporal citada na descrição das ruas no 4º parágrafo:

[...] “A porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.[...]

é retomada com o adjetivo anacrônicos como se as estruturas vistas também

contassem a história e a estaticidade que ele encontra:

e estas pedras manuseadas por gente rude e estes muros e beirais anacrônicos.

No campo lexical, observamos os substantivos lages, muros, beirais e

minerações que se remetem ao vocábulo pedra que corroboram a ideia de

resistência ao tempo:

[...] “A porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.[...] [...]e estas pedras manuseadas por gente rude e estes muros e beirais anacrônicos.[...] [...]Relembra Bandeiras e minerações passadas.[...]

Ao caminhar pelas ruas da cidade, o enunciador, retoma suas lembranças

metaforizadas pelo vocábulo sombras que o perseguem pela vida e que são

revividas pelos lugares por onde passa:

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[...] Sombras do passado deslizam pelas ruas estreitas e curtas, quebradas em ângulos imprevistos, abrindo-se em largos de simetria obsoleta.

O enunciador vai caminhando e identificando pessoas conhecidas, mostrando

um ato de enfrentamento não só a elas, mas a suas próprias frustrações. Esse

movimentar é sugerido pelo uso do presente do indicativo ir + o gerúndio do verbo

identificar, que apresenta um aspecto durativo, ou seja, seu desenvolvimento é

gradual, tal como o andar e o reconhecer as pessoas de sua geração:

[...] Vou identificando os da minha geração e encarando de frente e inquirindo de perto os que sabem mais que eu.

O sentido da visão é novamente acionado e seu olhar volta-se para a

estrutura da cidade, não só a estrutura física, mas também a estrutura social.

Em relação à estrutura física, a reiteração da preposição sobre dá ao

coenunciador não a imagem das edificações em si, mas a imagem cenográfica em

dois planos: primeiro, a do alicerce e da edificação, intensificando, assim, o valor das

pedras que são as sapatas das construções, não se modificando com o passar do

tempo.

Quanto a essa estrutura, Bosi (1994, p. 452) reflete que “a resistência muda

das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em

seu lugar antigo”. A autora aponta para a ligação do indivíduo com as pedras e suas

lembranças, acrescentando que mesmo que sejam destruídas casas, calçamentos

de pedras e até mesmo antigos casarões, continuam estabelecidos os vínculos entre

esses objetos e o homem:

[...] A cidade bicentenária, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se sustenta.[...]

E, em segundo, em relação à estrutura social, o uso do pronome reflexivo “se”

sugere o movimento espontâneo e prolongado da cidade em se acomodar e

adequar às mudanças promovidas pelas transformações sociais e temporais. As

“pedras”, agora, têm a significação dos valores e das tradições:

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[...] A cidade bicentenária, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se sustenta.[...]

O enunciador usa o vocábulo enluramento de uma forma pejorativa, já que o

fato de a cidade permanecer por 200 anos no anonimato não significasse que

estaria pronta para mudanças sociais:

[...] Sobrevive aqui, ainda e sempre, o mesmo determinismo histórico que fez viver e florescer, dentro desta muralha de serras e rodeada destas águas vivas, uma autêntica civilização que, no enluramento de dois séculos, se considerou um dia madura e apta para ser mudada, sem se esfacelar, deixando ainda, para os pósteros, raízes fortes e sementes fecundas.

Depois da ação concluída, o enunciador define, por meio do verbo “decorrer”

no particípio, quanto tempo se passou. Quarenta anos de afastamento de tudo o que

realmente fazia sentido para ele. Quarenta anos de exílio, de solidão:

[...] Quarenta anos decorridos!

A sua sonoridade também corrobora essa afirmação. As vogais fechadas

expressam a sua melancolia, o seu pesar, além de o vocábulo ser formado por três

oclusivas /d/, /k/ e /d/, associadas à vibrante /r/ que sugere as dificuldades

enfrentadas durante os anos vividos fora de sua terra:

[...] Quarenta anos decorridos! Outros tantos que iniciei o retorno, numa migração inconsciente e obscura, tenaz e muda, tendo a Serra Dourada como sigla, os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

Migração é o processo de entrada ou saída de uma pessoa ou de um grupo

de onde se encontra para a tentativa de uma vida melhor. Com a escolha do

vocábulo, o enunciador mostra que iniciou essa movimentação.

Essa migração foi-se desenvolvendo de forma crescente. Ela é descrita pela

enumeração de adjetivos que sugerem a percepção do enunciador de como foi a

sua trajetória: inconsciente, que denota a forma involuntária; obscura: sofrida; tenaz,

sem se deixar abater pelas dificuldades e muda, sem grandes alardes. Essa

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movimentação do enunciador tem como meta sua terra natal e usa Serra, morros,

locais importantes da região serrana como sinonímia de sua cidade:

[...] Outros tantos que iniciei o retorno, numa migração inconsciente e obscura, tenaz e muda, tendo a Serra Dourada como sigla, [...]

O enunciador atribui aos morros o percurso e os percalços de sua jornada,

metaforizado por arestas da vida, a responsabilidade pela demora de seu retorno:

[...] os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

Além de o verbo demorar estar no gerúndio, tempo que expressa uma ação

contínua, o som oclusivo (em negrito) combinado com o som nasal (sublinhado) no

verbo sugerem a extensão desse tempo:

[...] os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

O período é finalizado por um pleonasmo semântico com o uso de dois

advérbios combinados com a conjunção “e” que deixa nítida a expressão que vem

da alma do enunciador - o que mais ardeu em seu coração para a sua volta, foi a

ligação com suas origens:

[...] e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

Mais uma vez, a enumeração dos adjetivos caracteriza o quão forte é essa

ligação:

[...] e sobretudo, e acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.

O substantivo saudade refere-se à ausência de algo ou de alguém. Essa

ausência não foi preenchida por nada durante esses 40 anos decorridos, o que

podemos comprovar na sequência do período com o uso do verbo no pretérito

perfeito: conservou acesa a candeia votiva. Ou seja, sua fidelidade não se refere às

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pessoas, mas à sua origem, seu local de procedência, que alimentaram sua

saudade, mesmo sendo o lugar onde passou por muito sofrimento e dificuldades:

“A metáfora é, sem dúvida, responsável por exprimir uma ideia de forma mais incisiva. Essas relações associativas mostram que, a partir de observações do mundo exterior, o usuário extrai imagens para representar o que é muito difícil de abstrair.” (GIL, 2009, p. 71)

Assim, sua cidade natal é metaforizada por “duro berço de pedras”:

[...] A vestal vigilante da minha saudade sempre conservou acesa a candeia votiva da ternura pelo meu duro berço de pedras. [...]

A aliteração das fricativas nos períodos abaixo sugere a confirmação de sua

fidelidade e um movimento de ação, de tomada de atitude, agora de alegria, de festa

e do fluir da vida novamente para o enunciador:

[...] A vestal vigilante da minha saudade sempre conservou acesa a candeia votiva da ternura pelo meu duro berço de pedras.

Os morros verdes parece que vestiram para mim galas vegetais; festivo o azul lavado dos ares, e no meu cansado coração, uma festa maior: - A festa da Volta às Origens da Vida. [...]

Sua volta é marcada pela simbologia da época: em meio à Semana Santa,

período de expiação dos pecados, morte e ressurreição; o enunciador também

renasce para um novo tempo:

[...] Plena Semana Santa.

Os substantivos euforia, levitação expressam a grande alegria em estar de

volta como se andasse nos ares:

[...] Euforia, levitação...

As frases exclamativas explicam a sua alegria e seu regozijo, recompensa

pela prova de fogo, pela qual passou e, em humildade, expressa o cântico universal

de alegria e ações de graças, retribuindo a dádiva de poder estar de volta com

Aleluia... Aleluia... estendidas pelas reticências:

[...] A Bênção do Fogo! O Canto das Profecias!

Aleluia... Aleluia... [...]

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A característica estrutural dos parágrafos 25 e 26 nos remetem ao refrão de

um cântico, o que justifica o título do conto:

[...] A Bênção do Fogo! O Canto das Profecias!

Aleluia... Aleluia...[...]

Um outro sentido é acionado: o da audição. O som das águas traz à memória

do enunciador cenas de sua infância em que ele mantinha íntima relação com o rio e

podia ouvir sua voz, a sua voz interior. Mais uma vez nos remetemos à Lakoff:

[...] os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões de intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira e o modo como nos relacionamos com as outras pessoas. (LAKOFF, 1980, p. 45)

O vocábulo “pedra”, aqui, metaforiza a resistência do enunciador e o vocábulo

águas, o tempo. As águas do rio, assim como o tempo não as leva consigo,

precisam desviar-se da resistência das pedras, pulando-as, assim como o amor do

enunciador pela sua terra natal não se apagou com a ação do tempo:

[...] O Rio Vermelho, de águas avolumadas, corre como sempre cantando e pulando de pedra em pedra, como nos dias de minha infância. [...]

A imagem formada pela estrutura melódica da frase também corrobora essa

sugestão:

Corre como sempre pulando de pedra em pedra:

A combinação das fricativas, em negrito, com as oclusivas, em itálico, remete

ao som da água batendo nas pedras, num momento inesquecível de sua vida: sua

infância, vocábulo formado pelas fricativas [f] e [s] que, por sua continuidade,

sugerem a duração dessa relação:

[...] O Rio Vermelho, de águas avolumadas, corre como sempre cantando e pulando de pedra em pedra, como nos dias de minha infância. [...]

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O paralelismo sintático é usado para descrever a cena que ele observa e a

imagem aciona mais uma vez a sua memória remetendo-o a sua infância e às

marcas que o passado deixou:

[...] Menina que passa na ponte, menina que pára, que espia o rio.[...]

Os sons fechados de três dos quatro adjetivos usados caracterizam a

aparência física do enunciador em sua infância, porém, no final da enumeração,

quando se trata da aparência psicológica, o adjetivo rebelde denota que, apesar

dessas características, há uma predisposição para ser diferente:

[...] Eu me revejo em ti. Pequena, magriça, feia, despenteada, de jeito rebelde. [...]

O enunciador, aqui, estabelece um diálogo interiorizado, ou seja, um

monólogo formulado em “linguagem interior” (BENVENISTE, 1989, p.87-88). A

origem e o fim de sua enunciação estão centrados em si mesmo. Ele se sente como

que em sua infância, assim une as duas pontas de sua vida:

[...] Eu me revejo em ti. Pequena, magriça, feia, despenteada, de jeito rebelde. [...]

Segundo Martins (2012, p. 153), o uso do prefixo re- indica repetição,

multiplicação, intensificação. O uso do prefixo re- no verbo ver denota o voltar ao

passado e vivenciar novamente todas as sensações daquele tempo:

[...] Eu me revejo em ti. Pequena, magriça, feia, despenteada, de jeito rebelde. [...]

Mais uma vez o enunciador valoriza aqueles que são excluídos pela

sociedade e usa a enumeração de sinonímias para descrever a cor das lavadeiras,

evocando a forma de vida que elas levam. Essa repetição tem como finalidade

reforçar as características exclusivas das mulheres descritas:

[...] Ouço as lavadeiras do rio Vermelho.

Vejo, metidas n’água, as tradicionais mulheres da terra. Cafuzas, morenas, trigueiras e retintas, de idade indefinida; têm a seu cargo fazer limpa a roupa suja da cidade (sem alusão malina). [...]

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O uso da expressão cidade-mater, em latim, cidade-mãe, mostra que sua

relação com a cidade vem das entranhas, como uma relação de mãe e filho, do mais

profundo da alma:

[...] Para ti, cidade-mater, este cântico perdido de quem volta às origens da vida.

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CONCLUSÃO

Ao percorrermos o “Caminho das Pedras” de Cora Coralina, observamos,

neste cenário, as marcas linguísticas e discursivas deixadas por Aninha para

entender o porquê Anna Lins dos Guimarães constituiu-se anônima e veio a se

tornar a poeta Cora Coralina.

Atendendo ao objetivo proposto desta pesquisa, valendo-se do aparato

teórico da Estilística, analisamos os valores expressivos que o vocábulo “pedra”

assume ao longo da tessitura dos textos selecionados como corpus de análise,

considerando-se as escolhas lexicais e mórficas, bem como as escolhas linguísticas

feitas pelos enunciadores dos textos selecionados que corroboram para a

construção de sentido e na formação de seus ethe, descrevendo um indivíduo que

enfrenta dificuldades, persiste e supera os desafios da vida.

Nesse percurso, foi possível, por meio dos ethe construídos, acompanhar a

trajetória da poeta e suas expectativas que vão muito além das memórias de sua

vida pessoal.

O “Chamado das Pedras” relata um enunciador extremamente abatido por ter

frustradas as suas expectativas em busca daquilo que acreditava ser o melhor, mas

que não admite sair de cena, derrotado. O vocábulo “pedra” assume dois valores

metafóricos nesse poema: o da rejeição, calúnias e difamações sofridas pelo

enunciador em sua investida: “... e as mãos me atiram pedras...” e o de suas

origens, sua cidade natal: “...do passado tempo escuto a voz das pedras: volta,

volta, volta...” Apesar de sofrido e abatido, o ethos construído no decorrer do

poema mostra-se valente e forte para aceitar que a única condição para a sua

superação é o retorno ao ponto de onde partiu.

No poema seguinte, percebemos que o enunciador de “Aninha e Suas

Pedras” apresenta-se otimista: constrói um ethos de alguém que encoraja Aninha a

se posicionar e sair de uma condição de contrariedade, superando os obstáculos

para recomeçar.

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O vocábulo “pedras”, aqui, nos remete ao campo semântico das dificuldades,

metaforizando os obstáculos encontrados na vida: “...não te deixes destruir...

ajuntando novas pedras e construindo novos poemas...” “...remove as pedras e

planta roseiras...”

No poema seguinte, “Das Pedras”, observamos um enunciador que toma uma

decisão, posiciona-se e dispõe-se a recomeçar. A sua força o revigora e um ethos

resiliente constrói-se no decorrer do texto. As “pedras” não só assumem o valor

metafórico das dificuldades, como também a base para a sua reconstrução: “ajuntei

todas as pedras que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta e no alto

subi...”

Finalizamos o estudo com a análise do conto “Cântico da Volta” que se

justifica por apresentar um enunciador saudoso que retorna ao lugar de onde saiu

para, enfim, unir as duas pontas de sua vida e se reencontrar. Ao longo do poema,

as escolhas lexicais constroem o ethos de alguém disposto e resistente ao tempo

decorrido. As “pedras” também recebem especial expressividade, pois possuem

sentidos duplos: “berço de pedras” denota a procedência sofrida do enunciador,

mas também denota a resistência dele à ação do tempo em “águas avolumadas,

corre como sempre cantando e pulando de pedra em pedra...”

Como vimos, detentor de um delicado lirismo, entre suas características,

encontramos a coragem e a disposição de sempre recomeçar.

Em nosso caminhar, por meio das análises estilísticas, percebemos o valor

expressivo que o vocábulo “pedra”, tema central de nosso estudo, possui na

construção de sentido dos poemas e contos estudados da obra da autora, já que ele

marcou vários contextos vividos pelos enunciadores.

Restam, sem dúvida, muitos aspectos discursivos a serem analisados no

legado poético de Cora Coralina, evidenciando toda a expressividade que ele

abarca, dentre os caminhos da vida “quebrando pedras e plantando flores”, em meio

ao movimento encantador que as palavras causam naqueles que mergulham em

seus versos.

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BIBLIOGRAFIA

REFERÊNCIAS

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98

ANEXO

As cocadas

Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à

moda do tempo. Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de

cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a

escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na

tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando

atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o

doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais

numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.

Duas cocadas só ... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez,

mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com

as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente.

Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de

olho na terrina.

Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras,

entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.

Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um

pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da

mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii ... Apanhou

um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma

vez a terrina.

As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de

canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas,

tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.

Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador ... Trovador ... e veio o Trovador,

um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou

os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.

Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.

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Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e

dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles

adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

(Cora Coralina, 2002, p. 85-86)