psicologia: teoria e pesquisa -...

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Psicologia: Teoria e Pesquisa All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License CC BY NC - Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 37722000000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 14 maio 2018. REFERÊNCIA NEUBERN, Maurício S.. As emoções como caminho para uma epistemologia complexa da psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v.16, n.2, p.153-163, ago. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 37722000000200008&lng=en&nrm=iso>.Acesso em: 14 maio 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722000000200008.

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Psicologia: Teoria e Pesquisa

All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License CC BY NC - Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722000000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 14 maio 2018. REFERÊNCIA NEUBERN, Maurício S.. As emoções como caminho para uma epistemologia complexa

da psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v.16, n.2, p.153-163, ago. 2000.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

37722000000200008&lng=en&nrm=iso>.Acesso em: 14 maio 2018.

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722000000200008.

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Psicologia: Teoria e PesquisaMaio-Ago 2000, Vol. 16 n. 2, pp. 153-164

As Emoções Como Caminho Para UmaEpistemologia Complexa da Psicologia1

Maurício S. Neubern2

Universidade de Brasília

RESUMO - A partir do estudo das emoções são desenvolvidas reflexões que apontam para a marcante influência doparadigma simplificador no estudo de objetos complexos da subjetividade humana, como também nos diversos momentosde construção do conhecimento. Os movimentos dominantes da terapia familiar apresentam-se como momentos importan-tes dessa discussão por apresentarem ao mesmo tempo potencialidades e limitações para a construção de uma epistemologiacomplexa. Diante disso, a partir das contribuições provenientes de diversas propostas epistemológicas além dessas, busca-se promover um conjunto de articulações iniciais para uma epistemologia complexa da psicologia que abranja não apenasuma compreensão das emoções e do cenário da construção do conhecimento, mas principalmente a integração da subjeti-vidade do cientista como um momento fundamental da construção da ciência.

Palavras-chave: emoções; complexidade; epistemologia; subjetividade; terapia familiar.

Emotions as a Way for aComplex Epistemology of Psychology

ABSTRACT - As a result of the study of emotions, reflections have been developed pointing at the marking influence thatthe simplifier paradigm has on the study of complex objects on human subjectivity, besides its influence on the variousmoments of knowledge construction. The family therapy dominant moves are presented as important moments in thisdiscussion, since they concurrently illustrate possibilities and limitations on the construction of a complex epistemology.On these grounds and considering the contributions from different epistemological proposals, there is an effort in trying topromote a set of initial articulations for a complex psychological epistemology, that may not only account for a complexunderstanding of emotions, but also comprehend the complexity of the setting of knowledge construction itself, and par-ticularly integrate the scientist’s subjectivity as a fundamental moment at the construction of knowledge.

Key words: emotions; complexity; epistemology; subjectivity; family therapy.

em noções simplificadoras que implicam em consideráveismutilações em seus objetos de estudo. Por um lado, as re-duções e cortes de objetos de estudo implicam em unida-des de análise cada vez mais atomizadas, isoladas de seuprocesso subjetivo4 e relacionadas entre si por procedimen-tos como a estatística, em geral pouco coerente com os pro-cessos de significação e sentido da subjetividade humana(Gonzalez Rey, 1997). Por outro lado, a psicologia enquan-to ciência se vê em meio a um considerável campo de pro-dução, caracterizado tanto pela pluralidade de teorias e me-todologias como pelas poucas articulações e diálogos entresi. É nesse sentido que o problema das emoções encontra

Uma das primeiras questões com que se depara a refle-xão sobre as tradições presentes na construção do conheci-mento em psicologia são as diversas limitações encontra-das nas suas distintas expressões diante da complexidadedo real. A psicologia parece padecer de tal dificuldade deuma forma singular, uma vez que, possuindo um objetocomplexo de estudo (o ser humano, seu psiquismo, seu com-portamento, objetos enfim nomeados conforme o sistemade idéias3 adotado) se vê, via-de-regra, constituída com base

mas, regras fundamentais e idéias mestras), um conjunto de subsistemasinterdependentes (em que podem ser incluídas as teorias, metodologias,certos conceitos) que permite certa relação com o real e um dispositivoimunológico de proteção que consistem nos procedimentos e táticasde proteção e refutação contra os ataques ao sistema. Um conhecimen-to sobre o próprio conhecimento (epistemologia) que estude suas ori-gens, pressupostos e cenários de surgimento é fundamental para o es-tudo dos sistemas de idéias.

4 O conceito de subjetividade aqui adotado é tomado de Gonzalez Rey(1997) e consiste em: “... es la constitución de la psiquis en el sujetoindividual, e integra tambien los procesos y estados característicos aeste sujeito en cada uno de sus momentos de acción social, los qualesson inseparables del sentido subjetivo que dichos momentos tendrán

1 O presente trabalho deriva da dissertação de Mestrado do autor defen-dida na mesma universidade em fevereiro de 1999 e intitulada: “Frag-mentos Para Uma Compreensão Complexa da Terapia Familiar: Diálo-gos Epistemológicos Sobre as Emoções e a Subjetividade no SistemaTerapêutico.” Agradecimentos aos amigos e mestres Dr. FernandoGonzalez Rey, Drª Liana Fortunato Costa, à Drª Maria Fátima O.Sudbrack, à psicóloga Maria Helena Guerra Gomes Pereira pela tradu-ção do abstract e à psicóloga Júlia Wenke Motta de Castilho pelo ama-durecimento de muitas das idéias aqui presentes. Agradeço ainda àCAPES pelo apoio financeiro.

2 Endereço: SQS 411 Bl. C. apt º 101 Brasília – D.F. CEP.: 70 277-0303 Segundo Morin (1991/1998) sistemas de idéias “constituem-se de uma

constelação de conceitos associados de maneira sólida, cujoagenciamento é estabelecido por vínculos lógicos (ou com tal aparên-cia) em virtude de axiomas postulados e princípios de organizaçãosubjacentes.” (p. 163). Compõem-se de um núcleo irrefutável (axio-

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seu espaço: da mesma forma que o objeto de estudo dapsicologia – a subjetividade humana – encontra-se minuci-osamente repartida entre inúmeros fragmentos, correspon-dentes a distintos sistemas de idéias, as emoções, enquantoprocessos constituídos subjetivamente ao longo de uma his-tória com dimensões biológicas, individuais, sociais e cul-turais, encontram-se retalhadas entre numerosas perspecti-vas de estudo que, geralmente, colocam-se como única fonteexplicativa sobre as mesmas e demonstram efetiva hostili-dade quanto a propostas distintas de pensamento.

No entanto, o problema das emoções, como o da subje-tividade de um modo geral, levanta ainda outras questõesde considerável importância diante desse quadro. A primeiradelas consiste em indagar até que ponto é possível afirmarque a psicologia, na maioria das vezes imbuída de um forteteor de inspiração do paradigma científico ocidental (Morin,1991/1998; Santos, 1987), realmente efetivou estudos eteorizações condizentes com a complexidade da subjetivi-dade humana. A segunda, semelhante à primeira, consisteem interrogar até que ponto a psicologia pôde desenvolverestudos e teorizações condizentes com a complexidade dosprocessos emocionais. Justificam-se tais questões, uma vezque sendo essencialmente complexos e demandando umavisão altamente singular de compreensão, freqüentementeesses processos têm sido mutilados como objetos de estu-dos e compreendidos sob uma ótica utilizada para outrosobjetos de estudo, como as propriedades da matéria, o com-putador, os demais seres vivos, dentre outros (Anderson &Goolishian, 1994/1996; Gergen, 1996; Gergen & Kaye,1995/1998).

Contudo, ao invés de uma resposta direta e bem funda-mentada a tais questões, busca-se, por outro lado, uma bre-ve análise crítica sobre a construção do conhecimento emtorno do problema das emoções pontuando como o paradig-ma simplificador do ocidente não propiciou uma visão com-plexa sobre tal processo e quais seriam alguns dos possí-veis caminhos para a construção de uma compreensãoepistemológica nesse sentido. A compreensão complexa,inspirada particularmente pela obra de Morin (1990/1996;1991/1998), implica não apenas nas possíveis articulaçõesentre as distintas contribuições, mas, principalmente, nacontextualização dessas articulações no cenário de ques-tões epistemológicas fundamentais como as que dizem res-peito às disjunções clássicas do paradigma ocidental, comoa relação sujeito-objeto (Morin, 1991/1998; Santos, 1987).Sobre este ponto, o presente artigo levanta, a partir do estu-do das emoções, problemas de considerável importância,sobretudo os que visam uma nova qualificação para a con-dição humana na ciência.

A terapia familiar, por sua vez, apresenta considerávelvalor nessa discussão basicamente por um motivo: em suasdiversas influências (pós-modernas, construtivistas e ciber-

néticas) apresenta um paradoxo na medida em que promo-ve rupturas significativas com o paradigma dominante, mascessa seu desenvolvimento nesse sentido para novamentese atrelar ao seu domínio de simplificação. Desse modo,entende-se que seus desenvolvimentos teóricos e epistemo-lógicos, uma vez que se direcionam rumo à complexidade,podem contribuir significativamente para a construção denoções complexas, desde que se proceda também no senti-do de conhecer e problematizar os obstáculos epistemo-lógicos que continuamente subjugam-na ao paradigma do-minante. Logo, uma análise crítica dessas contradições podelançar luz tanto sobre o aproveitamento do potencial e dascontribuições já desenvolvidas, como levantar os tipos deobstáculos epistemológicos então presentes.

As Emoções e o Paradigma Simplificador da Ciência

Segundo Morin (1991/1998), os paradigmas, inscreven-do-se no núcleo dos sistemas de idéias, determinam a for-mação de idéias chaves e conceitos mestres, como tambémas regras e formas de associação entre elas. Constituindo-se em um momento central do conhecimento, o paradigmase faz invisível e inatacável diretamente, favorecendo umavisão da realidade que é tomada como certa e, ao mesmotempo, ocultando-se enquanto momento central e determi-nante. Toda essa forma complexa e, segundo certos autores(Morin, 1991/1998; Santos, 1987), obscura e poderosa deinfluência do paradigma na construção do conhecimentoganhou no ocidente uma característica singular: a partir doCogito de Descartes culminou-se uma tendência da épocaem se estabelecer uma rígida divisão entre o que seria ciên-cia e o que não seria, como entre o que competiria à suaalçada e o que deveria ser colocado como objeto de espe-culação em outros campos de estudo. Dessa forma, de umlado da divisão estabeleceu-se o conhecimento científicotido como um conhecimento superior que era capaz de per-mitir avanços até então inimagináveis de controle do ho-mem sobre a natureza, colocando-o como senhor desta (San-tos, 1987). O conhecimento objetivo, a estatística e a lin-guagem técnica e prosaica permitiam um estudo confiávelsobre os movimentos dos corpos e leis gravitacionais, semcontar no considerável esforço de “purificação” exercidosobre certas ciências e objetos de estudo: a medicina, livrede noções místicas como a de fluidos vitais; as reações quí-micas, libertas dos sortilégios da alquimia; e os movimen-tos dos astros, divorciados das superstições astrológicas.Do outro lado da divisão encontrava-se o reino da subjeti-vidade, do sujeito, das relações humanas, dos movimentossociais, das instituições, da espiritualidade, dentre outrosque, possuindo um tipo distinto de rigor, permitiam tam-bém uma linguagem poética e outras formas de expressão.Nesse eixo situavam-se disciplinas como a filosofia, o di-reito, a teologia, as artes e, um dos principais inimigos daciência, o senso-comum.

Desse modo, as ciências humanas e a própria psicolo-gia parecem encontrar um considerável dilema desde o iní-cio de seus nascimentos enquanto ciências: visam estudar

para él. Simultáneamente la subjetividad se expresa a nível social comoconstituyente de la vida social, momento que hemos designado comosubjetividad social, y no se diferencia de la individual por su origensino por el escenario de su constitución.” (p. 83)

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Emoções: Caminho Epistemologia Complexa

objetos de estudos ligados a processos sociais e subjetivos(como as emoções) que se encontram em um eixo da divi-são do paradigma ao mesmo tempo em que aspiram se cons-tituírem de acordo com os procedimentos confiáveis e váli-dos do conhecimento científico, localizado no eixo opostode tal divisão. A própria questão epistemológica do conhe-cimento do real parece agravar ainda mais o dilema ao de-terminar um conjunto de noções específicas para tal co-nhecimento. Semelhante questão sustenta que a realidade éfixa, ordenada e a-histórica e se organiza em torno de leisinvisíveis e universais (Gonzalez Rey, 1997; Vasconcellos,1995) que, uma vez conhecidas, podem permitir a previsãoe o controle dos fenômenos. A complexidade é compreen-dida como uma aparência do real (Morin, 1990/1996); maisque isso todo esse conjunto de aspectos interligados - ascondições iniciais - devem ser desprezadas para que se apre-endam os mecanismos invariáveis dessas leis (Santos, 1987).Desse modo, desde que se possua uma metodologia ade-quada aliada a uma teorização coerente com as exigênciascientíficas, pode-se depurar o conhecimento afastando deletudo aquilo que é ambíguo, contraditório e imprevisível,para se chegar a um conhecimento direto e isomórfico doreal (Gergen, 1996; Gonzalez Rey, 1997).

Nessa perspectiva de substituir o visível complicado peloinvisível simples, o pensamento científico operou preferen-cialmente de forma disjuntiva (Morin, 1991/1998). O co-nhecimento se dá como objetivo devido à pretensão de afas-tar toda e qualquer influência subjetiva, como as emoçõesconsideradas comumente como fontes de erro (GonzalezRey, 1997). Além da separação sujeito–objeto, as disjunçõesatingem também as separações estanques entre as discipli-nas, entre os momentos de produção do conhecimento (te-oria/metodologia), entre os momentos práticos e teóricos(pesquisa básica/aplicada) e no isolamento do objeto de seucontexto. Os objetos são comumente divididos em unida-des de análise cada vez mais atomizadas de modo a seremrelacionados tão somente por meio das correlações e pro-cedimentos estatísticos. Além da disjunção, o paradigmasimplificador impôs também como regra de associação ló-gica para a construção do pensamento uma perspectiva deredução, segundo a qual a multiplicidade aparente e inapro-priada para a abordagem científica deve ser reduzida a umaúnica forma de compreensão (Morin, 1991/1998). No en-tanto, embora entre as visões reducionistas se reconheça aexistência de outras fontes explicativas, elas freqüentementese concebem com pouca simpatia e consideram as possibi-lidades de articulação como utópicas.

Toda essa considerável presença do paradigma, emboraoculta e praticamente insondável, atingiu de forma signifi-cativa o estudo das emoções. Na tentativa de retalhar o realem unidades relevantes e confiáveis, estabelecem-se diver-sas operações isomórficas. As palavras correspondem dire-ta e respectivamente à tais unidades, como também suaspropriedades arbitrariamente ressaltadas podem correspon-der a números (Gergen & Kaye, 1995/1998). No entanto,um dos pontos fundamentais para tanto é a crença axiomá-tica dessa correspondência isomórfica. Como comenta

Pasquali (1997), é possível atribuir número aos fenômenosnaturais “... se nesta designação se salvarem tanto as pro-priedades estruturais do número quanto as característicaspróprias dos atributos dos fenômenos empíricos” (p. 29). Oestudo das emoções, como de qualquer processo subjetivo,seria então definido em termos de um objeto de interessepsicológico (sistema ou objeto de estudo) que implicariaem estruturas latentes (traços) portadoras de propriedadese passíveis de mensuração, em função de uma relaçãoisomórfica com comportamentos verbais ou motores - osúnicos acessíveis à observação científica (Pasquali, 1997).Tal perspectiva desconsidera o caráter irregular, processuale contraditório presente nas emoções que, segundo GonzalezRey (1997), não se esgota em nenhum outro sistema subje-tivo, embora interaja com eles, nem tampouco estabelecerelações isomórficas com os mesmos ou com quaisquercomportamentos observáveis.

No entanto, malgrado a autoridade axiomática em quea psicometria e outros pensamentos se baseiam, é justa-mente por um questionamento dessas bases que se rompecom uma noção fundamental presente, mesmo que de for-ma escamoteada, em importantes pensamentos da psicolo-gia: a ciência não consiste em um retrato fiel da realidade.Ela remonta muito mais à uma construção, ao mesmo tem-po individual e coletiva, que gera realidades na forma deconceitos, cosmovisões e pressupostos. Em outras palavras,esse tipo de discussão abre espaço para que se conceba aciência não como um monumento erigido à objetividadesem máculas, mas à uma obra humana, histórica e social-mente construída que implica em considerar a própria ob-jetividade como um momento construído intersubjetivamen-te (Morin, 1983; 1991/1998). É numa perspectiva seme-lhante que Kuhn (1970/1996) introduz o debate sobre osparadigmas e as comunidades científicas e que, mais re-centemente, Gergen (1996) propõe a idéia dos significadospartilhados nos “núcleos de inteligibilidade”. Na mesmavia de discussão pode-se sustentar que o isomorfismo comque se pretende conceber o estudo das emoções não encon-tra qualquer respaldo objetivo, mas apenas ganha sentidodentro das comunidades que partilham tais significados econstróem metáforas, no dizer de Anderson e Goolishian(1994/1996), para a compreensão do mundo. A corriqueirametáfora da substancialização do psiquismo implicou nacompreensão dos processos psíquicos dentro de noções espe-cíficas de realidade consagradas ao estudo do mundo físico.Tal se dá tanto com as noções isomórficas da psicometria,como com o aparelho psíquico da psicanálise que se inspi-ra no mecanicismo do movimento dos fluidos. Diversosautores, como Anderson e Goolishian (1994/1996) e Gergene Kaye (1995/1998), têm apresentado críticas incisivas atais concepções, ressaltando a necessidade de uma propos-ta que contemple especificamente os processos humanos.

As operações disjuntivas e reducionistas também sem-pre apareceram como marcantes, ao longo da história dapsicologia, no estudo das emoções. É possível que a ausên-cia de uma teoria mais ampla e dominante sobre a subjeti-vidade tenha contribuído sobremaneira para as diversas

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mutilações efetivadas sobre tal fenômeno. A partir da con-cepção estruturalista de Titchener (Schultz & Schultz, 1975/1981), alguns pontos relevantes, comumente presentes emdiversas escolas psicológicas, podem ser destacados parailustrar semelhantes operações de pensamento. Os proces-sos da consciência deveriam, a princípio, ser reduzidos aelementos ou unidades mais simples de análise de maneiraque processos como o amor, o ódio ou a tristeza, para se-rem qualificados na pauta científica de estudo, deveriamser decompostos em suas unidades básicas. Outras condi-ções importantes para tais estudos eram a busca de leis ge-rais para a explicação das emoções e a elucidação de suasbases fisiológicas. No entanto, ao se delimitar, em nome dadepuração objetiva dos procedimentos, a atomização dasunidades básicas, excluíam-se as múltiplas interações quetais processos desempenhavam com os demais sistemassubjetivos que implicam em irregularidades (ao contrárioda ordem desejada), em contradições (ao invés da unidadebuscada) e imprevisibilidade (ao invés das caras noções decontrole e previsão). Desse modo, verificava-se que, embo-ra abrangente, o procedimento científico não tomava aemoção como um processo em si que não se esgota emoutros processos, mas como um processo da consciência aser reduzido a unidades básicas isoladas entre si ou à suasbases fisiológicas. Gonzalez Rey (1997) sustenta que taltendência ainda é presente na psicologia, mesmo nos mo-vimentos mais recentes, de modo que a emoção comumenteé reduzida à outra dimensão humana como os processosfisiológicos ou as construções da linguagem. Outra conse-qüência importante liga-se com a freqüente desconsideraçãosobre o sujeito, sua história e seus contextos relacionais, demodo que a qualificação do emocional ocorre em um cená-rio distante de seu cotidiano – o laboratório. No entanto,mesmo em um ambiente mais íntimo e aconchegante comoa clínica, deve-se levantar que as noções universais toma-das a priori para a definição de conteúdos (como o Édipoda psicanálise ou as noções cibernéticas de primeira or-dem) também consistem muitas vezes em uma desconside-ração do emocional dos sujeitos, uma vez que, ao invés debuscarem compreender tais processos em sua singularida-de histórica, subjetiva e relacional, preferencialmente im-põem uma narrativa teórica aos mesmos (Anderson &Goolishian, 1988; Gonzalez Rey, 1997; Gergen & Kaye,1995/1998).

Desse modo, ao mesmo tempo em que busca contem-plar uma das dimensões fundamentais do homem, a ciên-cia o afasta do cenário de estudo. Há uma incoerência naprópria condição do homem no paradigma dominante: aomesmo tempo em que é o senhor da natureza, capaz decontrolá-la e prever seus movimentos, ele é rejeitado nasua condição humana. Ganha sentido, então, a colocaçãode Gonzalez Rey (1997) em que as emoções são considera-das como fonte de erro, pois quando o foco se dá no sujeitoda pesquisa ou no sujeito pesquisador (enfim, nos homensque participam e constróem tal estudo), diversas condiçõessão levantadas para que o aspecto subjetivo e desordenadonão coloque em risco a validade do procedimento. Quanto

ao sujeito pesquisador os cuidados são ainda maiores, poisuma vigilância implacável se faz necessária para se evitaro malogro. A linguagem científica é, via-de-regra, impes-soal, emitida em terceira pessoa; o mundo interno do pes-quisador é desprezado em sua qualidade subjetiva, poucoimportando suas opiniões informais, seus desejos e aspira-ções, mesmo que tais dimensões atuem decisivamente emsua produção; se algum fato acidental e imprevisível, comoum sonho, ajuda no desencadeamento da solução de umproblema de grande importância é concebido como mera ecuriosa artimanha do acaso e nada mais. Em outras pala-vras, a subjetividade do pesquisador torna-se um terrenoproibido.

Todo esse quadro de distanciamento que o problemadas emoções introduz traz à tona uma questão de grandeimportância: ao afastar o homem do cenário científico aciência promete estudá-lo, mas também omite-se ao nãolhe trazer importantes respostas. É por esse motivo, mesmoque não se responda à pergunta sobre até que ponto a psi-cologia efetivou um estudo sobre as emoções, pode-se sus-tentar ao menos que o tal estudo consiste em uma questãode desencanto, conforme levantado por Prigogine e Stengers(1984/1997):

A ciência desencanta o mundo; tudo aquilo que descreve seencontra irremediavelmente reduzido a um caso de aplica-ção de leis gerais, desprovidas de interesse particular. O que,para gerações passadas, havia sido uma fonte de alegria oude admiração seca à sua aproximação (...) O que a ciênciaclássica toca, seca e morre. Morre para a diversidade quali-tativa, para a singularidade, para a simples conseqüência deuma lei geral. (pp. 22 e 39).

Especificamente quanto ao estudo das emoções, o pes-simismo científico contribuiu para a construção de um con-junto de representações de considerável teor pejorativo.Além de ser considerada potencialmente subversiva para aempresa científica (Neubern, 1999a) ela conta ainda comum conjunto de atribuições também presentes nos camposprofissionais e de senso-comum, conforme ressaltado porMahoney (1991): 1) processos compreendidos como segre-gados dos processos mentais “superiores” e relegadas a ní-veis inferiores ou animais; 2) forças primárias que movemos sujeitos a atos irracionais e potencialmente destrutivos;3) “primer movers” nas interações com pensamento e comas ações; 4) promovem influência desorganizadora na adap-tação e no comportamento humanos; 5) emoções “negati-vas” como medo, ódio e depressão são particularmente pe-rigosas e, portanto, indesejáveis; 6) a maioria dos esforçosprofissionais que lidam com pacientes crônicos de intensasemoções é o de buscar a descarga, por um lado, o controle,a eliminação e a regulação, por outro, e, em ultimo caso, oentendimento das mesmas (p. 190).

É dentro desse contexto que numerosos autores ressal-tam e propõem, em diferentes níveis, reformulações signi-ficativas no cenário da psicologia a fim de conceberem umanoção de homem distinta com os próprios avanços científi-cos do século. A psicologia, em numerosos de seus setores,

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Emoções: Caminho Epistemologia Complexa

ainda apresenta um homem do século passado que muitasvezes parece aturdido ante um novo mundo descortinadopela física moderna. Um dos principais níveis de reformu-lação é o epistemológico em que a criticada noção objetivaé substituída por um conhecimento construído, seja noscenários sociais (Gergen, 1996; Gergen & Kaye, 1995/1998), seja por uma relação dialética e complexa com oreal que envolve indivíduos e comunidades (Gonzalez Rey,1997; Mahoney, 1991; Guidano, 1994; Morin, 1990/1996;1991/1998). Malgrado as diferenças, enfatiza-se tambémuma abrangência maior para a questão, extrapolando a sim-ples e isolada questão individual, buscando tocar os aspec-tos ideológicos, políticos, morais, econômicos e sócio-cul-turais envolvidos (Santos, 1989; Gergen, 1996, GonzalezRey, 1997; Morin, 1991/1998), as possíveis aproximaçõescom outros ramos do conhecimento (Santos, 1987; Morin,1990/1996; 1991/1998; Demo, 1997) e formas de aborda-gem e intervenção que buscam uma aproximação e partici-pação distinta dos sujeitos estudados, procurando compre-ender suas cosmovisões, valores e potenciais para lidar comos dilemas cotidianos (Costa, 1998; Demo, 1997). Contu-do, especificamente no que se refere ao tema das emoções,embora existam propostas de diferentes formas de compre-ensão, alguns pontos podem ser destacados. A princípio,torna-se necessária a criação de um contexto epistemo-lógico, teórico e metodológico que permita as distintas ex-pressões subjetivas em que as emoções se organizam paraserem qualificadas numa linguagem coerente com sua com-plexidade. Tal contexto implica em um diálogo inacabadoe emocionalmente vinculado que não descaracterize seussentidos singulares nesses processos. A antiga divisão su-jeito–objeto é relativizada, principalmente porque a pró-pria subjetividade do pesquisador (como do observador dafísica) deixa de ser um terreno inexplorado, para se consti-tuir no desafio de uma importante zona de sentido da em-presa científica (Elkaïm, 1989/1990; Neubern, 1999a;Morin, 1991/1998). Inicia-se o percurso para um novo reen-cantamento.

A Terapia Familiar: Limites e Contribuições ParaUma Epistemologia Complexa

Pode-se destacar que os três grandes movimentos quecontribuem epistemologicamente para o diversificado mo-vimento da terapia familiar são a cibernética (entrelaçadacom a sistêmica5), o construtivismo e a pós-modernidade.

A noção de que não se pode conceber uma realidadeindependente de um observador, mas que a realidade éconstruída por esse observador na interação com o mundo

(Bateson, 1998; Keeney, 1994) constitui-se em um dos pas-sos mais importantes da cibernética para uma ruptura como isomorfismo dominante na ciência. Após uma considerá-vel influência simplificadora presente em seus primórdioscomo a noção de controle, de um conhecimento objetivo ede um sistema ordenado em padrões (Vasconcellos, 1995)passou-se a conceber que o conhecimento é construído apartir de elos recursivos entre o que é passível de descriçãopelo observador e suas interpretações subjetivas sobre arealidade descrita. Em outras palavras, o observador conec-ta-se com o que observa e, ao se referir ao observado, refe-re-se a si mesmo. Embora não tenha desenvolvido uma te-oria complexa sobre a subjetividade, o problema das emo-ções situa-se nesse ponto, isto é, em como as emoções doobservador conectam-se com aquilo que se observa. Con-tudo, com a noção de que não se pode afirmar até que pon-to se é subjetivo ou objetivo, mas apenas que a observaçãoremete à ética do observador (Keeney, 1994), o própriomovimento cibernético parece ter esgotado o debate dasrelações com o real concentrando-se muito mais no mundodo observador. Tal concepção, de considerável valor noconstrutivismo radical, exclui a possibilidade epistemoló-gica de uma participação ativa do real que não se esgotenas construções daquele que observa.

Já quanto à noção de sistema, que consiste em um dosprincipais pontos de discussão da cibernética, Morin (1990/1996) ressalta que, embora tenha abrangido uma generali-dade em diversas ciências, ela não adquire um lugar episte-mológico, uma vez que não funda uma forma radicalmentedistinta de pensar. Em outras palavras, ela não se constituienquanto conceito de um paradigma, onde estaria inseridonum conjunto de relações com outros conceitos, mas vin-cula a idéia sistêmica com a noção substancialista de obje-to, em que o sistema está ligado à uma noção de “coisa”,não sendo compreendida como um conceito. A noção desistema torna-se, então, reducionista, pois tudo o que seconcebe em termos de sistema é reconhecido em função doholismo que, comumente, exclui a diversidade e a singula-ridade das partes. Desse modo, um sintoma de abuso dedrogas por um adolescente, que implica em dimensões so-ciais, econômicas, jurídicas e culturais, passa a ser com-preendido exclusivamente em função dos conflitos famili-ares. Diante do obstáculo promovido pelo holismo sistêmi-co, as emoções também são enquadradas em seu reducio-nismo, pois não sendo reconhecidas como um processo sub-jetivo que mantém interações múltiplas com outros proces-sos sem se esgotar neles, são justamente esgotadas na pau-ta interativa. A inexistência de uma teoria complexa da sub-jetividade contribui, nesse sentido, para que a compreen-são das emoções se constitua em inúmeras indefinições ouem diversos isomorfismos (como quanto às expressões ver-bais).

Sendo assim, Morin (1990/1996) sustenta que torna-senecessário que se conceba o sistema em função do UnitasMultiplex, ou seja, do que é, ao mesmo tempo, uno e diver-so, compreendendo um conjunto de relações complexas dotodo consigo mesmo, das partes consigo mesmas e entre o

5 Embora se possa traçar uma distinção entre ambos (Keeney, 1994), asnoções cibernéticas e sistêmicas serão aqui tratadas como equivalen-tes. É correto afirmar que entre as contribuições de Bateson (1998) eseus discípulos e as contribuições de von Bertalanffy (1968/1973) po-dem ser traçadas diferenças significativas. No entanto, para a grandemaioria dos autores de terapia familiar tais diferenças não são conside-radas.

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todo e as partes. Neubern (1999a; 1999b), apropriando-sede um momento dessa idéia, propõe a noção de um sujeitohologramático que sintetiza singularmente em si as intera-ções que desenvolve com vários “todos” sem se esgotar emnenhum deles. Desse modo, embora se possa compreenderque o abuso de drogas encontra na família um momentofundamental de explicação ele remete a muitos outros con-textos e processos que vão além dos limites familiares. Aparte torna-se, nesse momento, maior que o todo, pois ne-nhum todo será capaz de esgotar e reduzir sua complexida-de, pois cada parte qualifica singularmente em si sua intera-ção com numerosos contextos atuais e históricos.

Diante de tal quadro seria correto afirmar que numero-sos autores têm contribuído significativamente na revisãodos limites da teoria sistêmica, embora ainda não se possaafirmar que se tenha logrado a construção de um paradigmasistêmico. Elkaïm (1989/1990) propõe os conceitos de reu-niões e ressonâncias6 como singularidades (culturais, sub-jetivas, familiares, relacionais, etc) que não se integram nosmodelos teóricos e dizem respeito tanto aos processos dafamília como dos terapeutas que a atendem, bem como dasinstituições em que se encontram. É interessante notar que,com tais conceitos, Elkaïm inclui importantes relações en-tre dimensões comumente contrapostas nas teorias sistêmi-cas, como o atual e o histórico, os indivíduos e os sistemas,e o que se integra ou não nos modelos teóricos. Contudo, oautor não logra um desenvolvimento epistemológico maisabrangente e profundo que possa defini-las com maior pre-cisão epistemológica. Este problema parece também acom-panhar outras importantes contribuições da terapia famili-ar, como as noções de complexidade no sistema familiar(Ausloos, 1995), a construção da demanda (Sudbrack &Doneda, 1992) e a epistemologia do sentir (Pakmam, 1991)que procuram contemplar as próprias emoções em funçãode suas integrações com outros processos, seus momentosirregulares e imprevisíveis e suas dimensões sociais e indi-viduais. Apesar disso, não se pode perder de vista que taiscontribuições, além da importância prática em que impli-cam, poderão ser substanciais para desenvolvimentos pos-teriores. A própria obra de Selvini Palazzoli (SelviniPalazzoli, Cirillo, Selvini & Sorrentino, 1988/1998) apre-senta contribuições significativas na crítica às teorias sis-têmicas e para o pensamento complexo.

Nesse sentido, compreende-se que uma das principaisdificuldades presentes na terapia familiar consiste ainda naprópria influência holística também presente no nível dainteração entre sistemas de idéias distintos. Vasconcellos(1998), ao apontar para uma grande proximidade entre pen-samentos distintos, como o construtivismo e o construcio-nismo social, praticamente desconsidera as diferenças en-tre os mesmos, o que é passível de críticas principalmente

pela impossibilidade de diálogo que se estabelece. Umavez que os sistemas de idéias não são compreendidos emsuas singularidades e que as diferenças e os conflitos sãoexcluídos do foco de análise torna-se difícil conceber apossibilidade de integrações e construções mais abrangentes.Sendo assim, ao mesmo tempo em que promovem rupturascom a simplificação dominante, os pensamentos sistêmicose cibernéticos também se atrelam firmemente aos mesmosampliando suas próprias contradições. Além das disjunçõesclássicas presentes no paradigma dominante (como teoria/prática e clínica/pesquisa) a construção do conhecimentocientífico na terapia familiar parece receber considerávelparcela de inspiração desse paradigma. Moon, Dillon eSprenkle (1990) ressaltam que apesar da afinidade existen-te entre os conceitos sistêmicos e cibernéticos e a pesquisaqualitativa, a metodologia tradicional de pesquisa (que en-volve conceitos como neutralidade, objetividade, estatísti-ca, dentro de múltiplas noções isomórficas) continua sendodominante na terapia familiar.

Dentre as diferentes ramificações do construtivismo(Mahoney, 1991), o construtivismo radical foi o que maisinfluenciou o movimento da terapia familiar. Apresentan-do muitos pontos comuns com a noção do observador deBateson (1998), ele se constitui em importante tendênciateórica de questionamento do isomorfismo dominante, aopreconizar que não é possível afirmar sobre uma corres-pondência entre a atividade da inteligência e o mundo real(match), mas apenas que é possível se referir a um encaixe(fit) entre as seqüências dessa atividade do intelecto que sevolta para uma finalidade (von Glasersfeld, 1981/1994).Esse autor, além de enfatizar a questão individual e inte-lectual da construção da realidade, propõe ainda que aepistemologia deve se referir ao estudo de como a inteli-gência opera. A obra de Maturana (1996) promove consi-derável avanço no construtivismo radical, uma vez que in-clui outras dimensões importantes da subjetividade, comoo diálogo e as emoções que, segundo ele, constituem-se emdisposições orgânicas para a ação. Verifica-se, contudo, queo construtivismo radical, embora compreenda importantescontribuições, apresenta-se ligado a certa forma de simpli-ficação, como quando reduz a fonte do conhecimento e aepistemologia ao indivíduo7 ou ao conceber as emoçõesapenas em função de suas dimensões biológicas que mobi-lizam para a ação. É como se o autor ainda se mantivesseatrelado a uma noção linear em que as emoções mobilizampara algo8, sem destacar as múltiplas relações dialéticas eprocessuais que desenvolve com os demais sistemas e pro-cessos subjetivos. Desconsidera ainda a emoção como umprocesso subjetivo em si que possui suas bases biológicas,embora não se esgote nelas.

Compreende-se, por outro lado, que outras ramificaçõesdo construtivismo podem sugerir noções significativas para

6 Ressonâncias seriam os pontos de interseção entre as diferentes reuni-ões de singularidades provenientes da subjetividade dos indivíduos,famílias, instituições e coletividades. Podem compreender peculiari-dades regionais, o tom de voz, a dança de comportamentos não ver-bais, etc.

7 Segundo Gergen (1996) tal problema se constitui no ponto morto doconhecimento individual.

8 O que Mahoney (1991) denomina como “primer movers”.

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uma epistemologia complexa. Diversos autores (Mahoney,1991; Guidano, 1994) sugerem, de suas respectivas manei-ras, a importância de se reconhecer uma ontologia do realque não pode ser conhecida diretamente (conhecimentoválido), mas com a qual se pode estabelecer um conheci-mento viável. Apesar de não disporem propriamente de umalinguagem e de uma cosmovisão complexas autores comoGreenberg, Rice e Elliot (1996) apontam para múltiplasformas de conexões que envolvem os processos emocio-nais, situando-as como um lugar de encontro da mente, docorpo, da cultura, do meio e da conduta (p. 76).

Em uma perspectiva distinta, o pensamento pós-moder-no sustenta que os processos de construção de significadosse dão incrustados nas relações sociais e nos processos cul-turais mais amplos. Ao criticar o isomorfismo presente noempirismo científico, Gergen (1985; 1996) numa perspec-tiva construcionista social9 propõe importantes fundamen-tos que procuram ir além do antigo embate entre o empi-rismo e o racionalismo na psicologia: 1) os termos com quecompreendemos o mundo e a nós não são ditados pela rea-lidade externa; 2) são artefatos sociais produzidos no inter-câmbio situado histórica e culturalmente entre as pessoas;3) prevalecem no tempo não devido à sua validade objeti-va, mas às vicissitudes do processo social; 4) a significaçãoda linguagem nos assuntos humanos é derivada do modocomo funciona nas pautas relacionais. Na mesma linha depensamento, Gergen e Kaye (1995/1998) apontam que oproblema do conhecimento deve ser qualificado basicamen-te em torno de dois parâmetros: os “jogos de linguagem”em que as palavras adquirem sentido por seu uso nas rela-ções sociais e, as “formas de vida”, em que tais jogos sãoembutidos, que comportam regras culturais mais amplasque não se restringem ao reino lingüístico, mas abrangemainda movimentos corporais e objetos do ambiente10.

O problema da linguagem adquire um sentido funda-mental no pensamento pós-moderno, principalmente noconstrucionismo social que é referido como ontologica-mente mudo (Gergen, 1996). Diferentemente das noçõescibernéticas iniciais, em que o sintoma era tido como umproduto do sistema e a linguagem como um produto daestrutura social, os sistemas humanos passam a ser conce-bidos como sistemas lingüísticos geradores de sentido(Anderson & Goolishian, 1988). Dito de outro modo, a ge-ração de sentidos ligados à patologia e à cura não se deve auma disfunção do sistema familiar, mas à forma como seorganiza a geração de significados em torno do problema.A própria noção de self, antes compreendida como entida-de individual, passa a abranger os múltiplos cenários soci-ais em que cada um interage e gera sentidos (Anderson &Goolishian, 1994/1996) o que contradiz a idéia do indiví-duo como a sede do pensamento, do juízo, da história, da

patologia e das emoções (Hoffman, 1992). Desse modo, oestudo das emoções passa, numa perspectiva construcionista(Gergen, 1996), tanto por uma geração de significados nointercâmbio social (sincronia) como num contexto históri-co e cultural mais abrangente (diacronia): ao produzir emo-ções no intercâmbio relacional, a pessoa desempenha umpapel num cenário mais amplo, de modo que a expressãodo outro torna-se um convite para a participação em umjogo ou dança cultural em que os envolvidos se comprome-tem (pp. 272-275). Logo, estar furioso na leitura construcio-nista (Gergen & Kaye, 1995/1998) implica tanto no uso decertas palavras dentro dos jogos de linguagem, como tam-bém em certas ações corporais (p. ex. o ranger de dentes)que remontam às formas de vida em que os jogos de lin-guagem estão embutidos (p. 214).

Pode-se ressaltar que as propostas pós-modernas con-tribuem significativamente, quer para o debate epistemoló-gico, quer para a possibilidade de uma construção comple-xa. A forma como situam a linguagem pode consistir emum nível integrativo ao pontuar os conhecimentos (inclusi-ve o científico) como narrativas construídas nos processoshumanos e não como retratos mais o menos fiéis do real.Ao mesmo tempo inclui a necessidade de uma construçãomais local, baseada em singularidades sócio-culturais, queaponta para o caráter inacabado do conhecimento, uma vezque o conhecimento não pode esgotar a complexidade doreal com que dialoga. Por outro lado, tais propostas tam-bém se encontram marcadas fortemente pela influênciasimplificadora, como se pode verificar no papel hipertrofia-do que a linguagem assume. Despreza-se praticamente qual-quer participação ativa do real e, ao mesmo tempo, descon-sideram-se processos que não se esgotam nas construçõeslingüísticas, como as emoções e um conjunto de experiên-cias indizíveis altamente marcadas pelo emocional, comose dá com experiências de êxtase religioso. Além disso, osocial se sobrepõe ao sujeito, como se toda e qualquer expe-riência ou estado interno se esgotasse nas pautas interativas,o que consiste em um grave problema, pois a subjetividadeindividual, embora também social em muitos momentos,implica em zonas de sentido de fundamental importânciapara o estudo de processos como as emoções.

Passos Para Uma Articulação Complexa

No paradigma simplificador, objetividade e subjetivi-dade são definidos basicamente por oposição, em que oprimeiro se refere a uma condição fundamental para umconhecimento válido do real. No entanto, de acordo com acontribuição de muitos autores (Morin, 1983; 1991/1998;Gergen, 1996; Santos, 1987) a objetividade deixa de con-sistir num retrato fiel do real para se situar como produçãode todo um interjogo subjetivo próprio das comunidadescientíficas em que se compartilham e definem o consensosobre as regras de aceitação, pressupostos, crenças e valo-res da e sobre a ciência que fundamentarão a própria cons-trução do que se concebe como objetivo. Além desse nívelcompartilhado e consciente, há também uma dimensão

9 O construcionismo social é considerado, segundo Gergen (1996), comoum dos mais fiéis movimentos da pós-modernidade na psicologia.

10 Trata-se de uma referência à Wittgenstein também encontrada em ou-tras obras do autor (Gergen 1985; 1996).

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comumente velada e conflituosa das comunidades científi-cas em que se inserem as oposições entre teorias e metafí-sicas não ditas, conflitos pessoais em torno de simpatias,antipatias, frustrações e ambições (Morin, 1983). Sendoassim, pode-se comparar, na mesma linha de pensamentodesse autor, que o que é objetivo é semelhante à ponta deum iceberg de um universo intersubjetivo, o que implicaainda em considerar que o objetivo, abrindo um espaço dediálogo com o real, permitirá também um conjunto de in-fluências sobre tal universo. Desse modo, verifica-se que, apartir de uma dicotomia, a questão subjetividade-objetivi-dade abre dois importantes eixos para o debate epistemoló-gico de uma visão complexa. O primeiro deles consistenuma relação dialética entre ambos, em que cada um possuipapel ativo na construção do conhecimento: à medida queo sujeito constrói sobre as zonas de sentido do real, estenão se acomoda passivamente a tais construções e apresen-ta facetas novas, irregularidades, ruídos que levam o sujei-to a novas formulações num processo de diálogo inacabado(Gonzalez Rey, 1997; Neubern, 1999a). Semelhante relaçãocom o mundo favorece que o sujeito venha a se consistirem um dos momentos fundamentais da construção do co-nhecimento, ao invés de se configurar exclusivamente comoum simples produto determinado de uma superestrutura,como se dá com o discurso e a pauta interativa em algunsautores pós-modernos (Gergen, 1996; Hoffman, 1992).

Ao considerar o sujeito como um momento fundamen-tal para o conhecimento, toca-se no segundo eixo levanta-do que é o da articulação dos múltiplos momentos presen-tes nesse processo. Trata-se de um ecossistema global(Morin, 1991/1998) em que se articulam múltiplas dimen-sões como a dos sujeitos, das relações sociais, da socieda-de, da cultura, da política, da economia, da noosfera11, den-tre outras, que remetem ao próprio sentido da palavracomplexus levantada por Morin (1983; 1990/1996; 1991/1998): um todo formado pela articulação das partes, masque não esgota as propriedades dessas partes. No que serefere à construção do conhecimento, tal discussão adquireconsiderável importância por levantar o próprio cenário deseu surgimento, ao mesmo tempo uno e múltiplo (UnitasMultiplex), que interfere decisivamente nessa própria cons-trução. O mito da neutralidade afastou por muito tempodos seios das comunidades científicas debates sobre a ideo-logia, a moral, os movimentos sociais e as guerras que nãodeixaram de promover importantes percursos e repercus-sões nos destinos da ciência. A ciência, inspirada pelo para-digma dominante no ocidente, compreende, ao mesmo tem-po, uma postura ativa de conhecimento sobre o mundo e decegueira sobre si, uma vez que não ousa lançar seus aguça-dos instrumentos sobre as condições e momentos históri-cos em que ela mesma surge.

Nesse contexto, o problema das emoções reveste-se deconsiderável valor por consistir em um dos processos sub-jetivos de grande importância a ser compreendido nos pro-cessos humanos em geral e, especificamente, na constru-ção do conhecimento científico. Seu estudo toca, não só osmúltiplos níveis de articulação promovidos pelo diálogoentre pensamentos diversos, mas principalmente por pro-mover, em conjunto com outros movimentos científicos,uma nova forma de re-inserção e reconhecimento da con-dição humana na ciência. Desse modo, o estudo das emo-ções enquanto processos subjetivos promove uma discus-são em dois sentidos: a articulação entre contribuições dis-tintas para compreendê-la como processo complexo da sub-jetividade e sua participação na promoção de um novo pa-pel para o cientista. Justifica-se o primeiro ponto em fun-ção do segundo, pois uma visão complexa sobre as emo-ções poderia romper com a mesma cegueira epistemológicaque distanciou o homem do cenário científico; justifica-seo segundo em função do primeiro, pois a partir de um co-nhecimento lançado sobre as próprias condições em que oconhecimento surge pode-se compreender melhor os per-cursos de estudo tomados sobre a subjetividade e as emo-ções humanas.

Buscando abranger a integração entre esses dois senti-dos, Neubern (1999a) propõe a noção de fragmentos comoidéias iniciais de uma visão complexa geradas a partir dodiálogo entre diferentes contribuições que abrangem o ce-nário do conhecimento, a complexidade subjetiva e emoci-onal e o papel do sujeito na construção científica.1) O diálogo com o real que gera um conhecimento passa

por momentos de diacronia e sincronia, mas não esgo-ta a dimensão ontológica do real.1.1) O papel da diacronia remonta à construção cultu-

ral de um tema, enquanto o da sincronia às cons-truções geradas na micropolítica social. No en-tanto, o papel ativo do real promove constantesreformulações nas construções do sujeito (conhe-cimento inacabado e processual).

1.2) A linguagem não é a única dimensão na constru-ção do conhecimento. Existem momentos refe-rentes à subjetividade do pesquisador e às suasrelações com o real presentes nessa construçãoque não se esgotam na linguagem12 e atuam deci-sivamente em tais construções.

2) Deve-se privilegiar o cenário subjetivo dos sujeitosnuma perspectiva que inclua as narrativas como mo-mentos fundamentais da expressão subjetiva, mas quenão se esgote nelas.2.1) A construção complexa inclui a elaboração de ca-

tegorias que não se impõem à priori por seus con-teúdos, mas permitem a articulação entre diver-sos de seus processos.

11 Segundo Morin (1983; 1991/1998), que se apropria das concepçõesde Popper, além dos reinos das coisas materiais e das experiências vi-vidas, haveria também um terceiro reino – o das coisas do espírito-compostos por sistemas de idéias (entidades logomorfas, doutrinas,teorias) paixões, mitos, seres cosmo-bio-antropomórficos e sistemasreligiosos.

12 Tais como os sentidos, motivos, necesssidades e configurações apon-tados por Gonzalez Rey (1997) em que as emoções se integram com-plexamente.

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2.2) Isto implica em dois momentos de teorização emque a noção de singularidade é fundamental: umsobre a subjetividade e suas articulações entredimensões classicamente distintas (atual x histó-rico; cognição x emoção; individual x social;consciente x inconsciente; etc) onde se delinei-am interações entre necessidades, motivos, senti-dos e configurações (Gonzalez Rey, 1997). Outrosobre uma teorização abrangente e científica dosujeito, em seu momento ativo, consciente e in-tencional.

2.3) A teorização sobre a subjetividade implica emuma noção de emergência entre dimensões dis-tintas (corpo biológico – subjetividade – sujeito)que, embora entrelaçadas entre si e com relativadependência mútua, não se esgotam umas nas ou-tras e possuem relativa autonomia entre si – para-doxo autonomia-dependência (Morin, 1990/1996;1991/1998). A noção de emergência implica emrupturas com determinações históricas (como no“livre arbítrio” dos sujeitos ao romperem relati-vamente com as determinações históricas da sub-jetividade em que se constitui).

3) O sujeito é auto-eco-organizado (Morin, 1990/1996),isto é, mantém um paradoxo autonomia-dependênciaquanto ao cenário do conhecimento.3.1) Ele recebe a determinação dos paradigmas domi-

nantes que lhe impõe conceitos, formas de pen-sar e visão de mundo sobre seu conhecimento.Ele os internaliza e os reproduz.

3.2) Porém, sob certas condições (Morin, 1991/1998),sua forma singular de qualificar as influências econtradições dos paradigmas e seu caráter ativopodem promover novos laços recursivos no cená-rio do conhecimento, implicando até em rupturase revoluções.

4) A perspectiva de um paradigma e de uma epistemologiacomplexos abre espaço, portanto, para várias dimen-sões da construção do conhecimento no sentido doUnitas Multiplex em que existe uma diversidade de ondepode emergir certa unidade, mas que não anula as qua-lidades diversas das partes.4.1) Logo, as relações sujeito–comunidade científica

dentro de um ecossistema sócio-cultural-nooló-gico, comportam um todo em que os diversosmomentos são atuantes sem se esgotarem dentrode uma super estrutura, apesar das determinaçõespromovidas pelos paradigmas. A presença demúltiplas reuniões e ressonâncias (Elkaïm, 1989/1990) permite o resgate dos processos subjetivosna construção do conhecimento.

4.2) O diálogo, antes suprimido pela tentativa homo-geneizadora do paradigma dominante (verdadeúnica), passa a possuir um caráter fundamentalpor permitir a construção de idéias que promo-vam a articulação entre noções distintas a partirde suas peculiaridades.

5) A subjetividade é complexa, multifacetada e integradimensões classicamente opostas.5.1) Em cada cenário de ação social, o sujeito desen-

volve um conjunto complexo de processos subje-tivos que serão qualificados a partir de sua pró-pria singularidade e ao longo de sua história. En-tretanto, não se esgota nem mantém relaçõesisomórficas com tais cenários.

5.2) Cada sujeito é, desse modo, uma síntese singulare complexa dos cenários em que participa – no-ção de holograma (Morin, 1990/1996; Neubern,1999-b).

6) Problemas criam sistemas, isto é, em torno de um pro-blema organizam-se múltiplas dimensões da subjetivi-dade, envolvendo indivíduos, grupos, instituições, co-munidades, etc, que se inserem no ecossistema com-plexo onde surge o conhecimento.

7) As emoções são fenômenos complexos que abrangemmúltiplas dimensões.7.1) Possuem um substrato biológico e se constituem

enquanto ontologias subjetivas ao longo do de-senvolvimento do sujeito que se dá em sua intera-ção com o social. São, nesse sentido, internas,mas ligam-se de forma não linear com o espaçosocial. Compõem também um sistema interativoque implica na constituição de um sistema emo-cional, isto é, da conexão sistêmica das emoçõesindividuais. São reconhecidas dentro de um dis-curso cultural que permite com que sejam desig-nadas e construídas ao longo de seu processo.

7.2) Implicam numa possibilidade de reflexão que asintegre no cenário subjetivo13 apontando suas ar-ticulações com os demais processos ao longo deum percurso histórico e irreversível. As articula-ções devem manter um espaço de integração quenão anulem uma dimensão em função da outra,mas permita a emergência de zonas de sentidomais complexas14.

8) A pauta conectiva entre as emoções do pesquisador e asituação em que se insere para estudo ressalta o valorepistemológico das emoções na construção do conhe-cimento. Ao permitir o reconhecimento, a valorizaçãoe a integração da subjetividade do pesquisador na cons-trução do conhecimento, aponta-se para dimensões fun-damentais desse processo, antes desprezados ou consi-derados como fonte de erro.

Verifica-se, então, que, embora não funde uma epistemo-logia complexa, a noção de fragmentos trazidas por Neubern(1999a) pode vir a consistir em um relevante passo parauma discussão mais abrangente nesse rumo. O diálogo en-

13 Conforme mencionadas na nota anterior.14 Como a categoria sentido de Gonzalez Rey (1997) em que muitas emo-

ções são integradas, mas existe uma qualidade emocional dominanteque não suprime as contradições dessa multiplicidade. Os sentidos li-gam-se a configurações e são comumente inconscientes.

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tre sistemas de idéias distintos consiste, para tanto, em umacondição fundamental, pois apenas numa compreensão queabarque as idéias distintas dentro de sua própria perspecti-va é que se pode buscar integrá-las dentro de uma compre-ensão no sentido do Unitas Multiplex. Por outro lado, oproblema das emoções implica em um ponto fundamentalpara esse diálogo basicamente por dois motivos. Primeira-mente por ter consistido em uma das dimensões subjetivasmais mutiladas ao longo da história dos estudos psicológi-cos. Pode-se compreender assim por meio de tal estudocomo os obstáculos reducionistas permitem certo tipo deavanço, mas acabam impedindo o acesso de zonas de senti-do fundamentais sobre os processos de emoções. Ao mes-mo tempo, ao se vislumbrar a integração ao invés da redu-ção, a articulação ao invés da disjunção, o diverso que per-mite um todo, mas que não anula o particular e ao se en-contrar um espaço para o heterogêneo, para o contraditó-rio, o irregular e o irreversível dentro de um processo histó-rico importantes perspectivas são abertas não apenas para oestudo das emoções, mas também quanto à instauração deuma nova forma de pensar. O segundo ponto consiste naprópria condição humana do conhecimento que o estudodas emoções favorece conforme ressaltado precisamenteno item n º 8. A quebra da dicotomia sujeito-objeto apontapara uma nova dimensão a ser qualificada na construção doconhecimento, principalmente porque a ciência deste sé-culo inclui a figura de um observador (Bateson, 1998; Capra,1975/1983; Keeney, 1994; Morin, 1990/1996; 1991/1998;Prigogine & Stengers, 1984/1997) como um elo de funda-mental valor para a compreensão do mundo. Contudo, di-ante de tantas perspectivas que caminham na direção deum novo paradigma, ainda se iniciam transformações maisabrangentes e profundas sobre a própria complexidade dasubjetividade desse observador. Um grande desafio estácolocado para a psicologia.

Considerações Finais: Um Retorno A Delfos

Na medida em que a ciência promoveu múltiplas disjun-ções e reduções para conhecer o mundo, propiciou umacegueira sistematizada a respeito de si, do contexto e docenário histórico em que surge, como também de seus pró-prios pressupostos epistemológicos (Morin, 1990/1996;1991/1998; Santos, 1987; 1989). O conjunto de disjunçõespromovidos entre os diferentes momentos de construçãodo conhecimento revelam, além de tudo, outro tipo de ce-gueira fundamental: para que o cientista conheça o mundo,ele deve proceder a um rígido e sistemático processo decoerção de suas próprias expressões. Um policiamento ri-goroso deve recair sobre suas palavras, pois estas devem seenquadrar em um conjunto de operações lógicas para se-rem submetidas à comprovação experimental. Seu mundointerno é submetido à intensa negação, uma vez que seusprocessos contraditórios e desordenados são reconhecidoscomo uma subversiva fonte de erro para a validade do co-nhecimento. O cientista anula-se como sujeito do conheci-mento, pois, a princípio, é a realidade que deve emitir a

última palavra e como ser pessoal ele tem pouco ou nada adizer sobre um conhecer válido do mundo. Repetindo omovimento social mais amplo da ciência, ele se recusa aoencontro com a antiga inscrição de Delfos: “Conhece-te ati mesmo.”

No entanto, ao se pontuar que todo o conhecimento re-mete a um observador (Bateson, 1998; Capra, 1975/1983;Morin, 1990/1996; 1991/1998; Prigogine & Stengers, 1984/1997), isto é, que o observador consiste em um elo funda-mental nos diversos encadeamentos da construção do sa-ber, promove-se uma modificação radical que se liga a umanova forma de se construir ciência. Torna-se necessário re-conhecer que o cientista é sujeito do conhecimento (e nãopassivo ao arsenal experimental e às armadilhas teóricas)que dialoga com o mundo ao invés de buscar um controleobsessivo sobre o mesmo. Reconhecer o cientista comosujeito implica em dois pontos importantes: primeiramen-te, uma vez que não existe o compromisso com uma verda-de única que corresponda ao real (conhecimento válido),mas o de um diálogo com o mesmo (conhecimento viável),abre-se a possibilidade do diverso e do singular na constru-ção da pesquisa15. A diferença entre pesquisadores implicanuma diferença de posicionamento de referência de obser-vação, referência esta dada em boa parte por sua subjetivi-dade. A construção da pesquisa implica em certo nível degeneralização, mas abre espaço, sobretudo, para a constru-ção de histórias singulares. Em segundo lugar, envolve oreconhecimento das dimensões subjetivas que garantem apossibilidade do diverso e do singular, como os processosemocionais. Embora se conceba que tal proposta se aproxi-ma, de certa forma do senso-comum (Santos, 1987), elaimplica em um sistema de conhecimento de princípios com-plexos, como novas noções sobre ontologia e cosmovisãodo real, princípios para conhecê-las e para estabelecer rela-ções recursivas entre seus momentos epistemológicos, teó-ricos e metodológicos (Neubern, 1999a). Em outras pala-vras, o conhecimento científico organiza-se de tal formaque permite e reconhece um caráter autobiográfico.

Nessa perspectiva, uma teoria complexa sobre as emo-ções novamente se insere como um ponto de valor, poisnesse diálogo com o mundo ele se mobiliza emocional-mente de diversas formas que remetem à sua história e àprópria construção de sua subjetividade. Um dos pontosprincipais nesse sentido é que boa parte dessas experiênci-as e processos emocionais não se esgotam em sua fala emuitas vezes permanecem nebulosas e obscuras, apesar deativamente atuantes e até determinantes na própria cons-trução que ele efetiva. Reconhece-se a necessidade de queum novo Delfos seja buscado para tal problema, pois im-portantes dimensões que participam do conhecimento têm

15 Santos (1987) aponta que Geertz, por exemplo, reconhece tal noçãoapenas para as ciências humanas. No entanto, malgrado as diferençasentre tais ciências (que se relativizam com as tansformações atuais doparadigma) tal noção pode caber de algum modo para as ciências emgeral.

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Emoções: Caminho Epistemologia Complexa

algo a dizer sobre o mesmo como sobre o sujeito que opromove. É nesse sentido que Neubern (1999a) promoveuma metodologia baseada em contextos interativos e deconversação com regras específicas e mediados por figurasque facilitem seu processo para promover a qualificaçãodessas dimensões numa perspectiva científica e até mesmofacilitar novos avanços no diálogo com o real. Um sistemade conhecimento que permita uma interação mais flexívele recursiva entre seus momentos de construção consiste emuma condição imprescindível para tanto, uma vez que osujeito pesquisador deverá dialogar também com suas refe-rências teóricas, metodológicas e epistemológicas (GonzalezRey, 1997; Morin, 1990/1996).

Contudo, o reconhecimento do sujeito do conhecimen-to, em que as emoções desempenham um papel fundamen-tal, implica em uma noção mais abrangente de sua própriaexistência e participação na humanidade, o que lhe trazdiversos tipos de responsabilidades éticas com a mesma.Sua subjetividade individual se vê interconectada em todoum processo de ecologia planetária16 (Bateson, 1998) numanova visão em que as disjunções intransponíveis são aospoucos substituídas pelo diálogo e pela aproximação. En-tre o cientista, o cidadão e o homem não se tornam neces-sários saltos consideráveis para transpor o que a influênciado paradigma dominante afastou, pois novas conexões pas-sam a ser traçadas. Tal se verifica não só no nível epistemo-lógico, onde os sistemas de idéias buscam novas conexões,mas também no interior dos próprios sujeitos em que dife-rentes vozes reivindicam seu espaço com a própria voz decientista. O conhecimento transforma-se também uma ques-tão de autoconhecimento (Santos, 1987) e novos momen-tos de Delfos tornam-se necessários.

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Recebido em 21.10.1999Primeira decisão editorial em 23.11.2000

Versão final em 01.12.2000Aceito em 04.12.2000 !

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