rÁdios comunitÁrias: sintonia dissonante · prestando informações valiosas sobre suas...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
TERESA CRISTINA FURTADO MATOS
RÁDIOS COMUNITÁRIAS: SINTONIA DISSONANTE
E “AUTO-IMAGEM”
FORTALEZA –CE
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
TERESA CRISTINA FURTADO MATOS
RÁDIOS COMUNITÁRIAS: SINTONIA DISSONANTE E “AUTO-IMAGEM”
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Ismael de Andrade Pordeus Jr.
FORTALEZA –CE
Março de 2006
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Teresa Cristina Furtado Matos
Rádios comunitárias: sintonia dissonante e “auto-imagem”
Tese defendida e aprovada, em ________ de março de 2006, pela banca
examinadora constituída pelos professores:
Prof. Dr. Ismael Pordeus Jr. (orientador)
Profª. Drª. Márcia Vidal Nunes
Profª. Drª. Catarina Tereza Farias de Oliveira
____________________________________________________________ Prof. Dr. Gilmar de Carvalho
Profª. Drª. Maria Lina Teixeira Leão
3
Para o sertão (meu pai) e o mar (minha mãe).
4
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal, Capes, pelo auxílio financeiro que tornou possível à realização deste trabalho. Ao meu orientador, Ismael Pordeus, pela confiança depositada e autonomia a mim conferida. Aos professores, Gilmar de Carvalho, Maria Lina L. Teixeira, Catarina Oliveira e Márcia Vidal, por terem aceito o convite para compor a bancar e pelas contribuições que certamente darão na análise deste trabalho. À professora Auxiliadora Lemenhe, sua atenção e generosidade em meus primeiros momentos no curso me marcaram profundamente. Meu sincero agradecimento. Aos professores Jacob Carlos Lima, Moacir Palmeira e Domingos Abreu, que em diferentes momentos leram e comentaram o que viria a ser essa tese. Aos professores Gilmar de Carvalho e Márcia Vidal, pelos valiosos comentários quando da realização do exame de qualificação. À Linda Gondim, pelo interesse e incentivo que sempre demonstrou na realização deste trabalho. À Márcia Vidal, que depois da qualificação me cedeu um conjunto de raros documentos sobre a história das rádios comunitárias em Fortaleza. Aos colegas que leram e comentaram as sucessivas versões deste texto: Ângela Julita, Iara Araújo, Roseane Nicolau, Maria Meirice e Lindomar Coelho. As sugestões de vocês fizeram deste um trabalho muito melhor. A minha turma de doutorado. Meninas, vocês foram e são como uma canção de Paulinho da Viola: tranqüila, honesta e elegante. O companheirismo de vocês foi a mais rica experiência deste período de minha formação. Ao “pessoal lá de casa”. Vocês foram ótimos nesse tempo todo. Perdoaram minhas omissões e me cobraram quando necessário. O afeto de vocês está em cada página deste texto. À família Brito Sousa. Pelo apoio e a torcida em mais essa empreitada. A Vancarder Brito Sousa. Porque eu não teria conseguido sem você. Seu apoio nos momentos finais da escrita foi decisivo, sua presença percorre esse trabalho, e tem tornado minha vida muito mais feliz. À Nádia, Lenildo, Ângela, Violeta, Sandra Rocha e Meirice. A amizade de vocês fez estes anos muito mais leves.
5
À Daniele Nilin. As nossas conversas tornaram a angústia desse momento menos solitária. À minha amiga Evanira, que um dia impediu que a agência dos Correios fechasse antes que eu postasse minha inscrição de seleção ao doutorado. Essa tese não existira sem aquele seu gesto. Minha gratidão por todos os auxílios e meu enorme carinho por você, César e toda a família. À Catarina Oliveira, minha amiga e companheira na visita à Rádio Favela, a principal articuladora de nossa estada lá. Tenho aprendido muito com nossa convivência profissional e afetiva. À Aimbere, pelo auxílio na transformação de problemas burocráticos em soluções. A todos das rádios comunitárias visitadas que me receberam tão generosamente, prestando informações valiosas sobre suas experiências e percepções. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desse trabalho.
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Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era um que via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
Fiquei confuso com essa dupla existência da verdade.
Fernando Pessoa
7
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................11
1. A “auto-imagem” e a imagem do outro: o conflito no campo da radiofonia comunitária...............................................................................................................22
1.1 Transformações globais, mudanças locais..........................................................24
1.2 Conflito e auto-imagem........................................................................................30
1.3 A noção de comunidade e as rádios comunitárias...............................................36
1.4 Conflito, visibilidade e espaço público..................................................................39
1.5 A formação da auto-imagem: entre a ‘cultura comercial popular’ e a ‘cultura
alternativa’..................................................................................................................42
1.6 O conflito entre as emissoras comunitárias..........................................................46
2. O rádio: a história e os usos sociais..................................................................51
2.1 Rádio e movimentos populares............................................................................57
2.2 A inspiração das rádios livres européias..............................................................61
2.3. A gênese das rádios comunitárias......................................................................64
2.3.1 As “radiadoras”..................................................................................................65
2.3.2 Rádios livres no Brasil.......................................................................................66
2.3.3 O processo de concessão do serviço de radiodifusão
comunitária.................................................................................................................74
2.4 As rádios comunitárias em Fortaleza...................................................................79
2.5 o cenário das comunicações e as rádios comunitárias........................................96
2.6 A Abert, a Acert e as rádios comunitárias..........................................................102
3. A construção dos discursos: imprensa e rádio comunitária.........................112
3.1 A diferença.........................................................................................................113
3.2 “Um exagero de democratização”: As rádios comunitárias e a imprensa
cearense...................................................................................................................120
8
3.3 “Não a censura, não ao silêncio”: O jornal “Abraço no
Ar”.............................................................................................................................134
3.4 O que deve ser uma rádio comunitária..............................................................149
3.5 As rádios comunitárias na Internet.....................................................................151
3.5.1 “Rádios do mal”? ............................................................................................154
3.5.2 Indicações ao Ministério das Comunicações..................................................157
3.5.3 Os casos de repressão: o fechamento e lacre de rádios comunitárias...........158
3.5.4 As reuniões do Conselho de Comunicação....................................................160
4. Rádios comunitárias: em busca do significado...............................................................................................................163
4.1 “A Rádio Favela é o que há”...............................................................................165
4.2 A Rádio Comunidade: “por que comunitário, comunidade é tudo a mesma
coisa”........................................................................................................................177
4.3 A Rádio Círculo FM ...........................................................................................187
4.4 103.5, A Rádio Comunitária do Antônio Bezerra................................................190
4.5 As definições e a construção da auto-imagem das rádios
comunitárias.............................................................................................................201
Considerações finais.............................................................................................206 Referências bibliográficas.....................................................................................212
Anexos.....................................................................................................................223
Anexo 1- Mapa de Fortaleza- Rádios visitas/pesquisadas.......................................224
Anexo 2 (a) – Informativo CEPOCA – Outubro de 1990..........................................225
Anexo 2 (b) – Informativo CEPOCA – Fevereiro de 1991........................................227
Anexo 3 – Quadro de diferenciação das radiocom frente as rádios
comerciais................................................................................................................229
Anexo 4 – Quadro de matérias publicadas pelo “Boletim Abraço no Ar” e pelo “jornal
Abraço no Ar” entre 1997-1999................................................................................231
Anexo 5 –“Código de ética das rádios comunitárias”...............................................235
Anexo 6 – “Crônica de Itamar”.................................................................................237
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RESUMO
O presente trabalho analisa o conflito existente no campo da radiofonia comunitária em torno dos sentidos do que seja uma “emissora comunitária”. A partir da categoria “auto-imagem”, entendida como uma construção relacional, se discute o processo de formulação da imagem das rádios comunitárias, considerando sua relação com diversos segmentos e interesses sociais. A pesquisa se centra, principalmente, no universo de emissoras comunitárias da cidade de Fortaleza-CE, e busca compreender o ambiente de disputas numa perspectiva de longo curso, desde a fundação do movimento de rádios comunitárias na cidade, que ocorre a partir dos anos 1980, até hoje, aproximando-o da trajetória de desenvolvimento dos meios de comunicação no Brasil. Palavras-chave: rádios comunitárias, comunicação, conflito, auto-imagem.
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ABSTRACT The present work evaluates the struggle found within the field of community radios in relation to the meaning of what a “community radio” is. Beginning with the category “self-image”, considered as a relational construct, the process of community radios’ image built-up is discussed considering its relationship to several segments and social concerns. The research is directed mainly towards the community radios’ universe in the city of Fortaleza, Ceara, and aims at understanding the struggle environment considering a long course approach extending from the founding movement of community radios that took place in 1980 in the city to present day bringing it closer to the development path of the mass media in Brazil. Keywords: community radios, communication, conflict, “self-image”.
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INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se propõe a compreender o conflito em torno do conceito de
radiodifusão comunitária, a partir dos diferentes discursos produzidos sobre e pelas
emissoras comunitárias. A pesquisa se centra, principalmente, no campo das rádios
comunitárias da cidade de Fortaleza, Ceará.
A regulamentação da radiodifusão comunitária no Brasil data de pouco mais
de oito anos. Não é seu aparecimento que institui as primeiras experiências de
comunicação comunitária, mas sua criação significa um novo momento da
radiodifusão no país, na medida em que nela insere um novo sujeito, a
“comunidade”, e lhe reconhece o acesso a um canal de comunicação. Entretanto, o
processo não desenvolve seu curso de modo tranqüilo, antes em meio a uma
turbulenta redefinição de posições e poderes. Afinal, quem é a comunidade? A
própria questão do reconhecimento do direito e a definição de quais grupos devem
ou não ter acesso a este veículo de comunicação, e ainda que perfil deve ter uma
emissora comunitária passam a compor a pauta dos debates desde então.
As pressões econômicas e políticas que delinearam os vínculos entre
Estado, grupos econômicos e políticos marcam o sistema de concessões de canais
de rádio e televisão no Brasil e respondem por um dos elementos do conflito: a
escassez de acesso aos meios de comunicação (DEL BIANCO, 1999; NUNES,
2003). A emergência de um novo personagem nessa narrativa supõe a partilha de
um espaço antes exclusivamente loteado pelos grupos acima citados.
Desse modo, a trajetória política do trato com a questão das comunicações
no país constrói uma situação econômica e política que alija do direito de fazer rádio
uma grande quantidade de agentes, principalmente os movimentos sociais. Quando
em fevereiro de 1998 o Estado brasileiro reconhece e regulamenta a existência das
rádios comunitárias (radiocom) através da Lei 9612/98 que institui o “Serviço de
Radiodifusão Comunitária”, o reconhecimento aparece como esperança de ruptura
com o modelo de exclusão do acesso aos meios de difusão. Os grupos que
pleiteiam um destes canais têm de ser identificados através da classificação
comunidade/comunitária.
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Todavia, o próprio processo de formulação da legislação é marcado por uma
série de confrontos entre representantes das emissoras comerciais e das rádios
comunitárias, e entre os representantes das radiocom e o Estado, agente de
controle e regulação da política de comunicações no país.
Os personagens dessa história representam interesses antagônicos. Por um
lado, as emissoras comerciais, desde o processo de negociação do texto da Lei no
Congresso Nacional1 e com a finalidade de manterem sua posição de referência e
domínio da radiofonia nacional, defendem a limitação do número de radiocom e lhes
impõe restrições de funcionamento. Por outro lado os representantes das radiocom
querem o reconhecimento legal das emissoras comunitárias, o que as colocaria em
outra posição que não a de infratoras da legislação de telecomunicações do país2,
concedendo-lhes o direito de transmissão.
Porém, se a legislação representa um avanço porque reconhece o “direito de
antena” (COELHO NETO, 2002), ou seja, a possibilidade de transmitir informações
pelo espectro eletromagnético a grupos antes dele excluídos; de outro lado vem
disciplinar e institucionalizar o conflito em torno do direito de fazer radiodifusão
comunitária no país. Antes da existência da Lei a reivindicação dos que faziam rádio
comunitária se concentrava na busca pelo reconhecimento deste direito. Depois de
sua instituição a questão passa a ser o aperfeiçoamento da Lei e a definição das
fronteiras de quem pode ou não ser por ela beneficiado.
Foi no decurso do ano de 1999 que passei a estabelecer contato com o
universo das radiocom de Fortaleza, durante a realização do trabalho de campo para
a redação de minha dissertação de mestrado3. Naquela ocasião realizei pesquisa
sobre a Rádio Comunitária Mandacaru FM, localizada no bairro Ellery, na região
oeste da capital cearense. A pesquisa lidava com a questão da organização e da
sociabilidade presente nas rádios comunitárias através da noção de dádiva
(GODBOUT; CAILLÉ, 1999; MAUSS, 1988) e, tendo como pressuposto essa
1 “A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática, encarregada de debater este assunto [o texto da lei de radiodifusão] tinha em 1996, 51 membros, 40 dos quais eram concessionários de rádio e televisão” (COELHO NETO, 2002, p. 29). 2 Como antes de 1998 não havia legislação específica para radiodifusão comunitária qualquer atividade deste tipo era considerada crime federal, passível de punição aos seus infratores. 3 A dissertação intitulada “Memória e Dádiva em uma rádio comunitária” foi defendida em agosto de 2000 junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.
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sociabilidade, buscava entender como se efetua a relação entre rádio e memória
(HALBAWACHS, 1990; NORA, 1993) em uma emissora deste tipo (MATOS, 2000).
Naquele momento, embora as atenções estivessem voltadas para a questão
da dádiva e da memória, chamou-me atenção uma situação de disputa entre uma
gama de radiocom que então existiam na cidade. Ser ou não ser uma rádio
comunitária era uma questão presente nas falas dos que faziam e discutiam o
campo da radiodifusão comunitária na cidade de Fortaleza.
A observação daquela situação parecia indicar a intensa movimentação de
um campo em expansão, o da comunicação comunitária, em que se buscava e se
disputava novas definições e o reconhecimento da e para a comunicação nele
produzida.
Aquela expansão foi registrada pela Associação de Rádios Comunitárias-
Centro de Produção em Comunicação Alternativa, a Arcos-CEPOCA. A entidade
congregava as radiocom em Fortaleza à época, e hoje se encontra desativada.
A entidade considerava o crescimento numérico das emissoras como uma
ameaça a um projeto que definia um modelo de radiocom fundada nos “princípios da
pluralidade, da democracia, da gestão coletiva, do não correr atrás do lucro, da
vontade de democratizar a sociedade, etc” 4, em consonância com o movimento
nacional de radiocom. As especulações que eu também ouvia na Rádio Mandacaru
sobre o aparecimento de novas emissoras, sua localização e sua filiação a
determinados grupos políticos ou econômicos, confirmavam minha suspeita sobre a
relação entre nascimento de novas emissoras e o surgimento de novos agentes e a
busca de definição ou de redefinição de fronteiras e modelos para a comunicação
comunitária radiofônica.
Assim, a heterogeneidade dos discursos revelava posições e interesses
diversos. O cenário da radiofonia comunitária na cidade indicava uma situação de
conflito. De acordo com Pasquino (2004, p. 255) o conflito pode ser entendido como
“uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que
4 Fala presente em um dos textos do jornal “ABRAÇO no Ar”, de novembro de 1997. O jornal era o informativo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, entidade a qual a Arcos-CEPOCA era então filiada.
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implica choques para o acesso e distribuição de recursos escassos”. Observando
essa ambiência nasceu para mim a questão que norteou esse trabalho: como se
organiza e em função de que elementos se dão as disputas no espaço de atuação
das rádios comunitárias na cidade de Fortaleza?5
Penso que este conflito resulta de uma complexa trama. Como já mencionei,
a histórica concentração dos meios de comunicação no Brasil e o delicado problema
da democratização destes é um dos fios dessa malha, cenário onde se desenvolve
uma série de outros elementos, como a relação da comunicação comunitária com o
mercado, representado pelas rádios comerciais e seu modelo de fazer rádio; a
relação com o Estado e seus mecanismos de controle; e ainda a relação com os
ouvintes, que passam a ser disputados com as tradicionais rádios comerciais.
Em última instância, a expansão das rádios comunitárias encontra um limite
físico representado pelo “dial”, que comporta apenas um número limitado de
emissoras, sob pena de interferência do som de umas sobre as outras. Em outras
palavras não há espaço no ar para todos os que desejarem montar uma emissora
comunitária, mesmo que eventualmente atendessem a todos os requisitos legais.
Porém, um outro aspecto da questão se refere à preferência do “dial”6, destinada às
emissoras comerciais e educativas, estas com amplo espaço para transmissão.
Atualmente, o espaço da radiofonia comunitária institui ainda uma outra
instância de debate, que não opõe apenas rádios comunitárias a rádios comerciais,
mas comunitárias a comunitárias. No centro da oposição está o reconhecimento
como uma radiocom. O prêmio dessa disputa parece ser a possibilidade de poder ou
não fazer rádio legalmente, bem como a própria construção da legitimidade da
radiofonia comunitária. Aqui as questões do que significa ser uma emissora
comunitária, qual o seu papel social, para quem ela deve falar, como ela deve falar,
quais valores devem pautar sua produção, e que tipo de organização deve ter
passam a ser fundamentais, pois desempenham funções de afirmação,
reconhecimento e legitimação.
5 Essa questão parece revelar uma das faces da estrutura de comunicação do Brasil e das atuais transformações que estão em curso. 6 “Dial” é o dispositivo presente nos aparelhos de rádio (os rádio receptores), cuja função é sintonizar uma determinada freqüência.
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A perspectiva adotada neste trabalho pressupõe que a compreensão da
situação de disputa exige considerar uma série de problemas, instâncias, agentes e
interesses, e as combinações entre estes elementos suscitam algumas questões:
Como a história dos meios de comunicação no Brasil afeta o campo da comunicação
comunitária? Em que medida essa história é um dado constitutivo da situação de
disputa?
Qual o tipo de apropriação vem sendo feito do campo da radiofonia
comunitária em Fortaleza? Quais os grupos e quais os novos significados acionados
nesse processo de apropriação?
Grande parte destas questões passa pela construção da imagem das rádios
comunitárias. Os investimentos na elaboração de uma definição, o que implica a
aceitação de distinções e singularidades das rádios comunitárias frente às rádios
comerciais, cujos parâmetros não são consensuais, são parte importante da
dinâmica do conflito.
Acredito que a construção da auto-imagem das radiocom articula diferentes
níveis: da relação com o mercado, da relação com o Estado e da autodefinição
destas rádios. A compreensão da auto-imagem se ampara aqui em Norbert Elias e
Scotson (2000), autores que discutem o papel desta como forma de participação em
situações conflituosas e de disputa de poder. O termo “auto-imagem” é usado pelos
autores para definir a autoconsciência dos grupos, formada nas configurações
sociais e que serve, simultaneamente, como parâmetro de avaliação de si e dos
outros, e balizadora das ações sociais.
A questão da imagem é ferramenta fundamental dos conflitos no campo
intra-radiocom e nas relações entre as rádios comunitárias e as rádios comerciais.
Além de exercer papel considerável nas pressões feitas pelas radiocom sobre o
Estado, representado pelos órgãos de controle e fiscalização, é a partir da auto-
imagem que fronteiras e distinções são definidas.
Assim, também o é a qualificação positiva ou negativa das funções e modos
de fazer rádio: suas relações com a comunidade, a sua programação e formas de
organização são discursivamente construídas enquanto auto-imagem. Nestas
funções a auto-imagem é um dos elementos postos em cena na defesa de posições
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e tem papel importante nos processos de publicização das rádios e de seu trabalho
junto lugares onde se localizam.
E é no debate público que esta auto-imagem acaba por desempenhar um
papel político dentro do jogo de forças de transformação ou manutenção do espaço
da comunicação social no Brasil. Além do que, os conflitos são processos que, em
grande medida, operam a contraposição e negociação de sentidos e essa dinâmica
se torna perceptível a partir da noção de auto-imagem.
E com quais elementos se constrói a luta pela definição e legitimação da
radiofonia comunitária?
Antes de 1998, quando as rádios comunitárias transformam-se em realidade
oficial no Brasil, uma série de experimentos já conformou a trajetória destas rádios,
sob a influência de diversos movimentos sociais na América Latina. Estas
experiências se ligam a sindicatos, igrejas, movimentos populares ou a ação
espontânea de jovens que ousaram criar programas radiofônicos e colocá-los no ar.
A situação de ilegalidade marcou a maior parte destas experiências que se
autodefiniram ou foram definidas ao longo dos últimos 50 anos como popular, livre,
alternativa e comunitária (COGO, 1998).
As rádios comunitárias aparecem como um novo momento dessa trajetória.
Herdeiras da tradição que se constitui na confluência da comunicação livre,
alternativa e popular, as rádios comunitárias no Brasil passam a construir uma
identidade própria. Entretanto, com a expansão deste campo, principalmente a partir
de 1998, a construção dessa identidade e da legitimação passa por um processo
conflituoso. Afinal, o que é a comunidade para cada emissora? E o que é
comunicação comunitária?
As radiocom tratam o tipo de comunicação que produzem e sua relação com
os ouvintes a partir da idéia de comunidade. Amparadas nesta noção e no que ela
significa quando se trata de radiofonia, elas constroem uma autodefinição do que
seja uma emissora comunitária, já que sobre ela assenta a legitimação de uma
forma de fazer rádio. E neste ambiente a idéia de comunidade aparece como uma
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idéia política7. A forma como esta noção de comunidade é significada e apropriada
pelas radiocom reverbera as diferenças e a heterogeneidade que abrigam as
experiências neste campo e acabam por gerar uma situação de conflito.
A classificação “rádio comunitária” sugere também a articulação entre a
noção de lugar e o veículo rádio. Esta noção ganha espaço na década de 1990,
amparada pelas discussões sobre o processo de globalização e a respectiva
valorização do espaço local (BAUMAN, 2003). As repercussões deste processo
parecem se fazer sentir no caso das radiocom, principalmente na fase mais recente
de sua história, na medida em que a denominação rádio comunitária passa a
substituir as demais denominações existentes, principalmente “rádios populares”.
Em Fortaleza, onde as iniciativas espontâneas de uso de alto-falantes como
emissoras radiofônicas ganham impulso em meados da década de 1980 pela ação
de um projeto desenvolvido em parceria pela Prefeitura Municipal de Fortaleza e
pela Universidade Federal do Ceará (através de projeto da Professora Márcia Vidal
do Curso de Comunicação Social), para a montagem de “rádios populares”, também
se verifica essa mudança de denominação.
Na passagem da década de 1980 para 1990 a denominação muda. E sobre
os diferentes sentidos da noção de comunidade e da comunicação comunitária os
discursos irão se articular.
Na prática, as vivências e interpretações da idéia de comunidade, que
ampara a radiofonia comunitária, têm matizes variados: rádios ligadas a grupos
religiosos, rádios pertencentes a grupos políticos específicos, rádios vinculadas a
entidades comunitárias e rádios com perfil comercial.
Alguns trabalhos (NUNES, 2003; FUSER, 2002, entre outros) ensaiam a
formulação de categorias capazes de classificar e compreender essa
heterogeneidade de formatos de rádio que tomam o “dial” das cidades brasileiras, e
que se autodefinem como emissoras comunitárias. Além de compreender os
formatos em que atualmente se apresentam estas categorias, elas podem se
7 Na medida em que seu significado é usado em uma arena de disputa de poder. Segundo Bobbio (2004, p.954), “o conceito de política, entendida como forma ou atividade ou práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder”.
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constituir em parâmetros para a compreensão dos discursos de auto-
reconhecimento. Já que todas as rádios vão se definir como rádios comunitárias, são
diferentes matizes de discursos e as ações por trás de cada concepção do que seja
uma rádio comunitária que vão interessar.
Foi a leitura de uma matéria jornalística8 que me revelou pela primeira vez a
existência das radiocom. Aspectos sobre esse tipo de comunicação e o seu
significado social me foram pela primeira vez apresentados lá. Pouco tempo depois
tomei as radiocom como objeto de pesquisa (MATOS, 2000), como já mencionei.
Participações em encontros de rádios comunitárias, pesquisa de campo sobre as
rádios comunitárias de Fortaleza-Ce (MATOS, 2000) e leituras diversas me
permitiram entender melhor este universo, indicando inclusive a atual direção de
meu interesse, a questão do conflito. Essa perspectiva relacional pressupõe que o
cruzamento entre estes diferentes agentes e elementos permitiriam perceber como
se processa a disputa e sobre o que ela opera. Para dar conta deste intento um
variado circuito de fontes foi percorrido.
Para apreender a auto-imagem das rádios comunitárias, pareceu-me
importante trilhar o caminho pelo qual as rádios foram vistas e discutidas pela
imprensa local. A composição de um catálogo de matérias dos jornais locais diários
“O Povo” e “Diário do Nordeste” permitiu discutir essa questão. Os esquemas de
percepção envolvidos são indicativos dos sentidos de legitimidade atribuídos ou
negados às radiocom. Ao mesmo tempo, a compreensão que as próprias rádios,
enquanto movimento, desenvolvem sobre a comunicação comercial é reveladora do
lugar social em que se percebem. O jornal “ABRAÇO no Ar” da Associação
Brasileira de Radiodifusão Comunitária – ABRAÇO permitiu perceber a construção
dessa interpretação.
Outra fonte para a compreensão dos esquemas de percepção dos grupos
que fazem a radiofonia comunitária foi a rede mundial de computadores. Um
exemplo dessa possibilidade me surgiu ao encontrar uma lista de discussão
denominada “Rádios livres”9, espaço de debate de diferentes grupos sobre os rumos
8 A matéria intitulada “Escândalo no ar”, de Nivaldo Manzano, publicada pela Revista “Caros Amigos” (ano 1, número 2, em maio de 1997), discorria sobre várias experiências de radiofonia comunitária existentes no Brasil. 9 Cujo endereço é [email protected].
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do movimento de rádios livres e comunitárias. Em grupos como esses a crítica
interna ao papel e ao perfil das rádios comunitárias se realiza de modo mais livre,
posto que eles não representem a fala oficial, como acontece nos jornais “ABRAÇO
no Ar”. Outras importantes fontes de informações também foram acessadas a partir
da Internet, principalmente dados do Ministério das Comunicações e Agência
Nacional de Telecomunicações (ANATEL), disponibilizados quase que
exclusivamente pela rede. Além destes, foram importantes os sítios da Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e a da Associação de
Emissoras de Rádio e Televisão (ACERT).
No que concerne às radiocom de Fortaleza, a grande maioria funciona sem
o aval da Lei de Radiodifusão Comunitária, ou seja, sem outorga. Os dados do
Ministério das Comunicações informam que apenas seis emissoras foram
autorizadas a funcionar na cidade, duas delas ainda com licenças provisórias. Mas
estas não são as únicas emissoras no ar.
Com a desativação da Arcos-CEPOCA em 2001, entidade representativa
das radiocom em Fortaleza, o acesso a este universo se tornou precário. Fatores
como a efemeridade, a localização geográfica, o tipo de técnica de irradiação
utilizada pelas emissoras, nem sempre acessíveis à escuta radiofônica10, além da
tensa relação com o Estado (representado pela ANATEL como agência reguladora e
a Policia Federal como agente repressor), tornaram tortuoso o processo de
mapeamento das rádios11.
Além disto, a rádio pesquisada anteriormente, e que poderia fornecer as
relações e o acesso ao universo das radiocom estava fechada. Meu primeiro contato
se deu, então, através de um antigo diretor da Arcos-CEPOCA. Informações sobre o
estado atual de desarticulação política das emissoras e da própria Arcos-CEPOCA
apareceram a partir de sua fala.
10 Algumas emissoras operam pelo sistema de alto-falantes ou caixinhas, tendo uma audiência restrita aos bairros ou ruas onde se localizam. Estas rádios irradiam seu som através de alto-falantes dispostos em algum ponto do bairro, ou através de caixas de som atadas aos postes de iluminação ou casas ao longo das vias de um bairro. 11 Através da audição do rádio, na faixa de freqüência modulada, identifiquei 19 emissoras não outorgadas no ar. Entretanto considero que esse número possa ser bem maior. Dado que o método de audição é bastante parcial, pois, dependendo da área da cidade onde é feita revela um conjunto de rádios mas pode omitir outras tantas. Isto porque a captação se dá apartir do sinal da emissora em relação à localização da escuta. A audição foi feita no Benfica, bairro próximo ao Centro da cidade.
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A impossibilidade de realizar o mapeamento através de uma entidade
congregadora apontou como solução para a escolha das emissoras o critério de
acessibilidade. Por esse processo fui recolhendo informações a partir de diferentes
informantes e fontes - uma das mais importantes o próprio aparelho de rádio - sobre
a existência e localização de emissoras pela cidade.
Visitas e entrevistas abertas ou semi-estruturadas também foram feitas.
Visitei as rádios comunitárias: “Paupina FM”, instalada no bairro da Paupina; “Rádio
Comunidade”, operando pelo sistema de caixas de som e situada no Bairro Dias
Macêdo; “Rádio Círculo FM”, instalada no bairro Granja Portugal; “Rádio Comunitária
do Antônio Bezerra”, situada no bairro de mesmo nome, e “Rádio Interativa FM”,
situada no bairro Novo Mondubim. Todas estas emissoras estão localizadas no
município de Fortaleza (ver anexo 1).
Visitei ainda a “Rádio Favela FM”, localizada em Belo Horizonte e
considerada uma das primeiras radiocom a operar em freqüência modulada (FM)12
no Brasil. A rádio é considerada uma referência para outras emissoras.
Também foram coletados dados junto à Agência Nacional de
Telecomunicações (onde realizei entrevista sobre o processo de fiscalização das
radiocom no Ceará) e ao Ministério das Comunicações. São documentos que
versam sobre a existência, regulamentação e fiscalização das radiocom no Brasil e
na cidade de Fortaleza. Visitas às páginas da ACERT (www.acert.org.br) e ABERT
(www.abert.org.br) na Internet também me forneceram informações sobre as rádios
filiadas e à visão das duas entidades sobre as rádios comunitárias.
A participação no grupo de pesquisa “Comunicação para a Cidadania”,
durante o XXVI INTERCOM - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação13
me permitiu a descoberta de um rico material produzido sobre o tema, além da
oportunidade de discutir a questão do conflito em torno da radiofonia comunitária.
12 FM é a modalidade de serviço de radiodifusão que opera na faixa de 87,8 MHz a 108 MHz, com freqüência modulada. 13 Realizado em Belo Horizonte - MG, de 02 a 06 de setembro de 2003.
21
Assim, resultado de uma composição variada, estes dados alimentam a
discussão que se segue, mosaico das diferentes formas de ver e representar as
rádios comunitárias no Brasil.
A tese está dividida em quatro capítulos. O primeiro cumpre a função de
discutir e apresentar as categorias de análise utilizadas ao longo do trabalho, ao
mesmo tempo em que transformações culturais, econômicas e políticas que afetam
o universo de existência e significação das radiocom também são debatidas.
O segundo capítulo apresenta um histórico do rádio e seus usos sociais e
dentro dele a trajetória que constituiu o campo das rádios comunitárias. O capítulo
tece um histórico do movimento de radiocom no Brasil e em Fortaleza-Ce,
oferecendo ao leitor um panorama da gênese social da idéia de emissora
comunitária.
O terceiro capítulo resulta da análise dos diferentes discursos sobre as
rádios comunitárias emanados da imprensa cearense e do movimento de radiocom,
através do Jornal “ABRAÇO no Ar”, veículo da Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO) e de uma lista de discussão na Internet sobre
rádios livres e comunitárias. A construção da auto-imagem das radiocom, elaborada
pelo seu próprio movimento, e a percepção dos órgãos da imprensa oficial são os
elementos indicativos dos sentidos acionados e manipulados na construção da
legitimação.
No quarto capítulo são analisados os discursos produzidos pelas próprias
radiocom. São apresentadas quatro emissoras e os discursos produzidos por
diretores, operadores e comunicadores sobre o que é ser uma rádio comunitária. A
escolha das emissoras considerou algumas das vertentes dessas experiências e
permitiu compreender como discursivamente as rádios elaboram o sentido da
legitimação e da diferenciação.
22
CAPÍTULO I
A “AUTO-IMAGEM” E A IMAGEM DO OUTRO: O CONFLITO NO
CAMPO DA RADIOFONIA COMUNITÁRIA.
O surgimento de um fenômeno social pode ser melhor entendido quando o
aproximamos do quadro em que diferentes elementos se cruzaram para produzi-lo.
Considerando isto, proponho discutir como se opera a relação entre auto-imagem e
conflito no campo das radiocom a partir de processos sociais amplos, capazes de
condicionar partes importantes dessa relação.
É durante a década de 1970 que o rádio brasileiro começa a operar em
freqüência modulada. O uso dessa freqüência se associa a uma série de fatores
tecnológicos, econômicos e políticos. Entre os fatores políticos figuram os interesses
do regime militar pela penetração da radiodifusão em âmbito nacional, plano que
incorpora o desejo de maior controle dos meios de comunicação, dado o papel
estratégico das telecomunicações para os militares (SORJ, 2003). Tal como já
ocorria com as rádios que transmitiam em amplitude modulada, AMs, a difusão de
emissoras FM será feita através de concessões controladas pelo governo federal. As
FMs sedimentam, então, o modelo de propriedade dos meios de comunicação que já
estava em curso no país, aprofundando os vínculos entre propriedade, interesses
políticos e econômicos.
A existência de regiões não cobertas ainda pela radiodifusão contribui para a
interiorização, que passará a ser feita com uso da freqüência modulada, permitindo
cobrir regiões do país aonde as AMs não chegavam. De acordo com Del Bianco
(1999, p.191):
O alcance reduzido de suas ondas [FMs] possibilitava a instalação de emissoras em todos os municípios, principalmente nas ‘áreas de silêncio’, aquelas não atingidas pelas AMs com potência inferior a 2Kw. Com a medida, o governo podia combater a livre penetração de emissoras estrangeiras no país, que se tornara uma ameaça à estabilidade política na década de 70.
23
Do ponto de vista econômico, a medida permitiu que a produção de rádios-
receptores fosse incrementada. Dessa forma, Del Bianco (1999, p.190) discute que:
A freqüência modulada ganhou impulso porque houve ação deliberada do governo militar no sentido de definir estratégias para a distribuição de concessões e permissões de canais e de estímulo à reativação da indústria nacional de equipamentos.
Como afirma Ortiz (1995, p.153): “entre nós é o Estado militar quem
promove o capitalismo em seu estado avançado”. O que terá repercussão na
constituição e consolidação de um mercado de bens simbólicos, que se desenvolve,
sobretudo, nos anos 1970 e 1980. Assim, comenta ainda Ortiz (1995, p.121):
Durante o período que estamos considerando [1970-1980], ocorre uma formidável expansão, a nível de produção, de distribuição e de consumo de cultura; é nesta fase que se consolidam os grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação e da cultura popular de massa.
Ainda que faça parte do singular processo brasileiro de implantação de um
mercado de bens culturais14, a expansão das rádios em freqüência modulada no
Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1970, parece se relacionar também com
o ambiente cultural de transformações políticas e econômicas que ocorrem no globo
com conseqüências para a política e para a cultura. Algumas dessas mudanças
interessam particularmente a este trabalho, entre elas: a reversão da tendência de
crescente padronização dos produtos, inclusive os produtos culturais15; a valorização
das identidades locais, que terá implicações para o argumento em favor da
comunicação comunitária, e o barateamento de tecnologias que passam a ser
acessíveis a grupos antes dela alijados.
14 Que começa a ser desenhado a partir do esforço de centralização política e cultural vivido nos anos 1930 -1940, com o Estado Novo, e que continua a se desenvolver nos anos 1960 e 1970 com o regime militar. 15 O que não vai significar o fim da concentração da propriedade dos meios de comunicação. Como afirma Castells (1999, p. 426), referindo-se a TV: “embora a audiência tenha sido segmentada e diversificada, a televisão tornou-se mais comercializada do que nunca e cada vez mais oligopolizada”.
24
1.1 Transformações globais, mudanças locais
Como observa David Harvey (1989) em “Condição Pós-Moderna”, a partir de
1973 já se registram, no plano internacional, mudanças no regime de produção e em
sua forma de organização, o que produz transformações nas relações sociais, bem
como nos hábitos, práticas políticas e formas culturais. Essas mudanças
correspondem ao declínio do modelo fordista de organização da produção e de
orientação das relações políticas e sociais através do globo.
O paradigma fordista se referia basicamente à concentração produtiva e
gerencial, com elevado grau de especialização e intensa capacidade produtiva
voltada para a produção e distribuição de produtos em massa, que para tanto
deveriam se pautar o máximo possível pela padronização. A produção em massa
pressupunha uma organização social também padronizada em relação ao consumo
dos bens culturais. Estes bens, “standardizados”, são oferecidos para uma
população supostamente homogênea (aos olhos do mercado) em termos de
consumos e gostos, e em maior ou menor medida, sob o controle do Estado.
Paralela a essa forma de produção e consumo em massa, Harvey irá
apontar a emergência de uma outra racionalidade político-organizativa, em sintonia
com uma estrutura social fundada em localismos e nacionalismos, e em uma
fragmentação dos discursos de legitimação dos processos sociais.
Provavelmente essa mudança se expressa na esteira do enfraquecimento
dos grandes discursos organizadores, as metanarrativas, simultaneamente a um
avançado processo de segmentação do mercado de trabalho (com a crise do
emprego), do mercado consumidor e a formação de uma nova cultura de consumo
global. Essa cultura não mais satisfeita com as soluções de “massa” para suas
demandas e desejos, ao contrário, cada vez mais interessada na idéia de
atendimentos particularizados, aspecto que se fortalece inclusive na política.
Se a economia e a regulação do Estado no modelo fordista tinham em vista
tanto a produção quanto o consumo em massa (com bens padronizados)16, com a
16 No Brasil o período fordista de acumulação coincidiu com a modernização produtiva vivida a partir do nacional-desenvolvimentismo e da política de substituição de importações, estendo-se com nuances variadas até a década de 1970 e 1980 com os governos militares.
25
crise de acumulação decorrente da queda global dos rendimentos e com as
mudanças culturais e políticas observadas ao redor do globo a partir dos anos 1960,
aquele paradigma passou a se mostrar deficiente para assegurar o crescimento dos
investimentos.
Para Harvey (1989), a solução da crise de acumulação, em nível da
produção e gestão política nos países centrais do capitalismo, veio sob a forma de
uma flexibilização da produção (acumulação flexível) em sintonia com um mercado
consumidor cada vez mais segmentado, que trouxesse “a cara” daqueles a quem se
destinariam os produtos, no segmento da indústria cultural.
No Brasil as conseqüências do processo acima descrito não são sentidas de
modo imediato. Analisando o mercado de bens simbólicos nos anos de 1970, Ortiz
(1995) observa, dentro do processo de consolidação da indústria cultural entre nós,
uma tendência à nacionalização e a “standartização” da produção cultural, o que se
evidencia pela formação de redes de televisão e de rádio que transmitem para todo
o país uma mesma programação, quase que anulando a produção antes localizada,
e respondendo às funções de integração nacional proposta pelos militares.
No entanto, ao longo dos anos 1980 e principalmente dos anos 1990 as
transformações percebidas por Harvey (1989) passam a ser sentidas entre nós em
diversas áreas. No que concerne ao rádio, algumas mudanças podem ser
associadas a esse novo momento. Se de um lado a tendência à nacionalização e
“standatização” se afirma, com o uso de satélites para transmissão em rede, a
segmentação também passa a ser verificada. (DEL BIANCO, 1999). Além disto, o
novo momento irá conviver com a popularização de tecnologias que se tornam cada
vez mais baratas, como os transmissores, permitindo a emergência de rádios de
pequeno porte que podem operar com custos reduzidos, como é o caso das
radiocom. Rádios que antes funcionavam com alto-falantes ou com transmissores
caseiros poderão “colocar a emissora no dial” com maior qualidade. Passa, então, a
ser tecnicamente possível a uma pessoa, um grupo ou comunidade ter uma
emissora de rádio.
Mudanças na orientação dos movimentos sociais também são sentidas e
terão implicações para a trajetória das radiocom. De acordo com o conjunto de
26
sentidos de mudança identificados por Harvey (1989), de fortalecimento dos
localismos e das singularidades, Glória Gohn (2002, p. 301), percebe na trajetória dos movimentos sociais um processo de valorização de sentidos e categorias que se
relacionam a esta tendência. Ao discutir a nova concepção de sociedade civil e sua
relação com a dinâmica dos movimentos sociais no contexto dos anos 1990, a
autora afirma:
Este espaço [ocupado por instituições e situado entre o mercado e o Estado] é trabalhado segundo princípios da ética e da solidariedade, enquanto valores motores de suas ações, resgatando as relações pessoais, diretas, e as estruturas comunitárias da sociedade, dadas pelos grupos de vizinhança, parentesco, religião, “hobbies”, lazeres, as aspirações culturais, laços étnicos, afetivos, etc. 17
A valorização do sentido das relações comunitárias e da comunidade vai ser
decisiva nos anos 1990 também como parte das críticas aos processos de
globalização dos mercados e à incapacidade das nações e da comunidade
internacional de agir e de dar respostas aos problemas locais. E vai caminhar lado a
lado com as questões relacionadas à comunicação.
No que concerne aos meios de comunicação ligados aos movimentos
sociais, essas mudanças serão percebidas dentro de um processo que defino como
de “autonomização”: um processo que converte paulatinamente a comunicação
produzida dentro dos movimentos sociais em um valor em si e não apenas um
instrumento de divulgação dos movimentos e de suas demandas.
Doimo (1995, p. 136), citando Della Cava, afirma que a comunicação popular
nasce “com o desenvolvimento do ‘movimento popular’ (...) para referir-se a toda
sorte de iniciativas comunicacionais à base de tecnologias rudimentares (...) são
iniciativas voltadas ao incremento de grupos de base, como cartilhas, boletins,
folhetos, convocatórias, audiovídeo, alto-falantes na praça, dramatizações etc”18.
Todavia, considerando o acúmulo de experiências nessa área e, como parte do
momento de valorização de idéias como comunidade, e valores como a
solidariedade, a comunicação passa a ter um outro espaço: ela se “autonomiza”. O
17 Grifos meus. 18 Grifos meus.
27
que significa que ela própria se constitui como um direito, que deve ser
assegurado19.
Para esta mudança a presença da Igreja Católica através da Teologia da
Libertação vai ser decisiva, na medida em que coloca questões para os movimentos
como a “igualdade de condições de acesso aos sistemas de comunicação existentes
para o Terceiro Mundo, a identidade cultural de todos os povos e, finalmente, a
transformação, pelo Estado, dos meios de comunicação de massa em um sistema
de comunicações do povo, para o povo e por ele dirigido” (DELLA CAVA, 1992, p.
68). A Campanha da Fraternidade de 1989, por exemplo, tem como tema “A
fraternidade e a comunicação”.
O fato de a comunicação comunitária ter se tornado objeto de um debate
jurídico sobre a liberdade de expressão e o direito de comunicar (COELHO NETO,
2002) se relaciona a esse movimento que transforma a comunicação em uma
demanda específica.
O atual conflito no campo das emissoras comunitárias pode ser entendido
também como parte dessa mudança. A demanda por um canal comunitário sai do
espaço exclusivo dos movimentos sociais e se torna uma demanda de outros
segmentos sem tradição de organização popular, como por exemplo, as igrejas
evangélicas.
Num cenário de centralidade da comunicação20 e da informação diversos
grupos querem ter seu próprio canal de comunicação. A disputa se institui em torno
de quem terá direito a ele.
Nessa nova ambiência, não apenas no plano dos movimentos sociais a
comunicação é alçada a um outro patamar. Harvey (1989, p. 140), afirma que:
19 O surgimento de emissoras comunitárias e a demanda por liberdade para existirem se situam nesse ambiente. 20 Sobre a centralidade da comunicação na atualidade Castells (2002, p. 418) afirma, por exemplo, que “o padrão comportamental mundial predominante parece ser que, nas sociedades urbanas, o consumo de mídia é a segunda maior categoria de atividades depois do trabalho e, certamente a atividade predominante nas casas”.
28
Ela [a acumulação flexível] envolve um novo movimento que chamarei de ‘compressão espaço-tempo’ no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite, a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variado.
As tecnologias da informação transformam as bases materiais da sociedade e
sua forma de compreender e viver o tempo e o espaço, que passam a ser mediados
pela intensa presença dos meios de comunicação. A valorização de veículos de
comunicação local como as radiocom pode ser lida como parte desse processo de
mudanças.
Mas quais as particularidades desse processo em diferentes regiões do
planeta? Para Jesus Martin-Barbero (2001, p.271. Grifos meus),
A comunicação está se convertendo num espaço estratégico a partir do qual podem pensar os bloqueios e as contradições que dinamizam essas sociedades-encruzilhada [as sociedades latino-americanas], a meio caminho entre um subdesenvolvimento acelerado e uma modernização compulsiva. Assim, o eixo do debate deve se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de horizontes culturais.
Trabalhando na linha dos estudos culturais e enfrentando a questão da
centralidade da comunicação no contexto da América Latina, Martin-Barbero discute
os vínculos entre hegemonia, cultura de massa e cultura popular. Sua proposta é
entender os meios de comunicação a partir das inúmeras mediações das quais estes
participam: práticas de comunicação, movimentos sociais, temporalidades distintas,
pluralidade de horizontes culturais.
Ao ampliar a compreensão dos processos comunicativos para além da
análise do veículo como meio técnico, e focalizar a comunicação como dado das
interações sociais, espaço que comporta as experiências dos sujeitos e a produção
de percepções, Martin-Barbero se afasta da visão mecânica dos meios de
comunicação como agentes exclusivamente ideológicos que trabalham de modo
absoluto sobre receptores passivos. Ele irá falar de “mestiçagem” e de “mediações”
29
para entender os processos de negociação de sentido que se estabelecem entre a
produção cultural de massa e a percepção formulada por quem a consome.
É a partir destes pressupostos que ele entende o rádio no contexto latino-
americano, onde este desempenhará papel importante no processo de construção
da nacionalidade, na medida em que é capaz de dialogar com matrizes da cultura
popular como a oralidade:
Daí, também, o papel peculiar de certos meios massivos que, como o cinema e o rádio, constroem seu discurso com base na continuidade do imaginário de massa, com a memória narrativa, cênica e iconográfica popular, na proposta de um imaginário e uma sensibilidade nacionais. (MARTIN-BARBERO, 2001, p. 240).
Segundo Martin-Barbero (2001, p.242), são os meios de comunicação que
se implantam a partir dos anos 1930, o rádio em especial, que irão oferecer “aos
moradores das regiões e províncias mais diversas uma primeira vivência cotidiana
da nação”. Thompson (1998) discute que o mesmo processo se realiza no século XV
na Europa com a invenção da imprensa, quando os textos deixam de ser elaborados
em latim e passam a ser escritos nos idiomas vernáculos. A presença das notícias
sobre a nação em um idioma que pretende se afirmar como língua comum colabora
para criar o sentido da nacionalidade e de pertencimento a esta.
Atualmente as radiocom oferecem uma outra experiência do espaço a seus
ouvintes. Não a da nacionalidade, mas a da localidade, amplificada e mediada pelo
rádio. Deste modo, as mediações e a mestiçagem que Martin-Barbero identifica nos
processos de produção e de apropriação da comunicação massiva podem ser
pensados para o que ele define como as “’novas maneiras de estar juntos’ pelas
quais se recria a cidadania e se reconstitui a sociedade, a partir das associações de
bairro para a resolução pacífica de conflitos, e das emissoras de rádio e televisão
comunitárias para recuperar memórias e tecer novos laços de pertença ao território”
(MARTIN-BARBERO, 2001, p. 21). Há na fala de Martin-Barbero uma grande
esperança no papel dos meios como agentes dessas novas formas de interação.
As rádios comunitárias no Brasil surgem e se fortalecem na esteira dessa
esperança e, como vimos, de uma dupla valorização: da comunicação e da
30
comunidade, que os movimentos sociais a partir de um certo momento passam a
promover21. Mas simultaneamente à esperança há um processo de negociação do
sentido e do espaço com grupos e instituições de poder, como o Estado e os
proprietários dos meios de comunicação - para quem a comunicação se configura
antes de tudo como um negócio, e a entrada de novos agentes é entendida em
termos concorrênciais.
1.2 Conflito e “auto-imagem”
A negociação e os embates em torno do direito de uma rádio comunitária
existir ocorrem em diferentes instâncias. No plano político, por exemplo, a formação
de frentes parlamentares serve à defesa dos interesses destes agentes, o que já
ocorreu tanto por parte de parlamentares ligados às radiocom22, quanto
recentemente por deputados e senadores ligados à ABERT. No plano jurídico ocorre
o ingresso de ações tanto por parte de emissoras comunitárias, quanto por rádios
comerciais. No Ceará, como se verá adiante, as liminares garantiram o
funcionamento de algumas radiocom durante certo tempo. Uma outra instância de
conflito, entretanto, é de ordem simbólica, e se organiza a partir da auto-imagem,
que desempenha importante papel na construção da legitimidade presente tanto nos
discursos jurídicos, quanto políticos.
A auto-imagem é um conceito trabalhado em “Os estabelecidos e os
‘outsiders’” por N. Elias e Scotson (2000). Nessa obra seus autores elaboram um
modelo operacional de leitura dos conflitos, a figuração “estabelecidos e ‘outsiders’”,
tendo como matéria-prima um trabalho etnográfico. No povoado de “Winston Parva”
a questão do conflito é entendida através da distinção de “status” construída pela “auto-imagem” dos grupos em processo conflituoso. A marca da distinção se
21 Criando inclusive um nicho discursivo onde essa dupla valorização é associada à democratização das comunicações. 22 Em junho de 1999 houve o lançamento no Congresso Nacional da “Frente Parlamentar em Defesa da Radiodifusão Comunitária”, com adesão de mais de 100 parlamentares. Como afirma o Jornal “ABRAÇO no Ar”, nº 12 de julho de 1999, “um dos objetivos da Frente é fazer com que as rádios comunitárias contem com um grupo de deputados compromissados com a atividade e possam denunciar no Congresso ou nas instâncias jurídicas as agressões às rádios”.
31
situa num plano análogo àquele que constrói a imagem da civilização: a crença na
superioridade de um dos grupos23.
O esforço de construção das crenças, na inferioridade ou na superioridade,
ocorre de modo relacional e envolve os dois grupos. Os estabelecidos defendem
suas posições a partir da auto-imagem que constroem de si e da que impõem aos
“outsiders”. No caso analisado por Elias e Scotson os móveis do conflito entre dois
grupos de trabalhadores, com perfis-socioeconômicos idênticos, não eram
econômicos. A distinção e a crença nesta opunham os dois grupos. De um lado os
“estabelecidos”, beneficiários da imagem de fundadores do pequeno povoado e
guardiões do melhor de seus costumes e tradições. De outro lado os “outsiders”,
moradores “comuns”, mal-vistos apenas por serem os mais recentes habitantes do
lugar, sem direito às benesses da tradição e da imagem de quem há mais tempo se
estabeleceu. O lucro simbólico na crença de tal distinção acaba por criar “status” e
poderes diferenciados entre eles.
A auto-imagem torna compreensível o terreno sobre o qual as disputas irão
se dar. Ela cristaliza a visão que um grupo tem de si e de suas possibilidades
sociais. O conflito analisado por Elias e Scotson é mediado pela auto-imagem, que
torna legítima ou ilegítima as pretensões de poder dos dois grupos sociais. E como
se dá a elaboração da auto-imagem?
Parte do processo posto em movimento pela figuração “estabelecidos e
‘outsiders’”, é o que Elias e Scotson chamam de “sociodinâmica da estigmatização”.
Estigmatizar torna-se um expediente eficaz na medida em que manipula
representações positivas e negativas de ambos os grupos nas relações mútuas que
estabelecem. A manipulação tem como alvo a auto-imagem do grupo a ser atingido,
cuja crença na própria inferioridade pode ser decisiva na aceitação de um diferencial
de poder negativo e de uma posição social de subordinação.
A imagem que um grupo forma de si e dos outros é mediada pelo estigma
que orienta as ações e toda uma economia emocional levada a cabo pelas relações
23 Já no “Processo Civilizador” (1994a), a própria noção de civilização é tratada em termos da auto-imagem, sendo possível verificar as dissonâncias em torno de idéias e noções como “kultur” e “civilização”. Lido como a “imagem de si” feita pelo Ocidente, o termo civilização reflete a percepção das relações sociais e das posições nestas de indivíduos e grupos.
32
de vizinhança. Assim, a “superioridade de forças é equiparada ao mérito humano e
este a uma graça especial da natureza ou dos deuses” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.
26). Essa dinâmica de estigmatização exige um investimento constante na distinção
e em sua justificação, através da crença de que existe, de fato, uma diferença inata
entre os grupos.
Elias e Scotson enfatizam que em todo o processo de estigmatização as
crenças são os móveis da disputa de poder. Elas se constituem como a matéria
prima da composição da auto-imagem dos grupos que, de modo processual, tal qual
as identidades, re-elaboram-se constantemente.
Ainda que no caso das radiocom a auto-imagem não possa ser tomada nos
mesmos termos de uma relação de vizinhança, como acontece em “Winston Parva”,
a construção de uma determinada imagem das rádios e de seu movimento se torna
fundamental na disputa de poder, de legitimação e de território que as rádios
enfrentam.
Essa imagem é elaborada não apenas pelas radiocom, mas também pelas
diversas instâncias que com elas se relacionam: rádios comerciais, entidades
representativas dessas emissoras, em nível local e nacional, órgãos de governo e
meios de comunicação de massa. A formulação da auto-imagem, bem como sua
aceitação ou negação, ocorre de modo relacional, e opera um jogo de forças onde a
prevalência de uma percepção positiva ou negativa sobre as radiocom traz
conseqüências para o seu reconhecimento social, o que acontece antes e depois da
aprovação da Lei 9.612.
Por isso, a estigmatização aparece como dado importante do processo,
legitimando ou deslegitimando socialmente a presença das radiocom junto a opinião
pública.
A idéia de que as radiocom operam pondo em risco o funcionamento de
diferentes sistemas de segurança, como o dos aeroportos e da polícia, através das
interferências em seus aparelhos de comunicação, é uma das imagens difundidas
pelas emissoras comerciais que acaba por afetar negativamente a leitura que a
sociedade faz das radiocom. Ao tratar o problema da concorrência entre rádios
comerciais e rádios comunitárias como um problema de segurança pública, as
33
emissoras comerciais transformaram-no em uma questão que extrapola o campo da
radiodifusão e invade outras instâncias sociais, ampliando o interesse da opinião
pública e manipulando-o a seu favor através da idéia de perigo.
Do lado das radiocom, a necessidade de respaldar constantemente o
movimento em torno da imagem de democratização e da ação comunitária, se choca
com as constantes denúncias na imprensa de emissoras que funcionam como rádios
comerciais de baixa potência ou são colonizadas por interesses políticos e
religiosos. Torna-se necessário ainda, para as radiocom, retorquir a representação
de ilegalidade, clandestinidade, pirataria, oportunismo e perigo a elas imposta pelas
emissoras comerciais e suas entidades representativas24.
Os processos de formulação de uma valoração positiva e do orgulho que a
auto-imagem pode carregar permite compreender o que acontece com as radiocom;
ainda que neste caso aspectos afetivos da percepção de um grupo humano não
sejam a questão central. Em relação às radiocom a auto-imagem torna perceptível o
processo de construção, ou não, do reconhecimento e da legitimação das emissoras
sem outorga que se definem como comunitárias. Um dos mecanismos de
legitimação se processa pelo uso da idéia de comunidade, e dos valores imanentes
a estas, que são vistos de modo positivo, e por vezes idealizado, e se fariam
presentes na programação, na organização e na relação das emissoras com os
ouvintes e o lugar onde se estabelecem.
Exemplo da elaboação da auto-imagem pode ser percebido no Jornal
“ABRAÇO no Ar”, que detalharemos a seguir. Neste informativo as radiocom
aparecem como portadoras de uma utopia revolucionária: são agentes do
aperfeiçoamento social, da democratização, do fortalecimento identitário e da
solidariedade. Ações legitimadoras que se opõem a idéias como pirataria, perigo,
clandestinidade e crimes, muitas vezes associadas às emissoras. Acompanhe
alguns trechos:
24 Já em 1997, mesmo antes da promulgação da Lei 9612, a ABERT lançou campanha nacional, em diversas mídias, inclusive o rádio, afirmando o perigo das “emissoras piratas” (MATOS, 2000).
34
Agora é a vez das rádios comunitárias assumirem a responsabilidade da continuidade no aperfeiçoamento de nossa sociedade, da democratização das informações, da cultura e das formas de se relacionar das comunidades em todos os rincões brasileiros, promovendo uma verdadeira revolução com o fortalecimento da identidade cultural local, estimulando a solidariedade entre os cidadãos e provocando a auto-estima nas pessoas (...).
Em outro trecho do jornal tem-se o reforço à imagem transformadora das radiocom,
quando elas são apresentadas como “novidade revolucionária”, meio possível de
controle coletivo e realização da cidadania, que não podem existir fora delas:
Uma rádio comunitária é algo novo. Com ela se pretende uma revolução política, social e cultural do país – a partir da tribo, da vila do povoado, do grande coração brasileiro. A rádio comunitária é o último meio de comunicação que a população pode de fato possuir e controlar neste final de século. (...) Fora das comunitárias o que vale é o dinheiro. O cidadão não existe, a comunidade não existe (...).
Por tudo isso uma rádio comunitária não pode copiar uma comercial (..). A dificuldade é como fazer uma rádio que não siga este modelo que aí está?
O jornal afirma a positividade e a legitimidade dos valores locais,
representados pelas radiocom, contra a globalalização, apresentada como
excludente e centralizadora:
O movimento de rádios comunitárias é a resistência contra a globalização, centralizadora e excludente, que está se propagando como um furacão sobre a soberania dos povos, onde grandes grupos financeiros é que ditam quem participa ou não do mundo globalizado.
Dessa forma, tem-se que a idéia de revolução e o papel social a ser
desempenhado pela comunicação comunitária se afirmam na noção de comunidade
e nas diversas interpretações favoráveis de seu papel: fortalecimento da cultura e da
identidade locais, valorização da solidariedade, oposição à globalização
centralizadora e excludente, “revolução a partir da tribo, da vila, do povoado, do
grande coração brasileiro”.
35
No “ABRAÇO no Ar”, a idéia “rádio comunitária” é usada para explicar as
potencialidades da comunicação voltada para a comunidade. Do ponto de vista da
disputa política entre radiocom e rádios comerciais, essa interpretação é uma das
ferramentas usadas no jogo de legitimação, através da formação de uma imagem
com forte conotação progressista e libertária.
Como a história das comunicações no Brasil é a narrativa da concentração
dos meios em monopólios estatais, como nos anos 1930 (CAPELATO, 1998) ou dos
monopólios privados (SORJ, 2003; NUNES, 2003), como ocorre atualmente, a auto-
imagem das rádios se constrói atrelada a essa história, e se apresenta como uma
resposta de equilíbrio aos desequilíbrios criados pela concentração, sendo em
grande medida uma afirmação pela negação. Como afirma Costa Jr (1999),
As rádios comunitárias fundaram-se como alternativas e construíram sua identidade pela negação do outro que é representado pelas rádios oficiais. Mostram-se como lugar do bem, da liberdade de expressão, em oposição ao lugar da censura e da alienação. Fundaram-se como lugar da possibilidade real de participação da comunidade, em resistência aos mecanismos de exclusão na mídia oficial.
De acordo com essa interpretação, parece ser instigante pensar sobre que o
afirma N. Elias (1994) em A “sociedade dos indivíduos” sobre o desenvolvimento
histórico das palavras. Para ele a mudança de significado destas diz muito sobre a
direção que toma o desenvolvimento das figurações sociais, bem como das relações
sociais que nelas têm lugar. Nesse sentido, a prevalência do termo “comunitária” no
tratamento das experiências de comunicação alternativa, sobre outros como
“popular” e “livre”, que passa a ocorrer no início dos anos 1990 (COSTA JR, 1999;
LOPES, 2005), sugere uma reorientação das idéias norteadoras dos movimentos
sociais que alimentaram tais experiências e dos discursos sobre as emissoras. Mas,
qual o rumo dessa nova orientação?
36
1.3 A noção de comunidade e as rádios comunitárias
Desde Tönnies (1995) a leitura das relações sociais constrói uma dupla
tipificação. De um lado teríamos as relações organizadas em torno daquilo que o
autor define como comunidade, e de outro as relações próprias de um universo
definido como a sociedade. Na primeira as relações seriam pessoais, marcadas
pelos contatos face-a-face e pelos laços afetivos que fazem seus participantes
manterem-se nela. Na segunda os homens fundariam uma união com base em
finalidades objetivas que podem ser melhor alcançadas em grupo. Em Tönnies, o
fundamento de tal distinção é psicológico e orientado por dois tipos de vontade: a
vontade orgânica [Wesenwille] e a vontade reflexiva [kürwille].
A força emanada das vontades constrói tipos distintos de interação. Na
primeira, a comunidade, atua a vontade orgânica, fruto do desejo, da afetividade e
da memória, construto que torna o prazer de conviver em um ambiente comum o
maior dos estímulos. “A Wesenwille [vontade orgânica], nas suas divisões de
vontade vegetativa, mental e animal, expressa-se no prazer, no hábito e na
memória”. (BELLEBAUM, 1995, p. 79).
Na sociedade, de outro lado, a vontade imperativa é a vontade reflexiva,
orientadora de um modelo de racionalidade orientada a fins, para usar os termos de
Weber (1994), e cuja associação se dirige de modo objetivo, com vistas a tornar
saciáveis certas necessidades. “A Kürwille [vontade reflexiva], como forma de
vontade isolada e autônoma, implica refletir, desejar e conceber”. (BELLEBAUM,
1995, p. 79). As necessidades e formas de organização associativas são reflexivas
e tendem a se tornar impessoais e complexas, afastando-se paulatinamente dos
limites locais.
Talvez por isso, Tönnies tenha sido revisitado (WOLF; PRAHL, 1995) em um
momento histórico em que se percebe, nos movimentos realizados pela
globalização, uma conjuntura favorável à valorização da comunidade e do local, fato
que reflete a desconfiança no projeto iluminista, nas grandes narrativas e em uma
forma de socialização que produziria o homem “blasé” (SIMMEL, 1979), protegido
dos contatos face-a-face e dos compromissos de uma interação mais intensa e por
isso mais apto à indiferença. Neste sentido, “vemos (...) porque Tönnies considera a
37
comunidade o lugar em que a moral é vivida de forma mais efetiva, dominada que é
pela busca de um valor ético que se identifica com a unidade viva que forma a
comunidade”. (FREUND, 1980, p. 213).
Da forma como constrói sua argumentação, Tönnies opõe, através da dupla
tipologia das vontades, um antagonismo que parece não poder ser resolvido. Assim,
apesar de comunidade e sociedade serem apresentadas como necessárias, a
comunidade aparece de modo positivo, alvo para o qual parece se voltar na busca
de uma interação mais humana. Já a sociedade é carregada de negatividade. A
frieza, a impessoalidade e o individualismo que ela porta são vistos como elementos
desumanizantes, ainda que construam uma unidade.
Já para Weber (1994), o que confere a uma relação o caráter comunitário é
a pertença, vínculo afetivo que configurará o grupo. Deste modo, para ele, “uma
relação social denomina-se de 'relação comunitária' quando e na medida em que a
atitude na ação social – no caso particular ou em média ou no tipo puro – repousa
no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente)
ao mesmo grupo” (1994, p. 25).
O sentido atribuído à ação social e ao outro ao qual ela se dirige é dado,
segundo Weber, a partir do sentimento de mútuo pertencimento partilhado pelos
membros da comunidade, o que o aproxima de Tönnies e de sua noção de vontade
orgânica. Como afirma:
Somente quando, em virtude desse sentimento ['sentimento da situação comum e das respectivas conseqüências'], as pessoas começam de alguma forma a orientar seu comportamento pelo das outras, nasce entre elas uma relação social – que não é apenas uma relação entre cada indivíduo e o meio circundante - e só na medida em que nela se manifesta o sentimento de pertencer ao mesmo grupo que exista uma 'relação comunitária' (WEBER, 1994, p. 26).
O sentimento de pertencer ao mesmo grupo, de partilhar das mesmas
experiências e relações comunitárias, como descritas por Weber, é transportado,
enquanto significado, para o universo das rádios comunitárias e seu discurso de
fundação. Estes atributos passam a compor a auto-imagem das emissoras e são
38
usadas para defender as possibilidades da comunicação por elas produzidas,
marcada por idéias como participação direta, solidariedade e democratização.
Numa situação de conflito essas imputações positivas se opõem a um leque
de sentidos negativos usados pelos seus opositores, como “piratas”, “ilegais”,
“clandestinas” ou “perigosas”, que lhes nega a caracterização de veículo legítimo de
comunicação de uma localidade.
O recorte das relações de disputa, no estudo das radiocom, expõe a própria
dinâmica conflituosa das comunicações no Brasil. Para Simmel (1977), o conflito se
constitui como evidência do processo de socialização, surgindo como um dos
elementos definidores dos rumos das interações sociais.
Em La Lucha (1977), Simmel elabora um panorama dos conflitos humanos e
defende a tese de que a disputa é um antídoto contra o “dualismo disociador, una
vía para llegar de algún modo a la unidad, aunque sea por el aniquilamento de uno
de los partidos” (1974, p. 265). A compreensão sociológica dos mecanismos de
equilíbrio social, para ele, deve ser buscada nas disputas e não na idéia utópica de
harmonia social perene. Assim, a existência dos diferentes grupos sociais se
manifesta pela necessidade de negociar seus interesses, nem sempre convergentes,
em situações de disputa. As disputas, que podem gerar conflitos sangrentos ou não,
são a marca das sociedades, enquanto que as diferentes formas em que o conflito
se estabelece permitem entender a própria dinâmica social.
Em relação ao campo da radiofonia brasileira, a dinâmica do conflito
evidencia uma busca por visibilidade através da apropriação de um veículo de
comunicação. Os diversos formatos de radiocom indicam que ela pode se pautar por
interesses religiosos, político-partidários, mercadológicos ou ainda na tradição dos
movimentos sociais na área de comunicação. Assim, diferentes discursos se
organizam e representam segmentos da sociedade em busca de visibilidade: seja
ela política, social, comercial ou cultural.
Tornar-se visível, como será visto adiante, se relaciona ao que Canclini
(1999) entende como o alargamento ou a construção do espaço público nas
periferias das grandes cidades latino-americanas. Para ele, “faz-se necessário que
nós, pesquisadores, realizemos análises cuidadosas da remodelação dos espaços
39
públicos e dos dispositivos que se perdem ou se recriam para o reconhecimento ou
a proscrição das múltiplas vozes presentes em cada sociedade” (CANCLINI, 1999,
p. 21).
1.4 Conflito, visibilidade e espaço público
A remodelação dos espaços públicos passa, na percepção do autor, pela
ascensão do consumo como uma forma de exercício da cidadania, na medida em
que produz a mediação entre os sujeitos e o mundo. O olhar sobre o que se
consome, bem como sobre o significado social deste processo considera que
“quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que
consideramos publicamente valioso, bem como os modos como nos integramos e
nos distinguimos na sociedade, com que combinamos o pragmático e o aprazível”
(CANCLINI, 1999, p. 45).
O consumo, a cultura e a cidadania passam a ser vistos de modo conjugado.
Daí que, como afirma Canclini:
Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem a mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades (CANCLINI, 1999, p. 46).
Há assim um deslocamento da cidadania para a arena dos meios de
comunicação e do consumo, que tornam o exercício de ser cidadão efetivo, seja pelo
acesso à informação, que é mediado pelo consumo dos meios, seja pela compra
daquilo que é necessário à reprodução da vida em padrões confortáveis. Em relação
aos meios de comunicação, o autor afirma:
Estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo. Foram estabelecidas outras
40
maneiras de se informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e exercer os direitos (CANCLINI, 1999, p. 50).
O surgimento dessas relações entre consumo e cidadania supõe um
passado que se inicia ainda com a invenção da imprensa. A produção de impressos
e suas conseqüências para o desenvolvimento das sociedades modernas já foram
discutidas por muitos autores, entre eles Habermas (1984), Rodrigues (2001) e
Thompson (1998). Em seus primórdios, aquilo que hoje chamamos de comunicação
de massa aparece e se legitima como espaço por excelência de manifestação da
“sociedade civil”,25 formando o que Habermas (1984, p. 40) define como “esfera
pública burguesa”, entendida como “o fórum para onde se dirigiam as pessoas
privadas a fim de obrigar o poder público a se legitimar perante a opinião pública”.
A gênese dessa nova esfera pública se confunde com o próprio surgimento
da modernidade e o nascimento de uma nova classe social, a burguesia, que passa
a exigir um espaço de discussão e crítica, antes só acessível à sociedade de côrte.
No período em que essa classe afirma seu papel revolucionário, ela reclama o
controle do Estado por aquilo que será depois tratado como “opinião pública”. Como
afirma Habermas (1984, p. 38):
Ela [a esfera pública], enquanto tal, desenvolve-se especialmente à medida que o interesse público na esfera privada da sociedade burguesa não é mais percebido apenas pela autoridade, mas também é levada em consideração pelos súditos como sendo a sua esfera própria.
Os circuitos de informação - inicialmente fechados aos grupos de
comerciantes26 - passam, com a invenção da imprensa e o desenvolvimento dos
primeiros periódicos, a ser publicizados e destinados a um “público”: o público
burguês letrado e interessado na ingerência das questões de Estado que afetavam
diretamente os seus negócios, que não eram mais apenas negócios domésticos,
25 Em Habermas a sociedade civil aparece, durante o período que analisa, como oposta à ordem estatal e se organiza a partir da então emergente classe burguesa. 26 Para quem as informações são dados necessários à organização dos negócios mas ainda não são um negócio em si.
41
haviam rompido a barreira privada e tornavam-se de interesse público à medida que
se constituíam como mercados.
Nessa fase, o hábito de discutir em público e a partir de uma perspectiva de
crítica às questões de interesse “comum”, que na verdade são próprias de uma
esfera privada, tem lugar nos cafés e nos salões, “centros de uma crítica inicialmente
literária e, depois, também política, na qual começa a se efetivar uma espécie de
paridade entre os homens da sociedade aristocrática e da intelectualidade burguesa”
(HABERMAS, 1984, p. 48).
Ao passo que “a troca de informações desenvolve-se não só em relação às
necessidades do intercâmbio de mercadorias, as próprias notícias tornam-se
mercadorias” (HABERMAS, p. 35). Os jornais, um dos primeiros meios de
comunicação a atingir as massas, se constituem como precursores de uma indústria
de bens culturais que tem em seu âmago a tensão entre o fato de ser um produto e
de, ao mesmo tempo, se colocar como porta-voz da crítica social e dos interesses
comuns.
Como mercadoria cultural o sentido de crítica dos primeiros momentos
dessa produção é esvaziado, inclusive pela mudança no papel da burguesia que, de
força transformadora se converte, com sua chegada ao poder, em força
conservadora. Essa tensão não se dissipa com o desenvolvimento da indústria
cultural e é um dos temas que compõe as discussões sobre a democratização das
comunicações, tocando de perto o universo das rádios comunitárias, cuja proposta é
romper diversos níveis de restrições: culturais, econômicas, políticas, informacionais,
pelo descompromisso com a obtenção de lucro que marca os veículos comerciais.
Entretanto as próprias radiocom irão se constituir como um mercado. As
possibilidades de trabalho, de venda de equipamentos, de atração de pequenos
anunciantes, entre outros aspectos, sugerem essa leitura.
Paralelo ao crescimento e à organização da produção de bens culturais em
escala industrial uma série de outras manifestações e produções ocorrem fora desse
circuito. Ao longo de um período de mais de 200 anos, novas tecnologias e a
ampliação dessa esfera, através da organização e mobilização sociais, fazem surgir
novos espaços de manifestação, novos meios e sujeitos sociais dispostos a deles se
42
apropriar, e um apelo constante à ampliação do acesso às comunicações, realizado
não apenas pelo papel de consumidores, mas também de produtores. O espaço
dessas manifestações pode ser entendido como uma “esfera pública plebéia”
(THOMPSON, 1998).
Todavia, o olhar de Habermas acaba por se fechar no espaço público
burguês. Alguns autores criticam essa percepção afirmando a existência de um
conjunto de outras manifestações que foram tão importantes para a constituição de
uma esfera pública moderna quanto a participação burguesa. Para Thompson
(1998, p. 69):
Dirigindo [Habermas] a atenção à esfera pública burguesa, ele tende a negligenciar a importância de outras formas de discurso e atividades públicas que existiram nos séculos XVII, XVIII e XIX na Europa, formas que não fizeram parte da sociabilidade burguesa, em alguns casos dela foram excluídos ou a ela se opuseram. (...) Da mesma forma que a esfera pública burguesa emergente se definiu em oposição à autoridade tradicional do poder real, assim também se confrontou com o levante dos movimentos populares que ela procurou conter.
As críticas também se referem à ênfase excessiva no papel da imprensa no
início do século XVIII e ao caráter restritivo dessa esfera que “não somente era
destinada às elites instruídas e afluentes, mas também implicava uma reserva
predominantemente masculina” (THOMPSON, 1998, p. 70). Em favor dessa linha de
argumentação, Stuart Hall atenta para o fato de que “a imprensa liberal da classe
média da metade do século XIX foi construída às custas da efetiva destruição e
marginalização da imprensa local radical da classe trabalhadora” (2003, p. 251).
Exercício que se repete hoje com a marginalização pela grande imprensa comercial
brasileira das rádios comunitárias.
1.5 A formação da “auto-imagem”: entre a “cultura comercial popular” e a “cultura alternativa”
Nos dias atuais, a relação entre a produção da indústria cultural e do circuito
de uma esfera pública plebéia merece ser pensada. As radiocom se encontram no
43
cruzamento destes espaços. A visibilidade que acabam por produzir nas áreas onde
se instalam, onde a menção aos nomes das ruas, aos pontos comerciais, às praças
e às atividades de seus moradores produz o reconhecimento do lugar e de sua vida
social27, oferece uma primeira experiência de espaço público às localidades, sejam
elas bairros periféricos de grandes cidades, ou cidadezinhas do interior, que nunca
interessaram comercialmente aos grandes grupos de comunicação. Num movimento
análogo ao processo de construção do espaço público vivido no início da
modernidade, as rádios comunitárias dinamizam e tematizam a vida local.
Além disto, a produção cultural que circula nessas emissoras também se
encontra no cruzamento entre o massivo e popular. Stuart Hall (2003, p. 248) discute
a produção da cultura popular e sua compreensão a partir da perspectiva do conflito
e da transformação, ou seja, das “lutas em torno da cultura, tradições e formas de
vida das classes populares”.
Desde a constituição do capitalismo, afirma o autor, a cultura popular não é
apenas a forma de viver e significar o mundo de trabalhadores e pobres, mas
principalmente um lugar de transformação, considerando que “o povo é
freqüentemente objeto de ‘reforma’”. A necessidade de adequação as relações de
produção e consumo capitalistas posiciona a cultura como uma lugar onde se
disputa o controle social e o poder.
Ao tomar a cultura popular como objeto, Hall (2003) adverte para a dinâmica
nela existente, marcada pelo “duplo movimento de conter e resistir, que
inevitavelmente se situa no seu interior” (2003, p. 247). Conter e resistir, capitular e
incorporar fazem parte da reprodução cultural. Por isso,
27 No processo de pesquisa de campo, durante a audição de uma emissora comunitária localizada em um bairro onde morei por muitos anos, percebi, surpresa e comovida, a importância da publicação, através da rádio, da vida cotidiana do bairro. A menção aos mercados onde se compra diariamente, os eventos que reúnem seus moradores, a vida cultural das escolas, os recados que os moradores se enviam durante os programas, tudo isso compõe um mapa da vida social do lugar. Eles atribuem valor simbólico positivo à vida comum, tornam o que era antes imperceptível, a dinâmica cotidiana do lugar, em elemento para ser ouvido, discutido e reconhecido, o que vai além das funções de simplesmente informar ou entreter através de uma programação musical. Naquele momento da audição, moradora que fui, senti uma emoção estranha, a de ter sido parte daquele universo que a rádio irradiava.
44
O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do ‘popular’” (HALL, 2003, p. 256).
A discussão se torna mais complexa com a “concentração e expansão dos
novos aparatos culturais”, que ocorre no pós-guerra. A oposição entre uma “cultura
comercial popular” e uma “cultura alternativa” (íntegra e autêntica) não responde ao
intricado processo de composição da cultura popular em um quadro de domínio da
informação e da indústria cultural. Hall pondera:
Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas e perdidas (HALL, 2003, p. 255).
No campo das radiocom a produção cultural é também território de tensões
entre o estabelecido, “representado pela cultura comercial popular” e o devir,
representado pela “cultura alternativa”. Essa oposição marcou historicamente as
radiocom em seus primeiros momentos. Como afirma Oliveira (2002, p. 14), “no caso
das radiadoras comunitárias da década de 80, era idealizada a veiculação de Música
Popular Brasileira e canções engajadas, priorizando a transmissão de debates e
mensagens com intenções socioeducativas”.
Essa idealização, que deveria ser realizada no cotidiano das radiocom com a
construção de uma perspectiva alternativa à produção massiva, também toma parte
no processo de composição da auto-imagem dessas emissoras e no processo de
sua legitimação. Oliveira (2002, p.14) registra que
45
Nos anos 90 as idéias em torno das rádios comunitárias FMs começaram a refletir a pluralidade cultural existente na sociedade. Na prática as emissoras comunitárias passaram a veicular o forró, o ‘rap’, o ‘funk’, o ‘reaggae’, a Jovem Guarda e músicas internacionais, o ‘rock’ e outros gêneros que representasse essa cultura plural.
Entretanto, a oposição “cultura comercial popular” versus “cultura alternativa”
continuou marcando o debate em torno das diferenças entre rádio comercial e rádio
comunitária. É o que transparece, por exemplo, neste trecho da matéria “Banda de
Música e música bunda” publicada no jornal “ABRAÇO no Ar”:
Diante desta lixeira, e acima da indústria cultural, o papel da rádio comunitária é provocar a reflexão sobre isto, e revelar a música brasileira de qualidade. Não é só seu papel, é sua obrigação. O compromisso é com as raízes da cultura nacional, com a estética e o bom gosto da música brasileira. (...) Sim, é preciso separar o que é bunda do que é arte. Isto é fundamental para a construção de um país (Junho de 1999).
No Brasil, onde a concentração dos meios de comunicação é uma realidade
que acompanha a constituição e expansão do mercado de bens simbólicos, as
radiocom aparecem sob o signo e a expectativa da ruptura. No entanto, a produção
popular e sua relação com a indústria cultural são complexas, indo além da visão
simplificada que recusa todos os produtos por ela elaborados como inautênticos e
alienantes. Como afirma Hall:
O significado de uma forma cultural e seu lugar ou posição no campo cultural não está inscrito no interior de sua forma. Nem se pode garantir para sempre sua posição. (...) O que importa não são os objetos culturais intrínseca ou historicamente determinados, mas o estado do jogo de relações culturais: cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o que conta é a luta de classes na cultura e em torno dela (2003, p. 258).
Todas as rádios pesquisadas, por exemplo, mantém em sua programação a
oferta de um repertório musical consagrado pela indústria cultural e apreciado pela
audiência, entre eles “o brega”, e “o forró”. Na Rádio Favela, de Belo Horizonte, a
tensão entre os dois universos se apresenta em programas como o “Só Lixo”, cujo
46
título expressa a avaliação feita sobre a música veiculada sem, entretanto, impedir
que ela vá ao ar. Como afirma um dos diretores da rádio sobre a programação:
Tem um programa que chama ‘Só o Lixo’, que toca só música americana, música de menino ficar balançando a bunda, de quem não pensa (...) O Pessoal fala ‘pô, essas músicas é um lixo’, ninguém entende o que fala, ai virou ‘Só lixo’.
Assim, as questões relativas à oposição indústria cultural x cultura popular
dizem respeito também à produção da auto-imagem e da identidade dessas
emissoras. As rádios se afirmam através do discurso da ruptura, da originalidade e
da autenticidade, o que às vezes as faz refém das expectativas idealizadas sobre o
que deve ser uma emissora comunitária. Nos jornais “ABRAÇO no Ar”, a perspectiva
de ruptura é muito mais forte que na vivência das próprias emissoras, que tem de se
relacionar com os gostos e interesses de seus ouvintes. No jornal, veículo de
articulação política das rádios em nível nacional, a resposta dada aos opositores das
radiocom tende a construir um espaço idealizado da produção das emissoras. O
artigo acima citado, que impõe um padrão de gosto e qualidade às emissoras, é
exemplo disto.
Para entender a força da perspectiva de ruptura é preciso considerar que a
presença das radiocom no “dial” dialoga com a estrutura da radiofonia brasileira, que
se organizou, até a entrada das radiocom, exclusivamente como comunicação
comercial ou como comunicação educativa. Em ambos os casos a comunidade
ganha espaços restritos de manifestação. A abertura do espaço às comunidades é
lida, inicialmente, como a possibilidade de construção de um modelo radicalmente
distinto dos já existentes. O aparecimento de rádios não identificadas com a auto-
imagem gestada pelo movimento de radiocom desde o das primeiras experiências
polarizará a relação entre as radiocom.
1.6 O conflito entre as emissoras comunitárias
Para confrontar a estrutura da radiofonia brasileira, as diferentes iniciativas
de comunicação radiofônica não oficiais vão unir forças no processo de defesa de
47
uma lei de radiodifusão comunitária que reconhecesse as experiências já existentes.
Aprovada a Lei, a disputa em torno de quem ocuparia esse espaço e faria uso dessa
definição institui um outro momento, o de conflito intra-radiocom.
Nesse conflito a questão dos vínculos comunitários e de uma programação
diferenciada é usada para separar as “rádios verdadeiramente comunitárias” das
“picaretárias”28. Entre as radiocom, a formação de uma unidade e imagem
consensuais não se tem efetuado. Se na relação com as emissoras comerciais e
com o Estado é possível verificar num determinado período indícios de unidade,
internamente, no campo intra-radiocom, é possível perceber a ausência de consenso
quanto às fronteiras e definições de atribuição. Assim, s significados evocados pela
noção de comunidade são re-significados na defesa de uma posição diferencial no
interior do próprio campo das radiocom.
Com poucos anos de existência, a composição da auto-imagem das
emissoras comunitárias não se apresenta como algo acabado e definido, mas como
um objeto em processo de definição e que, por este movimento, e pelos interesses
em jogo, é alvo de constantes reelaborações e também de disputa. Se antes a
preocupação com a democratização das comunicações e o lugar de utilidade pública
a ser exercido pelas emissoras então colocadas numa posição de entrincheiramento
contra o bloco hegemônico de poder, imperava na produção dos discursos, hoje ela
se pulveriza e é apropriada para defender interesses não apenas dos movimentos
sociais, mas de outros grupos também alijados de meios de comunicação de
pequeno alcance, como pequenos comerciantes, grupos religiosos, notadamente
católicos e protestantes, e políticos de menor expressão.
A moldagem da auto-imagem, pela qual a apropriação e interpretação são
efetuadas, incorpora todos estes interesses, que não são consensuais. A nova
organização do campo das rádios comunitárias e as tendências por ele esboçadas
exigem a reelaboração de sua auto-imagem de modo que seja possível incorporar,
ou senão tematizar, esses novos atores sociais. A expressão “rádios comunitárias
profissionais”, usada por um dos membros das rádios pesquisadas, parece tentar
28 Nas entrevistas com as rádios comunitárias a expressão apareceu por várias vezes, usada por seus integrantes para qualificar rádios sob as quais pesa a desconfiança de não serem radiocom.
48
responder a essa necessidade de lidar com novos perfis de emissoras reivindicantes
da categoria rádio comunitária.
Estas emissoras, até então distantes do movimento de rádios comunitárias,
e proibidas de usar o canal de radiocom pelo próprio texto de Lei 9612/9829,
representam orientações que nos últimos anos se tornaram mais freqüentes no
“dial”. São elas:
• Orientação religiosa claramente definida e que passa a atuar como elemento
fundamental de constituição da identidade da emissora. É o caso da rádio
“Plenitude FM”, ligada a “Igreja Pentecostal Jesus é a Aliança”.
• Aproximação das rádios do modelo de organização e manutenção das rádios
comerciais, onde audiência e a busca de recursos publicitários são suas
razões de existir.
• Busca de espaço de promoção política para políticos profissionais, ou
aspirantes a sê-lo (NUNES, 2003).
Estas orientações fragilizam a concepção ideal de pluralidade na
composição da gestão de cada radiocom. Como todos se afirmam rádios
comunitárias, essa pluralidade se desloca do interior de cada rádio, onde deveria
haver uma programação diversificada, representativa da diversidade cultural e social
do bairro, para se organizar e evidenciar no conjunto das radiocom, onde rádios com
orientações específicas produzem em conjunto um cenário plural. É o caso, por
exemplo, da Rádio Círculo FM que se “especializou” em forró. Sua comunidade de
referência deixa de ser geográfica, o bairro, e passa a ser uma comunidade de
afinidades e de consumo cultural, como se verá no último capítulo.
O tipo de orientação de uma emissora e a composição de sua programação
serve como parâmetro para sua classificação. Embora assentada sobre o
pressuposto de pluralidade, alguns discursos sobre as radiocom operam por
exclusão, recusando um conjunto de gostos e interesses culturais como inferiores,
29 Artigos da Lei referentes à prática de proselitismo político ou religioso.
49
desinteressantes e pouco educativos. É o que se lê no trecho que se segue, escrito
por um militante do movimento de emissoras comunitárias:
Infelizmente no cotidiano das pessoas a questão cultural geralmente é desprezada. As pessoas brigam por tantas coisas, mas não brigam quando a cultura nacional é estuprada. A trilha sonora deste país fica uma coisa insossa e igual, sem criatividade, de mau gosto, brega, e pouca gente reclama, acha tudo normal. Ao ouvir o que toca nas rádios e TVs comerciais você deveria pensar: “esta música é a melhor música do meu país, eu me orgulho dela?” Você acha mesmo que isto é o melhor que temos? As rádios e TVs comerciais tocam a mesma coisa o dia inteiro e você acha normal. (...) Os programadores musicais das rádios comunitárias devem ficar atentos para não repetir o das rádios comerciais. Cuidado com os pedidos musicais dos ouvintes. Não esqueça que eles, como você, como todos nós, estamos mal acostumados com as comerciais, que nos impuseram seus gostos e disseram o gosto da gente. (LUZ, 2001, p. 72 e 75)
Longe da idealidade das definições que tratam da qualidade da música e de
outros produtos culturais a serem difundidos pelas rádios comunitárias e consumidos
por seus ouvintes, tais como a “música de raiz” ou “música boa” (LUZ, 1999), a
realidade complexa da dinâmica de oferta e de consumo de bens culturais gera uma
enorme pressão sobre as rádios comunitárias e põe em xeque o exercício de uma
proposta mais “pura” de programação comunitária. Já que, como afirma Stuart Hall
(2003, p.254): “não existe uma ‘cultura popular’ íntegra, autêntica e autônoma,
situada fora do campo de força das relações de poder e dominação culturais”.
A religiosidade popular católica, a expansão dos grupos evangélicos, o
interesse pelo forró tomam espaço no “dial” e reelaboram o discurso tradicional dos
movimentos sociais sobre a democratização das comunicações, bem como sobre o
controle social das radiocom.
O trabalho de Oliveira (2002) revela um novo momento da prática das
emissoras comunitárias. A introdução de um repertório consagrado pela
comunicação de massa começa a ser vista não como alienação ou capitulação da
proposta política inicial das emissoras, como nos anos 1980, mas como uma forma
de trazer para dentro das radiocom a pluralidade social existente fora delas.
50
Se a leitura tradicional das rádios e seu papel político não constituem um
repertório em desuso, elas não são mais exclusivas e dividem terreno com todas
essas novas apropriações.
O peso do consumo e as questões capilares que ele levanta não podem ser
vistos de um ponto de vista normativo (o que devem ouvir, o que devem discutir, o
que devem focar como democrático). Eles estão presentes na prática das radiocom
e na relação que eles estabelecem entre seus ouvintes e, principalmente, no
discurso de construção da auto-imagem, como será demonstrado ao longo do texto.
A observação atenta da trajetória de surgimento do rádio, sua gestão como
veículo comercial ou estatal - em contextos nacionais diversos – e, ainda, o
aparecimento das primeiras experiências de comunicação alternativa ajudam a
compreender como se costura a trama que estampa as questões acima
mencionadas. É o que será visto no capítulo a seguir.
51
CAPÍTULO II
O RÁDIO: A HISTÓRIA E OS USOS SOCIAIS
Outubro de 1938. É noite de domingo. Nos Estados Unidos ouvintes atentos
do programa radiofônico “Mercury Theatre On The Air” são informados em tom grave
de um evento extraordinário:
_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes... Os marcianos estão invadindo a terra...
_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes... Os marcianos estão invadindo a terra...
_ Atenção, senhoras e senhores ouvintes ... Os marcianos estão invadindo os Estados Unidos da América ...
No ar, Orson Wells lia “A Guerra dos Mundos” de H. G. Wells e informava
aos ouvintes de seu programa que ocorria, naquele momento, uma invasão
marciana. A dramatização, em tom jornalístico, foi vivida como evento real pelos
norte-americanos, provocando pânico, histeria e a sensação real de fim do mundo
(TAVARES, 1999). O rádio era naquele momento o mais importante veículo de
comunicação do mundo. Características como a rapidez na transmissão das
informações, a relação de proximidade que se estabelecia através do som entre
emissores e receptores, e o aguçamento da imaginação, próprios do rádio,
transformaram o programa de Wells daquela noite em um marco da história da
comunicação de massa.
O rádio, nas funções em que conhecemos hoje, é um saldo de guerra. Ao
final da Primeira Guerra Mundial rádios fabricados para as tropas “encalharam” na
fábrica. A solução para a venda dos aparelhos foi a construção de uma antena no
pátio da fábrica produtora que passou então a transmitir músicas, desse modo
estimulando a comercialização dos aparelhos (CALABRE, 1999). Assim nasceu a
primeira estação radiofônica. O caráter desse primeiro “experimento” foi de
orientação comercial:
52
As possibilidades comerciais não escaparam à atenção dos dirigentes da Westinhouse. Resolveram construir um transmissor maior em West Pittsburg, com o fito de estimular a venda de receptores domésticos de sua própria fabricação e a venda de peças com as quais amadores montavam seus próprios conjuntos. Foi desta maneira que a Estação KDKA de Pittsburg veio a existir, em 1920. (CALABRE, 1999, p. 116)
As reações a essa nova tecnologia de comunicação foram inúmeras,
situando-se entre o espanto e o encantamento. O contato com o rádio, e as
impressões que o meio impôs à reflexão no momento em que surge, estão refletidos
na redação de “Teoria de la radio (1927-1932)”, texto em que Bertold Brecht (1973)
discute o papel social deste meio de comunicação. Preocupado com as
circunstâncias de uso do rádio, o autor simultaneamente antecipa uma discussão
hoje premente sobre a democratização da comunicação e denuncia um tipo de uso
que cristaliza as posições de receptor e emissor, além de discutir também as
implicações desta cristalização em uma sociedade de classes. O que se fala e quem
fala interessam particularmente a Brecht. Posições ideológicas, de classe e o próprio
processo de comunicação são por ele discutidos:
Deseo vivamente que esta burguesia, además de haber inventado la radio, invente otra cosa: un invento que haga posible establecer de una vez por todas lo que se puede transmitir por la radio. Generaciones posteriores tenderían entonces la oportunidad de ver asombradas cómo una casta, a la vez que haciendo posible también que el globo terráqueo viera que no tenía nada que decir (BRECHT, 1973, p. 82).
Em outra frente, Mcluhan (1969) faz uma leitura positiva dos meios de
comunicação contemporâneos, reconhecendo-os como extensões do homem e de
seus sentidos. Como expansão de nossa audição o rádio condensa várias
possibilidades, rompendo os limites impostos pelos contatos face-a-face. Todavia,
Mcluham reconhece que estas potencialidades, que envolvem os aspectos da
sonoridade sobre a psique humana, podem ser usadas para fins políticos totalitários
ou para a realização de possibilidades democratizantes e pluralistas. A ressonância
própria do rádio pode oferecer diferentes apropriações. A este respeito afirma:
53
Este é o aspecto mais imediato do rádio. Uma experiência particular. As profundidades subliminares do rádio estão carregadas daqueles ecos ressonantes das trombetas tribais e dos tambores antigos. Isto é inerente à própria natureza deste meio, com o poder de transformar a psique e a sociedade numa câmara de eco. A dimensão ressonadora do rádio tem passado despercebida aos roteiristas e redatores, com poucas exceções. A famosa emissão de Orson Wells sobre a invasão marciana não passou de uma pequena mostra do escopo todo-inclusivo e todo envolvente da imagem auditiva do rádio. Foi Hitler quem deu ao rádio o real tratamento wellesiano (MCLUHAN, 1969, p. 337).
Embora perceba com otimismo a relação das novas tecnologias de
comunicação com os sentidos do homem, Mcluhan não deixa de atentar para o uso
social que se faz dessa tecnologia; a referência a Hitler confirma sua atenção aos
usos sociais. A crítica à utilização dos meios não se confunde com uma crítica à
tecnologia e a uma inerente vocação dos meios à destruição e perturbação social.
Por isso ele considera que qualquer veículo de comunicação para se tornar portador
de qualidades positivas, como a pluralidade, a regionalização da programação30,
depende da gestão social de seus recursos.
As preocupações de Brecht e Mcluhan tinham razão de ser. A partir da
década de 1930 o rádio é incorporado como um dos instrumentos de propaganda
política em diferentes regimes. O nazismo e o fascismo fizeram uso massivo do
rádio (LENHARO, 1990), e esta não foi a única experiência. Na América Latina este
modelo de uso inspirou outros regimes autoritários, como o varguismo e o peronismo
(CAPELATO, 1998), ainda que, como defende Barbero (2001), tenha oferecido para
alguns ouvintes a primeira experiência do que era a nação.
No Brasil a história do rádio começa em 1922, ainda muito tímida e regulada
por uma burocracia que distribuía “autorizações” para a propriedade dos aparelhos
mediante o pagamento de uma taxa. O rádio irá ao longo do tempo marcar a vida
nacional e das comunicações no país. Ortiz (1995, p 39) afirma que: 30 A respeito destas características, afirma: “Como a TV aceitou o encargo da cadeia central derivado de nossa organização industrial centralizada, o rádio passou a ter liberdades de diversificação, prestando serviços locais e regionais que antes não conhecera, mesmo nos primeiros tempos dos amadores de rádio-galena” (MACLUHAN, 1969, p. 344).
54
Até 1935 ele se organizava basicamente em termos não-comerciais, as emissoras se constituindo em sociedades e clubes cujas programações eram sobretudo de cunho erudito e lítero musical. (...) A década de 20 é ainda uma fase de experimentação do novo veículo e a radiodifusão se encontra muito mais amparada no talento e na personalidade de alguns indivíduos do que numa organização de tipo empresarial.
A passagem dos anos 1920 para 1930 ofereceu a primeira variação
tecnológica significativa no rádio. Ainda naquela década31 os rádios eram de galena,
tecnologia que implicava um custo mais alto de produção e restringia a escuta ao
uso de fones de ouvido, limitando-a a uma ou duas pessoas. Naquele momento
existiam apenas 19 emissoras no país (TAVARES, 1999). A partir da década de
1930 os rádios passam a usar em substituição a galena a tecnologia da válvula, o
que barateia os custos e alarga o espectro de ouvintes, já que um número muito
maior de ouvintes poderia partilhar a escuta a partir de um único aparelho. Neste
novo momento ocorre simultaneamente a expansão do número de aparelhos e de
emissoras de rádio e a mudança na legislação que o rege. Nos primeiros momentos
do rádio no Brasil não havia permissão para a veiculação de publicidade.
A abertura para inclusão de publicidade orienta o rádio para uma perspectiva
mais comercial (ORTIZ, 1995). Os clubes de radiouvintes e a organização em um
molde não lucrativo são substituídos pela organização comercial. Ainda assim, há
um forte controle do Estado e uma disputa em torno de projetos distintos. De um
lado a defesa do rádio como meio educativo, de outro a defesa do rádio como
veículo de entretenimento (CAPELATO, 1998). O ambiente político e econômico que
constitui essa disputa de modelos são os anos 1930.
Nesse período o Brasil testemunha a “Revolução de 30” e o inicio do “Estado
Novo” (1937-1945). A emergência das massas no cenário político e a necessidade
de consolidar uma situação de adesão popular que abrandasse o conflito e a tensão
advindos da forma de chegada de Getúlio Vargas ao poder e, ainda, a arquitetura de
31 Movimento análogo ocorre nos anos 1970 com a introdução do radio em freqüência modulada, FM, variação técnica que irá popularizar a montagem de estações de rádio, já que mais barata que a tecnologia empregada em amplitude modulada, AM. Sobre isto afirma Tavares (1999 p. 281): “A partir de 1970 as emissoras de FM passaram a predominar nos meios radiofônicos do país; foi uma verdadeira revolução. Nova programação, nova linguagem e nova maneira de fazer rádio”.
55
um projeto político de integração nacional, transformaram o rádio em um aliado
importante dos interesses do Estado Novo.
O regime, cujo viés autoritário e ditatorial se inspira no uso que fizeram dos
meios de comunicação o nazismo e o fascismo, tomará o rádio como veículo de
propaganda política. A “Hora do Brasil”, programa radiofônico de transmissão
obrigatória em cadeia nacional e até hoje levado ao ar, data deste momento político.
A esse respeito, afirma Capelato (1998, p.77):
O uso político do rádio esteve voltado para a reprodução de discursos, mensagens e notícias oficiais. Em 1931 foi criado o programa “A Hora do Brasil”, reestruturado em 1939, após a criação do DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda]. O programa tinha três finalidades: informativa, cultural e cívica. Divulgava os discursos oficiais, os atos de governo, procurava estimular o gosto pelas artes populares e exaltava o patriotismo, rememorando os efeitos gloriosos do passado. Ele era reproduzido, também, por alto-falantes instalados nas praças das cidades do interior.
Embora incluído no rol das estratégias de propaganda de um regime não
democrático, não era consensual a orientação que a programação radiofônica
deveria tomar. Capelato (1998, p. 79) afirma que “houve forte polêmica, nos anos 30,
entre a perspectiva político-cultural e a perspectiva empresarial voltada para o
consumo. Os ideólogos nacionalistas, artífices do Estado Novo, defendiam o projeto
de radiodifusão educativa com vistas à formação da consciência nacional
considerada indispensável à integração da nacionalidade”32.
A discussão em torno do caráter do rádio brasileiro envolvia não apenas o
governo mas também os intelectuais. Como afirma Calabre (2002, p. 23): “à medida
que o rádio ia se popularizando, passava a sofrer fortes críticas de uma parte da
intelectualidade, que insistia em mantê-lo como um veículo com fins educativos e
divulgador da produção cultural erudita”.
Durante todo o Estado Novo o controle dos meios de comunicação se
mantém. Com o rádio, o principal veículo de massa da época, não será diferente.
32 A Argentina de Perón também fez uso extensivo do rádio. Mantendo a liberdade de expressão como preceito constitucional, o que Vargas não fez, monta uma estrutura paralela de comunicação, capaz de saturar os ouvintes com a propaganda de governo (CAPELATO, 1998).
56
Ainda que pouco a pouco o caráter comercial se imponha e com ele a necessidade
de maior liberdade (ORTIZ, 1995) se afirme. Segundo Capelato (1998, p. 76):
O rádio firmou-se nessa década, adquirindo grande prestígio entre os ouvintes graças a programas humorísticos, musicais, transmissões esportivas, radiojornalismo e às primeiras radionovelas. Em 1937 havia 63 estações e em 1945, 111. O número de rádio-receptores aumentou, durante o Estado Novo, de 357.921 aparelhos para 659.762 em 1942.
Embora o crescimento fosse considerável, sua distribuição pelo território
nacional era bastante irregular, concentrando-se essencialmente no sudeste do país
e sobretudo no Rio de Janeiro, então distrito federal. Tomando como base os dados
do censo de 1940, Calabre (2002) percebe que apenas 5,74% das residências do
país possuíam rádio, enquanto que então na capital nacional esse número era de
46,23% dos domicílios.
Mesmo considerando esse desequilíbrio, entre as décadas de 1940 e 1950 o
rádio vive seu momento de glória. Os investimentos publicitários em um país com
grande índice de analfabetos se concentram principalmente no rádio e as produções
dos programas têm fortes vínculos com o mercado. Vários programas recebem o
nome de seus anunciantes, como “Repórter Esso” e “Rádio Almanaque Kolinos”,
entre outros. Como observa Calabre (2002), “o rádio foi um excelente veículo de
divulgação de novos hábitos de consumo, sendo o preferido das multinacionais para
o lançamento de novas marcas e produtos”.
Criada em 1936 a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, cujo nome expressa
bem o ideal de integração da nação que o rádio encarna em seus primeiros trinta
anos de existência, chega aos anos 50 como a grande emissora do país (CALABRE,
2002; TAVARES, 1999). A rádio era parte de um conglomerado de empresas
jornalísticas33 e já nasceu com o propósito de ser a maior emissora do país. Os
fatores de seu sucesso associam-se a um propicio cenário onde:
33 O grupo era formado pelo jornal “A noite” e pelas revistas “Carioca”, “A Noite Ilustrada”, “Vamos Ver” e pela “Editora S.A Rio”, todos pertencentes ao norte-americano Percival Farquha (CALABRE, 1999).
57
A legislação fornecia[através da regularização da publicidade] maior estabilidade ao setor; no campo profissional começava a surgir um grupo de artistas formado pelo rádio, que iniciaram suas carreiras diretamente nesse veículo; na parte técnica, os aperfeiçoamentos eram constantes (...) (CALABRE, 2002, p. 32).
Trabalhando com quatro núcleos para a programação: de música,
dramaturgia, jornalismo e de programas de variedades a emissora ganha a liderança
da audiência nacional, destacando-se, principalmente a partir de 1941, através das
radionovelas. As novelas radiofônicas foram um dos primeiros produtos culturais
realizados pelo rádio a ter circulação nacional. Produzidas pela Rádio Nacional,
eram copiadas e vendidas para irradiação em emissoras de todo o país, o que
barateava bastante os custos de sua produção (CALABRE, 2002). Depois dos anos
1950, com o advento e a popularização da televisão, o rádio é obrigado a reformular
sua programação, em virtude da divisão, com o novo veículo, das verbas
publicitárias. Além disto, a partir de 1964 “o governo militar investiu na integração
televisiva do país e as rádios foram adotando o modelo das rádios locais, com
notícias e prestação de serviços, músicas gravadas e esportes” (CALABRE, 2002, p.
50).
O rádio perdeu seu “glamour” mas continuou sendo o meio de comunicação
mais presente nos lares brasileiros. A relação com os interesses oficiais e a
presença do controle estatal será mantida.
2.1 Rádio e movimentos populares
Se até o inicio dos anos 1930 a programação radiofônica baseava-se em
música, óperas e textos instrutivos (TAVARES, 1999, p. 55) a partir de 1931, com a
autorização de veiculação de publicidade pelo rádio, ou seja, em seu formato
comercial, o rádio constrói uma programação variada em que aparecem diferentes
tipos de programas: de auditório, musicais variados e radionovelas34 (ORTIZ, 1995,
p. 40).
34 Isto a partir de 1941.
58
O aspecto de instrução começa a ceder espaço para o entretenimento. No
entanto, a partir da década de 40 o rádio ganha outros usos e outros objetivos que
não apenas a distração. Novos atores sociais também aparecem e reivindicam o
direito às ondas do ar. Entra em cena a idéia de unir mobilização e articulação social
com comunicação. Ao ser proposta esta articulação as posições receptor-emissor
são colocadas em questão.
O tipo de tecnologia empregada no rádio o tornou um veículo ‘por
excelência’ para o trabalho com grupos proletarizados. Isto se relaciona a fácil
operação e um processo de construção relativamente simples se comparado a
outras tecnologias de comunicação como a televisão ou o cinema. Além de ser
barato, a não exigência de letramento para a decodificação de suas mensagens o
torna um veículo popular. Aspectos emocionais da escuta e a possibilidade de
mobilidade que ao longo do tempo se alarga e permite que a audição e a realização
de tarefas de trabalho ocorram simultaneamente aproximam este veículo das
classes populares (COGO, 1998, p. 55).
Na América Latina algumas experiências celebram este novo uso. Em 1947
na Colômbia a Igreja Católica e um grupo de camponeses fundam, através da Ação
Cultural Popular (ACPO) a Rádio Sutaneza. Segundo Cogo (1998), o objetivo da
Rádio era o “desenvolvimento rural”, o que incluia um amplo projeto de alfabetização
à distância. A Sutaneza aparece como uma das primeiras experiências deste tipo e
será também a inspiradora de outras iniciativas semelhantes. Afirma Cogo (1998,
p.60) que:
O êxito do modelo da Ação Cultural Popular (ACPO) – Rádio Sutaneza – acaba inspirando todo o conceito de rádio educativa e de escola radiofônica na América Latina e em outros continentes. Somente na América do Sul, 24 programas de radiodifusão são implantados com base no modelo da Sutaneza.
As rádios sindicais são outra vertente de uso do rádio com objetivos de
mobilização social. Na Bolívia, simultaneamente à experiência colombiana da
Sutaneza se organizam rádios sindicais. Segundo Cogo (1998, p. 63), “os dados
sugerem, (...) que já em 1946, dois anos após a criação da Federação Sindical de
Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTM), os mineiros decidem investir na
59
montagem de sua própria emissora”. Segundo Oliveira (2002, p. 44), em 1947 é
criada a Rádio Sucre:
Esta experiência foi considerada um prenúncio do Movimento Revolucionário de 1952. Este movimento levou ao poder o Movimento Nacionalista Revolucionário e com ele houve o ressurgimento e uma atuação mais livre para as rádios mineiras. A rede de rádios mineiras chegou a quase trinta emissoras entre 1957-1964.
Há nestas duas experiências pioneiras a indicação de duas vertentes que se
desenvolveram na América Latina (COGO, 1998). De um lado rádios ligadas a
movimentos sociais organizados pela Igreja Católica, que misturavam ideais de
organização política e transformação social com evangelização. De outro, rádios
mais laicas ligadas a organizações trabalhistas, como os sindicatos, cujo conteúdo
da programação é político-informativo.
Na década de 1960, no Brasil, Paulo Freire revolucionou a educação através
de um novo método de alfabetização. A idéia de um ensino voltado não apenas para
o letramento burocratizado, mas direcionado para a libertação era algo que não
havia sido experimentado, principalmente pelas classes populares. O teor de
esperança e de mobilização que esta proposta continha veio ao encontro dos
anseios dos movimentos sociais. Alfabetizar passou a significar não apenas a
decodificação de palavras, mas a possibilidade de leitura e de compreensão do
mundo; e lendo-se o mundo, tornava possível transformá-lo. Assim, de acordo com a
história de mobilização que o rádio na América Latina já contava, isto foi posto em
prática em projetos de educação.
O MEB, Movimento de Educação de Base, criado em Natal, no Rio Grande
do Norte, em 1961, foi uma ação da Igreja Católica de inspiração freiriana35. Era um
programa de alfabetização de adultos a partir de emissoras radiofônicas. Neste
programa a alfabetização é entendida como um projeto de leitura do mundo e ponto
de partida para organização e mobilização popular, a caminho da transformação, 35 O projeto MEB não representava homogeneamente a visão da Igreja Católica. A esse respeito afirma Cogo (1998, p. 36-37): “Ao lado do apostolado leigo, organizado pela Ação Católica, o MEB foi um dos projetos que mais provocou polêmica e sofreu contestação por parte da hierarquia católica da época. Justamente, segundo Ismar de Oliveira Soares, ‘pelo fato do MEB adotar com inspiração os postulados freirianos’”.
60
ainda que direcionado para uma proposta evangelizadora. Segundo Cogo (1998), ao
relacionar os universos da comunicação e da cultura, a educação tornou-se ponto de
partida para a explicitação do conceito de “comunicação popular”.
Embora se constituindo como uma experiência de radioeducação importante
e de proporções impressionantes, o MEB não é a primeira tentativa de utilização do
rádio para esses fins no Brasil. O caráter de instrução marca o rádio desde seus
primeiros momentos. A programação dos radioclubes, como vimos, tem essa marca.
Também as disputas dentro do Estado Novo por um projeto de comunicação que
desse ao rádio uma orientação mais voltada à educação são reflexos da tensão
histórica entre projetos de entretenimento e educação pensados para este veículo.
Já na década de 1950 Wanderley (1984) registra como antecedentes do MEB o
SIRENA, Sistema de Radiodifusão Nacional, um programa de radioeducação estatal
e o SAR, Sistema de Assistência Rural, uma iniciativa da Diocese de Natal, inspirada
na experiência da rádio colombiana Sutaneza.
O MEB contava com 1410 escolas radiofônicas da Arquidiocese de Natal. A
rede que o formava era o resultado, segundo Della Cava e Monteiro (1991) de
interesses convergentes da Igreja e do Estado. Do lado da Igreja a “campanha
contra a ‘proliferação de seitas, que já estava nas páginas dos jornais e das revistas
católicas desde o final dos anos 1940, precisava alcançar agora um meio técnico
mais eficiente, sobretudo levando-se em conta que os católicos mais propensos à
‘conversão herética’ eram os que não sabiam ler” (p. 224).
Como vimos, já a partir da década de 1940 se anuncia uma relação entre os
movimentos sociais e a comunicação radiofônica que se estreitará nas décadas de
1970 e 1980. A Igreja Católica, principalmente através da Teologia da Libertação e
das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) passa a trabalhar a idéia da construção
de canais próprios para o exercício da comunicação popular: jornais, emissoras de
rádios e outros veículos fazem parte deste projeto (COGO, 1998; DELLA CAVA;
MONTEIRO, 1991).
É interessante notar o contexto em que a busca por novos canais de
comunicação se fortalece. Iniciativas como a do MEB não são exclusividade apenas
da Igreja Católica em um esforço de evangelização, mas parte de uma tendência
61
que se verifica em diferentes movimentos sociais e populares. Há uma extensa
bibliografia que discute, desde Brecht (1973), os aspectos da comunicação popular e
seu papel de insurgência política dentro dos mecanismos da indústria cultural, sendo
importantes, neste sentido, os trabalhos de Festa e Lins da Silva (1986), Melo,
(1979) e Melo (1980). A década de 1960, após a instalação da ditadura militar no
Brasil, exige estratégias que burlem o cerco às restrições impostas pela censura.
Como se sabe, em períodos de ditadura toda comunicação que se opõe ao regime é
rechaçada, tornando-se por isso clandestina ou sendo eliminada. Assim, além da
crítica à indústria cultural, a comunicação popular tenta romper os cercos impostos
por um regime ditatorial.
No período que vai dos anos 1970 aos anos 1980 é possível enxergar uma
sutil mudança na orientação da perspectiva educacional-organizativa. Segundo
Doimo (1995, p. 130),
Antes invariavelmente associada à experiência de alfabetização de adultos, a educação popular passa, a partir de meados dos anos 70, a ser preferencialmente utilizada em seu sentido estritamente organizativo-conscientizador e a agregar novos valores ético-políticos como a “democracia de base” e a “autonomia”, dentro da metáfora do ‘povo como sujeito de sua própria história’.
Este processo que percebo como sendo de autonomização, ainda que neste estágio
embrionário, será tratado a seguir.
2.2 A inspiração das rádios livres européias
Simultaneamente ao uso como instrumento educativo e de organização
pelos movimentos sociais na América Latina, o rádio é alvo de disputas e
contestação na Europa, a partir de 1950. As influências desse movimento se farão
sentir no Brasil dos anos 1980. O movimento se opõe, principalmente, ao monopólio
do rádio pelo Estado. Em diversos países, como França, Inglaterra e Itália se
verificam iniciativas de desmonopolização. Algumas destas iniciativas contestatórias
serão apropriadas por grupos cujo objetivo é abrir espaço para a radiodifusão
62
comercial. O movimento se organiza em torno da idéia de liberdade no rádio e as
“rádios livres” passam a requerer o direito à palavra.
Essa idéia parece se tornar dominante no período que se inicia em meados
dos anos 1970, perdurando nos anos 1980. Ainda que a literatura registre a
existência de rádios não autorizadas desde a década de 1920 na Austrália, nos
Estados Unidos e no Brasil já em 1931 (MELIANI, 1995), a defesa do direito de fazer
rádio só se expressa com mais força e de forma orgânica nesse período.
A condição de clandestinidade, experimentada por aqueles que fizeram uso
do rádio sem os auspícios do controle estatal, passa a ser questionada.
Diferentemente do que se processa nos anos 1940, 1950, e 1960, a partir de 1970 o
que se deseja é a própria possibilidade de existir sem o controle repressivo do
Estado. E esta passa a ser a grande bandeira desse movimento.
Desde os anos 1950 esse movimento esboça suas primeiras ações. O termo
“rádio pirata”, muito usado hoje no Brasil para classificar rádios não autorizadas,
aparece junto com um movimento de contestação do monopólio estatal no rádio na
Inglaterra. Já é famosa a história dos barcos que transmitiam do oceano emissões
radiofônicas, burlando o controle do Estado e registrando audiência. A associação
entre os barcos e a idéia de “contrabando de emissões radiofônica” criou a imagem
e o termo “rádio pirata”. Entretanto, o tipo de programação e o patrocínio para tais
iniciativas indicavam interesses comerciais. Segundo Oliveira (2002, p.75) “até o
surgimento das rádios piratas inglesas, a utilização ilegal do rádio representa uma
bandeira política, mas na Inglaterra essa utilização ganhou um caráter comercial”.
Sob inspiração do movimento italiano de rádios livres, em 1969 a França
registra sua primeira rádio livre, a Rádio Campus. Assim como na Itália o que se
tenta é a quebra do monopólio estatal e sua crítica. Guatarri, em uma entrevista
reproduzida no livro “Micropolítica: Cartografias do Desejo” (GUATARRI, 1999, p. 105),
fala sobre o movimento francês:
No início era apenas uma minoria: o pessoal das rádios livres era um bando de loucos, um pouco de D. Quixote atacando o grande monopólio. Era espantoso. (...) Rapidamente o fenômeno ganhou uma força incrível, produzindo um impacto sobre a grande mídia, como se esse ato de ilegalidade tivesse criado uma rachadura no
63
edifício do monopólio. Parece que, de repente, se implantou uma dúvida sobre a legitimidade desse monopólio.
Em 1978 as rádios livres francesas registram o auge de seu movimento, com
uma explosão no número de emissoras. Diversos grupos culturais e políticos dão
consistência ao movimento. Segundo Guatarri (1999, p. 106), que levou ao ar
durante algum tempo a Rádio Tomate,
Houve então um fenômeno de “bola de neve”: quanto mais se reprimia as rádios livres, mais elas se desenvolviam. Enquanto os sindicatos operários eram inteiramente fiéis ao princípio do monopólio, os grupos de sessões sindicais começaram a se utilizar das rádios livres, o que provocou desequilíbrios e gerou uma série de conflitos dentro dos sindicatos. Os partidos de oposição ficaram solidários às rádios livres, dizendo: “nós somos favoráveis ao monopólio, mas não queremos repressão às rádios livres”. Então, nós pedíamos que viessem dizer isso nas nossas rádios livres. Eles vinham, a polícia vinha atrás e os processava.
Na Itália em 1975 se registra uma crise do monopólio estatal nas
comunicações e em especial no rádio. Essa crise origina dois grupos interessados
na quebra do monopólio estatal: emissoras de perfil comercial e rádios ligadas a
movimentos contestatórios, políticos e culturais. Algumas emissoras que se tornam
referência para o movimento de rádios livres nascem lá, como a Bolonha, de 1975 e
a Alice, de 1976. Nesse mesmo ano o movimento registra sua primeira vitória, com a
liberação das ondas de freqüência modulada para as emissoras livres: em 1978
chegam a ser registradas no país 2.275 unidades (PERUZZO, 1998). Ainda em 1978
ocorre a primeira Reunião Internacional das Rádios Livres, quando se forja o
Movimento Onda Livre.
O controle estatal e a clandestinidade estão irremediavelmente ligados nesta
trajetória. Não apenas porque a segunda é fruto do primeiro, mas principalmente por
um conjunto de interesses divergentes que produz tanto uma quanto outra. As
concessões no Brasil se constituíram historicamente como mecanismos de barganha
política e de controle da opinião pública (BAYMA, 2001). Além disto, serviram a
diferentes interesses econômicos. Paralelo a isto há uma trajetória de organização
social que “descobre” a comunicação e, nesta o rádio, como caminho para a
expressão de suas demandas e insatisfações. Entretanto este processo não ocorre
64
de modo homogêneo. A análise da literatura sobre o rádio não autorizado no Brasil
revela que dois caminhos cresceram paralelamente, embora nem sempre
articulados, e algumas vezes ignorando-se mutuamente. Esse processo também
registra, por parte destes grupos, a construção de uma outra sensibilidade política
(OLIVEIRA, 2002). Assim, a trajetória das rádios não autorizadas erige uma pauta de
interesses e demandas, que ao longo do tempo incorpora questões culturais à pauta
política (OLIVEIRA, 2002).
Praticada desde a década de 1940 a comunicação radiofônica não
comercial, com fins educativos ou fins político organizativos viveu, ao longo desse
processo, diferentes fases. Olhada em retrospecto, percebe-se que este tipo de
comunicação seguiu um caminho de autonomização. Nesse sentido, durante a
década de 1980, no Brasil, as diferentes experiências, abrigadas sob denominações
também diversas começam a se tornar mais orgânicas. Fóruns, coletivos,
associações, ong’s, passam a tomar essa orientação de autonomização. Com
denominações diferentes as rádios de baixa potência se organizam e a partir dos
anos 90 os dois caminhos se tornam convergentes.
2.3 A gênese das rádios comunitárias
Em um livro de 2001, intitulado “Trilha apaixonada e bem-humorada do que
é e de como fazer rádios comunitárias na intenção de mudar o mundo”, Dioclécio
Luz (LUZ, 2001), um defensor do movimento de rádios comunitárias, tem como
objetivo esclarecer seus leitores sobre o que é uma emissora comunitária e assim
fazendo instruí-los sobre como colocá-la no ar, preservando uma série de
características e princípios. Logo na introdução, cujo primeiro tópico é denominado
“a diferença”, ele afirma o seguinte: “a gente é diferente delas. Elas? Sim, as rádios
comunitárias são completamente diferentes das comerciais. Elas, as comerciais, até
se parecem conosco. Mas elas são elas e nós somos nós”.
Mas o que marca essa diferença e como e quando essa demarcação nasce?
A literatura que constrói uma arqueologia das rádios comunitárias e de seu
movimento não é consensual quanto às datas, eventos e atores sociais do
movimento que a gesta, bem como aos diferentes sentidos do que seja uma
65
emissora comunitária. Não há assim um registro preciso sobre o nascimento das
rádios de baixa potência não autorizadas, que têm diferentes denominações: rádios
livres, rádios populares, e mais recentemente rádios comunitárias. Vários trabalhos
registram iniciativas pioneiras que remontam ainda ao início do século passado. Mas
podemos trabalhar com pelo menos duas matrizes, de certa forma já expostas até
aqui. De um lado estão as rádios populares, de outro as rádios livres. Há aqui uma
trajetória de convergência de dois movimentos que se encontram num determinado
momento e sedimentam o terreno que, logo em seguida, será palco de disputas.
2.3.1 As “radiadoras”
Acordar com o som grave, trêmulo e chiado da “radiadora” da cidade.
Comuns em muitas cidades pequenas36 elas foram as precursoras das estações de
rádio que só chegaram ao interior depois da popularização dos transmissores em
freqüência modulada. A “Radiadora do Moreira”, como muitas outras por todo o país,
marcou a vida dos habitantes de Itapajé, uma das cidades do interior do Ceará.
Ficou no ar dos anos 1950 até a morte de seu criador, “o Moreira”, na década de
199037. Anunciava “enterro, missa e tudo em fim”. Os avisos de morte, os pedidos
de ajuda, os avisos de festa, grande parte dos eventos que envolviam a vida da
cidade passavam pelas “radiadoras”. Oferecendo uma série de serviços de utilidade
pública aos seus ouvintes e irradiando as informações através de um sistema de
alto-falantes, geralmente instalados no centro das cidades, as irradiadoras cobriam
uma lacuna de informações que, de outra forma, só seria preenchida pelos contatos
face-a-face.
Ainda que a grande maioria dessas emissoras não fosse usada para fins
políticos, a partir de determinado momento seu formato é apropriado para um uso
politizado da comunicação.
36 Cidades como Canindé e Quixeramobim, entre outras, também tiveram radiadoras. Já nos anos 1990 o Diário do Nordeste (27/06/90) publica a matéria “Seu Adolfo faz meio século de atividade com os alto-falantes”, sobre os cinqüenta anos da radiadora de Quixadá. 37 Conheci esta experiência como moradora da cidade durante parte de minha infância e adolescência nos anos 1980.
66
Em várias cidades do país essa tecnologia de comunicação, que remonta à
vida e à memória dos habitantes das pequenas cidades é reinventada nas periferias
das metrópoles. Seus ouvintes são os mesmos: migrantes que trocaram as cidades
pequenas pelas grandes. Em Fortaleza um projeto coordenado por Márcia Vidal,
professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará para
a montagem de rádios populares se pautou nessa memória e nessas experiências38.
No entanto, desde a década de 1940, como vimos, na América Latina o
rádio ganha outra destinação que não a comercial. Ao longo de sua trajetória os
movimentos sociais utilizam-se dos meios de comunicação para fins pedagógicos e
organizativos. Não só em Fortaleza, mas em Recife, São Paulo e em outras capitais,
os anos 1980 são um marco de organização e capacitação de comunidades para a
produção de sua própria comunicação (COGO, 1998). A partir daí os ouvintes
passam a ter a possibilidade de ouvir suas próprias vozes e produzir seus próprios
programas.
Os grupos organizados, associações de moradores, sindicatos, movimentos
de reivindicação são os principais mantenedores destas emissoras. Os objetivos
mesclam organização política e prestação de serviços. Mas, paralelamente a esse
processo, o “dial” começa ser um espaço disputado por outros atores sociais.
2.3.2 Rádios livres no Brasil
Consideradas por alguns autores39 como as antecessoras das rádios
comunitárias no Brasil, as “rádios livres” viveram seu apogeu nos anos 1980. Antes
disso, já na década de 1970, registram-se experiências importantes como a da
Rádio Paranóica de Vitória, no Espírito Santo.
Sorocaba, cidade do interior de São Paulo assiste, a partir de 1982 a um
surto de rádios de pequena potência. As chamadas “rádios livres” ocupam o “dial”. A
maioria delas era levada à frente por garotos que se interessavam por eletrônica, o
que permitia o domínio da tecnologia, e por música, tudo isso temperado com uma
38 Para um panorama mais completo desse movimento ver Oliveira (2002), Matos (2000) e Cogo (1998). 39 Meliani (2000), Peruzzo (1999), Oliveira, (2002).
67
dose de rebeldia. Segundo Meliani (2003) a espontaneidade na criação das
emissoras e o prazer de levar adiante as experiências são os principais ingredientes
destas emissoras.
Aparentemente, não há ainda uma organicidade que marque o nascimento
dessas primeiras emissões. Não há bandeiras políticas ou culturais. Como afirma
Meliani (2003, p. 05):
(...) Os contornos dessa intervenção coletiva foram de desobediência civil declarada, e o apartidarismo em que se manifestaram as aproximam de uma forma pura de luta pela democracia. O fato de dar voz às figuras do técnico em eletrônica e do amante da música faz das rádios sorocabanas a mais positiva expressão do prazer em fazer rádio.
Há um experimentalismo da tecnologia e o desejo de diversão. Muitos dos
que levaram adiante as primeiras transmissões não tinham clareza do que
significava colocá-las no ar. Em plena ditadura militar furavam as transmissões de
outras emissoras no horário da “Voz do Brasil”. No entanto, a grande quantidade de
emissoras, a repressão sofrida e o cerceamento da liberdade de expressão
vivenciado no período, ainda sob o domínio da censura, esboçam os primeiros
movimentos de organização das rádios, como o Conselho das Rádios Clandestinas
de Sorocaba, que durou apenas um mês. Num balanço do movimento de Sorocaba,
Meliani (2002, p.) afirma:
As rádios de Sorocaba não resultaram de projetos culturais ou de movimentos sociais, além de não terem resolvido questões como a sustentação financeira. Os conteúdos das programações eram apartidários, com muita música alternativa e a forma como essas rádios proliferaram, exercendo a livre expressão, sem pirataria e de forma autogestionária, as colocam como pioneiras no movimento brasileiro.
Mas o movimento de rádios livres não se restringiu a Sorocaba. Meliani
constrói uma periodização que envolve três momentos importantes. O “verão de 82”
em Sorocaba, quando ocorre a “febre local”, o “’boom’ de 1985 detonado pela rádio
Xilik, da PUC-SP, quando o ideário europeu toma canta da imprensa escrita; e o
terceiro e atual momento, estimulado pelas lutas em torno da redemocratização das
68
comunicações e pela apreensão em 1991 da Rádio Reversão, uma das primeiras
rádios livres regulares no Brasil”. (MELIANI, 2003, p. 3).
Quando o termo “rádio comunitária” passa a ser usado, principalmente a
partir da década de 1990, ele representa um novo momento de organização das
rádios de baixa potência não autorizadas. Há uma convergência de interesses
dentro desse espaço que se autonomizou e que indica uma nova orientação da
concepção alternativa frente ao modelo comercial, ainda que essa orientação não
seja consensual dentro do recente movimento criado. A bandeira é a da
democratização. Essa bandeira traz consigo alguns pressupostos: O de que Brasil
não é um país democrático, em relação aos meios de comunicação de massa. E o
fato de que não há, até meados desta década, uma legislação específica sobre
rádios de baixa potência. Como afirma Dioclécio Luz, um militante do movimento de
radiocom:
A luta pelas rádios livres e comunitárias faz parte do processo de democratização dos meios de comunicação. A gente quer que todos tenham acesso a um bem público que é o espaço eletromagnético. (...) A democratização dos meios de comunicação passa por aí, por este questionamento, por essa reflexão pelo uso destes espaços (LUZ, 2001, p. 23).
Cada vez mais, a partir desse período, as rádios populares e as rádios livres
passam a ser denominadas de rádios comunitárias. As diferenças entre ambas são
incluídas e, de certa forma dirimidas, nesta nova denominação. A nova nomeação se
liga a todo um processo de organização das emissoras de baixa potência que
objetiva o reconhecimento legal destas emissoras40.
Assim, a partir da inspiração européia das rádios livres as emissoras
brasileiras passam a questionar o controle do Estado e a discutir a própria relação
entre democracia e comunicação no Brasil. Essa discussão segue um longo
caminho de organização do movimento nacional de rádios de baixa potência. Em
1986 no Rio de Janeiro, um evento festivo tenta reunir as rádios livres. Nele ocorre a 40 Exemplo dessa articulação entre a denominação e a organização do movimento está expressa em alguns trabalhos acadêmicos. É o caso do trabalho de Cogo (1994, 17), onde a autora afirma sua escolha do termo: “Optou-se por enfatizar o termo comunitário, uma vez que, além de utilizado comumente na maioria dos países latino-americanos, é em torno dele que se movimenta hoje toda a luta pela regulamentação das chamadas rádios comunitárias”.
69
criação de duas entidades: Associação Brasileira de Ondas Livres no Ar (ABOLA) e
a Cooperativa de Rádios Livres no Brasil (Cora Libre).
Três anos depois, em 1989, a diretoria da União Nacional dos Estudantes
(UNE) organiza o 1o Encontro Nacional de Rádios Livres, com a participação de 10
representantes estaduais. Nesse encontro é aprovada a criação de um Coletivo
Nacional de Rádios Livres (CNRL). Em 1990 registra-se a realização do 2o Encontro
Nacional de Rádios Livres, com participação de outros países (El Salvador,
Argentina, Moçambique). Finalmente, em 1996, ocorre a criação da Associação
Nacional de Rádios Comunitárias (OLIVEIRA, 2003).
Dois anos depois da criação da ABRAÇO, uma lei de radiodifusão
comunitária é criada no Brasil. Abaixo os principais fatos desse período:
• 1995. Encontro de um grupo de radiocomunicadores comunitários
com o então Ministro das Comunicações Sérgio Mota
• 1995. Início da tramitação do primeiro projeto de Lei no Congresso
Nacional
• 1996. Criação da ABRAÇO
• 1997 I Congresso Nacional de Rádios Comunitárias, promovido pela
ABRAÇO
• 1998. Promulgação da Lei 9612/98
• 1998. Editada Norma complementar Nº 2, que complementa as
disposições estabelecidas pela Lei 9.612/98
Um militante do movimento de rádios comunitárias descreve o processo de
negociação política que culmina com a aprovação da Lei:
Que eu me lembre, tinham três propostas que nós consideramos fundamentais. Uma era do Arnaldo Faria de Sá, projeto 1512 que acabou capitaneando todos os outros. Outra era do Gabeira, que a pedido nosso apresentou. Proposta do nosso movimento que naquela época não era a ABRAÇO, era o “Fórum Pela Democratização”. E outra, exatamente essa do Franco Montoro, que
70
representava esse setor da radiocom. (...) Então esse pessoal do radiocom, de quem nos aproximamos acidentalmente, acabou compondo com a gente uma proposta de substitutivo que nós apresentamos ao Edson Queiroz. E o Edson Queiroz realmente acolheu muita coisa da proposta que nós apresentamos. E na discussão, depois, pra depurar a proposta e apresentar o substitutivo ele assumiu alguns compromissos conosco e cumpriu. Um deles era manter a publicidade na rádio comunitária. Ele admitia isso e pôs isso no relatório dele. O outro era a potência de 50 watts, que tá no primeiro relatório. O outro era questão de duas freqüências, ao invés de uma, como acabou ficando. Mas o relatório do Edson Queiroz não foi aceito pelo pessoal da ABERT, o pessoal da ABERT derrubou o relatório dele, (...) Botou uma freqüência, baixou a potência pra 25 watts, tirou publicidade e botou apoio cultural, que é um negócio que não tinha absolutamente nada a ver, porque é impossível você captar recursos de apoio cultural. Deformou complemente a lei. Agora, tinha um deputado carioca, chamado Aroldo de Oliveira, que foi o principal articulador da derrota da nossa proposta. (...) foi ele que propôs 1 km de área, ele só queria 10 watts, ao invés de 25, ele peitou esse negócio da publicidade, peitou duas freqüências, só poderia usar uma. Ele foi o principal articulador do setor inimigo das rádios comunitárias. (...).41
A prevalência dos interesses do “setor inimigo das rádios comunitárias”,
representado principalmente pela ABERT, impôs muitas restrições às emissoras.
Durante a negociação do projeto, após a mudança de relator, as rádios foram
perdendo espaço paulatinamente, como se vê no depoimento, para as sucessivas
imposições de mais e maiores limitações a seu funcionamento. Duas delas, o
impedimento de veiculação de publicidade e a potência/extensão do raio de ação
das radiocom fizeram da Lei, mais do que um mecanismo de reconhecimento de um
direito, uma ferramenta para dificultar o funcionamento das radiocom42.
Depois da criação da Lei as rádios ganham maior visibilidade na imprensa e
crescem rapidamente em número. Depois de um movimento de agregação de rádios
de baixa potência que visava unir forças para pressionar o Estado a reconhecer sua
presença, como descrito acima, se configura um novo momento. Nele toma cena um
movimento de legitimação, reconhecimento e diferenciação entre diferentes tipos de
rádios que reivindicam a denominação “comunitária”. A construção da auto-imagem
41 Entrevista concedida à autora durante a realização da pesquisa “Memória e Dádiva em uma Rádio Comunitária”, em 1998. 42 Para sobreviver muitas rádios veiculam publicidade sob a denominação de apoios culturais e para atingir comunidades maiores que 1kilômetro usam transmissores de potência maior que a estabelecida pela Lei.
71
das emissoras comunitárias e dos outros, representados por rádios comerciais e por
outras emissoras comunitárias ganha maior importância nesse período.
O embate em torno de concepções diversas e, em alguns momentos,
opostas do papel das rádios comunitárias começa a vir à tona durante o processo de
aprovação da Lei 9.612/98, já que antes dela havia apenas uma definição genérica
que tratava de “rádios de baixa potência”. A lei introduz um componente novo: a
seletividade.
Ao construir uma “reserva de mercado” apenas para as radiocom, excluindo
uma gama de rádios de baixa potência nem sempre identificadas com a norma
jurídica e o que ela define como radiocom, a lei cria pólos de convergência e de
divergência em torno do estabelecimento de critérios capazes de distinguir radiocom
de não radiocom. Há concordância em relação a alguns pontos da Lei de
Radiodifusão Comunitária e enormes divergências em torno de outros.
Em relação à questões como a definição do serviço de radiodifusão
comunitária, as funções e a programação de uma radiocom, e a competência para
levar a frente o serviço, a Lei 9.612/98 oferece uma clara prescrição:
De acordo com a Lei uma rádio comunitária é:
Artigo 1o. Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operando em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a Fundações e Associações Civis, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação de serviço.
As funções de uma rádio comunitária são:
Artigo 3o. O serviço de Radiodifusão Comunitária tem por finalidade o atendimento à comunidade beneficiada, com vistas à:
I. Dar a oportunidade à difusão de idéia, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade; II. Oferecer mecanismo à formação e integração da comunidade, estimulando o fazer, a cultura e o convívio social;
III. Prestar serviços de utilidade pública, integrando-se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário;
72
IV. Contribuir com o aperfeiçoamento profissional nas áreas de atuação de jornalistas e radialistas, de conformidade com a legislação profissional vigente; V. Permitir a capacitação de cidadãos no exercício do direito de expressão de forma mais acessível possível.
Em relação à programação, uma rádio comunitária deve:
Artigo 4o. As emissoras de Radiodifusão Comunitária atenderão em sua programação aos seguintes princípios: I. Preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas em beneficio do desenvolvimento geral da comunidade;
II. Promoção de atividades artísticas e jornalísticas na comunidade e da integração dos membros da comunidade atendida;
III. Respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, favorecendo a integração dos membros da comunidade atendida;
IV. Não discriminação der raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relações comunitárias. Parágrafo 1o. É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
Parágrafo 2o. As programações opinativas e informativas observarão os princípios de pluralidade de opinião e de versão simultâneas e matérias polêmicas, divulgando, sempre, as diferentes interpretações relativas aos fatos noticiados.
Parágrafo 3o. Qualquer cidadão da comunidade beneficiada terá direito de emitir opiniões sobre quaisquer assuntos abordados na programação da emissora, bem como manifestar idéias, propostas, sugestões, reclamações ou reivindicações, devendo apenas observar qual o momento adequado da programação para fazê-lo através de pedido encaminhado à direção responsável pela Rádio Comunitária.
É considerado competente para manter uma rádio comunitária:
Artigo 7o. São competentes para explorar o Serviço de Radiodifusão Comunitária as Fundações e Associações Civis, sem fins lucrativos, desde que legalmente instituídas e devidamente registradas sediadas nas áreas da comunidade para a qual pretende prestar o Serviço, cujos diferentes sejam brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos.
Artigo 8o A entidade autorizada a explorar o Serviço deverá instituir um Conselho Comunitário, composto por, no mínimo, cinco pessoas representantes de entidades da comunidade local, tais como associações de classe, beneméritas, religiosas ou de moradores, desde que legalmente instituídas, com o objetivo de acompanhar a programação da emissora, com vista ao atendimento do interesse
73
exclusivo da comunidade e dos princípios estabelecidos no art. 4o desta lei.
As rádios existentes tiveram de se acomodar aos termos da Lei 9.612/98
para poderem concorrer a uma concessão. A observação do campo e a leitura de
alguns trabalhos realizados sobre o tema43 indicam que a definição de rádio
comunitária considera dois critérios:
1) O legal, cujo parâmetro é a letra da Lei, sobre a qual diferentes associações
de radiocom têm concordâncias e discordâncias parciais.
2) O auto-reconhecimento é o segundo critério. Nesse território de disputa a
discussão sobre a legislação e o balanço de seus aspectos positivos e
negativos se reveste de arma de legitimação das posições. A legitimidade de
uma determinada rádio é buscada através de um movimento em que a
exaltação de suas características e a distinção destas e da própria emissora
ocorre por oposição a outras emissoras, consideradas, dentro dos critérios de
auto-reconhecimento, como “não comunitárias”.
A aprovação da Lei de Radiodifusão Comunitária ao mesmo tempo em que
reconhece a existência das radiocom legitima os mecanismos de repressão e
controle às emissoras que não possuem concessão, pois na medida em que existe
uma legislação específica são obrigadas a adaptarem-se a ela. Lopes (2005) sugere
que a criação da Lei e dos procedimentos de outorga funcionariam, na verdade,
como uma estratégia de contra-reforma, usada para barrar o crescimento das
radiocom no país.
Ao definir o que é uma emissora comunitária, quais funções uma radiocom
deve desempenhar, como deve ser sua programação e quem tem competência para
mantê-la a Lei delimita um espaço e as fronteiras desse espaço: o da radiofonia
comunitária. Entretanto, se estas são as condições de direito para a existência de
uma radiocom, o que ocorre de fato transborda essas fronteiras.
A partir de fronteiras delimitadas legalmente é que se instaura um duplo
movimento: de adesão e distensão ao texto da lei. Aspectos relacionados às funções
43 Ver Peruzzo (1998), Nunes (2000), Fuser (2002).
74
e ao tipo de programação de uma radiocom irão contar com o apoio do movimento
de radiodifusão comunitária; outros aspectos ligados à limitação da capacidade de
operação das emissoras serão duramente criticados por ele.
Em função disto, o conhecimento da letra da Lei vai desempenhar um papel
ambíguo na relação intra-rádios comunitárias. Ora irá funcionar como um elemento
de defesa do papel de uma radiocom, e nesse sentido, da própria Lei e da idéia de
legalidade. Ora o papel de controle do Estado sobre a radiodifusão é negado,
abrindo espaço para uma série de interpretações da necessidade de subversão da
legislação. Sob a fresta da negação da lei diferentes modelos de radiodifusão
comunitária ganham terreno.
Outra questão que surge a partir da legislação diz respeito à idéia de
comunidade. No texto da Lei 9612/98 a palavra comunidade aparece como uma
noção auto-explicativa. É citada quatorze vezes, mas em nenhum momento se
define seu significado; embora o parágrafo 2º do Artigo 1º, ao esclarecer o que é
cobertura restrita, afirme: “entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao
atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila”. Nessa acepção
a idéia de comunidade é definida como um dado geográfico, físico, ou seja, “o bairro
e/ou vila”.
Apesar das críticas à Lei, a busca de outorgas marca, a partir desse
momento, a relação das radiocom com o Estado.
2.3.3 O processo de concessão do serviço de radiodifusão comunitária
Em junho de 1999 a capa de um dos números do jornal “ABRAÇO no Ar”44,
da ABRAÇO anunciava: “Uma avalanche! 20.000 requerimentos no Minicon
[Ministério das Comunicações]”. A corrida pela outorga, afirmava o jornal, “extrapola
até a projeção feita pela ABRAÇO, de instalação de 20.000 emissoras nos próximos
10 anos”. Pouco tempo depois ficaria claro que a rapidez no encaminhamento dos
pedidos não teria a mesma velocidade de processamento por parte do Ministério das
Comunicações.
44 ABRAÇO no Ar, nº 12, junho de 1999.
75
A disputa pela concessão de um canal de radiodifusão comunitária é muita
acirrada e o processo de outorga bastante lento. Em função da morosidade e de um
conjunto de problema dela decorrentes foi criado em 2003, para assessorar a
“Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das
Comunicações”, o “Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária; para, em
caráter emergencial e extraordinário, realizar todos os atos necessários à instrução,
ao saneamento e ao desenvolvimento dos processos em andamento no âmbito do
ministério das comunicações, relativos aos pedidos de autorização para o serviço de
radiodifusão comunitária”45.
Quando da criação do grupo de trabalho cerca de sete mil processos - entre
pedidos em tramitação, que somavam até então 4.400 e pedidos protocolados -
aguardavam por análise. A extinção em 2002 das Delegacias do Ministério das
Comunicações nos estados, bem como a inexistência de procedimentos
transparentes para a análise dos processos também foram considerados pela
portaria que o criou.
A principal atribuição do grupo era a criação de critérios para a análise de
requerimentos, já que “até então inexistia um Manual de Procedimentos
sistematizado para orientar o processamento dos pedidos de autorização, em
flagrante inobservância do Regimento Interno do Ministério das Comunicações”46,
dando assim maior celeridade e transparência ao processo.
O relatório final do grupo cria o manual “Procedimentos para a análise de
Processos de Radiodifusão Comunitária”47. Parte das mudanças sugeridas nesse
manual diz respeito à criação de prazos a serem respeitados pelo próprio Ministério
das Comunicações no processo de análise dos processos, até então sem definição
específica para serem realizadas, como por exemplo a publicação do Aviso de
Habilitação.
Outras medidas sugeridas foram: a simplificação da documentação exigida
das entidades que se candidatam ao serviço de radiodifusão comunitária; o respeito
à ordem cronológica de apresentação dos pedidos para sua apreciação; melhoras
45 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003. 46 Idem 47 Idem
76
na qualidade e variedade dos canais de comunicação entre o Ministério das
Comunicações e as entidades solicitantes da outorga.
Ainda entre as alterações sugeridas está a “consolidação do conceito de
entidade comunitária, habilitada para o serviço de radiodifusão comunitária” que, de
acordo com a sugestão do Grupo de Trabalho, deve ser defina como:
Entidade que não pode manter vínculos de subordinação com qualquer outra e que deve expressar um projeto de construção coletiva de unidade na diversidade, através da garantia estatutária ao ingresso como associado de todo e qualquer interessado domiciliado na área de prestação do serviço, bem como de outras entidades sem fins lucrativos, sediadas nesta área e, também, que todos os seus associados têm direito de votar e ser votados para todos os seus cargos de direção, assim como o direito de voz e voto nas deliberações sobre a vida social da entidade, nas instâncias deliberativas existentes (Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão, 2003).
Preocupações com a garantia de que grupos comunitários e não outros
tivessem acesso ao serviço se expressam no relatório através de sugestões como a
de que haja “uma consulta pública através da qual a comunidade poderá se
manifestar sobre a qualificação das entidades pretendentes”48. O texto critica o fato
de que o atendimento à lei, no tocante a adequação das entidades, é apenas formal,
com a apresentação de documentos, e acontece somente no período de solicitação
da outorga. A consulta, realizada a cada dois anos, seria uma forma continuada de
aferição dos interesses comunitários pela própria comunidade.
Além disso, o relatório sugere a criação do Conselho de Acompanhamento
da Radiodifusão Comunitária, com a função de “deliberar a cerca de conflitos
envolvendo o Serviço de Radiodifusão Comunitária”, e ainda a possibilidade do
envio de reclamações contra a radiodifusão comunitária feita pelos cidadãos ao
Ministério das Comunicações. No tocante a celeridade, o relatório aconselha a
criação de uma Força Tarefa para realizar o processamento dos pedidos que se
amontoaram durante os anos.
48 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003.
77
O relatório faz ainda severas críticas ao texto da lei 9.642/98, afirmando que:
“existem na lei (...) contradições insanáveis entre as finalidades atribuídas à
Radiodifusão Comunitária e as condições estabelecidas pela própria legislação para
a execução do serviço e que mudanças nestas tornam-se imprescindíveis”49. Os
pontos críticos da regulação, os acréscimos e mudanças são detalhados no relatório.
O processo de concessão da outorga que autoriza a prestação do serviço de
radiodifusão comunitária se divide em basicamente quatro fases: a demonstração de
interesse; a habilitação; a concorrência; e a aprovação do projeto técnico.
Considerando essas fases apresento a seguir, de modo sumário, os momentos
trilhados pelas entidades para a consecução da outorga50.
O primeiro momento consiste no preenchimento e entrega junto ao Ministério
das Comunicações do “Cadastro de Demonstração de Interesse”. Para isto é
necessário que a entidade requerente seja registrada em cartório, já que o cadastro
coleta informações como o número do CNPJ51, além do nome e endereço, entre
outros dados. O cadastro pode ser postado, enviado via Internet ou entregue
diretamente no setor de protocolo do Ministério das Comunicações em Brasília.
Chegando ao Ministério o formulário gera um processo de outorga de
radiodifusão comunitária. A partir daí tem curso a concorrência entre as rádios
interessadas em um canal de radiodifusão comunitária.
Num segundo momento ocorre a “Publicação do Aviso de Habilitação”. O
aviso de habilitação é uma comunicação de disponibilidade de canal de
comunicação comunitária para uma determinada área, feita pelo Ministério das
Comunicações. Nele um conjunto de comunidades é listado como aptas à recepção
do canal. Segundo dados coletados por Lopes (2005), esse é o pior momento do
processo de outorga, na medida em que não há prazos para que o Ministério
publique os Avisos. Como informa, “dos 14.006 processos analisados, 6112
estiveram represados, aguardando a boa vontade do Ministro das Comunicações
para a publicação do aviso contemplasse suas localidades” (LOPES, 2005, p. 76).
49 Texto do Relatório Final do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comunitária, 2003. 50 Para uma visão mais detalhada do processo de outorga ver Lopes (2005). 51 Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.
78
Assim grande parte dos processos emperra nesse procedimento, que funciona como
um gargalo impedindo a passagem dos processos52.
A publicação do Aviso é feita no Diário Oficial e, a partir de 2004, também no
“site” do Ministério das Comunicações. A partir da data de sua publicação as
entidades têm 45 dias para entregar a documentação solicitada no aviso.
O terceiro momento do processo envolve a “fase de habilitação”. Nessa
etapa ocorre a análise da documentação entregue pelas entidades. Segundo dados
de Lopes (2005, p. 82), menos de 1% das entidades envolvidas no processo de
outorga conseguem entregar a documentação sem incorrer em algum tipo de
problema. Comparando dados da radiodifusão comercial e comunitária, o autor
constata que “o percentual de arquivamento de processos de radiodifusão comercial
por não cumprimento de exigências burocráticas é inferior a 10% do total dos
processos arquivados, no caso da radiodifusão comunitária é superior a 80%”. Ao
contrário da grande maioria das rádios comerciais, que possuem aparato jurídico
para prover questões como essas, a maior parte das emissoras pleiteantes de um
canal de radiocom não dispõe de acessória ou orientação no processo.
Depois se a inicia fase de “análise das manifestações de apoio”53, momento
que marca o processo de concorrência entre as entidades interessadas. A análise
considera o apoio que a candidata a radiocom tem de pessoas e entidades para o
seu funcionamento. Caso exista apenas uma entidade pleiteante do canal de uma
área, ela é declarada habilitada, seguindo para a fase seguinte, de apresentação do
projeto técnico.
Entretanto, caso exista mais de uma candidatura para a mesma área, abre-
se o processo de concorrência, onde, ou as candidatas efetuam uma associação
entre si, ou, em caso de não entendimento, é escolhida a entidade com o maior
número de manifestações de apoio. A aferição é feita através da documentação
entregue no início do processo de outorga quando pessoas físicas e jurídicas 52 Levantamento realizado pelo autor, a partir da análise dos processos de outorga entre 1998 e 2004, revela que grande parte dos processos ficam parados pela falta de publicação dos avisos de habilitação pelo Ministério das Comunicações. 53 As manifestações são coletadas através de abaixo-assinado, tanto para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas (entidades), que através do instrumento demonstram tanto interesse no canal quanto acreditarem na credibilidade do proponente. O documento se apresenta como uma primeira mostra da legitimidade da futura emissora em sua localidade.
79
(associações de classe, etc) manifestam apoio à candidatura da entidade. Cada
apoio de pessoa física equivale a dois pontos e cada apoio de pessoa jurídica vale
cinco pontos, quem obtiver a maior soma de pontos é declarada habilitada.
Depois as entidades devem apresentar o “projeto técnico”. Assim,
habilitadas, as entidades seguem para o processo de qualificação do projeto técnico,
onde informações técnicas sobre a emissora são apresentadas ao Ministério das
Comunicações.
Na reta final do processo está a “ratificação da outorga”. Confirmada a
qualidade do projeto técnico e de toda a documentação entregue, as entidades
passam a aguardar a confirmação da outorga através da publicação da portaria pelo
Ministério das Comunicações.
Por fim, após a publicação da portaria pelo Ministério as entidades devem
aguardar que o Congresso Nacional54 e o Presidente da República aprovem a
autorização. Só depois podem colocar a emissora no ar.
2.4 As rádios comunitárias em Fortaleza
A segunda metade da década de 1980 é caracterizada por uma mudança no
cenário político nacional, com a consolidação da abertura política depois de um
longo período de ditadura militar. No Ceará, os anseios de liberdade e
democratização reprimidos durante o fechamento político são propícios à eleição,
em 1985, de Maria Luiza Fontenele, a primeira mulher a chefiar o executivo
municipal fortalezense. Eleita por um partido de esquerda, o Partido dos
Trabalhadores, sua vitória foi apoiada por um numeroso grupo de intelectuais que
tomou parte do governo, e cujas propostas de mudança para a administração eram
inovadoras.
Entre as inovações estava a de uso da comunicação para a mobilização
popular e comunitária. Em um contexto de remobilização da sociedade civil, a
54 Em função da demora por parte do Congresso Nacional na aprovação das concessões, foi instituída a Licença Provisória, mecanismo que libera para o funcionamento as rádios que aguardam a posição do Congresso (LOPES, 2005).
80
esperança de mudança contida na eleição de Maria Luiza refletiu-se no apoio a
estratégias de comunicação popular. Assim, o projeto de “rádios populares” criado
por Márcia Vidal, professora do curso de comunicação social da Universidade
Federal do Ceará, ganhou apoio financeiro e político da prefeitura.
O projeto previa a instalação de radiadoras populares, que inicialmente
operariam com carros de som, já então chamadas de rádios, em bairros estratégicos
da cidade, localizados em cada uma das subprefeituras que dividiam político-
administrativamente a cidade. A prefeitura entrou no projeto bancando os
equipamentos, enquanto a Universidade Federal do Ceará se encarregava da
capacitação, através, inicialmente, do Núcleo de Comunicação Alternativa, O
NUPOCA, depois rebatizado de Centro de Produção Alternativa, o CEPOCA, criado
em 1987. O Centro tem em sua composição líderes comunitários “ligados as rádios
comunitárias moradores das localidades onde estão instaladas as rádios
comunitárias, sendo, em sua maioria, trabalhadores, militantes de Comunidades
Eclesiais de Base (CEB´s), líderes comunitários, jovens, etc”55.
Houve a formação técnica e política dos comunicadores, que aprenderam
técnicas radiofônicas e de comunicação, além da operação dos equipamentos,
serviços móveis que se utilizavam de tecnologia rudimentar, como explica uma das
participantes do projeto:
Eles (O CEPOCA) tinham esses bolsistas que eles pagavam, tinham alguns equipamentos que eram os mesmos de hoje, é aquela velha história de que os equipamentos têm sido sempre os mesmos: gravador, fita, sempre uma tecnologia de pouca utilidade. Esse é um grande problema da comunicação alternativa, não é um problema essencial, mas é sempre um problema de ter que trabalhar com a tecnologia que sempre é o resto da tecnologia, que dá pra se tocar56.
Desse modo, a espontaneidade na criação das rádios cede espaço, no
Ceará, e mais especificamente em Fortaleza, para uma ação acadêmica que
inicialmente recebe apoio do Estado. Embora haja o registro da existência da rádio
55Texto do Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, elaborado pelo CEPOCA (sd.) 56 Entrevista concedida à autora em 19/07/2004.
81
CuraDar's - funcionando desde 1982 no bairro do Pirambu, uma favela de históricas
lutas nascidas dos movimentos populares (SILVA, 1992; MATOS, 1998).
Fortaleza e São Paulo guardam o pioneirismo de vincular as possibilidades
da comunicação comunitária a um deliberado esforço de qualificação política da
comunidade para o exercício da cidadania. A vinculação às Comunidades Eclesiais
de Base e a importância dada pela Teologia da Libertação às mídias alternativas, e
nesta à crítica das mídias tradicionais fomentam essas primeiras experiências.
Segundo Cogo (1994, p. 103) “as CEBs da zona leste de São Paulo são o palco das
experiências iniciais com alto-falantes desenvolvidas no Brasil”.
Inicialmente um megafone a pilha que convida “os moradores para reuniões,
mutirões e demais atividades realizadas na favela” (COGO, 1994, 103) se
transforma em rádio popular, por incentivo do Pe. Bernardo Paquette, um peruano
que conhecia as experiências alto-falantes como rádios populares realizadas no
Peru. Nasce assim a primeira emissora popular da região, a Rádio Nossa Senhora
Aparecida, localizada na favela de mesmo nome. A rádio surge ligada a um grupo de
alfabetização da paróquia de São Francisco de Assis na região de São Miguel
Paulista. Poucos anos depois as emissoras populares se propagam pela região e em
1987 elas somam 42 rádios, sendo a mais importante delas a Rádio do Povo
(GOGO, 1994).
Em Fortaleza, além dos ventos da renovação política que colocaram no
poder Maria Luiza Fontenele, a campanha da fraternidade de 1989, cujo tema era:
“A fraternidade e a comunicação” e o lema: “Comunicação para a verdade e a paz”,
produziram um ambiente social favorável à discussão do tema da comunicação
popular e comunitária57 e animaram a criação de novas rádios.
Na capital cearense, mesmo antes do projeto desenvolvido pelo CEPOCA
registram-se iniciativas de implantação de radiadoras por alguns padres em algumas
paróquias da cidade. É o caso do “Sistema Integrado de Rádios Alternativas de
Messejana” (o SIRASME) projeto levado a cabo pelo padre Luis, da paróquia do
Bairro Santa Maria. Entre as rádios ligadas ao sistema estavam a Dom Oscar
57 A recepção favorável que as emissoras tem dos jornais locais em seus primeiros anos de vida (e que será analisada adiante), talvez se beneficie dessa conjuntura, particularmente do ambiente criado pela campanha da fraternidade.
82
Romero, situada no Parque Santa Maria, a Rádio Santo Dias, criada depois e
situada no Conjunto Palmeiras, entre outras. O CEPOCA e o SIRASME irão unir
forças no processo de implantação de emissoras comunitárias. Sobre a parceria se
afirma:
O SIRASME, embora seja uma organização independente, atua em conjunto com o Centro de Produção em Comunicação Alternativa, sociedade civil sem fins lucrativos que integra a maioria das rádios comunitárias em Fortaleza. Além das rádios comunitárias de Messejana, do SIRASME, integram o CEPOCA, as seguintes rádios: Buraco do Céu e Goiabeiras (Barra do Ceará), Genibaú (Antônio Bezerra), Parque São Miguel (Messejana), Recreio da Esperança (Mucuripe), Rádios Nova Geração (Tancredo Neves), Fumaça (João Arruda), Conjunto Ceará, Itamarati e Álvaro Weyne58.
No período posterior à administração Maria Luiza os aparelhos são alvo de
disputa entre o CEPOCA e o novo governo municipal. Uma circular do CEPOCA, de
janeiro de 198959, informa sobre as dificuldades:
(...) apesar das correspondências sofrerem atraso, conseguimos nos mantermos mobilizados diante da ameaça da posse dos equipamentos, pela nova administração a frente da prefeitura de Fortaleza. Atualmente estamos com 03 (três) sistemas em funcionamento. Após várias dificuldades conseguimos colocar no ar as rádios comunitárias: de Messejana (...) (já em funcionamento desde o final do ano passado); Antônio Bezerra (...) (inaugurada no dia 27/01/89); e na Parangaba (também inaugurada na última semana de janeiro/89). (...) No caso dos equipamentos: se legalmente forem expedidos mandatos de reintegração de posse, SÓ ENTREGAREMOS COLETIVAMENTE ATRAVÉS DO CEPOCA.
Além das três emissoras citadas na circular, já então em funcionamento, o
texto faz menção a mais duas, ainda por serem instaladas: “Em breve teremos no ar
mais duas Rádios Comunitárias: na Barra do Ceará – sediada no bairro N. Senhora
das Graças/Pirambu e a outra no Modubim”. Fixadas inicialmente em cinco áreas da
cidade, os problemas relativos a manutenção financeira do projeto foram um dos
primeiros obstáculos enfrentados pelo CEPOCA. Um projeto de 1990 escrito para 58 Texto do Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, enviado pelo CEPOCA para CABEMO, uma instituição internacional de financiamento. 59 Circular Nº 2/89 do CEPOCA de 31 de janeiro de 1989.
83
captação de recursos financeiros junto uma instituição internacional60, oferece uma
imagem dos problemas enfrentados pelas rádios naquele, esboça um bom histórico
das emissoras até então e dos propósitos do CEPOCA.
Segundo o Projeto, o principal problema é a falta de equipamento, que
resume-se, segundo descreve o texto, a “um amplificador, uma mesa de som, dois
microfones, um toca discos, dois ‘tape-decks’ (casseteiras)”61: Por isso, afirma ainda
o Projeto:
Tudo isso [“trabalho de organização e conscientização na periferia de Fortaleza e também das atividades desenvolvidas na área da comunicação de noções básicas de saúde, que vem sendo desenvolvidas com o apoio do UNICEF”] está ameaçado de desaparecer por absoluta falta de equipamentos e de recursos para prosseguirmos o trabalho.
No Projeto a função e a importância sociais das rádios são apresentadas da
seguinte forma:
As rádios comunitárias de Fortaleza têm a função essencial de servir as comunidades, ajudando no seu processo de organização e conscientização. O principal objetivo das rádios comunitárias é o resgate da voz popular, dando espaço ao povo para que ele fale reflita sobre sua realidade, fazendo com que a comunicação ajude no processo de transformação da sociedade.
Entre os objetivos específicos a serem desenvolvidos pelo “Projeto de
Rádios Comunitárias” estavam:
- Colocar o povo para falar por ele mesmo, para que ele possa conhecer melhor sua realidade, organizando-se com o objetivo de promover ações que possam resolver seus problemas.
60 Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”, enviado pelo CEPOCA para CABEMO, uma instituição internacional de financiamento. A relação do CEPOCA com o Grupo da “Rádio do Povo” de São Miguel Paulista também é mencionada no texto, o que revela o nível de organização e mobilização das rádios já naquele momento. 61 Idem.
84
-Valorizar as manifestações culturais populares, resgatando o artista popular: o cantador, o cordelista, os grupos de teatro, as danças e as festas populares, para manter a cultura do povo viva e atuante.
- Dar notícias sobre as lutas das comunidades e sobre suas vitórias, para fortalecer o processo de organização.
- Estimular tarefas coletivas com a distribuição de atribuições e responsabilidade entre todos, visando criar novos laços de solidariedade, respeito e confiança entre membros das diversas comunidades envolvidas no trabalho com as rádios comunitárias.
- Enfim, todo o esforço das rádios comunitárias se direciona no sentido de contribuir para a transformação dessa sociedade em que vivemos, trabalhando para construir uma sociedade mais justa, mais solidária, mais fraterna e mais irmã62.
Os mecanismos usados para a consecução desses objetivos centram-se na
participação popular e na formação e renovação dos quadros, obtidas num processo
de envolvimento da população dos bairros onde as rádios se localizavam.
Nesse momento a programação é decidida coletivamente, e o Projeto afirma
que: “se baseia na participação popular através da realização de ‘sociodramas’,
‘áudio-debates’, entrevistas, comentários e ‘rádios-revistas’ de educação popular”.
Além disso, a programação oferta uma série de serviços, como:
Achar crianças perdidas, ajudar a enterrar os mortos, convocar para as reuniões e lutas para resolver problemas específicos, contar a notícia do jornal na linguagem do povo, dramatizar experiências reais, colocar no ar as músicas que as rádios comercias não tocam, enfim, as rádios comunitárias são o retrato das próprias comunidades que o fazem63.
Além de suprir necessidades de capacitação para “comunicadores
populares”, o CEPOCA desempenha o papel de formação e organização política das
rádios. No quadro abaixo uma visão das atividades de formação técnica e política
realizadas entre 1988 e 1990, primeiros anos de sua existência.
62 Projeto “‘Rádios Comunitárias’ na Periferia de Fortaleza”. 63 Idem
85
Quadro 1: Atividades realizadas pelo CEPOCA entre 1988-1990
Ano Atividade 1988 Assembléias mensais reunindo todos os representantes comunitários. 1988 I Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de
comunicação participativa, entre elas: “sociodrama, entrevista popular, notícia popular, disco-foro, rádio-revista de educação popular e uso e manutenção dos equipamentos da radiadora”. Sete turmas formadas.
1988 I Seminário de Comunicação Alternativa. Reuniu representante comunitários membros do CEPOCA para avaliação das atividades.
1989 II Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de comunicação participativa. Quatro turmas formadas.
1989 Pesquisa de audiência da Rádio Comunitária do Parque Santa Maria. 1990 II Seminário de Comunicação Alternativa. Participação de Pedro Sanchez, da
Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica (ALER) e Roberto Joaquim de Oliveira e Sônia Maria Fonseca do Centro de Comunicação Popular de São Miguel Paulista, São Paulo.
1990 Pesquisa de audiência da Rádio Comunitária do Parque Santa Maria. 1990 III Curso de formação de repórteres populares/ capacitação nas técnicas de
comunicação participativa. 1990 Participação do CEPOCA no XVII Congresso Brasileiro de Comunicação da
União Cristã Brasileira de Comunicação (UCBC), no painel intitulado “Rádio e Solidariedade”.
Para fazer circular informações sobre o nascente movimento de emissoras
comunitárias, o CEPOCA criou o “Informe CEPOCA”. Ao informar sobre as
atividades da entidade, a publicação “Informe CEPOCA” oferecia um panorama
sobre o universo das rádios: cursos, criação de novas emissoras, convênios,
organização política, entre outros. Visto em retrospecto ele é uma boa fonte para a
compreensão do que mobiliza a atenção do movimento de radiocom nesse
momento. 64
Entre as notícias divulgadas chama atenção um episódio de violência contra
as rádio-radiadoras. É o caso do atentado a “Rádio Alternativa” do bairro Conjunto
Ceará, anunciada pelo “Informe CEPOCA” de fevereiro de 1991, assinado por
Adailton Moreira do Nascimento, coordenador da rádio:
A Rádio Alternativa do Conjunto Ceará, foi obrigada a suspender suas atividades desde o mês de agosto por ter sofrido uma série de atentados à bala em suas cornetas e sua torre ter pegado fogo, por isso a rádio passou por uma longa reforma. Para a alegria de todos a rádio estará novamente no ar a partir de 25 de janeiro, perturbando
64 Cópia integral dos dois primeiros números do boletim anexo 2.
86
os donos do poder político e econômico do país, responsáveis pela fome e miséria absoluta que já viraram rotina. (...)
Ao acumular uma experiência na área de capacitação e formação política o
CEPOCA acaba ganhando visibilidade. Em resposta aos atentados sofridos pela
Rádio do Conjunto Ceará, o artigo da jornalista Ivonete Maia intitulado “Rádios
Comunitárias”, publicado pelo jornal “Diário do Nordeste” de 22/10/1990 faz uma
contundente defesa dessas emissoras65:
O fato é que cerca de duas dezenas de rádios comunitárias já surgiram em Fortaleza, localizadas em bairros da periferia, tocadas por associações e por grupos de pessoas que recorrem a quem possa ajudá-los na implantação e na consolidação. A prática vem demonstrando a eficácia da iniciativa, exatamente porque significa a criação de um espaço de comunicação direta, informal e objetiva com o próprio bairro. Mais: é um lugar conquistado pela comunidade para dar-lhes possibilidade de discussão, denúncia e interpretação dos seus próprios problemas. Significa a existência de um espaço difícil de ser assegurado nos veículos de massa, cuja ressonância nem sempre tem as conseqüências desejadas. (...) o que pode se fazer através desses pequenos sistemas de som é algo sem estatísticas ou diagnósticos objetivos. É um semear e é um combate, cujos frutos e cujas vitórias virão com o tempo. É só ter paciência e esperar.
Em 1995 o centro de formação une-se a Arcos, “Associação das Rádios
Comunitárias de Fortaleza”, e nasce assim a Arcos-CEPOCA. A fusão da
Associação ao CEPOCA alia os aspectos de formação técnica, já trabalhados pelo
Centro, a questão da mobilização e formação política das rádios e das comunidades.
A entidade conseguiu montar uma produtora, com um estúdio de boa qualidade que
servia para capacitação e produção de materiais das rádios comunitárias, ao mesmo
tempo que mobiliza as rádios no confronto com as entidades como ACERT e órgãos
do Estado como Departamento Nacional de Telecomunicações (DENTEL),
substituído depois pela Anatel, e Polícia Federal.
65 O tom desse artigo é bastante característico da cobertura que tem as radiadoras nesse primeiro momento. Aspectos positivos como as diferentes possibilidades da comunicação comunitária são lembrados, em oposição às dificuldades de realização dessas mesmas possibilidades nos veículos de massa. Tom completamente diverso passa a ser empregado quando a fase das radiadoras é superada, passando as comunitárias a operarem em freqüência modulada.
87
Em 2001 a Arcos-CEPOCA encerra suas atividades, depois de um
conturbado processo eleitoral mobilizado pela disputas internas pelo controle da
entidade. Além do controle estava no centro das disputas a própria sobrevivência
financeira da Associação, que então se preparava para a concorrência de uma
licitação da Prefeitura de Fortaleza com vistas a implantação de rádio-escolas. A
entidade nem chegou a participar da licitação e pouco depois, fragmentada pelos
conflitos internos em torno da sucessão eleitoral, encerrou suas atividades.
De 1995 a 2001, período em que a entidade existiu, vários fatos importantes
no Ceará e em nível nacional pontuam a história do movimento de rádios
comunitárias. A mobilização em torno dos projetos de Lei que visavam a legalização
das radiocom; a criação da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias, a
ABRAÇO, na qual a Arcos-CEPOCA teve uma posição destacada; a promulgação
da Lei 9.612/98 e da Norma Complementar ao texto da Lei; o barateamento dos
equipamentos e o crescimento do mercado de transmissores; o crescimento
vertiginoso do número de emissoras em freqüência modulada; e, por fim, o processo
de esfacelamento do movimento de rádios comunitárias que acontece não apenas
no Ceará, mas também em nível nacional, tendo como conseqüência o desgaste da
imagem da ABRAÇO66.
Todos estes eventos são sintomáticos das transformações que se
encontravam em curso na área da radiofonia comunitária, não apenas no Ceará mas
também no Brasil. O conjunto dessas mudanças afeta significativamente a
organização política do movimento. Um dos antigos diretores da Arcos-CEPOCA 67
faz uma interessante análise desse processo:
Quando saiu a lei de rádios comunitárias, as empresas que vendem equipamentos criaram um outro público alvo que foram os prefeitos e os Deputados: “Monte a sua rádio comunitária”. As Câmaras estaduais e federais viviam recebendo folder de empresas que vendiam seus equipamentos: “monte a sua rádio comunitária, porque agora é lei”. E aí começou a surgir uma série de rádios comunitárias,
66 Um texto publicado no “site” do “Centro de Mídia independente” em 2003 (www.midiaindependente.org/es/2003/08/260539.shtml), intitulado “Irregularidades na Abraço RS” afirma que “dirigentes da Abraço RS tem utilizado a entidade só, e somente só, para proveito próprio”. O texto assinado por dois membros do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações é um exemplo desse processo de desgaste que sofre o movimento. 67 Entrevista concedida à autora em 02/05/2003
88
que nós chamamos de picaretárias, que são as de prefeito, de vereadores, de deputados. E aí as Evangélicas. Por que as evangélicas? Porque já existiam as católicas. Então, as evangélicas: "se as católicas podem por que nós não podemos?". Aí surgiram uma série de rádios evangélicas.
A criação da Lei de Radiodifusão Comunitária é um marco importante para
as mudanças que ocorrem. A instituição da idéia de legalidade abre o cenário à um
conjunto de novos atores, sem tradição de militância junto ao movimento de rádios
comunitárias, muitos deles “sensibilizados” pelas possibilidades divulgadas pelas
empresas de equipamentos. O crescimento do número de rádios e as dificuldades
de relacionamento com uma legislação extremamente restritiva erigem a ordem
jurídica e não a organização e mobilização sociais como caminho para a defesa do
direito recém criado. Como o analisa um ex-diretor diretor da Arcos-CEPOCA68:
Depois de 98, as empresas cumpriram esse serviço de divulgar que qualquer um podia montar a sua rádio comunitária, bastava criar uma associação, ou uma fundação pra isso. E aí, um outro fator foi a questão jurídica, porque com a lei não se podia colocar rádios comunitárias. Pra colocar as rádios no ar, pra fugir da perseguição que continuava, a gente então entrava na justiça para conseguir liminar sob o argumento do artigo 5o da Constituição - da livre expressão -, e também pelo fato de que o Ministério das Comunicações tinha um determinado prazo para nos dar respostas e não dava. Então surgiu a “máfia das liminares”, onde um, dois ou três advogados, com amizade com juízes, e com o conhecimento de como funcionava o trâmite, colocavam liminares com um grupo de dez rádios no mesmo pedido. Apenas se trocava quem era o titular do processo e enfiava nas ditas varas. Então quando caísse no Juiz que liberasse, que tinha compreensão que era justo, que era legal as rádios entrarem no ar (...) Então, sabendo qual era o Juiz que via a favor das rádios comunitárias eles faziam essa prática. E os advogados que sabiam disso (me reservo não dizer os nomes para não ser processado) eles ganharam dinheiro com isso, mas do que isso, eles criaram poder de controle, de comando sobre as rádios. Eles se transformaram em lideranças, em defensores de rádios e ao mesmo tempo passaram a ter um domínio sobre essas rádios, que acabou culminando numa desfragmentação da estrutura da Associação Estadual, no caso, aqui do Ceará. (...) As rádios ficaram reféns dos advogados. Quando davam uma caçada os advogados iam lá. Então, as Associações foram transferidas para os gabinetes dos advogados que resolviam esse tipo de problemas. Então para quê associação se eu tenho um advogado que resolva o problema para mim?
68 Entrevista concedida à autora em 02/05/2003.
89
Esse processo se relaciona com o que Bernardo Sorj (2001) chama, a partir
de Habermas, de “juridificação” da sociedade, movimento que se encontra em
processo de crescimento na sociedade brasileira. A juridificação é definida como
uma tendência de adensamento do direito coletivo, de institucionalização do conflito
de classes, da legislação trabalhista e de regulação do conflito social. Nele a
resolução das disputas é transferida para o interior do Estado, mais precisamente
para o campo jurídico.
Entretanto, as discrepâncias entre a prescrição jurídica e a capacidade real
de sua efetivação tornam mais complexa a resolução dos conflitos, o que é agravado
pelo surgimento de uma “visão transnacional dos direitos” (SORJ, 2001). Essa visão
é fruto da universalização dos direitos humanos através de acordos e declarações
de organismos internacionais que acabam se chocando com as capacidades
econômicas de realização e com o quadro de percepção sobre esses direitos que
existem nos diversos países. Como afirma Sorj (2001, p. 107):
A acumulação de direitos confirmados inclusive por convenções internacionais mas não efetivamente aplicados em nível nacional, cria uma distância entre a realidade discursiva e sua aplicação (muitos juristas as denominam de direitos ‘pragmáticos’, um horizonte mais que uma obrigação efetiva atual do Estado), o que pode ser tanto um desafio como uma fonte de desmoralização da idéia de direitos.
No Brasil o conflito em torno da existência das rádios comunitárias se situa
nesse limite, entre a criação de uma legislação nacional específica sobre o tema e
os acordos de livre expressão dos quais o país é signatário. Como afirma Coelho
Neto (2002, p. 111):
Com o Brasil na qualidade de signatário do Pacto de São José da Costa Rica [Convenção Interamericana de Direitos Humanas, de 1969], o Poder Judiciário tem oscilado entre aquele Tratado Internacional, a Constituição e a Lei Ordinária. A coexistência dessas normas e a tentativa de dizer onde o direito tem sido um constante desafio para os juízes.
90
Além de empurrar a decisão sobre esse conflito para o interior do Estado,
tornando-o não apenas uma questão política, mas uma questão jurídica, essa
decisão transfere a importância da discussão do plano de ação dos movimentos
sociais para o plano de ação dos operadores do direito. Mercado onde a moeda não
é mais a capacidade de mobilização e articulação social e sim a capacidade de
pagamento dos serviços. Como afirma o ex-diretor diretor da Arcos-CEPOCA69:
Com essa possibilidade [de consecução de liminares], as várias rádios evangélicas, as católicas, as dos prefeitos, dos vereadores e deputados colocaram as suas rádios no ar, bastava pagar bem os advogados para isso. Eles ganharam muito dinheiro. Eles diziam isso pra gente: “rapaz eu estou ganhando muito dinheiro com isso”. Pelo fim a coisa estava ficando assim tão esquisita, que eles começaram, alguns, a fornecer o serviço de advocacia para rádios que não tinham condições de pagá-los. Por quê? Porque eles precisavam ser legítimos. Eles precisavam colocar rádios verdadeiramente comunitárias no ar para que justificasse as outras que não eram verdadeiramente comunitárias. Uma tática que funcionou, porque transformavam as rádios verdadeiramente comunitárias em reféns de qualquer divergência ou ataque da política que eles estavam implementando. Também não vou dizer o nome das rádios porque isso não é o caso. Mas isso é verdade. Isso aconteceu. O importante é saber que as poucas rádios verdadeiramente comunitárias, que conseguiam liminar na justiça, conseguiram de forma gratuita, ou digamos, amenizada. Se, na época, ele cobrasse 1.500 reais, no ano de 98-99, para colocar uma rádio no ar, ele cobrava 300-500 reais numa rádio que não podia pagar. Aí a rádio ia fazer bingo, rifa. Algumas não pagavam. Ainda estão devendo até hoje.
A demora do Minicom em liberar as primeiras concessões transforma o
expediente jurídico em saída para a regularização das entidades. A partir de então a
prática da apelação jurídica acaba estreitando os vínculos entre emissoras de perfis
bastante diferenciados. Uma intensa troca se estabelece constituindo uma lógica de
cumplicidade: “rádios verdadeiramente comunitárias” emprestam sua credibilidade
para um pedido de liminar tendo em troca os serviços jurídicos pagos, ou
“amenizados”. Essa nova dinâmica, que não é a da mobilização dos movimentos
sociais, funcionou como uma máquina de produção de emissoras e de concessões
precárias (as liminares), o que alimentou o crescimento vertiginoso ocorrido no final
dos anos 90 e inicio dos anos 2000.
69 Entrevista concedida a autora em 02/05/2003.
91
Um representante da Anatel70 revela que as liminares foram, de fato, uma
prática mais comum no Ceará do que em outros Estados, garantindo, durante o
período em que o expediente vigorou, que as rádios não sofressem com as ações
da Agência:
Aqui no Ceará há um caso atípico porque havia um entendimento dos juízes de que essas rádios eram consideradas inofensivas para o espectro; levou-se muito da agência fazendo um trabalho junto ao judiciário para que houvesse um entendimento, embora no Tribunal em Recife, da 5º Região, isso já fosse claro de que era ilegal independente de quanto era grave para o espectro ou não, por critérios técnicos, mas essas liminares sempre eram derrubadas pela turma a nível de segunda instância, mas a nível de primeira instância persistiu durante muito tempo, muitas rádios funcionando com liminar, então levou algum tempo, acho que até 2000 ou 2001, a partir daí os juízes não mais concediam liminar aqui no Ceará, então hoje (...) nenhum juiz... todos já têm o entendimento de que há necessidade de outorga e há necessidade de disciplina no uso do espectro porque um [espectro] não autorizado, que você desconhece, pode trazer um dano desconhecido, que pode ser grave, pode ser extenso, exatamente por você não conhecer a fonte e não saber como ela se comporta, ou seja, de não ser administrado. As liminares que ainda existem hoje são remanescentes dessa época.
A emergência da “máfia das liminares” fragiliza a articulação do incipiente
movimento de radiocom que há pouco tempo começara a se articular e construir
uma tradição, um discurso e uma memória. O aparecimento de novos agentes, sem
vínculo histórico com o movimento, com suas práticas e demandas, torna nebuloso o
debate sobre a democratização das comunicações, questão fundamental nesse
campo, e o papel das rádios comunitárias que vinha sendo discutido pelo movimento
tem de ser revisto com a introdução desses novos personagens. Como verifica o ex-
diretor71:
Então, isso [a compra de liminares e o poder dos advogados] foi complicando mais ainda para o movimento. Porque essa realidade afastou o movimento de rádios comunitárias daqui de outros segmentos da sociedade civil organizada que defendiam, como o sindicato dos jornalistas, a universidade, como outras ONGs que trabalhavam com isso, até sindicatos: CUT, centrais sindicais que
70 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005. 71 Entrevista concedida á autora em 02/05/03.
92
eram defensores do movimento como um todo, se afastaram porque não viram mais nesse movimento algo legítimo, algo honesto. Viam como um jogo. (...) Esse foi um aspecto que trouxe uma paralisação do verdadeiro movimento de rádios comunitárias: a busca pela democratização da comunicação. Aí, o que nos resta? Agora, passou essa fase das liminares. Passou por quê? Porque o Ministério começou a liberar autorizações. E quando ele começa a liberar autorizações o Juiz não tem mais argumentos para ele dizer que não está mais encaminhando processo.
Depois do momento de distribuição das liminares a entrada de novos atores
não reconhecidos no interior do próprio movimento de radiocom começa a esboçar a
fragilização da organização do movimento. Como analisa o ex-diretor:
E eu dizia isso já em 99, um dia as liminares vão acabar e eu quero saber o que é que vai ser desse movimento. A Associação não dá uma resposta, não discute isso. E aí o que vocês vão fazer? Moral da história: alguns advogados que faziam isso acabaram abandonando esse tipo de coisa porque não dá mais. (...) A estadual está precisando se reestruturar, e quando se fala de reestruturação vamos ter que reunir todo mundo: católicos, protestantes, evangélicos, prefeitos, vereadores, deputados. Todos que se dizem do movimento de rádios comunitárias, para discutir uma coisa concreta. Ou viram rádios comunitárias mesmo, porque, também, ninguém quer tirar o direito de expressão, ou vão procurar outro rumo. Se a entidade continuar sendo, ainda, reboque da política de advogados, da política de grupos que querem manter a mesma linha de rádios de deputados, de rádios de prefeitos, de evangélicos. Como ela ficou omissa para discutir isso, durante esses quatro anos, nas duas últimas gestões, dizendo que isso dividiria o movimento (...)
Os interesses “individuais” de cada rádio, a busca de outros canais de
defesa de suas demandas como, por exemplo, o apadrinhamento político, também
esvaziam a organização. Em uma das emissoras visitadas durante a pesquisa, a
Rádio Comunitária do Antônio Bezerra encontrei a seguinte situação: depois de ter
sofrido uma ação de lacre72, só se falava na busca de um deputado para a resolução
da questão. Ao mesmo tempo a organização ou a falta dela era vista como um
problema para as radiocom que, diferentemente da ACERT, que seria marcada pela
unidade, era “desunida”, e entre as radiocom “cada uma só queria saber do seu”.
72 Intervenção realizada pela policia federal em que os equipamentos da radio são lacrados, impedidos assim de funcionar.
93
Além disto, mais recentemente, a comunicação alternativa se converte em
um mercado em expansão, que representa a possibilidade de empregos, venda de
equipamentos, espaço de comunicação e promoção de políticos de menor
expressão, de igrejas interessadas em “invadir os meios seculares”, comunidades
sem memória ou história dos movimentos sociais que querem fazer uso dessa
possibilidade tecnológica. Todos eles, sob o guarda-chuva da designação “rádios
comunitárias”, junto com as experiências que tradicionalmente se ligam aos
movimentos sociais vão criar e conviver com um conjunto de novos usos e discursos
sobre a comunicação comunitária.
Em Fortaleza o “dial” está tomado dessas emissoras. Reproduzo a seguir as
freqüências de transmissão captadas pelos receptores domésticos em Fortaleza73.
Apresento em azul, seguindo a estrutura de freqüência do “dial”, as rádios não
oficiais identificadas; em verde as rádios comunitárias outorgadas pelo Ministério das
Comunicações; e em preto as rádios comercias e educativas também outorgadas
pelo Ministério:
73 Audição feita no bairro do Benfica, próximo ao centro da cidade.
94
Freq. Emissora 87,5 Eco Musical FM 87,7 Israel FM 87,8 Manchete Gospel 87,9 Rádio Interativa 87,9 Assoc. Cultural do Conj. José Walter 87,9 Assoc. Cultural da Água Fria 87,9 Associação Cultural Santa Edwirges 87,9 Assoc. Cultural dos Amigos do Bairro da Pedra 87,9 Assoc. Comunitária dos moradores do João XVIII
87
87,9 Assoc. Crescer e Flores 88 88,9 Jangadeiro FM
89,3 Adiante FM 89 89,9 Somzoom Sat FM
90 90,3 Liberdade FM 91 91,5 Pentecostal FM
92,1 Educativa Parreão 92 92,9 Tropical FM
93,5 Círculo FM 93 93,9 Verdes Mares
94 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência 95 94,7 Jovem Pan
96,9 Dom Bosco FM 96,5 Apostólica FM
96
96,9 Caminho Santo FM 97,7 Portugal FM 97,7 Costa do Sol
97
97,3 Gospel FM 98 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência
99,1 Rádio Cidade FM 99,9 Record FM 99,5 Rádio Espaço Cultural
99
99,9 Rádio Gospel (Rede Aleluia) 100,9 FM 100 100 100,2 Rádio Cálice 100,1 Estação 101 101 101,7 Casa Blanca FM 102,9 Canção Nova 102 102,3 A Rádio Rock
103 103,9 Tempo FM 104,3 Rádio Esperança 104 104,7 Paupina FM 105,3 Muriá FM 105 105,7 Atlântico Sul
106 106,7 Calypso FM 106,3 Plenitude FM
107 107,9 Universitária FM 108 Nenhuma rádio localizada nessa freqüência
Legenda:
Rádios não oficiais identificadas Rádios comunitárias outorgadas pelo Ministério das Comunicações Rádios comerciais e educativas outorgadas pelo Ministério das Comunicações
95
Num cenário de disputa originado pela expansão do campo da radiofonia
comunitária, o texto abaixo,74 escrito por um militante das rádios livres e
comunitárias, fala sobre essa mudança e permite que se compreenda o que muda
nessa trajetória:
(...) Dos anos 80 à década de 90, a crescente facilidade para se comprar transmissores de baixa potência (dado o desenvolvimento técnico que ocorre, e o barateamento subseqüente) de um lado, e a falta de uma legislação que acompanhasse este novo quadro tecnológico de outro, fez proliferar no Brasil em ritmo cada vez maior as rádios clandestinas(...).
Neste quadro, a maioria das rádios que surgem, reproduzem o modelo das rádios comerciais oficiais, seja em relação à sua estrutura de funcionamento, seja no conteúdo ou na linguagem usada na programação. Por outro lado, mesmo sendo minoria, os projetos autênticos de comunicação popular e de expressão cultural não param de crescer – em quantidade e qualidade. Legalizados ou não.(...)
Na democratização dos meios de comunicação no Brasil podemos destacar atualmente as rádios que se desenvolvem nas periferias das grandes cidades (em articulação com espaços culturais/comunitários e com o movimento hip-hop), nos assentamentos rurais (em geral vinculadas ao MST), nas Universidades (iniciativas primordialmente estudantis, mas que muitas vezes adquirem caráter comunitário), e em pequenas cidades, onde a rádio da comunidade chega a superar a audiência das grandes rádios.(...)
O direito de comer, de trabalhar, de morar, de querer uma ecologia sustentável, ter o acesso mais amplo possível à cultura e educação, de criar e resistir à ideologia dominante. Ou simplesmente o direito de poder se expressar e afirmar um pouco do que é para a coletividade. A auto-estima de se saber ouvido. Antes ouvintes, agora locutores.
A afirmação do direito referida pelo autor, vai tornar-se cada vez mais
complexa com a entrada em cena de novos interessados na exploração da
radiodifusão comunitária.
74“Rádio: um sistema de transmissão e recepção de mensagens sonoras”. Artigo de Thiago Pires Galleta, membro do coletivo da Rádio Muda. O texto captado na Internet na lista de discussão “rádios livres e comunitárias” não estava datado. Disponível em [email protected] Acesso em: 7 de jan. de 2003.
96
Nesse novo momento a visão romantizada da unidade dos grupos que
fazem a comunicação alternativa, que foi fundamental no processo de mobilização
política para a aprovação Lei de Radiodifusão Comunitária (que une rádios livres,
rádios populares, rádios religiosas75), vai perdendo espaço para a defesa de
posições mais particulares dentro de um campo social em processo de
transformação e expansão.
O que distingue uma emissora comunitária das demais e a torna legítima
não é ponto consensual entre os diferentes grupos que compõem este vasto
universo que se autodenomina de rádio comunitária. Mas em que ambiente mais
amplo das telecomunicações no Brasil se insere essa disputa?
2.5. O cenário das comunicações e as radiocom
Sorj (2003) propõe uma periodização das telecomunicações no Brasil a partir
de três momentos fundamentais. O primeiro ocorre ainda no século XIX (1852), com
a instalação do primeiro telégrafo elétrico e perdura até 1964. Nesse período
companhias telefônicas se instalam no país de forma fragmentada. Há a implantação
da radiodifusão a partir de 1922 e da televisão a partir de 1950.
O segundo momento compreende o período entre 1964 até o início dos anos
1990, com a reorganização do sistema de telefonia e a “radical transformação do
setor de telecomunicações” (2003). Datam daí a criação da Radiobrás e do Sistema
Telebrás, com a expansão da telefonia e a crescimento da televisão através do
sistema de rede nacional. Sobre esse período, afirma Sorj (2003, p.77):
As realizações do sistema telebrás são impressionantes. No período entre a criação da Telebrás e 1980, o número de terminais telefônicos passa de 1,69 milhão para sete milhões e meio. A Embratel criou troncos de interligação telefônica, via satélite em todos os estados brasileiros e o sistema internacional (...) Nesse período, também é criada a Radiobrás, canal do governo que atinge todo o território nacional. Mas o fenômeno cultural central desse período é a expansão da televisão, em particular da Rede Globo, que. Associada a canais locais criou uma rede nacional para,
75 Vide a participação da “Associação das Rádios Comunitárias Católicas” no processo de mobilização política para a aprovação da Lei 9612/98.
97
inicialmente, transmitir o seu jornal vespertino e, posteriormente, o conjunto da programação.
O terceiro momento pode ser localizado a partir dos anos 1990, com a crise
do Sistema Telebrás e as privatizações na área.
A expansão das comunicações no país foi seguida de um contínuo processo
de concentração. As relações entre o Estado e o setor privado, com fortes ligações
políticas marcam a história das comunicações brasileiras. Além disto, investimentos
no estabelecimento e expansão dos sistemas de comunicações ocorrem durante
governos militares: no varguismo, a partir da revolução de 1930, se estendendo pelo
período do Estado Novo, e no regime militar, a partir de 1964.
Em relação à radiodifusão as dificuldades financeiras do Estado, ainda no
varguismo, para custear a sua expansão em plano nacional, bem como as pressões
pela abertura do rádio à publicidade (permitindo seu funcionamento em regime
comercial, com provisão de receitas) tornaram mais complexas as relações de
controle estatal sobre o veículo e sua programação, ainda que não se possa falar
em separação de interesses e ausência de influência deste sobre o rádio.
Excetuando-se os períodos ditatoriais a presença dos interesses políticos e
de Estado sobre as comunicações, e o rádio em especial, não se apresenta
imediatamente no controle do conteúdo produzido, mas principalmente no controle
do acesso às emissoras, através da política de concessões.
Em relação às concessões, os sistemas de exploração da radiodifusão
(ORTRIWANO, 1985) são basicamente dois: 1) O Estado detêm o monopólio e
explora diretamente a radiodifusão através de uma ou mais empresas estatais; 2)
Coexistem empresas estatais e privadas. O Estado concede temporariamente a
terceiros o direito de transmitir.
No Brasil temos a prevalência do modelo de coexistência de empresas
públicas e privadas. Como afirma Ortriwano,
A política adotada pelo Brasil para a exploração da radiodifusão é baseada na teoria da responsabilidade social pela iniciativa privada, em que o Estado procura estabelecer princípios que garantam o uso
98
social dos meios de comunicação, tornando-os responsáveis pelo conteúdo da programação que transmitem e suas conseqüências. O estado concede uma autorização para que entidades executoras de serviços de radiodifusão possam explorar comercialmente os veículos. (ORTRIWANO, 1985, p. 53)
Compete então ao Estado conceder o direito de transmissão a terceiros por
um prazo pré-estabelecido. Durante muito tempo essa foi uma atribuição exclusiva
do Presidente da República. Ortriwano (1985) observa que
No Brasil, desde o advento da radiodifusão, em 1922, todas as constituições foram unânimes em afirmar a competência da União para explorar os serviços de radiodifusão, diretamente ou mediante concessão, a prazo fixo e com direito a rescisão pelo poder competente não havendo qualquer interferência do poder Legislativo ou judiciário nesse processo de concessão. A decisão é uma prerrogativa exclusiva do Presidente da República. Convivem entre nós emissoras estatais e comerciais com ampla predominância quantitativa destas sobre aquelas (ORTRIWANO, 1985, p. 53).
A Constituição de 1988 afirma em seu capítulo V, dedicado à comunicação
social, artigo 223, que: “compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão,
permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens,
observando o princípio da complementaridade dos sistemas privados, públicos e
estatais”. Contudo, rompe a exclusividade dada nas cartas anteriores ao chefe do
executivo e designa como necessária a apreciação do Congresso Nacional. Assim, o
“ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos legais após deliberação do
Congresso Nacional, na forma dos parágrafos anteriores”.
A concessão é obtida num processo de concorrência pública entre os
interessados na execução dos serviços de radiodifusão76, o que vale tanto para os
canais comerciais, comunitários ou educativos, passando depois pela apreciação do
Presidente da República e do Congresso Nacional.
Além dos órgãos envolvidos no processo de outorga, como o Ministério das
Comunicações, existem também os órgãos de controle e fiscalização, como a
Agencia Nacional de Telecomunicações. 76 Desde 1995 as concessões de radiodifusão passam a seguir as regras da Lei de Licitações (Lei 8.666/93).
99
A criação do Ministério das Comunicações é bastante recente no Brasil, data
dos anos 60. Antes dele existia o Conselho Nacional de Telecomunicações, criado
em 1961, e diretamente subordinado à Presidência da República, responsável pelos
processos de concessão77. Em 1962 é instituído o Código Brasileiro de
Telecomunicações, criando uma regulação para a área, até então descoberta por
uma legislação específica. Somente em 1967, considerando as telecomunicações
como área estratégica para o projeto de integração nacional é criado o Ministério das
Comunicações. No mesmo período é criado o Departamento Nacional de
Telecomunicações (DENTEL), responsável pela fiscalização das telecomunicações e
subordinado ao Ministério.
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) substitui o DENTEL, a
partir do início dos anos 2000 nas funções de fiscalização das telecomunicações,
incluindo é claro a radiodifusão. Com a intensificação do número de emissoras não
outorgadas a Anatel aparece para estas emissoras, junto com a Polícia Federal,
como uma das principais antagonistas ao seu funcionamento.
De fato o “combate a estações não outorgadas” é um dos temas específicos
dos relatórios anuais da “Superintendência de Radiofreqüência e Fiscalização” da
Anatel, denominados “Relatórios de Gestão da Superintendência de
Radiofreqüência e Fiscalização” (RGSRF). Uma análise dos relatórios publicados no
período de 2002-2005, oferece o seguinte panorama da ação da Agência:
Números do combate às entidades não-outorgadas: denúncias, ações de combate,
lacre de emissoras Ano Número de denúncias de
entidades não outorgadas Número de ações de
combate Número de rádios
lacradas 2002 8.153 5.300 3.200 2003 11.800 6.627 4.412 2004 7.917 4.089 2.443 2005 4.400 3.900 1.800 Fonte: Relatórios de Gestão da Superintendência de Radiofreqüência e Fiscalização (RGSRF) dos anos 2002, 2003, 2004, 2005.
77 Naquele período as concessões eram válidas por apenas três anos, embora fossem renováveis. A liberação de uma nova outorga ou a renovação da já existente era atribuição do presidente da república, o que dava enorme poder de negociação política.
100
Em 2002 o Relatório faz referência ao crescimento das denúncias e
especula sobre as causas do aumento, entre eles a confiança no trabalho de
interrupção das atividades das emissoras realizado pela Agência78:
Em relação ao ano anterior, houve, em 2002, crescimento de 60% no número de denúncias sobre o funcionamento de entidades não outorgadas – que passaram de cinco para oito mil. Tal evolução mostra confiança da sociedade no trabalho da Anatel: as pessoas sabem que as denúncias serão apuradas e as entidades não outorgadas lacradas. (RGSRF 2002, p. 20)
O Relatório de 2003 também registra um crescimento no número de
denúncias, mas credita o fato não mais a consolidação das ações da Agência, mas
ao aumento do número de não outorgadas:
O crescimento decorre, em parte, do acréscimo número de estações clandestinas. O crescimento do número de denúncias deveu-se, também, e principalmente, pelo numero expressivo de interferências causadas pelas não-outorgadas. (RGSRF, 2003, p. 19)
Já em 2004 o relatório registra uma diminuição do número de denúncias,
mas traz pela primeira vez uma referência direta as rádios comunitárias e afirma
que,
74,5% das ações de fiscalização relacionadas a estações de radiodifusão, ditas “comunitárias” funcionavam com potência maior que 25 watts, ou seja, com uso de potência superior à regulamentada para o funcionamento das rádios comunitárias. (RGSRF, 2004, p. 10)
Em 2005 a tendência de queda no número de denúncias se mantém, o
relatório desse ano, entretanto e, pela primeira vez, faz menção não apenas as
questões técnicas de operação das emissoras, como, por exemplo, a potência
superior a 25W, mas também a programação das rádios: 78 Sobre o papel exercido pela Polícia Federal o relatório afirma: “Em mais de 2,4 mil atividades de combate ao funcionamento de entidades não-outorgadas, 46% do total – os equipamentos usados foram lacrados pelos colaboradores da Anatel. Em 7% das ações, a Anatel teve o apoio da Polícia Federal em atividades de busca e apreensão dos equipamentos usados em transmissões irregulares” (p. 21).
101
Das 1,8 mil estações interrompidas de janeiro a setembro, foi possível medir a potência de 1.143 estações. Destas, 849 eram estações não-outorgadas associadas ao serviço de radiodifusão, sendo 368 (43,3%) funcionavam com a potência superior a 25W e as demais, em quase sua totalidade praticam proselitismo político e exploram comercialmente o serviço, descaracterizando, desta maneira, a condição de uma rádio comunitária (RGSRF, 2005, p. 10).
No Ceará, assim como em outros estados, o fim das Delegacias do
Ministério das Comunicações, abre espaço para uma presença mais efetiva da
Anatel nos serviços de fiscalização. Como afirma o responsável79pelo setor de
fiscalização da Agência:
A partir dos primórdios da Anatel e até um pouco antes, no Ministério das Comunicações havia uma delegacia, Delegacia do Ministério das Comunicações, lá havia um setor de fiscalização e mesmo quando não existiam as leis começaram a aparecer as rádios não outorgadas, que eram clandestinas no serviço de rádio difusão ainda não designado comunitário, embora que eles se auto- denominassem assim, então a fiscalização sempre foi voltada para o espectro, havendo qualquer emissão não autorizada do espectro, isso é feito ou através de denúncia ou do nosso monitoramento, a gente tem um sistema que vasculha o tempo inteiro o espectro e qualquer emissão que não bata com os nossos registros elas são fiscalizadas.
No Estado do Ceará a maioria das rádios de baixa potência que passa a
operar em freqüência modulada surge a partir do final dos anos 1990. A emergência
dessas emissoras é acompanhada pela Agência como um fenômeno relacionado à
aprovação da Lei 9612/98, como afirma o representante da Anatel:
Elas começaram a realmente existir com maior freqüência a partir de 1998. Embora antes se verificasse, eu acho que um pouquinho antes da lei aqui no Ceará a gente tinha um demonstrativo razoável e, logo após a Lei, várias entidades entram com o pedido no Ministério. Uma quantidade grande de entidades e, é claro que o Ministério não respondia tão rápido quanto era esperado, e as entidades entravam também na justiça conseguindo liminar.
79 Entrevista concedida a autora em 17/01/2005.
102
Embora em situação de embate com os órgãos de controle como a Anatel,
as rádios comunitárias sempre buscaram o reconhecimento legal e a proteção do
Estado. O que só é possível quando a presença das experiências se transforma em
pressões sobre o poder público para o reconhecimento da radiodifusão em baixa
potência que já vinha sendo praticada no país através da organização das rádios
comunitárias em diversas entidades, entre elas: Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária, ABRAÇO; Associação Mundial Rádios Comunitárias,
Amarc; Rede Brasil Cidadã, RBC; Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação, FNDC; Associação Nacional Católica de Radiodifusão Comunitária,
Ancarc e União Cristã Brasileira de Comunicação Social, UCBC, entre outras.
2.6 A ABERT, a ACERT e as rádios comunitárias
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, ABERT, é a
entidade que congrega desde 1962 os proprietários de canais de rádio e televisão
no Brasil. Antes disso, como afirma no “site”, “no inicio dos anos 60, os empresários
da Radiodifusão estavam reunidos em sindicatos, mas sua atuação era regional, não
sistemática e não espelhava o poder da categoria”80. Segundo a própria entidade,
sua criação resultou da necessidade de uma defesa mais sistemática dos interesses
do setor durante a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações, em função
dos vetos governamentais ao projeto.
Hoje a ABERT tem mais de 2.000 emissoras filiadas e várias associações
regionais, entre elas a ACERT, representante do setor no Ceará. Desde o seu
nascimento a ABERT possui fortes ligações lobistas com parlamentares na defesa
de seus interesses. Seguindo essa tradição, em 08 de dezembro de 2005 foi
instalada a “Frente Parlamentar da Radiodifusão no Congresso Nacional”, composta
por mais de 130 parlamentares, a Frente é presida pelo deputado Ivan Ranzolin do
Partido Frente Liberal, PFL, de Santa Catarina. Entre os deputados que integram a
Frente 24 são membros da Comissão Ciência Tecnologia Comunicação e
Informática, CCTCI, e seis são, além de membros da comissão, concessionários de
80 http: www.abert.org.br.
103
canais de radiodifusão81. Entre os alvos da Frente encontra-se o Serviço de
Radiodifusão Comunitária, como informa a matéria da Agência Câmara82:
A habilitação de novas rádios comunitárias, de acordo com a Frente, precisa sofrer restrições. A autorização não deveria ser concedida, por exemplo, em localidades de pequeno porte que já disponham de emissoras comerciais ou em localidades com grande concentração de serviços de Radiodifusão. Para evitar a instalação de emissoras piratas, a Frente propõe que a venda de equipamentos transmissores, incluindo aqueles destinados às emissoras comunitárias, só possa ser feita a entidades jurídicas que tenham obtido autorização prévia do Ministério das Comunicações. Na avaliação da Frente Parlamentar, o Ministério das Comunicações precisa de uma estrutura adequada de fiscalização das rádios comunitárias nos estados. A Frente também sugere que o ministério estabeleça convênio com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para uma prática mais rotineira de fiscalização. Para evitar infrações por parte das emissoras comunitárias, os Parlamentares propõem um conjunto de punições, incluindo multa, interrupção do funcionamento e cassação do ato de outorga.
O caráter lobista presente já na gênese do que seria a Associação é
expressa na narrativa de sua fundação: “João Calmon liderou um grupo pequeno,
mas inteligente, sólido e ativo, que reuniu subsídios para a discussão sobre os vetos
e criou o que hoje se chamaria de lobby do empresariado no Congresso”83.
Esse “lobby” permanece ativo e, como vimos, durante o processo de
negociação do projeto de radiodifusão comunitária no Congresso Nacional a ABERT
participou ativamente da defesa de um projeto que subordinasse os interesses da
radiofonia comunitária aos da radiofonia comercial.
Aprovada a Lei a ABERT traça uma estratégia de repressão e controle
destas emissoras. Em suas páginas na Internet tanto ABERT quanto suas alfilaidas,
incluindo-se aí a ACERT mantêm formulários para denuncia de “rádios piratas”. Na
página da ABERT, depois da apresentação de um texto intitulado “Denuncie a
radiodifusão ilegal”, há um “link” do “departamento jurídico”, onde a denúncia pode
81 “Uma frente contra as rádios comunitárias”, texto de Vinício A. de Lima publicado no “site” Observatório da Imprensa em 13/12/2005. Disponível em: http://observatório.último segundo.ig.com.br/artigos Acesso em: 14 dez. 2005. 82 “Frente lançada hoje quer novas regras para radiodifusão”. Agência Câmara, 7/12/2005. 83 http: www.abert.org.br.
104
ser encaminhada. Como será visto adiante, a ABERT e ACERT ganham muita
visibilidade nos jornais locais quando invocam o controle das radiocom.
Em um balanço sobre o papel da ABERT nos dias atuais o controle das
rádios de baixa potência aparece como uma das prioridades:
Hoje a ABERT tendo apreendido em suas lutas históricas o valor da unidade, trabalha o dia-a-dia da Radiodifusão e participa ativamente de importantes questões como, por exemplo, a elaboração da nova lei de comunicação eletrônica de massa que deverá substituir o antigo código brasileiro de televisão, no que diz respeito a radiodifusão. A associação luta ainda contra a proliferação das rádios ilegais, que sob a alcunha de “comunitárias” operam sem licença do Governo Federal. Com a ajuda de denuncias encaminhadas pela ABERT, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) lacrou em 1998 mais de 500 emissoras ilegais e em 1999, mais de 3 mil”84 (grifos meus).
O número de emissoras lacradas pela Anatel é anunciado como um trunfo
da própria ABERT, numa sugestão da parceria entre a entidade e a Agência
reguladora. Nessa parceria a ABERT coleta as denúncias que são investigadas pela
Anatel.
Já a ACERT existe desde 1977 e reúne hoje “cinco geradoras de televisão,
com sede em Fortaleza e 121 emissoras de rádio AM e FM, as quais 23 instaladas
em Fortaleza”. As rádios instaladas em Fortaleza e filiadas a ACERT são as
seguintes: AM Cidade, Ceará Rádio Clube, FM Jangadeiro, Rádio Costa do Sol,
Rádio Verdes Mares AM, Rádio FM 93,Rádio Oi FM, Rádio 100 FM, Rádio AM do
Povo, Rádio Assunção, Rádio Atlântico Sul FM, Rádio Calypso FM, Rádio Dragão do
Mar, Rádio FM Cidade 91,7, Rádio Iracema, Rádio Jovem Pan, Rádio Liderança,
Rádio Maxi FM, Rádio Tempo FM e Rádio Universitária, esta última uma rádio
educativa ligada a Universidade Federal do Ceará..
Assim como na página da ABERT na Internet, a ACERT também mantêm
mecanismos de controle às atividades das radiocom através de um espaço para
denúncias. Em sua página85 a partir da chamada “Rádio Pirata: se você conhece
84 http: www.abert.org.br. 85 http: www.acert.org.br.
105
alguma rádio pirata em sua região, denuncie aqui”, o internauta é enviado a um
protocolo onde informa pormenores da denúncia que é encaminhada a Anatel:
O Brasil, com 5.941 canais em operação é o segundo maior mercado de
rádio do mundo, ficando atrás apenas dos EUA, com 12.000 canais (LOPES, 2005,
p. 40). Existem 2165 canais de FM e 1856 rádios comunitárias com licença
provisória ou definitiva.
Vários estudos apontam a concentração dos meios de comunicação no
Brasil. A forma como se organizou historicamente o gerenciamento dos veículos de
comunicação e as concessões, bem como o papel privilegiado que os meios de
comunicação têm no campo cultural, simbólico, político e ideológico estão entre as
causas dessa concentração, onde a propriedade familiar é uma das marcas deste
mercado.
A pesquisa, “Os donos da mídia”86, realizada entre 2001 e 2002 pelo
“Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação” para mapear o que foi
denominado pelo Instituto de “as bases de poder econômico e político construído a
partir das redes privadas de televisão no Brasil”, aponta a existência de um circuito
86 Relatório da Pesquisa disponível em http//www.fndc.org.br.
106
de concentração da propriedade dos meios que se estabelece a partir das principais
de redes de televisão do país.
Assim, seis redes privadas (Rede Globo, Rede SBT, Rede Record, Rede
Bandeirantes, Rede TV! e Rede CNT) dominam o segmento de tv, vinculado a 372
outros veículos, entre rádios e jornais. A comparação entre as redes privadas e as
redes públicas explicita a concentração da propriedade. As redes públicas,
segmentadas e grupos independentes somam um total de 135 veículos, com 35
emissoras de TV e 102 outros veículos. Já as redes privadas somam 668 veículos,
com 296 emissoras de tv que se soma aos 372 outros veículos já mencionados.
Grande parte dos principais grupos regionais de mídia é afiliada da Rede Globo, que
está presente em todos os estados.
O estudo aponta ainda que a tv e o rádio são as únicas fontes de informação
da maioria dos brasileiros. A tv está em 87,7% das residências e 88% dos brasileiros
ouvem rádio diariamente. Mais de um terço dos brasileiros, 39% não têm revista ou
só tem acesso uma vez a cada três meses, e quase metade, 48 % dos brasileiros
não lêem jornal ou só tem acesso ao meio uma vez por semana. A tv concentra
56,1% do total de verbas publicitárias, enquanto o rádio fica com apenas 4,9% desse
total.
No Ceará a disputa de mercado entre os diferentes tipos de rádio é acirrada.
Algumas emissoras publicam anúncios nos principais jornais da cidade, como os
reproduzidos abaixo87:
87 Os anúncios foram publicados no mesmo período, durante o mês de maio de 2005.
107
Figura 1: Anúncio publicado no Caderno Política do Jornal O Povo, no dia 05 de maio de 2005.
Figura 2: Anúncio publicado no caderno Vida e Arte do jornal O Povo no dia 21 de maio de 200588.
Figura 3: Anúncio publicado no caderno Política do Jornal O Povo, no dia 22 de maio de 2005.
88 Durante algum tempo a rádio Dom Bosco FM funcionou como emissora comunitária, sendo inclusive filiada a Arcos-CEPOCA, conseguindo posteriormente a concessão de rádio educativa.
108
Figura 4: Anúncio publicado no caderno Vida e Arte do jornal O Povo no dia 25 de maio de 2005.
Mesmo premidas pela situação de ilegalidade, as rádios comunitárias
também desenvolvem mecanismo de publicização de suas atividades. Circulando
em espaços menos consagrados e de reverberação menores que os grandes jornais
do Estado, adesivos, “sites”, e jornais comunitários ampliam a visibilidade dessas
emissoras, disputam e despertam os interesses da audiência. Os materiais abaixo
são exemplos desse modelo de divulgação:
Figura 5: Adesivo de divulgação da Rádio Comunitária Círculo FM. O interessante nesse material é que ele não divulga a emissora como uma emissora comunitária. A grande ênfase
está na associação entre a Rádio Círculo e o segmento musical de forró.
109
Figura 6: Panfleto religioso usado também pra a divulgação da Rádio Plenitude 106,3, “24h de louvores no ar”, ligada a Igreja Pentecostal Jesus é a Aliança.
Figura 7: Adesivo de divulgação da Rádio Comunitária 103,5 Antônio Bezerra.
110
Os anúncios da radiocom tentam ganhar uma audiência historicamente
concentrada na mão de poucos grupos.
As conseqüências políticas da concentração dos meios aparecem em alguns
estudos. Como afirma Del Bianco (1999, p. 193-194), os critérios políticos usados na
distribuição dos canais de radiodifusão pelos militares e pelos presidentes da Nova
República criaram uma divisão entre “os empresários que vivem do negócio do rádio
e os políticos e pastores que exploram o veículo para autopromoção ou divulgação
de crenças”. O governo Sarney “distribui em quatro anos (1985-1989), durante o
período de negociação da constituição de 1988, mais de 900 canais, 632 FMs e 314
AMs. Entre 1987 e 1988 distribuiu em média 32 canais de FM por mês” (Del Bianco,
1999, p. 199).
Embora tenham ocorrido mudanças na política de concessões como
discutido anteriormente, durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso,
“até setembro de 1996, foram autorizadas 1.848 licenças de RTV, repetidoras de
televisão, sendo que 268 para entidades controladas por 87 políticos, todos
favoráveis a emenda da reeleição” (BAYMA, 2001). Ainda segundo os dados
apresentados por Bayma, nesse período têm-se a seguinte composição política para
a propriedade dos meios:
% de concessões de rádio e televisão exploradas por políticos Partidos políticos
Total de concessões
PFL PMDB PPB PSDB PSB
3.315 (100%) 37,5% 17,5 12,5% 6,25 6,25 A base aliada no governo FHC detinha assim 73,75 do total de
emissoras de radiodifusão no país
Vários deputados e senadores membros da Comissão de Ciência
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), responsável pela apreciação dos
pedidos de novas outorgas e renovações eram também proprietários de rádios e
emissoras de televisão. Lima (2005) afirma que “em 2003, os nomes de 16
deputados membros da CCTCI aparecem no cadastro do MiniCom [Ministério das
Comunicações] como sócios e/ou diretores de 17 concessionárias de rádio e 6 de
111
televisão – inclusive o próprio presidente da comissão, deputado Couraci Sobrinho
(PFL- SP). Seis desses deputados eram do PFL, três do PL, dois do PP, um do PSL,
um do PSDB e um do PTB”.
Já em 2004, ainda segundo Lima, dos 33 membros da CCTCI, 15 eram
sócios ou diretores de concessionárias de rádio e/ou tv.
A presença destes políticos demonstra que a resolução das questões
relacionadas ao universo da comunicação social pelo Congresso Nacional está
colonizada por interesses pessoais de políticos ou dos grandes grupos de
comunicação por eles representados. Para defender seus interesses as radiocom
têm de construir no plano da auto-imagem uma representação legitimadora, capaz
de sensibilizar positivamente a opinião pública a favor de suas demandas.
O mesmo exercício, o de elaboração de uma auto-imagem legítima, é feito
pelas emissoras comerciais e suas entidades representativas. O duelo entre a
“imagem de si” e a “imagem do outro”, que se constrói a partir das relações que
travam, é o que será visto no capítulo a seguir.
112
CAPÍTULO III
A CONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS: IMPRENSA E RÁDIO
COMUNITÁRIA
Depois de expor a trajetória que institui as radiocom e seu movimento, este
capítulo discute a formação da auto-imagem de dois grupos: o das radiocom e das
rádios comerciais. A capacidade de representar a legitimidade através de atributos
favoráveis e atribuir ao “outro” qualidades negativas que neguem sua legitimidade,
ocorre de modo relacional. Tomo como material para a análise da formação das
auto-imagens e da imagem do outro os jornais da Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO)89 e os jornais diários “O Povo” e “Diário do
Nordeste”90.
Além da relação da relação entre rádios comerciais e radiocom analiso
também a produção da auto-imagem das emissoras a partir do interior de seu
próprio campo. Neste caso, a composição da imagem de si se refere menos as
pressões de fora, representadas pelos grupos de comunicação comercial, e mais a
de novos discursos e agentes nesse campo. A análise é feita a partir de um “grupo
de discussão” denominado “rádios livres e comunitárias”, cujo endereço é
Antes, porém, de discutir a produção da auto-imagem a partir destes dois
espaços, a imprensa e a Internet, apresento a visão das radiocom a partir de um
manual escrito para rádios comunitárias, e também um panorama dos trabalhos
89 Os títulos desses periódicos, aqui analisados, não esgotam a produção sobre a temática e fazem parte de um elenco que, embora incompleto, representa uma significativa parte das análises sobre o tema. 90 Os dois jornais fazem parte de grupos empresariais na área de comunicação. O Diário do Nordeste foi fundado em 1980 e integra o grupo Verdes Mares de Comunicação, formado também pela retransmissora de tv Verdes Mares, afiliada da Rede Globo de Televisão no Estado, e as rádios: Verdes Mares AM e FM 93. O jornal O Povo foi fundado em 1927 e é parte integrante do grupo O Povo de Comunicação, formado ainda pelas rádios: AM do Povo, Calypso FM e Rádio Mix FM. A posição destes jornais como parte de grupos econômicos da área de comunicação não é desconsiderada aqui, na medida em que seus interesses são contrários aos das radiocom.
113
sobre o tema. Acredito que eles também são elementos importantes de
compreensão da elaboração da auto-imagem.
A relação conflituosa entre rádios comerciais e radiocom exigirá a
construção de um discurso sobre um campo ainda em formação, o da radiofonia
comunitária. O discurso produzido sobre e pela as emissoras comunitárias permite
entender como, ao longo do tempo, sua trajetória e auto-imagem foi se construindo,
bem como a de seus opositores.
3.1 A Diferença
O que faz a diferença entre as radiocom e rádios comerciais? Em um trecho
do livro “Trilha apaixonada e bem-humorada do que é e de como fazer rádios
comunitárias na intenção de mudar o mundo”91, de Dioclécio Luz (2001, p.13), já
citado anteriormente, destaca o seguinte:
Aqui você fica sabendo que pode e deve fazer rádio diferente. Fica sabendo que a emissora em que você atua deve frisar isto na programação e alertar a comunidade servida pela rádio. Todo o tempo, toda hora: atenção povo do Brasil, gente daqui e dacolá, você está sintonizado numa rádio comunitária, aqui é diferente de uma comercial. Diferente como? Ôxe?! O quadro abaixo [ver anexo 3] mostra as nossas principais diferenças:
Através da avaliação e análise de uma série de temas, considerados na
produção radiofônica, o autor pretende esclarecer o sentido da diferença entre
radiocom e rádios comerciais. Como guia, o manual acena com um repertório de
ações que sedimentariam esta distinção.
A relação com assuntos como a religião, a política, os movimentos sociais, a
busca por audiência, entre outros, seria a norteadora da distinção, criando as
fronteiras capazes de demarcar os diversos modos de fazer rádio, entre eles o das
radiocom. Elencar uma série de relações diferenciadas com temas e agentes é a
91 O autor é militante do movimento de rádios comunitárias, tendo sido membro da primeira diretoria da ABRAÇO. É também dos autores da cartilha “Radiodifusão Comunitária: reforma agrária no ar”. A cartilha ensina a montar rádios e tvs comunitárias e está disponível na Internet em: hhttp;//www.pt.org.br//radiodif.htm
114
forma encontrada pelo autor para marcar um “novo modelo” de fazer rádio, diferente
do que tradicionalmente tem sido feito no Brasil em matéria de radiodifusão. Assim,
além de um mecanismo de distinção política, o guia pode ser lido também como uma
tentativa de constituição de um modelo, de uma forma de fazer rádio que se afirme
como comunitária.
O que o manual oferece é uma interessante representação do lugar e do
papel social de cada forma de fazer rádio. As radiocom sendo apresentadas como
uma alternativa de melhor realizar aquilo que as rádios comerciais já fazem: a
comunicação com sentido de utilidade pública. Através de quatorze pontos o leitor é
levado, através de um movimento de oposições, a perceber a atuação diferenciada
que caracteriza as radiocom frente às rádios comerciais. A marca das rádios
comerciais seria o lucro, sendo seus valores os do mercado. As radiocom, ao
contrário, pautar-se-iam pelo “interesse comunitário”. Essa seria a diferença,
segundo o autor, entre éticas diferentes presentes na maneira de fazer rádio. Mas o
que seria o “interesse comunitário?” Ele é discutido de modo difuso a partir da
caracterização apresentada abaixo.
A “prioridade” das radiocom seria a promoção da “cultura, a arte, a
educação, o desenvolvimento da comunidade” enquanto que nas rádios comerciais
a prioridade seria o lucro. No tópico sobre a “cultura”, Luz esclarece que as
radiocom “estimulam os artistas locais, têm compromisso com a legítima arte popular
e valorizam a arte verdadeira; a boa música brasileira e a música de raiz. Por sua
vez as emissoras comerciais difundem os produtos que a indústria cultural gera”
(LUZ, 2001, p. 13).
No tocante a forma de fazer jornalismo, as radiocom se voltariam para “os
interesses da comunidade e para sua integração, já que debate todos os temas em
profundidade”. As rádios comerciais praticariam um jornalismo “voltado para os
interesses dos ricos, dos patrões, da elite”. O objetivo seria ”fragmentar a
comunidade” (LUZ, 2001, p.13). Em relação à “programação” Luz constrói uma
oposição entre as emissoras comerciais e as radiocom que se baseia na alienação,
produzida pelas primeiras, versus a promoção da inteligência, compromisso das
segundas. (LUZ, 2001, p.14).
115
No quadro criado por Luz a “participação popular” também é analisada. Para
o autor a rádio comunitária não aparece como “porta-voz do povo, ela é o povo”. As
rádios comerciais se apresentam como porta-vozes da população, e a interatividade
criada por certas emissoras, onde os ouvintes são chamados a participar, apenas
ratifica as opções oferecidas pela rádio (LUZ, 2001).
Em relação ao tópico sobre “cidadania”, Luz opõe o estímulo à ação cidadã
desenvolvida pelas radiocom junto a seus ouvintes, à perspectiva adotada pelas
rádios comerciais onde “as pessoas são tratadas como consumidoras”. A
“audiência”, outro ponto tratado no quadro, é considerada secundária nas radiocom,
já que “faz publicidade, mas sobre certas regras éticas” (LUZ, 2001, p. 14). Nas
rádios comerciais a publicidade e audiência são consideradas fundamentais.
Luz apresenta da seguinte forma a relação entre política e radiocom: “aberta
a todos os partidos e candidatos” ao mesmo tempo em que “não tem compromisso”
com estes. Nas emissoras comerciais esta relação estaria assim caracterizada: “tem
prioridade na emissora aqueles candidatos e partidos que tem relações com o dono
da empresa /emissora” (LUZ, 2001, 14).
Em relação à “religião” a marca da diferença entre radiocom e comerciais é,
assim como na política, o afastamento de posturas proselitistas. Assim “as radiocom
não pertencem a nenhuma religião enquanto as rádios comerciais algumas
pertencem a religiões e, deste modo, discriminam outras” (LUZ, 2001, p.15).
Em relação aos “movimentos populares”, afirma Dioclécio Luz (2001, p.15),
no que se refere às radiocom: “Eles [os movimentos sociais] fazem parte da rádio –
no modo como formal ou informal. A RC anuncia as reuniões dos movimentos
populares, divulga manifestos, cobre atos – reuniões, manifestações públicas,
solenidades. Se movimento não é parte da RC, ela é, no mínimo parceira dos
movimentos populares”. Já as emissoras comerciais, afirma, “desqualificam os
movimentos populares. Satanizam eles. Os movimentos populares são tratados
como inimigos da ordem e da lei. São difundidos como formados por baderneiros,
terroristas, agitadores, subversivos e radicais...” (LUZ, 2001, p.15)
Nesta tabela o sentido de distinção procura se apropriar da idéia de “bem”,
expressa pelos diferentes papéis sociais das radiocom em oposição às rádios
116
comerciais. A própria escolha dos tópicos evidencia uma nova pauta para o rádio,
proposta pelas radiocom, como a questão da participação e da relação de parceria
com os movimentos sociais. A “participação” sugerida pelo autor trabalha com a
idéia de que a rádio comunitária é a “voz do povo”, ao mesmo tempo em que aponta
como falsa a participação oferecida pelas rádios comerciais que se apresentam
como “porta-vozes da população”.
É interessante notar que em vários momentos do texto os termos “povo”,
“cidadão” e “comunidade” tornam-se sinônimos, ganham equivalência para explicitar
o que é uma rádio comunitária, para quem ela fala e o que ela objetiva: “a rádio (...)
é o povo, busca no ouvinte sua participação na comunidade como cidadão”, seu
jornalismo “é voltado para os interesses da comunidade” (LUZ, 2001). Se pensarmos
a partir de Brecht (1973), o pressuposto de Luz (2001) é a inversão dos papéis de
emissor e receptor; inversão potencialmente capaz de mudar a compreensão sobre
os meios de comunicação e seu papel social. A parceria com os movimentos sociais
ratificaria a concepção deste lugar social das radiocom, elas próprias integrantes de
um movimento (Movimento pela Democratização das Comunicações)92,
contestatórias e politicamente ativas.
Para Luz (2001), enquanto os valores e as necessidades de mercado
balizam a ação das rádios comerciais, as radiocom se assentam sobre um outro
paradigma e, livres da imposição de mercado, se colocam a tarefa e a imagem de
promotoras de certas virtudes. O sentido de distinção é construído como moralmente
superior e pode ser visto em quase todos os tópicos, onde as radiocom aparecem:
“valorizando a vida”, “promovendo a cultura”, “a legítima arte popular”, “a arte
verdadeira”, fazendo um “jornalismo voltado para os interesses da comunidade”,
profundo, capaz de produzir a “integração da comunidade”. Sua programação
“estimula a inteligência” e o ouvinte a buscar mais conhecimento. Em relação à
“política” e a “religião” sua prática é entendida pelo autor, como “plural” e foge do
proselitismo.
Todos esses sentidos se constroem em oposição às rádios comerciais,
vistas como o avesso das radiocom e de suas virtudes: seus valores são os valores
de mercado, e estes produzem alienação; praticam o proselitismo político e religioso 92 A ABRAÇO é filiada ao Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações.
117
e desqualificam os movimentos sociais (LUZ, 2001). Assim a própria distinção em
relação as rádios comerciais simultaneamente ergue as fronteiras e define o que é e
o que faz uma rádio comunitária.
É interessante lembrar que o esforço de dissimilitude se dá em função de
uma oposição com as rádios comerciais e não há referência explicita às rádios
consideradas “não comunitárias”, mas que se utilizam dessa denominação para
disputar um lugar no mercado da comunicação. Entrentanto a própria instituição das
fronteiras e da diferença em relação às rádios comerciais se constitui como um
parâmetro para distinguir “rádios comunitárias” de “não comunitárias”.
A ênfase na diferença é também o indício de construção da auto-imagem
que as rádios fazem de si. Imagem que, nas disputas internas ao campo, é utilizada
como ferramenta, tendendo a separar os “estabelecidos e os ‘outsiders’” (ELIAS,
2000).
Os sentidos atribuídos à idéia de rádio comunitária são discutidos por uma
série de autores que buscam analisar este fazer. Muitas das ações recomendadas
como integrantes do “modus operandi” de uma rádio comunitária são tornadas ideais
e alçadas à condição de marca destas emissoras por alguns trabalhos. Este tipo de
leitura aparece não apenas em guias como o Luz (2001), mas em alguns títulos que
analisam as radiocom sob diferentes aspectos. Ao mesmo tempo em que mudanças
na trajetória das radiocom acontecem, o olhar sobre elas também se modifica.
Mapeando alguns trabalhos segue-se a trilha das transformações.
Inicialmente a preocupação dos pesquisadores se volta para a compreensão desta
“nova” forma de fazer comunicação, o que ocorre a partir da análise de diferentes
experiências e da própria história do movimento. Os trabalhos de Denise Oliveira
(1994), Cogo (1998), Cecília Peruzzo (1998a e 1998b) e Marisa Meliani (1995) são
representativos deste momento.
Em Fortaleza, já a partir do inicio dos anos 1990, vários trabalhos
monográficos de graduação produzidos no Curso de Comunicação Social da UFC,
um dos berços das radiocom na cidade, abordam o tema da comunicação popular e
alternativa na cidade. Esses trabalhos são registros importantes desse primeiro
momento. São eles: “Buraco do Céu: a caminho da comunicação comunitária”
118
(OLIVEIRA, 1990); “Rádio Comunitária Dom Oscar Romero: igreja e comunicação
popular” (UCHOA, 1993); e “Gente de luta: uma tentativa pioneira de massificação
da comunicação alternativa” (NORÕES, 1993).
Outras pesquisas se voltam para a discussão das relações entre
democratização, exercício da cidadania e emissoras comunitárias. O trabalho de
Fernadez (1998), “Democratização do ar como exercício de cidadania” é
representativo dessa abordagem também realizada posteriormente por Nunes (2000;
2003). Fernandez trata como exercício de cidadania e de democratização com a
“participação local da comunidade” no processo de desenvolvimento local. Já Nunes
(2003) discute como essa possibilidade de exercício da cidadania pode ser
“instrumentalizada” por interesses político-partidários em um processo eleitoral. Em
seu trabalho a diversidade e apropriações da idéia de rádio comunitária por grupos
não vinculados a movimentos de comunicação comunitária já são identificados.
Outros aspectos que não os estritamente políticos passam a ser adotados
para a análise, como a memória no rádio (MATOS, 2000) ou a relação entre cultura
popular e massividade na escuta de uma radiocom (OLIVEIRA, 2002). Mais
recentemente a discussão sobre a própria noção de emissora comunitária e os
diferentes modos de fazer rádio comunitária são tematizados. São representativos
desse momento das discussões os trabalhos de Fuser (2002), Nunes (2000 e 2003)
e Peruzzo (2003).
À medida que a composição do campo das emissoras comunitárias se torna
mais complexa, a diversidade de discursos produzidos sobre as rádios comunitárias
passa a também interessar aos pesquisadores. O trabalho de Costa Jr. (1999) “Da
Clandestinidade à legalidade: o discurso social sobre as rádios comunitárias” trata
da multiplicidade de discursos sobre o que é ser uma emissora comunitária.
Outras abordagens, não apenas no plano da comunicação e da sociologia,
mas também na área do direito passam a ser realizadas, tendo como foco o direito à
comunicação comunitária. Este é o caso do trabalho de Coelho Neto (2002) “Rádio
Comunitária não é crime”, onde o autor, delegado da Polícia Federal, trata, a partir
de um recorte legal não positivista, da criminalização de emissoras não outorgadas.
119
Passados alguns anos da promulgação da Lei de Radiodifusão Comunitária,
a própria Lei, entendida como política pública, passa a ser avaliada. Esse o tema do
trabalho de Lopes (2005) “Política pública de radiodifusão comunitária no Brasil:
exclusão como estratégia de contra-reforma”. A análise dos processos de concessão
permite entender a dinâmica de cerceamento do direito, entendido como uma
estratégia deliberada do Estado de “contra-reforma”. Um mecanismo pensado não
para garantir um direito, mas para dificultar o acesso a ele.
Ao analisar as rádios e o movimento de radiocom estes trabalhos acabaram
por constituir representações sobre estas emissoras. Tais representações conferem
significado à prática das radiocom e proclamam, a partir da análise de algumas
experiências, um campo de ação válido e reconhecível como pertencente às
radiocom. Nesse sentido as pesquisas acabam por criar um quadro de legitimação e
delimitação de fronteiras.
Inicialmente, os trabalhos constroem um ambiente de catalogação de
convergências: elementos que fazem parte da prática das emissoras são indícios de
sua existência e da formação de uma unidade, de um campo que partilha regras
comuns de atuação e promove a construção de uma identidade. Logo em seguida, a
percepção de que existem práticas divergentes salta aos olhos dos pesquisadores e
passa a compor o próprio objeto da pesquisa. Podemos perceber algumas
orientações nesta literatura: estão presentes elementos normativos e o enfoque
político é evidente. É possível perceber também o processo de constituição de
fronteiras, já aludidas no capítulo anterior.
As radiocom nos últimos anos cresceram numericamente e este crescimento
representa a apropriação de uma fatia do espaço mais amplo das comunicações, o
que acaba por constituir um ambiente próprio de ação cujas regras ainda estão em
fase de definição e por isso passíveis de disputas sobre seu sentido e de mudança.
O fato de a trajetória das rádios estar associada aos movimentos sociais e
particularmente a uma causa específica – a democratização das comunicações no
país -, faz com que elas sejam percebidas como objetos de pesquisa que guardam
um potencial político e ideológico enorme. Tal percepção parece estar presente em
muitos dos trabalhos realizados.
120
3.2 “Um exagero de democratização”: As rádios comunitárias na imprensa cearense
Desde os anos 1980 as radiocom estão presentes nos principais jornais
diários de Fortaleza, “O Povo” e “Diário do Nordeste”. A visibilidade que recebem se
relaciona à ação institucional da Prefeitura de Fortaleza e da Universidade Federal
do Ceará que dinamiza a criação de rádios naquele momento. Entretanto, também
contribui para este fato a própria visibilidade que estas emissoras passam a ter nos
bairros onde se instalam93.
Encontrei nos arquivos do jornal Diário do Nordeste, em uma edição de 1983
a primeira matéria sobre uma rádio não outorgada, sob o título “Informação pirata:
sucesso de uma rádio FM na Aerolândia”. A matéria afirma o seguinte:
Sem potência suficiente para ser captada pelo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), mas com muito entusiasmo e um embaladíssimo programa de rock, a ‘Rádio Local Fm’- imaginada e constituída pelo jovem Francisco Glauco da Silva, 15 anos – vem levando alegria a alguns dos moradores das ruas Capitão Olavo com Brigadeiro Vilela e adjacências.
Embora o tom da matéria seja positivo e interessado, o medo das instâncias
de controle do Estado, representada pela fiscalização, está presente. Assim se
informa:
Tão logo viu a reportagem Glauco passou a temer pela sua rádio. Tanto é assim que perguntou se ‘algo vai acontecer’ .O Dentel, através do senhor Brígido Silveira, disse que toda rádio tem de ter um projeto: ’As finalidades e planos técnicos tem de ser avaliados e posteriormente, se for o caso, aprovados’.
Quatro anos depois, em 1987, uma outra notícia dá conta da existência de
mais uma emissora não comercial: “Jardim Iracema inaugura hoje a sua emissora: ‘A
voz da união’”. Em 1988 nova matéria apresenta as rádios comunitárias como uma 93 É importante considerar como hipótese explicativa dessa visibilidade o lugar social e o trânsito junto à imprensa escrita e aos meios de comunicação que as pessoas envolvidas na criação das primeiras radiocom tinham.
121
alternativa de comunicação para comunidades carentes. O título reportagem é
exatamente “Rádio comunitária é alternativa”.
A notícia reproduz a fala de um dos integrantes da “Rádio Comunitária da
Barra do Ceará: a nossa população agora pode reivindicar usando um meio de
comunicação alternativo. Apesar de estar funcionando a pouco tempo, tem mostrado
bons resultados e a tendência é melhorar ainda mais”. A rádio é apresentada como
uma das ações da Secretaria de Imprensa e Relações Públicas da Prefeitura de
Fortaleza que “teria como objetivo resgatar a participação da comunidade no
processo comunicativo, que era tão usado nos tempos das radiadoras espalhadas
nos mais diversos bairros da capital”.
Nesse momento as rádios são serviços móveis que se deslocam por alguns
bairros da cidade, a matéria explica seu funcionamento: “Bruno afirmou que a Rádio
Comunitária funciona numa Kombi cedida pela Superintendência Municipal de Obras
e Viação (SUMOV), conhecida também como Unidade Móvel. ‘O sistema é simples,
são alto-falantes e um microfone. O mais importante são as propostas levantadas
pelos moradores”. Embora a matéria faça referência a precariedade técnica, destaca
como dado mais importante o sentido participativo da experiência. Ganham relevo
no texto dois elementos muito presentes na leitura positiva das radiadoras nesse
primeiro momento: a participação e os vínculos estreitos entre moradores e rádio.
Já em 1989 a chamada é a seguinte “Comunicação alternativa apresenta
bom resultado”. Nesse momento inicial da cobertura das emissoras não comerciais
pela imprensa as matérias são apenas informativas. Há um tom positivo que
perpassa as notícias sobre a existência de uma emissora e sua relação com o
bairro. Ainda que essa relação nem sempre seja amistosa, como é o caso da “Rádio
Voz do Pirambu”, fechada pela polícia a pedido da comunidade que, através de um
abaixo-assinado pede um controle da poluição sonora.
Outro conflito ocorre entre a Rádio “Buraco do Céu” e um dos moradores do
bairro do Pirambu, onde a rádio estava instalada. O motivo é também a poluição
sonora. A questão recebe destaque da imprensa, que cobre uma reunião de
moradores onde o tema é debatido. O resultado da reunião é que,
122
Depois de ouvirem as colocações dos representantes da Associação, de acordo com Assis Amâncio [então presidente da Associação de Moradores], os moradores decidiram dar total apoio à direção da rádio comunitária. Eles acharam que a posição desse morador não representava a verdadeira realidade da comunidade. ‘Estamos documentados para participar de uma audiência com a coordenadora do Serviço de Defesa Comunitária, Socorro França, que será realizada no dia 3 de abril’, argumentou.
As emissoras funcionam em condições bastante precárias. Em alguns casos
a falta de estrutura técnica suficiente é a causa dos problemas, ou, como neste caso,
parte da solução. A matéria esclarece, a partir da fala de um integrante da rádio, a
respeito da reclamação do morador: “Ele reclama que trabalha à noite e dorme mal
durante o dia. Acontece que nós instalamos a torre da rádio em cima de uma
‘castanhola’ [uma árvore] medindo cerca de 20 metros de altura. Quem mora perto já
não é mais incomodado”.
O processo de cobertura das rádios pela imprensa se faz acompanhar de
um simultâneo procedimento de qualificação e classificação das emissoras. Assim,
em seis anos de cobertura, diferentes denominações são usadas no tratamento
dado as rádios: “pirata”, “alternativa”, “comunitária”. Essas denominações revelam
diferentes concepções e avaliações sobre o lugar e papel dessas emissoras. No
início da década de 1990, o tom informativo continua e as rádios passam a ser
chamadas de populares ou comunitárias.
A matéria “Rádio comunitária volta ao ar”, de 18/12/89, trata da visita do
então Secretário de Segurança Pública do Estado, Moroni Torgan, à comunidade
Buraco do Céu para discutir o encerramento definitivo das atividades da Rádio
Comunitária de mesmo nome. O texto explicita como a decisão de fechamento da
emissora foi revertida em função da mobilização em torno de seu papel social.
Participaram do encontro representantes da União das Comunidades da Grande Fortaleza, União das Mulheres Cearenses, Comissão dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, lideranças comunitárias, estudantes e sindicalistas. (...) a reunião foi aberta com a palavra dos representantes do movimento popular. ‘Cada um deles ressaltava a importância da rádio para a comunidade. Os moradores do Buraco do Céu também disseram ao secretário, que as denúncias segundo as quais a rádio incomodava às famílias do bairro, não tem fundamento. (...) Moroni Torgan disse que a rádio poderia voltar a
123
funcionar, e sugeriu que os moradores debatessem a questão do horário de funcionamento.
A afirmação dessa denominação das emissoras, “comunitárias”, pode se
relacionar com uma outra percepção de seu papel. A década de 1990 se pauta pela
discussão sobre o local e o global, construindo um ambiente de forte valorização da
idéia de comunidade e das relações sociais que parecem só serem possíveis nesse
espaço (BAUMAM, 2003). As emissoras deixam de ser identificadas exclusivamente
com as lutas populares, se autonomizando e buscando uma outra âncora de
significação presente na idéia de comunidade, que parece evocar simultaneamente
a referência ao local e a determinadas relações, sem a necessária vinculação a um
universo de lutas políticas. Embora a discussão sobre o direito a voz, intrínseco à
existência das radiocom, seja eminentemente político.
No trajeto do tratamento conferido as radiocom é possível perceber também
que o espaço que ocupam vai se convertendo gradativamente na criação de um
campo com problemas próprios. A relação com as localidades, com o DENTEL, a
Polícia Federal, as dificuldades financeiras, a problemática da legalidade, a relação
com a política partidária, a relação com as emissoras comerciais, etc, estão
presentes na cobertura que a imprensa lhes dá.
Em fevereiro de 1990, entre os dias 21 a 24 o jornal Diário do Nordeste
publica uma série de matérias sobre “rádios populares”. Os temas abordados estão
presentes nas chamadas: “Rádios populares: Fortaleza já conta com vinte emissoras
no ar”; “Dificuldades técnicas de início”; “As emissoras ainda não tem situação
legalizada”; “repórteres têm destaque na programação variada” e “Emissora das
Goiabeiras é exemplo para outras”. O fato de o jornal lhe dedicar uma série de
reportagens parece ser expressivo do espaço e atenção que passam a ganhar as
radiocom.
A série expressa não apenas o reconhecimento da existência das rádios,
chamadas de “populares”, mas reflete também o reconhecimento dos problemas que
naquele momento as rádios enfrentavam. Já aparecem questões como a legalização
das emissoras, o espaço ocupado pelas rádios na cidade, a relação com um modelo
124
de comunicação (entendido como uma fórmula diferente em forma e conteúdo
daquelas apresentadas pelas rádios comerciais), entre outros.
Até 1996 as rádios aparecem na imprensa com uma cobertura que aborda
estes temas, como é possível ver no quadro abaixo:
Quadro 2: Matérias publicadas no Jornal O Povo e Diário do Nordeste entre
1990-1995 sobre rádios populares e comunitárias
Jornal Data Matéria DN 12/06/90 "Comerciante ajuda rádio popular para ter a torre" DN 25/08/91 "Rádio Comunitária instalada no Edson Queiroz presta serviço" DN 08/12/94 "A voz do Pirambu está calada" O Povo 05/12/94 "Delegada do 7o DP manda retirar do ar rádio comunitária Voz do
Pirambu" DN 02/05/94 "Uma barulhenta útil" DN 25/02/94 “Irradiadoras voltam a fazer sucesso nos bairros de Fortaleza. A
comemoração se deu com o aluguel de uma rádio de Maracanaú (Pitaguary) que transmitiu dois programas da emissora”.
O Povo 28/01/95 "Emissora clandestina é autorizada a funcionar" DN 07/07/95 "Rádios Comunitárias criam Associação"
Logo em seguida, já a partir de 1996, as rádios comunitárias, como então
são denominadas, passam a ser retratadas como agentes de disputa. Esse
momento coincide com o processo de sua organização com vistas à aprovação da
lei de radiodifusão comunitária. Nesse período já se registram em todo o Brasil a
existência rádios comunitárias operando em freqüência modulada. Antes operando
através de alto-falantes as rádios não causam incômodo. Uma vez disputando o
espaço da radiodifusão comercial na faixa de freqüência modulada a discussão
sobre a regulação e o controle crescem, culminando com a lei que regularia essas
iniciativas.
Mas o que se disputa? As matérias assinalam a busca de espaço e de
legitimidades, principalmente no plano legal. A visibilidade da disputa também é um
elemento importante a considerar, já que o espaço da imprensa começará a ser
usado tanto pelas radiocom quanto pelos grupos de radiodifusão comercial para
influenciar a opinião publica no debate sobre a legalização da radiodifusão
125
comunitária, que se torna premente com a discussão no Congresso Nacional de uma
lei de radiodifusão comunitária. Observe o quadro:
Quadro 3: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste em 1996 sobre rádios comunitárias
Jornal Data Matéria O Povo
15/12/96 "Rádios Comunitárias de Fortaleza querem maior alcance e criticam projeto para regulamentação"
DN 18/05/96 "Relator apresenta parecer sobre radiodifusão de pequeno porte" DN 14/06/96 "Rádio Comunitária em debate na audiência pública do dia 17" DN 28/07/96 "Começa disputa pela legalização das rádios comunitárias" DN 07/11/96 "Rádios Comunitárias podem funcionar dentro das normas"
Neste momento as reportagens dão menos ênfase ao trabalho das
emissoras nos seus bairros e comunidades, como aconteceu num primeiro
momento, para centrar-se na articulação e no embate que protagonizam nos
espaços públicos pelo reconhecimento e pela legalização. A busca por “maior
alcance, a crítica ao projeto de regulamentação”, a discussão aberta sobre a
“legalização” e a possibilidade de funcionar desde que “dentro das normas”, dão
outro rumo ao olhar sobre as rádios. Para além de suas comunidades, isoladamente,
as rádios são vistas como um movimento, com organização e ação política definidos
e reconhecidos, embora alvos de ataque.
A partir de então é através da idéia de legalidade que elas passarão a ser
observadas pela imprensa. Há uma série de termos associados a esta conjuntura:
“questionadas”, “debatidas”, “interditadas”. As expressões revelam a situação de
negação das rádios, ao mesmo tempo de confronto dessa negação. Expressões que
se notabilizarão nos anos seguintes ganham seus primeiros registros, como “rádio
pirata”. Assim, em 1997 a expansão das radiocom para o interior, a interdição de
emissoras, as audiências e debates sobre as rádios são o tema das páginas a elas
dedicadas. Observe:
126
Quadro 4: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste em 1997 sobre rádios comunitárias.
Jornal Data Matéria DN 21/02/97 "Rádio Pirata Titã FM é interditada" O Povo 22/05/97 "Rádios Comunitárias são abertas no Sertão Central" O Povo 14/06/97 “Engenheiro crítica excesso de rádios comunitárias” DN 13/12/97 "Audiência debate Rádios Comunitárias"
Entre estas matérias uma merece destaque. Publicada pelo O Povo de
14/06/1997, ela cobre a 3ª Convenção Anual da ACERT e sua chamada é
“Engenheiro critica excesso de rádios comunitárias”. Nela ganha destaque a fala do
engenheiro Cláudio Young, diretor de uma empresa de telecomunicações, que
afirma: “Não há espaço no espectro (radiofônico e comercial) para as ditas rádios
comunitárias”. A matéria segue apresentando detalhadamente o ponto de vista do
engenheiro que, sob a prevalência dos argumentos técnicos, defende um maior
controle sobre o número de radiocom:
Cláudio Young alega que a explosão de rádios comunitárias está interferindo na transmissão das rádios comerciais. Ele explica que isso ocorre porque há um limite que o espectro radiofônico pode suportar. O engenheiro estima entre 20 e 25 emissoras como o máximo para uma mesma cidade. (...)Young destaca ainda que a explosão do número das emissoras [comunitárias] põe em risco a sobrevivência financeira dos veículos comerciais. ’Não adianta ter 30 emissoras em Fortaleza, todas falidas porque nenhuma consegue receita suficiente para se manter’ (grifos meus).94
O debate sobre o reconhecimento e a legalização se transfere do campo
político para o campo técnico. Não se nega a existência das radiocom95, desde que
dentro de certas regras (apresentadas como condições técnicas) que claramente
privilegiam a existência das emissoras comerciais. Assim, o texto afirma que:
O engenheiro fez coro à posição da ABERT, ao defender o projeto de regulamentação das rádios comunitárias. O projeto foi votado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados e está sendo encaminhado ao Senado. (...) Pelo projeto, essas emissoras
94 A fala expressa claramente uma representação corrente fundada nos interesses do mercado contra a amplificação das rádios comunitárias. 95 Existência já é fato, embora não tenha reconhecimento de direito.
127
operariam em uma única freqüência para todo o território nacional. Isso implica uma única emissora para determinada região. A potência das rádios seria de 25 watts, capaz de cobrir 5 quilômetros de diâmetro.
Regulamentar para limitar passa a ser uma questão de ordem para a ABERT
e ACERT, o que se expressa no tom das matérias a partir de então.
Em 1998, ano da aprovação da lei de radiodifusão comunitária, a questão da
legalidade passa a ser central no tratamento dado as radiocom pela imprensa
cearense. Este é o ano em que elas mais aparecem nos jornais: foram registradas
22 reportagens. Com base num parâmetro legal claramente definido, a nova Lei de
Radiodifusão Comunitária, elas são avaliadas. Termos como “clandestina” e “pirata”
passam a ser usados com mais constância.
Intensifica-se também o uso de termos como “apreensão”, “combate” e
“fiscalização”. Classificar, vigiar e principalmente punir passam a ser os enfoques
dados a estas emissoras nas matérias. Ao privilegiar os aspectos relacionados a
legalidade das radiocom quase nenhum espaço sobra para o trabalho das
emissoras, como ocorre com as primeiras matérias. É como se a existência efetiva
perdesse espaço para o reconhecimento legal ou ilegal da rádio.
E se nos primeiros meses do ano de 1998 a cobertura se centra no processo
de aprovação da lei de radiodifusão, ao longo do ano a cobertura se desloca para o
processo de enquadramento e repressão às emissoras. Como vimos, termos como
“clandestina”, “pirata”, “apreensão”, “combate” e “fiscalização” são dominantes na
descrição das rádios e no tratamento dado a elas. Órgãos de regulação e
fiscalização, como o Dentel, Anatel e a Polícia Federal passam a ser relacionados e
cobrados quanto ao controle das emissoras.
Ao mesmo tempo a ABERT e a ACERT tornam pública a rivalidade e a
disputa de espaço com as radiocom. Chamadas como “ACERT reforça fiscalização
contra as piratas”; “ACERT quer o fim das rádios piratas no Estado”; “ACERT
intensifica combate às rádios piratas no Ceará”; "Campanha contra a pirataria:
ACERT vai investir contra as rádios clandestinas" e “ABERT: denúncia de emissoras
por todo o país" transformam as entidades em protagonistas do combate às
128
emissoras, chamadas sempre de “piratas” ou “clandestinas”. Nessa posição elas
encarnam o papel de benfeitoras sociais, responsáveis por livrar a sociedade de
uma comunicação perigosa e usurpadora. Observemos o quadro:
Quadro 5: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste entre
1998-1999 sobre rádios comunitárias. Jornal Data Matéria DN 21/01/98 “Comissão adia votação sobre rádio comunitária” O Povo 27/01/98 "Projeto sobre rádios clandestinas reduz número de emissoras" DN 28/01/98 "Aprovado funcionamento das rádios comunitárias" DN 21/02/98 Mais uma rádio pirata fechada no interior" DN 26/02/98 "Senado aprova projeto que permite a operação livre" DN 05/05/98 "Polícia Federal vai intensificar o combate ao funcionamento de
'rádios-piratas'". O Povo 05/05/98 "ACERT quer rigor na fiscalização de rádio pirata” DN 15/05/98 "Policia Federal irá apreender material de rádios piratas: maior
preocupação da ACERT é a veiculação da propaganda eleitoral ilícita."
DN 21/05/98 "Rádios Comunitárias temem repressão: superintendente da PF garante que apreenderá equipamentos de acordo com a lei"
O Povo 24/05/98 "Dial sem trégua" O Povo 02/07/98 Jovens são treinados para atuar em rádios comunitárias nas escolas" O Povo 01/08/98 "Católicos usam rádios comunitárias como instrumento de
evangelização" DN 27/08/98 "Corregedoria aperta o cerco às rádios piratas" DN 05/09/98 "UFC nega espaço para a festa da Arcos" DN 17/09/98 "MP pede apreensão de material de rádios piratas" DN 22/09/98 "PF deve receber hoje mandatos de apreensão" DN 22/09/98 "Pedido de busca tem efeito pedagógico" DN 23/09/98 "Apreensão dos equipamentos das rádios" DN 29/07/98 "Campanha contra a pirataria: ACERT vai investir contra as rádios
clandestinas" O Povo 26/10/98 "A voz da Comunidade" DN 28/11/98 "ABERT denuncia de emissoras por todo o país" DN 05/12/98 "Agência de telecomunicações preocupa setor da radiodifusão" DN 10/02/99 “Anatel continua fiscalização sobre rádios piratas” O Povo 28/03/99 “3.373 emissoras de rádios FM serão criadas no país” DN 12/04/99 “1º Fórum de radiodifusão do Sertão Central” O Povo 28/07/99 “FHC pede instalação de 70 rádios comunitárias” O Povo 14/08/99 “Uso de rádios comunitárias divide opinião em evento” DN 28/10/99 “ACERT reforça fiscalização contra rádios piratas” DN 30/10/99 “ACERT quer o fim das rádios piratas no Estado” DN 04/12/99 “ACERT intensifica combate às rádios piratas no Ceará”
Notícias sobre o número de emissoras a serem criadas também revelam a
movimentação do campo das radiocom e permitem identificar uma tendência de
expansão. Matérias como “FHC pede instalação de 70 rádios comunitárias” e “3.373
129
emissoras de rádios FM serão criadas no país” tratam da expansão legal desse
universo, enquanto que chamadas como “Anatel continua fiscalização sobre rádios
piratas”, "Corregedoria aperta o cerco às rádios piratas" e "Polícia Federal vai
intensificar o combate ao funcionamento de 'rádios-piratas'" indicam o grau de medo
e intolerância em relação ao crescimento de emissoras comunitárias.
A movimentação-expansão espelha também o curso da articulação do
movimento de radiocom e as tensões que começam a ser evidenciadas. Exemplo
disto é a matéria de 14/08/2005 do Jornal “O Povo” que traz a seguinte chamada:
“uso de rádio comunitária divide opiniões em evento”. A reportagem afirma que os
participantes do 1º Encontro de Radiodifusão Comunitária do Ceará “se dividem em
dois grupos: os que defendem a posse das rádios comunitárias por políticos e os
que querem o controle social das emissoras”. As oposições e a apropriação das
radiocom por grupos até estranhos ao movimento de rádios comunitárias começam
a se afirmar. Como explica ainda a matéria:
De um lado, estão os que defendem a importância das emissoras controladas por políticos como uma forma de ampliar a pressão para que o Governo Federal aprove a legislação que aumente a potência das emissoras. De outro, os que defendem que as emissoras estejam sob o controle do movimento social, organizado em associações comunitárias e organizações não governamentais. (...) Francisco Lopes, o Kim, presidente da Arcoce, condena a exploração política das rádios, mas reconhece que elas contribuem para pressionar por mudanças na legislação.
Essa divisão, que ganha destaque na imprensa, já refletia uma tendência
que começava a ser decisiva no movimento: de um lado a quantidade sendo vista de
modo positivo, na medida em funcionaria como mecanismo de pressão sobre o
governo, de outro lado, numa visão mais crítica, como uma possibilidade de
descaracterização do movimento e da própria imagem das rádios comunitárias.
Durante os últimos quatro anos a construção da imagem de pirataria e de
perigo que as radiocom representariam continua a ser alimentada. A forma como a
questão da interferência nas freqüências aparece torna as rádios comerciais vítimas
das rádios sem autorização, enquanto toda a sociedade é transformada em vítima
130
potencial das emissoras comunitárias. Além disso, ganha enorme destaque as ações
de fechamento e lacre de emissoras, como mostra o quadro abaixo:
Quadro 6: Matérias publicadas nos Jornais O Povo e Diário do Nordeste entre
2000-2004 sobre rádios comunitárias Jornal Data Matéria DN 21/02/00 “Rádios oficiais sofrem interferência de piratas” DN 29/02/00 “Polícia Federal inicia caça as rádios piratas” DN 02/03/00 “Duas ‘rádios piratas’ são fechadas pela Polícia Federal” DN 28/03/00 “Procuradoria investe contra rádios piratas” DN 21/04/00 “Federal e Anatel fecham rádios piratas no interior” DN 21/10/00 “Orçamento e as rádios piratas nos debates da Assembléia
Legislativa” O Povo 04/12/00 “Advogado de rádios diz que Anatel evita perícia” O Povo 04/12/00 “Relatório sigiloso alerta sobre risco” O Povo 04/12/00 “Perigo no ar: interferências de rádios podem provocar acidente
aéreo” DN 08/12/01 “PF fecha rádio ‘pirata’ em Fortaleza” DN 28/09/01 “Justiça proíbe liminares para rádios ilegais” DN 02/02/02 “Operação conjunta com a Anatel: PF fecha rádio ‘pirata’ no
Centro” O Povo 05/05/02 “Ceará ganha mais rádios comunitárias do Senado” O Povo 20/06/03 “Só na vontade” O Povo 08/04/03 “Rádios comunitárias e TVs públicas em discussão” O Povo 17/08/03 “A luta das comunitárias” O Povo 22/08/03 “Nas ondas” O Povo 28/09/03 “Sistema vai cadastrar laranjal” DN 05/12/03 “Democratização sem exagero: aberto 9º Congresso Cearense de
Radiodifusão” DN 6/12/03 “Piratas na mira” O Povo 14/02/04 “Sistema vai cadastrar rádios comunitárias” O Povo 15/04/04 “Xô, piratas” DN 14/11/04 “Pirataria: fraude também atinge emissoras de rádio” O Povo 26/10/04 “Belo Horizonte: PF fecha 15 emissoras de rádio clandestinas” O Povo 24/10/04 “Comunitárias: número de rádios fechadas aumenta 37% no
governo Lula”
Na matéria “Rádios oficiais sofrem interferência das piratas”, a oposição
oficial-pirata dá o tom da valoração dos dois tipos de emissoras, tornando àquelas,
as oficiais, vítimas da pirataria:
Sintonizar uma estação de rádio oficial na Freqüência Modulada (FM) pode ser uma tarefa difícil. Isto se deve à quantidade de rádios piratas que estão invadindo o “dial”. A interferência das rádios piratas pode afetar não apenas as emissoras oficiais, mas o sistema de comunicação como um todo: nos aparelhos telefônicos,
131
principalmente celulares, de navegação, aeronaves e até equipamentos médicos.
Outro exemplo de construção da imagem das radiocom a partir da
perspectiva do perigo e do medo aparece na longa matéria “Perigo no ar:
interferência de rádio pode provocar acidente aéreo”. Em duas páginas a
reportagem discorre sobre os perigos para os aeroportos da interferência de certas
transmissões. Embora a chamada faça referência genérica as rádios, o conteúdo da
matéria trata da interferência específica das “rádios livres”. Observe a imagem da
chamada:
Essa matéria, entretanto, diferentemente da maioria dos textos analisados,
abre espaço para a resposta das rádios comunitárias, e produz um raro diálogo entre
Anatel, Rádios Comunitárias e ACERT. Seu ponto de partida foi a ocorrência de
problemas de comunicação do Destacamento de Proteção do Vôo com nove
aeronaves, em 24 de agosto de 2000, que “teria sido provocada por sinais espúrios
(interferências) gerados por pelo menos três rádios consideradas clandestinas pela
Anatel. A matéria informa ainda que cerca de 1.115 passageiros viajavam nas nove
aeronaves”.
132
De fato as transmissões fora de padrão representam um perigo, mas ele não
é exclusivo das rádios comunitárias. Entretanto, segundo afirma um técnico da
Anatel, os problemas se concentram na faixa de freqüência onde operam as
radiocom:
Há radiointerferência principalmente nessa faixa de FM [108 MHZ]. Se ela não for devidamente alocada de maneira legal, ou seja, vendo se realmente é possível colocar mais uma rádio ali (...), então há uma geração de espúrio e de produtos de termodulação que ocorre quando outras freqüências se combinam e a soma e diferenças delas produzem outras freqüências, freqüências novas (...) Então se a freqüência de fm vai até 108 mhz, logo em seguida vem a faixa do módulo aeronáutico, ou seja, toda a comunicação entre torre e piloto se dá nessa freqüência, então toda a geração de espúrio e de produtos de termodulação caem dentro dessa faixa e podem vir a prejudicar e até a impedir que o piloto venha se comunicar com a torre, se ele estiver numa situação de que ele não está entendendo ou entendeu errado isso pode levar a um problema96.
Muito presente ainda na cobertura das radiocom é o processo de repressão
às emissoras, representado por 11 das 25 matérias encontradas sobre o tema entre
2000 e 2004. O termo pirata se institui como o mais usual no tratamento das
emissoras. Vedete deste momento da cobertura é todo o aparato estatal
representado pela Policia Federal, procuradoria, juizes, Anatel, Assembléia
Legislativa, que aparecem nas chamadas “Polícia Federal inicia caça as rádios
piratas, Federal e Anatel fecham rádios piratas no interior”; “Justiça proíbe liminares
para rádios ilegais” e “Procuradoria investe contra rádios piratas”, entre outras.
Também se verifica notícias sobre o processo de concessão de emissoras, o
que passa a acontecer a partir de 2000. Além disto, a discussão sobre a
democratização se faz presente a partir do ponto de vista das emissoras comerciais.
Assim, em um dos congressos da ACERT, realizado em dezembro de 2003,
um dos temas de discussão foi a comunicação comunitária, mais particularmente as
rádios comunitárias. A cobertura sobre o debate feita pelo jornal Diário do Nordeste
(de 05 de dezembro de 2003) estampou como chamada uma das frases proferidas
durante as discussões: “Democratização sem exagero”. Aqui o tema da legalidade
ganha contornos dramáticos, na medida em que o direito de expressão, princípio 96 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005.
133
norteador da idéia liberal de democracia, é discutido como um exagero democrático.
Seguem alguns trechos da matéria:
O exagero no processo de democratização da comunicação, aplicado neste ano pelo Governo Federal, é uma das temáticas em destaque no 9º Congresso Cearense de Radiodifusão, que acontece até amanhã no Marina Park Hotel (...) Segundo o presidente da ACERT, Fernando Eugênio Marinho, o governo Lula, ‘com o pretexto de democratizar a comunicação’, tem ‘exagerado na dose’ ao conceder concessões de rádios comunitárias, sem fiscalizar, com a eficiência necessária, o conteúdo dessas emissoras.
Se ABERT e ACERT montam estratégias de combate às radiocom cuja
principal arma é uma construção imagética e imaginária que associa as radiocom a
um conjunto de idéias como pirataria, descontrole e perigo97 - na medida em que,
afirmam estas entidades, elas produziriam interferência na freqüência da polícia e
dos aeroportos, atrapalhando a operação dos instrumentos e pondo em risco a vida
de quem viaja de avião ou precisa de atendimento policial - as emissoras, em outra
frente, somarão esforços para responder a essas acusações e construir uma outra
imagem de si e das emissoras comerciais e suas instituições junto a opinião pública.
Um exemplo dessa tentativa de reversão da imagem das rádios comunitárias
aparece na matéria “A mentira das interferências”, publicada no boletim “ABRAÇO
no Ar” de março de 1997:
Dizem os donos das emissoras convencionais que as comunitárias podem interferir nos sistemas de comunicação e navegação das aeronaves, até causando sua queda (...). Segundo João de Ataliba Nogueira, engenheiro de instrumentos da Varig, (...) “nenhum tipo de radiofreqüência adentra através da fuselagem de aeronaves comerciais modernas, pois elas construídas para suportar todo tipo de interferência que possa prejudicar a segurança de nossos passageiros”. (...). O mundo inteiro, por onde passam essas
97 Em uma matéria da Revista “Força Aérea” sobre o GEIV- Grupo Especial de Inspeção de Vôo, órgão da Força Aérea Brasileira dedicado a garantir as condições de segurança dos vôos em território brasileiro, afirma-se o seguinte: “os equipamentos utilizados no SMA (Serviços Aeronáuticos) são construídos com transmissores de baixa potência e de receptores de alta sensibilidade. Assim, as interferências podem ser causadas por diversos fatores: emissoras de rádios (regulamentadas ou não), na faixa de VHF, moduladas em FM, que não seguem padrões exigidos pelas normas técnicas; ruídos industriais, ocasionados por soldas; emissões ilícitas, na faixa de freqüência do SMA, efetuadas por organizações clandestinas, constituídas com a finalidade de ouvir mensagens veiculadas e até mesmo transmitir em freqüência do SMA” (p. 51, Grifos meus).
134
aeronaves, é pulverizado por todo tipo de emissoras (grandes, pequenas, legais ou não), mas só aqui, no Brasil, provocam essas supostas interferências, como alegam os donos de grandes rádios.
Alijadas dos meios de comunicação hegemônicos, a resposta se organiza a
partir da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, a ABRAÇO, e suas
afiliadas estaduais, e é irradiada através dos meios de comunicação ao seu dispor:
as próprias radiocom, o jornal “ABRAÇO no Ar” e os informativos produzidos pelas
associações estaduais e pelas inúmeras listas de discussão que com a
popularização da internet irão surgir98.
3.3 “Não a censura, não ao silêncio”: O jornal “ABRAÇO no Ar”
Com a criação em 1996 da Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária – ABRAÇO - é instituído o boletim “No Ar ABRAÇO” depois
transformado no jornal “ABRAÇO no Ar”, com edição mensal, tiragem média de
10.000 exemplares e circulação nacional.
O Jornal expressa o esforço de estabelecimento das pautas do movimento
de rádios comunitárias a partir de sua Associação, ao mesmo tempo em que
responde as questões então em evidência na imprensa brasileira, como a
ilegalidade das emissoras, o perigo de transmissão das comunitárias, entre outras.
Os exemplares recolhidos para a análise compreendem os anos de 1997 a
1999, e embora não permitam esboçar uma regularidade anual99 do jornal, dão
conta de momentos importantes do movimento das radiocom vividos durante o
período, permitindo identificar o que se veicula e qual imagem das radiocom é
construída pelo seu próprio movimento.
Em 1997 o boletim cobre o processo de negociação da nova lei de
radiodifusão comunitária então em trâmite no Congresso Nacional. Após o mês de
fevereiro de 1998, quando da promulgação da Lei, se inicia uma outra fase, onde se
98 A seguir apresento a dinâmica de uma dessas listas. 99 Tive acesso e analisei três números do boletim “No ar ABRAÇO”, de 1997, dois números do “ABRAÇO no Ar”, de 1998, e sete de 1999.
135
misturam críticas a alguns aspectos da Lei e da Norma Complementar Nº 2/98 e
esperança pela liberação das primeiras concessões. Conforme o tempo passa, as
expectativas de outorga se transformam em frustração - dada a lentidão na
apreciação dos pedidos pelo Ministério das Comunicações – convivendo com o
processo de combate as rádios não outorgadas100. A matéria “Depois de um ano e
dois meses apenas vinte nove rádios habilitadas” resulta dessa decepção101.
Inicialmente o jornal veicula apenas as ações da ABRAÇO, e a pauta é
quase que exclusivamente política. A partir de 1998 percebe-se a tentativa de
inclusão de outros tópicos, como as artes, a cultura e a formação de
radiocomunicadores - uma forma de buscar uma maior qualificação dos quadros. No
entanto, o grande eixo temático são as questões políticas, através das quais é
possível compreender o sentido ‘nativo’ dos discursos sobre as radiocom e sua
relação com o Estado, o mercado, e temas como a democracia.
O “ABRAÇO no Ar” funciona como um espaço de construção da auto-
imagem das radiocom. O investimento é feito na afirmação de uma imagem que
legitime a posição das comunitárias no cenário da comunicação brasileira. Para isto
uma das estratégias consiste em dar relevo ao papel social das emissoras e a
construção de fronteiras que caracterizem as radiocom e marquem sua
singularidade. Assim, em um dos primeiros números do boletim, ao fazer um balanço
das ações políticas e organizativas do movimento (e do I Congresso da
ABRAÇO)102, se afirmam os princípios que devem regê-las. O jornal é do período
anterior à aprovação da Lei 9612/98, momento onde as rádios precisavam legitimar-
se para ver reconhecido o seu direito de existência:
Nosso primeiro Congresso, nesse sentido, deu um verdadeiro banho de entusiasmo em todos nós. Foi com muita surpresa e alegria que percebemos que aquele coletivo que ali estava presente no congresso, está totalmente convencido dos princípios que devem nortear nosso movimento e nossas emissoras. Os princípios da pluralidade, da democracia, da gestão coletiva, do não correr atrás do lucro, e da vontade de democratizar a sociedade, etc... (Editorial
100 Levantamento realizado por Lopes (2005, p. 77) mostra que, “entre 1998 e 1999, 2.543 processos aguardavam a publicação dos Avisos de Habilitação pelo MiniCom, um dos primeiros procedimentos do processo de outorga”. 101 Para uma visão mais completa das questões de interesse do jornal apresento, no anexo 4, as matérias publicadas em cada exemplar analisado. 102 I Congresso Nacional de Rádios Livres e Comunitárias, ocorrido em setembro de 1997.
136
do boletim “No Ar ABRAÇO”, Novembro/1997).
Pluralidade, democracia, gestão coletiva, recusa da busca pelo lucro
delimitam os limites entre as radiocom e as outras rádios.
O período dessa afirmação coincide com a tramitação do Projeto de Lei no
Congresso Nacional e com a expectativa de uma legislação que atendesse aos
interesses das radiocom, o que só seria possível pela construção de uma unidade
estratégica do movimento:
Para que o movimento consiga recuperar as principais emendas de seu maior interesse (...) será de fundamental importância a busca de unidade tática, principalmente com os segmentos do próprio movimento, além de outros setores da sociedade que apóiam a luta pela democratização das comunicações (Conjuntura, Jornal “ABRAÇO no Ar”, Novembro/1997).
A imagem democrática associada as radiocom contrasta com a imagem do
governo103/ Estado, visto como um agente repressor e um dos maiores inimigos das
comunitárias, na medida em que tenta impedir o número crescente de emissoras de
executar seus serviços. Nessa oposição as radiocom se percebem e se proclamam
como portadoras da “voz da democracia”:
Toda a repressão e estratégias usadas pelo governo não tem sido suficientes para calar a voz da democracia, da soberania popular, da cultura emergente que vem das emissoras verdadeiramente comunitárias, cada dia mais apoiadas pela sociedade civil organizada. (...) Dados do Ministério [das Comunicações] afirmam que as Delegacias Regionais já fecharam mais de 1.700 rádios comunitária. Mas reconhecem que já chegam a mais de 7.000 o número delas em todo o país(...). (Conjuntura, Jornal “ABRAÇO no Ar” Novembro/1997).
Em outra matéria, “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil
ceder”, já do período pós-surgimento da legislação, os mesmos princípios são
reafirmados e a definição da comunicação comunitária se impõe para além da 103 À época, governo de Fernando Henrique Cardoso.
137
regulamentação: “todas as emissoras de gestão pública, sem fins lucrativos e
programação plural terão sempre o nosso apoio, será objetivo de nossa existência,
seja REGULAMENTADA OU NÃO!“ (“Sonhar mais um sonho impossível. Lutar
quando é fácil ceder”. “ABRAÇO no Ar”, Julho/1998).
A decepção com a nova Lei, antes esperança de reconhecimento, se
expressa em matérias como “Lei das rádios comunitárias ... o começo ou fim”, de
autoria de Ismael Lopes, então diretor da Rádio Novos Rumos, uma das primeiras
emissoras em FM a brigar pelo reconhecimento legal.
O texto admite que a existência da Lei é uma conquista do movimento de
radiocom, mas critica diversos aspectos, como a limitação de potência, a
impossibilidade captação de recursos publicitários, a proibição de transmissões em
cadeia entre comunitárias, entre outros. A legislação passa a atuar como uma
garantia legal contra as emissoras comunitárias e não a favor de sua existência.
Como discute Lopes (2005) como uma estratégia de “contra-reforma” dos setores
hegemônicos no controle dos meios de comunicação no país. Eis alguns trechos do
jornal:
Essa conquista poderá significar um avanço na democratização da comunicação ou uma ‘vitória de pirro’, dependendo das normas que regularão pontos obscuros da Lei. É cedo ainda para uma avaliação definitiva. Por enquanto, o que se pode observar é um paradoxo congênito: ao mesmo tempo que a Lei acolhe princípios democratizadores, modernos e até ousados, possui limitações que a tornam tímida, arcaica, cerceadora, frustrante.” (“Abraço no Ar” Julho/1998).
Em outra matéria há a inversão do sentido de usurpação atribuído à
expressão “pirata”. O governo, políticos e os grandes empresários de comunicação é
que são tratados como usurpadores, como ladrões de direitos:
O que houve com a regulamentação e, pra piorar com as normas técnicas, foi um verdadeiro assalto a legítimos direitos que adquirimos com a nossa Lei maior. (...) ‘De fato, com a regulamentação e as normas técnicas ficou simplesmente impossível o cumprimento da Lei (...) Há duas formas de tratar aqueles que nos roubam: a primeira é buscar na justiça uma solução para as causas e os efeitos desse roubo. (...) o segundo modo de tratar essa questão
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é, sem nenhum problema de consciência, político ou legal, orientar nossas emissoras para que não respeitem aquilo que fere direitos conquistados e legitimados” (Os ladrões entram pelas portas dos fundos”. Agosto/1998)
Noutra matéria o tom de crítica a legislação é ainda mais duro. Ao mesmo
tempo em que as garantias legais são invocadas na defesa do direito de expressão,
a legislação específica sobre a radiodifusão comunitária guarda um outro significado
para o movimento. Ela não é considerada legítima, ainda que legal, e o sentido de
rebelião e insurgência contra a Lei se reveste do sentido de defesa dos direitos
democráticos. Não são elas que são ilegais, a Lei é que seria ilegal e ilegítima:
Portanto, o desfecho da luta pela democratização das rádios comunitárias, defronta-se, neste com um impasse. Ou se aceita estas “leis”, que na verdade são a expressão da censura e da legalização da repressão, ou mantêm-se acessa a resistência, não aceitando os limites perversos estabelecidos pelos interesses dos monopólios de comunicação do país, que são, na verdade, os inimigos viscerais da democracia nos meios de comunicação e radiodifusão popular (“Não a censura, não ao silêncio!” , texto do deputado federal Fernando Ferro (PT-Pe) – Jornal “Abraço no Ar” Agosto/1998).
Essa idéia reaparece várias vezes em diferentes momentos do jornal.
Legalidade e legitimidade são discutidas tendo como marco o direito à palavra e a
informação. Esse direito legítimo é barrado pela regulamentação, como afirma outro
trecho do Jornal:
A lei em seus artigos (...) em nenhum momento fixou a limitação de alcance agora determinada no decreto regulamentador. Assim, ao procurar regulamentar uma lei, para torná-la eficaz, o executivo acabou por criar, de forma ilegal, uma normalização nova, não prevista na lei que instituiu o serviço de radiodifusão comunitária. Outra ilegalidade foi o fato de, através de portaria e do próprio decreto regulamentador, estabelecer o funcionamento de atividades de radiodifusão comunitária apenas em áreas urbanas, em prejuízo das comunidades rurais. Diante disto, não nos resta outra alternativa, senão questionar juridicamente a ilegalidade cometida pelo executivo (uso abusivo do poder de regulamentar), na expectativa de que o poder judiciário declare como existente tais restrições.” (“Agora o mandado segurança é ‘contra o Ministério’’, texto de Alberto Moreira Rodrigues Assessor Jurídico da bancada do PT – Jornal “Abraço no Ar”, Março/1999).
139
O jornal opõe os pares legalidade-ilegítma e ilegalidade-legítima. Por essa
oposição a legalidade instaurada por uma regulação específica para as radiocom é
ilegítima, sendo contraposta a existência real das radiocom, uma ilegalidade legítima
que restabelece a justiça, o direito usurpado. O argumento expõe não apenas a
situação legal e política das rádios comunitárias, mas associa a baixa qualidade da
Lei à baixa qualidade parlamentar, produzindo uma contra-ofensiva em torno da
criminalização das emissoras e de seus membros, o que se expressa no título da
matéria: “Criminosos são eles”. O texto afirma:
Se nós temos uma lei idiota, ruim, para as rádios comunitárias, é porque muita gente que hoje mexe com rádio elegeu deputado imprestável. E se a lei é imprestável (como o parlamentar), se o movimento cresceu usando a carta magna – que então se volte para ela e não aceite as limitações impostas por um regulamento burocrata, burro, medíocre. O povo tem que tomar conta do Brasil ou, eles saqueiam e exploram este país e sua gente há 500 anos, vão festejar mais uma data, e povo explorado, espancado, vai comemorar junto. Diga não! ( “Criminosos são Eles”. Texto de Dioclécio Luz - Março de 1999/08).
O mesmo argumento que inverte o discurso de criminalização das radiocom
aparece em outro texto intitulado “Os ladrões entram pela porta dos fundos”, que se
refere ao processo de regulamentação da Lei 9.612 pela Norma Complementar que
institui um conjunto de restrições adicionais ao texto da lei. O texto afirma:
Acreditávamos pelo menos que o MiniCom respeitaria o que foi discutido e aprovado pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado). É verdade que a própria lei 9.612 é uma violência constitucional, um desrespeito às leis internacionais e a liberdade de expressão.
(...) De fato, com a regulamentação e as normas técnicas ficou simplesmente impossível o cumprimento da lei.
(...) o segundo modo de tratar essa questão é, sem nenhum problema de consciência, político ou legal, orientar nossas emissoras para que não respeitem aquilo que fere direitos conquistados e legitimados. (“Os ladrões entram pelas portas dos fundos”, texto de Sebastião Santos, presidente da ABRAÇO – Agosto /1998)
Algumas matérias elaboram um lugar de devir para as radiocom. Elas
representam não apenas a urgência da fala democrática, mas também da via
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revolucionária, necessidade histórica que no Brasil legitimaria a sua existência. A
declaração do papel revolucionário das rádios tem como ambiente a discussão sobre
o decreto que cria a radiodifusão comunitária e a legislação complementar a este.
Na matéria “No Brasil, lutar pela democratização da comunicação é um ato de
coragem” percebe-se essa leitura:
Nesse panorama sombrio, o maior movimento surgido depois do movimento sem-terra que são as rádios comunitárias, têm sido caladas na ponta das metralhadoras da polícia federal, do confisco dos equipamentos e da prisão arbitrária de militantes, sindicalistas, mães e donas de casa. (texto de Beth Costa, diretora da FENAJ,- Jornal “ABRAÇO no Ar”, Julho/1998)
O campo político de disputa por legitimação parece ficar evidente na citação
a seguir. A história do Brasil é contada para afirmar que piratas não são as
emissoras comunitárias, mas “os piratas que detêm o poder há quase 500 anos”. A
legalização aparece como conseqüência do processo de democratização que as
rádios buscam assegurar com sua existência e que lhes é negada. De forma
contundente a ocupação do “dial” é defendida:
Os que fazem rádios comunitárias sempre defenderam o que a este governo parece ofensa: a democracia. A democracia radical. Direitos iguais para todos, Direito à população ter acesso aos meios de comunicação. Essa defesa sempre foi tão radical que na cartilha sobre rádios comunitárias, editada por três deputados do PT, está sublinhada: rádio comunitária não pode pertencer a nenhum partido. Ela tem que abrir espaço para todos. Ela tem de ser plural! Este é um dos princípios da comunicação democrática. E isto incomoda aos piratas que detêm o poder há quase 500 anos neste país. O que está em jogo, portanto, não é a regulamentação das rádios comunitárias. O que está ou não em jogo é haver ou não democracia no Brasil. (...) a questão das rádios comunitárias, portanto, é essencialmente política. Há um poder político que não admite que o povo possa divulgar a informação. (...) vamos colocar as rádios no ar. Do mesmo modo que o movimento do sem-terra ocupa as terras improdutivas, instalando-se, produzindo, porque é um direito enquanto cidadão e cidadã brasileira. Cabe aos que fazem rádios comunitárias enfrentar a arbitrariedade e ocupar o espaço que lhes pertence. (...) Agora não dá pra voltar. Ou insistimos e mantemos as rádios comunitárias e abrimos outras 50 mil, 100 mil, como o povo quer, como o povo brasileiro tem direito ou nos dobramos ao presidente déspota que aí está. Se a legislação não presta, se ela é fascista, discriminadora, uma vergonha jurídica e um acinte a democracia, então que a luta continue (...) Ninguém cala a voz do povo. Nem com baionetas ou AR15 é impossível impedir que o futuro chegue, o futuro que
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merecemos. Vamos botar as rádios no ar. Democracia ou nada (“Voltamos à luta!” Texto de Dioclécio Luz, “Abraço no Ar”, Agosto/1998)
O lugar da fala do movimento das rádios comunitárias é o lugar reivindicação
de um direito, já existente constitucionalmente, mas não efetivado: o do direito a livre
expressão, viabilizado pelo acesso a um canal de comunicação comunitária. Para
tanto são invocadas as garantias legais do estado de direito e sua promessa de
democratização e universalização da liberdade de expressão, rapidamente frustrada
pela lentidão na avaliação dos pedidos de concessão - pressuposto de
reconhecimento legal para os milhares de rádios que já atuavam no país. Nesse
sentido, como já sugeri antes, se judicializa o processo de discussão das emissoras
comunitárias.
Ao trabalhar discursivamente com o sentido de democratização as
radiocom aparecem, enquanto movimento, como uma das oportunidades de
melhoramento da sociedade. Uma série de atributos presentes nas comunitárias
realizaria esse intento:
O movimento de rádios comunitárias no Brasil carrega em si e para si aspectos sócio-culturais-políticos e econômicos inerentes a sua trajetória de luta pela democratização dos meios de comunicação. A busca incessante para saber e fazer radialismo popular de forma diferenciada também nos fortalece enquanto gente, se sente, faz e acontece. É bem verdade que nesses anos de experiências re-construímos as nossas próprias contradições históricas. As nossas limitações nos convidam a descobrir as nossas próprias possibilidades. (texto “Os homens, as mulheres e as rádios comunitárias”, Jornal “Abraço no Ar”, Maio/1999).
Outro tema recorrente é o da repressão efetuada pelo Estado. Os agentes
da ação repressora são identificados como inimigos das rádios e do movimento. Em
uma matéria sobre a campanha “Quem tem medo das rádios comunitárias”, feita
para esclarecer a população do “verdadeiro assalto de que nossas rádios têm sido
vítimas”, se afirma:
A Anatel e a Polícia Federal tem ido com freqüência ás rádios roubar nossos equipamentos. Não os deixe entrar sem um mandato de
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busca e apreensão sob hipótese alguma, pois eles têm usado diversos ardis para convencer os diretores das rádios com promessa de apenas lacrar os equipamentos e quando dentro das rádios botam as garras de fora e apreendem tudo. Portanto, não se deixe roubar (“Abraço no Ar”, Maio/1999).
O Ministério das Comunicações também ocupa o lugar de inimigo das
rádios, mas pela via do não fornecimento de autorizações de funcionamento:
Se existia algum comunicador comunitário nutrindo um sentimento positivo pelo processo de regulamentação, agora esse sentimento certamente foi por água abaixo com a publicação da relação intitulada “Aviso para apresentação dos dados de instalação da estação”. Isto porque a esperada lista contém, pasmem, apenas 29 emissoras, sendo elas, 16 de Minas, 1 do Rio, 1 de Pernambuco, 1 do Espírito Santo, 4 do Amazonas e 2 de Alagoas. Vale lembrar no Brasil existem cerca de 5000 emissoras operando clandestinamente, esperando por sua regulamentação. Não é fácil descobrir exatamente o porquê deste número ser absolutamente baixo, mas podemos tentar imaginar essa última cartada do MiniCom através de várias hipóteses: Amadorismo e ineficiência. O feitiço se volta contra o feiticeiro (...) Não deu tempo pra lacrar todo mundo (...) Enrolar até que seja aprovada a lei geral (...) Ta difícil de conter o lobby (...) Nós somos realmente maus. (...) Mas acima de tudo, se o MC continuar lacrando rádios e publicando listas provocativas como a última, podemos já prever num futuro próximo, o rompimento com esta legislação, a favor da verdadeira democracia. ( “Depois de 1 ano e 2 meses apenas 29 habilitadas”, “Abraço no Ar”, Maio/1999)
A identidade das rádios aparece como uma preocupação constante.
Expressões como “rádios verdadeiramente comunitárias”, ou “picaretização”, visam
delimitar fronteiras e promover uma qualificação do que seja uma emissora
comunitária e separá-las de outras rádios, efetuando uma distinção entre o “joio e o
trigo”. A chamada para um ato “Contra a Picaretização”, descrita abaixo, expressa
essa preocupação:
O ato servirá também para a ABRAÇO lançar uma conclamação contra a “picaretização” no movimento de Rádios Comunitárias. A entidade quer iniciar uma campanha contra a apropriação indevida de rádios comunitárias por pessoas interessadas apenas no proselitismo religioso, político e de autopromoção. Vamos separar o joio do trigo, porque isso é condição fundamental para as rádios comunitárias sejam instrumentos reais de disputa de hegemonia, de construção de uma nova via revolucionária cultura participativa, justa
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e gêneros ( “Dia estadual das rádios comunitárias”, jornal “Abraço no Ar”, maio/1999).
Inimigos internos ao campo, os “picaretas”, e os inimigos externos (grupos
de comunicação, ABERT, parlamentares, órgãos de estado, juristas, etc) são as
duas frentes que passam a ser enfrentadas no processo de legitimação das
radiocom e de disputa por espaço e reconhecimento legal. A partir desse duplo
enfrentamento o processo de construção da imagem das rádios é elaborado. Desse
modo, o papel político da comunicação e o compromisso das rádios comunitárias
com a “verdade”, também aparecem como elementos de construção da auto-
imagem das emissoras pela ABRAÇO:
Reconhecer que a comunicação se constitui como o quarto poder é óbvio. No entanto, como operacionalizar-se contra tal constatação? É o que procuramos realizar quando instalamos rádios comunitárias: fazer com que as pessoas das comunidades, via associações populares de diversos tipos, se comprometam na produção, com qualidade e verdade, das informações que serão veiculadas. ”Compromisso: democracia na comunicação” – maio/1999)
O filtro de controle sobre um campo em franco processo de expansão, desde
muito cedo preocupa a ABRAÇO, repercutindo no tom das matérias veiculadas pelo
jornal. Colocando como bandeira o fortalecimento da entidade e seu papel no
controle da qualidade das emissoras, as matérias diferenciam-nas em dois grupos:
aquelas “sob o controle da própria comunidade” e as outras ligadas a “oportunistas”.
O filtro responde às constantes acusações presentes em grandes meios de
comunicação e nas campanhas produzidas pela ABERT e suas afiliadas estaduais,
que afirma serem todas as rádios comunitárias rádios piratas. O termo usado por
essas entidades como sinônimo de perigo das transmissões dessas emissoras
ganha um outro sentido dentro do próprio movimento de radiocom, associando-se a
idéia de oportunismo. Nessa acepção vincula-se a grupos que não podem ser
identificados com as comunidades, entre estes políticos e grupos religiosos. A
matéria afirma:
A ABRAÇO é uma entidade aglutinadora de todos os movimentos sociais em torno da comunicação (...) Portanto, como principais beneficiários, nada mais justo que os movimentos se
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responsabilizarem pelo fortalecimento da ABRAÇO, para que ela possa ter condições de atuar nas comunidades difundo os conceitos da verdadeira comunicação comunitária, mobilizando-as para a construção de rádios comunitárias sob o controle da própria comunidade. Pois, os oportunistas estão ganhando terreno (Editorial: “A ABRAÇO e os movimentos sociais”, jornal “Abraço no Ar”, setembro/1999).
Nessa definição de fronteiras e no sentido de devir que o Jornal constrói o
texto a seguir é exemplar. Quase que como um manifesto ele define a diferença
entre as radiocom e as outras, discutindo os princípios destas emissoras e a relação
destas com as comunidades, com a informação e o mercado. Além disto, o texto
esquadrinha o papel social das emissoras, que seria o de romper com o poder dos
“coronéis dos meios de comunicação”:
A comunicação tem de ser livre, desprovida de preconceitos, genuína e autêntica. (...) Ficou mais uma vez esclarecido que uma Rádio Comunitária é gerida pelo movimento popular organizado. Tem que ser plural, prestando-se ao debate e a multiplicidade de opiniões, sem ficar atrelada a partidos políticos, grupos econômicos ou religiosos. “A comunidade é plural e assim deve ser a sua rádio”, conclui José Sóter, presidente nacional da ABRAÇO. (...) queremos mostrar nossa cara para nós mesmo. Dar subsídios para a formação de opiniões mais consistentes e autênticas. Reverter valores estéticos e culturais impostos pelos grandes meios de comunicação de massa. Isto é verdadeiramente revolucionário. (...) O Brasil possui hoje 5.508 municípios. A meta é que cada um tenha em média três radiocom. Mais de 15 mil emissoras portanto: (...) A ABRAÇO foi criada em conseqüência do movimento de Rádios Comunitárias no Brasil, que despontou no início da década de noventa, motivada fundamentalmente pela compreensão de que só existirá uma sociedade justa e igualitária se, antes, a comunicação for democrática, o poder dos coronéis dos meios de comunicação for descentralizado e entregue nas mãos do povo (“Nas ondas do rádio”, jornal “Abraço no Ar”, Julho/1999).
Quando tematiza oportunidades dentro do campo das próprias radiocom o
jornal fala otimista da criação de empregos, oferta que as rádios comunitárias
poderiam realizar:
Nos próximos dez anos o Movimento de Rádios Comunitárias, MRC, criará 200 mil novos empregos diretos, se o Minicom [Ministério das
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Comunicações] fizer valer a lei 6.912/98, autorizando o funcionamento das radiocom nos mais de cinco mil e quinhentos municípios brasileiros. Cada emissora emprega um mínimo de cinco trabalhadores. Indiretamente, garantirá emprego para outras centenas de profissionais da indústria de equipamentos de radiodifusão e ainda poderá revitalizar a economia municipal. (jornal “Abraço no Ar”, Agosto/1999)
Ainda sobre a relação das rádios comunitárias com a constituição de um
mercado específico de oportunidades, o jornal afirma:
Como o mercado de equipamentos está estagnado na comunicação convencional e já existem milhares de entidades interessadas em canais de radicom, a Abird [Associação Brasileira da Indústria de Radiodifusão], agora aparece para criar, junto com o Ministério, regras que lhe garanta o mercado emergente das radiocom. (Jornal “Abraço no Ar”, Agosto/1999).
Constituir-se também como um mercado e não apenas como um movimento
social tem conseqüências importantes para o campo das emissoras comunitárias. As
tensões colocadas pela necessidade de financiamento e o surgimento de
oportunidades de negócio que o aumento de emissoras traz, expandem as fronteiras
dos interessados no negócio das comunitárias para além dos movimentos sociais104.
É o caso, por exemplo, do crescimento das empresas de equipamentos que, nas
próprias páginas “ABRAÇO no Ar” anunciam a venda de equipamentos para a
montagem da “sua própria rádio comunitária”.
A esse respeito, uma matéria do jornal “Folha de São Paulo” de 26/06/2000
informa sobre o crescimento da venda de transmissores. Um dos gerentes de uma
das empresas que registram um aumento de cinqüenta por cento nas vendas afirma
que “45% dos compradores são políticos e outros 45% são evangélicos”105.
Cada edição do “ABRAÇO no Ar” analisado tinha em média três anúncios de
equipamentos para montagem de emissoras. Reproduzo a seguir algumas destas
propagandas. Abaixo um anúncio da empresa “Sany” e dois da empresa “Teclar”
104 Durante algum tempo a ABRAÇO gerenciou um consórcio denominado “Consórcio Nacional ABRAÇO/BANCORBRÁS”, para viabilizar a compra de equipamentos pelas emissoras comunitárias. 105 “Cresce a venda de transmissores”. Matéria de Daniel de Castro publicada no jornal “Folha de São Paulo” em 26/06/00
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publicados no jornal com os títulos: “Tenha sua própria rádio comunitária106. Agora é
legal” e “Monte já sua rádio comunitária. Agora com o apoio da Lei”:
Figura 8: Anúncio da empresa de transmissores “Sany” publicado no ABRAÇO no Ar nº 12, de Junho de 1999.
Figura 9: Anúncio “Tenha sua própria rádio comunitária”, da empresa de equipamentos eletrônicos “Teclar” publicado no número 8 do Jornal ABRAÇO no Ar, de março de 1999.
106 Outras empresas que também anunciaram nas páginas do jornal foram “a APEL”, “a TELETRONIX”, a “DB-NET”, a “TELEKOM” e “Victor do Brasil LTDA”.
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Figura 10: Anúncio de página inteira: “Monte já sua rádio comunitária. Agora com o apoio da Lei”, da empresa de equipamentos eletrônicos Teclar publicado no número 8 do Jornal ABRAÇO no Ar de julho de 1998.
O jornal registra também uma preocupação com a formação jurídica, já que
boa parte das rádios não tem concessões e podem ser lacradas a qualquer
momento, estando seus responsáveis sob o risco de responder a processo criminal.
Em um dos números do jornal se oferece o seguinte material: “Saiba como
instalar uma rádio verdadeiramente comunitária” e “Porque defendo as rádios
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comunitárias” do Juiz Federal de Direito de Uberaba-MG, Paulo Silveira Fernando107.
São oferecidos também os seguintes títulos: “Como fazer uma boa programação de
rádio comunitária”, “Como adquirir equipamentos para as rádios comunitárias” e
ainda um “kit jurídico com modelos de mandato de segurança preventivo, acórdãos,
agravo de instrumento, sentenças....” (Jornal “ABRAÇO no Ar”, nº 14, setembro de
1999).
Depoimentos de operadores do direito que interpretam a legislação sobre a
radiocom de modo crítico e, portanto, favoráveis as emissoras comunitárias, e que
haviam concedido liminares de funcionamento às emissoras, são apresentadas pelo
jornal no esforço de legitimação das posições favoráveis às radiocom. Os agentes e
as experiências têm destaque no jornal e ilustram, de um lado, o caráter repressivo
da Lei e, de outro, oferecem alento a ação das rádios dentro do Estado de direito,
amparadas principalmente no direito de expressão como uma garantia
constitucional. São exemplos desse recorte as matérias: “Juiz federal vê país numa
ditadura mascarada” (“ABRAÇO no Ar”, setembro/1999), “Com a palavra a justiça”
(“ABRAÇO no Ar”, setembro/1999) e “A questão jurídica das rádios comunitárias”
(“ABRAÇO no Ar”, outubro/1999).
A importância do campo jurídico no “Abraço no A”r, revela que parte
importante dos problemas enfrentados pelas emissoras se resolve no campo legal, o
que afeta, como visto no caso do Ceará, a organização do movimento, já que o
ordenamento jurídico desempenha papel tão importante quanto a mobilização
política.
Do ponto de vista da construção da auto-imagem, as disputas jurídicas,
quando ganhas, revelam aspectos das distorções da legislação, e sua ilegitimidade.
As rádios aparecem nestes casos como instrumentos da liberdade de expressão, e
em um esforço para reverter a imagem de ilegais e piratas que lhes é imputada
pelas matérias da imprensa, como visto no caso da cobertura feita das radiocom
pelos jornais cearenses.
107 O Juiz, atualmente aposentado, é autor do livro “Rádios Comunitárias”, que analisa o fenômeno das emissoras comunitárias sob a perspectiva do direito de informar e ser informado. O juiz também como assessor na elaboração do projeto de Lei que municipaliza as concessões de radiocom na cidade de São Paulo, recentemente sancionada pelo prefeito José Serra.
149
O grande tema presente no jornal é a democratização das comunicações, o
que liga a auto-imagem das emissoras a uma proposta libertária e revolucionária.
Assim elas são vistas como guardiãs da liberdade; porta-vozes do povo, ou melhor,
encarnação do próprio povo; instrumentos de democratização; promotoras dos
valores culturais brasileiros; agentes do desenvolvimento comunitário; agentes de
transformação social. Estas, entre outras representações, passam a compor
positivamente a auto-imagem das radiocom, e buscam equilibrar a balança do
“diferencial de poder” (ELIAS, 2000) que pesa a favor das emissoras comerciais.
O jornal esboça ainda um cenário de negação do modelo de
telecomunicações do Brasil e reverte a questão da pirataria, atribuída as rádios
comunitárias, em argumento para a leitura dos atuais proprietários de meios de
comunicação no Brasil, representados como “saqueadores, piratas que colonizaram
o Brasil”.
A utopia revolucionária a ser realizada pelas radiocom, que englobaria
aspectos da mudança política, com uma participação do cidadão a partir de um meio
de comunicação feito por ele e para ele; a mudança cultural, com a possibilidade de
produção alternativa à das emissoras comerciais, entre outros, produzem uma
idealização do papel social das radiocom. Mas guardam lugar importante no
processo de interpretação destas emissoras, negando as atribuições desfavoráveis
que os grandes grupos de comunicação lhes imputam, e que se expressa na
cobertura dos jornais vista anteriormente.
3.4 O que deve ser uma rádio comunitária
O manual de Dioclécio Luz (2000) e algumas matérias presentes no Jornal
“ABRAÇO no Ar” sugerem a constituição de uma “etiqueta”, uma orientação de
comportamento dos membros das radiocom frente a seu funcionamento. A etiqueta,
depois transformada em código de ética pela ABRAÇO (anexo 5), constitui um
elemento de diferenciação das radiocom em relação às emissoras comerciais, que
são, segundo Luz, pautadas pelo lucro, guiadas pelos interesses da indústria cultural
e avessa aos movimentos sociais. A identidade das radiocom se constrói, portanto,
pela negação do campo institucional da radiodifusão.
150
A construção de uma imagem e identidade que se fundamenta pela negação
demarca um esforço de afirmação que se desenvolve em diversos campos.
Juridicamente se afirma uma disputa pelo espectro eletromagnético que torna
possível sua partilha com as rádios oficiais. No campo da programação se afirma a
possibilidade de uma programação mais cultural e mais educativa. E em relação à
participação social se afirma uma relação de diálogo com a sociedade (movimentos
sociais).
Está pressuposta neste processo a idéia de bem, da qual as radiocom
seriam portadoras, donde se conclui que seriam melhores que as emissoras
comerciais. É com base nesse discurso que o campo se afirma, num movimento de
dentro pra fora. E é ainda com base nele que as disputas internas se pautam. Os
elementos de perversão daquilo que seria o destino das radiocom são apontados
como presentes nesta ou naquela emissora que, por isto, não poderiam ser
reconhecidas pelos seus pares como radiocom. Daí as denominações: “rádio
comunitária mista, rádio picaretária, falsa comunitária, pseudo-comunitária, etc”.
O debate interno entre as rádios se situa nesse ambiente onde a definição
do que é ser uma “rádio verdadeiramente comunitária” tem um papel central. Nesse
sentido, ora a argumentação se volta para a defesa da Lei, ora para sua negação.
Ora para a atribuição de legitimidade de sua prática, ora para a deslegitimação da
prática de emissoras de baixa potência não reconhecidas como comunitárias. Ora na
defesa da liberdade de ação, ora na defesa do controle estatal. A articulação dessas
falas irá depender do lugar e dos atores sociais que as formulam.
Além dos interesses distintos dos diversos agentes, o que constitui a atual
legislação de radiocom no Brasil é o reconhecimento da existência de uma prática e
a necessidade de seu controle. As práticas e as fronteiras desse espaço social só
podem ser compreendidas de modo relacional, no jogo de força e do interesse de
diferenças esferas: O Estado, as rádios comerciais e as radiocom.
Além do Abraço no Ar, com a popularização da Internet grande parte da
discussão sobre as emissoras se transfere para as listas de discussão na internet.
Além do caráter interativo, estas listas são interessantes porque não apresentam
apenas a visão institucional sobre as rádios, oferecendo inclusive farto material de
151
crítica aos agentes institucionalizados que representam as radiocom, como a
ABRAÇO. O tópico a seguir trata do acompanhamento a uma dessas listas.
3.5 As rádios comunitárias na Internet
No campo das comunicações alternativas, parte das informações e dos
discursos também circula pela rede mundial de computadores. Campo de discussão
e exposição de idéias, a Internet fornece material importante para o pesquisador
interessado na discussão de temas polêmicos108, entre eles as radiocom. “Sites”
institucionais ou particulares e listas e grupos de discussão oferecem material que
permite visualizar o cenário de perspectivas sobre as emissoras comunitárias.
Estratégias de legitimação e de deslegitimação destas rádios e formas diferentes de
entender o que é uma emissora comunitária e qual o seu papel são expressas
nestes espaços virtuais.
Assim, de acordo com a idéia de apreensão da auto-imagem das radiocom,
a Internet aparece como um campo fecundo para se compreender os mecanismos
usados no processo de identificação e de interpretação do papel destas rádios. A
idéia de legalidade no campo das radiocom gera um ambiente de disputas sobre a
própria legalidade, sobre a idéia de democratização das ondas do ar, ao mesmo
tempo em que produz uma dinâmica de afirmação das distinções, com vistas a
“separar o joio do trigo”.
Essas disputas ressurgem no espaço virtual da Internet. Os fóruns, listas ou
grupos de discussão sobre rádio discutem estes problemas. Esses territórios virtuais
tornam-se espaços privilegiados para a compreensão das divergências, são
108 Na verdade a Internet tem se mostrado um campo fecundo de informações sobre os mais diversos temas, polêmicos ou não. Vários pesquisadores têm se dedicado a discutir aspectos metodológicos da pesquisa nesse meio. Assim, Em um texto intitulado “Antropologia e Internet. – Pesquisa e Campo no meio virtual” (AMARAL, 2002) a antropóloga Rita Amaral discute a Internet como um campo para a pesquisa antropológica. A autora trata da necessidade de debate sobre o “campo virtual e oferece um guia dos primeiros passos e possibilidades a quem se aventura no uso do computador, para além das funções de uma máquina de escrever sofisticada ou de uma calculadora e bem mais o de um ativo assistente de pesquisa, capaz de solucionar alguns dos problemas práticos durante as várias fases de uma pesquisa...” (p. 3). O argumento é o de que “os computadores podem transformar, em alguns sentidos, o modo pelo qual a pesquisa qualitativa vem sendo feita e, até mesmo, sugerir novas pesquisas sobre o próprio uso da Internet como fonte de dados ou como espaços de relacionamento entre grupos” (p. 2).
152
compostos de fragmentos das formas de compreensão do papel da rádio e do
movimento das radiocom109. Eventos e fatos movimentam as discussões.
Em dezembro de 2002, numa das visitas a Internet em busca de dados para
a pesquisa me tornei assinante de uma lista de discussão sobre rádio denominada
“Rádio Livre”, e cujo endereço é [email protected]. Minha principal
motivação para o ingresso na lista era sua configuração como um provável campo
de informação sobre as emissoras comunitárias e rádios livres em nível nacional.
Fonte de perspectivas e informações nem sempre visíveis no espaço local da
pesquisa, Fortaleza-Ce.
Depois de alguns meses recebendo o material, decidi analisá-la não apenas
como uma fonte de informações, mas também como um espaço de percepção, onde
a legitimação e definição das emissoras e dos rumos dos movimentos das radiocom
também ocorre.
Na lista, que recebia “e-mails” de diversos colaboradores e debatedores,
analisei também uma publicação, chamada “Revista Rádio Livre”, circulante nesta e
em outra lista Fazem parte da lista pessoas e instituições interessadas na discussão
sobre rádios livres e comunitárias. Além da discussão especifica sobre as emissoras,
a lista escoa e socializa informações sobre arte, cultura, política e as produções
específicas dos participantes, como textos, boletins, avisos, etc, nem sempre
relacionadas diretamente com a temática do rádio. O período analisado compreende
aos meses de dezembro de 2002 a junho de 2003. Dentre os tantos “e-mails”
recebidos, 35 foram escolhidos para a análise.
Na lista, quando o assunto é rádio110 o principal tema são as radiocom.
Circulam principalmente e-mails com informes e opiniões. A dinâmica é a seguinte:
alguém manda uma informação (matérias da grande imprensa ou informações sobre
um determinado evento, como por exemplo o fechamento de uma emissora ou uma
audiência pública sobre as radiocom) que é então debatido/respondido/comentado.
Assim, os eventos que são informados passam a compor o repertório das
109 Talvez por isso uma boa imagem para entender e classificar as formas de compreensão das rádios e de seu papel parece ser a do caleidoscópio. 110 Nem sempre o que chega a lista como opinião, informação ou informe se refere ao rádio, como referido antes.
153
discussões. Estas nem sempre contam com a mesma audiência e assistência. Há
eventos e notícias que por seu conteúdo polêmico movimentam mais os debates.
Outros, embora falem das rádios, não provocam manifestações111.
Acontecimentos nacionais e internacionais importantes ocorreram durante o
período de recepção dos materiais produzidos pela lista e de alguma forma
repercutiram na orientação das discussões. A posse do novo Presidente da
República e as esperanças que esse novo momento acenava estão lá. A guerra dos
Estados Unidos contra o Iraque também, assim como a composição do novo
governo e as primeiras críticas e expressões de decepções com os
encaminhamentos na área das telecomunicações. Desta forma, a discussão na lista
acaba incorporando as temáticas nacionais e internacionais como pauta.
Os “e-mails” analisados aqui se relacionam apenas com a temática rádio e
de acordo com a dinâmica da lista são tratados como “episódios significativos”:
Àqueles que puseram em relevo as questões mais conflituosas do universo das
radiocom e, por isso, foram os mais respondidos, criando, naquele momento da lista,
uma pauta comum de debates112. São eles: 1) O caso das “rádios do mal” 2) O caso
ABRAÇO (indicação ao MinCom) 3) Os casos de repressão PF e Anatel: fechamento
e lacre de rádios 5) Relatos sobre as reuniões do Conselho de Comunicação. Há
ainda os que, embora não tenham gerado um ativo debate, trataram da definição
das radiocom e de seu papel.
111 Como campo de discussão, a lista, com mais de 35 participantes no período acompanhado, parece não corresponder às expectativas do mantenedor do grupo. Tanto que em 22 de maio ele circula e-mail com aviso de sua desativação. A motivação? A fuga de seu propósito. 112 Como todo recorte de pesquisa, a seleção se efetuou também e principalmente em função dos interesses do trabalho de investigação: compreender o conflito em torno da definição do que seja uma rádio comunitária e as diferentes percepções sobre esta definição.
154
3.5.1 “Rádios do mal?”
“A primeira rádio fechada no governo Lula”113. Com essa matéria Laura
Mattos, repórter do jornal Folha de São Paulo, informa o fechamento da emissora
comunitária Rádio Vale do Paraíba FM e discute a perplexidade do movimento de
radiocom frente à ação de repressão dessas emissoras no novo governo, expressas
no Fórum Social Mundial e nos “blogs” de discussão de rádios na Internet. Ela
encerra seu texto dizendo:
São debates relevantes, principalmente em início de governo. Mas seria bom que o fórum servisse também para questionar por que alguns chegaram a se assustar com o fato de uma rádio ser fechada no governo Lula. E 14 dias depois da posse. Será que não é hora de buscar um amadurecimento, inclusive, para admitir que nem toda rádio chamada de comunitária é “do bem”?
A construção de uma forma de diferenciação das radiocom baseada na idéia
de “bem” e de “mal” suscitou um dos mais acalorados debates da lista, a maioria das
falas respondendo diretamente a autora. Grande parte das réplicas se colocava
contra sua posição, posta sob suspeita. Outras tomaram a discussão da matéria
como ponto de partida para uma reflexão sobre os rumos do movimento de rádios
comunitárias e sobre sua composição.
Parte das participações no debate da matéria colocou a autora e não o tema
do bem e do mal na radiodifusão comunitária, um recorte por si só mobilizador de
argumentos maniqueístas, no centro das discussões. Assim, entre as falas
contrárias ao texto de Laura Mattos, está a que afirma uma dubiedade nas posições
da autora, identificada até então como uma das defensoras da causa das radiocom:
“Da maneira como você (que também é defensora dessa causa) está escrevendo,
está provocando desconforto no movimento pela democracia nas comunicações.
Seus textos estão trazendo algo que deixa dúbia sua própria concepção”.
A dubiedade seria marcada pela confusão entre legalidade e legitimidade, na
medida em que a autora só reconheceria como legítimas as rádios que tivessem
obtido autorização para funcionar. Haveria também a recusa em aceitar que as 113 Matéria publicada na coluna “Outra Freqüência”, do suplemento “Ilustrada”, no dia 22/01/2003.
155
rádios sem autorização agem em defesa da democratização e que sem elas tudo
ficaria como está, sendo a ação das rádios uma transgressão necessária. Além
disso, a autora da matéria reforçaria a visão conservadora da Policia Federal e o seu
modo de ação na repressão às rádios.
Outros membros da lista denunciam uma ligação do jornal e da jornalista
com os interesses de grandes grupos de comunicação, eles sim “do mal”, portadores
do privilégio de poder comunicar em proveito de grandes grupos nacionais e
internacionais. O debate produz interessante reflexão sobre o termo “pirata”. As
rádios assim chamadas o seriam porque não tiveram liberadas as concessões de
funcionamento114.
Emerge ainda da discussão a esperança de que o novo Presidente da
República entregue licenças às “verdadeiras comunitárias” e cace “licenças
eleitoreiras”, que haviam sido distribuídas no período da campanha eleitoral, em
2001. Um dos participantes da lista afirma esperançoso: “Agora as rádios irão cair
nas mãos dos pobres e os ricos que subam para as parabólicas. A freqüência de 88
a 108 é nossa e ninguém tira”. E sobre o fechamento das rádios o mesmo “e-mail”
diz:
Se perante a lei todos são iguais, porque somente os pobres não podem possuir rádio? (...) A nossa não tem anúncios, todas as religiões tem direito e temos o serviço de cultura. Esta foi lacrada e por eles seria definitivo, mas eu sei deslacrar rádio, é simplesmente com uma boa tesoura. Quem está com as comunitárias está com Deus.
Outros membros da lista se posicionaram de modo diverso nessa polêmica.
Em um dos textos de resposta há uma reflexão sobre o espanto pelo uso do termo
“rádios do mal”. Espanto que refletiria uma visão ingênua e paranóica sobre o
universo das rádios. Anexo ao “e-mail” uma mensagem que noticia a apreensão de
uma emissora que seria exemplo do que “é exatamente uma rádio do mal”, cujo
título é “Suposto padre tinha armas e rádio pirata em igreja”. O “e-mail” reconhece
114 Um dos “e-mails” da lista informa a criação de um grupo de trabalho, no novo governo, para agilizar os pedidos de concessão, calculados a época em torno de 4.400 processos. O grupo trabalhou em 2003 e criou uma série de procedimentos para análise dos pedidos de radiodifusão comunitária, que foram sugeridos para incorporação junto ao MiniCom.
156
que existem rádios diferentes em um mesmo campo, o das radiocom, e afirma que é
preciso reconhecer também formas diferentes de exploração do serviço de
radiodifusão comunitária, nem sempre efetuadas a serviço das comunidades onde
estão sediadas as radiocom.
Na polêmica, outro membro se diz feliz pelo debate causado pelo uso do
termo “rádios do mal” e defende a posição da jornalista. A leitura feita do episódio e
que a põe em suspeita (ela estaria aliada a grupos contrários as radiocom) seria
equivocada. O uso do termo seria assim “uma forma de separar o joio do trigo”. Há
também o reconhecimento da pluralidade de posições e da tensão entre elas
presentes no movimento das radiocom. Os “grupos de esquerda”, ao negar esse
fato, agiriam de modo ingênuo, ao reconhecer uma coesão e pureza do movimento
que seriam inexistentes.
O episódio suscita uma série interessante de formas de representar as
radiocom e o movimento. A adjetivação bem e mal e os sentidos evocados por estas
idéias são acionados em função de um debate sobre outras noções e
representações: “legitimidade, legalidade, democratização”. Sob forte pressão do
Estado e de grandes grupos de comunicação, a necessidade de distinguir entre as
“verdadeiras rádios comunitárias”, representantes do bem, e as outras,
representantes do mal, se converte, ora em defesa irrestrita do movimento e na
negação de sua heterogeneidade (e da existência de ações oportunistas em um
campo ainda em formação), ora na defesa da crítica e da denúncia de rádios que
não são comunitárias, como forma de preservar o próprio movimento.
Nesse processo representações usadas de “fora” para deslegitimar as
radiocom são re-apropriadas internamente pelo movimento, construindo uma
distinção entre eles, as rádios não comunitárias, e nós, “rádios verdadeiramente
comunitárias”. Esse movimento de manipulação das representações é parte do
processo de estabelecimento da “auto-imagem”, que surge como um campo
importante de ação, dentro e fora do movimento, como será visto adiante.
157
3.5.2 Indicações ao Ministério das Comunicações
Outro momento interessante da lista foi o de indicação de alguns nomes
para a composição do novo secretariado do Ministério da Comunicação. Em
encaminhamento do Boletim do Fórum Nacional pela Democratização das
Comunicações (FNDC)115, os membros da lista são informados dos indicados pelo
FNDC. As reações que se produzem são principalmente de repúdio e de negação a
alguns dos nomes propostos. Ainda que as indicações tenham sido realizadas
depois de teleconferência com as cinco entidades que compõe a Diretoria Executiva
do Fórum, composta pela Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação
(ENECOS), Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (ABRAÇO), Conselho
Nacional de Psicologia, Federação Interestadual dos Trabalhadores em
Radiodifusão e Televisão (FITERT) e Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ).
Nas expressões de desaprovação o principal alvo é a ABRAÇO, que aparece
como116:
• Uma entidade desacreditada, marcada pelo oportunismo e pela
“politicagem”. Uma “entidade de cargos” distanciada das bases, e cuja principal
motivação é conseguir indicação para seus membros em cargos em entidades e
instituições governamentais.
• Há a memória da entidade como porta-voz de um grande projeto
esvaziado e por isso mesmo, clamando por uma retomada.
• Há uma exposição clara de tensões que esfacelaram a entidade
construindo outras instituições como a Rede Brasil de Comunicação Cidadã (RBC)
Federação de Rádios Comunitárias (FARC)
• Os nomes rejeitados têm postas sob suspeita suas intenções para com
o movimento das radiocom, mais interessados que estariam em “crachás” e
“empregos”.
A fragmentação do movimento e a descrença em algumas entidades e
instituições encontram espaço para ser debatida com mais franqueza nas listas.
115 Boletim Número 11, de 10/01/2003. 116 A desaprovação de alguns nomes se relaciona diretamente ao vínculo destes com a ABRAÇO.
158
Nesta, a recusa se expressa claramente, inclusive com a menção dos nomes
indicados e recusados por alguns participantes da lista.
3.5.3 Os casos de repressão: o fechamento e lacre de rádios comunitárias.
Parte significativa dos “e-mails” analisados trata do fechamento de radiocom
pela Polícia Federal e Anatel. A situação de tensão a que estão submetidas as
rádios sem concessão, funcionando com o amparo de liminares, ou, como muitas
vezes acontece, sem nenhum resguardo legal, torna a presença da rádio no ar um
possível problema criminal para aqueles que estão à sua frente.
Um técnico117 da Anatel-Ceará, explica o que acontece com uma rádio que é
posta no ar sem autorização:
O procedimento da Anatel, previsto na LGT [Lei Geral das Telecomunicações], é de que os agentes de fiscalização pudessem fazer busca e apreensão dos equipamentos, aí esse dispositivo foi revisto numa ação direta de inconstitucionalidade e está liminarmente suspenso, o mérito dele não foi julgado ainda. Então hoje a gente fiscaliza e faz interrupção cautelar, os equipamentos são lacrados (...) e ficam na guarda do proprietário. Eles passam a ser o fiel depositário do equipamento e a gente encaminha esse termo de interrupção para a Polícia Federal, fazendo uma denúncia e tipificando quais são os crimes ali, quais são os dispositivos previstos, e a Polícia Federal instaura um inquérito, um inquérito que em seguida vai para a justiça, que é denunciado. (...) Aí geralmente a polícia pede a apreensão (...) e os juízes geralmente concedem busca e apreensão.
Uma rádio sem autorização representa, ao mesmo tempo, um ato de
desobediência legal, de luta pela democratização das comunicações mas também
uma provável ocorrência policial. Inúmeras são as estratégias usadas para fugir da
apreensão dos equipamentos e abertura de inquérito contra os comunicadores. Tirar
a rádio do ar, impedir que os fiscais entrem sem mandato são algumas das táticas
usadas para fugir da vigilância.
117 Entrevista concedida à autora em 17/01/2005.
159
Nos grupos de discussão estratégias preventivas ao fechamento e ações
solidárias às rádios apreendidas são criadas, entre elas a campanha “Libertem
Nossos Presos” liderada pela ONG AMARC (Associação Mundial de Rádio
Comunitárias). Há ainda uma série de informações que circula sobre o processo de
legalização das emissoras e a saída destas da condição de clandestinas.
Além de estratégias preventivas contra o fechamento de emissoras, a lista
registra as apreensões e lacres e manifesta seu repúdio contra o fato. Num “e-mail”
de abril de 2003, é repassada a informação, embora ressaltando-se a necessidade
de que checagem de sua autenticidade, sobre apreensão de 132 emissoras em São
Paulo, listadas com nome, endereço e tipo de ação realizada, divida em quatro
categorias: “equipamentos lacrados, local fechado/emissora no ar, impedida de
vistoriar e emissora desativada”.
A “Revista Rádio Livre”, que circulou na lista em 3/12/02, por exemplo,
anuncia: “Rádios Comunitárias exigem abertura de inquérito contra a Anatel”. O texto
avisa que:
As entidades que congregam as rádios comunitárias do Rio Grande do Sul e trabalhadores dessas pequenas emissoras denunciam nesta quarta-feira, dia 27, as arbitrariedades e violência que vêm sofrendo da Policia Federal, a mando da Anatel, ao mesmo tempo em que divulgaram reivindicando os direitos constitucionais e democráticos de funcionarem a bem dos interesses da comunidade.
É interessante observar que a Anatel faz referência parecida a ações de
violência contra seus fiscais em um de seus relatórios de fiscalização, afirmando: “As
ameaças sofridas pelos fiscais e os locais fechados foram alguns dos principais
responsáveis pela ineficiência das ações de fiscalização e combate a estações não-
outorgadas” (Relatório Gerencial da SRF 2004, p. 10).
O acompanhamento dos processos e ações do executivo, legislativo e
judiciário também é constante. Audiências públicas, projetos de lei, campanhas de
apreensão de rádio são constantemente monitoradas. Alimentam a lista informações
dos boletins parlamentares, matérias de jornais de grande circulação nacional,
160
boletins de entidades e denúncias de comunicadores e simpatizantes contra
arbitrariedades às emissoras.
Na situação de clandestinidade, o uso do termo pirata divide os
comunicadores comunitários e militantes do movimento das radiocom. Para alguns o
termo acentua a situação de criminalização das radiocom que ainda não
conseguiram concessão, não devendo ser usado. Para outros ele encarna o espírito
de rebeldia que as radiocom levam a frente ao democratizarem as ondas do ar.
Também chamadas de rádios livres, denominação que se insurge contra a idéia de
legalidade e restrição do direito de voz representado pela ação restritiva do Estado,
a denominação rádio pirata também é usada por aqueles que encontram no termo
uma definição de sua condição a espera da legalidade.
Aqui também se expressa uma pulverização de formas de compreensão do
papel das rádios e de sua situação frente a uma provável legalização. O termo
“pirata” passa a ser usado como instrumento para uma distinção interna ao
movimento das radiocom, referindo uma diferença entre “rádios não comunitárias” e
“verdadeiramente comunitárias”.
3.5.4 As reuniões do Conselho de Comunicação.
Um “e-mail” solitário na lista traz impressões pessoais sobre o
funcionamento do Conselho Nacional de Comunicação Social. Entre elas a
observação sobre a lentidão nos encaminhamento e na própria estrutura do
conselho; a forma de tratamento e de percepção das rádios comunitárias neste
órgão é um capítulo interessante da relação entre o movimento de radiocom e os
órgãos de estado e entidades de classe como ABERT (Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão). A autora da mensagem se espanta com a
negação do fechamento de radiocom pela Policia Federal. As rádios fechadas não
seriam comunitárias, seriam piratas e ilegais. Este tratamento é considerado pela
observadora como o “fato mais inacreditável da reunião”
Ainda que “inacreditável” a estratégia de deslegitimação das emissoras
lacradas por interesse destes grupos, não exclui a ausência de unanimidade dentro
161
do próprio movimento de radiocom quanto a proliferação de emissoras de baixa
potência que não são usadas para fins comunitários, estas também não seriam
consideradas radiocom.
Daí, talvez, a delicada posição de admitir o uso de termos utilizados
anteriormente apenas por grupos contrários as radiocom por parte de integrantes do
próprio movimento, como “rádios piratas” e “rádios do mal”. A necessidade de
denunciar a presença de oportunistas que colocam rádios no ar, sob a definição de
radiocom, exige uma nova forma de conceber o movimento e estas ações. A auto-
imagem parece incorporar as funções de definição e distinção no jogo de construção
da legitimidade, de acordo com a lei e para além dela.
Na batalha por legitimação a auto-imagem, que passa por um constante
processo de definição, é arma importante nas disputas de poder: seja internamente,
seja na relação do Estado com as Rádios, seja na relação das entidades de classe
com estas. A lista analisada permite visualizar esse processo. As formas de
compreender e definir as emissoras estão na base da construção dessa imagem e
ainda não são homogêneas.
Considerando os materiais analisados é possível identificar quatro grupos a
partir dos quais são elaborados discursos sobre as rádios comunitárias: os órgãos
de Estado e “empresários de comunicação” (onde se mesclam interesses de
grandes grupos de comunicação, políticos influentes e órgãos como Anatel e
Ministério das Comunicações); o movimento de rádios comunitárias e militantes a ela
vinculados; e as rádios que historicamente não participaram do movimento das
radiocom. As imagens produzidas por eles compõem um mosaico de interpretações
sobre o que seja a radiofonia comunitária que, de acordo com os interesses de cada
um, podem construir uma imagem positiva ou negativa das emissoras.
Na elaboração dos discursos, cada um deles produz uma interpretação
sobre as radiocom com base na presença ou ausência de certos elementos, a partir
dos quais se afirma o que elas são e o que elas não são. Entre os órgãos de Estado
prevalece a oposição legal/ilegal. Já entre os grupos empresariais de comunicação e
seus órgãos de classe como ABERT e ACERT, a oposição legal/ilegal é acrescida
de outras qualificações relacionadas a idéia de pirataria.
162
Dentro do movimento de rádios comunitárias a oposição legal/ilegal é
relativizada. Ela é subordinada a outra oposição as “picaretárias” versus
“verdadeiramente comunitárias”. A definição “verdadeiramente comunitárias” é
atribuída a quem participa e compõe o movimento de rádios comunitárias (até um
certo momento coeso, depois esfacelado e em processo de recomposição, aqui no
Ceará e em nível nacional).
A proclamação de certos princípios, que funcionam como utopias e
idealizam um lugar social bem como a prática de uma radiocom. Essa idealização
diz respeito a aspectos que vão desde a prática política, compromisso com certos
temas e posições, até a idealização da participação da comunidade ou a
composição da programação, onde programas educativos, o bom gosto e respeito
devem imperar.
Entre as rádios não vinculadas ao movimento de radiocom (ou que dele se
afastaram), a autoproclamação como radiocom não tem o mesmo sentido que tem
para as rádios vinculadas ao movimento. Ela não se afirma a partir de todos aqueles
princípios. É principalmente a pratica e a relação com a comunidade que marcam o
discurso.
O controle do espaço e da posição de cada um deles no quadro das
comunicações se efetiva através da capacidade de construir um discurso e uma
imagem sobre si e sobre o outro. Nessa disputa pelo reconhecimento, legitimação e
respeitabilidade, parte das armas é discursiva.
163
CAPÍTULO 4
RÁDIOS COMUNITÁRIAS: EM BUSCA DO SIGNIFICADO
O objetivo deste capítulo é compreender, a partir do discurso de algumas
emissoras, os sentidos presentes na construção da significação “radio comunitária”.
E, a partir daí, entender que elementos participam da construção da auto-imagem
dessas emissoras.
Foram selecionadas para a análise três emissoras da capital cearense.
Todas elas se auto-intitulam emissoras comunitárias, embora tenham trajetórias e
formas de operação diferenciadas. Os critérios para a seleção das emissoras foram
a acessibilidade e a diversidade do tipo de experiência, representada por variáveis
como tempo de existência ou sistema de transmissão, se cabo ou freqüência
modulada.
Uma das rádios, a “Cabo Comunidade”, funciona pelo sistema de caixas de
som e participa de modo particular do debate sobre as radiocom, já que não ocupa a
freqüência radiofônica, não sendo por isso considerada ilegal. Outra emissora
escolhida foi a “Círculo FM”. Hoje ela funciona pelo sistema de freqüência modulada,
mas já teve um passado como rádio de caixinha.
A terceira emissora, a “Rádio Comunitária Antônio Bezerra”, é a mais jovem
entre as emissoras pesquisadas; já surge depois da promulgação da Lei 9.612 e
incorpora de modo muito evidente o tema da legalidade/legitimidade de uma
emissora comunitária.
Durante a pesquisa visitei ainda a Rádio Interativa FM, uma das oito
emissoras outorgadas em Fortaleza. A Rádio funciona no bairro do Novo Mondubim
e mesmo depois da concessão não tinha programação. No estúdio simples, mas
bem equipado, um computador mantinha a freqüência ocupada. O grupo a frente da
emissora era um grupo religioso, inclusive com ligações com a “TV Comunitária”,
164
canal disponível para assinantes da tv a cabo na cidade e que também leva ao uma
programação de cunho religioso118.
Sofrendo com a interferência de outra emissora, a Rádio Interativa já usava
o argumento repressivo a seu favor, opondo as rádios oficiais, que como ela haviam
conseguido a concessão, às clandestinas e piratas. O argumento era o de que essas
emissoras deveriam ser contidas, lacradas pela Polícia Federal e Anatel.
Além dessas emissoras, trabalho ainda com a Rádio Favela FM, emissora
situada em Belo Horizonte, Minas Gerais. Durante o ano de 2003 visitei a emissora e
realizei uma entrevista com um seus diretores.119
Embora hoje funcione com licença de emissora educativa, essa rádio passou
grande parte de sua história como emissora clandestina aos olhos do Estado e se
converteu, ao longo de sua trajetória, em uma referência para as rádios comunitárias
em todo o Brasil. Em 2001 foi tema do filme “Uma onda no Ar”, do cineasta Helvécio
Ratton, chamando a atenção para a questão das rádiocom e a democratização das
comunicações. O filme narra a trajetória da emissora desde as primeiras
transmissões no horário da “Voz do Brasil”, até o reconhecimento internacional, bem
como toda a violência e perseguição sofrida por seus membros em função da
manutenção da emissora no ar.
Hoje, reconhecida e admirada, a Rádio Favela ocupa um papel importante
no cenário da comunicação comunitária, seja pelo pioneirismo, seja pelo sucesso e
qualidade da iniciativa. Uma série de premiações recebidas pela rádio transpõe,
como afirma um de seus fundadores, da página policial para o caderno de cultura a
visibilidade e a interpretação do lugar social da emissora: de marginais a agentes de
cidadania. A posição da rádio é bastante significativa, na medida em permite ver, a
partir da perspectiva da consagração, o ambiente de disputa vivido pelo espaço da
radiofonia comunitária.
118 Nesta rádio não houve autorização para que eu gravasse entrevista. 119 A visita a Rádio Favela e entrevista à Misael foram feitas em 04/09/2003, por mim e Catarina de Oliveira também pesquisadora da temática das rádios comunitárias.
165
4.1 “A Rádio Favela é o que há!”
A Rádio Favela surgiu como uma iniciativa espontânea de um grupo de
jovens moradores de uma das regiões mais pobres de Belo Horizonte, o Aglomerado
da Serra. Como no cenário descrito por alguns autores como Meliani (2003) e Costa
Jr. (1999, p. 21) “onde jovens estudantes de eletrônica montavam pequenos
aparelhos para transmitir e escutar, à distância, suas músicas prediletas”, no
Aglomerado não foi diferente. A compra dos equipamentos, a montagem do
transmissor caseiro e a decisão de botar a rádio no ar no horário da “Voz do Brasil”
foram iniciativas de um grupo de amigos, vizinhos do bairro. Olhando
retrospectivamente, Misael Avelino dos Santos, um dos fundadores da Rádio, afirma
orgulhoso sobre o pioneirismo da emissora:
Aqui na minha cidade foi o lugar que lançou a primeira FM do Brasil. Então os caras lançaram a primeira, nós lançamos a segunda, ou seja, a primeira rádio pirata do Brasil nasceu aqui, que é a Rádio Favela. Então, nós tínhamos certeza que não tinha mais nenhuma, nós entramos no ar em 76, a primeira rádio entrou aqui, a FM entrou em 73. (...) Então, nós entramos em segunda, aliás entramos em terceiro, não entrou em segunda porque veio uma rádio lá do Rio de Janeiro que se chamava Jornal do Brasil, para cá, nós entramos em terceiro...
A Rádio está localizada no alto do morro, na favela do Cafezal, uma das
áreas que compõe o Aglomerado. Do terraço da rádio se enxerga grande parte de
Belo Horizonte e muito do conjunto de onze favelas que compõe o Aglomerado. O
prédio é modesto mas de alvenaria, tem três andares e um padrão construtivo
melhor que o cenário que o rodeia. A rádio funciona em um espaço amplo, e abriga
não apenas as atividades comuns a uma emissora, mas projetos sociais
desenvolvidos por ela. Três estúdios bem equipados compõem sua estrutura de
trabalho. Do lado de fora a rádio é lugar de referência, crianças podem ser vistas nas
imediações da emissora. Se a rádio é lugar de referência para o Aglomerado da
Serra não o é para toda a cidade.
Ao chegar em Belo Horizonte, depois de algumas perguntas sobre a
existência da Rádio Favela, ainda no Aeroporto e logo depois na chegada ao hotel, a
impressão que se tinha era a de a rádio não existia. As respostas foram quase
166
sempre negativas, senão de estranhamento, “que? conheço não”. Encontramos120
no hotel um rapaz que sorriu orgulhoso e simpático a pergunta “você conhece a
Rádio Favela?”, respondeu: “É lá de onde moro”. Orgulhoso do bairro, da rádio e de
outra identificação que não a da subalternidade, cuja posição de trabalho no hotel
lhe conferia, ele generosamente nos ensinou a chegar lá.
Para chegar à rádio sobe-se um morro, onde fica o Aglomerado. Até uma
certa altura a área se configura como um bairro de classe média, mas conforme se
sobe o aspecto muda: casebres e infra-estrutura precária se alongam até o topo.
Depois de um certo ponto a subida é a pé. Durante o percurso uma senhora
também orgulhosa da rádio nos permite acompanhá-la. Ela vai passar pela emissora
indo pra casa e nos deixará lá. No trajeto fala de seus programas prediletos. Seu
favorito é um programa de música caipira que toca toda manhã, o “’Arapuca caipira’,
bom demais!”. Após uma breve caminhada chegamos ao portão da rádio, depois
dele, no primeiro e segundo andares, um conjunto de salas com os três estúdios
bem equipados formam a emissora.
Hoje a Rádio Favela funciona com patrocínio e possui uma concessão de
rádio educativa, que Misael prefere chamar de “Conceição, porque Conceição é uma
mulher, e mulher tem que ser respeitada (...) Concessão é coisa de palavra lá de
baixo, do asfalto, que não soa bem aqui dentro”.
Mas a vida com a “conceição” é a fase mais recente da história da emissora.
Durante os anos 1970, momento em que a rádio é criada, o Brasil ainda vivencia o
regime militar e as circunstâncias de um período de exceção que, somadas à
questão da desigualdade social e das diferentes formas de repressão (política, de
classe, étnica), marcaram profundamente a história da Rádio Favela e de seus
fundadores. Prisões, espancamentos, reforço do estigma do favelado e do marginal
se inscrevem na memória de quem viveu o momento inicial da emissora.
120 A visita e entrevista à Misael foi feita em 23/09/2003, por mim e Catarina Oliveira, também pesquisadora da temática das rádios comunitárias.
167
Ao falar sobre a verossimilhança do filme “Uma onda no Ar” com a história
da rádio, Misael121, o personagem que protagoniza a película e a direção da rádio
deixa clara a violência sofrida durante o período:
Olha, nós contamos a real, o filme chega muito perto da real. A única coisa que não é real é o tratamento que a polícia dá ali no filme, que é ficção purinha, que é a visão do diretor do filme. Porque não se pode, com o dinheiro público, mostrar o que o público paga para ser feito, a covardia que é feita com o dinheiro nosso, contra nós mesmos. Então mostrou aquela coisa de carinho, de dá um tapa só na cara, entendeu? Se fosse assim a gente tinha resistido mais do que Zumbi, mais quinhentos anos a gente resistiria. Eu tenho o corpo todo marcado. Eu assinei um total de sete às oito processo por causa dessa rádio.
O sofrimento e o pioneirismo são dois dos elementos que ganham relevo na
narrativa de Misael sobre a rádio. Ele percebe a experiência da emissora sob a
perspectiva da singularidade. Em sua narrativa não há lugar para outras
experiências que repitam o êxito obtido pela Favela FM:
Olha, eu sou suspeito falar isso, porque nós somos reconhecido nacionalmente e mundialmente, eu particularmente não conheço ninguém no Brasil que faça o que a gente faz, ninguém. (...) Se as pessoas tivessem noção do que é uma rádio realmente comunitária, de verdade, ninguém queria mexer. As pessoas querem mexer em rádio comunitária para ter um título de diretor, para nas próximas eleições disputar uma campanha política.
Temas como o reconhecimento legal, a relação com o movimento de
radiocom e com outras emissoras também aparecem sob a perspectiva da
singularidade da emissora. A compreensão da rádio é marcada por uma forte
oposição entre o “nós” e os “outros”, o que aparece na afirmação do pioneirismo da
experiência, na defesa de seus ideais ou na coragem de abrir novos caminhos. Além
disto, a afirmação que quem tem interesse em rádio comunitária quer ser diretor ou
quer disputar campanhas eleitorais, reforça a distância entre os interesses da Favela
FM e dos outros. Perguntado sobre o que define a emissora, Misael afirma que é a
121 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.
168
“resistência e disposição que os pretos daqui têm e que os outros ainda não
tiveram”.
A dedicação ao trabalho, a resistência e a disposição de seus membros são
vistas como os elementos produtores da reversão da forma negativa como antes a
emissora era vista, transformando desconfianças e acusações em reverências.
Nessa posição a rádio favela aparece como vencedora. Às outras rádios resta
provarem também vencer. Como afirma Misael:
Aqui não tem tenente, não tem major, nem comandante, todo mundo aqui é soldado. Todo mundo aqui pega no batente, aqui os delegados ajoelhou para nós, os major, os comandantes, os padres, os pastor, uma porção de gente que jogou pedra na gente ajoelhou. É sinal que a nossa resistência é o que há. Eu resumo em duas palavras nós tivemos paciência e resistência, agora quem quiser que vença igual a gente, quem tiver disposição, com nós mesmos, nós temos disposição para o mau e para o bem, tanta faz pela frente e pela costas, eu não faço curva.
Na visão de Misael é a resistência da rádio, e sua vitória, que trazem a
concessão até a emissora em 1999, já que, como afirma “nós não lutamos para
conseguir a “conceição” comunitária nem a concessão educativa. A “conceição”, os
cara entregaram por que viram que não tinha mais jeito de não liberar a “conceição”
para nós. E depois que a “conceição” chegou eles pararam de encher o saco”. Sua
leitura da obtenção do documento também marca a interpretação da diferença entre
Favela e outras emissoras. Como explica:
Nós nunca pleiteamos conceição com ninguém, independente de partido. (...) Não teve cutuca nenhuma, nós não fizemos comida de porco com ninguém, eles entregaram porque acharam no direito de entregar, e uma rádio na minha opinião, eu Misael, acho que rádio nenhuma tem que ter concessão, quem concede uma concessão de uma rádio para ela funcionar são as pessoas do outro lado que liga o rádio (...).
O fato de não ter feito acordos para a obtenção da outorga distingue o
processo da Favela FM de outros, considerando-se que as relações políticas
desempenham papel importante na mediação dos pedidos de concessão no país.
Na visão de Misael é a história da emissora que obriga o Estado a reconhecer sua
169
existência. De fato, o reconhecimento do Estado vem a reboque dos inúmeros
prêmios recebidos pela emissora.
Em sua argumentação Misael não identifica na “conceição” uma importância
particular para o funcionamento da rádio, além do alívio em relação aos
cerceamentos impostos pelo Estado a uma emissora sem outorga, experiência
vivida pela rádio durante muito tempo. Entretanto, Misael têm uma posição curiosa
em relação às outras rádios não-outorgadas, hoje na mesma posição da Favela em
um período não muito distante de seu passado:
Não precisa proibir rádio nenhuma (...) A não ser aquelas que estão dando interferência, que estão atrapalhando, então, essas aí devem ser proibidas mesmo, porque quem está fazendo a coisa direito tem o direito de fazer direito, agora quem quer atrapalhar não tem o direito, na minha opinião. Ai tem que ter um impedimento nessas rádios que estão atrapalhando, mas concessão não vale porra nenhum.
É a evidencia da saturação do “dial” que transforma a aparente falta de
significado da outorga em necessidade. Se inicialmente afirma que “não precisa
proibir rádio nenhuma”, logo em seguida, a percepção de que existem rádios que
atrapalham, faz do impedimento uma necessidade. Mesmo que represente uma
ambigüidade em relação a sua própria trajetória, a posição da Favela agora é
favorável ao controle.
A grande quantidade de emissoras existentes em Belo Horizonte e em
outras cidades brasileiras congestiona o “dial” das transmissões, interferindo na
escuta e podendo tornar impraticável a recepção de uma emissora. A saturação vai
exigir a intervenção do Estado para tornar o espectro praticável. O que se tornará
uma exigência não apenas das rádios comerciais, mas também das rádios
comunitárias.
Embora não opere com os limites impostos por uma outorga de radiocom -
o que diminui consideravelmente a potência e as possibilidades de sustentação
financeira da emissora - a posição da Rádio Favela é característica deste momento
da radiodifusão comunitária, marcada pela concorrência não apenas entre rádios
comerciais e rádios comunitárias, mas principalmente entre as próprias radiocom. Os
170
mesmos argumentos antes usados apenas por associações de emissoras
comerciais, sobre a interferência causada pelas emissoras comunitárias, agora são
usados também pelas próprias radiocom.
No caso da Favela FM a obtenção da concessão foi parte de um processo
que envolveu não apenas a emissora, que segundo Misael, não batalhou por ela,
mas outros segmentos sociais. Ao explicar como se deu o processo, ele faz questão
de sublinhar o fato da rádio não interferir na freqüência de nenhuma outra emissora.
É interessante perceber que esse argumento é usado por ele, em vários momentos,
como critério importante para impedir o funcionamento de emissoras que
“atrapalham”. Como explica:
Para a conceição chegar até aqui veio uma porrada de cara, pessoas enchendo o saco, esse pessoal acadêmico lá para o lado do asfalto que sabe uma porrada de teoria, mas prática eles não sabem porra nenhuma de prática. Ai eles que mexeram com as papeladas. Eu fui sabatinado três vezes lá em Brasília pelo Ministro, e fui no Ministério das Comunicações, e tal. Mas toda vida, desde o primeiro dia que a Rádio Favela foi para o ar, eu tive a consciência que a Rádio Favela não gerava harmônico em rádio nenhuma, ou seja, a Rádio Favela não confrontava com rádio nenhuma. Então, eles arrumaram um argumento e tentaram provar por “a” mais “b” que a gente dava abatimento em outros canais de rádio, da qual não foi verdade. E não comprovado isso, eles tiveram que entregar a ‘conceição’ para a gente, entendeu?
O fato da rádio nunca ter causado interferência em nenhuma outra, revela
também que, quando do surgimento da emissora, o cenário da radiofonia alternativa
era bem diferente, quase não haviam emissoras no ar e o “dial” estava livre para ser
ocupado. Quando a rádio é criada ainda não existe esse ambiente de disputa por
espaço e reconhecimento vivido atualmente, fenômeno que passa a ser observado a
partir dos anos 1990.
A Rádio Favela é um exemplo da forma como a disputa por espaço constrói
a auto-imagem das emissoras comunitárias. Embora funcione como uma espécie de
ícone para outras rádios do país, a Favela FM tem uma visão interessante das
rádios sem outorga, chamadas por Misael de “genéricas”. A partir da imagem
metafórica da “pedra” e da “vidraça” explica como se dá a dinâmica entre “eles” e as
”outras”:
171
Porque a Rádio Favela foi a primeira rádio a aparecer nas ondas de todos nós no Brasil, a primeira genérica antes do genérico surgir, ela deixou de ser pedra, porque foi ela pioneira, e as pessoas acham que hoje ela é vidraça, porque nós ganhamos um papel com autorização, porque eles acham que hoje não podemos ser mais a pedra, tem que ser a vidraça para ser quebrada. Então, hoje é motivo quase todos, a direção das rádios genéricas querer ir contra os ideais da Rádio Favela (...).
A posição de confronto estabelecida pela imagem da “pedra” e da “vidraça”
faz referência também a percepção da solidão enfrentada pela rádio ao longo de sua
trajetória, quando enfrentou sozinha os processos de repressão:
Antes, em 1979, quando os nossos [transmissores] foram preso pela primeira vez, não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 81 não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 85 não tinha ninguém para discutir a cadeia, em 88 não teve ninguém para discutir a cadeia. Em 85, em 92 não teve. Em 95 não teve, em 97 não teve. De 97 para cá ai virou moda fazer, depois que a rádio saiu da página de crime do jornal, da página vermelha, passou para o jornal de cultura, ai o padre começou a fazer pirataria, o pastor da igreja começou a fazer pirataria, e por ai foi. Ai virou moda, hoje em dia ter uma rádio pirata é igual a loja de pão de queijo em Minas Gerais, qualquer esquina tem uma, mas tem umas que tem um sabor todo especial, que existe várias, mas tem uma que tem o segredo. A Rádio Favela é o que há, o mesmo propósito que os dezesseis moleques que colocaram ela no ar em 76 está de pé, não fez curva não.
Misael percebe a Rádio Favela como construtora de uma nova imagem das
rádios comunitárias. A passagem da página de crime à de cultura guarda esse
significado. No tratamento das outras emissoras, o termo pirataria aparece para
explicitar a “moda” de emissoras não-outorgadas e os agentes dessa nova mania:
entre eles, pastores de igrejas.
Ainda no que se refere à legalização, embora defenda uma posição de
controle sobre a interferência das “emissoras que atrapalham”, Misael não valoriza
em sua fala a legalização de sua própria emissora. Para ele a concessão aparece
como “encheção de saco”. Um direito muito mais associado ao controle que a
proteção da emissora. Entretanto a liberação do documento produz uma mudança
na situação de clandestinidade da Rádio, que passa a ter outra visibilidade, podendo
172
ser mais facilmente localizada e ficar de portas abertas. A visibilidade e o
reconhecimento tornam a concessão também necessária, não apenas para a
relação da rádio com o Estado, mas também para a relação da rádio com as
“genéricas”:
Nossa rádio com a concessão só uma coisa mudou. Antes se você viesse igual você veio, você ia ficar no mínimo trinta dias para poder achar a rádio. Depois que todo mundo visse que você não tinha nada a ver, eles davam o canal onde que a rádio tava. Agora com a ‘conceição’ o portão fica aberto, que eles não tem mais direito, que a gente tem um papel para esfregar na cara deles e falar, ‘está aqui, tchau, um abraço’, só isso que mudou, porque a rádio já fazia todos os informes publicitários do governo estadual, a rádio fazia, o governo mandava, ela era uma rádio pirata com bloco de nota fiscal endereço e tudo. Uma rádio pirata paga conta de água e conta de luz e tem endereço próprio, certo? Se é contribuinte do governo, quem é pirata? Será que é nós ou será que é eles? Existe um estado legalizado e existe o estado paralelo, de quem que é o poder oficial hoje em dia? (...) Eu acho que as pessoas não devem pensar nesse negócio de legalização, de não sei o quê, isso é a maior babaquice do mundo, a não ser que você está tendo, eu acho que o papel só vale por uma coisa, que infelizmente no meio das rádios genéricas, eu não gosto de falar de rádio pirata, que pirata é muito pejorativo, são genéricas.
Em seu discurso a relação com as “rádios genéricas” é de muita tensão. Em
jogo nessa relação o funcionamento da emissora e a defesa de seus ideais e
propósitos. Na fala de Misael pode ser observada, a partir da apresentação dos
ideais da emissora, a construção da diferença entre a Rádio Favela e as outras
rádios. O fato de ser ela uma rádio “de preto pra preto”, de “favela pra favela”,
marcada, portanto, pela independência, produz a diferença. Como afirma:
Nossos ideais (...) era defender com unhas e dentes o povo do morro onde ele estivesse, e levantar a voz para aqueles que nunca tiveram, independente se ele tivesse na frente ou atrás dos muros. É nós mesmo, preto para preto. Então, o papo nosso continua, a gente é de favela para favela, e contra qualquer um que quer ofender. Então, os caras acham que a gente tem que ter uma linha, uma linha “light”, para ficar fazendo política partidária, defendendo partido “a”, “b” e “c”. A Rádio Favela é apartidária, nós discutimos com qualquer partido, independente da sigla e dos ideais. A gente deixa todo mundo falar, igual religião. Aqui todo mundo participa, mas infelizmente uma religião vai lá e monta a rádio, outro não pode falar, ai uma facção monta a rádio não pode falar, ‘ah! você não pode’, que a Rádio
173
Favela faz uma linha diferente, todo mundo aqui fala, a única pessoa que até hoje não teve espaço aqui foi um grupo de surdo-mudo, porque na rádio não tem jeito deles fazer. As prostituta teve participação, as lésbicas, os bichas tem um programa só de viado, tem um programa e tal, sapatão tem um programa deles. (...) Mas infelizmente quem mexe com rádio comunitária, as rádios tem dono, e a Rádio Favela não tem.
A ligação com a comunidade, a favela, a possibilidade de levantar a voz por
aqueles que nunca tiveram, dando-lhes visibilidade e dignidade, e a pluralidade
aparecem como as principais marcas da Rádio Favela, o que a faz diferente de
outras rádios, as que “tem dono”, as genéricas, ligadas a grupos religiosos ou
políticos específicos, onde a ausência de pluralidade não produz independência.
Tendo construído uma trajetória distante dos movimentos de rádios
comunitárias, relativamente recentes, considerando-se a longevidade dessa
experiência, a Rádio Favela avalia de modo bastante crítico a atuação desses
movimentos, sempre opondo a sua trajetória e demandas, às demandas
apresentadas por estes movimentos. Na fala de Misael a afirmação do
reconhecimento da emissora é proporcional a identificação da falta de
reconhecimento e solidariedade destes movimentos para com a Rádio Favela:
É o seguinte. Quando a gente começou com rádio, era todo mundo moleque e a gente não tinha a dimensão formada de como que isso ia crescer, e a gente ia ser destaque. (...) E saiu para a página de cultura, ai todo mundo está fazendo rádio pirata, está fazendo associação de rádio, está fazendo sindicato de rádio, brigando por coisa boba. Nós da Rádio Favela vimos isso como interesse por um poder, para ter um tipo de dominante, era igual na época da escravidão, tinha que ter um escravo para mostrar que tinha que ter alguma coisa, que era um senhor. A mesma coisa está o movimento de rádio, os caras não admitem, que nós negros favelados é destaque no mundo inteiro, é reconhecido no mundo inteiro. Nós temos uma pessoa que chegou hoje solicitando há quatro meses atrás estágio aqui na Rádio Favela. Ela veio da Áustria (...) vem gente da Itália, já veio gente dos Estados Unidos para cá. Então, eles não admitem porque cada um quer ter o direito de mandar, e nós não manda porra nenhuma não. O ideal nosso é muito simples, e eles querem complicar a coisa, eles querem ter o poder, ninguém na Rádio Favela não manda em nada.
174
Misael vê a emissora como distanciada das disputas que capitaneiam as
atenções do movimento de rádios comunitárias. Eles, da rádio favela, são vistos
como expectadores das disputas, não participam dela:
(...) E os caras quer ter [poder], você vai nesses encontros de rádio, te dá dó, deu estar desde o inicio, eu ter colocado a semente lá, regado a planta, ver ela nascer. Ai eu vou, fico olhando aquela discussão, todo mundo aqui da rádio vai, dá dó você ver aquela briga lá. Todo mundo brigando por umas migalhas, para quê?
Em sua longa trajetória a Rádio Favela consolidou-se não apenas no plano
das entidades das quais recebeu premiações, mas também e principalmente do
ponto de vista da audiência. A rádio possui índices invejáveis, com 22 pontos no
IBOPE. Como afirma Misael: “fica 78 para dezoito rádio disputar, ai você divide entre
dezoito, 22 é nosso garantido. Isso incomoda porque é negros, são favelados,
beiçudo, que a gente não tem estudo, que a gente fala tudo atrapalhado, não fala
português correto”.
O reconhecimento e a preferência da audiência exigem enormes doses de
profissionalismo na direção da rádio e criatividade para montar estratégias de
manutenção financeira e operacional. Longe da imagem idealizada onde apenas o
voluntariado desenvolve a manutenção da emissora, Misael afirma:
O voluntariado na rádio o quê que acontece. A mulher que alisa o cabelo, (...) no dia que chove ela não sai. Sabe porque? Ela vai perder a prancha dela. Aqui a rádio comunitária é a mesma coisa. No dia que está fazendo calor vou tomar uma cerveja, não vou. No dia que está chovendo eu não vou molhar meu pé, vou gripar. A Rádio Favela tem despesa, o custo dela é alto, porque ela tem equipamento de ponta, a gente usa tecnologia há cinco anos há frente que os caras usam hoje aqui hoje, a nível de Brasil. (...) A gente tem quase duzentos voluntários da rádio que todo mundo ajuda, contribui na hora que puder. Treze pessoas são fixas, fora os gastos que a gente tem com equipamento. Nós temos na rádio cerca de dez computadores ligado em rede, a gente fala com o mundo inteiro, recebe em média trezentos e-mail dia, o dia que recebe menos, mil e duzentos telefonemas dia, não é brincadeira. Nós temos oito linha de telefone, vê quanto isso gera de custo, nós temos uma conta de luz altíssima.
175
A partir desse relato percebe-se que a pluralidade se institui também na
colaboração dos diversos grupos com a manutenção financeira da emissora.
Embora a rádio sobreviva dos comercias122, a “moeda cultural”, referida por Misael,
parece mediar a relação dos grupos com a rádio, ajudando a financiar não só a
emissora, mas também os projetos sociais por ela desenvolvidos. Assim:
Todas essas pessoas que vem fazer programa aqui, exemplo, a Assembléia de Deus, usa duas horas os equipamentos da Rádio Favela para passar a mensagem evangélica dela, ela contribui com cem reais mensais. O quê que isso não dá para fazer nada com cem reais, ela contribui porque os cem reais que ela dá para inteirar para comprar uma vassoura, nós temos que ter a moeda cultural da rádio. Nós temos quatro professores, que a gente paga a passagem, e dá ajuda de custo para o pessoal. Nós temos as pessoas, só locutores, que tem o compromisso de vir todos os dias e fazer aquele horário x combinado. O voluntariado na rádio ele não funciona. Exemplo. Vender espaço na rádio nós não fazemos isso, a gente sim, quer fazer um programa, beleza, qual que é o propósito, tal. Isso aqui você vai dar uma contribuição sua vai ser X, porque X, porque a gente não vai ficando fazer projetos, esperando disso daquilo, para eles devolverem para a gente, aqui o dinheiro, eles não devolvem. Então, cada um aqui é obrigado a gerar a moeda cultural que sustenta a rádio, fora as trezes pessoas que tem aqui que são remuneradas, porque se não tiver treze pessoas aqui a rádio não funciona, vai funcionar os dias que os voluntários quiserem.
A exposição da dinâmica de funcionamento da rádio revela os diferentes
vínculos da emissora com a favela, que se estabelecem não apenas a partir da
programação. Os programas sociais por ela desenvolvidos são outro mecanismo
importante dessa relação.
Quando se trata de programação, a Rádio Favela, dentro do espírito de
favela pra favela”, Mencionado por Misael, assim como outras rádios, é também
espaço de “aprendizado da palavra”123. Este entendido como exercício de
enunciação da visibilidade de pessoas que não dispõem de um lugar social que os
valorize. Duas crônicas levadas ao ar na Rádio falam exatamente da construção de
122 Como afirma Misael: Nós fazemos comercial para Prefeitura Municipal, do Governo do Estado e de vez em quando o Governo Federal, eles mandam porque a rádio tem audiência, e tem que ser com a nossa linguagem... 123Expressão usada por Catarina Oliveira em entrevista concedida a autora para expressar um dos significados sociais e culturais das radiocom.
176
uma outra imagem social a partir da emissora e da respeitabilidade que a presença
da voz amplificada pode produzir. A primeira diz o seguinte124:
Falamos muito aqui na Favela do resgate social, tarefa essa que seria do poder público, contudo estes o braço se cruzam, e assistem de pé a execução do refém. Morto não gera gastos. Queria falar hoje de um grande resgate, de um favelado que tudo perdera acreditando na justiça. Ela é cega e anda a passos de tartaruga, a demora já é uma injustiça. E quando ela vem, quando vem, às vezes a morte já resolveu a questão. Tiraram meu sangue e a vontade de viver, levaram minha prole para um cárcere distante. Pedras, cachaça e poeira, cenário da fortaleza sinistra, bruxaria e êxtase. Um bar ali, outro aqui, minha vida era assim. Mas antes disso me viram gente, sóbrio e capaz. Quando tudo parecia perdido veio a onda e me trouxe até aqui. Naquele dia eu tive vontade de tomar banho, de me barbear e alimentar-me. Senti de novo o sangue correr nas veias, o coração reagir no ritmo da vida, do barraco para o mundo (...) Quando menino eu falava na latinha de extrato de elefante, o fio era um barbante. Hoje, eu posso falar para o mundo, falar que Bush é um sacana, que é o PT não mais aquele, que ninguém gosta de mim mais do que eu. Aqui eu aprendi o que é ser cidadão, ocuparam meu espaço mesmo com toda repressão, mas ocupá-lo, tomar para mim o que é de direito. Também como ícone sonhei em voar, é a onda no ar, falando nas alturas, como um doutor fala em suas palestras, limpo e barbeado, de roupa de deputado. Medo de avião não tenho mais, hoje meu único medo está no chão, aquartelado e subindo o morro à noite. Como eu queria que todos os injustiçados que como eu fossem resgatado, mas nessa nave não cabe todos, a vontade do comandante é que coubesse. Eu existo, eu posso, eu acredito, sou Favela, sou mais eu. Misa, Miramar, Rádio Favela, obrigado! Meu nome é Itamar Fernandes moro no Aglomerado da Serra, nós somos a Rádio Favela FM, 106.7, um compromisso com a cidadania (grifos meus).
A situação de invisibilidade social, de marginalidade e de desprezo
vivenciadas pelo cronista125 pode ser revertida quando a rádio o salva de sua
tragédia pessoal e social, permitindo que ele re-elabore sua identidade a partir de
aspectos positivos. Estar no rádio o iguala ao doutor e ao deputado, posições que
expressam respeito e credibilidade sociais, e constrói, para ele, o aprendizado da
cidadania através da palavra. Orgulho de ocupar um lugar social e dizer: “Eu existo,
eu posso, eu acredito, sou Favela, sou mais eu”.
124 As crônicas foram apresentadas no quadro “A crônica de Itamar”, que vai ao ar pela Rádio Favela. 125 O próprio autor das crônicas as apresentou a mim e Catarina Oliveira. Havia um enorme orgulho de sua posição de cronista e da oportunidade que Misael e a rádio haviam aberto para sua mudança de vida. Depois de problemas familiares que lhe colocaram em uma situação de dificuldade a posição de radialista o afirmava como alguém.
177
Em outro texto126, em que fala do primeiro aniversário da “Crônica de
Itamar”, afirma que o rádio lhe trouxe a cura:
Há um ano atrás essa crônica ia ao ar pela primeira vez. Medo e incertezas, tudo começou assim. Pela primeira vez milhares de pessoas iriam me ouvir, graças, a um alguém que eu ouvia pelas ondas do rádio, na solidão do meu quarto negro, como nos meus dias de descrença e ódio, de dor e tristeza. Se hoje estou aqui curado do mal que me consumia, dos bares que me consumia, como fuga daquilo que eu pensava que era vida, é porque o rádio através da voz que eu ouvia sabia quem eu era, e do que eu poderia fazer (...). Mais do que isso que eu fosse capaz de falar algo que alguém quisesse ouvir, alguém bem próximo e pelo qual ainda mantenho bastante respeito disse que eu havia morrido. Este respeito aumentou ainda mais, porque estava constatada a verdade nisso. Aquele outro de fato morreu, mas que renasceu numa onda tão clara quanta a vida que hoje vivo e que Deus sempre quis para mim.(...) Enfim, obrigado a todos aqui e a todos ai, você que nos ouve e que nos dá o prazer da sua companhia, mas do que ouvintes, temos em vocês nossa referência, nosso compromisso com a cidadania. Até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através dela e só você viu e nos ouviu. Muito obrigado mais uma vez e até amanhã.
As duas crônicas apresentam a visibilidade como cura, lugar de elaboração
de uma identidade positiva. Para o autor ser capaz de falar e poder surpreender-se
com o fato de ser objeto do interesse da audiência transforma a morte social em
renascimento, já que “até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através
dela e só você viu e nos ouviu”.
De modo geral, a imagem que a Rádio Favela constrói para si, se apresenta
a partir da perspectiva de distinção. O pioneirismo e sucesso da experiência a
colocam em uma posição de estabelecimento. É a partir dela que a visão sobre as
outras emissoras se constrói, e ela é, como discuti anteriormente, marcada por muita
tensão.
4.2 A “Rádio Comunidade”: “porque comunitária, comunidade, a
mesma coisa”
A Rádio Cabo Comunidade se localiza no bairro Dias Macedo, zona sul da
cidade de Fortaleza. Como na visita a outras emissoras fui de ônibus a essa rádio. 126 A íntegra da crônica se encontra no anexo 6.
178
Isto permitia conhecer o bairro e aspectos de sua vida que talvez de carro não
pudessem ser observadas. Além disto, o contato com os moradores desde o coletivo
facilitava o processo de localização das emissoras, ao mesmo tempo em que
possibilitava saber um pouco de suas relações com a rádio. Se ninguém a conhecia
restavam dúvidas sobre sua penetração junto aos moradores, se logo alguém dizia
conhecer ficava, evidente a visibilidade da rádio no bairro. No caso da Rádio
Comunidade a primeira pessoa perguntada sobre a emissora logo me informou
como chegar lá.
A Rádio funciona na sede Associação de Moradores do bairro Dias Macedo,
por trás da Escola Municipal, num dos pontos centrais do bairro. Chegando ao Dias
Macedo já se ouve sua presença e todo mundo sabe informar onde se localiza.
A rádio tem uma singularidade. Num tempo em que quase todos os serviços
de som já foram transformados em emissoras de freqüência modulada, a Cabo
Comunidade não é uma FM, pois não tem sua transmissão efetuada através do
rádio. É uma emissora que funciona através do sistema de cabo, ou de caixas de
som, que são atadas aos postes ao longo bairro. Quando a rádio iniciou suas
atividades, elas eram oito, durante a pesquisa elas já somavam mais de quarenta
caixas, “com 80% do bairro coberto”. A Emissora funciona das sete da manhã às
sete da noite, com uma parada de meio dia até as 14 horas, já que como assinala
Isaac, um de seus diretores127, “nós nos preocupamos com o descanso dos nossos
ouvintes, ai nós [re]começamos às duas horas da tarde, e vai de duas às sete”.
Num momento em que muitas rádios são canais de grupos religiosos, a
Rádio Comunidade seguiu um caminho inverso. Ela iniciou suas atividades em 1996,
como uma rádio de orientação evangélica, ligada a Assembléia de Deus. A rádio
funcionava nos fundos da igreja e se chamava “100% Jesus”, como conta Isaac:
Nós começamos lá com uma programação genuinamente evangélica, numa radiadora. Nós tínhamos dois programas: um programa dos senhores, que era aproximadamente seis horas da manhã, e outro, às seis horas da noite, que era o programa dos jovens. Os senhores era a voz da Assembléia de Deus, o dos jovens era só evangélico, no qual eu comecei com 15 anos ali. E foi interessante, porque foi uma experiência muito boa. Quando nós
127 Entrevista concedida à autora em 25/09/03.
179
começamos lá, eu tive a curiosidade de visitar as rádios profissionais, e isso eu não falei no ar [nesse dia antes da entrevista ele tinha estado no ar falando da importância de uma rádio comunitária nas comemorações do dia da radiodifusão], mas eu tive a curiosidade de saber, como era que os radialistas, o pessoal da técnica trabalhava, e foi indo, nós tivemos a idéia de fazer um programa na Rádio Aero FM, que hoje realmente é FM, na época, ela era caixinha como a nossa aqui. E daí nós passamos um mês, juntou-se dez pessoas, fizemos um grupo de dez, e cada um colaborava, nós pagamos 50 reais na época, cada um deu uma quantidade em dinheiro... Com isso nós pegamos a idéia de fazer uma rádio comunitária aqui no Dias Macedo. Como os dez eram evangélicos, foi sugerido que se colocasse uma rádio genuinamente evangélica. Aí surgiu.
A mudança no perfil da emissora ocorre por fatores ligados ao próprio
esvaziamento da capacidade de gerenciamento e manutenção da rádio apenas pelo
grupo evangélico. Como explica Isaac, com a saída de algumas pessoas do grupo
inicial que funda a “100 Jesus, a rádio foi ficando só, ficou só com um operador e um
apresentador, resolvemos fechar, mas não era um fechar para terminar, fechamos,
damos apenas uma pausa na nossa programação, e com essa parada nós ficamos
devendo muito, não tínhamos como pagar a dívida”.
“Ficando só”, também os problemas financeiros se tornaram graves, como
narra Ana Lúcia128 também integrante da emissora:
Tinha poucos apoios culturais, era mais o próprio evangélico, então não tinha como sustentar a rádio, todo mundo trabalhava realmente de graça porque o dinheiro era pros equipamentos e é interessante que, lá é meio que aquele filme “Uma onda no ar”, que um sabia mexer em eletrônica e foi montando aquilo e um outro que tinha a voz legal foi falar. Foi bem legal o começo da rádio “100% Jesus”. Então parou a rádio, aí depois de um tempo eles tentaram colocar tipo pirata mesmo, pra FM, só que não deu certo, pois o aparelho queimou e aí pronto, eles desistiram, depois disso veio uma turma que não era evangélica e quis retomar, então os equipamentos da “100% Jesus” foram pra Rádio Comunidade.
Além dos problemas relativos aos apoios culturais e à manutenção
financeira da emissora, nem todo mundo no bairro recebia efusivamente uma
programação apenas evangélica. A mudança trouxe não apenas novos ouvintes e
128 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.
180
patrocinadores, mas também novos comunicadores, antes afastados pela
impossibilidade de desenvolverem programas dentro de suas áreas de interesse.
Como afirma Ana Lúcia129:
A rádio (...) começou como 100% Jesus e era totalmente voltada pros evangélicos, então as pessoas passavam pelas caixas [de som] e diziam: “Pôxa! Mas direto só evangélico, só evangélico falando, a gente já escuta tanto, só músicas evangélicas”. As pessoas questionavam muito, eu também questionava, eu não conhecia as pessoas que trabalhavam lá, mas eu questionava essa coisa de ser só evangélica, então a rádio teve um problema pois não tinha mais pessoas pra ficar no rádio direto pois tinham outras atividades na igreja...Não funcionava na Associação, era nos fundos da igreja Assembléia de Deus, por isso só evangélicos.
Só depois de refundada é que a emissora passa a se chamar “Rádio
Comunidade”. A escolha do nome reforça a mudança no perfil da rádio e o
desligamento da comunidade religiosa específica para abraçar uma comunidade
maior, geográfica, o bairro. Isaac explica como se deu o processo de surgimento da
nova emissora:
Um amigo nosso resolveu patrocinar, a Associação de Moradores resolveu trazer para cá. Quando veio para cá, aí sentamos, vimos a melhor forma de trabalhar, como nós já tínhamos o programa de esporte, como já tínhamos da própria Associação dos Moradores, que era a voz da comunidade, o Sérgio Rocha, que é uma cara muito inteligente, que é secretário aqui da nossa Associação, ele montou esse nome Rádio Comunidade, que colou de uma forma tremenda, porque comunitária, comunidade, a mesma coisa.
No caso de alguns membros que chegaram a emissora nessa
recomposição, o grupo religioso foi à ponte para a rádio. A relação igrejas rádios
torna-se mais aberta com o aparecimento da Rádio Comunidade, na medida em que
a emissora se abre pra outros grupos religiosos. Para Ana Lúcia, por exemplo, o
convite para integrar a emissora veio de um colega do grupo da Igreja Católica. Seu
primeiro programa foi um programa um programa “da crisma”. Ela afirma: “Eu fiquei
nervosa mais aceitei. Fui à primeira vez, gostei muito e continuei indo. Aí eu aceitei a
129 Entrevista concedida à autora em 23/09/2003.
181
proposta e tô até hoje. Já faz um ano que eu comecei com um programa católico, da
crisma e tô até hoje”.
Como a rádio estava em processo de recomposição, adotando uma postura
mais plural, além do programa católico ela também apresenta um programa de Rock
e uma revista cultural. Ela narra como ocorreu a mudança:
Aí começou a Comunidade, com uma diversidade de programas, aí as pessoas passaram a ouvir mais, tem esporte, tem música, acho que o programa mais ouvido é o de esporte que é à noite e por isso mesmo é um ótimo horário pras pessoas, muito embora tenha a novela os homens vão pro pezinho do poste ouvir. (...) Exatamente o mesmo convite que surgiu pra mim, sendo que pra um programa católico, diferente de um evangélico, surgiu pra outros, os organizadores da rádio resolveram chamar outras pessoas da comunidade pra participar e eu acho que o engajamento das pessoas foi bem melhor, hoje realmente tem gente da comunidade.
A introdução de programas variados trouxe a audiência ao “pezinho do
poste”. As diferenças entre uma rádio comunitária evangélica e uma rádio
comunitária mais aberta podem ser resumidas na seguinte afirmação: “hoje
realmente tem gente da comunidade”. Participação e engajamento podem acontecer
com abertura da comunidade religiosa para a comunidade geográfica. E a inclusão
dos diferentes interesses existentes no bairro no interior da emissora.
Por ser uma “emissora a cabo” a rádio não enfrenta uma situação
desconfortável em relação a Anatel e Polícia Federal. Como afirma Ana Lúcia: “No
caso da Rádio Comunidade, a gente não tem esse receio porque somos a cabo, a
gente não é, entre aspas, uma rádio pirata, que tem mais de 25Watts, a gente não
tem isso”.
O mesmo não acontece com outras rádios que funcionam sem outorga, ou
mesmo com liminares. Em função da fiscalização algumas rádios mantêm um duplo
sistema de transmissão. É o caso da rádio Aero FM, que funciona apenas parte do
tempo em freqüência modulada, o restante do tempo pelo sistema de cabo. Como
afirma Ana Lúcia, uma ouvinte desta emissora:
182
Na Aero FM, que é a rádio comunitária da Aerolândia, e também é um sistema a cabo e...é meio pirata, só que eles só colocam a partir das 04:00 hs por causa da Policia Federal, mas esse é um problema que a maioria da comunidade sabe, mas eles [a comunidade] têm uma integração muito grande (...) Ele tem até um cartaz lá, tanto que ele bota no cartaz ‘AERO FM a cabo’.
Embora esteja nos planos da emissora a mudança para o sistema em FM, a
rádio ainda não conseguiu, com recursos próprios, efetuar a mudança. A emissora já
havia recebido propostas de dois deputados para financiar a compra dos
equipamentos130. As ofertas foram recusadas pelo temor de que a ajuda tivesse de
significar uma dívida a ser paga com o atrelamento da rádio a um grupo político.
Em uma emissora à cabo é a rua e não o aparelho de rádio que produz a
mediação entre o ouvinte e a rádio. O espaço público se torna de fato lugar de
recepção. Uma vez estando na rua ou mesmo em casa, não há a possibilidade de
desligar o aparelho, o que faz com que a audiência seja compulsória. Nessas
circunstâncias a relação entre a emissora e a audiência difusa de moradores e
transeuntes se torna delicada. A forma como se distribui as caixas de som pelo
bairro bem como o horário de funcionamento são parte fundamental da negociação
da presença da rádio na comunidade. Como explica Ana Lúcia:
Nós colocamos (as caixinhas) em pontos estratégicos. Aonde tem muito movimento de carro a gente colocou mais alto o som ,não me lembro mais quanto, acho que seis, tentamos fazer todas as caixinhas na mesma intensidade de som, só que algumas pessoas reclamavam que era muito perto - é no poste então fica muito perto das casas - aí pediram pra baixar, então teve que mudar, então mudamos os sons na medida em que as pessoas foram dizendo:“Tá muito alto”, “tá muito baixo”, porque no caso é só uma altura. No caso da que eu coloquei na minha casa, pois eu quero tá ouvindo os programas, na minha tem um regulador de som, eu aumento, baixo, desligo, mas nas outras não é assim, porque na hora que uma abre todas abrem ao mesmo tempo.
Perguntada sobre os possíveis conflitos decorrentes do funcionamento da
emissora, e a existência de pedidos para que a rádio funcionasse em horário
reduzido, Ana Lúcia afirma:
130 Que teria um custo orçado em dez mil reais, preço elevadíssimo para os padrões da Associação e da própria emissora.
183
Pra menos [o horário de funcionamento da rádio] não, o que elas perguntam é porque não funciona mais até mais tarde? Alguma pessoa, deve ser aquelas que mais se interessam com a programação, agora pra menos realmente não, a gente tem intervalo pro almoço, de meio dia até duas da tarde não funciona, tanto pra esfriar o equipamento, como por quem quer dormir depois do almoço.
Após a mudança a Rádio inaugura um outro momento na própria vida do
bairro, e vai pouco a pouco construindo e ampliando um espaço público local. O
mesmo processo que parece ter acontecido com a Rádio Favela, ao tornar os
assuntos de uma área marginal da cidade, a favela, interessantes, visíveis,
discutíveis para um público que não teria acesso a eles por outros meios. Um
exercício que se realiza na elaboração dos programas, na cobertura de assuntos
como o fechamento de uma escola, ou na manutenção do chafariz; na cobertura do
desfile de 7 de setembro, nas estratégias de geração de notícias locais, ou ainda na
divulgação de socorro para quem dele precisa. Como afirma um dos membros sobre
a mudança da “100% Jesus” para Rádio Comunidade:
Então, (...) quando ela veio para cá, nós abrimos o leque. Aí vamos chamar de leque, porque muitas rádios chamam de plural, porque a Igreja Católica, a Igreja Assembléia de Deus, a Igreja Batista, a Igreja Universal, ai veio o programa brega, veio o programa de esporte, veio o programa de forró, veio o programa de rock. E pronto, quando nós começamos a trabalhar com isso nós percebemos que começamos a conquistar a comunidade.
A emissora tem fortes vínculos com a vida do bairro. Talvez pela
proximidade física junto aos ouvintes, que não escolhem ouvi-la simplesmente a
ouvem: na parada de ônibus, na praça, nas ruas, no colégio (durante os horários de
intervalo), em frente de casa, ou, em alguns casos, dentro de casa. Há ouvintes que
pedem a instalação de caixas de som da rádio em algum cômodo de suas casas. As
notícias sobre os acontecimentos do bairro muitas vezes chegam pessoalmente aos
estúdios da rádio. Dada a proximidade, as notícias costumam chegar:
De boca, de boca mesmo. Por exemplo, o carro bateu ali, ora meu irmão é ligeirinho, fulano diz, ‘olha fulano bateu o carro’. Ou então
184
alguém liga, ‘olha está acontecendo isso aqui, aqui. Nós íamos até criar o ‘moto olympi’, seria uma moto mesmo, e quando tivesse um negócio desses nós íamos está em cima do fato. Mas aí não houve possibilidade devido as condições financeira,, mas não morre, essas idéias não morrem.
As igrejas, o comércio, a escola, o chafariz, o telefone público, os jogos de
futebol do bairro, a vida cotidiana do lugar passa a ser assunto da rádio, que amplia
e alimenta uma pauta comum de debates sobre o lugar.
Durante a pesquisa131 percebi que a auto-imagem de uma emissora
comunitária se constrói é e afirmada também pela percepção que seus membros
têm da importância da rádio para a comunidade. O termômetro disto é a recepção de
sua programação ou atividades pelos ouvintes, o que geralmente é percebido e
narrado sob a perspectiva da fundação. Certos eventos ou programas definem-se
como um momento inicial aonde os vínculos da rádio com a comunidade passam a
ser visíveis, e assim legitimados simbolicamente. Dentro do discurso legitimador que
toda rádio procura tecer, a emissora nasce como “rádio comunitária” ali, quando
pode ser identificada a esse grupo difuso chamado comunidade.
O momento que funda essa relação pode ser a percepção de audiência
significativa a um certo programa, ou o comparecimento da comunidade a um evento
produzido ou coberto pela emissora (como “clássicos” do futebol local ou a
transmissão de missas, feiras culturais e shows de rock), ou ainda, a cobertura de
um problema existente no bairro, como o fechamento de uma escola ou a resolução
do problema no chafariz, como aconteceu com a Rádio Comunidade. Os registros
desses momentos marcam definitivamente a memória da emissora, evidenciam a
importância da rádio para a comunidade e são resgatados e re-elaborados
continuamente em face da construção da idéia de legitimidade em relação a
comunidade e aos agentes externos.
A relação rádio-comunidade encontra sentido nessas narrativas. Afinal se a
existência de uma rádio comunitária se justifica pelo conjunto de sentidos que os
significantes comunidade/comunitária são capazes de evocar, os eventos narrados
preenchem de sentido positivo a idéia de uma rádio feita para e pela comunidade.
131 E já durante a pesquisa de mestrado quando pesquisei a Rádio Mandacaru.
185
Outro fato interessante na Rádio Comunidade é a relação que possui com
outras emissoras, sejam elas comunitárias ou comerciais. Longe da adoção do
discurso que opõe de modo absoluto os interesses das rádios comunitárias ao das
rádios comerciais, a Rádio Comunidade elaborou uma forma de apropriação do
espaço da emissora comercial para tratar de interesses do bairro, ampliando sua
visibilidade e seu poder de pressão e intervenção. Ainda que estabeleçam
diferenças entre uma radiocom e uma rádio comercial, e entre rádios em freqüência
modulada e rádios à cabo, a oposição “nós” e “eles” não se apresenta como
indissociável.
As rádios comerciais não são identificadas pelos comunicadores como o
inimigo, representando um antagonismo inconciliável. Considerando as diferenças
entre uma radiocom e uma rádio comercial, a Rádio Comunidade transforma as
emissoras comerciais em amplificadoras de suas demandas. Em dois episódios da
vida do bairro, emissoras comerciais de rádio e tv foram chamadas pela própria
Rádio Comunidade para cobrir o problema. Possuindo uma cobertura não restrita ao
bairro e a uma região, e por uma melhor qualificação, segundo a visão da emissora,
elas aparecem como o modelo de eficiência para a resolução de problemas, por isso
mesmo necessárias a resolução de certas questões. Ao explicar como acontece a
participação da comunidade na rádio e da rádio na comunidade uma integrante da
Comunidade fala também da parceria com a rádio comercial:
Todos os programas são de gente da comunidade, cobrindo matérias sobre a comunidade. Um exemplo foi a questão da Escola Paula Francinete que ia ser retirada pra colocar uma particular e a comunidade não quiz, então chamaram a rádio, a rádio não deu muita conta do lance porque era um negócio muito grande, então a gente resolveu ligar pra outra rádio, que no caso foi a AM do POVO, então o POVO cobriu a matéria e pelo fato deles terem curso, mais tempo de rádio...eles conhecem mais pessoas que a gente. Então quando não dá pra gente nós chamamos outra rádio, fica uma união mesmo não sendo rádio comunitária.
Em outro episódio, na resolução do problema do telefone público, a
emissora comercial é novamente chamada a atuar:
186
Teve o caso de um telefone público de um colégio que a gente não conseguiu resolver, passamos a manhã inteira ligando pra Telemar e nada. No dia seguinte ligamos pra AM do POVO e só aí... eles foram lá, ligaram pra Telemar e imediatamente eles consertaram o telefone. Mas pelo menos deram explicação no ar, ela falou de manhã no programa que foi porque quando o problema é com telefone público de rua, se liga pra um número, no caso de telefone público escolar já é outro número.
O mesmo papel teve a televisão no episódio do fechamento do colégio. Um
integrante da emissora narra como aconteceu:
Houve um problema, ia haver uma desativação da escola, porque era um anexo da Prefeitura de Fortaleza. (...) Como a escola tinha muitos alunos, e não pagava absolutamente nada, e a escola tinha um excelente trabalho, sabe, tanto educacional, como espiritual, tinha assim uma qualidade enorme. E nós víamos a necessidade de lutarmos, fomos convidados pela direção, participamos de uma reunião, vimos a melhor forma de divulgar, mobilizamos a comunidade. A comunidade lutou com unhas e dentes, a TV Diário tinha na época um programa que era voltado as comunidades (...) E nós transmitimos o pessoal lutando lá na escola, nós transmitimos ao vivo... (...) Então, foi muito interessante, porque os que não puderam sair, acompanharam na televisão, mas que estavam no ponto de ônibus acompanharam pela rádio. Então, foi uma conquista muito boa, o prefeito Juraci Magalhães desistiu de tirar o anexo.
Em relação à manutenção financeira a rádio depende da estrutura física
fornecida pela Associação, já que funciona na sede desta, mas tem despesas
próprias com luz e telefone, principalmente. A cobertura dos gastos é feita pelos
apoios culturais conseguidos pela emissora ou pelos integrantes.
Na história da Rádio Comunidade chama atenção a metamorfose que a
emissora enfrenta no processo de seu (re)nascimento. Com parte da equipe vinda
de uma outra emissora com perfil religioso, a articulação da Associação Comunitária
com os membros da antiga “100% Jesus” acaba significando uma enorme mudança
na percepção sobre a relação rádio e comunidade. Mais aberta, e com uma memória
sobre o período anterior, a rádio percebe que se abrindo para a comunidade o
funcionamento da emissora e sua própria relação com o bairro, se abrem, com um
“leque”, como afirma um de seus membros.
187
4.3 A Rádio Círculo FM
A Rádio Círculo existe a mais de 10 anos e funciona no bairro Granja
Portugal. Teve um passado como radiadora e depois passou a operar em freqüência
modulada. Como afirma um de seus membros:
Muitas emissoras comunitárias já fecharam e a Círculo Fm continua por seu “know-how” de trabalho continua no ar com a mesma freqüência 93.5, nunca mudou, começou em caixinha, o sistema comunitário, o nosso diretor Luis Maia sempre lutou muito pra ter a Círculo Fm, então começaram com caixinha em postes e hoje já passa pros dez anos a Círculo Fm.
A emissora já foi filiada a Arcos-CEPOCA. Hoje funciona sob a proteção de
liminar e como muitas outras encaminhou processo ao Ministério das Comunicações
e aguarda o lento trâmite do processo.
A rádio funciona na casa de seu diretor, num pequeno estúdio. Uma placa
de identificação na fachada é a única comunicação fornecida sobre a presença ali de
uma emissora. A porta da casa, localizada no primeiro andar, fica sempre fechada e
durante o período em que estive lá nenhuma pessoa esteve na rádio. Todos os
contatos com os ouvintes foram telefônicos e referiam-se a solicitações musicais e
um contato mais pessoal com o comunicador.
Toda a decoração do estúdio faz referência ao universo do forró e numa
rápida conversa o comunicador informa que a emissora “só toca forró”. Sua
programação reproduz “24 horas de forró”. A afirmação é feita em tom de
legitimação da cidade, como significando a comunidade, a partir de uma proposta
musical mais consagrada.
Na fala de um comunicador da rádio Círculo FM, alguns termos indicam a
perspectiva em que é interpretada a radiofonia comunitária, entre eles, por exemplo,
“rádio comunitária profissional e o nosso cliente”.
A ligação da rádio com a comunidade não é referida ao bairro onde ela se
situa como usualmente costuma acontecer, a associação é com a cidade, com
“todos os bairros da cidade”:
188
Rádio comunitária é o seguinte, (...) o intuito da rádio comunitária é trabalhar pra comunidade, como hoje o projeto da Circulo FM é indicar e acima de tudo informar o que acontece em toda capital Fortaleza, em todos os bairros da nossa cidade, então a Circulo Fm o trabalho dela é isso.
A construção da legitimidade da rádio como emissora comunitária não
aparece pela estreita vinculação da emissora a vida do bairro, mas pela veiculação
de campanhas de utilidade pública, que são realizadas “gratuitamente pela rádio”:
Nós temos já há muitos anos uma parceria com o EMOCE [Emocentro do Ceará], toda campanha do EMOCE eles enviam pra Círculo Fm e quando chega aqui a gente se encarrega de conseguir conquistar inúmeras pessoas pra que possa ser doador de sangue; outra campanha também foi essa que passou agora no natal da LBV [Legião da Boa Vontade], que arrecada alimentos não perecíveis para 200 famílias, a LBV teve vários artistas que participaram dessa campanha e a Círculo Fm também se engajou na campanha da LBV; então tudo que traz benefícios para a comunidade à rádio comunitária entra, ela entra sem cobrar absolutamente nada e, a outra eu citei agora no início que é informar e acima de tudo deixar a comunidade informada do que acontece em toda capital, em todos os bairros para que a gente possa fazer um trabalho bem melhor, então rádio comunitária não cobra por trabalho prestado à comunidade e fazemos o nosso trabalho aqui porque amamos o rádio e trabalhamos voluntariamente sem cobrar absolutamente nada.
Em sua fala a gratuidade e a utilidade pública são suficientes para marcar o
lugar “comunitário da emissora”.
Como afirma um ex-diretor da Arcos-CEPOCA sobre a construção da
legitimidade no campo das rádios,
Você quer ver um radialista brilhar os olhos é você pegar um Cd de “spots”, de campanhas educativas e dar pra ele. São loucos por material radiofônico, desesperados. Se tiver qualquer besterol, qualquer campanha de alimentos, campanha de saúde pública, eles querem para poder encher a rádio, para poder dizer que ela é bem comunitária. E se você vai realizar uma oficina com cursos, eles querem ir porque além deles se encontrarem com outras rádios, discutirem idéias, mostrar o que eles estão fazendo, porque eles adoram se mostrar. Então, eles acabam trocando figurinhas, e isso
189
não deixa de ser positivo. Às vezes eles dizem que são os mais comunitários e às vezes não é. Na rádio são ‘cabra’ bem ditador.
De fato a existência dessas campanhas é sempre mencionada como dado
de legitimação das emissoras, como uma variável de aferição do grau de veracidade
de uma emissora comunitária.
Na Rádio Círculo Fm a idéia de comunidade aparece como comunidade de
interesse cultural, cuja vinculação se dá pela predileção a um segmento musical, o
forró, adotado pela rádio como o segmento a ser trabalho.
Embora se afirme que a rádio funciona a partir do voluntariado, apresentado
como uma marca deste tipo de emissora, o seu comunicador esclarece que ela é um
lugar para treino, e uma vitrine de exposição, um lugar de oportunidades que se
situa dentro da comunidade de interesses.
O bom disso tudo é que nós não somos assalariados, não temos salários, trabalhamos voluntariamente, sem ganhar nada. Aqui é mais pra ganhar experiência para uma rádio maior e, a rádio comunitária hoje é uma idéia bem legal, se toda capital, se toda cidade pudesse ter uma rádio comunitária era muito legal pra todo mundo até mesmo pelo período de informação, pelo período de chegar e trabalhar, fazer aquele trabalho pra comunidade, rádio comunitária é bem legal (grifos meus).
Muitos dos comunicadores das rádios comunitárias se encontram em
situação de desemprego ou subemprego e tem na rádio, além de um lugar de
exercício da palavra, como discutido no caso da Favela FM, uma chance de
construir oportunidades de trabalho através da visibilidade produzida pelo microfone
comunitário. Muitos falam em sair da situação de desemprego com a possibilidade
de contratação para uma rádio de maior porte, onde possam ser remunerados pelas
tarefas que realizam132. A precariedade da atividade de muitos comunicadores
ligados as radiocom pode colocar obstáculos a sua sobrevivência. O vínculo moral 132 Durante minha visita a uma outra emissora, o comunicador, no final de nossa conversa, num tom mais intimista e angustiado, me perguntou o que achava de sua voz e se eu acreditava que ele tinha chances em uma emissora maior, entendida como uma emissora comercial. Depois da pergunta me confidenciou que gostava de trabalhar em uma rádio comunitária, mas que não ganhava pelo trabalho e com o longo período de desemprego que vivia, sonha em ser contratado por uma emissora comercial.
190
sugerido pela relação comunitária, de compromisso com a continuidade do projeto
comum, pode ser fragilizado.
O fato da legislação de radiodifusão comunitária ter resumido as chances de
autofinanciamento das emissoras aos apoios culturais133, medida que esvazia o
interesse de vinculação de publicidade dos pequenos anunciantes à uma radiocom,
as coloca em uma situação de penúria. Além do financiamento mínimo das contas
das rádios com despesas como água, luz e telefone, bem como com a compra e
manutenção de equipamentos e eventualmente aluguel ficarem comprometidas, a
própria sobrevivência dos comunicadores tem de passar por outros espaços que não
a emissora.
4.4 103,5 A Rádio Comunitária Antônio Bezerra
A 103,5 Rádio Comunitária Antônio Bezerra funciona desde 1999 no bairro
de mesmo nome. Diferentemente das outras emissoras já apresentadas, ela surge
depois da promulgação da Lei 9.612. Esse contexto tem conseqüências para a
percepção de sua posição no cenário da radiodifusão comunitária.
As idéias de legalidade e o compromisso com os princípios legais são muito
fortes no discurso da emissora que, entretanto, funciona sem outorga. Durante uma
visita à rádio, logo após minha saída, a emissora teve seus equipamentos
apreendidos pela Anatel, sendo seu diretor preso pela Polícia Federal e solto sob o
pagamento de fiança.
No dia seguinte a rádio efetivamente já não existia mais. O vazio deixado
pelos equipamentos era visto pelos que fazem a emissora não como uma perda,
mas como uma possibilidade, “um mal que vem para o bem”, já que colocaria a
mobilização pela legalização da emissora em outro patamar.
Nos estúdios a movimentação era intensa. Um dos membros da equipe da
rádio recolhia os equipamentos que sobraram da operação da Anatel e falava da
necessidade de conversar com “o deputado” para resolver de uma vez a situação.
Outro comunicador, que passou por lá “para ver como andavam as coisas”, dizia que
133 Modelo que se aproxima do mecenato e não da publicidade.
191
não havia sido apenas aquela rádio que havia sido fechada. Segundo ele, teria
ocorrido uma reunião entre Anatel, ACERT e Polícia Federal que havia deflagrado a
operação de lacre de radiocom134. Para ele, elas não gostam de rádios comunitárias
e o problema é que as radiocom são muito desunidas.
O fechamento da emissora e a apreensão dos equipamentos são
reveladores da relação de tensão das radiocom com o Estado e da forma como hoje
se constrói a obtenção de outorga de uma rádio comunitária. Como afirma o diretor
da emissora135 sobre sua prisão: “está no meu depoimento lá que eu disse que nós
sabemos que essas concessões só saiam através de influência política, e é verdade
entendeu? Só são oito rádios comunitárias em Fortaleza autorizadas, você pode ver
que todas têm participação política”.
A lentidão na análise dos pedidos de concessão pelo Ministério das
Comunicações, que discuti no segundo capítulo, onde, segundo seu diretor, o
processo “fica tramitando, aquele tramitando andando parado”, além de produzir
descrença na ação e eficiência dos órgãos de Estado reforça procedimentos que
marcaram historicamente o processo de concessão de canais de comunicação no
país.
O conflito existente em torno da comunicação comunitária deriva para a
descrença no direito, e reforça a crença da mediação política, entendida como
apadrinhamento, para a produção do mesmo. Nesse processo paralelo são exigidos
a criação de um padrinho político e o deslocamento da arena de pressão para
Brasília, num jogo de barganha junto a parlamentares que tenham algum peso para
intervir em favor da rádio. Como explica o diretor da emissora: “eu vou procurar um
deputado federal, porque você sabe que com um deputado federal fica tudo mais
fácil, então vou buscar um deputado federal cearense para a gente poder legalizar
essa rádio”. Ainda sobre o processo de apadrinhamento ele afirma:
Padrinho [precisa] com certeza. E se for ao lado do governo Lula é mais fácil ainda. Nós vamos buscar também um canal desses. (...) Eu preciso ir a Brasília, dar plantão lá e se for possível fazer greve de fome para ver se consigo falar com o Ministro das Comunicações
134 De fato, o diretor da rádio, um jovem estudante de ciências sociais, revelou que encontrou com outros responsáveis por radiocom na Polícia Federal. 135 Entrevista concedida à autora em 26/01/05.
192
para mostrar para ele que não é falta de iniciativa nossa, é morosidade deles do Ministério, porque desde 2002, a entrada foi dada em 1999, em 2002 eles fizeram uma última análise dos documentos e daí em diante está tudo parado. Nós sabemos que são milhares de pedidos de rádio comunitária em todo o Brasil. Mas eu tive até a iniciativa de mandar o documento voluntariamente para ver se eles se mexiam. “Realmente essa entidade aqui está interessada em ser legalizada. Vamos ver aqui, analisar, vamos dar os próximos passos para eles serem autorizados...”. mas não, voltou foi à documentação.Quando eu vi o meu envelope voltando eu fiquei muito triste porque a gente faz todo esforço. Peguei apoios da associação do bairro, apoios individuais de comerciantes, de uma pessoa influente do bairro, um radialista, o padre, fiz abaixo-assinado, toda a comunidade envolvida apoiando, querendo a rádio, e o Ministério não toma a iniciativa.
O ingresso do processo em 1999, sete anos atrás, e a morosidade do
Ministério contrastam com a celeridade da própria emissora, e o investimento feito
para cumprir as exigências legais do processo de outorga. Sem a obtenção da
resposta a saída do apadrinhamento político aparece como mecanismo mais
adequado para a legalização da emissora.
A história da Rádio se inicia já em freqüência modulada. O convite para a
participação em um programa de debates em outra emissora desperta o interesse
pela montagem da rádio:
Eu despertei para a rádio porque eu fui convidado por essa rádio [QC FM] para participar de um programa através de um professor, o professor Cosme, ele disse depois do debate “(...) porque a gente não monta uma rádio no Antônio Bezerra, você que é envolvido na política e tudo?”, eu disse: professor, sabe que é interessante, eu gostei mesmo de ter participado do debate nessa rádio aqui do Quintino Cunha, e ele disse “por que a gente não abre uma aqui no Antônio Bezerra não é ?(...)”. Eu disse: “vamos buscar os caminhos”. O primeiro passo foi ter uma entidade, aí fundamos a associação de jovens do Antônio Bezerra, compramos o equipamento da QC, o meu avô ajudou.
Se o envolvimento com a política aparece como o primeiro momento de
interesse por uma emissora comunitária, a busca “dos caminhos”, ou seja, a criação
efetiva da rádio exigiu criação de uma entidade que desse suporte legal à rádio.
Assim foi criada a Associação de Jovens do Antônio Bezerra. Atualmente, além da
193
Rádio, a Associação edita o “Jornal Antônio Bezerra”, que funciona como veículo de
divulgação das atividades do bairro, entre elas a própria emissora. A compra dos
equipamentos é viabilizada com o auxilio financeiro do avô de seu diretor, que
naquela época era vereador de Fortaleza136, e com promoções para a arrecadação
de recursos. A emissora é colocada no ar simultaneamente ao ingresso do pedido
de outorga. Livres para a escolha da freqüência, inicialmente a emissora ocupa a
freqüência 103,1:
Na verdade a 103,5 já foi 103,1 por quê? Porque quem define a freqüência somos nós já que nós não estamos autorizados pelo Ministério, então nós temos um técnico para isso e ele decide a freqüência. Em 1999 nós fundamos a associação de jovens do Antônio Bezerra e na época eu fui eleito presidente com o objetivo de constituir uma associação para as pessoas participarem e o nosso primeiro projeto era a rádio comunitária, daí fundamos associação, fizemos promoções, o meu avô inclusive deu uma boa ajuda, o meu avô era vereador na época e o restante nós fizemos bingo, fizemos eventos para pode arrecadar o dinheiro e comprar, aí nós compramos os equipamentos de uma rádio que era lá no Quintino Cunha, a QC FM.
O próprio processo de aquisição dos equipamentos diz muito sobre a
dinâmica de nascimento e morte das radiocom. A oferta de compra dos
equipamentos da QC FM, feita para a montagem da 103,5, foi prontamente aceita,
considerando a falta de recursos e as dificuldades de organização daquela
emissora:
Eu perguntei: Elder você não interesse em, por acaso você nunca pensou em vender os seus equipamentos? Ele disse “rapaz eu tô é querendo vender porque eu estou com uma conta aqui de 1500,00 reais e o negócio aqui está meio desorganizado, estou com outro trabalho e os meninos aqui não estão tomando conta direito da rádio, tô querendo é botar para frente”. Aí foi quando adquirimos, fechamos o negócio, na época fechamos o negócio em 3000,00 reais, e compramos os equipamentos.
136 O próprio diretor foi candidato a vereador nas últimas eleições (2004) pelo Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB.
194
Depois da compra dos equipamentos a Rádio inicia suas atividades, no
clube da família de seu diretor. A transmissão dos jogos do bairro é a primeira
atividade a aproximar a rádio do bairro.
Começamos aqui nesse local de forma bem caseira mesmo, a torre era um ferro de cinco metros, já tinha esses equipamentos aqui, não tinha computador na época era com um aparelho de cd,, Nós temos um clube aqui no bairro chamado Grab que foi fundado pelo meu avô, pelos irmãos dele, que tem uma família muito grande, ele é aqui nessa mesma rua. Nós fizemos promoções também e nós construímos lá o estúdio da rádio com o nosso próprio dinheiro, com promoções, com o apoio de comerciantes nós compramos a nossa própria torre por R$ 1.200,00, uma torre de 30 metros, e daí começamos a fazer a transmissão de jogos.
Atualmente a rádio funciona na casa da mãe de seu diretor137 e divide lugar
com o serviço de um caixa do Banco Postal. Uma placa pequena na fachada da
casa indica a existência da emissora. Em um estúdio simples e pequeno, mas
confortável, uma pequena ilha com transmissor, computador, aparelhos de CD,
microfone e telefone compõem a rádio. Quando da apreensão dos equipamentos
apenas o aparelho telefônico, o microfone e o monitor do computador ficaram na
emissora.
Como outras emissoras, a Rádio Comunitária do Antônio Bezerra tem na
resposta do público às atividades realizadas o marco de sua existência como
radiocom. E é a partir deste marco que a construção do discurso que a liga a
comunidade pode se instituir. A participação das pessoas nos eventos parece ser a
prova inconteste de que a rádio é bem recebida pela comunidade, mais de que ela é
querida. Em sua leitura, o diretor da emissora, a construção de um espaço público
local, que produz o “envolvimento com a comunidade”, a possibilidade de ouvir-se na
rádio:
Em 1999 já chegando 2000, aí veio à idéia de transmitir os jogos do campeonato de futebol aqui, porque o campo é vizinho, aí nós trouxemos uma equipe esportiva e aí fizemos uma ligação dos cabos pelos postes mesmo até o estádio, aí fizemos a transmissão dos jogos e fui até eu o comentarista esse dia. A gente começou todo um envolvimento com a comunidade, o pessoal começou a gostar da rádio porque você do bairro ouvir o seu nome na rádio, o nome do
137 Um jovem estudante de ciências sociais, cuja família tem tradição com a vida política no bairro.
195
seu filho que está jogando futebol, isso passa a cativar, daí eu vi a importância da rádio. Por mais que tenha a televisão, mas tendo uma rádio alternativa onde elas possam ter voz e vez, co certeza elas vão apoiar a nossa rádio e vão ser participantes ativos da nossa programação.
Outras atividades que não apenas a cobertura dos jogos de futebol do bairro
provam a ligação rádio/comunidade. Um evento em especial, um show de rock, mais
ligado ao público jovem, é lembrado como evidência da importância da rádio como
canal comunitário. Os eventos e a participação da população afirmam o apoio da
comunidade a emissora. Como afirma o diretor da emissora:
Tudo que a gente promovia a comunidade apoiava. Fizemos a campanha de arrecadação de alimentos e a comunidade foi, fizemos um tributo a Legião Urbana e veio jovem de todo lugar de Fortaleza, fizemos dois tributos a Legião Urbana, o que nós fizemos? A rádio passou um mês divulgando o tributo, os primeiro participantes do evento ganhavam uma fitinha e uma camisa da Legião Urbana e ainda ia concorrer a cd e tudo. Gente que gostava da Legião e viu que a rádio era organizada e começou a dar brinde para a gente e tudo; veio gente do colégio que eu estudava, do Evolutivo do centro, o professor viu o cartaz, ou seja, é através da rádio... É interessante quando a rádio promove evento. A rádio, só o estúdio, não é muito interessante, é interessante quando ela promove eventos, nem que seja um jantar ou uma festa dançante.
As promoções são vistas como estratégias de atração e sedução de novos
ouvintes, e também como um mecanismo para tornar a rádio mais interativa. As
pessoas que comparecem aos eventos no bairro são importantes porque, segundo o
diretor da emissora: “serão potenciais ouvintes. A gente está todo tempo dizendo
ouça a 103,5, esse evento tem promoção da 103,5. A pessoa pensa ‘uma rádio no
meu bairro e eu não sabia’, daí ela sintoniza e diz ‘a programação é boa’”.
De outro lado, a programação é considerada também um fator de construção
de laços com a localidade. A transmissão da missa, por exemplo, é lembrada como
uma das atividades que trouxe o reconhecimento à emissora. A programação da
rádio é considerada eclética e, segundo seu diretor, isto acontece em função dos
interesses daqueles que fazem a rádio, possuidores de interesses musicais e
culturais variados, mas também como uma exigência legal:
196
Começou a aparecer gente aí de todo canto dizendo eu faço programa de reggae, eu faço programa de forró, eu faço programa de rock, eu faço programa de pagode, aí eu fui dando oportunidade a todo mundo porque a lei manda o quê? Manda ter uma programação bem eclética, então eu peguei o rock, peguei o pagode, peguei o programa da igreja católica, peguei o evangélico e fiz, montei a programação junto com os locutores, e aí nós fomos encaixando a programação, daqui a pouco nós tínhamos o programa da igreja católica todo diariamente com uma audiência muito grande, aí nós pensamos “nós vamos é para a missa”, daí eu peguei o meu carro e botei um som e ia para a missa, para a quadra, e aí chamava o pessoal do ECC [Encontro de Casais com Cristo] e do EJC [Encontro de Jovens com Cristo] que é o encontro de jovens, do grupo de casais, o próprio pároco para dar entrevista e para falar sobre a missa, e aí tinha as festas de final de ano, as quermesses, tinha as festas da igreja de final de ano, e aí nós tivemos todo um envolvimento, aí daqui a pouco nós estávamos envolvidos com o futebol do bairro, com a igreja e todos esses segmentos que atraem multidões. Aí a nossa rádio foi adquirindo credibilidade, audiência, e daí se tornou uma paixão, porque eu gosto dessa coisa de estar envolvido na comunidade. E eu sabendo que a pessoa ia para a rádio e poderia encontrar um documento, buscar uma ajuda de alguém que estivesse ligada à causa dela.
Programas consagrados em rádios comerciais tornam-se parte da
programação da emissora, que é a seguinte:
Seg a sexta-feira 06h Som da Terra 07h Forrozão do Glaydson Silva 09h Comando 103 17h Recordações com o Rei 19h Sombras do Passado Sábado 06hRaiz de David 08h Forrozando 10h Sertanejo 12h Bregão do Marcos Sam 14h Revivendo a Jovem Guarda 16h Raggae Life 16h Consciência Ecológica 20h Dance Mania Domingo 07hTempo de Restituição (programa da Igreja do Evangelho Quadrangular) 08h Despertando para Cristo 10h Bregão do Marcos Sam
197
12h Funk 40º 14h Amado sempre Amado 16h Sertanejo 18h Sport Music
Embora programas consagrados nas rádios comerciais tenham espaço na
emissora, a programação, assim como a forma de organização da emissora e seu
modelo de manutenção financeira são apresentados a partir da oposição rádio
comunitária versus rádio comercial. Como explica seu diretor:
A nossa organização aqui é a seguinte, eu faço uma reunião sempre no começo de cada mês com todos os locutores, aí eu sempre digo que a nossa família é muito grande porque são 18 locutores, coisa que as rádios comerciais no máximo botam seis locutores com quatro horas para cada e ponto final. Pagam o salário e pronto, porque eles são profissionais e logicamente a gente respeita. Só que a rádio comunitária é diferente, primeiro porque eles não têm salário, eles mesmos vão buscar o próprio ganho deles, como? Eles vão buscar os apoios culturais, tem um percentual deles no caso eu faço de até 50% para poder manter a rádio, porque nós temos conta de telefone, conta de luz e tudo mais.
“50% é dele e 50% para a manutenção da rádio?”
É. Eu presto contas com eles, digo: comprei um hd, paguei conta da luz, do telefone, a da luz principalmente dá alta porque nós temos ar condicionado (...). Então a nossa equipe é muito grande, são 18 locutores, aí eu tenho o locutor do brega, do forró, do programa consciência ecológica para conscientizar a pessoa a preservar o meio ambiente.
A ausência de uma relação de assalariamento, que profissionalizaria a
equipe e tiraria o caráter informal da rádio, bem como a grande quantidade de
locutores, também são apresentadas como marcas da diferença entre a 103,5 e as
emissoras comerciais. A quantidade de locutores aparece como sinônimo da
pluralidade e da diversidade.
A rádio sobrevive dos apoios culturais, que tem preços diferenciados, de
acordo com a esperada capacidade de pagamento do anunciante. As diferenças de
preço também são estratégias para envolver os comerciantes do bairro e garantir a
sobrevivência da emissora. Como afirma seu diretor:
198
Os apoios culturais para os pequenos e médios comerciantes, o da bodega, o da mercearia, o do mercadinho com valores diferenciados para poder atender a demanda deles e porque eles vão vender dentro dessa região aqui, eu tenho certeza que o pequeno comerciante não vai ter interesse em divulgar em uma rádio comercial, enquanto que a rádio dele aqui próximo vai atender o público dele.
“A receptividade deles também sempre foi muito boa?”
Muito boa, está a tabela aí com os nossos apoiadores, aonde nós chegamos a ter mais de trinta apoiadores aqui.
O discurso sobre a relação entre comunidade e rádio se apresenta como
arma importante de legitimação frente ao discurso legalista produzido pelo Estado
(Anatel e Polícia Federal). A ruptura do lacre colocado nos equipamentos da rádio,
por exemplo, é defendida em termos do envolvimento e da importância da rádio para
a comunidade:
A nossa rádio tem uma importância muito grande dentro da comunidade. Quando eu disse ao delegado... ele disse assim: “(...) você fez pouco caso da Anatel, porque eles estiveram lá num primeiro momento e lacraram o transmissor e você deslacrou”, eu disse: doutor eu deslacrei não foi para fazer pouco caso, nem desafiar a Anatel, e nem desafiar nenhum órgão de competência dessa situação não, foi porque nós já temos todo um envolvimento com a comunidade.
O enredamento da rádio na vida comunitária se prova, também, pela
realização de campanhas em parceria com órgãos que “emprestam” sua
credibilidade à emissora. Além disto, o fato da rádio merecer o crédito dessas
instituições na divulgação de suas atividades demonstra que a emissora é
considerada séria e respeitável. Aqui é possível perceber o enorme significado
atribuído à presença das campanhas de utilidade pública na programação das
radiocom. O assíduo comparecimento desse tipo de campanha parece ser
associado ao sentido “comunitário” de uma radiocom, ao beneficio público que ela é
capaz de garantir. No caso da 103,5 as campanhas são lembradas como dado que
demonstra a importância da rádio para a os moradores do bairro, para a
comunidade, bem como pela realização de eventos culturais:
199
Nós fizemos campanha para o Iprede [Instituto de Prevenção à Desnutrição e Excepcionalidade], nós fizemos campanha para o Albert Sabin [hospital infantil] , nós fizemos alguns eventos culturais, você acredita que nós fizemos um tributo a Legião Urbana dentro da quadra paroquial, a nossa credibilidade era tão grande dentro da comunidade, eu não lembro o ano, mas o padre aceitou que nós fizéssemos um nós fizemos tributo a Legião Urbana, rock, críticas, letras do Renato Russo que falam sobre sexo, sobre amor, sobre o sistema, e nós fizemos dentro da quadra paroquial que foi uma polêmica, alguns casais do ECC contestaram, “Padre, o sr está ficando louco de deixar esse pessoal vir para dentro da quadra? Esse pessoal que vem com roupas pretas...”, ele disse “Não, tem a participação do R.[o informante] com a rádio dele, a entidade dele, eu sei que é uma coisa séria, e o espaço está aberto”.
Mesmo ações consideradas pelo diretor da rádio como assistenciais são
lembradas como prova da importância social da emissora:
Nós já fizemos campanha para ajudar a favela do viaduto quando estava se constituindo aqui próximo ao terminal de Antônio Bezerra, arrecadando os alimentos, é claro que isso é um assistencialismo, mas enquanto entidade já que nós não somos órgão do governo de execução, nós somos uma ONG, uma organização não-governamental, nós podemos amenizar o sofrimento das pessoas demonstrando solidariedade. A meta do governo Lula, por exemplo, ele queria que no final do mandato os brasileiros tivessem tomando café, almoçando e jantando? Qual o problema de a gente como entidade dar a nossa contribuição numa comunidade carente que está se formando dentro no nosso próprio bairro. É claro que eu acho que a comunidade deve se organizar e buscar o nosso apoio no saneamento, na iluminação, buscar os serviços públicos aos quais elas têm direito.
Estes argumentos alimentam a formação da auto-imagem das rádios,
relacionando de tal modo a emissora e o bairro que a legitimidade da primeira não
pode ser contestada. Na história da emissora essa auto-imagem é fundamental,
considerando que, durante seu curto tempo de existência a rádio já foi lacrada
algumas vezes, e em função disto já esteve dois anos fora do ar. Durante algum
tempo, como outras radiocom, funcionou sob a proteção de liminares. Depois, em
2001, sem essa proteção, a rádio foi lacrada. Após dois anos aguardando uma
resposta ao pedido de concessão feito ao Ministério, seus membros resolvem
quebrar o lacre e recolocar a rádio no ar. Como explica seu diretor:
200
Foi o que eu disse no depoimento também, eu disse Dr. eu não pude mais esperar não, e fiz o que fiz, o que tinha de ser feito, decidi por conta própria juntamente com os locutores que nós vamos abrir a rádio, ela não pode ficar fora do ar não, ela tem uma importância muito grande dentro da comunidade. Nós abrimos a rádio no começo de 2005.
Os compromissos com o pequeno mercado publicitário do bairro, feito pelos
“apoiadores culturais”, a necessidade de marcar o espaço da emissora no “dial” e a
“importância da emissora para a comunidade” exercem enorme pressão para que a
rádio volte ao ar. Novamente, depois disso, dois novos lacres, com sucessivos
deslacres mantiveram a rádio no ar até a apreensão dos equipamentos. Como
explica seu diretor:
Eles lacraram e eu deslacrei, eles lacraram a segunda vez e eu deslacrei, e agora não teve jeito, eles levaram os nossos equipamentos, eu fui conduzido também, vou responder a um processo por isso, paguei fiança [que é de um salário mínimo], eu acho que isso de fiança é um absurdo, eu acho quer não deveria existir fiança não.
Os episódios de prisões e lacres acabam produzindo troca de informações
entre as rádios que são vítimas de processos como este. Em operações onde várias
rádios são fechadas no mesmo dia, seus responsáveis trocam informações sobre as
possibilidades legais de saída para radiocom. É o que aconteceu com a Rádio
Comunitária do Antônio Bezerra:
E o detalhe é que eu descobri que tem juiz que não considera isso crime não, um dos quatro juízes desses casos não considera isso crime, ele manda devolver o equipamento. (...) Aqui em Fortaleza, eu não sei o nome do juiz, mas ele manda devolver os equipamentos, ele manda devolver a fiança, e deixa você à vontade. Eu descobri isso ontem porque houve esse problema. A constituição garante que nós temos liberdade de expressão.
A imagem de emissora criminosa é rebatida pela leitura dos serviços
prestados pela rádio à comunidade. Na narrativa sobre a emissora ganha
importância a defesa de atributos que construam uma imagem da rádio como veículo
comunitário, legitimando a rádio frente aparato as ações de repressão.
201
4.5 As definições e a construção da auto-imagem das rádios comunitárias.
Para além das diretrizes traçadas pelo movimento de rádios comunitárias, ou
pelas interpretações sobre as radiocom muitas vezes normativas, as rádios
comunitárias em seu dia-a-dia constituem sua práxis e um discurso que dialoga com
um conjunto de tensões entre um modelo idealizado de comunicação comunitária e
a prática efetiva.
A tensão pode ser percebida no conjunto de designações criadas pelas
próprias radiocom para explicar o território onde nascem e com o qual elas têm de
conviver. Entre as designações ouvidas estão: “rádios verdadeiramente
comunitárias”, “rádios comunitárias profissionais”, “rádios piratas” ou “rádios
genéricas”. Cada uma dessas denominações revela nuances diferentes das tensões
que venho discutindo.
A construção de um lugar de verdade, onde as rádios podem expressar a
verdade de uma relação comunitária, a busca de expressão de rádios que não se
identificam com o discurso de comprometimento e idealidade sobre a comunicação
comunitária, são expressões dessas diversas apresentações do discurso que se
forja sobre as radiocom. Para melhor compreender o significado e o sentido dessas
denominações, observe como elas aparecem no discurso das rádios pesquisadas.
A oposição “estabelecidos e ‘outsiders’” pode ser considerada na leitura que
a Rádio Favela faz da radiofonia comunitária. Tendo uma longa trajetória, a rádio viu
mudanças significativas acontecerem nesse campo. Quando eles são a terceira
emissora em freqüência modulada de Belo Horizonte. Durante muito tempo a
emissora viveu como emissora clandestina, até 1999, quando recebe a concessão
como emissora educativa. Nos mais de vinte anos da rádio, o “dial”, antes livre para
ser ocupado começa a ficar saturado.
A posição de “estabelecida” se afirma pela referência ao pioneirismo da
emissora: “a primeira rádio genérica antes do genérico existir, a primeira rádio pirata
do Brasil”, ou ainda na percepção que de que “de 97 para cá ai virou moda fazer.
Depois que a rádio saiu da página de crime do jornal, da página vermelha, passou
202
para o jornal de cultura, ai o padre começou a fazer pirataria, o pastor da igreja
começou a fazer pirataria, e por ai foi. Ai virou moda”.
Nessa posição a rádio marca sua diferença das demais, tanto comerciais
como comunitárias, vistas por Misael como genéricas, ou as vezes, piratas.
Já na “Rádio Comunidade”, o termo comunidade é usado principalmente
como sinônimo do bairro. O fato de estar fisicamente próxima dos ouvintes através
das caixas de som, parece colocar a “comunidade” muito mais próxima da emissora.
Além disto, a condição de operar em freqüência modulada não lhe impõe
constrangimentos legais. Diferentemente de outras rádios que se afirmam a partir da
relação com o universo jurídico-legal da radiofonia comunitária, através da
concessão, das liminares, da concorrência com outras emissoras que também se
definem como radiocom, na Rádio Comunidade a relação com bairro é que marca
primordialmente a imagem da emissora como veículo comunitário.
Perguntados sobre uma diferença entre emissoras comercias e
comunitárias, as respostas fazem referência à liberdade e o não interesse pelo lucro.
Como afirma Ana Lúcia:
De cara o que eu percebi é que as pessoas nas rádios FM, freqüência modulada, elas não tem a mesma liberdade, nem elas nem as AM , pois as AM também são comerciais, então ela não tem liberdade, muito embora eu ache que o vocabulário das pessoas da AM é diferente das de FM. Eu percebo no vocabulário das pessoas e na forma como elas dão a notícia, No caso da comunitária é muito mais centrado naquilo [a notícia] sem ter muito que esconder (...).
Para outro comunicador da emissora, a diferença está no interesse pelo
ouvinte, que se manifesta em ações assistenciais, na prestação de serviços, ou na
ausência de lucro da emissora comunitária. Como afirma
A diferença é a seguinte, nós nos preocupamos com o hoje, do dia a dia dos nossos ouvintes, do povo da nossa comunidade, aquela coisa, de termos o prazer de ver a nossa comunidade bem. Nós aqui fazemos questão, e até brigamos às vezes, quando a Centro Comunitário não manda um aviso, para nós, que tem um curso bom, que o nosso jovem fique lá e aprenda, nós brigamos com ele. E a
203
rádio comercial não, ela visa o lucro. Ela quer saber quanto é que vai dá no final do mês o caixa dela. Ela não está preocupada com o bairro Ellery, com o Pirambu, com a Boa Vista. Se tá na lama se está na seca, se o seu Joaquim tem o que comer ou que não tem. Já nós não, a nossa rádio, a diferença da rádio comunitária em si, é essa, que não visamos o lucro, mas visamos a alegria do nosso ouvinte. Ele pode até não está ouvindo, não importa, mas o importante para nós é que ele amanheça o dia e tenha o que comer. Eu me emociono pelo seguinte, porque nós nos preocupamos com isso. Nós não estamos preocupados aqui em dizer, ‘puxa vida hoje, s. Joaquim não tem o que comer, eu não tenho a nada com isso’ não, assim vamos brigar hoje, vamos brigar com fulano dos anzóis, que está fazendo assim, assim daquela rua. Se for para deixar a nossa comunidade feliz nós vamos brigar (grifos meus)
Para o comunicador a função primeira de uma emissora comunitária é a
prestação de serviços que garantam o bem-estar do ouvinte, ao contrário da busca
do lucro existente nas rádios comerciais. O entretenimento deve vir a reboque
dessas funções:
Então, nós nos preocupamos com isso que o nosso futuro ouvinte, chegue amanhã, e nós tenhamos a certeza que ele está bem. Essa é a diferença da rádio comunidade, levar entretenimento sim, mas levar também serviço, utilidade pública.
Já na Rádio Círculo a organização da emissora a aproxima muito do modelo
empresarial. A expressão “rádios comunitárias profissionais” tenta dar conta dessa
situação. Embora afirme o discurso do voluntariado e da gratuidade na prestação de
serviços, a vinculação da rádio a um segmento musical de mercado, oferta um
conjunto de oportunidades, para quem a faz, como por exemplo, apresentação de
shows de forró ou veiculação de propagandas das bandas.
Na Rádio Comunitária do Antônio Bezerra as diferenças entre tipos de
emissoras são claramente colocadas. Elas são usadas para construir a diferença
entre a 103,5, vista como verdadeiramente comunitária, as rádios comerciais e as
piratas. Como analisa o diretor da emissora:
Tem espaço para todo mundo na medida em que o Ministério for selecionando quais são as entidades realmente que tem um trabalho sério e que podem realmente receber a concessão, veicular programas com caráter educativo, informativo, cultural, essas
204
entidades sim podem ter espaço para isso. Em fortaleza nós temos 114 bairros se eu não me engano, já pensou cada bairro com a sua rádio comunitária? Já que tem uma definição na Lei de que só pode ter 1km de raio, então com certeza poderia ter mais de cem rádios comunitárias em Fortaleza hoje, só que, nós, só temos oito. Agora tem que eliminar as piratas. Eu classifico como rádio pirata aquelas que não tem entidade, não tem pessoas na sua direção, não tem diretoria organizada, não existe uma organização com definição de programação, com documentação de entidade, com serviços públicos, com prestação de utilidade pública, com nada disso, com equipamentos sem homologação do Ministério, essas são as rádios piratas, são as feitas nos próprios quintais, que só funcionam no sábado e no domingo ou à noite quando não tem a fiscalização, aí eu classifico. E aí vem a nossa rádio como rádio comunitária que segue uma programação eclética, sem distinção de raça, de cor, de gênero, com participação de todo mundo, com a programação que vai do forró ao “funk”, como entidade organizada e com credibilidade dentro da comunidade onde está instalada, com pessoas idôneas compondo a sua diretoria, com locutores que não são profissionais, mas que sabem o que dizem sem estar promovendo político.
Nesta perspectiva, as rádios comunitárias seriam marcadas pela seriedade,
pela veiculação de programas educativos, informativos e culturais, enquanto que as
“piratas” são classificadas pela ausência dos atributos ligados às comunitárias. Além
disso, não tem entidade, logo não tem documentação da entidade, não tem direção,
não há definição clara de programação, a ausência de uma entidade, sem diretoria
organizada, etc. A apresentação desses elementos serve para reforçar a
legitimidade da Rádio Comunitária do Antônio Bezerra. Ainda sobre a relação entre
rádios comunitárias, rádios comerciais e piratas, afirma:
Na verdade as piratas são totalmente irresponsáveis, elas acabam atrapalhando as que realmente querem buscar a sua autorização, as que tem projeto para poder desenvolver, que tem um projeto para poder desenvolver através das ondas do ar, e aí a Acert e a Anatel acabam generalizando, quem não autorização é pirata, mas na verdade não é, o que eu queria era que a Acert e a Anatel soubessem distinguir esses dois segmentos, porque no nosso caso nós temos toda uma história, é tanto que desde 1999, já vamos fazer sete anos que nós estamos buscando a nossa autorização no Ministério da Comunicações e não fomos autorizados. E existem as comerciais tem uma organização que é a Acert que tem um poder econômico muito forte, uma influência política também e eles são os nossos repressores.
205
O diretor da rádio expõe ainda nesse processo de construção das distinções
o vazio deixado pela ausência de uma instituição representativa forte, capaz não
apenas de defender os interesses das comunitárias, mas de eliminar as piratas.
Infelizmente o nosso movimento fragmentou, nós tínhamos a Abraço Ceará e cada estado tinha a sua associação de rádios comunitárias e infelizmente o movimento fragmentou, cada um foi se preocupar com a sua autorização. (...) Fragmentou porque cada um foi se preocupar com a sua autorização. Se nós tivéssemos entidade organizada dando capacitação para as rádios comunitárias talvez metade dessas piratas já tinham sido extintas ou então elas tinham se capacitar para se transformar em comunitárias e o nosso movimento estava bem mais numeroso e organizado, e realmente cada vez mais unido buscando o nosso espaço e não de combater as comerciais porque as comerciais tem os espaços delas, só que as comerciais não tem interesse que a gente se organize porque você imagina cada rádio comunitária em um bairro? Eles não perdem patrocinadores porque eles trabalham com grandes patrocinadores, mas eles perdem audiência e conseqüentemente vão perder os patrocinadores porque os patrocinadores vão ver que eles estão perdendo audiência para nós comunitárias e aí não vão apoiar, por isso que eles não têm interesse nenhum, eles têm interesse que a Anatel cada vez mais fiscalize, que a Polícia Federal e o Ministério Público fiscalize as rádios piratas como eles dizem, eles englobam tudo, eles não querem saber se a minha entidade, se a nossa rádio tem um trabalho voltado para a comunidade não, pelo contrário, eles não querem que a gente tenha esse trabalho não, eles querem que a gente dê interferência no aeroporto porque isso aí é um perigo muito grande, ontem mesmo eu soube que tem uma rádio no aeroporto que estava dando interferência na hora da aterrissagem dos aviões, essa rádio realmente tem que ser eliminada porque ela pode provocar acidente e matar muitas pessoas.
É interessante perceber a re-apropriação do termo pirata pelas emissoras
que se afirmam comunitárias. Como também o é, o uso de argumentos que serviram
para opor a legitimidade das rádios comerciais às nascentes emissoras
comunitárias. O perigo agora se encontra ao lado, no próprio campo das radiocom.
206
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta deste trabalho era a discutir o conflito no campo das rádios
comunitárias, indagando em função de que elementos ele se organiza. Para fornecer
uma resposta a essa pergunta, acabei por construir um percurso que tornasse
possível a leitura dessas emissoras, bem como um panorama que expressasse as
mudanças que a interpretação e representação das radiocom sofrem ao longo do
tempo.
Uma canção138 de um grupo de rock brasileiro dos anos 1980 foi talvez a
primeira manifestação que ganhou dimensão massiva sobre o fenômeno das rádios
não-regulamentadas no país. A canção utilizava positivamente a expressão “rádio
pirata”, hoje uma expressão usada como valor depreciativo por grupos contrários às
emissoras comunitárias, para falar da necessidade da “pirataria nas ondas do rádio”.
Na canção as rádios são lugar de revolução, por isso devem “disputar em
cada freqüência um espaço nosso nessa decadência”, já que só “no submundo,
repousa o repúdio”. A rádio pirata seria uma forma de retomada, um mecanismo
para “invadir, tomar o que é nosso”, para “fazer justiça com as próprias mãos”.
É muito provável que a inspiração para esta canção tenha vindo dos
movimentos de rádios livres existentes na Europa e no Brasil. A bandeira desses
movimentos, como foi visto, era a ruptura com a exclusividade de uso de canais de
comunicação pelo Estado, como acontecia na Europa, ou explorados
exclusivamente pelo Estado e comercialmente, como acontecia no Brasil.
A canção, o movimento de rádios livres, o aparecimento das rádios
comunitárias, a criação de uma legislação e os desdobramentos de seu
aparecimento são expressões diversas da relação de conflito social que a
radiodifusão brasileira, em um sentido mais amplo, vem passando no Brasil.
138 “Rádio Pirata”, de autoria de Paulo Ricardo e Luiz Schiavor, interpretada pelo Grupo “RPM”.
207
Como visto ao longo do trabalho, além do movimento de rádios livres,
diversos outros movimentos sociais passam a fazer uso do rádio para se expressar e
a confluência desses movimentos faz parte da história do surgimento das rádios
comunitárias e da instituição de um direito, o da radiodifusão comunitária, objeto de
recente reconhecimento jurídico. Nesse ínterim, das páginas policiais elas saltam
para o caderno de cultura, como afirma Misael Avelino, da Rádio Favela. De
criminosas elas se transformam em necessidade social, já que a lei apazigua as
disputas antes existentes, certo? Não exatamente.
A instituição do direito não pôs fim ao conflito e às demandas do movimento,
apenas o colocaram em outro patamar. A legislação também não apaziguou as
contendas em torno da legitimidade das rádios e a forma como são representadas e
percebidas. A auto-imagem e a imagem do outro, que associações de radiodifusão
comercial, associações de rádios comunitárias, órgãos de governo e meios de
comunicação constroem ao se relacionarem, são o mecanismo pelo qual duelam
estes agentes. Através da defesa de uma imagem de si e de uma imagem do outro,
forjam a defesa de seus interesses, articulando-os às idéias de legitimidade e de
ilegitimidade.
Ao encampar o conflito sobre a comunicação comunitária, o Estado, quando
da criação da lei, o tornou ainda mais complexo. O inimigo comum das radiocom,
representado pelos mecanismos de controle e repressão e pelas emissoras
comerciais, dividiu-se.
Havendo o reconhecimento do direito, o discurso não é mais o de que o
Estado não reconhece a existência de emissoras comunitárias, mas o de que não
respeita o direito que ele próprio reconheceu. A demora na análise dos processos de
concessão, as operações de fechamento e lacre de emissoras são ocorrências do
desrespeito. O conflito se diversifica.
As radiocom passam a brigar, primeiramente, dentro de seu próprio campo,
para definir o que é ou não verdadeiramente comunitário. Fora dele a qualidade da
legislação passa a ser questionada, ao mesmo tempo em que as radiocom buscam
a outorga e se defendem contra a fiscalização e controle de suas atividades.
208
A legitimidade e a legalidade tornam-se temas por excelência nessa
conjuntura. A produção de discursos capazes de constituir legitimidade sobre o
direito de uma emissora comunitária existir passa a ser central. Eles aparecem nos
relatórios de órgãos como a Anatel, na cobertura da imprensa sobre o tema, na
produção das entidades ligadas às rádios comunitárias (como a ABRAÇO), na
produção das entidades ligadas à radiodifusão comercial, como a ABERT e ACERT
e é claro, na fala das diversas emissoras que se intitulam comunitárias.
Havendo consensos parciais sobre o que seja uma radiocom, que se
organizam a partir de grupos de interesse, os discursos colocam em operação
imagens de legitimidade ou de ilegitimidade. Parece-me que a “idéia” rádio
comunitária já construiu sua legitimidade. Como idéia não se nega mais sua
existência. Porém, como realização dessa idéia as rádios ainda enfrentam o
problema de uma efetividade marginalizada. E de sofrer vários processos de
constrangimento. O principal deles diz respeito à quantidade: O “dial” é dedicado
preferencialmente às rádios comerciais e a Lei 9612 define que as radiocom têm
apenas uma freqüência à sua disposição. O discurso sobre as rádios livres e a
liberdade de qualquer um montar o seu veículo de comunicação se mostra de pouca
viabilidade. O “dial” congestionado dos rádios prova essa dificuldade.
Emissoras consagradas como a Rádio Favela começam a pedir a retirada
das rádios “genéricas” do ar. Não há como transmitir e receber informações com o
espectro congestionado. A questão da legitimidade diz respeito a quem deve ficar.
Sobre esse aspecto, as matérias dos jornais cearenses “Diário do Nordeste”
e “O Povo” apontam um número reduzido. A observação do histórico das coberturas
indica que a posição positiva quando do surgimento das radiocom no Ceará, quando
elas são apenas radiadoras, altera-se completamente quando do surgimento das
radiocom em freqüência modulada, disputando audiência com as rádios comerciais.
Não há uma única matéria recente sobre as radiacom que não as trate sob a
perspectiva da suspeita, da ilegitimidade. Nestas representações, elas catalisam um
conjunto de valores negativos. Usurpam o direito das emissoras comerciais
trabalharem, são ilegais e não respeitam vários aspectos da legislação brasileira:
fazem propaganda política e põem em perigo a população. Depois de sua
209
legalização, as rádios comunitárias podem existir como idéia, mas não como
efetividade.
A “perda do espaço da alternativa popular” (FUSER, 2003) para outros
grupos transfere para o interior do próprio movimento de comunitárias uma disputa
que antes ocorria apenas fora dele, na relação comunitárias versus comerciais.
Depois da Lei 9.612 o mercado de rádios comunitárias explodiu. A expansão
do número de emissoras que inicialmente ilustra e denuncia o “déficit” de meios de
comunicação nas mãos dos movimentos sociais e comunidades e que serve de
pressão para a discriminalização e surgimento de uma legislação específica,
transforma-se paulatinamente. Depois da regulamentação a diferenciação passa a
ser vista como um problema, com a penetração nesse espaço, antes exclusivo dos
movimentos sociais, de novos agentes: igrejas, políticos e pequenos empresários. A
ênfase na divisão “nós” / “eles” se intensifica. A análise dos jornais “ABRAÇO no Ar”
mostra que os inimigos são internos e externos ao campo da radiofonia comunitária.
Longe dos movimentos de rádios comunitárias, que no Ceará vivem um
momento de refluxo, as rádios de diferentes matizes seguem construindo sua prática
e um discurso identitário. A necessidade de se qualificar como o mais capaz para
realizar um projeto de comunicação comunitária se apresenta como auto-imagem.
Nas emissoras pesquisadas a comunidade pode ser: comunidade de interesses,
comunidade geográfica, o bairro, a audiência. Às vezes idéia adjetivada, às vezes
substancializada. Matrizes de orientação religiosa, política ou comercial foram
identificadas no processo de nascimento dessas emissoras. Porém, como a
pesquisa revelou, nem sempre elas permanecem orientando a emissora.
Rádios que durante algum tempo estiveram ligadas a Arcos-CEPOCA, como
a Círculo FM, aproximam seu funcionamento da prática das rádios comerciais.
Outras, como a Rádio Comunidade, um dia “100% Jesus”, saem de um campo de
atuação restrito à comunidade religiosa para se relacionar com o bairro e sua
pluralidade de interesses. Rádios como a Comunidade não sabem da existência de
um modelo já estabelecido de organização e funcionamento de uma emissora
comunitária. Sabem da existência da legislação, mas não a conhecem, sabem das
Associações, mas nunca participaram. A compreensão dos parâmetros de
210
funcionamento de uma rádio comunitária é construída cotidianamente. Ela cria
mecanismos que vão sendo testados e aperfeiçoados ao longo do tempo, como a
programação, a relação com o ouvinte, ou a forma de organização interna da
emissora.
Já na Rádio Comunitária Antônio Bezerra o horizonte legal, conhecido desde
que a idéia de fundar a emissora surgiu, serve como guia de seu funcionamento. A
transgressão que a presença da rádio no ar torna mais necessária a elaboração de
uma imagem de emissora autenticamente comunitária, o que percorre a narrativa de
sua história, desde o nascimento até o lacre. A pluralidade é uma arma na disputa
legal, mas também no processo concorrencial de conquista da audiência e
envolvimento da comunidade.
Ao longo da pesquisa fui percebendo que o surgimento da Lei 9.612 cria
uma divisão na história das rádios comunitárias. A partir dela, novos personagens
entram em cena, na disputa pelo direito de se apropriar de um canal de radiodifusão
comunitária. A ‘reserva de mercado’ detida pelos movimentos sociais é rompida
pelos novos grupos de interesse. A necessidade de forjar um discurso de inserção
nesse universo erige a auto-imagem das emissoras como lugar de definição de
quem tem ou não direito a canal de rádio comunitária. Para sobreviver a essa
disputa interna com outras emissoras que se intitulam rádios comunitárias, a
construção de uma imagem que articule qualidades que possam descrever a
emissora com a idéia de comunidade é fundamental. A história das rádios contada
pelos seus membros revela isto.
O trabalho me mostrou ainda que a comunicação comunitária é um exercício
recente, um aprendizado da relação das rádios com os ouvintes e com a vida do
lugar onde se inserem, o bairro. Esse espaço público desprezado durante muito
tempo pelas emissoras comerciais, começa a ser objeto de interesse pela ação das
rádios comunitárias. Aquilo que antes passava como dado menor da vida desses
bairros agora ganha visibilidade. Talvez não da forma idealizada como inicialmente
se pensa o papel dessas emissoras, e muito mais por uma relação concorrencial de
mercado que elas estabelecem com as emissoras comerciais e entre elas próprias.
211
Assim, pela via do conflito, uma enorme mudança no cenário da radiofonia
brasileira se apresenta. Com o “dial” congestionado, talvez o que esperam o ouvinte,
o bairro, a comunidade é o que afirma a canção139: que essas emissoras
Toquem o meu coração, façam a revolução
Que está no ar, nas ondas do rádio
Nos submundos repousa o repúdio
E deve despertar
139 “Rádio Pirata”.
212
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2004.
Comunitárias: número de rádios fechadas aumenta 37% no governo Lula. O Povo,
Fortaleza, 24 out. 2004.
223
ANEXOS
224
Anexo 1 Mapa de Fortaleza - Rádios visitadas/pesquisadas
225
Anexo 2 (a)
Informativo CEPOCA - Outubro de 1990
226
227
Anexo 2 (b)
Informativo CEPOCA – Fevereiro de 1991
228
229
Anexo 3
Quadro de diferenciação radiocom versus rádios comerciais
Radiocom Emissoras comerciais Ética Fundamenta-se numa ética, num
conjunto valores, que se manifesta como o respeito à vida, aos ser humano, ao meio ambiente.
A ética é fundamentada no mercado. Os valores são os valores de mercado
Prioridade Promover a cultura, a arte, a educação, o desenvolvimento da comunidade.
Promovem o lucro dos proprietários
Cultura Propagam, difundem e estimulam os artistas locais, valorizando os de qualidade. Têm um compromisso com a legítima arte popular Valorizam a arte verdadeira; a boa música brasileira e a música de raiz.Mostram o que há de melhor na cultura de outros povos
Difundem os produtos que a industria cultural gera. Não há compromisso com a arte e a cultua do povo, mas com o lucro gerado pela venda de determinados produtos (cantores, bandas...) Difundem entretenimento – que é o lazer alienado, disfarçado como cultura.
Jornalismo É voltado para os interesses da comunidade, o povo faz e é o jornalista. Provoca a integração da comunidade Debate todos os temas com a profundidade que cada um merece, sem se limitar ao tempo dos programas.
Voltado para o interesse dos ricos, dos patrões, da elite. Visa fragmentar a comunidade Debate os temas que interessam aos dirigentes da emissora, no tempo limitado da programação
Programação Visa estimular a inteligência das pessoas que compõe a comunidade Estimula a inteligência, o debate, a integração da comunidade com seus problema, suas derrotas, seus sucessos.
Serve aos interesses financeiros da rádio e das gravadoras Promove a alienação do ouvinte
Participação Popular A comunidade, o povo, faz e é a rádio A participação do povo é intrínseca A rádio não porta-voz do povo, ela é o povo.
Apresentam-se como porta-vozes da população. Mas o povo aparece como bandido, ladrão, assassino, criador de casos. Em alguns casos a participação popular é interativa: vota nas opções que a emissora coloca a disposição (conforme interesses delas), criando a falsa aparência de que o povo pode escolher, participar.
Conhecimento Estimula no ouvinte, e quem faz a emissora, a buscar o conhecimento.
Não valoriza o conhecimento. Estimula a alienação
Cidadania Estimula no ouvinte sua participação na comunidade como cidadão. Destaca seus direitos e deveres na comunidade e no país
As pessoas são tratadas como consumidoras. As pessoas valem pelo que têm, pelo cargo que ocupam.
Audiência Audiência é secundário. Mais importante é a integração da
A audiência é fundamental, porque isto representa ganho
230
comunidade, a difusão da inteligência, da cultura e da arte.
comercial, e sem ganho comercial não interessa ficar no ar.
Publicidade É uma questão secundária. Não é fundamental. Faz publicidade mas sob determinadas regras éticas.
É o fundamental na emissora. Sem publicidade ela não existe.
Quem opina Todos opinam: gente do povo, autoridades e especialistas no assunto
Todos, mas o povo não conta muito. São censuradas ou boicotadas as opiniões que não coincidem com os interesses comerciais e políticos da emissora.
Política Aberto a todos os partidos e candidatos. Antes do período das eleições a comunidade pode conhecer os candidatos, através de debates. Não tem compromisso com partidos ou candidatos.
Têm prioridade na emissora, aqueles candidatos e partidos que tem relações com o dono da empresa/emissora
Religião Rc não pertence a nenhuma religião. Não faz proselitismo (catequese) de nenhuma religião. Abre espaço para, quando chamadas, elas opinarem sobre determinados temas. Não discrimina religiões – todas tem os mesmos direitos
Algumas pertencem a religiões e, deste modo, discriminam outras. Fazem proselitismo sistemático. Mesmo quando não pertencem a determinada religião, as emissoras procuram orientar a programação para a religião que tiver mais poder ou para aquela que estiver na moda.
Movimentos populares Elas fazem parte da rádio – no modo formal ou informal. A RC anuncia as reuniões dos movimentos populares, divulga manifestos, cobre atos –reuniões, manifestações públicas, solenidades. Se o movimento não é parte da RC, ela é, no mínimo, parceira dos movimentos populares.
Desqualificam os movimentos populares. Satanizam eles. Os movimentos populares são tratados como inimigos da ordem e da lei. São difundidos como formados por baderneiros, terroristas, agitadores, subversivos, radicais,...
Fonte: “Trilha Apaixonada e bem-humorada do que é de como é fazer rádios comunitárias
na intenção de mudar o mundo” (LUZ, 2001, p. 13-15).
231
Anexo 4
Quadro de matérias publicadas pelo boletim “No Ar ABRAÇO” e pelo jornal “ABRAÇO no Ar” entre 1997-1999.
Jornal/Data/Número Matéria No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Resoluções do 1º Congresso da ABRAÇO
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Conjuntura
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Editorial
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Diretoria Executiva da ABRAÇO reformulada no 1º Congresso
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Estatuto da ABRAÇO
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Ações políticas da ABRAÇO para o próximo período
No Ar ABRAÇO - Novembro 1997. Número 4
Curso de formação e capacitação
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
“Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder”
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
“Todos no Congresso da ABRAÇO”
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
“No Brasil, lutar pela democratização é um ato de coragem
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
“Lei das rádios comunitárias ... o começo ou o fim”
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
“ É da reflexão que nasce a luz”
ABRAÇO no Ar - Julho 1998. Número 6
A resistência da rádio Cantagalo – PR”
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
“Alô, Alô Teresina. Aquele ABRAÇO”
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
Em formação
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
Os ladrões entram pelas portas dos fundos
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
A seca, a comunicação e a solidariedade
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
I Congresso de São Paulo- ABRAÇO SP
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
Caça as bruxas em Santa Catarina
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
“Voltamos à luta: Ministério das Comunicações baixa regulamentação das rádios comunitárias de forma arbitrária, passando por cima do legislativo”
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
Não a censura, Não ao silêncio
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
Maranhão: Democracia na comunicação e reggae na veia do movimento
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
FNDC: um breve histórico do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
MD x computador
ABRAÇO no Ar – Agosto 1998. Número 7
ABRAÇO na WEB
ABRAÇO no Ar – março O céu é o limite
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1999 Número 8 ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Horóscopo poético
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Revolução em curso
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Consórcio Nacional ABRAÇO- BancorBras: a oportunidade que faltava para a aquisição de equipamentos de rádio comunitária
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Frente parlamentar pela democratização da comunicação
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
III Congresso Nacional de Rádios Comunitárias
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Informe da Secretária de Comunicação
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Ousar, transmitir, resistir: I Congresso da Apraço
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Congresso da Apraço
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Mídia brasileira: a defesa autoritária da globalização
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
As mascaras da informação
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Agora o mandado de segurança é ‘contra o Ministério. Por que questionar juridicamente o decreto regulamentador das atividades da radiodifusão comunitária
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
ABRAÇO- MG na internet
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Terrorismo no interior da Paraíba: fiscais da Anatel e Polícia federal, sob mandado judicial, lacram, apreendem equipamentos e prendem radialista.
ABRAÇO no Ar – março 1999 Número 8
Criminosos são eles
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
A vida além da dívida
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
MST e a reforma agrária no ar
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
ABRAÇO Goiás
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
Vitória em dois Estados: RS e PB asseguram funcionamento das rádios comunitárias
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
Horóscopo poético
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
ABRAÇO Bahia: Rearticulação das rádios baianas.
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
ABRAÇO e CESE se reúnem em Salvador
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
Capacitação para comunicadoras comunitárias
ABRAÇO no Ar – abril 1999 Número 9
Técnicas de radiojornalismo: manual de radialista que cobre educação
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Impulsionando a democracia
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Depois de um ano e dois meses apenas vinte nove habilitadas
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Relatório da Reunião da Agraço e da ABRAÇO: I Encontro Mercosul de Rádios Comunitárias e III Congresso Brasileiro de TV e Rádios Comunitárias da ABRAÇO
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Coluna Fique Ligado: Freios e contrapesos; “checks and balance”; Frente Parlamentar possui grupo de apoio; ABRAÇO no FNDC e FIEC; quem é o sindicato
233
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Compromisso: Democracia e comunicação/ ARCEPI presta contas do II Congresso
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Quem tem medo das rádios comunitárias
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Encontro Regional cria rede de ‘comunicadoras no rádio’
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Os homens, as mulheres e as rádios comunitárias
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
PM de Manaus impede preservação ambiental
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
APARCOM prepara congresso de rádios comunitárias
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Com organização e mobilização a gente avança
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
ABRAÇO Maranhão implementa programa de formação/Dia Estadual de Rádios Comunitárias
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Técnicas de radiojornalismo: manual do radialista que cobre educação
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Rondônia: rádios se mobilizam para a fundação da ABRAÇO no Estado
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Associação paraibana agradece
ABRAÇO no Ar – maio 1999 Número 10
Audiência na Procuradoria
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Parcerizar para crescer junto
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Ábraço lançará prêmio brasileiro de comunicação comunitária
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Nas ondas do rádio
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Consórcio Nacional treina representantes
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Coluna Fique Antenado: comunidade organizada por um Brasil melhor; Prêmio Ibero-americano pelos direitos da infância; jabá gratuito Bundas
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Correios: emprego sim
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Câmara dos deputados discute emenda constitucional sobre propriedade dos meios de comunicação
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Banda de música e música bunda
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
III Encontro Estadual da Ábaco- RN
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Técnicas de radiojornalismo: manual do radialista que cobre educação
ABRAÇO no Ar – junho 1999 Número 12
Frente parlamentar é lançada em Brasília
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Editorial: Trabalho infantil
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Prêmio Brasileiro de Comunicação Comunitária
ABRAÇO no Ar – agosto 1999 Número 13
Rádio Comunitárias vão gerar 200 mil novos empregos
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
ABRAÇO cria fundo técnico de apoio a projetos técnicos
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Imunidade parlamentar
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Governo FHC continua perseguindo movimento de rádios comunitárias
234
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Consórcio facilita aquisição de equipamentos em 18 prestações
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
ABRAÇO compõe conselho da UNIR
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Escola especial monta rádio comunitária
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Seminário Nacional de metodologias de capacitação
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
ABRAÇO apóia mobilização nacional
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Marcha popular pelo Brasil
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Mulheres em el aire
ABRAÇO no Ar – Agosto 1999 Número 13
Fazendo gênero no rádio: nos microfones e nas diretorias
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
ABRAÇO e os movimentos sociais
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Juiz federal vê país numa ditadura mascada
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Coluna Fique Ligado: prêmio CNT de jornalismo 99 dará R$ 35 mil a vencedores; Apresentação de propostas para pesquisa 1999; programação para o III Congresso ABRAÇO; ABRAÇO produz material sobre rádios comunitárias; uma notícia ta chegando lá do Maranhão
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Rumo ao III Congresso Brasileiro
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Prestando Contas
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Carta de denúncia da Comunidade de São João do Campestre- RN
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Edital
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Com a palavra a justiça
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
V Encontro Nacional da Rede de Mulheres no Rádio: Macapá nunca mais será a mesma
ABRAÇO no Ar – setembro 1999 Número 14
Manual das palavras limpas
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
ABRAÇO é mil vezes maior que a ABRAÇO
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
I Encontro Mercosul de Rádios e TV Comunitária
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
III Congresso Brasileiro de Rádios e TVs comunitárias da ABRAÇO
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
FUNAEPT - Fundo Nacional de Apoio à Elaboração de Projetos Técnicos
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
A questão jurídica das rádios comunitárias
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
Coluna Fique Antenado.
ABRAÇO no Ar – Outubro 1999 Número 15
Fazendo gênero: comunicadoras comunitárias têm participação expressiva no V Encontro da Rede de Mulheres do Rádio; Machismo radiofônico em Cuba; Representantes da AMARC também se capacitam em gênero.
235
Anexo 5
CÓDIGO DE ÉTICA DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS
A Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), elaborou um Código de ética para aqueles que atuam com rádios e televisões comunitárias. É importante conhecê-
lo, porque sem ética não existe radiodifusão comunitária.
1. A radiodifusão comunitária tem como premissa fundamental a intransigente defesa e prática da democracia na sociedade, da qual é componente essencial a democratização dos meios de comunicação de massa, especialmente o rádio e a televisão.
2. A ABRAÇO situa-se no campo dos movimentos populares, sendo seus associados comprometidos com os interesses e lutas destes setores sociais, marcadamente contra toda e qualquer forma de exclusão, discriminação ou preconceito, seja de gênero, raça, religião ou cultura, seja de condição social ou econômica, ou de opção sexual.
3. As entidades ligadas a ABRAÇO se comprometem a lutar pela democratização e controle público dos meios de transmissão pela sociedade civil organizada e rejeitam, no seu quadro associativo, a propriedade individual das emissoras de rádio e televisão comunitária, que devem ser de caráter social e gestão pública.
4. As entidades emissoras de radiodifusão comunitária devem pertencer à entidade de caráter cultural e comunitário, sem fins lucrativos, constituídas, prioritária e preponderantemente, por organizações e movimentos formais e não-formais sendo controladas por conselhos comunitários em que diversos setores da comunidade estejam representados.
5. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de não realizarem, nem possibilitarem qualquer tipo de proselitismo, seja político-partidário, religioso ou de qualquer espécie.
6. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de buscar refletir a pluralidade de opiniões que envolvem os fatos divulgados, resguardando os direitos individuais e coletivos.
7. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de apoiar e difundir a produção cultural das comunidades em que estão inscritas.
8. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso do respeito mútuo, o que, entre outras coisas, significa observar a compatibilização de freqüências e potências e priorizar o diálogo e a negociação.
9. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de buscar o aprimoramento técnico e o desenvolvimento de uma linguagem adequada à comunidade.
10. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de manter uma grade de programação variada, onde esteja garantido o debate das idéias, e o acesso das entidades, movimentos e pessoas da comunidade, para apresentarem reivindicações, sugestões, denúncias de violações de direitos e posicionamentos.
11. A busca de apoios culturais e publicidade pelas entidades e emissoras de radiodifusão comunitária deve garantir, na medida do possível, o acesso de empresas de pequeno porte da comunidade, que têm dificuldade de acesso aos grandes meios de comunicação de massa.
236
12. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de desenvolverem, com as organizações e pessoas que as constituem, mecanismos para a sua manutenção, buscando sua autonomia financeira e sem estabelecer vínculo de dependência.
13. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de defesa dos direitos da cidadania, divulgando as garantias constitucionais e legais, como o Código de Defesa do Consumidor, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, etc., inclusive através da realização de campanhas denunciando suas violações.
14. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de contribuir decididamente com os projetos de educação da comunidade, inclusive realizando campanhas educativas e de esclarecimentos, sempre norteadas pela valorização da vida.
15. As entidades e emissoras de radiodifusão comunitária têm o compromisso de manter seus equipamentos em funcionamento adequado, de maneira a não prejudicar outras emissoras ou serviço de telecomunicações.
Fonte: Disponível em: www.http://abraconet.org.br
237
Anexo 6
“Crônica de Itamar”
“Hoje, 17 de julho poderia passar desapercebido como um dia qualquer, mais um
santo da igreja, por isso estabeleço por conta própria o dia de hoje como o dia do resgate. Há um ano atrás essa crônica ia ao ar pela primeira vez. Medo e incertezas, tudo começou assim, pela primeira vez milhares de pessoas iriam me ouvir, graças, a uma alguém que eu ouvia pelas ondas do rádio na solidão do meu quarto negro, como meus dias de descrença e ódio, de dor e tristeza. Se hoje estou aqui curado do mal que me consumia, dos bares que me consumia, como fuga daquilo que eu pensava que era vida, é porque o rádio através da voz que eu ouvia sabia quem eu era, e do que eu poderia fazer me estendeu além das mãos a certeza absoluta, que hoje tem, é possível reverter qualquer situação desde que exista em cada um de nós a vontade de querer mudar. E eu quis, obrigado mais uma vez Misael por ter acreditado sempre que eu fosse capaz de reverter aquela situação. Mais do que isso que eu fosse capaz de falar algo que alguém quisesse ouvir, alguém bem próximo e pelo qual ainda mantenho bastante respeito disse que eu havia morrido. Este respeito aumentou ainda mais, porque estava constatada a verdade nisso. Aquele outro de fato morreu, mas que renasceu numa onda tão clara quanta a vida que hoje vivo e que Deus sempre quis para mim. Não posso deixar de agradecer também, o apoio irrestrito da direção da Rádio Favela, através do cara que pôs fogo nessa fogueira há vinte e três anos e que nela vamos queimando a cada dia a exclusão, o preconceito e a vaidade a cima de tudo. (...) Enfim, obrigado a todos aqui e a todos ai, você que nos ouve e que nos dá o prazer da sua companhia, mas do que ouvintes, temos em vocês nossa referência, nosso compromisso com a cidadania. Até a parede qualquer um vê, no entanto, estamos através dela e só você viu e nos ouviu. Muito obrigado mais uma vez e até amanhã”.
Fonte: Arquivo Rádio Favela (não foi possível localizar o ano do texto)