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9 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA CLEIDMAR AVELAR SANTOS RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274- 1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso São Luís 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA

CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

São Luís 2007

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CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-

1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão para obtenção do grau de Licenciatura em História.

Orientadora: Profª Msª Maria de Lourdes Lauande Lacroix

São Luís 2007

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CLEIDMAR AVELAR SANTOS

RAMON LLULL E O LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-1276): lançando as bases do diálogo inter-religioso

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão para obtenção do grau de Licenciatura em História.

Orientadora: Prof. Msª Maria de Lourdes Lauande Lacroix

Aprovada em: 04 / 12 /2007.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Profª Maria de Lourdes Lauande Lacroix (Orientadora)

Mestra em Filosofia da Educação Fundação Getúlio Vargas (RJ)

________________________________________________

Profª Adriana Maria de Sousa Zierer Doutora em História Medieval

Universidade Federal Fluminense (RJ)

________________________________________________ Prof. Mário Cella

Prof. Adjunto do Departamento de Filosofia Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

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Dedico este trabalho a:

Deus, fonte de toda inspiração e de todos

os dons, que me conferiu capacidade e

energia para desenvolver esta pesquisa.

Cleonice Berta, minha mãe, melhor amiga

e meu grande exemplo de vida, pela sua

força, coragem, dignidade e caráter,

sempre ao meu lado em todos os

momentos me incentivando a continuar e

a crescer.

Tetê, minha querida “irmã de barriga

diferente”, amiga fiel e leal com quem

compartilho dificuldades e alegrias.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores: Lourdinha que aceitou gentilmente me orientar, ajudando

em todo o necessário no desenvolvimento deste trabalho; Adriana Zierer, que me auxiliou nos

primeiros passos da pesquisa e me fez descobrir o gosto pela Idade Média; Ricardo da Costa,

que através do seu site, compartilha e divulga as pesquisas sobre temas medievais; Esteve

Jaulent, por incentivar os pesquisadores da obra luliana.

Deixo meu agradecimento especial a todos os amigos, companheiros leais que não me

ajudaram somente nesta pesquisa, mas compartilham da minha vida, trazendo alegria à minha

existência, Silma Mendes, Sílvio Mattos, Marcelo Costa, Joise Amorim, Renato Marques,

Maria do Carmo Soares, Carmelita Leitão e a muitos outros que são luzes no meu caminho e

que devido ao espaço, não pude citar aqui, mas ocupam um lugar especial em meu coração.

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Ah, que grande bem aventurança seria se através destas árvores todos os homens que existem pudessem estar debaixo de uma mesma Lei e de uma só crença!; que não houvesse nem rancor nem má vontade neles, enquanto hoje se odeiam uns aos outros pela diversidade e pela contrariedade de crenças e de seitas! E que assim como há um só Deus, Pai, Criador e Senhor de tudo quanto existe, assim também todos os povos existentes se unissem para ser um povo só no caminho da salvação, e todos juntos tivessem uma só fé, uma só Lei e dessem louvor e glória a nosso Senhor Deus!

Ramon Llull

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RESUMO O diálogo interreligioso. Esta pesquisa versa sobre o filósofo Ramon Llull, inserido no

contexto dos séculos XIII e XIV, que foi uma época de grande transformação. Neste período

expandiram-se as corporações de ofício, surgiram as universidades, houve um revigoramento

comercial e urbano e uma nova espiritualidade se esboçou, evidenciada pela formação de

novas ordens religiosas. Ramon Llull dedicou sua vida à conversão de não-cristãos e para este

propósito criou um método próprio, a Arte. Tal sistema consistia na argumentação baseada na

razão e na lógica e dispensava o uso de autoridades, pedra angular da educação medieval,

além de conciliar razão e fé, objetivo perseguido por praticamente todos os teólogos de sua

época. No Livro do Gentio e dos Três Sábios, Llull demonstra como esse método pode ser

aplicado de forma prática, criando uma disputa imaginária entre três sábios, um judeu, um

cristão e um muçulmano, na qual cada um tentou provar que sua fé era a verdadeira. Esta obra

na qual paira o respeito mútuo, mostra o pensamento diferencial deste autor, que embora

tivesse como meta a unificação de todos os homens no Cristianismo, exaltava a tolerância e o

debate em detrimento da força no convencimento do outro, visando o alcance da verdade e da

glória de Deus.

Palavras-chave: Arte. Monoteísmo. Disputa. Tolerância. Conversão

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ABSTRACT

Interreligious dialogue. This paper deals with the philosopher Ramon Llull introduced on XIII

and XIV centuries context that was a time of great transformation. In that epoch, occupation

corporations were expanded, the universities up-rose, there was a commercial and urban

increase and a new spirituality started to be delineated by a new religious order formation.

Ramon Llull had his life dedicated to the no-Christian conversion. He created this own

method – The Art – for this purpose. This system consisted in the argument based on reason

and logic without the authorities’ power, the medieval education main stone. In his The Pagan

and the three Wise Men Book, Llull showed how this method can be applied in a practical

way, through a dispute among three wise men a Judian, a Christian and a Mussulman in wich

each one tried to prove that his faith was the true. In this literary composition predominated

the natural respect and it shows this author’s differential thought that in spite of he had as goal

the all men unification around the Christianism, he praised the tolerance as well the discussion

in detriment of someone’s conviction power to reach the God’s truth and glory.

Keywords: Art. Monotheism. Dispute. Tolerance. Conversion

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SUMÁRIO

LISTA DE TABELAS ………………………………………………………............09

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10

1. AS INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO

LULIANO ...................................................................................................................21

2.1 Convergências entre o método dialético universitário parisiense e a

argumentação doutrinária de Ramon Llull .............................................................28

2.2 Os conceitos aristotélicos utilizados na obra luliana ...............................................44

2. RAMON LLULL – SEU CONTEXTO HISTÓRICO.............................................52

3.1 Conversão, pregação e desenvolvimento da Arte. ...................................................55

3.2 A obra luliana e sua propagação ..............................................................................75

3. O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO NO LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS

SÁBIOS: UMA APLICAÇÃO DA ARTE ...............................................................76

4.1 O debate ideal: a disputa como forma de alcançar a verdade e a unidade ..........83

CONCLUSÃO ..........................................................................................................100

REFERÊNCIAS .........................................................................................................107

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Virtudes e Vícios segundo o Cristianismo.................................................84

Tabela 2 - As diferentes visões dos judeus sobre o Julgamento Final e o Além.......88

Tabela 3 - Conexão entre os vícios e os sentidos humanos.......................................89

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INTRODUÇÃO

A História busca desvendar o passado, mas nunca deve perder de vista a sua

relação com o presente. No mundo atual persistem diversas formas de intolerância e

preconceitos. Vale a pena buscar as origens de alguns deles. A intolerância com os hereges,

judeus, muçulmanos, homossexuais foi uma das características da sociedade européia

medieval. Porém esse período da História ao qual alguns autores referem-se pejorativa e

erroneamente como “Idade das Trevas” não foi somente um tempo de intolerância e

ignorância.

Atualmente a preocupação com a paz mundial tem aumentado. Alguns fatores que

dificultam essa busca são a intolerância religiosa, a não-aceitação e o desrespeito ao outro.

Exemplo disso são as inúmeras guerras no Oriente Médio, que embora motivadas também por

outros fatores, não deixam de ser fomentadas por questões religiosas. Essas guerras, de

tempos em tempos ganham novos personagens e agravantes, como a competição global pelo

petróleo e a política norte-americana de combate ao terrorismo. Qual a raiz desses conflitos?

Tais conflitos iniciaram-se durante o período medieval. Desde então, judeus,

cristãos e muçulmanos lutavam pela posse de Jerusalém, considerada uma cidade sagrada e o

centro das três religiões monoteístas. É importante destacar que desde o surgimento desses

conflitos, já havia mentes que pensavam na busca de uma unidade e no diálogo. O recorte

cronológico espacial do presente trabalho é a Europa, mais precisamente a Península Ibérica

nos séculos XIII e XIV, onde este desejo floresceu nas obras do filósofo maiorquino Ramon

Llull. Ele não foi o primeiro, nem o único a ter esta proposta, mas foi o primeiro a tentar este

fim de uma forma diferenciada, baseada na racionalidade, ainda que tenha assimilado muitos

preconceitos difundidos pela cristandade em relação às demais religiões

O homem medieval possuía uma visão dualista do mundo. As idéias de oposição

de forças estavam presentes em todos os elementos formadores da ideologia cristã. A alma do

homem era palco da luta do Bem contra o Mal, do Paraíso contra o Inferno, sendo seu destino

determinado pela adesão a Deus ou ao Diabo. A Igreja acaba encarnando uma visão

maniqueísta segundo a qual nas palavras de Nogueira (2000, p. 92) é impossível “[...] pensar

no bem sem pensar no mal”.

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Apesar da grande diversidade de tipos, a Idade Média apresenta um traço comum

a todos os homens: a religiosidade. A salvação era a maior meta que o homem medieval

buscava alcançar em sua vida. Para isso, estava disposto a todos os tipos de sacrifício,

inclusive tornar o seu corpo uma forma de penitência, mortificando-o.

Essas mortificações se davam das mais diversas maneiras: jejuando, abstendo-se

do vinho, do sexo, da busca por poderes e riquezas, inclusive a riqueza era vista como um

pecado relativo à vaidade, pois um homem não deveria almejar descer nem subir de condição

social; a hierarquia existente era “da vontade de Deus”, não devendo ser por isso modificada.

Sobre isso diz Vainfas (1992, p. 17): “Mas não bastava privar-se do sono ou da comida, não

bastava enfraquecer o corpo: era preciso flagelá-lo, torturá-lo, mortificá-lo”. Entende-se que

assim como havia uma hierarquia celeste, também deveria haver uma hierarquia terrestre que

garantisse o bom e harmonioso funcionamento da sociedade.

Esse pensamento deriva do pressuposto de que era através do corpo que a

salvação era atingida ou perdida. O corpo representava uma espécie de empecilho para que o

homem conseguisse alcançar a glória divina porque dele advinha as sensações ligadas aos

pecados capitais que são: gula, preguiça, luxúria, ira, cobiça, avareza e orgulho. Esses vícios

eram considerados o centro de todo o mal, por contraporem-se às sete virtudes que o cristão

deveria cultivar, sendo combatidos incessantemente através dos sermões de membros do

clero, preocupação constante daqueles que evangelizavam e exortavam os cristãos. Para os

medievos “[...] os vícios são os portadores do pecado”. (LE GOFF, 1989, p. 25).

O trabalho dentro deste contexto era visto de forma negativa por ser identificado

com a noção de castigo, tão presente na Cristandade. Era uma forma de purificação e

penitência, resultado da desobediência do primeiro homem. Essa visão polarizada de forças

opostas se dava em todos os âmbitos. O homem era considerado como uma obra de Deus já

que é a sua “imagem e semelhança”; oscilava entre aquele pronto a fazer a vontade de Deus e

o outro pronto a se entregar ao pecado. A imagem de Cristo como ser divino, mas antes de

tudo como humano, começa lentamente a substituir a imagem do Deus forte e vingativo do

Antigo Testamento. (SANTOS, 2007)

O cuidado para não pecar era tanto que esta preocupação se tornou uma idéia fixa

para o homem da época, que desejava muitas vezes o Paraíso menos pela sua glória, do que

pelo temor de padecer os males do Inferno. Esse temor é confirmado através da pintura,

literatura e demais manifestações artísticas e culturais do período, que abordaram quase que

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exclusivamente a temática religiosa, especialmente no tocante às representações do mundo

pós-morte, o Além desconhecido. Aliás, o mundo invisível e o visível não possuíam

fronteiras. A mente do medievo era povoada por monstros, fantasmas, bruxas e toda a sorte de

elementos mágicos e sobrenaturais.

Essa preocupação com o pecado, constante no pensamento deste homem, regia

todo o código de moral e conduta e o medo do que viria depois da morte, pois, para os

medievos o outro mundo que viria, Paraíso ou Inferno, era uma continuação e uma

conseqüência das atitudes praticadas no mundo terrestre. Sabemos que a crença ou a

descrença no Além modifica o comportamento humano.

Por esse motivo, a maneira como iria se dar a morte era tão temida pelos

medievos. A morte rápida ou abrupta impediria o homem de se preparar de forma conveniente

a alcançar a salvação. Se afastar dos vícios, porém, não era uma tarefa fácil já que o pecado

não só existe “[...] quando o homem ama mais outras coisas que as de Deus, invertendo a

ordem para a qual foi criado” (COSTA, 2005), mas também estava em toda a parte “[...]

tentando e corrompendo, explorando cada fraqueza e desejo” (NOGUEIRA, 2000, p. 41).

Assim a luta humana não era somente uma luta contra o mal, mas uma luta contra si mesmo.

Pensavam que o Diabo, astuto e malicioso, levava o homem a pecar, enganando-o,

dando-lhe a ilusão do prazer momentâneo. Ele assumia diversos aspectos, tendo o poder não

só de assumir a forma humana como também materializar-se em objetos, comidas ou

quaisquer outros elementos que pudessem conduzir a humanidade a pecar. O homem estava

envolto em suas teias, devendo estar vigilante permanentemente, pois qualquer deslize

poderia implicar em sua condenação eterna. Por isso, especialmente aqueles mais puros e

retos e também os integrantes do clero deveriam se resguardar, pois o Inimigo costumava

tentar por excelência aqueles que não pecavam.

A simbologia, traço forte do período em questão, era a forma de explicar o mundo

e seus elementos constitutivos, já que o mundo terreno, visível era um “reflexo distorcido” do

mundo invisível. Os animais, as pessoas, os números, as imagens, as cores e os

acontecimentos deste mundo, escondiam mensagens através das quais era desvendado o

mundo celestial.

Em uma sociedade impregnada pela religião ficava à sua margem um tipo de

homem: aquele que não crê. A grande preocupação com a conversão dos infiéis se deu

quando especialmente a partir do século XIII a ideologia cristã perdia seu espaço para as

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minorias. O esquema trifuncional do bispo Adalberon de Laon (séc XII) simplificava a

complexidade de tipos humanos presentes na sociedade medieval, mas dava uma noção de

como era distribuído o poder naquele período. Aqueles que possuíam a função de aproximar

os homens de Deus ocupavam o topo da pirâmide, sendo seguidos por aqueles a quem cabia a

defesa da sociedade e finalmente os responsáveis pela sua manutenção.

O período entre os anos 1000 a 1033 foi marcado por uma angústia e por um

sentimento de espera, pois se acreditava que a segunda vinda de Cristo ao mundo se daria

1000 anos após o seu nascimento ou sua morte. As pessoas, nessa atmosfera, buscavam estar

preparadas, vendo sinais e presságios desse acontecimento em todos os fenômenos e

transformações que estavam acontecendo.

Também a pregação da vinda do Anticristo veio enriquecer este imaginário de

expectativa. O Anticristo viria para atrapalhar o projeto divino de salvação traçado para os

homens. Seria uma figura popular que enganaria muitas pessoas e viria como “um lobo em

pele de cordeiro”, aparentemente como um bem. Essa fase foi marcada pela busca da

santidade, visando-se a preparação da alma para o encontro com o Criador.

Passados os anos de risco, seguiu-se um período de otimismo, de prosperidade e

de revitalização das cidades, de expansão agrícola. O mundo europeu sentia-se novamente

com vida e respirava com novo fôlego. A partir do ano 1000 foram ocorrendo lentas

modificações no pensamento medieval, acenando em direção ao humanismo. O homem

começava a notar que fazia parte do mundo, não podendo dele esquivar-se. Vislumbrava-se

uma nova classe, a burguesia; buscava-se o conhecimento e a tentativa de conciliação entre

razão e fé e “a ascensão das cidades foi um dos traços mais importantes do período central da

Idade Média”. (RICHARDS, 1993, p. 16).

As cidades passaram cada vez mais a significar liberdade, uma vez que na urbe, a

rigidez das normas era quebrada por meio das assembléias representativas e da mobilidade

social, ocorrendo em maior escala do que no campo. A educação primava pela dialética que

encontrou sua expressão máxima nas universidades.

Nesse momento começou a ocorrer o processo de transformação dos Estados em

futuras monarquias nacionais. Pouco a pouco o sentimento religioso passava a ser substituído

pelo sentimento nacional nascente. De acordo com Richards (1993, p.16):

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No século XI, os ingredientes necessários para a emergência de nações-Estados já estavam presentes: a estabilização da Europa e a criação de fronteiras e limites mais definidos, a introdução de instituições políticas permanentes particularmente para se ocupar das finanças e da justiça; e, talvez o mais importante, o começo de um deslocamento da lealdade das comunidades locais e das organizações religiosas para a monarquia como símbolo da nação.

Ao invés da velha ideologia de harmonização entre o poder temporal e espiritual,

vieram à tona, as contradições e os choques entre eles. A Questão das Investiduras

desencadeou uma luta violenta entre o poder real e o papado. Paris ascende como centro

cultural da época, cidade na qual se davam as grandes discussões.

Houve uma renovação espiritual: casas monásticas, novas regras, formas de vida

religiosa, peregrinações cujo ponto culminante foi o movimento cruzadístico e a idéia de

Guerra Santa. É importante lembrar que a noção de “guerra santa” nasceu com as Cruzadas.

Apesar dos muitos séculos que separam o mundo contemporâneo da Europa medieval, a idéia

da fé como justificativa para aniquilar os inimigos, continua a mesma de outrora.

As Cruzadas foram também uma válvula de escape para os desequilíbrios do

sistema feudal que entrava em declínio, o que pode ser atestado ao atentarmos para os

principais tipos humanos que participaram das Cruzadas, essencialmente os marginalizados da

sociedade feudal: os filhos mais novos de camponeses e nobres desprovidos de terras; os

criminosos e pessoas que buscavam indulgência para os seus pecados e comerciantes que

visavam expandirem seus lucros. Dessa maneira, a sociedade feudal expurgou-se de seus

elementos mais problemáticos.

O aludido empreendimento religioso acelerou a desintegração do sistema feudal,

provocou um maior afastamento entre cristãos do Oriente e do Ocidente, favoreceu o

comércio e as atividades mercantis, impulsionou o surgimento das ordens militares e

estabeleceu um câmbio cultural entre cruzados e árabes, embora notadamente seja inegável

que os primeiros sofreram muito mais influência destes últimos.

As Cruzadas são produtos diretos do contratualismo, religiosidade e belicismo e

possuíam um estatuto penitencial. Aqueles que participavam, acreditavam que receberiam

indulgência pelos seus pecados. Os homens tornavam-se assim soldados a serviço de Deus.

Porém, deve-se pontuar que nem todos os cristãos apoiaram as Cruzadas. Para os bizantinos e

mesmo entre alguns dos católicos romanos foram consideradas como abomináveis, jamais

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podendo ser resultado da vontade divina. Para os seus defensores eram feitas por Deus e para

Deus. Segundo Franco Jr (1999, p. 28):

[...] a elaboração efetiva da idéia de guerra santa se consumou com São Bernardo (1091-1153). Para ele, a Cruzada, mais que um fato político e militar, era uma liturgia, devendo por isso estar aberta a todos e não apenas a uma elite. Pelo contrário, dela deveriam participar de preferência os maus cristãos, os grandes pecadores. Uma atividade tão purificadora deveria ser considerada santa. Como a Cruzada iria “vingar a honra ultrajada de Jesus”, ela transformava a atividade guerreira de algo condenável numa virtude, quase em santidade. O verdadeiro cruzado não lutaria apenas com a espada, mas também com a fé, daí o combate terminar ou com a vitória militar ou com a glória do martírio.

Por isso, na Europa medieval os conceitos de Paz de Deus e Trégua de Deus não

eram contraditórios em relação ao de guerra santa, pelo contrário, eles complementavam-se. A

guerra era condição de paz, já que seria proporcionadora da unidade.

Os séculos XIII e XIV foram repletos de mudanças estruturais; período de

expressão e de busca de novas liberdades por parte dos indivíduos, ainda que esbarrando no

enrijecimento das normas impostas pela Igreja. A sociedade medieval foi uma sociedade de

extremos, de opostos que a todo momento colidiam.

Com a redescoberta dos escritos aristotélicos e do Código de Justiniano, ocorreu

a promoção da reunião, organização e interpretação do conhecimento antigo. Os legistas

passaram a integrar o corpo burocrático estatal nas monarquias nacionais emergentes,

inclusive também no corpo secular, por meio do estabelecimento dos códigos canônicos

relativos à Igreja.

Ocorreu uma sensível modificação nos códigos de exercício, instrumentalização e

aplicação da justiça. O ordálio foi substituído pelas testemunhas nos processos e as punições

foram uniformizadas.

Estes séculos também podem ser considerados como séculos propícios a uma

maior individualidade, apesar da manutenção do espírito medieval de coletividade e

contratualismo. Esse individualismo manifestou-se na paulatina substituição do poema épico

pelo romance, pela dialética em detrimento da aceitação totalmente passiva das autoridades, a

procura da satisfação pessoal e espiritual, um desejo de autoconhecimento; “conhece-te a ti

mesmo”, foi a ética que passou a vigorar na mentalidade, levando o homem a uma auto-

análise.

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Esse individualismo fez com que a idéia de vassalo começasse a ceder lugar à de

súdito, ou seja, não só obedecer cegamente a um superior injusto, mas em estabelecer uma

troca mútua de direitos e deveres reivindicando assim uma maior igualdade entre as partes da

relação. Mesmo assim, as instituições coletivas continuaram a gozar de grande prestígio:

corporações, confrarias, ordens monásticas e militares, comunas e universidades, “[...] mas na

maioria destas organizações a condição de membro era obtida através da livre escolha

individual, e, pela primeira vez, havia uma ampla variedade de alternativas entre as quais

escolher”. (RICHARDS, 1993, p. 19).

O sentimento de individualismo religioso teve como conseqüência a explosão de

heresias. Ser herege era tornar-se um criminoso, que se colocava contra a Igreja e suas

normas, um traidor que ousava interpretar as Escrituras de forma autônoma. Eram perigosas

principalmente por colocar em xeque o papel da Igreja de mediadora entre Deus e os homens.

Mudanças significativas também foram introduzidas pelo Concílio Lateranense de

1215, visando a moralização do clero e um maior controle sobre os fiéis. A confissão deixou

de ser pública, passando a ser individual. Dessa forma, a penitência passou a ser negociada e

cumprida de forma restrita. O interesse pela intimidade e a intenção dos fiéis aumentou.

Como assinala Vainfas houve uma maior necessidade do controle no âmbito mental e uma

intenção acabava por se configurar em algo tão grave quanto o próprio pecado em si.

(VAINFAS, 1992).

Confissão e comunhão deviam ser praticadas, no mínimo, anualmente pelos

cristãos. Maior controle sobre os casamentos clandestinos e o registro de proclamas nos

casamentos oficializados, obrigatoriedade de licença papal e episcopal para pregar e lecionar.

Regulamentação de venerações de santos e relíquias. Proibição para o clero em participar de

jograis, jogos de azar, caça, beber ou tomar parte em qualquer atividade que manchasse sua

reputação.

Empreendimento de luta contra as heresias, produzindo manuais detalhados sobre

como identificá-las e combatê-las. Os suspeitos deveriam ser excomungados e terem seus

bens confiscados. Qualquer suspeita deveria ser imediatamente notificada. Maior controle

sobre o surgimento de novas ordens religiosas, pois muitas vezes estas se situavam na

fronteira entre o corpo da Igreja e a heresia e maior segregação em relação às minorias:

muçulmanos, judeus, leprosos, homossexuais, hereges e prostitutas. Isso ficou expresso na

adoção de uma vestimenta distintiva “a marca da infâmia” e resultou em um aumento da

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intolerância ao mesmo tempo em que, por outro lado, o clero regular apelava por outro tipo de

conversão, pautada no convencimento do outro pela razão.

Compartilhando dessa posição estavam São Francisco de Assis e Ramon Llull.

Este foi um místico que teve uma experiência com Deus através de uma visão de Jesus Cristo

crucificado durante cinco dias. Após esse acontecimento, mudou radicalmente seu estilo de

vida. Foi um laico, mas colocou sua vida a serviço de Deus e do seu propósito evangelizador.

De personalidade singular, conseguiu muitas vezes sintetizar estilos diferentes de

vida. Esteve sempre ligado às ordens mendicantes e “embora tenha pertencido a uma cultura

minoritária, desenvolveu um sistema de pensamento universalista.”

(COSTA; PASTOR, 2004).

Desenvolveu um conjunto de idéias, a Arte, uma filosofia através da qual elaborou

um método lógico com muitas aplicações práticas. No entanto o que mais nos interessa aqui

são as motivações de sua obra e para quem ela se dirigiu. Llull, assim como os cristãos da sua

época, sonhava com a unidade em torno do Cristianismo. Por isso a sua obra era voltada para

todos, mas principalmente para aqueles considerados infiéis (não-cristãos)1. Llull acreditava

ser possível converter judeus e muçulmanos através da razão em detrimento do uso da força.

Essas razões não deveriam se basear nas autoridades, mas em argumentos irrefutáveis.

A Idade Média é apontada como um período de intolerância ideológica e religiosa

onde as pessoas tinham medo de expressar suas idéias e onde seu estudo era algo pernicioso,

muitas vezes ignorando o fato de que houve um diálogo entre as religiões e um tipo de

educação que primava pela dialética e pelo debate na construção do conhecimento, inclusive

nas universidades, um dos maiores legados que este período nos deixou. As práticas

repressivas só passaram a vigorar quando a ideologia dominante viu que estava perdendo

espaço nas transformações que vinham se operando nos campos econômico e político.

O diálogo inter-religioso da época tinha uma conotação diferente da atual. Para

nós, ele implica em um respeito mútuo às diferenças. Ramon Llull buscava o diálogo como

forma de convencer judeus e muçulmanos que a doutrina cristã era a correta. Portanto, o

estudo de sua vida e obra trazem à tona questões atuais. Além de o tema abordado configurar-

se em uma preocupação mundial no presente, seu estudo é possibilitado pela grande

abundância de fontes que este filósofo nos legou. Toda a sua vida foi dedicada ao sonho de

1 Ramon Llull dirige-se a judeus, muçulmanos e hereges como infiéis. Sempre que o termo infiéis for utilizado neste trabalho, será levando em consideração a expressão utilizada pelo autor.

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unidade em torno de uma fé e ele não mediu esforços para concretizá-lo, realizando viagens

para propagar sua mensagem, escrevendo incansavelmente até sua morte, livros de exortação.

Este período foi caracterizado por uma intensa religiosidade que impregnou o

pensamento medieval, influenciando os homens em todas as suas atitudes cotidianas, desde o

seu nascimento até a morte. Como homem de seu tempo, Ramon Llull estava imbuído da

ideologia cristã, também por isso seu estudo é esclarecedor. Guardadas as devidas

peculiaridades, os seus escritos revelam traços da cultura, da ética e da moral medievais. Por

meio de suas obras é possível uma maior compreensão e aprofundamento dos valores

cultivados na época.

Além de sua importância histórica, Llull possui grande caráter filosófico, tendo

uma produção tão vasta, a ponto de chegarem até nós, centenas de seus escritos que abordam

problemas sociais, educação infantil, virtudes que os bons cristãos deveriam cultivar, diálogo

inter-religioso, entre outros, formando uma rica e diversificada literatura.

Este trabalho está dividido em três capítulos assim dispostos: na primeira parte

intitulada As influências filosóficas no pensamento luliano, traçaremos um pequeno esboço

sobre o pensamento desenvolvido pelos homens do período, abordando especialmente o

surgimento e a organização da Universidade de Paris. A escolha desta instituição está

relacionada a dois fatores: primeiro, por ser a Universidade mais ligada à Sé, gozando de

imenso prestígio na Cristandade. Segundo, porque devido a isso, Llull lá tentou difundir sua

Arte. É certo que o filósofo fez pelo menos três viagens a Paris com o intuito de que o seu

método fosse ensinado na Universidade. Estava a par das novas doutrinas filosóficas que

estavam em voga, especialmente o averroísmo, ao qual se opunha ferozmente, tratando-o

como um perigo para a unidade cristã.

Na Universidade parisiense as disputas eram mais acirradas e onde floresciam

muitas questões concernentes às relações entre razão e fé. Ramon foi um autodidata, não

possuindo formação acadêmica. Seus estudos, porém, fizeram com que este pudesse estar não

só em pé de igualdade, mas em uma posição privilegiada, frente aos universitários, uma vez

que conhecia profundamente a língua e a cultura árabes.

Esta universidade foi escolhida devido ao seu sistema de aprendizado, a

Escolástica, baseado essencialmente nos comentários das obras gregas para evidenciar a

novidade do método luliano, que recusava a argumentação alicerçada em autoridades. Neste

capítulo analiso ainda a importância que as obras de Aristóteles tinham para os filósofos

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universitários dos séculos XIII e XIV. Embora Ramon Llull não utilizasse a leitura do

Estagirita para provar o que dizia, o maiorquino absorveu muito de seu pensamento,

notadamente em relação aos princípios éticos e metafísicos.

No segundo capítulo Ramon Llull – seu contexto histórico serão expostos alguns

dados biográficos do beato. Isto se faz necessário, pois seus objetivos e escritos estão

intrínsecos aos conhecimentos de sua vida. Com efeito, é indispensável conhecer

determinados episódios de sua existência como a visão de Jesus Cristo crucificado em seu

quarto e a iluminação no Monte Randa, para compreender sua conversão e seu método,

respectivamente. São enfocadas as viagens que o filósofo empreendeu e a forma como ele

buscou atingir as três metas de sua vida: edificar escolas que ensinassem as línguas árabes,

para formar missionários que pregassem aos infiéis, converter os não-cristãos ao Cristianismo

e doar sua vida pela causa de Cristo.

Verificaremos os diferentes meios pelos quais Llull se utilizou para alcançar estes

fins, seus fracassos e sucessos, bem como suas relações com as autoridades da época (reis,

papas, príncipes) e sua participação e posição diante dos acontecimentos de vulto do período

em que viveu.

O último capítulo O diálogo inter-religioso no Livro do Gentio e dos Três Sábios:

uma aplicação da Arte conterá uma reflexão sobre a obra, o contexto e a forma como foi

escrita, com uma análise das concepções do autor acerca das religiões em questão e sua

proposta de diálogo, que utiliza a Arte como método. O primeiro capítulo trata-se da

exposição do método contendo suas condições e possibilidades combinatórias. Os outros

capítulos nada mais são do que a própria aplicação do método.

Nesta parte será ressaltada a visão que Ramon Llull tinha sobre judeus e

muçulmanos, embora nesta obra ele assuma um tom mais respeitoso em relação a estes do que

em seus demais escritos. Assim, é possível entrever não só a profundidade do conhecimento

que o maiorquino tinha acerca das religiões monoteístas, como também as diferenças e

semelhanças entre a forma luliana e de seus contemporâneos de ver os não-cristãos.

A obra configura-se em um tratado apologético, mas não nos moldes dos tratados

de exortação da época, a exemplo dos de seu amigo Ramon de Penyafort, pois os sábios judeu

e muçulmano não só tiveram o mesmo espaço que o sábio cristão, como foram tratados de

forma honrosa e amigável. O escrito faz parte de todo um conjunto de obras com o seu

principal propósito: a unificação de todos os homens em torno da fé cristã.

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Abordaremos O Livro do Gentio e dos Três Sábios, percebendo como Ramon

Llull abordava a questão do diálogo inter-religioso e o seu pensamento acerca deste tema,

identificando os argumentos doutrinários utilizados pelo autor na conversão dos infiéis,

verificando semelhanças e diferenças entre o modo de pensar luliano e de seus

contemporâneos, destacando sua singularidade na inovação do método que utilizou.

A metodologia adotada foi baseada na leitura e análise textual das seguintes fontes

primárias: O Livro do Gentio e dos Três Sábios (1274-1276), Vida Coetânea (1311), A

Disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), O Livro dos Anjos (1274-1283)

e O Livro da Ordem de Cavalaria (c. 1279-1283). A obra de Llull possui uma finalidade – a

conversão dos infiéis – e é preferível que seus escritos sejam analisados em conjunto. Seus

escritos se interligam e ele utiliza o mesmo método apologético em todos. Os conceitos

utilizados também são comuns, o que faz com que a leitura de um livro, facilite a

compreensão do outro, por meio do método comparativo.

O principal objeto da pesquisa, porém será O Livro do Gentio e dos Três Sábios

(1274-1276), buscando compreender como o autor via a questão da tolerância religiosa, bem

como as influências culturais e religiosas recebidas e como foi feita a apreensão e a

interiorização desses valores. A pesquisa se valerá também de bibliografia e apoio de artigos e

periódicos que colaborem na contextualização dos séculos XIII e XIV e na elucidação do

pensamento luliano.

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1. AS INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO

LULIANO

Durante muito tempo o período medieval foi injustiçado pelos historiadores.

Comumente foi apontado como um tempo de mediação e reprodução das idéias dos antigos.

Segundo essa visão, o mérito dos medievos teria sido apenas o de conservar a herança greco-

romana sem nada acrescentar a ela.

A afirmação dessa visão da Idade Média é distorcida, na medida em que

identificou o modo de produção e as relações feudais como retrógrados e inibidores do

progresso. Atualmente os estudos historiográficos vêm resgatando o verdadeiro sentido desse

período histórico, suas contribuições e percalços, deixando de lado a forma preconceituosa

que atribui e associa a Idade Média com um retrocesso em todos os níveis.

Uma importante observação a ser feita é a que diz respeito ao conhecimento

antigo. Ele não chegou às mãos dos medievos de forma sistematizada. É preciso atentar para o

fato de que o pensamento greco-romano era tão heterogêneo quanto disperso. Além disso, não

era puro e fechado em si mesmo. Ele recebeu diversas influências orientais e adaptou-se

muitas vezes às idéias dos contextos nos quais floresceu, especialmente com a expansão

macedônica.

Não se limitava porém, a atividade intelectual, a copiar e venerar os textos; a Idade Média não foi uma época de esterilidade na produção, antes procurou enriquecer a herança recebida e adaptá-la às suas necessidades e preocupações. As traduções e os comentários foram, sem dúvida, a grande marca desse período. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 35)

No final do período antigo, a filosofia começa a assumir uma nova postura que a

aproxima da ética e da religião “[...] abandonando o espírito de investigação que a

caracterizara." (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 15). Os neoplatônicos fornecem uma espécie de

síntese do pensamento grego: a distinção do ser humano em três partes constitutivas (espírito,

alma e corpo) e um retorno do homem à unidade com sua fonte original e superior. Aqui

também temos a visão presente no Livro dos Anjos, na qual seu autor atribui ao anjo três

dimensões ou potências que são a memória, a inteligência e a vontade. Assim como no ser

humano, espírito, alma e corpo são intrínsecas, no anjo essas potências são indissociáveis e

completam-se em perfeita harmonia. De acordo com o autor, o corpo é um empecilho no

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conhecimento da verdade. Por isso, os anjos são mais perfeitos do que o homem, já que não

possuem o corpo para dificultar seu conhecimento sobre as verdades eternas. (RAMON

LLULL, 2002).

Esses pensadores irão oferecer instrumentos importantes, posteriormente

utilizados pela doutrina cristã. É possível afirmar que no início do período medieval a

filosofia tendeu ao mundo metafísico, deixando de lado o conhecimento do próprio homem e

o universo que havia sido patente durante toda a Antiguidade. O próprio centro do

pensamento cristão dispensava o auxílio filosófico, uma vez que sua meta advinha de fontes

sobrenaturais e seu objetivo último era a salvação e não propriamente a reflexão. Com relação

ao legado antigo, os pensadores cristãos colocaram-se de duas formas: rejeitando-o ou

tentando adaptá-lo à doutrina nascente.

Desse ponto inicia-se um longo processo desenvolvido durante a Idade Média: a

adequação do pensamento racional helênico às verdades evangélicas cristãs, o que resultará

em uma nova filosofia que tem uma relação um tanto conturbada com a fé, ora contradizendo-

a, ora lhe fornecendo bases explicativas.

Ao conjunto da filosofia cristã damos a denominação Patrística, ou seja, relativa

aos primeiros padres da Igreja. Um dos nomes mais importantes dessa filosofia foi Santo

Agostinho. Ele nasceu em uma colônia romana da África, Numídia em 354. Passou grande

parte de sua vida indiferente às questões religiosas. Foi professor de retórica e abraçou o

maniqueísmo como filosofia.

Sua mudança de pensamento deu-se quando teve contato com os sermões de

Ambrósio. Passa então a nutrir dúvidas em seu espírito a respeito de qual caminho deveria

seguir. Esse conflito psicológico residia em ter que optar por uma vida mundana ou espiritual.

Recebe então uma revelação através da qual abraça o Cristianismo. Como muitos dos santos

medievais, Agostinho levava uma vida indiferente à religião até certa altura de sua existência,

mais ligada a questões mundanas quando então recebeu uma espécie de “chamado” para

mudar de vida, dedicando-se às obras divinas. (JERPHAGNON, 2004). Assim também

ocorreu com São Francisco de Assis e o próprio filósofo Ramon Llull cuja análise é o objetivo

deste trabalho.

O bispo de Hipona teve uma grande produção entre sermões, cartas e tratados, e

influenciou de forma decisiva os teólogos medievais, sendo considerado como um dos

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fundadores da Patrística, inclusive sendo pioneiro na apropriação da filosofia antiga para

servir à fé cristã ou seja:

Ao tornar-se cristão, o antigo retor (sic) não tencionava renunciar à herança cultural da qual até então se servira; impunha-se porém cristianizá-la, de acordo com a tradição patrística. A esta tarefa entregou-se Agostinho, invocando o Livro do Êxodo onde os hebreus, antes de deixarem o Egito, receberam de Deus a ordem de se apropriarem dos objetos de ouro e prata e os levarem consigo. Assim deveria pois fazer o pensador cristão: subtrair dos autores antigos, para integrar na sabedoria cristã, todas as verdades de que a filosofia pagã fosse possuidora. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 22)

No pensamento agostiniano Deus é transcendente, criou o mundo e tudo o que

nele existe, inclusive o tempo. Todas as coisas foram criadas de uma só vez, porém algumas

já em sua forma acabada e outras ainda em processo de evolução. O homem é dotado de

corpo e alma, sendo esta última, superior e dividida em três faculdades: memória, inteligência

e vontade. Ramon Llull receberá diversas influências2, absorvendo inclusive essa percepção

da alma humana. Para o maiorquino, memória, inteligência e vontade são complementares e

agem em conjunto para que o homem cumpra a primeira intenção para a qual foi criado: amar

e honrar a Deus.

Pode-se afirmar que o pensamento agostiniano assentava-se em duas bases: as

Sagradas Escrituras e a filosofia helênica. Por isso dava igual peso à razão e a fé na

compreensão das coisas divinas. Embora baseando-se em Platão3 não acreditava que o

conhecimento sensível fosse de todo enganoso. Ele oferecia um suporte para a apreensão do

real. A criatura seria sempre inferior ao seu criador. Embora os sentidos forneçam algum

conhecimento, este é mutável, devido à transitoriedade do mundo material. O acesso às

verdades imutáveis é possível ao homem, porém este acesso só pode ser alcançado por meio

da intervenção divina.

2 Identificamos muitas influências no pensamento luliano, tanto de autores antigos, quanto de contemporâneos medievais, dentre os quais destacamos: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Dionísio Areopagita, São Tomás de Aquino, além daqueles que influenciaram na manifestação de sua espiritualidade: São Francisco de Assis e São Domingos. 3 Platão defendia a separação entre o mundo das idéias e o mundo material. A matéria não é o real, mas apenas um invólucro da essência escondida pela forma. Foi muito tempo aceito pelos cristãos, pois suas idéias não confrontavam a doutrina cristã como a de seu discípulo Aristóteles, especialmente porque creditava também na imortalidade da alma e na existência de um ser supremo.

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Essa teoria é denominada Teoria da Iluminação, pois através de uma luz sobre a

inteligência humana, é produzida a razão que permeia o inteligível. Ramon Llull da mesma

forma estabelece um equilíbrio entre razão e fé e como veremos no segundo capítulo deste

estudo age conforme as instruções divinas que lhe vão sendo reveladas, inclusive o próprio

conjunto de sua Arte.

Contudo, contrariamente ao que acreditava Llull, Agostinho vê o corpo não como

um empecilho, mas como um instrumento de perceber o mundo “[...] na medida em que as

sensações atuam como advertência e estímulo para que se busque no próprio interior a

verdadeira compreensão”. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 27).

A verdade não pode, portanto ser ensinada. É uma busca individual encontrada

segundo a fé e o mérito de cada homem. Embora latente em cada homem, o grau de

compreensão é variável de um para outro e apesar de não condenar o estudo científico já que a

natureza é obra divina e o seu entendimento conduz a uma maior comunhão com Deus, sua

teoria não fomenta a experimentação, já que a verdade é algo pessoal e pré-existente em cada

ser. A vontade é a mais importante das três faculdades, pois é ela quem impulsiona o homem

ao conhecimento, ao livre-arbítrio e conseqüentemente à salvação.

O livre-arbítrio é uma idéia-chave na compreensão da teoria de Agostinho. Ele é

nada mais que a livre escolha do homem. Se este opta pelo pecado, então o mal resultante não

provém de Deus que é o Bem Supremo, mas da responsabilidade humana.

O bispo de Hipona nomeava como Cidade de Deus, o Paraíso celestial e a Cidade

dos homens, o mundo terreno. Estas duas cidades só seriam separadas definitivamente por

ocasião do Juízo Final, quando a primeira prevaleceria sobre a segunda. É interessante notar

as diferentes noções de temporalidade: a cidade terrena é efêmera. Seus reinos e suas ações

têm um caráter transitório. A cidade celeste é a única na qual reinará a paz eterna.

Apesar dos muitos séculos que os separaram, Ramon Llull e Agostinho têm

denominações estritamente semelhantes quanto ao que seria o pecado. Ambos crêem que o

pecado é um desvio humano que prefere os prazeres corporais à obediência e ao cumprimento

da vontade divina. Também a visão política de ambos era bastante parecida: poder espiritual e

poder temporal possuem atribuições distintas. Um não deve interferir nas ações do outro, mas

deveria reinar entre eles um espírito de colaboração mútua. Ao poder temporal cabia

promover a fé cristã para que os indivíduos priorizassem a salvação e a ascensão espiritual.

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O pensamento de Llull foi desenvolvido em um período de efervescência

intelectual, enquanto o pensamento de Agostinho foi elaborado em um momento de crise e

insegurança, durante o esfacelamento do Império Romano. Porém, o período áureo de sua

influência se deu de forma mais acentuada entre seus pósteros, os medievais, marcando o

pensamento filosófico e a doutrina cristã por cerca de oito séculos, inaugurando a polêmica

que seria discussão entre todos os pensadores medievais: a relação entre razão e fé.

Com o clima de grande instabilidade e medo, gerado pelas guerras, epidemias e

fome que marcaram a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja foi a única instituição

que conseguiu manter um equilíbrio, conservando assim, uma parte da cultura. Os pensadores

cristãos assentaram seus estudos em três fontes: os livros sagrados, a literatura patrística e os

textos antigos devidamente adaptados à doutrina cristã.

Os mosteiros ocidentais configuravam-se em um recanto de cultura e entre as

atividades dos monges figuravam a leitura e o estudo. O medo cotidiano no mundo da

primeira fase da Idade Média entravava a expansão do saber, uma vez que a preocupação dos

homens concentrava-se em dois pontos: a sobrevivência material e a salvação da alma. Essas

comunidades monásticas recebiam, em sua maioria, crianças pobres e cuidavam delas e de sua

educação. A pedagogia incluía castigos e surras, conforme recomendam alguns livros bíblicos

como o Livro do Eclesiástico na seguinte passagem:

Quem ama o próprio filho, usa bastante o chicote, para no fim se alegrar [...] Não lhe dê liberdade na juventude, nem feche os olhos para os defeitos dele. Obrigue-o a curvar o pescoço enquanto ainda é jovem, e bata nas costas dele enquanto é menino, para que não cresça teimoso, não lhe desobedeça e nem lhe cause muito sofrimento. Corrija seu filho e faça-o responsável, para depois você não tropeçar na insolência dele. (Eclo, 30, 1. 11-13).

Mesmo assim, de acordo com alguns autores, essa severidade visava um bem,

reconhecido pelos próprios educandos; “Basta buscar os textos de época que vemos a

felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados”.

(COSTA, 2003).

A ciência na Idade Média assumiu vários conceitos, de acordo com o que cada

filósofo julgava digno de ser chamado como tal, porém o conceito aristotélico de ciência foi o

mais difundido, ou seja, ciência é conhecimento demonstrativo que nasce da necessidade.

Assim, a busca pela santidade era considerada uma das finalidades da ciência e

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conseqüentemente da filosofia, a fim de aproximar o homem de Deus. Por isso, é necessário

tomar cuidado com determinadas afirmações tais como dizer, por exemplo, que nesse período

não ocorreram estudos nesses campos; antes devemos tentar compreender as aspirações e

prioridades dos homens da época. A Idade Média passou por diversas fases. As manifestações

mentais e culturais foram se transformando ao longo do tempo. Assim, a educação da Alta

Idade Média tem contornos diferentes dos da Idade Média Central.

Principalmente do século XII em diante a filosofia e a ciência alcançaram um

êxito considerável. O crescimento demográfico e a expansão das cidades colaboraram nesse

processo e são perceptíveis as mudanças na mentalidade que começam a acontecer nesse

período, direcionando-se sempre para o humanismo, mas nunca ou quase nunca perdendo o

seu norte religioso.

O aparecimento do intelectual como novo personagem da sociedade está

associado à revitalização das cidades. Elas surgiram como um novo espaço de manifestação

cultural. Com efeito, o modelo do intelectual na Idade Média, é o citadino. Gradativamente as

escolas monásticas vão perdendo espaço para as escolas urbanas e universidades

No século XIII as corporações de ofício tornaram-se mais numerosas. Desde o seu

surgimento em meados do século XI, essas organizações tinham o objetivo de proteger seus

membros da concorrência e servir à defesa dos interesses de seu ofício asseguraando o

segredo de técnicas de trabalho e a obtenção de benefícios. As universidades têm suas origens

nessas corporações.

A corporação universitária vai ser marcada pela constante busca de autonomia

frente aos poderes temporais e eclesiásticos. O processo de ensino estava nas mãos dos

membros do clero. O chanceler, bispo encarregado da chefia das escolas, tinha o privilégio de

conferir licença para o exercício da docência. O controle do ensino pelos eclesiásticos vai

diminuindo gradativamente com a entrada em cena de novos atores. Cada vez mais os leigos

assumem a tarefa do ensino e as universidades começam a fornecer os mestres.

Os soberanos e os burgueses buscavam manter as universidades sob o seu

controle. Os primeiros porque além de prestígio, essas entidades forneciam funcionários para

os seus quadros. Os últimos porque mestres e estudantes colocavam limites à exploração

econômica “[...] fazendo incidir um imposto sobre os aluguéis, impondo um teto máximo ao

preço dos gêneros alimentícios, fazendo com que fosse respeitada a justiça nas transações

comerciais”. (LE GOFF, 2003, p. 97).

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A autonomia universitária foi conquistada em meio à numerosos e por vezes

sangrentos conflitos. A corporação universitária tinha consciência de seu poder e sua forte

coesão garantia sua vitória nesses conflitos. Suas principais armas eram a greve e a secessão.

Dessa forma, tanto os poderes temporais quanto os espirituais reconheciam os universitários

como uma camada necessária trazendo vantagens econômicas e culturais para a sociedade.

Esta autonomia estava assentada sobre três privilégios básicos: independência jurídica, direito

à greve e monopólio sobre a formação e a conferência dos graus.

Os universitários contaram com a poderosa ajuda do papado. Este protegia as

universidades, mas não visando sua autonomia e sim sua submissão ao corpo eclesiástico,

sobretudo em Paris. Essa ajuda, a longo prazo, custará caro aos universitários, pois os estudos

e o ensino estarão quase que irremediavelmente atrelados à Santa Sé, sofrendo inclusive

proibições que poderiam pôr em risco sua doutrina, podendo-se citar como exemplos disso, a

proibição das leituras de Aristóteles em Paris (1210)4 e a criação da Universidade de Tolouse

com a finalidade expressa de combater as heresias. A corporação universitária assume várias

facetas. Embora esteja atrelada aos poderes eclesiásticos não raro rompe com suas regras, com

seus membros tendendo ao laicismo.

Desse modo, já naquela época, ela ultrapassava o quadro urbano em que nasceu. Melhor ainda, é levada a se opor – violentamente, às vezes – aos habitantes da cidade, tanto no plano econômico quanto no plano jurisdicional e político. Parece, assim, condenada a cavalgar a classes e os grupos sociais. Parece destinada, em relação a todos, a uma sucessão de traições. Para a Igreja, para o Estado, para a Cidade, ela pode ser um cavalo de Tróia. Ela é inclassificável. (LE GOFF, 2003, p. 101)

Também é original por não se tratar de uma organização local a exemplo das

demais corporações; ela é abrangente e universal tanto em seu corpo (professores e

estudantes) quanto em suas atividades e conhecimentos. Não possuem uma organização

uniforme. Suas regras internas variavam de uma cidade para outra. Será enfocada apenas a

universidade de Paris por três motivos:

4 Em 1210 foi proibido o ensino das obras relacionadas às ciências naturais de Aristóteles. Novas proibições incluindo os livros de metafísica ocorreram em 1231, 1245 e 1263, por interditos de Inocêncio III. Sabe-se, contudo, que essas proibições nunca tiveram efeito prático sobre estudantes e mestres, pois todos continuavam lendo indiscriminadamente os textos e comentários sobre os escritos do Estagirita.

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a) essa universidade fornece um modelo mais ou menos padrão, que dá uma noção geral

do funcionamento das demais universidades, ainda que sofrendo variações;

b) por ser uma instituição de grande prestígio, onde as idéias e discussões ligadas a

Aristóteles alcançaram maior amplitude e;

c) porque Ramon Llull teve diversas passagens por ela, com a finalidade de apresentar e

demonstrar sua Arte. As circunstâncias nas quais se deram estas passagens serão

discutidas posteriormente.

1.1 Convergências entre o método dialético universitário parisiense e a argumentação

doutrinária de Ramon Llull

É interessante falar um pouco a respeito da metodologia de estudo adotado nas

escolas do século XII, porque em linhas gerais, o método seguido nas universidades era o

mesmo, com poucas alterações. O primeiro passo nesse método era a lectio. Tratava-se da

leitura de um trecho, geralmente de um escritor clássico, pelo professor aos seus alunos. Em

seguida, o mestre explicava o assunto. Enquanto isso, os alunos faziam anotações chamadas

reportationes. Para fixar o assunto, os estudantes medievais recorriam a várias técnicas, em

sua maioria as mnemotécnicas.

Nesse primeiro momento, o ensino oral predominava sobre o escrito. Somente

mais tarde com uma baixa no custo dos livros, eles passaram a ser mais utilizados. Sobre as

questões obscuras ou não compreendidas do texto, os ouvintes levantavam as quaestiones.

Destas, surgiam as disputatio, debates entre professor e alunos ou entre grupos de alunos,

seguindo as indicações da lógica e da dialética. Esses debates não tinham é claro aquele nível

das disputatio universitárias do século XIII, mas de certa maneira, preparavam os alunos

intelectualmente, fortalecendo seu espírito e sua memória. Os medievais muito valorizaram

este tipo de ensino, especialmente no tocante à garantia de fixação dos conteúdos, como fica

explícito na fala de Radulphus Brito (Ca. 1300), segundo Oliva apud Ullmann (2000, p. 57):

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Afirmo convictamente que aprendemos mais sendo ensinados do que através dos nossos próprios esforços, pois uma lição ouvida é mais proveitosa do que dez lições lidas individualmente. É por isso que Plínio diz que ‘a voz viva afeta muito mais o intelecto do que a leitura de livros’. E ele dá a seguinte justificativa para a sua afirmação: ‘a fala do professor, as expressões faciais, os gestos e todo o comportamento fazem o aluno aprender melhor e mais efetivamente, e o que você ouve de outra pessoa penetra mais fundo na sua mente do que aquilo que você aprende por si mesmo’.

Essa afirmação do conteúdo também era possibilitada pelas constantes revisões. O

conteúdo lido e explicado durante as manhãs, era retomado nas tardes e noites. Mais um

método auxiliar nessa função de fixar os assuntos eram as glosas. Consistiam na cópia de um

texto com espaços reservados nas margens e entre as linhas. Esses espaços eram preenchidos

pelos mestres, que colocavam os sentidos das palavras mais complicadas do texto e as

citações dos autores antigos. E ainda mais: os mestres sempre iniciavam suas aulas pedindo

contas da lectio do dia anterior e fazendo uma recapitulação periódica dos temas estudados.

Nessas escolas ocorriam também representações de vidas dos santos, de cunho moralizante.

Esse conjunto de técnicas foi denominado Escolástica, derivado das palavras

schola, scholasticus, que significavam “relativos à escola, à cultura”. Mais do que um

método, foi um conjunto de técnicas de aprendizagem e estudos. Os principais que podemos

destacar são a importância que os estudiosos davam às palavras e as relações entre o nome e a

essência das coisas, o papel essencial da memória, o completo domínio da lógica, dialética e

retórica, posto em prática nas disputas e, é claro, a reflexão sobre os textos, as autoridades.

Estas eram as Sagradas Escrituras e os textos antigos.

Era aplicado a todas as áreas de conhecimento do período, e pode ser definida

como:

[...] estudo filosófico e teológico, numa grande síntese do patrimônio comum do pensamento humano, orientado pelo conhecimento, que provenha da experiência sensível (ciência), quer se origine da reflexão (filosofia), quer se valha da Revelação divina (teologia). Foi Tomás de Aquino quem realizou admiravelmente a integração desses três conhecimentos. (ULLMANN, 2000, p.62)

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Daí decorrerem muitas contradições principalmente aquelas relativas à razão e a

fé, que irão permear as discussões dos pensadores da época. Essas questões tornaram-se

problemáticas com a introdução dos textos de Aristóteles no ensino.

É bom atentar para o fato de que diferentemente de hoje, as universidades não

eram instituições de ensino superior. Não havia na Idade Média uma sistematização do ensino

no referente às suas etapas. Portanto, muitos alunos ingressavam nas universidades sem

mesmo saber ler ou escrever, cumprindo a estas instituições ministrarem um ensino básico, já

que nem todos os alunos admitidos, tinham passado previamente por uma escola.

É difícil precisar a idade dos estudantes e a duração dos estudos, sobretudo,

devido às várias funções da universidade. É quase certo que elas cuidavam de estudos básicos

de modo paralelo às escolas. Também não sabemos que tipo de conhecimento prévio era

necessário para ingressar na universidade. De forma geral, os estudos nas faculdades duravam

seis anos à exceção do curso de Teologia.

A Universidade de Paris foi originada das escolas monásticas de São Vítor, Santa

Genoveva e Notre Dame. Os ensinos aplicados nessas escolas foram ampliados e reformados,

ou seja, além dos tradicionais trivia e quadrivalia foram anexadas as obras Aristotélicas, além

de obras de Platão e estudos de origem árabe. Essas inclusões foram possibilitadas, sobretudo,

pelo incansável trabalho de tradução feitos principalmente na Espanha e na Sicília, pois lá o

grego ainda era conhecido, enquanto que em outras partes da Europa havia caído em desuso.

Em Paris funcionava o sistema de nações. Esse sistema foi aplicado à Faculdade

de Artes. Segundo essa divisão, mestres e estudantes se agrupavam de acordo com seu local

de origem, tendo cada nação seu procurador que atuava junto ao reitor. A universidade

parisiense era composta por quatro faculdades: Teologia, Medicina, Direito Canônico e Artes.

A faculdade que mais nos interessa aqui é a última, pois nela se davam os embates filosóficos

do qual trata este trabalho.

O estudo de Artes era pré-requisito para todas as carreiras. O estudo da Filosofia

era base para todos os outros cursos como colaborador na compreensão dos demais estudos.

Até mesmo por formarem uma corporação, estudantes e mestres estavam juntos na defesa de

seus interesses, especialmente em relação à autonomia universitária.

Um acontecimento célebre envolvendo a Universidade de Paris foi um confronto

da polícia onde vários estudantes foram mortos. As autoridades da época não se pronunciaram

o que culminou com a reação do corpo universitário em abandonar Paris, dispersando-se entre

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outras cidades. Essa ausência durou dois anos (1229-1231) e abalou muito a posição de

destaque desse centro. Os professores fizeram várias exigências, como a responsabilidade pela

elaboração de estatutos para o funcionamento interno da universidade. Essas exigências foram

atendidas pela Parens Scientiarun.

Os estatutos da universidade prescreviam as formas de admissão, programas e

exames. As provas eram bastante rígidas e se davam em diferentes fases. Normalmente o

exame se dava tanto na forma escrita (produção de comentários), como no domínio da

oralidade (participação em disputas, respondendo as questões colocadas pelo júri).

Sobre os programas e o ensino, podemos dizer que eram organizados basicamente

em função de comentários feitos sobre textos antigos em especial de Aristóteles. A exigência

do domínio da lógica e da dialética eram condições da Faculdade de Artes. Apesar da rigidez

dos exames, estes eram realizados em meio a um clima festivo e de acordo com uma

programação que incluía banquetes, festas e trocas de presentes. De acordo com Le Goff

(2003, p. 109) essas manifestações “[...] correspondiam ao rito no qual a corporação tomava

consciência de sua solidariedade profunda. A tribo intelectual se revelava nesses jogos aos

quais cada país levava às vezes sua rota tradicional: bailes na Itália, corridas de touros na

Espanha”.

As festas religiosas estavam intrínsecas ao calendário universitário. Embora os

estudos fossem rigorosos, essas festas intercaladas aos exames compensavam a gravidade da

pressão escolar. E nessas ocasiões o divertimento geralmente extrapolava os limites prescritos

com vinho, músicas e mulheres, resultando em muito barulho, exageros de toda a ordem e

brigas com os habitantes das cidades:

Nos trajes dos estudantes e professores do medievo, além do status acadêmico, percebe-se uma função significante de um setor da cultura, fazendo parte do homo ludens. O vestuário acadêmico caracteriza-se como aspecto lúdico profano, temporário e tem como efeitos o contraste, a união, a estética e a identificação dos integrantes de uma universitas. Importante era reconhecer os scholares, nas ruas da cidade, por ocasião de arruaças com outros cidadãos. Isso permitia levá-los ao tribunal do studium para lhes serem aplicados os devidos castigos. [...] como em todos os tempos e lugares, também em Paris os estudantes eram buliçosos e, ao lado dos bons, havia os que causavam desordens e arruaças. (ULLMANN, 2000, p. 157)

Os símbolos universitários consistiam em diversas insígnias como cetros, bastões

e anéis, utilizados nas cerimônias solenes e procissões religiosas. Esses anéis eram análogos

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aos brasões das famílias nobres e funcionavam como selos na autenticação de documentos

oficiais.

Além dessas cerimônias para os novos graduados, também existiam ritos de

iniciação. Estes, embora se manifestando de forma diferente dos trotes atuais, possuíam

praticamente o mesmo espírito. Neles os calouros eram expostos a várias brincadeiras de

cunho satírico que ironizavam em sua maioria as origens rústicas dos novos estudantes.

Devido à natureza eclesiástica da corporação, o mundo universitário também

estava impregnado de religiosidade. A piedade era uma virtude recomendada aos intelectuais;

a devoção aos santos padroeiros e a participação nas atividades religiosas como procissões.

Tem destaque uma devoção pela Virgem Maria, expressa na produção de poemas e

coletâneas. Inicia-se daí uma preocupação com a moral profissional e a adoção de regras que

regessem cada ofício, passaram a definir toda uma nova ética específica.

Os materiais utilizados pelo intelectual tornavam-se cada vez mais numerosos,

principalmente em comparação com o clérigo da Alta Idade Média. O intelectual do século

XIII acumula em si três habilidades fundamentais: ler, escrever e ensinar. A importância da

oralidade no ensino era equivalente ao uso do livro como ensinamento escrito. O livro era o

ponto de partida a partir do qual surgiam os comentários e as disputas. Primeiramente devido

ao seu custo, não eram tão utilizados. Mais tarde, com a baixa nos seus custos, foi sendo cada

vez mais requisitado e necessário. Com a sua popularização, gradualmente deixa de ser um

objeto de luxo para se tornar uma necessidade de todos os estudantes.

Com o aumento da procura foram desenvolvidas novas técnicas na fabricação do

livro, tornando-o mais simples, mais acessível e de mais fácil manuseio. Os progressos pouco

a pouco transformaram a espessura das folhas tornando-as mais flexíveis e menos amareladas.

Passa a ser menor, a letra carolíngia é substituída pela cursiva; a ornamentação diminuiu, o

uso de abreviaturas e índices aumentou tornando as consultas mais rápidas. Surgiram ainda

novas categorias derivadas da atividade universitária: livreiros e copistas.

As universidades foram instrumentos de ascensão social, na medida em que seu

acesso era de certa forma, democrático. Embora a maior parte dos estudantes e mestres

saíssem da nobreza, os exames, como processo de admissão abriam uma brecha para os

estudantes pobres. Esses membros iriam engrossar o corpo da Igreja e do Estado. Mesmo e

apesar disso, esse espaço também gerava críticos que tendiam a um rompimento com a

ideologia preponderante.

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Ainda que a razão tenha sido submetida à fé, é um fato relevante constatar que

embora a fé seja uma questão de crença, os filósofos passaram a tentar encontrar meios

racionais para a justificação de seus dogmas.5 É dessa maneira que iremos encontrar um Llull

dedicado a provar a veracidade do Cristianismo mediante as “razões necessárias”.

De forma semelhante ao ensino das escolas, o estudo universitário seguia

basicamente três etapas: lectio, 6quaestio, e disputatio, que é a fase mais produtiva do

processo. Nela eram expostos oralmente os pontos de vista, debatidos de forma livre.

As disputas eram bastante plurais. Distinguiremos somente as mais importantes.

As ordinárias realizavam-se semanalmente. Eram presididas por um professor, responsável

pela escolha do tema e definia os defendentes que iriam discorrer sobre uma tese. Após sua

exposição entravam então os opponentes com argumentos para derrubar a tese apresentada.

Todo esse processo verbal era traçado em latim. Essas teses eram discutidas embasadas nos

seguintes argumentos: revelação divina, razão, lógica e autoridade.

O argumento oriundo da tradição, com a certeza de que, num pensamento trabalhado, examinado e criticado por várias gerações, o erro, em grande parte, estava excluído. Essa convicção expressaram-na os medievais com o axioma: securus iudicat orbis terrarum (o mundo inteiro julga com segurança). Por outras palavras, consideravam o consenso universal como fonte certa de conhecimento (ULLMANN, 2000, p. 65)

No dia seguinte à disputa, o mestre retomava a discussão, dando seu parecer, a

determinatio magistri, escrita posteriormente por um aluno ou pelo próprio mestre.

Independentemente do tipo de disputa, era observado sempre o seguinte esquema:

EXPOSIÇÃO → ARGUMENTOS FAVORÁVEIS → ARGUMENTOS CONTRÁRIOS → SOLUTIO

5 Vários são os termos utilizados para designar os homens dedicados às atividades intelectuais na Idade Média: Le Goff usa intelectuais, tencionando enfatizar o tipo humano em detrimento das instituições e estruturas e também clérigos, para especificar aquele que pensa e ao mesmo tempo ensina seu pensamento. Na Idade Média o termo clérigo era aplicado não apenas aos membros do clero, mas a todas as pessoas que se aplicavam aos estudos opondo-se a laico, não letrado. Os clérigos não eram obrigados ao celibato. Verger opta por homens de saber quase pela mesma razão. Utilizo o termo filósofos levando em consideração a forma como os próprios homens do período se intitulavam. 6 Nas universidades os bacharéis eram responsáveis pela revisão (lectio extraordinária) da matéria na parte da tarde, sendo nomeados como repetitores.

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Dentre as disputas extraordinárias destacam-se: quodilbet, disputatio magistralis e

dispuatio sorbonica.

A mais especial, porém, era a quodlibética, realizada duas vezes ao ano, por

ocasião da Páscoa ou Natal. Chegava mesmo a ser uma forma especial de competição que

exigia além de inteligência, muita presença de espírito e até mesmo sagacidade. Tratava a

respeito de qualquer tema, e até por esse motivo, possuía um caráter imprevisível. O professor

era o sabatinado e ninguém sabia de antemão qual o assunto a ser discutido. Acreditamos que

essa era a mais esperada forma de disputa e aquela que mais inflamava o espírito e colocava

provas de fogo para o intelecto. Provavelmente era também a que mais atraía expectadores e

despertava o temor nos mestres, sem dúvida, pois, por mais bem preparados que estivessem,

eles nunca poderiam prever que tipo de perguntas teriam que responder.

A disputatio magistralis era a disputa entre dois professores em presença dos

alunos. Sua finalidade era “[...] alargar os conhecimentos dos scholares”. (ULLMANN, 2000,

p. 68) e a disputatio sorbonica de origem da Universidade de Sorboune. Diferenciava-se pelo

seu conteúdo, relativo aos assuntos teológicos. Devido aos bons resultados foi introduzida em

caráter obrigatória como requisito aos candidatos à licenciatura em teologia.

Essas disputas galgaram seu máximo sucesso nas faculdades de Artes, Teologia e

Direito, mas eram comuns em todas as faculdades. O individualismo e até mesmo o exagero

retórico e dialético conduziam as disputas por vezes a debates improdutivos, sem nenhuma

aplicação prática. Some-se a isso que elas nem sempre transcorriam em um clima harmônico e

respeitoso, o que obrigou a Universidade de Paris a criar um estatuto específico para as

disputas da Faculdade de Artes, conhecida pelos tumultos.

É interessante o cuidado dispensado ao registro dessas discussões onde eram

colocadas em público as idéias e controvérsias, fossem elas de origem filosófica ou teológica.

Esse trabalho de conservação foi obra dos estenógrafos (taquígrafos) e das calígrafas. Os

primeiros anotavam através de símbolos e códigos que adiantavam e tornavam rápidos os

registros. Já as últimas faziam uma espécie de “tradução” desses símbolos, desenvolvendo os

textos e tornando-os inteligíveis.

Através deste método puderam ser conservadas não só disputas, mas também

sermões e aulas. Foi herdado dos gregos e também utilizado pelos romanos e poetas. De

acordo com Ullmann (2000, p. 73) “parece que se tratava de um ofício lucrativo e de emprego

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seguro, pois, no Egito, bastava um mestre de estenografia abrir uma escola, e a clientela

acorria numerosa”.

As disputas tornaram-se mais do que uma exigência curricular. Elas gozavam de

grande popularidade e eram esperadas como um grande acontecimento, especialmente se o

mestre que iria presidir a disputa tivesse muito prestígio entre os estudantes. As disputas como

descreve Verger (2001, p. 271):

Permitiam que aos estudantes já experientes se treinassem visando aos exames [...], exercitassem sua memória, brilhassem aos olhos dos assistentes, ainda que fosse às custas de seus colegas. Mas a disputa era também um elemento constitutivo do ensino que permitia abordar, até mesmo melhor e mais livremente do que a lectio, os verdadeiros problemas filosóficos ou científicos.

As questões materiais afetaram bastante, mestres e estudantes, sendo muitas vezes

decisivos nas escolhas doutrinais abraçadas. O intelectual vivia um dilema: como não era

mais um membro da Igreja sustentado pela sua ordem precisava encontrar outra forma para

sobreviver. Que forma seria esta? Para os mestres havia três saídas: o salário, o benefício ou a

prebenda.

Embora grande parte dos mestres optasse por receber salários pagos pelos

estudantes, essa solução livrava os mestres da dependência em relação aos poderes temporais,

mas era potencialmente problemática em outros pontos: os alunos também passavam por

problemas da mesma ordem, não podendo muitas vezes pagar pelo que aprendiam; fora isso,

havia a crítica à suposta “venda do conhecimento”. A Igreja que tudo fez para manter o ensino

sob seu estrito controle condenava os professores que recebiam salário, taxando-os de

simoníacos. Assim como o usurário que vende o tempo, o mestre que recebe salário vende o

saber, que é um dom dado por Deus. A concepção dos professores, porém, era bem diferente:

todo aquele que trabalha deve receber por seu trabalho.

Quando o professor optava por receber benefício, acabava perdendo sua liberdade de expressão pois por esse caminho, o papado se ligava por laços de interesse aos intelectuais, condenados a lhe solicitar benefícios, e extinguia, ou pelo menos freava consideravelmente, o movimento que os levava a abraçar o laicato. O resultado é que só podiam ser professores nas universidades aqueles que aceitassem essa dependência material em relação à Igreja. (LE GOFF, 2003, p. 127)

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Sobre isso podemos dizer ainda que a Igreja fez questão de distinguir as funções do

clero: aos professores cabia ensinar, ou seja, transmitir conhecimentos e ciência aos seus

alunos, porém pregar era uma atividade específica dos membros da Igreja.

Apesar de o papado ter decretado no Concílio de Latrão (1179) a gratuidade do

ensino, os estudantes necessitavam de outros recursos como moradia, alimentação e compra

de livros. Os estudantes quase sempre eram ajudados pela família. Contudo, mesmo com a

constante interferência da Igreja nas questões do ensino muitos membros da universidade

eram leigos. Com isso, a Igreja influenciava os estudantes a se direcionarem em faculdades

referentes às carreiras eclesiásticas e afins em detrimento das carreiras civis.

Paris era a universidade de maior prestígio na época e também indubitavelmente a

mais atrelada à Igreja. Isso é patente pelo número de bulas e interferências papais na estrutura

e no ensino universitários. Proibição a membros do clero de estudar Medicina e Direito Civil

e o ensino de Aristóteles, demonstram essa estreita ligação. Mas convém não acentuar

demasiadamente a influência da Igreja sobre a universidade parisiense. Se é certo que muitas

regras foram impostas à universidade, também é certo que na maioria das vezes elas não

foram seguidas. Sabe-se que a leitura da obras de Aristóteles nunca deixou de acontecer, bem

como a procura pelas carreiras apontadas como mundanas pela Sé, em outras universidades; o

que implica dizer que esse controle era exercido apenas aparentemente.

Os graus conferidos por Paris seguiam a seguinte linha: bacharelado; com este

título o indivíduo poderia auxiliar o professor, ministrar lectiones e interferir nas disputas.

Para ser bacharel, estudava-se seis anos; a licenciatura, através da qual o graduado obtinha

licença para lecionar, primeiro sob a orientação de um mestre, passando em seguida por testes

orais, quando então recebia permissão para ser professor. Os próximos títulos eram o magister

e doctor. O primeiro era dirigido somente aos filósofos e o segundo para os professores de

teologia, direito canônico e medicina.

Do ponto de vista escolar, a obtenção desses títulos máximos nada mais representava do que uma formalidade. Antecediam-nos disputas sucessivas, com bacharéis e seus futuros pares. Seguia-se a inceptio, isto é, o novel doutor, em presença de toda a faculdade, recebia do chanceler as insígnias do seu grau: barrete, anel de ouro e um livro. Ao novo mestre ou doutor cabia, depois, oferecer um suntuoso banquete, acompanhado de diversões e brindes. Fácil é de imaginar-se que tal cerimônia demandava grandes gastos e, muitas vezes, obrigava o anfitrião a endividar-se. Isso fazia com que não poucos estudantes desistissem do doutorado e se contentassem com a licentia, bem menos dispendiosa. Tomando em conta o número de anos de

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estudo, em comparação com a longevidade mais curta do que a de nossos dias, convencemo-nos de que os estudos realmente eram levados a sério. Demais isso, a demora para obter o grau deve-se em parte, ao ensino oral, naquele tempo por falta de bibliotecas. (ULLMANN, 2000, p. 170).

A Universidade de Paris foi com certeza aquela na qual ocorreram mais polêmicas

e que tinha a atmosfera mais agitada dentre as universidades do período. Dentre essas

polêmicas uma que alvoroçou os espíritos foi a querela entre seculares e regulares. Embora a

questão tivesse a ver com problemas da corporação universitária, as discórdias eram

originadas por questões ideológicas e doutrinárias.

A greve geral de 1229 abriu espaço para o ingresso das ordens mendicantes no

ensino parisiense. Eles tiveram recomendação papal para lecionar a Sacra doctrina. É preciso

entender os objetivos das ordens mendicantes para compreender os desdobramentos das

disputas filosóficas e teológicas com os seculares.

Elas surgiram no século XIII e são quatro (pregadores, menores, carmelitas e

agostinianos). Dessas as mais conhecidas são a dos pregadores (dominicanos) e a dos menores

(franciscanos). As regras propostas por estas ordens configuravam-se em um ideal totalmente

novo para a época. Em primeiro lugar, por colocarem-se nas cidades, nos espaços de

convivialidade, em contraposição às demais ordens que buscavam o isolamento7, numa

evidente posição defensiva em relação aos demais homens e seus vícios. Depois por sua

forma de sobreviver: a mendicância, prática que os caracterizou.

Um importante fator que possibilitou a atuação e o sucesso dos mendicantes foi a

grande simpatia que lhes dispensavam reis e papas. Isso foi um importante trunfo nas mãos

dessas ordens por ocasião das querelas com os seculares que os viam como concorrentes

indesejáveis. Tudo leva a crer que a criação de novos mosteiros observava regras como nos

esclarece Le Goff (1994, p. 231): “a distância mínima que devia separar as igrejas de duas

ordens mendicantes no interior de uma cidade era fixada em trezentas cannes em linha recta,

isto é, cerca de quinhentos metros”. Também deveriam ser previamente autorizados pelo

pontífice.

7 As igrejas não surgiam em determinados lugares por acaso. Elas estão relacionadas com o divino e o social. A geografia religiosa medieval não fugia à regra. A cidade era um lugar promíscuo e favorável à proliferação de vícios, na visão desses religiosos. Era necessário então, que fosse resgatada.

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Os conventos eram edificados preferencialmente em cidades grandes e populosas,

principalmente da parte dos dominicanos. Essa preferência se deve também a um outro ponto:

estes religiosos acreditavam que o campo se espelhava nas cidades, portanto, evangelizadas,

elas serviriam como um bom exemplo. Sua forma de se dirigir as pessoas inaugurou uma

nova fase na pregação: aproximaram a palavra de Deus dos homens; tornaram-na mais

simples, mais acessível. Participavam da realidade cotidiana dos fiéis atentando para as suas

necessidades e especificidades e fizeram isso de uma maneira pedagógica, recorrendo a meios

originais (uso de fábulas, exempla e até mesmo pequenas representações teatrais).

A pregação acabará por sair às praças, em púlpitos exteriores, provisórios ou permanentes (em Paris, em 1439, Michelozzo e Donatello constroem e ornamentam um), o sermão com seus pregadores populares em voga, verdadeiros “ídolos” da multidão, tomará proporções de meeting. Os mendicantes também sabem encontrar a fórmula que satisfaz as aspirações dos leigos a viver uma vida espiritual que seja simultaneamente a sua e os associe à dos clérigos. (LE GOFF, 1994, p. 234)

Foram peças fundamentais nas transformações mentais da época, consolidando a

crença na existência de um lugar intermediário entre o Paraíso e o Inferno: o purgatório. O

surgimento deste terceiro local está intimamente relacionado com as mudanças sociais, ou

seja, com o surgimento de novos ofícios e da revitalização das cidades, com a inserção de

novos costumes e novas manifestações de pecado que passaram a vigorar. Então tornou-se

adequado enquadrar essas novas práticas, que embora indesejáveis não se constituíam

doravante em vícios mortais.

No decorrer do tempo, ocorreu com os mendicantes um fenômeno já conhecido de

outras ordens. Com o sucesso de seus membros e atraindo cada vez mais adeptos e

benfeitores, passaram a se distanciar lentamente dos carismas que inicialmente cultivavam, ou

seja, terminaram por se corromper com a riqueza e o prestígio comprometendo o espírito de

pobreza e humildade pregado por elas. Não faltaram, é claro, manifestações daqueles que

repudiavam o relaxamento das regras visando resgatar o espírito original. No entanto “muita

gente pensava que os mendicantes tinham sido perdidos pelas cidades que haviam querido

salvar” (LE GOFF, 1994, p. 238).

São Francisco de Assis (1182), fundador da ordem dos menores era contra os

estudos, por considerar que eles corrompiam o ideal de pobreza e humildade que era a

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essência desta ordo. Com o tempo, porém, tornou-se menos resistente à idéia de modo que

seus sucessores passaram a estudar, sem maiores reservas. De sua parte os dominicanos

sempre primaram pelos estudos, inclusive, estes recomendados por São Domingos, para

combater as heresias – objetivo da ordem – era preciso ser intelectualmente preparado para

refutar os infiéis. Também sobreviviam por meio da mendicância. A principal questão entre

regulares e seculares de matriz teológica era qual seria

[...] mais concorde com o Evangelho a dos seculares ou a dos regulares? Estes, com todo entusiasmo, iam de cidade em cidade, pregando e convocando as multidões para a penitência. Competiam, assim, com os párocos, os quais queriam excluir os intrusos dos trabalhos de pastoral e da pregação. (ULLMANN, 2000, p. 221).

Essa questão de tal modo incidia sobre uns e outros que “[...] não se movia tão-

somente no plano teórico, mas era uma verdadeira luta de classes”. (ULLMAN, 2000, p. 221).

Não se tratava, pois, apenas de um problema em relação ao ensino. Os mendicantes atraíam

cada vez mais para si os fiéis, os estudantes, a atenção e preferência do papado, que

praticamente tomou partido dos mendicantes em todas as contendas.

É claro que os seculares não assistiram a ascensão dos regulares passivamente;

muitos escreveram tratados combatendo e criticando o comportamento dos mendicantes. O

que levava os regulares a tornarem-se um corpo estranho na universidade era justamente o

fato de não se integrarem às normas corporativas. Por ocasião de greve, ignoravam as ações

dos demais professores dando aulas normalmente. As universidades não funcionavam em

prédios específicos. Isso facilitava para os frades, uma vez que, ministravam as aulas em seus

próprios conventos.

Outro ponto de discórdia era pertencerem à faculdade de teologia, mas recusarem-

se a cursar as disciplinas de Filosofia. Nessas, o domínio completo era dos mestres seculares.

Também, eram regidos pelos superiores de suas ordens, constituindo-se literalmente em corpo

independente, o que era um grande temor para os mestres seculares que perderiam boa parte

de seus alunos. Os títulos dos mendicantes eram recebidos diretamente do pontífice, o que

muitas vezes os isentavam de várias exigências necessárias para conseguir licença em teologia

o que aconteceu com o próprio Tomás de Aquino, como nos esclarece Ullmann (2000, p. 231)

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Em 1256, o aquinate licenciou-se em teologia e, no ano seguinte, conquistou o doutorado. Porém, já estava lecionando desde 1252. Isso, na realidade, contrariava os estatutos de Roberto de Courçon, de 1215, os quais prescreviam que o mestre de teologia só podia lecionar, se contasse trinta e cinco anos de idade.

Além disso, a concessão de títulos acadêmicos ao frades geravam conseqüências

dentro das próprias ordens, pois causava diferenciação entre os irmãos:

No tocante à concessão desses títulos acadêmicos aos frades, no medievo, é mister assinalar alguns aspectos desconhecidos de quase todos. Os frades magistri ou doctores gozavam de privilégios especiais nas Ordens de que faziam parte e nelas constituíam uma verdadeira casta ou classe separada, com direitos fora do comum. Vejamos alguns casos peculiares: a) entre os franciscanos, os graduados especialmente os magistri, faziam jus a cargos e dignidades dentro e fora da Ordem; tinham direito a um socius e, depois, ainda a um famulus (=servo); moravam em quarto próprio e não em dormitório comum; eram isentos de coro e da missa conventual; podiam andar a cavalo, nas viagens (os demais iam a pé). b) Entre os dominicanos, maximi para os lectores de teologia, os privilégios eram ainda maiores. Além das regalias próprias dos franciscanos, eram dispensados dos jejuns e abstinências, de fazer a refeição em comum com os outros confrades, de realizar trabalhos pastorais. Tudo quanto necessitavam para viver e para os gastos pessoais estava-lhes asegurado. c) Privilégios semelhantes tinham-nos os carmelitas e os agostinianos. Fácil é de ver que tais benesses só podiam ser causa de inveja. Por isso, provocaram uma verdadeira corrida à obtenção de títulos acadêmicos, não por amor à ciência, mas por amor às regalias. [...] Duplo reflexo tiveram tais abusos: 1. Nas Ordens, o relaxamento da pobreza, da austeridade e da vida comum; 2. No ensino, o despreparo dos professores e a queda do nível intelectual das Ordens. (ULLMANN, 2000, p. 223)

Em resumo, os mendicantes não obedeciam as decisões tomadas pelos

professores, nem os estatutos da universidade. O baluarte da luta entre seculares e regulares

do lado dos primeiros foi Guilherme de Saint-Amour, que tão a sério levou as rixas que

acabou sendo afastado da Igreja. Outros inimigos declarados dos frades eram Siger de

Brabante, Nicolau de Lisieux e Geraldo de Abbeville. Suas intenções eram afastar os

mendicantes da docência, para que estes voltassem a atuar apenas em seus conventos.

Também visavam desviar contingentes de alunos do propósito de ingressar nestas ordens. Os

frades responderam à altura com escritos defendendo-se das acusações e ressaltando a má fé

da parte de seus agressores.

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As investidas se davam em várias frentes, pois além das costumeiras queixas, os

seculares questionavam o próprio sentido religioso destas ordens. Apesar de algumas

diferenças doutrinárias (os dominicanos eram simpatizantes de Aristóteles e os franciscanos,

mais tradicionais, seguiam o platonismo agostiniano), menores e pregadores uniram-se frente

ao inimigo comum.

As intervenções papais nem sempre sortiam um efeito satisfatório, muitas vezes

acirrando ainda mais os ânimos, gerando novas disputas e inúmeros impasses. Enquanto

seculares ameaçavam deixar Paris, caso os mendicantes permanecessem nas cátedras, os

regulares continuavam se recusando a seguir os estatutos e a corporação universitária.

Enquanto o papado se posicionava a favor dos frades, bem como o rei São Luís, a maior parte

do clero e do episcopado era sensível às reivindicações dos seculares.

De qualquer modo, em 1257 foi proibida pelo papa a publicação de panfletos

contra os mendicantes, assegurando sua manutenção no studium e a despeito de todas as

crises e controvérsias das quais foram o cerne, os mendicantes brilharam na universidade,

fornecendo grandes pensadores. Suas obras de grande valor suscitam reflexões até a

atualidade além de introduzir no ensino elementos da filosofia grega, que serviram de

exemplo para outras ordens religiosas na medida em que seu zelo pelo estudo acabou

inspirando-as a buscar conhecimentos

Apesar de deslocados da corporação, os membros dessas ordens eram

reconhecidos pelos estudantes, sendo muitos “[...] sensíveis às vantagens do ensino dos

mendicantes, mais ainda ao brilho de suas personalidades e à novidade de alguns aspectos de

sua doutrina: paradoxo que acabou por complicar o caso e o tornou nebuloso aos olhos dos

historiadores”. (LE GOFF, 2003, p. 132).

Outro ponto-chave nas divergências é a pobreza. Os intelectuais, assim como os

demais trabalhadores, defendiam que o sustento do homem deve se dar por meio do seu

trabalho. Os seculares aprofundam esse problema, colocando que a pregação de pobreza

executada pelos mendicantes não tem base cristã, exemplificando com as recomendações de

São Paulo apóstolo de que cada homem devia ganhar o pão com o suor do seu rosto.

Ademais, não cobiceis prata, nem ouro, nem vestes de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos providenciaram o que era necessário para mim e para os que estavam comigo. Em tudo mostrei a vocês que é trabalhando assim que devemos ajudar os fracos, recordando as palavras do

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próprio Senhor Jesus, que disse: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (At, 20, 33-35).

Os papas colocaram-se ao lado dos mendicantes garantindo seus privilégios e sua

manutenção no corpo das universidades, posição compreensível, sobretudo devido à

obediência que essas ordens lhes devotavam.

Um dos problemas da Escolástica colocado por vários autores foi o arraigamento

excessivo aos autores antigos, especialmente Aristóteles. Isso dificultou os pensadores

medievais no desenvolvimento de um pensamento independente, embora outros discordem

disso. Mesmo que os filósofos medievais tenham adaptado o aristotelismo aos seus

problemas, isso gerou contradições notáveis:

a) os filósofos, especialmente os cristãos, fizeram uma tentativa de adaptação do

aristotelismo à doutrina cristã. A visão do Estagirita principalmente quando se

observa o contexto no qual suas idéias foram desenvolvidas é praticamente

inconciliável com o Cristianismo ou seja, as idéias de Aristóteles iam de encontro

à doutrina cristã;

b) discordando, favorecendo ou complementando, os pensadores medievais

gravitavam irremediavelmente em torno do pensamento dos antigos;

c) ao colocarem-se como trabalhadores do intelectual, rejeitando a idéia de que seu

trabalho fosse manual os universitários colocavam-se em uma posição ambígua

pois;

d) adotavam arbitrariamente dos antigos o conceito pejorativo de trabalho manual;

os filósofos buscavam também poder político e um status de destaque social

distintivo dos trabalhadores manuais;

e) dizemos arbitrariamente, porque ao adotar esse posicionamento ignoravam sua

própria condição como bem exemplifica o trecho seguinte:

A Escolástica não soube dar valor ao trabalho manual – vício capital, porque, isolando o trabalho privilegiado do intelectual, permitia que ela própria fizesse um trabalho de sapa contra as bases da condição universitária, ao mesmo tempo que separava o intelectual dos outros trabalhadores com os quais estava solidária no canteiro urbano. (LE GOFF, 2003, p. 136)

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Mas a principal contradição para alguns, tentativa para outros, foi o

estabelecimento de uma relação sadia entre razão e fé, sem que a crença em uma gerasse o

descrédito e a invalidade da outra. E mais uma vez o X da questão situava-se em Aristóteles.

Daí podemos identificar diversas correntes com interpretações ora tendendo a um rompimento

com a religião, ora tingindo o racionalismo aristotélico com as cores cristãs.

Não é um, são pelo menos dois Aristóteles que penetram no Ocidente: o verdadeiro, e o de Averróis. É mais ainda, na verdade, porque cada comentador, ou quase, tinha o seu Aristóteles. Mas duas tendências se desenham nesse movimento: a dos grandes doutores dominicanos, Alberto Magno e Tomás de Aquino, que querem conciliar Aristóteles e as Escrituras; a dos averroístas que, onde vêem contradição, aceitam-na e querem seguir tanto Aristóteles como a Escritura. (LE GOFF, 2000, p. 140)

Dessa forma, são perceptíveis pelo menos cinco grandes linhas no pensamento

dos filósofos do século XIII:

a) Os filósofos ligados à tradição agostiniana, baseada em Platão, defensora da

iluminação da razão humana por Deus e da predestinação do homem.

b) Aqueles que tomavam o pensamento original de Aristóteles afastando-se da

teologia e adotando uma postura mais próxima do racionalismo.

c) Os averroístas, partidários da “doutrina da dupla verdade”8.

d) Os tomistas, que buscavam moldar o aristotelismo aos dogmas cristãos.

e) Os livre-pensadores, que formularam outras teorias explicativas, desvinculadas

de todas as correntes já citadas.

Outra dificuldade da Escolástica reside em estabelecer uma relação entre teoria e

prática. Enquanto como método enfatizava as argumentações e especulações, vários

intelectuais clamavam por um empirismo. Em outras palavras, reclamavam que a teoria fosse

exemplificada na prática. A verdade, segundo esses pensadores, está na comprovação

experimental, isentando os espíritos da dúvida, diferentemente da especulação e das vãs

discussões que iludiam os espíritos com uma verdade, de acordo com eles, apenas aparente.

Apesar das críticas ao método escolástico, oriundas, sobretudo dos pensadores

modernos, é inegável que ela rendeu bons frutos e atendeu às aspirações filosóficas e

teológicas da época, com o mérito de ter feito “[...] a colocação exata e analítica do problema

8 Essa doutrina admitia uma verdade filosófica e outra teológica, quer dizer, mesmo quando elas entrassem em flagrante contradição, ambas deveriam ser consideradas como verdadeiras, sendo uma resultado da razão e outra da fé.

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a ser discutido; clareza nos conceitos e definições; arrazoados precisos, sem digressões, que

aguçam o entendimento; expressão rigorosa, lógica, silogística em latim”.

(ULLMANN, 2000, p. 75).

Outra vantagem inerente ao método escolástico era a preparação intelectual,

emocional e psicológica dos estudantes, de uma maneira que, na maior parte das vezes,

garantia o aprendizado. Contudo, os intelectuais acabaram por constituir-se em uma espécie

de casta, afastando-se da sociedade que faziam parte, distanciando-se tanto das camadas

privilegiadas quanto das camadas populares, praticamente formando uma classe à parte dos

problemas e conflitos sociais, envolvida somente em seu próprio mundo.

Sua língua, o latim, se permanece uma língua viva porque sabe se adaptar às necessidades da ciência do tempo e deve com isso exprimir todas as novidades, não recebe porém o enriquecimento das línguas vulgares em pleno desenvolvimento, e afasta os intelectuais da massa leiga, de seus problemas, de sua psicologia [...] um dos grandes riscos dos intelectuais escolásticos é formar uma tecnocracia intelectual (grifos nossos)

(LE GOFF, 2003, p. 147).

1.2 Os conceitos aristotélicos utilizados na obra luliana

Ao que tudo indica, as universidades foram as instituições de ensino mais

valorizadas e de maior prestígio na época. Também foram as que nos legaram maior número

de documentos e que permitem vislumbrar sua organização, seu funcionamento e sua relação

com a sociedade. Tratam-se de organismos genuinamente medievais sem precedentes

históricos.

Sua organização foi se aprimorando no decorrer do tempo, inclusive de uma

forma geral, as faculdades evoluíram em seu caráter científico. A Faculdade de Artes

parisiense, por exemplo, a princípio essencialmente voltada para o ensino da gramática e da

lógica, torna-se uma verdadeira academia filosófica,

[...] onde se ensinavam a física, a metafísica, a psicologia e a moral sobre a base dos textos de Aristóteles e dos comentários de Averróis, aos estudantes

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que já haviam recebido uma formação inicial em pequenas escolas pré-universitárias. Esse alargamento – que, em compensação praticamente não se valia das disciplinas científicas do quadrivium – suscitou muito naturalmente, sobretudo em Paris, uma reivindicação de autonomia tanto intelectual quanto profissional dos regentes em Artes, desejosos de comentar livremente o conjunto de textos filosóficos que eles conheciam sem ter que sofrer o controle e a eventual censura dos teólogos (VERGER, 1999, p. 86)

Os pensadores ocidentais produziram vastos comentários analíticos de textos.

Essa foi uma das marcas registrada da atividade intelectual dos medievos. Essa prática era

bastante semelhante à dos árabes que faziam análises críticas e comparavam vários textos

antigos, o que era facilitado pelo profundo conhecimento que possuíam da língua grega. Mas

o que pensava esse filósofo tão solicitado pelos medievais?

A mudança na forma de pensar dos gregos ocorreu após o surgimento da pólis,

passando de uma visão essencialmente mítica para a introdução de uma racionalidade do

homem ao olhar para si próprio e para o universo. Essas mudanças trazem modelos novos de

indivíduo: o cidadão e o filósofo. A filosofia grega é dividida em três períodos: período pré-

socrático, socrático e pós-socrático. Os primeiros marcam o abandono do pensamento mítico

na filosofia. Com os socráticos o centro cultural passa a ser Atenas e o período posterior

caracteriza-se pela expansão macedônica e o helenismo, que mesclou correntes filosóficas

gregas e orientais.

Embora grande parte da filosofia luliana tenha sido inspirada em Aristóteles é

possível identificar outras influências gregas no seu pensamento, por exemplo, a noção de ser

e não-ser. Llull atribuiu o não-ser ao falso e o ser àquilo que é verdadeiro. Não se trata de uma

questão de existência. Ser e não-ser na Arte de Ramon Llull são conceitos relacionados ao

bem e ao mal. O não-ser é tudo o que não é bom. O ser por sua vez é construído por um

conjunto de virtudes.

Alguns elementos do pensamento grego foram retomados no período medieval.

Os filósofos sofistas9 foram muito criticados pelos seus contemporâneos, sobretudo por

cobrarem pelas aulas que ministravam. Na Idade Média a “venda do saber” era tão mal vista

quanto à “venda do tempo”. Sendo dons não deveriam ser negociados, mas sim

compartilhados.

9 O termo sofista vem de sophos e significa “sábio” “aquele que elabora sofismas”. Com o tempo passou a se identificar com “aquele que elabora sofismas, subterfúgios, enganador”, colaborando para a visão negativa dos pensadores sofistas na sociedade grega.

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Os sofistas deram uma grande contribuição na organização do ensino, formando o

currículo de estudos utilizados durante todo o período medieval, o trivium (gramática, retórica

e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).

Outro legado destes filósofos aos medievais foi a preocupação com a persuasão.

Ora, na sociedade grega, o cidadão tinha como principais instrumentos a palavra e a razão

para defender seus posicionamentos. Entre os medievos, o uso do raciocínio e da lógica

essencialmente nas disputas parte do mesmo princípio de argumentação através do qual “[...]

não basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso demonstrá-lo pelo raciocínio. Pode-se

dizer que aí se encontra o embrião da lógica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles.”

(ARANHA; MARTINS, 2003, p. 120), pensamento que vai ao encontro das idéias de Llull

que visava convencer seus interlocutores por meio das “razões necessárias”.

Aristóteles foi um macedônico de educação nobre; mudou-se para Atenas, onde

ingressou na escola de Platão, sendo recebido na academia por Eudóxio. Essa academia

dedicava-se especialmente à filosofia, geometria e matemática. A filosofia grega era

caracterizada principalmente pela busca da verdade e a descoberta do homem e do universo.

Logo Aristóteles destacou-se como grande orador e demonstrou-se vivaz em suas

especulações filosóficas.

Embora amigos, Aristóteles e Platão tiveram vários atritos no campo das idéias.

Após a morte de seu mestre, o Estagirita deixou a escola. Muitos autores acreditam que as

críticas de Aristóteles a Platão iam além do cunho filosófico. Por ocasião da morte de Platão,

Espeusipo assumiu a direção da academia, o que fez com que Aristóteles fundasse o Liceu,

uma escola rival à academia. Jacot (1973a, p. 496) chega mesmo a afirmar que:

Da maneira que em Platão, o pensamento do filósofo sofreu no decorrer dos anos, uma evolução na qual podemos distinguir três estados: o primeiro é o dos vinte anos passados na Academia, onde Aristóteles ainda que não partilhando sempre das idéias de seu mestre, era essencialmente platônico, senão ele não permaneceria na Academia. O segundo estado é o da permanência em Assos, onde Aristóteles começa a se distanciar das teorias de Platão. O terceiro estado é o de Atenas, onde o Liceu é uma escola nitidamente rival da Academia.

Desejava ser o diretor da academia, o que não aconteceu. Retirou-se, sendo

posteriormente preceptor de Alexandre, filho de Felipe II da Macedônia, que viria ser

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conhecido pela história como um grande conquistador, desde a tenra idade, domando cavalos

selvagens e exercendo um grande poder de liderança.

Depois de voltar para Atenas e fundar o Liceu passou a dar aulas. Durante as

manhãs as aulas versavam sobre conhecimentos mais profundos, ou seja, era direcionado aos

alunos que mais se destacavam. Pela tarde as questões discutidas tinham caráter mais

superficial. Os discípulos da academia de Aristóteles tinham aulas caminhando, sendo por

isso chamados de “peripatéticos” do grego “Peri” = perímetro e “patéticos” = aqueles que

caminham.

Aristóteles não costumava viajar muito, parecia sentir-se bem em Atenas.

Escreveu diversos tratados sobre moral e ética, inclusive Ética a Nicômaco, dedicada ao filho

de seu segundo casamento. De acordo com o filósofo o ser humano estava caracterizado por

três esferas assim esquematizadas:

A divisão da mente humana de acordo com Aristóteles

PSIQUÊ

alma

NOUS virtudes emoções instintos SOMA

espírito pensamentos física

O homem deve procurar desvendar a essência escondida nas aparências e trazer as

idéias para o mundo prático. É aí que se dará o exercício da virtude. Ramon Llull também

atribuirá uma grande ênfase e importância ao cultivo de virtudes para a felicidade do homem,

seu bom relacionamento social e é claro, como uma forma de se aproximar da vontade Deus.

Para os gregos a virtude é sempre um bem. Todas as atitudes humanas visam um bem.

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Exemplo: a medicina visa a saúde. Porém há um bem supremo que está acima de todos os

outros. Esse bem máximo é a felicidade, busca comum a todos os homens. É absoluta e auto-

suficiente, uma vez que diferentemente dos bens menores não visa um fim específico,

constituindo um fim em si mesma:

Ora, parece que a felicidade, acima de qualquer outra coisa, é considerada como esse sumo bem. Ela é buscada sempre por si mesma e nunca no interesse de uma outra coisa; enquanto a honra, o prazer, a razão, e todas as demais virtudes, ainda que as escolhamos por si mesmas (visto que as escolheríamos mesmo que nada delas resultasse), fazemos isso no interesse da felicidade, pensando que por meio dela seremos felizes. Mas a felicidade ninguém a escolhe tendo em vista alguma outra virtude, nem, de uma forma geral, qualquer coisa além dela própria. (ARISTÓTELES, 2006, p. 26)

A virtude está classificada em duas categorias: as intelectuais, relativas à

inteligência e ao discernimento; e as morais, relativas ao comportamento e a ética humanas. A

virtude intelectual está associada ao ensino e ao aprendizado. Já a virtude moral refere-se ao

hábito. O sensível está ligado à natureza, o moral, ao exercício. Somos bons naquilo que

fazemos. Também dá uma noção do que seriam as paixões, afirmando que elas podem ser

tanto positivas, quanto negativas, mas ressaltando que a virtude implica em escolhas e a

paixão é algo involuntário.

O virtusosismo10 é um instrumento de alcance dessa felicidade, ou seja: não é

suficiente apenas fazer algo. É preciso executá-lo bem. É decisivo que a inteligência deva ser

usada para sublimar o elevado. Todos têm virtude e potencial, porém, para que esse potencial

se manifeste, a virtude deve ser praticada. É o exercício que torna o homem virtuoso. Daí

extrai-se a relação entre teoria e práxis. A designação de virtude para Aristóteles é a seguinte:

virtude é o meio termo entre dois vícios: o excesso e a falta. Alguns exemplos são citados em

sua obra Ética a Nicômaco como a covardia (ausência de coragem) e a temeridade (excesso) e

a avareza (ausência de generosidade) e a prodigalidade (gastar perdulariamente).

Nesse contexto, a virtude não é algo exterior ao homem, faz parte do cotidiano e

também é algo construído, no decorrer de toda uma vida. O sábio é perfeitamente virtuoso e

mais do que isso, uma pessoa feliz. A felicidade também inclui as vicissitudes e a

compreensão da vida, ou seja, entender a dor e o prazer é ter percepção do que realmente

consiste o existir. 10 Por exemplo: qualquer pianista é capaz de tocar piano, mas apenas o virtuoso irá tocar magistralmente.

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Llull se utilizou especialmente dos conceitos engendrados pelo Estagirita. Os

principais conceitos da obra aristotélica são: substância, essência e acidente: ao contrário de

Platão, não separa o mundo sensível do inteligível. A substância é o conjunto formado pela

forma e o conteúdo. A essência diz respeito aos atributos que caracterizam uma substância

como tal. O acidente é o atributo ocorrente que pode ou não acontecer com a substância,

porém sem alterá-la em sua essência. Exemplo: o homem dotado de corpo e mente é uma

substância. Sua essência consiste no uso da racionalidade. Essa característica diferencia

homem dos outros seres. Suas características acidentais (ser gordo, magro, belo ou feio) não

alteram a sua essência como ser dotado de razão. (MARCONDES, 2005)

a) matéria, forma: matéria e forma são indissociáveis. A matéria é aquilo que

forma o ser, e a forma refere-se à idéia. Exemplo: o ouro é a matéria de uma

determinada jóia, porém sua forma é dada pelo ourives que irá trabalhá-la;

b) ato, potência, movimento: são conceitos complementares. O ato é a força

motriz que leva a potência a se desenvolver, ou seja, todo ser existe em ato

(desenvolvimento da potência) e potência, ou seja, desenvolvendo habilidades,

aperfeiçoando suas características latentes. “[...] o movimento, é portanto, a

passagem da potência para o ato. É ‘o ato de um ser em potência enquanto tal’.

É a potência se atualizando” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 123).

Em Aristóteles já aparece a idéia de Deus como gerador de todas as coisas, o Ato

Puro. Todas as coisas são contingentes, necessitando de um ato para desenvolver sua

potência, exceto Deus. Ele é incausado e o primeiro motor que determina as outras

existências. A mesma noção é adotada por Llull, apenas com uma nomenclatura diferente. De

acordo com os escritos do filósofo maiorquino Deus é incriado e suas virtudes também

incriadas são as Dignidades.

D’Ele advêm todas as coisas. Deus é a causa da existência humana e além de ser a

“causa primeira” de todo ser existente e deve ser também a primeira intenção dos seres

criados amá-Lo e honrá-Lo. Da interpretação de Deus, como Ato Motor, resulta a idéia de que

é imutável, pois, se não o fosse, haveria uma causa anterior a Ele próprio.

Llull desenvolveu vários desses conceitos em suas obras, com modificações que

atendiam ao seu propósito religioso. Assim considera também que o mundo sensível é fonte

de conhecimento, mas esse conhecimento é inacabado. Também pensa as virtudes

praticamente sob a mesma ótica do Estagirita, mas atribui todo bem e toda a felicidade à

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Deus, enquanto o filósofo grego pautava a felicidade na utilização da racionalidade, sendo

cada homem responsável pelos seus sucessos e derrotas.

O retorno dos medievos para as obras de Aristóteles traz à tona um profundo

dilema, pois o pensamento aristotélico vai de encontro aos dogmas cristãos, inclusive acerca

de Deus. De acordo com ele:

a) Deus é transcendente e está voltado para si próprio, ignorando as demais

criaturas; o Deus cristão é um Deus totalmente Onipotente, Onisciente e

Onipresente e está constantemente influenciando ou interferindo nas

atitudes humanas, tão preocupado com a felicidade dos seres que criou, que

foi capaz de enviar seu próprio Filho para morrer pela humanidade;

b) o mundo não foi criado e é eterno; a teologia cristã prega que o mundo foi

criado por Deus em seis dias, segundo a narração do Livro do Gênesis11. O

mundo terreno não é eterno. Somente o extraterreno é perene. O fim do

mundo no qual vivemos se dará com a segunda vinda de Cristo à Terra

quando separará os bons dos maus;

c) a alma não é imortal, portanto nada mais há, além da existência presente;

para os cristãos a alma é imortal e toda a teologia cristã e humana estão em

função da crença na imortalidade da alma e na vida após a morte;

d) a Natureza é o objeto da ciência por excelência. Suas leis são apreendidas

através da experiência, possibilitada pelos sentidos; toda forma de

conhecimento de acordo com grande parte dos filósofos cristãos, a ciência e

a filosofia servem para o propósito de conduzir o homem à compreensão de

Deus e a busca pela verdade; e essa compreensão não se dá somente através

da razão, mas principalmente da iluminação divina.

Dessa maneira é compreensível o impacto e as controvérsias que o pensamento

aristotélico extremamente racional trazido à Europa medieval cristã impregnada de

religiosidade em suas entranhas e com todo o seu entendimento voltado para as questões da fé

e da salvação provocou, principalmente porque as traduções das obras aristotélicas eram feitas

pelos árabes e, portanto, adaptadas para justificar o pensamento desenvolvido por estes,

bastante diferenciado dos dogmas cristãos ocidentais.

11 A narrativa da criação completa está em Gn 1, 1-31.

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Assim é que o averroísmo latino irá fazer ao mesmo tempo muitos simpatizantes e

muitos opositores, inclusive Ramon Llull que combateu fervorosamente a doutrina de

Averróis, classificando-a como tão perigosa quanto à fé islâmica, observando o grande

número de adeptos que ambas conquistavam. O maiorquino se utilizará dos conceitos do

filósofo grego, mas se manterá fiel aos preceitos de sua religião, até porque em contraste com

os demais intelectuais de seu tempo que se apoiavam nas autoridades, como já citado

anteriormente, Llull irá colocar em prática um método que se por um lado, aproveita

elementos da Escolástica, paradoxalmente rompe com ela em um de seus pilares. Ele pode ser

considerado como o fundador de uma espécie de “filosofia alternativa”, visando fins

religiosos, mas sendo aplicada de acordo com a observância de outros princípios.

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2. RAMON LLULL – SEU CONTEXTO HISTÓRICO

Nas biografias de homens e mulheres que viveram durante a Idade Média é

comum observarmos uma grande lacuna em suas histórias. Isto porque nelas, sempre existe

um acontecimento que produz uma mudança de comportamento “[...] según La persona de

quien se trate, su acceso a La vida política, su graduación acadêmica o su conversión a uma

vida más religiosa” (GAYÀ, 2005). No caso de Ramon Llull essa cisura localiza-se a partir da

conversão, a sua experiência mística ao ver Jesus Cristo crucificado em seu quarto.

Vida Coetânea biografia mais utilizada por aqueles que estudam sua vida, é uma

versão autorizada pelo próprio Ramon Llull, mas é possível perceber que ela segue o mesmo

esquema das hagiografias do período, embora fiel à linha de pensamento do filósofo. Na

realidade o ponto crucial da narrativa não é propriamente informar sobre a vida do beato, mas

divulgar os propósitos que ele desenvolveu em vida: a missão evangelizadora com o intuito de

unificar todos os homens em torno da religião cristã e a aplicação do seu método: A Arte.

Sua cronologia é bastante imprecisa e enquanto alguns períodos de sua vida são

suficientemente pormenorizados, outros são praticamente ignorados. Sabemos, por exemplo,

que teve uma educação nobre e que foi casado tendo dois filhos, porém tais fatos nos são

dados a conhecer somente por alto, sem maiores detalhes. A ênfase situa-se mesmo em suas

peregrinações e na atividade pregadora.

Llull fazia parte de uma família, ocupada com atividades comerciais que

provavelmente não se envolvia em questões políticas, apesar de suas estreitas relações com a

corte e o próprio rei de Maiorca. Era possuidora de muitas terras, usufruto da conquista de

Jaime I; como recompensa pela participação de alguns membros da família de Ramon Llull na

campanha expansionista do rei, foi contemplada com pedaços do território conquistado.

A conquista de Maiorca foi motivada por fatores econômicos. A ilha era um

importante eixo no comércio do Mediterrâneo. Essa empresa já havia sido tentada inclusive

pelas cidades italianas de Gênova e Pisa, tanto por meio das armas como por meio de relações

diplomáticas com os muçulmanos que lá estavam estabelecidos. Grande entreposto de

pessoas, possibilitou a confluência de pessoas das mais diversas origens. De acordo com o

professor Ricardo da Costa, este foi um fator que influenciou o pensamento luliano, dando-lhe

um certo caráter eclético.

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Llull passou toda a primeira parte de sua vida em Maiorca. Foram lá que

aconteceram suas experiências místicas; lá ele decidiu mudar de vida e estabelecer os

propósitos que se tornaram a meta de sua existência. “Portanto, seus anos de sua formação

intelectual e de seu ideal político foram forjados durante o reinado de Jaime I, o Conquistador,

e sob a proteção do infante Jaime, futuro Jaime II de Maiorca” (COSTA, 2002).

A ilha pertencia aos muçulmanos antes de ser conquistada por Jaime I. Os

primeiros anos de vida de Ramon coincidiram com a expansão comercial de Aragão que se

direcionou para o Mediterrâneo (norte da África, sul da Itália, além de Sicília e Sardenha).

Essa expansão além de favorecer economicamente o reino, foi decisiva na formação cultural

da população, ajudando a firmar o catalão como língua para o comércio e relações

diplomáticas.

A ilha de Maiorca constituía-se em um núcleo para onde convergiam os mais

diferentes grupos, tanto étnicos, quanto religiosos. Esse grande universalismo irá se refletir na

obra de Llull que revelará um conhecimento profundo não só da realidade cristã, mas também

de outras visões de mundo paralelas a esta.

Ramon Llull casou-se com Blanca Picany, mulher que também pertencia a uma

família influente de Maiorca. Deste casamento, nasceram duas crianças: Domingos e

Madalena. É possível cogitarmos tendo por base seus escritos futuros que apesar da distância

da família engendrada pela sua vida missionária, Llull tinha uma grande estima pelos seus

familiares, fato atestado na obra Doutrina para crianças, escrita para o seu filho. Embora sua

família se ocupasse de diversas atividades, tudo leva a crer que obtiveram êxito na maioria

delas, sendo o próprio Ramon um homem abastado, que ocupou altos postos na administração

real, como senescal do rei e preceptor do príncipe Jaime II.

Devido à própria natureza das atividades que exercia, não tinha sido necessária

uma grande preparação teórica, mas apenas uma educação básica de gramática, ou seja, nesse

primeiro momento de sua vida, não demonstrou uma grande preocupação com a ciência. Esta

só iria se manifestar por ocasião do surgimento da necessidade de uma melhor formação

intelectual para os seus propósitos religiosos.

Em sua juventude, sabia ler, escrever e falar corretamente, mas adquiriu essas

habilidades através da cultura trovadoresca, que continuou a influenciar suas obras mesmo

após sua conversão. Lia muitos romances de cavalaria, escrevendo ele próprio, canções e

trovas. Sua primeira experiência mística se deu coincidentemente quando escrevia uma

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canção para uma dama. Mais tarde, Llull muito se culparia pelo próprio comportamento nessa

fase de sua vida, fase em que era entregue aos vícios da carne, sendo infiel em seu matrimônio

além de ser em suas próprias palavras, “dissoluto e mundano”.

Após a sua conversão, segue-se um período conturbado no reino de Maiorca.

Jaime I ao morrer, lega a Jaime II, Montpellier, as ilhas Baleares, os condados de Rossillon e

Cerdaña, Vallespir e Conflent e a Pedro III, Aragão, Catalunha e Valência. Este último,

descontente com tal divisão obriga seu irmão a reconhecer pelo Tratado de Perpignan, que

dirigia as terras apenas na qualidade de vassalo. Na realidade, essas medidas faziam parte de

um projeto mais ambicioso: a hegemonia catalã no Mediterrâneo, a fim de controlar o

comércio marítimo.

Apesar de não tomar partido, parece claro que Llull estava ao lado de Jaime II,

pois logo após a firmação do tratado, abandona Maiorca, retornando somente após a

restituição do trono a Jaime II. Pode-se especular também que os laços de amizade e respeito

entre Ramon e Jaime II eram grandes, uma vez que fora seu preceptor. Durante o período em

que estava fora do comando da ilha, estabeleceu sua corte em Perpignan e Montpellier, as

quais Llull também passou a freqüentar.

As guerras envolvendo os territórios de Aragão e das Sicílias tiveram muitos

desenlaces e envolveram autoridades de vulto como o papado e reis franceses. A despeito de

todos estes choques, Llull não se envolveu nas questões políticas, continuando a cuidar de

seus objetivos religiosos. É assim que obtém do rei de Aragão, permissão para pregar nas

mesquitas e sinagogas de seu reino, levando-nos a supor que em sua visão, o ideal de unidade

cristã, deveria estar acima de quaisquer interesses políticos e (ou) econômicos. As obras que

comentavam acerca da relação entre os reis e os seus súditos, não deixam dúvidas quanto a

isso. Sua exortação para o seguimento de um caminho virtuoso não é aplicada somente ao

povo, mas a todos os segmentos sociais da época, como membros da Igreja e homens de

poder temporal.

Sempre procurou o apoio de reis, príncipes e papas, para ajudá-lo em seu objetivo.

Nem sempre conseguiu êxito e esse será um traço que marcará suas obras. Muitas delas são

narrativas de experiências vividas pelo próprio Ramon. Isso pode ser percebido em diversas

fases; nos primeiros escritos toda a esperança e confiança no sucesso do método

desenvolvido; em fases posteriores a decepção com o pouco caso das autoridades com tarefa

considerada tão urgente e elevada para o filósofo: unificar a Cristandade e mais tarde, um

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enrijecimento de suas posições em relação aos muçulmanos. Esses reflexos autobiográficos

dos quais suas obras se acham impregnadas, revelam que este lança uma crítica aos homens

do período que não se ocupavam da primeira intenção de amar a Deus. Ele faz isso sempre em

forma de analogias utilizando personagens de seus escritos.

2.1 Conversão, pregação e desenvolvimento da Arte.

A experiência mística de Llull possui de certa maneira um caráter simbólico. O

filósofo viu Jesus Cristo crucificado durante cinco dias, sempre quando estava terminando a

canção para a dama a qual estava enamorado naquele momento. Aqui parece claro que há

uma oposição entre duas formas de amor: o amor carnal, pecaminoso e o amor espiritual e

divino de Deus. Este último sobressai, fazendo com que o pecador renuncie toda a vida

passada, colocando-se a serviço desse novo e verdadeiro amor.

O caminho escolhido para trilhar essa nova vida foi influenciado pelas grandes

revoluções espirituais e educacionais que ocorriam naquele século. Muitos homens e

mulheres estavam desenvolvendo uma forma alternativa de santidade: eram leigos, cujos

carismas mais observados eram a pobreza e a simplicidade, ou seja, pessoas que não

ingressavam necessariamente em ordens monásticas, mas, contudo, abraçavam um modelo de

vida penitente.

Essa nova espiritualidade foi disseminada pelas ordens mendicantes. Mais tarde,

retomaremos as duas que mais estiveram presentes na caminhada luliana: dominicanos e

franciscanos. A simpatia de Llull por estas ordens colocou-o em situação de grande dúvida,

sobre qual hábito deveria tomar. Abordaremos algumas das diferenças básicas entre elas, no

sentido de compreender os pontos que geraram confusão e indecisão para o maiorquino.

Um outro ponto importante a ser considerado é que a conversão de Llull embora

tenha marcado uma ruptura, acompanhada de uma radical mudança de comportamento,

delinearam seus objetivos religiosos e doutrinários gradualmente. E vale destacar que esses

propósitos também foram adequando-se às condições sociais e políticas encontradas pelo

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beato. A primeira inspiração foi a conversão dos infiéis, 12seguida da redação de livros contra

os erros daqueles e a fundação de escolas onde se aprendessem as línguas necessárias à

missão. Mais tarde vão somar-se a esta, a luta contra os averroístas, a busca pelo martírio, a

fomentação das Cruzadas e a unificação das ordens militares.

Ramon não deixou imediatamente sua casa. Essa decisão veio quando ele

participou da festa de São Francisco. Nessa festa, durante uma pregação, sentiu-se tocado pelo

exemplo de São Francisco de Assis13, decidindo daí, fazer o mesmo. A partir daí, vendeu seus

bens, deixando somente o necessário para o sustento de sua esposa e filhos. Por sua vez, o

desenvolvimento de um método aplicável a questões universais se dará posteriormente no

Monte Randa. Esses anos são primordiais, pois neles são formuladas as principais diretrizes

da ação luliana. São neles que o maiorquino busca superar suas próprias limitações a fim de

tornar-se apto ao ideal que se havia proposto a alcançar.

O primeiro passo foi melhorar sua formação intelectual com intensa dedicação ao

estudo do latim e do árabe. Para tal, adquiriu um escravo mouro e durante nove ou dez anos

empenhou-se com afinco em aprender o máximo possível sobre a cultura e religião árabes.

Esse mesmo escravo, após uma discussão, tenta matá-lo, fato descrito mais ou menos como

um milagre, já que Llull não queria punir o escravo com a morte, pois guardava gratidão pelo

que este lhe tinha ensinado. Quando pensava sobre isso, sem saber o que fazer, ocorreu uma

espécie de intervenção sobrenatural e o próprio escravo suicidou-se, limpando assim a

consciência do beato. 12 Llull pautará sua missão evangelizadora na passagem bíblica que diz que ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seu irmão. Por isso o beato estava disposto a fazer qualquer sacrifício para assegurar a salvação dos infiéis.

13 Francisco de Assis nasceu provavelmente em 1182 na Itália. Filho de um abastado mercador de tecidos, podemos dizer que pertencia a uma família de comerciantes em franca ascensão e com um estilo de vida próximo da aristocracia. Dessa forma, Francisco vivia à maneira dos jovens nobres de sua época antes de sua conversão. Deixou pouquíssimos documentos escritos e mesmo assim, estes são mais esclarecedores quanto à espiritualidade praticada por Francisco do que em relação a sua trajetória de vida. Sua conversão ocorreu ainda na juventude. Tinha um desejo de ingressar na carreira cavaleiresca, aspiração comum entre os jovens fidalgos da época. Também foi bastante influenciado literariamente pelo espírito trovadoresco. Uma longa moléstia obrigou-o a abandonar essas atividades. Nesse período passou por uma grande reflexão que o levaria à uma mudança radical de comportamento. Decidiu então dedicar-se ao serviço de Deus e dos excluídos de sua sociedade. Despojou-se de seus pertences e até mesmo de suas roupas e iniciou sua carreira pregadora. Apesar de uma inicial desconfiança de seus contemporâneos, logo passou a ter seguidores. Vida Coetânea torna o relato de vida do maiorquino semelhante ao do poverello, pelo menos no que diz respeito à maneira de sua conversão e a espiritualidade adotada após a mudança de vida. Francisco de Assis adotou uma postura humilde e respeitosa frente aos não-cristãos. Participou da quinta cruzada, não se identificando contudo com as ações dos cruzados. A violência e a intolerância que preponderavam nestes choques com os mulçumanos com certeza iam de encontro aos seus valores espirituais. Em contato com o sultão Malek-al-Kamil teve uma conversa bastante civilizada, retornando assim como um amigo para os seus.

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Vida Coetânea esclarece que ao lançar-se aos estudos, intencionava dirigir-se a

Paris, certamente à Universidade, porém foi demovido dessa idéia por amigos. Esse é um bom

ponto a ser pensado. Por que a objeção aos estudos em Paris? Afinal não era esta universidade

que gozava de maior prestígio junto à Sé? Ramon de Penyafort, dominicano,14 convenceu-o a

regressar à Maiorca, quando curiosamente a ordem dos pregadores era a que mais prezava

pela formação intelectual de seus membros, inclusive detendo cátedras nessa universidade. O

certo é que, só após redigir sua Arte é que o filósofo visitaria a cidade de Paris.

A atividade dele nesse período restringiu-se a duas práticas: estudo e

contemplação. Suas primeiras obras são O Livro da Contemplação, a Ars compendiosa

inveniendi veritatem e o Compêndio lógico de Algazali. Segundo Jordi Gaya essas são (em

especial o Livro da Contemplação) as obras-chave para a compreensão do sistema luliano. Ao

tomar conhecimento dessas obras, o rei Jaime, submeteu-as a um conselho formado por

franciscanos para averiguar seu conteúdo, obtendo um parecer favorável.

Este rei foi uma das autoridades da época que mais contribuiu na concretização

dos propósitos de Llull, autorizando seus livros e fundando o Mosteiro de Miramar, onde

treze franciscanos estudavam a Arte e o árabe. Pode-se afirmar que a Arte é um método lógico

destinado a comprovar a fé, ou seja, provar que esta é demonstrável por meio da razão. Foi

reformulado inúmeras vezes pelo seu criador visando sempre sua compreensão pelo maior

número possível de pessoas.

O Livro da Contemplação é uma obra de grande complexidade e foi escrita

primeiramente em árabe. Por sua vez a versão catalã

[...] ocupa el lugar de honor em La historia de La literatura catalana. Caso prácticamente único em La historia de lãs lenguas romances, el catalán tiene em los escritos de Ramon Llull, y muy especialmente em el Libre de contemplació, um inicio que no deberá aguardar siglos de evolución para obtner su obra maestra. La obra de Llull explora todas lãs posibilidades de vocabulário, de estructura gramatical o de recursos estilísticos de La nueva lengua. Estamos apuntando a outro de los riquísimos aspectos de La figua de Ramon Llull. (GAYÀ, 2005)

A Ars compendiosa inveniendi veritatem possui uma estrutura totalmente

diferente do Livro da Contemplação, porque consiste na própria exposição do método. Seu

texto, muito mais breve, utiliza letras e figuras. Após essa introdução, segue mostrando a

14 Ramon Llull estabelecerá um forte elo, mantido durante toda a sua vida com as ordens mendicantes. Apesar das diferenças estruturais e espirituais dessas ordens, Llull foi bem recebido e influenciado por ambas.

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explicação destes sinais e sua aplicação prática, exemplificando seu uso em questões

teológicas.

El Ars compendiosa inveniendi veritatem crea que será el esquema permanete de la presentación Del Arte luliana: exposición de lãs figuras, elenco de los resultados combinatórios contenidos em las figuras y aplicación a cuestiones diversas, com referencia a todos los âmbitos de La realidad. Los elementos que llenan este esquema Iran sufriendo modificacioes muy importantes, comportando La incorporación de elementos nuevos y padeciendo La perdida de otros anteriores. Siguiendo cronológicamente esta evolución, se accede a uma lucha tenaz de Ramon Llull por conseguir audiência para sus propósitos, plenamente convencido de La utilidad misionera, y aún universal, de su sistema. (GAYÀ, 2005)

Existem poucas informações sobre o funcionamento e a metodologia do

monastério de Miramar, bem como a participação de Llull nesse projeto. No entanto sabe-se

que sua estadia entre Montpellier e Maiorca, a frenética atividade literária do filósofo

deslancha. Seus escritos constituem um conjunto bem heterogêneo. Textos vigorosos,

recheados de reflexões, analogias, simbolismos, traços autobiográficos e idéias de reformismo

social, além do conteúdo filosófico e teológico que figuram como o principal ponto de sua

obra são produzidos. A partir daí, parece que seu porto será a cidade de Montpellier, onde

redigiu numerosos livros.

Também desse período em diante, identificamos uma nova forma através da qual

Llull irá lutar pelos seus projetos, ou seja, começa a desenvolver estratégias, específicas e

concretas para alcançar seus objetivos. Daí então começam suas andanças, numerosas

viagens, cujas metas eram conseguir apoio das autoridades da época para seus propósitos,

apresentar a Arte, nos meios intelectuais e é claro, promover a atividade pregadora.

Los acontecimientos posteriores, por outra parte, nos obligan a considerar que esta estância de Ramon Llull em Montpellier significo um cambio de estratégia. Habían transcurrido ya veinte años desde su conversión. La mayor parte de ellos los había pasado em su tierra natal, dedicando cada vez más espacio a La vida contemplativa, y asistiendo a La primera andadura Del monastério de Miramar. A partir de ahora su vida se desarrollará em contínuos viajes, trás el objetivo de conseguir atraer a SUS planes las instancias verdaderamente decisivas de su época: el Papado, La Universidad de París, el Rey de Francia, los órganos de decisión de las ordenes mendicantes, ES decir los capítulos generales, e incluso um Concilio Ecuménico. (GAYÀ, 2005)

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Em 1287, Llull parte para Roma, a fim de conseguir o apoio papal. Nessa ocasião,

o papa Honório IV morre, e o filósofo ruma para Paris, antes da eleição do novo pontífice.

Sua primeira estadia em Paris durou aproximadamente um ano. Apesar da ausência de

informações sobre este período, presume-se que seu objetivo era conhecer a Universidade

parisiense. Llull intentava também o apoio dessa instituição que além de ser o centro mais

ligado à Sé, era também o local onde estavam os homens de saber mais destacados da época.

Foi lá que travou conhecimento com aquele que será posteriormente seu principal discípulo e

autor do Breviculum, Thomas Le Myésier.

As viagens de Ramon à Paris foram essenciais no sentido de mostrar os pontos de

dificuldade na compreensão do seu método. Ao ler publicamente sua Arte, pôde perceber a

pouca compreensão dos conceitos utilizados. A utilização de elementos árabes como os

sufis,15 também comprometiam o entendimento por parte dos cristãos que ignoravam traços

da cultura árabe. Apesar de buscar o apoio de instâncias importantes da Cristandade (papas,

reis, universidades), nunca perdeu a dimensão universalista de sua missão. Foi buscando a

absorção de seu pensamento também pelos leigos que reelaborou seu sistema inúmeras vezes

e escreveu obras destinadas a um público mais amplo compilando “muitos livros para a

capacidade dos homens iletrados” (RAMON LLULL, 1311b).

A pouca receptividade que a Arte luliana teve em Paris, levou o seu autor a uma

grave autocrítica. Ora, isso é perfeitamente compreensível se levarmos em conta que a base de

seus escritos e de sua ação evangelizadora era a Arte. Se não era compreendida, nem aceita,

como poderia frutificar e lograr êxito ao motivo para o qual fora concebida? Isso gerou um

sentimento de insegurança e dúvida sobre sua própria capacidade na execução do projeto

divino. “Llull Duda de su capacidad y Del valor de su entrega. Se insinua, sin Duda, La

grave crisis autodestructiva que padecerá três años después”. (GAYÀ, 2005)

Mas o maiorquino também atribuía o não entendimento de sua obra entre os

universitários devido à ausência de sentimento religioso entre eles. Com efeito, como já

15 O sufismo era uma forma de meditação que visava transportar o homem do mundo material para o plano espiritual por meio da contemplação e da oração repetida, até a sua completa interiorização. Trata-se de um conjunto de técnicas corporais e mentais para entrar-se em transe. Os sufistas acreditavam que poderiam unificar-se com Deus misticamente, através destas práticas. O sufismo não é uma tendência organizada no sentido de que é realizada de maneiras diferentes entre sunitas e xiitas. Em seu primórdio, não contou sempre com a aprovação de toda a comunidade muçulmana, sendo alguns sufistas acusados de blasfêmia pela sua noção de harmonia com Deus.

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tratado no capítulo anterior desta pesquisa, os filósofos parisienses situavam-se em uma

delicada posição fronteiriça entre razão e fé. É significativa também a preocupação que ele

tinha em relação aos muçulmanos. Embora pregasse também em sinagogas, é inegável que os

maiores esforços doutrinários dirigiram-se aos primeiros. Talvez porque considerasse que a

religião cristã, possuía mais pontos de convergência com o Judaísmo do que com o

Islamismo. Por este motivo, acabou tendo um conhecimento considerável sobre a cultura

árabe.

De volta à Roma, passou por Gênova. Possuía conhecidos lá, era familiarizado

com a família Spinola e com círculos de comerciantes e dirigentes políticos. Essas fases são

brevemente descritas na Vida Coetânea. Em compensação, os episódios seguintes,

protagonizados em Túnis são bem mais detalhados. Ao embarcar, Llull sente medo, fazendo-o

desistir de embarcar. Esse fato traz uma crise moral gravíssima ao filósofo. Sentindo-se

envergonhado e triste por ter sucumbido à em tentação, logo caiu doente e abatido.

É nessa ocasião que o autor da Arte se deparou pela primeira vez com sua própria

fraqueza e vulnerabilidade. Essa espécie de depressão sobreveio como uma forma de punição

pela sua falha. Na Vida Coetânea “encontramos diversos episódios que hay que valorar em

referencia al núcleo de La crisis: La angustia Del creyente ante La propia incapacidad para

someterse al sacrifício que le pide su conciencia religiosa” (GAYÀ, 2005) .

Ao ser medicado pelos dominicanos, escutou uma voz que lhe disse que era nesta

ordem que deveria alcançar sua salvação e só não tomou o hábito, devido a ausência do prior.

Mesmo assim, meditou longamente sobre isso. Sua dúvida residia no fato de os franciscanos

terem recebido sua Arte de forma positiva. Quer dizer: deveria optar pela sua própria salvação

ingressando na ordem dos pregadores ou escolher a salvação de muitas almas abraçando a

ordem dos freires menores já que estes não relegariam sua Arte ao esquecimento? “E o dito

reverendo mestre Ramon elegeu mais cedo sozinho ser danado do que perder sua Arte, com a

qual muitos poderiam se salvar, tanto que havemos dito que amava mais seu próximo do que a

si mesmo.” (RAMON LLULL, 1311b).

Para entender o dilema vivido por Llull é importante compreender algumas

diferenças cruciais entre dominicanos e franciscanos. A pregação de São Francisco e seus

companheiros sempre gerou desconfianças no clero segular, que talvez os julgassem

despreparados intelectualmente para falar sobre as Escrituras ou talvez os tivessem como

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membros de um novo movimento herético. Mesmo assim, ele sempre procurou colocar-se em

uma posição respeitosa e obediente face à Igreja.

Ao retornar à Itália, o pregador enfrentou diversos problemas, sendo o mais grave

deles, as decisões autônomas tomadas por seus seguidores durante sua ausência. Para resolver

parte do problema, estabeleceu uma regra aprovada pelo papa em 1223. Mesmo assim, antes

de sua morte, viu muitos de seus seguidores enveredarem por novos rumos. Dentre os

principais valores prezados por São Francisco de Assis temos:

a) A pobreza e a simplicidade. Vauchez esclarece-nos magistralmente acerca dos

ideais franciscanos em relação à primeira:

Assim se explica a sua hostilidade visceral face ao dinheiro, que ele proibia aos irmãos de receber e possuir. Isto porque a posse da moeda não confere apenas uma sensação de poder ilusória, falseia igualmente as relações entre os homens e situa os que possuem entre os opressores. Em conformidade com as idéias econômicas de seu tempo, o filho de Pietro Bernardone estava convencido de que a quantidade de dinheiro disponível no mundo era constante e que, ao enriquecer ou acumular riqueza se empobrecia os outros. (VAUCHEZ, 1994, p. 257)

Para imitar a Cristo, seu maior referencial, fazia-se necessário despojar-se de

todos os elementos materiais que desvirtuavam os homens semeando entre eles

desigualdade e contendas. Ora, a posse de dinheiro implicava em poder e este,

distancia os homens pelos sentimentos de cobiça e inveja que desperta. Por

isso, ao ingressar na ordem o candidato deveria distribuir todos os seus bens

entre os pobres, ficando apenas com algumas peças de roupa;

b) a mendicidade em conseqüência da pobreza. Ao contrário das futuras

acusações dos seculares essa mendicância não era sinônimo de parasitismo.

Cada homem deveria viver de seu trabalho, dividindo tudo com seus irmãos

de comunidade e recorrendo à esmola apenas quando não conseguisse suprir

suas necessidades por meio de seu esforço;

c) a obediência literal à sacra doctrina. Ao contrário dos teólogos de sua época

que viam as Escrituras como um grande símbolo a ser codificado, Francisco

traduzia da maneira mais simples possível o significado do Evangelho.

Embora nutrindo profunda admiração pelos teólogos via o saber com grande

cautela;

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d) a prevenção em relação aos estudos. Isso se explicava pelo fato de o

conhecimento também conferir status e poder observando que “[...] numa

época em que os livros valiam muito e eram ainda assimilados a tesouros, o

simples facto de os possuir não se arriscaria a colocar os irmãos ao lado dos

ricos e a conduzi-los à presunção, dando-lhes a ilusão de ter resposta para

tudo?” (VAUCHEZ, 1994, p. 258)

e) Obediência. Assim como o homem deve “pisar nas pegadas de Cristo” o

religioso deve seguir as prescrições de sua ordo. É certo que apesar de pregar

valores, em certa medida, originais para o seu tempo, Francisco de Assis

jamais se chocou com as autoridades do seu tempo, fosse das Escrituras ou

dos próprios homens da Igreja. Nesse sentido, aproximou-se de Ramon Llull

que além de também ter feito seguidores e criado um método próprio para

alcançar tanto as verdades da fé quanto as da razão, sempre se colocou a

serviço da religião cristã, jamais ficando à parte dela, mas antes, reforçando-a.

Ambos eram em certa medida místicos cuja “[...] obediência à Igreja exclui

qualquer servilismo e não deixa de reivindicar o apelo particular que Deus lhe

dirigiu” (VAUCHEZ, 1994, p. 260). Embora seus seguidores tenham

interpretado sua mensagem de diversas maneiras, ela ilustra a emergência de

novas formas de estabelecer o tão desejado elo entre Deus e suas criaturas.16

Por sua vez a ordem fundada por São Domingos17 dava uma atenção toda especial aos

estudos. Domingos reforçou a formação teológica de seus irmãos, dando-lhes uma preparação

específica para a pregação, prática rejeitada pelos primeiros freires menores. Além disso, os

votos de pobreza dos dominicanos eram menos rígidos. Outra diferença estava na própria

admissão dos membros nas ordens. Enquanto os pregadores eram membros do clero com 16 Colocamos aqui o termo “criaturas” respeitando o pensamento franciscano que incluía todas as formas de vida - animais, rios, plantas e a natureza de uma forma geral – como dotados do amor de Deus. 17 Nasceu em Caleruga, em mais ou menos 1170. Também de origem nobre, ingressou no clero desde a tenra idade, ficando desde já conhecido por sua caridade. Logo ao assumir o cargo de subprior teve contato com as heresias que naquele momento expandiam-se consideravelmente. Ao chegar no campo em companhia de um irmão foi mal recebido. Com isso, Domingos percebeu que a simplicidade era uma forma mais adequada de atingir as populações mais rústicas. Deixou seu cargo de subprior e mudou de tática, revestindo de conversão na imitação dos apóstolos, humildade e a prática da mendicidade, quase simultaneamente à execução da mesma prática pelos franciscanos. Daí resolveu então estabelecer-se em Tolosa, uma comunidade de irmãos com dois objetivos bastante específicos: converter os hereges, reintegrando-os à Igreja e suprir as insuficiências do clero secular. Esse é outro ponto diferente entre franciscanos e dominicanos. Os primeiros transformaram-se em uma ordem de forma espontânea. No caso dos últimos já surgiram submetidos a uma regra e antes de inovar, seguiam carismas já consagrados adotando a regra de Santo Agostinho.

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formação específica, os menores igualavam as funções de clérigos e leigos. Entre a ordem de

São Domingos:

[...] os conversos (religiosos não sacerdotes) que os assistiam eram remetidos para as tarefas materiais: assegurar a vida quotidiana dos conventos e ganhar o alimento dos irmãos clérigos indo mendigar. Parece que S. Domingos desejou conferir-lhes um poder importante no seio da ordem, confiando-lhes a inteira responsabilidade do aspecto temporal a fim de que os pregadores, livres de toda a preocupação, pudessem entregar-se unicamente a tarefas espirituais. Mas os seus companheiros opuseram-se. Ateve-se assim a fórmulas mais tradicionais, inspiradas em Cister e Prémontré, onde os conversos se achavam subordinados aos clérigos em todos os planos. (VAUCHEZ, 1994, p. 267).

No tocante ao lugar desempenhado pelos estudos e os livros na formação da

palavra pregada pelos dominicanos é válido afirmar que estavam mais sintonizados com a

nova realidade vigente nos séculos XII e XIII, que conferira aos intelectuais, um lugar todo

especial na sociedade. Apesar de ser bastante sensível à cultura e ao conhecimento, Domingos

não deixou obras escritas de grande vulto.

Depois de tais esclarecimentos fica mais fácil entender porque Ramon Llull ficou

em dúvida sobre qual ordem deveria ingressar. Embora uma leitura superficial possa

erroneamente sugerir uma semelhança exagerada a essas ordens (que não deixa de existir

quanto à espiritualidade), são patentes as diferenças na organização interna de cada uma, na

forma de ver o mundo e de colocar em prática seus carismas.

Se por um lado, Llull como os dominicanos primava por uma boa formação

intelectual que permitisse argumentar de forma convincente junto aos infiéis, a inspiração

franciscana parece ter sido extremamente marcante na decisão de Ramon em abandonar seu

lar e seus bens para pregar. O ponto causador dessa indecisão situava-se na Arte que o beato

temia muito que se perdesse, pois era a sua maior arma na realização do projeto de conversão

e o fruto mais direto de seu contato com Deus.

Mas no que consiste a Arte? Em um conjunto de obras produzidas ao longo de sua

vida. Mais que isso, trata-se de um método para alcançar verdades da razão e da fé, um

método lógico que visa a resolução de todos os tipos de questões, útil tanto na formulação

teórica quanto na aplicação teórica. Um método que fornecia leis gerais para todas as ciências

conhecidas na época. Um método com símbolos e conceitos próprios, mas, que uma vez

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compreendidos, poderiam ser utilizados da forma mais ampla e geral, como assim ocorria

com todo o conteúdo de seus demais escritos.

O beato propõe-nos uma ciência das ciências, um mecanismo em torno do qual possamos agrupar, estudar e explicar todos os outros conhecimentos. Além disso, sempre o faz olhando para dentro, isto é, fazendo referência ao coração artístico de sua obra. (BONNER, 200-?).

Essa tentativa de criação de uma ciência universal foi uma das originalidades de

Llull. Essa idéia foi retomada por muitos filósofos que viveram depois dele. O filósofo

acreditava que para chegar à verdade era preciso se desfazer de todos os pré-conceitos,

despojando-o de julgamentos prévios, ou seja, para chegar ao conhecimento, todas as

possibilidades deverão ser testadas. Por isso a utilização de autoridades era totalmente

desnecessária na aplicação do método luliano.

De uma forma bem simples podemos denominar como fazendo parte desse

conjunto a Ars compendiosa inveniendi veritatem ou Ars Magna (127-?), Ars demonstrativa

(127-?), Ars inventiva (1289), Tabula Generalis (1293), Arbre de Sciencia (1296), Logica

Nova (1303), Ars Generalis ultima (1308) e Ars Brevis (1308). O cerne da questão trazida a

tona pela Arte, fazia parte de um debate mais amplo, travado durante praticamente toda a

Idade Média, pelos homens de saber e ciência: a conciliação, o equilíbrio e as relações entre

fé e razão. Seriam elas complementares? Uma anulava a outra? Uma ajudava na compreensão

da outra? Ou negavam-se mutuamente?

Alguns estudiosos acreditam que a Arte luliana foi inspirada em algum modelo da

cabala judaica18. Isso porque nela Llull se utilizou de figuras e letras para expor as Dignidades

divinas e também consistia em um modelo combinatório que permitia diferentes resultados.

Os conceitos apresentados versavam sobre virtudes, vícios, sujeitos, perguntas e os princípios

relativos (da criação) e absolutos (Dignidades). De acordo com ele as Dignidades possuíam

um duplo movimento (ad intra e ad extra). Exemplificando esse pressuposto, citamos o caso

do próprio Deus que possuía uma atividade ad intra, a contínua relação ocorrida entre a

Santíssima Trindade e um movimento ad extra, a relação de Deus com os homens.

18 A Cabala era um sistema complexo que possuía duas vertentes chamadas de teúrgica e antropocêntrica. Para o nosso estudo, vale apontar que a Arte de Llull possuía uma certa semelhança com essa filosofia. Na Cabala era possível atingir-se o conhecimento de Deus através da meditação dos conceitos das sephiras. Estas se tratavam nada mais nada menos que das Dignidades divinas. Claro que em cada doutrina essas dignidades variavam, mas idéia geral era de que o conhecimento de Deus poderia ser atingido por meio do conhecimento de sua essência.

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Na Cabala existe uma combinação das vinte e duas letras do alfabeto hebreu. A

combinação e a permutação dessas letras permitia a apreensão das características e potências

de Deus assim definida por Souza (2005):

Permutar e combinar estas letras e depois pronunciar, anotar e contemplar o resultado destas operações (que valem para todo o alfabeto) levariam o místico a um estado de êxtase por comungar com as potências de cada letra e com o poder do signo formado pelas mesmas. Não obstante, esta escola utiliza este método para realizar exegeses bíblicas, formando proposições com a permutação de letras e palavras, bem como atribuindo às mesmas um valor numérico.

Ambos os sistemas são estruturados logicamente, com a combinação de letras e

figuras, acreditam poderem alcançar a verdade por meio de sua utilização e que a revelação de

Deus passa pelo conhecimento de suas potências. Também se utilizam de símbolos comuns

como a árvore, para facilitar a compreensão e a visualização dos conceitos e são

autoreferenciais. No caso da Arte de Llull a árvore é usada também como um recurso de

memorização dos conceitos.

A região em que Llull vivia, a Península Ibérica, proporcionava um contato entre

as religiões, filosofias e culturas das três religiões monoteístas da época. Embora Ramon não

tenha aprendido a falar o hebraico – não havia necessidade já que os judeus que viviam em

Maiorca falavam catalão, o filósofo aprendeu muito sobre eles. Ele teve o mérito de perceber

as peculiaridades tanto da cultura árabe quanto da judaica, absorvendo alguns de seus valores

e reutilizando-os de forma modificada em sua própria obra.

Assim, faz-se imprescindível demonstrar as correlações metodológicas entre a Arte luliana e a Cabala judaica, por acreditar que os métodos eram um modus operandi característico da época e da região em que ambas as filosofias coexistiram (SOUZA, 2005).

Um importante diferencial da obra luliana, especialmente se levarmos em

consideração o período em que viveu, é a ausência de citações à autoridades. Como já

exposto, o ensino medieval, suas discussões e comentários estavam todos pautados na

recorrência ás autoridades. Ela apresenta-se como uma espécie de “autoridade alternativa”,

uma vez que se trata de um sistema baseado na inspiração divina decodificada e racionalizada

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através de um método, que embora de conteúdo religioso, pouco ou nunca fazia menção à

Bíblia.

Também não fazia referência à cultura escrita do período, como as inúmeras

traduções gregas e comentários sobre essas obras, o que leva Bonner (200-?) a afirmar que é

espantoso o caráter “[...] ahistórico, abstrato, descontextualizado e autorefencial [...]” das

obras lulianas. Dos séculos XI ao XIV, lentamente vai se processando uma mudança de uma

transmissão de cultura por meio da oralidade para uma cultura escrita, fenômeno influenciado

diretamente pela recuperação de textos antigos e uma nova produção, resultado a um só tempo

da síntese e interpretação desses mesmos escritos. Essa produção era fragmentária pois,

Destarte, no ensino predominaram não as leituras seqüenciais dos textos básicos, mas as de florilégios e compilações não somente de sentenças, mas também de receitas espirituais, de decisões canônicas, de exempla para os pregadores, de vidas de santos, etc. Esta fragmentação pedagógica e intelectual acentuou-se ainda mais com a formação universitária medieval básica, que consistia, como se sabe, nas quaestiones disputatae.

(BONNER, 200-?)

A recorrência ao uso de autoridades acabava gerando problemas complexos dos

quais destacamos apenas dois: as contradições que surgiam entre reconhecidas autoridades na

mesma área e o retardamento de uma postura mais científica, uma vez que as autoridades

eram muitas vezes dotadas de uma infalibilidade que neutralizava questionamentos que lhes

fossem contrários, ou seja, muitas vezes as teorias formuladas deveriam enquadrar-se à letra

das autorictas.

Pode-se afirmar então, que a educação medieval era formada através do estudo e

comentário dos textos, recorrendo-se correntemente à esses mesmos textos para justificar

posições ou seja “[...] baseado na intertextualidade, que constituía a sua justificação e razão de

ser” (BONNER, 200-?). Llull colocava-se positivamente contra essa forma de construção do

conhecimento. Recorria às razões necessárias, inaugurando assim uma forma original de

condução das próprias disputas. O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma forma de

demonstrar de que maneira os debates poderiam ser prolíficos sem passar pela discussão de

interpretações textuais, mas de interpretações racionais. Em suas obras razão e fé não se

anulam, mas andam de mãos dadas. Somente contando com as duas juntas, o homem poderia

entender e amar a Deus.

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Podemos depreender disso, que a autoridade sugerida por Llull é a própria

autoridade divina. O homem (no caso, o filósofo), estava apenas no papel coadjuvante de

organizador do método, tornando-o inteligível aos outros homens, quer dizer, sua obra era em

certa medida autoreferencial, pois a base de argumentação racional utilizada por ele era

extraída de sua própria Arte.

Mesmo tendo conseguido a aprovação de sua obra em várias instituições de

ensino da época, inclusive a Universidade de Paris, após a sua morte, os seguidores de Llull,

não foram bem vistos justamente devido ao caráter independente de seus escritos. Naquele

contexto controlador no qual a Igreja atribuía a si própria o papel de única intermediária entre

Deus e os homens, qualquer livre interpretação acerca dos dogmas cristãos era tida como um

perigo para a unidade da instituição. Apesar de ser reconhecidamente um defensor da unidade

cristã,

[...] tal empresa, pela sua auto-suficiência e pela sua proposta de métodos alternativos, não apenas formava uma comunidade intelectualmente e espiritualmente isolada da sociedade bien pensant, senão que pela sua atitude aberta ou implicitamente crítica dos poderes públicos e da Igreja, naturalmente iria suscitar a oposição destes estamentos. (BONNER, 200-?).

Após esses acontecimentos, Ramon finalmente rumou para Túnis, iniciando assim

sua ação missionária entre os muçulmanos. Dirigiu-se inicialmente aos sábios islâmicos,

colocando em prática seu método, através de um debate por meio do qual pretendia provar

que a doutrina que seguiam era falsa, demonstrando as razões necessárias.

Nesse período algumas cidades da África praticavam o comércio com a Europa.

Em Túnis, por exemplo, existiam muitos mercadores maiorquinos com seus funduqs19 e uma

capela cristã onde vivia um cônsul. Llull não era o primeiro a pregar em terras muçulmanas.

Outras missões implementadas pelos membros das ordens mendicantes já vinham ocorrendo.

As tentativas de conversão se davam diretamente com os membros da elite local. Ao se

dirigirem aos líderes políticos e religiosos, os pregadores estavam demonstrando respeito e

primando pelas relações de paz e pelo comércio entre as cidades envolvidas. Ramon desejava

que todos compartilhassem de um amor devoto por Deus e tomassem parte na sua missão.

19 Locais onde funcionavam depósitos na parte inferior e hospedarias na parte superior do prédio.

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Buscou o tom conciliatório, norteando o diálogo primeiramente nos pontos

convergentes entre cristãos e muçulmanos ou seja: a crença no Deus único e na existência das

Dignidades divinas. Essas Dignidades eram chamadas hadras pelos místicos muçulmanos.

Estes místicos também participavam de um ritual chamado tariqa. Eram conhecidos como

sufis.

Nele, os islâmicos recitavam poemas de louvor, acompanhados de exercícios

corporais, respiratórios, de danças e músicas. Era uma forma de invocação, meditação e

tentativa de aproximação com Deus. O Livro do Amigo e do Amado foi inspirado na tradição

sufi:

Llull conhecia bem esta elevada forma de expressão religiosa. Em sua época, o sufismo espanhol estava bastante entrelaçado com o estudo da filosofia e dependia em boa medida do desenvolvimento do misticismo no norte da África (WATT, 1995, p. 157).

O beato sabia como se fazer ouvir, pois pregava utilizando tradições dos próprios

muçulmanos. Sua atitude de respeito frente aos artigos da lei de Maomé, já era um grande

diferencial em relação aos demais pregadores de sua época, que debatiam apontando inicial e

diretamente aquilo que consideravam como os erros dos infiéis . Usava o conhecimento do

outro, como uma arma na sua conversão, não utilizando-a no sentido de hostilizar, mas de ser

compreendido mais facilmente. A postura de Ramon Llull em relação às demais religiões não

foi sempre a mesma. Assim encontramos simultaneamente informações bastante ofensivas aos

muçulmanos na Doutrina Pueril e uma postura responsável e ponderada no Livro do Gentio e

dos Três Sábios.

Ele seguiu os cânones expressos no período para esse tipo de debate. Este

acontecia entre as autoridades de cada religião não envolvendo a população local. Havia é

claro, outras questões envolvidas. Essa postura de cunho estratégico possibilitava a paz nas

relações comerciais. “Para ello se exigía el respeto y La no ingerência em los asuntos

internos, los religiosos em primer término” (GAYÀ, 2005).

Ramon respeitava os padrões colocados e buscava situar suas ações dentro dos

códigos colocados pelas autoridades as quais recorria. É assim que irá redigir inúmeras

petições a reis e papas, expondo suas idéias, pedindo apoio para executá-las. Embora seus

pedidos tenham sido por vezes ignorados, não raro o filósofo obteve êxito em suas

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ingerências, como por exemplo a fundação da Escola de Miramar, a autorização para pregar

em mesquitas e sinagogas e a influência na organização de uma cruzada. E, ainda que não

raro se ressentisse em ser considerado louco, fantástico, era considerado por muitos como

sábio, o que é atestado pela sobrevivência do lulismo, séculos após a sua morte, persistência

meritória também aos seus discípulos.

Em suas duas viagens à África, Ramon defendeu sua fé, de forma distinta, com

um pensamento alterado entre uma e outra. Em Túnis, estava imbuído de otimismo, de

tolerância e respeito. Visava colocar na prática, o modelo de diálogo proposto em suas obras,

sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios. Em sua segunda viagem, ao norte da África,

dessa vez para Bugia, adota uma postura mais radical e pragmática sendo favorável às

cruzadas e entregando-se ao martírio.

Sua visita à Roma foi infrutífera. A despeito de todos os esforços, não conseguiu

ajuda para os seus projetos de conversão dos infiéis. Também sua segunda visita à Paris não

foi muito proveitosa. Teve oportunidade de mais uma vez ler publicamente sua Arte e ter um

contato mais direto com as questões debatidas principalmente nas faculdades de Artes e

Teologia, além de estabelecer elos com os cartuchos de Vauvert, os escritores de sua

autobiografia.

A partir de então, Llull passou a conhecer de perto os “erros” divulgados entre os

próprios cristãos. O filósofo, de conhecimento de teses condenatórias às novas idéias, acaba

rotulando-as sob a denominação “averroísmo”, ao qual se disporá a erradicar sobretudo em

sua terceira viagem à Paris.

Embora a idéia do martírio já viesse sendo gestada em sua mente há algum tempo,

Llull manteve-se ainda numa linha conciliatória travando debates e sermões com os

sarracenos que encontrava pregando nas mesquitas e sinagogas e direcionando novos escritos

para judeus e muçulmanos. Um outro acontecimento que muito provavelmente pode ter

afetado a postura luliana frente à maneira de conversão, foi a perda da Terra Santa. Pouco a

pouco, vai se tornando mais favorável às Cruzadas. Devido às suas muitas viagens chegou

mesmo a pensar em estratégias que poderiam ajudar os cristãos na retomada do território.

Apesar de sua idade avançada, Llull continuou viajando a fim de pregar aos infiéis

e durante este período nunca deixou de escrever. Mesmo a sua busca pelo martírio foi algo

que ele buscou, já com uma idéia do que poderia lhe ocorrer de antemão. Por isso escolheu

pregar entre os muçulmanos. Essa busca pelo martírio, vislumbrava dois propósitos: retornar

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às origens do cristianismo primitivo – morrer em defesa da fé era a garantia de acesso à glória

celestial – e servir como exemplo de conversão.

É notável que o caráter conciliador das ações do maiorquino estava cedendo lugar

a uma espécie de radicalismo. Assim é que ao fazer sua segunda viagem missionária à África,

afirma em árabe com altos brados que “a lei dos muçulmanos é falsa e errônea” (RAMON

LLULL, 1311b), causando obviamente um grande furor entre os islâmicos. Estes ao invés de

argumentarem com o beato (já conhecendo sua fama), acharam mais conveniente encerrá-lo

em um cárcere, reconhecendo que era difícil ou mesmo impossível refutar as razões

apresentadas por Ramon como esclarece o trecho a seguir:

Um dos legistas muçulmanos conhecia Ramon. Tinha escutado suas prédicas e viajara com ele de Gênova para Túnis: mesmo em alto-mar Llull não desperdiçava a chance de pregar e dialogar com os muçulmanos. O legista aconselhou que a Sura não o trouxesse ao palácio para ser interrogado pois ele tinha “tais razões contra nossa lei que será difícil, senão impossível, responder-lhe. (COSTA, 2001)

O dogma cristão da Santíssima Trindade era o fator que gerava maior litígio entre

cristãos e muçulmanos.20 Para estes últimos repartir um Deus em três era o mesmo que cultuar

o politeísmo. Diziam que Deus era um só e que Jesus Cristo não era Deus, mas apenas um

mensageiro Dele. E apesar de acreditarem nas Dignidades como hadras, não acreditavam

nelas da mesma forma que Llull as explicava. No pensamento luliano, todas as coisas estão

organizadas em trilogias, como reflexo, imagem e semelhança da Santíssima Trindade, como,

por exemplo, a alma, dotada de inteligência, vontade e memória. Portanto, podemos constatar

que mesmo os pontos convergentes entre as doutrinas como a crença nas Dignidades divinas,

geravam inúmeras discordâncias e atritos.

A primeira idéia entre as autoridades muçulmanas foi a de punir o beato com a

morte, o que não ocorreu graças à intervenção do cádi21 da cidade, que achou mais

conveniente encerrá-lo no cárcere. Ao ser conduzido para fora da cidade, sofreu inúmeras

agressões dos mouros que desejavam linchá-lo. Observe-se que o filósofo já se encontrava em

20 A Santíssima Trindade é a base da doutrina crista que crê em um Deus uno e trino composto de Pai (Deus), Filho (Jesus Cristo) E Espírito Santo. O Islamismo nega e recusa este dogma. Este ponto constituiu-se em um dos maiores problemas para Llull, posto que, tornava a lei muçulmana e a cristã inconciliáveis. 21 Representante do sultão, exercendo também as funções de juiz e notário.

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idade avançada (por volta dos 60), fator que parece não ter influenciado nem sua atividade

intelectual nem suas ações.

Nesse meio tempo, recebeu visitas de mestres muçulmanos que tentaram

convertê-lo ao islamismo. Llull permanece irredutível. Vendo que seus esforços eram em vão,

as autoridades decidiram expulsá-lo de suas terras. Antes porém, o maiorquino redigiu a

Disputa del Cristiano Ramon com el sarraceno Hamar. No navio rumo à Gênova ocorreu um

naufrágio, no qual Llull e outro viajante escapam com vida, mas seus livros são perdidos.

Sobre este ponto vale assinalar que, sendo um homem precavido, espalhava seus escritos

pelos diversos locais aonde ia. Por isso mesmo após o naufrágio perdeu somente alguns

exemplares, mas não teve sua obra destruída.

Ramon Llull não obteve sucesso na utilização do seu método apologético, não

chegando a conquistar seu grande sonho: a conversão dos infiéis. O maiorquino também se

preocupava deveras com a Terra Santa que se encontrava em mãos muçulmanas e com a

expansão não só territorial, mas também ideológica do Islamismo. A partir de então, apoiou as

cruzadas como forma de recuperar a posse de Jerusalém e possibilitar a conversão

muçulmana.

Paulatinamente, vai deixando de lado sua postura pacífica e conciliadora, presente

no Livro do Gentio e dos Três Sábios e nas primeiras obras escritas logo após sua conversão.

Ainda assim, não deixou a razão de lado e sempre colocou o diálogo como forma privilegiada

de contato. Embora imbuído dos preconceitos cristãos e da ideologia católica da qual fazia

parte, sempre adotou um comportamento próprio, diferencial dos seus contemporâneos, tanto

no método utilizado, quanto na postura adotada.

Apesar de não ter conseguido na prática implementar seu ideal de conversão, os ideais lulianos de comunhão e diálogo calcados na razão e na compreensão do outro em sua plenitude tornam sua mensagem sempre atual enquanto nesse mundo houver fé. (COSTA, 2001).

Sua terceira visita à Paris parece ter sido a mais proveitosa. Foi ouvido por

mestres e estudantes, recebendo uma carta de aprovação à sua Arte e a expressão de sua

compatibilidade com a doutrina cristã. Foi então que incluiu um novo alvo apontado como

erro tão grave quanto as religiões judaica e muçulmana: o averroísmo, linha de pensamento

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que, de acordo com ele, punha em dúvida o princípio da fé. Seu desejo era de que tais teorias

fossem extirpadas da Universidade de Paris.

Ramon Llull não só acreditava que fé e razão eram complementares como julgava

que os artigos da fé, podiam ser comprovados por meio da razão. Para ele, o real podia ser

atingido pelo homem através de um método. Esse método que relaciona vontade, lembrança e

entendimento é a Arte, onde a verdade é propriedade do real. Desse modo, era impensável

para esse filósofo uma doutrina que admitisse duas verdades, uma de acordo com a razão e

outro concordante com a fé. Para ele, os averroístas representavam um perigo mortal para a

unidade cristã e os defensores desta doutrina, tão perigosos quanto os muçulmanos.

Outra preocupação foi a unificação das ordens militares. Parece que Llull

manteve-se neutro nessas questões, apesar da gravidade que alcançaram. Foi a Ordem dos

Templários ao lado da Ordem dos Hospitalários, a única a impor o controle no caos que se

instalou na Terra Santa durante o período das Cruzadas. Os Hospitalários também eram

monges guerreiros que dividiam seu tempo entre orações e lutas, além de prestar assistência

médica aos peregrinos.

Estas ordens acabaram entrando em choque em algumas ocasiões, chegando a

serem concorrentes. A insistência de Ramon na unificação das ordens militares situava-se no

fato de que a perda de São João de Acre foi atribuída à desunião e brigas de poder entre essas

ordens. Não só ele como vários autores da época defendiam essa idéia. Uma ordem única

deveria ser chefiada por um rei.

Nesse período, os templários sofreram graves acusações e perseguições por parte

do rei da França. Ramon não se envolveu na questão da ordem dos Templários. Jaime II era

favorável a ordem, enquanto que o rei da França buscava de todas as maneiras destruí-la,

tecendo graves acusações contra Ordem, acusações estas, nunca comprovadas22

22 O surgimento da Ordem do Templo de Salomão ou Ordem dos Templários como ficou mais conhecida posteriormente foi conseqüência direta das Cruzadas. Sua finalidade era proteger os peregrinos que iam à Terra Santa, pois apesar da vitória militar a região continuou insegura e instável; as cidades conquistadas eram cercadas de muçulmanos. O fundador dessa ordem foi um cavaleiro chamado Hugo de Payns. A eles juntaram-se mais nove homens, oriundos em sua maioria da nobreza francesa. Os membros recebiam além da formação monástica, formação militar, jurando defender a fé cristã com suas espadas. Apesar dos votos de pobreza com o tempo porém a ordem enriqueceu devido às doações de terras e bens feitas por nobres. Gozavam de isenção de impostos e chegaram mesmo a se envolver em atividades financeiras como empréstimos, depósitos e investimentos. Os problemas dos Templários começaram quando o rei francês Felipe, o Belo acusou os membros da ordem de heresia. Embora as acusações não tenham sido comprovadas, muitos de seus membros foram presos ou mortos pela Inquisição. A maioria dos estudiosos desse conflito supõe que as graves acusações que o rei fez teve o propósito de se apoderar De suas riquezas. Com efeito, o rei francês tornou-se o soberano mais poderoso da Cristandade, usando sua influência inclusive para eleger um papa também francês, Clemente V em 1305. Para

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O Concílio de Viene, ocorrido em 1311 e convocado por Clemente V configurou-

se em uma excelente oportunidade para Llull expor suas novas idéias, sempre apresentadas

em forma de petições. Seus dez pedidos englobavam todas as questões que envolviam sua

missão, porém muitas delas ligadas aos estudos: fundação de escolas de línguas em Roma,

Paris e Toledo, perda das cátedras para os filósofos discordantes da teologia cristã e reformas

nos estudos de direito e medicina.

Outras solicitações diziam respeito à reconquista da Terra Santa, como a

unificação das ordens militares e estabelecimento de dízimo para financiar as Cruzadas. Por

fim, clama por um programa de pregação em mesquitas e sinagogas e a regulamentação de

prebendas e hábitos religiosos. Grande parte de suas petições foram atendidas, mesmo aquelas

referentes à Terra Santa.

Contudo, motivos mais circunstanciais pesaram também nestas viagens. No ano de 1285, Jaime II, rei de Maiorca e protetor de Lúlio, perdeu as ilhas Baleares ao aliar-se, contra seu irmão Pedro II, de Catalunha e Aragão, com Felipe IV o Belo, da França. É possível que Lúlio, sempre à procura de um protetor poderoso que o ajudasse na consecução de seus objetivos, preferisse Felipe IV da França a Alfonso II de Aragão, que, apesar de ser irmão de Jaime II, era também filho e sucessor de Pedro II. O certo, porém é que Lúlio viu-se forçado a abandonar sua ilha e a viver viajando pelo continente, sobretudo a Montpellier, ao sul da França, cidade onde fixara sua corte Jaime II. Nas suas idas a Paris, Lúlio procurou cativar o interesse da corte francesa para os seus projetos práticos [...]. (JAULENT, 2001)

Llull passou a mostrar-se favorável às Cruzadas depois da perda de territórios em

Jerusalém pelos cristãos. Mas com certeza a sua visão sobre esse movimento contrastava com

a dos demais homens de sua época. Para ele não deviam praticar o extermínio, mas a

conversão dos infiéis.

Numa primeira época, Lúlio afirmava que a evangelização dos infiéis deveria ser essencialmente uma obra de amor, realizada principalmente pela inteligência. Daí seu desejo de propor aos sábios e aos homens de cultura de outras religiões a verdade católica. Iluminar, assim, em primeiro lugar os espíritos a fim de preparar os corações para a infusão da graça. A conversão das almas, pensava Lúlio, não podia ser senão um ato de liberdade. Mais tarde, perante o fracasso de seus esforços pacíficos, aperfeiçoará a sua

maiores informações sobre os Templários sugiro as leituras de READ, Piers Paul. Os Templários: Imago, 2000.; BURMAN, Edward. Os Templários. Os cavaleiros de Deus: Nova Era, 1997. e DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo: Jorge Zahar, 2002.

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posição e afirmará que, se o adversário recusar o diálogo, a cristandade terá então o direito de o obrigar, pela força, a aceitá-lo. É isso o que nos dirá no seu célebre Liber de Fine23. (JAULENT, 200-?)

No seu Livro da Aquisição da Terra Santa, Ramon expõe as estratégias políticas e

militares que poderiam possibilitar essa conquista. Seu contato com reis e papas, bem como

suas viagens, davam-lhe uma posição privilegiada para distinguir e formular estratégias. O

primeiro passo seria a união entre a cristandade oriental e ocidental pondo fim ao Cisma

iniciado em 1024. Julgava que a união da cristandade possibilitaria um êxito mais rápido. Por

tudo isso, é fácil perceber que Llull não era um visionário. Ele sabia bem o que queria e como

alcançar. (RAMON LLUL, 1305)

Em sua terceira viagem missionária dirige-se à Sicília. Nesse momento as relações

entre Maiorca e Sicília eram as melhores possíveis. O rei de Maiorca era primo do rei da

Sicília e estes tinham estabelecido um pacto com Túnis melhorando as condições de

comerciantes maiorquinos. Desse projeto também fazia parte um plano de reforma religiosa

organizada por laicos e o clero diocesano. Jordi afirma que “[...] en tales circunstancias La

colaboración de Ramon Llull no podia sino ser bien recibida; y para Llull La ocasión era

uma nueva oportunidad que no podía perderse.” (GAYÀ, 2005)

Ramon compartilha da visão de que os laicos eram peças fundamentais no

processo de pregação, por meio de disputas com os infiéis, especialmente a classe dos

comerciantes, que devido à natureza de sua atividade tinham maior contato com os

muçulmanos.

As circunstâncias de sua morte são desconhecidas, mas provavelmente ocorreu em

Maiorca por volta de 1316.

23 Com relação ao Livro do Fim, pode ser dito que ele configura-se em um verdadeiro manual para a conversão dos muçulmanos e a conquista da Terra Santa. Seus capítulos vão expondo detalhadamente os passos que os cristãos devem seguir para conseguir tais objetivos, orientando de que forma os cristãos deveriam disputar com os sarracenos, contra os judeus, contra os pagãos, contra os heréticos e orientando de que forma os poderes temporais poderiam colaborar nessa empresa, a maneira que deveria se desenvolver a guerra, caso fosse necessário o uso da força, explicitando inclusive o lugar, os participantes e as estratégias a serem utilizadas.

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2.2 A obra luliana e sua propagação

O lulismo se estendeu por mais de trezentos anos e alcançou grande relevo

especialmente dentro do movimento renascentista. Isso é compreensível, se levarmos em

consideração que a obra e especialmente o método desenvolvido por Llull, ia ao encontro dos

anseios universalistas daqueles que viviam os novos ideais do Renascimento.

Seus manuscritos foram difundidos não só na Península Ibérica, mas em toda a

Europa. E sua produção foi tão vasta que, até recentemente (século XIX) muitas de suas obras

ainda permaneciam inéditas. Escreveu em catalão, latim e árabe. As obras escritas em árabe

foram perdidas, mas os escritos que foram conservados, fornecem uma grande fonte de

pesquisa para estudos nas mais diversas áreas (história, filosofia, teologia, botânica, zoologia,

pedagogia, entre outras), bem como se configuram em uma ferramenta de análise poderosa

para compreender o pensamento dos homens medievais.

Na contemporaneidade foram criados diversos institutos visando a pesquisa, o

conhecimento e a propagação dos escritos lulianos. Dentre eles, destacamos a Maioricensis

Schola Llullistica. Este centro criado nos anos trinta por diversos colaboradores deu o

primeiro impulso na expansão do lulismo para outros países. Graças ao empenho de Ludwig

Klaiber, bibliotecário na Biblioteca universitária de Friburgo que falava castelhano, catalão e

fazia muitos contatos com os estudiosos da Península Ibérica e de Friedrich Stegmuller,

catedrático de Teologia da Universidade de Friburgo, foi criado um novo centro de pesquisa

luliana dentro da universidade o Raimundus-Lullus-Institut que funciona até hoje, mantido

pelo Estado de Baden-Wurttemberg. Esse núcleo conta com o apoio financeiro tanto da

Universidade quanto de outras instituições alemães.

Esse interesse em desenvolver as potencialidades oferecidas pela obra de Ramon

Llull está presente também no Brasil. O IBFC (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência

Raimundo Lúlio “Ramon Llull”), possui vários estudos e informações sobre o lulismo,

promovendo encontros e intercâmbios, entre os pesquisadores de diferentes regiões do país.

Existem grupos de pesquisas lulianas formados na Universidade Federal do Espírito Santo

(UFES), Universidade Federal do Ceará (UFCE) e Universidade Estadual do Maranhão

(UEMA). O trabalho desses centros têm se mostrado extremamente prolíficos com a tradução

e publicação desses escritos.

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3. O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO NO LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS:

UMA APLICAÇÃO DA ARTE

Esta obra torna-se bastante complexa, não só pelo tema em questão, o debate

envolvendo as três religiões monoteístas da época, mas pelos conceitos utilizados para

demonstrar a doutrina de cada uma. A leitura da obra exige um conhecimento prévio sobre as

doutrinas em questão, a fim de compreendermos o quanto o maiorquino conhecia sobre elas e

quais os aspectos considerados por Llull, levando em conta que seu escrito é antes de tudo

um texto apologético.

A fé é a propriedade pela qual cremos naquilo que não vemos, não

compreendemos. Porém a fé por si só não basta para nos fazer crer em algo, mesmo quando o

fato está inserido no campo religioso. É necessária a razão para fundamentar o conteúdo da fé.

E é essa relação entre razão e fé que será explorada por Ramon Llull ao longo de toda obra.

Nela os três sábios tentaram provar por meio de argumentos racionais que sua fé era

verdadeira. De acordo com o filósofo é necessário entender para amar. A aliança entre o crer e

o entender é a marca registrada do autor, sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios.

Llull está inserido em um contexto de projetos missionários por parte da Coroa

catalano-aragonesa. A reconquista da ilha de Maiorca pelo rei Jaime I foi violenta, porém,

vista pelos cristãos como uma devolução dos seus territórios aos seus primitivos donos. Llull

estava vivendo em um local de confluência entre cristãos, judeus e muçulmanos. Estes

últimos viviam em condições desprivilegiadas. A maioria continuou a viver na ilha, mas sob a

condição de escravos, exceto aqueles que colaboraram com o conquistador.

Os muçulmanos tiveram suas mesquitas transformadas em igrejas, oficinas e

moradias (JAULENT, 2001). A conversão destes ao Cristianismo melhorava sua condição,

inclusive isentando-os do pagamento de impostos. Apesar de ter se dedicado com especial

atenção à conversão dos muçulmanos, Llull iniciou seu trabalho doutrinário com os judeus,

uma vez que julgava o Judaísmo mais parecido com o Cristianismo. Já os judeus gozavam de

uma relativa autonomia em Maiorca, conservando suas práticas religiosas, governo próprio e

uma boa organização, com economia estruturada.

A ação missionária vai modificando-se e de acordo com Bonner, a partir de 1263,

os cristãos passaram a tentar conhecer melhor o credo dos judeus e muçulmanos, utilizando

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seus próprios escritos para rebatê-los. Isso fez com que vários cristãos como Ramon Llull,

passassem a ler, estudar e conhecer as leis judaicas e muçulmanas. No Livro do Gentio e dos

Três Sábios, demonstra ser um hábil conhecedor destas doutrinas, o que fica expresso

principalmente nas perguntas que o gentio lança aos sábios destas religiões.

Llull era bastante favorável às disputas e debates. O Livro do Gentio e dos Três

Sábios é uma prova disso. Porém, o ponto diferencial do filósofo reside na forma como ele

acredita que deveriam ser encaminhadas essas disputas. Muito comuns na época, sobretudo

nas universidades, calcavam-se nas autoridades, sendo as principais delas Aristóteles, Boécio

e as Sagradas Escrituras.

Em todo o conjunto de seus escritos Llull jamais se utilizou do conhecimento

bíblico. Para ele era importantíssimo que a veracidade da doutrina cristã fosse comprovada

racionalmente e de forma argumentativa, condenando severamente o artifício de recorrer às

autoridades. (RAMON LLULL, 2001). Acreditava que mais almas poderiam ser convertidas

se o método utilizado fosse adequado. Faz alusão ao sultão Miramoli que desejava saber a

verdade, mas não a conheceu, uma vez que um cristão não soube demonstrar sua fé através do

que nomeia como “razões necessárias”.

Tais “razões necessárias” foram dadas ao maiorquino no Monte Randa em 1274,

ano em que foi escrito o livro. Nessa ocasião, ele desenvolveu seu método argumentativo, a

base de sua Arte com o intuito de aproximá-la o máximo possível do entendimento do maior

número de homens.

O filósofo concebe que a realidade é abrangente e dinâmica não podendo ser

abarcada pela idéia. Exemplo: uma cadeira em sua realidade exprime muito mais do que

qualquer idéia que dela possa se fazer. O conceito imobiliza e mascara a essência. É no

pensamento humano que irá se concretizar a união entre idéia e realidade. O ser humano

ajusta-se ao real na medida em que suas idéias são verdadeiras. Há, portanto, uma ligação

entre o ser e o conhecer. A realidade da pessoa irá determinar seu conhecimento.

Não há precisão quanto à data e local onde o livro foi escrito. Os estudiosos de

Llull especulam que ela foi escrita provavelmente em Maiorca para ser utilizada na escola

missionária de Miramar, entre os anos de 1274 e 1276.

O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma das primeiras obras escritas após a

experiência no Monte Randa e uma das primeiras nas quais Llull mostra objetivamente como

pode ser exercida e praticada a Arte. Trata-se de uma disputa, que embora semelhante às

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disputas ocorridas no meio universitário da época, é pautada em argumentos bastante

originais. Pode ter sido inspirada pela Disputa de Barcelona ocorrida em 1263. Não existem

documentos que possam confirmar essa influência, mas alguns indícios nos levam a crer nessa

hipótese.

Llull foi amigo do rei Jaime I vivendo boa parte de sua juventude na corte.

Algumas sessões ocorreram no palácio do rei. Curiosamente, a conversão de Llull acontece no

mesmo ano em que transcorreu esse debate. As idéias apresentadas no Livro do Gentio e dos

Três Sábios sobre o local, o desenvolvimento e a argumentação filosófica são bastante

próximas das condições reais do Debate de Barcelona.

O debate real foi bastante inflamado, como o eram em geral todas as disputas que

ocorriam naquele momento. Esse debate ocorrido em cinco sessões foi travado entre o rabino

Nahmânides e um judeu convertido ao Cristianismo, Paulo Cristão. O objetivo desses debates

embora nem sempre respeitosos, não era a condenação dos não-cristãos, mas o seu

convencimento. Os cristãos não mediam esforços para esse intento, uma vez que não

julgavam como verdadeiras as demais doutrinas.

Tendo como exemplo esse debate, o filósofo pôde engendrar, a partir do que

assistiu uma forma de disputa diferente, que resultasse mais proveitosa e racional e

possibilitasse um resultado favorável aos cristãos. Mais tarde, ele escreverá uma outra obra A

Disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), seguindo via de regra, os

mesmos cânones do Livro do Gentio e dos Três Sábios. Ambas se tratam de uma disputa, mas

enquanto na primeira ele travará um diálogo com um cristão que embora membro do clero,

está em pecado, na segunda seus interlocutores são um gentio e dois representantes de outras

religiões.

O Livro do Gentio e dos Três Sábios é uma obra mais extensa e bem elaborada,

dividida em um prólogo, que irá apresentar os personagens, as paisagens, a história em si, um

livro introdutório contendo os princípios que irão reger a disputa, seguindo-se de uma parte da

obra para cada sábio, expor sua doutrina. A disputa com Pedro é um escrito mais simples,

resumido e também mais dinâmico, pois enquanto na outra obra cada sábio aguardará sua vez

de falar, nesse debate as perguntas e respostas são imediatas e diretas.

Outra diferença é a própria receptividade daqueles que debatem. Os sábios do

Livro do Gentio, e também o próprio gentio, estavam imbuídos de boa vontade para escutar o

que lhes ia ser revelado. Mostravam-se dispostos a conhecer a verdade, receber e refletir sobre

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os pontos que estavam sendo tratados, quer dizer, eles não eram portadores da verdade, mas

estavam à sua procura. Essa característica está ausente no diálogo com Pedro, pois em toda a

obra fica bem explícito que o clérigo não está disposto a aceitar e refletir sobre o que Ramon

lhe diz, mas julga-se correto e por essa falta de humildade afunda-se ainda mais no próprio

erro.

A Disputa entre Pedro, o Clérigo, e Ramon, o fantástico é uma disputa bastante

breve, levando-se em consideração que as disputas medievais comumente seguiam-se por

dias. Ramon imaginou este debate quando estava a caminho do Concílio de Viene (1311),

onde iria apresentar suas petições. Com efeito, na narrativa, Llull e o clérigo encontram-se a

caminho do Concílio. Pedro ouvira falar que Ramon era um grande fantástico. Para nós,

fantástico, é um termo que designa algo maravilhoso, fora do comum. Para o medievo,

fantasia, era sinônimo de loucura, falta de senso. Para se certificar, inquire sobre o que

Ramon iria pedir no Concílio.

Llull expõe seus três propósitos básicos: fundação de escolas de línguas que

formassem pessoas que fossem pregar aos infiéis até converter a todos; o estabelecimento de

uma única ordem militar para restituir a Terra Santa e, a extinção da doutrina averroísta.

Diante disso, o clérigo concorda que Llull era realmente um louco, ao que ele rebate de forma

bastante serena que busca coisas possíveis e que além de realizáveis, dariam bons frutos.

Neste debate, a primeira parte é justamente para provar quem dos dois é realmente

fantástico. E como sempre ocorria nas disputas perpetradas por Llull, esta parte servia para

definir as diretrizes que orientariam a disputa. Assim sendo, iniciaram, partindo do conceito

do que era fantasia.

O clérigo e Llull começam então a falar sobre sua vida, o que vai informar a um

tempo, sobre as diferenças nos modos de agir, nas personalidades e nas metas de um e outro.

Enquanto o clérigo desejara tornar-se um homem rico, Llull fizera-se pobre por amor a Deus e

à sua missão. Da fala do clérigo, podemos tirar as seguintes conclusões: este, era movido pela

ambição e pelo apego aos bens materiais, inclusive usando sua posição para enriquecer a si e a

sua família, e ainda ia ao Concílio com o objetivo de subir à prelatura. Ora, desde aí,

percebeu-se que, embora sendo um membro do clero, Pedro estava corrompido pelas coisas

mundanas e em vez de estar voltado para Deus e o seu serviço, estava voltado apenas para si

próprio.

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Discutindo ainda sobre fantasia, Pedro afirma que Llull mesmo não conseguindo

seus objetivos, continuava a persegui-los em vão. O filósofo rebate mostrando que a maioria

dos homens, a exemplo do próprio Pedro, estavam mais voltados para as questões mundanas,

razão pela qual não obtinha a ajuda necessária para seus propósitos.

Outro ponto no qual o beato foi questionado diz respeito à Arte. Para Pedro parece

inverossímil um método único, aplicável a todas as ciências “[...] pois cada uma das ciências

tem seus próprios princípios” (RAMON LLULL, 1311a) ao que ele retruca que a Arte tem

princípios gerais comum a todas as ciências. O clérigo compartilhava da visão dos filósofos

de sua época que não acreditavam que a fé pudesse ser provada, como revela sua expressão ao

dizer que “[...] se a fé fosse demonstrável, perderia seu mérito, como tem sido dito, já que a fé

não tem mérito onde a razão humana lhe oferece uma prova experimental”.

(RAMON LLULL, 1311a).

O clérigo também se baseava nas autoridades, pois embora durante o debate com

Ramon, não tenha recorrido a nenhuma, diz que Ramon é um fantástico porque finge “[...]

possuir uma ciência altíssima e profunda que ninguém vos transmitiu” (RAMON LLULL,

1311a).

A explicação para a forma distorcida de Pedro compreender o mundo é que este se

encontrava desviado do que o maiorquino chama de “primeira intenção” que é amar e honrar

a Deus. Em todo o opúsculo fica claro que a vaidade do clérigo fazia com que ele buscasse

honrar somente a si próprio. Por isso estava em pecado, de acordo com a definição luliana de

que pecar “[...] é inverter a intenção para a qual foi criado”. (COSTA, 2005)

Por isso, mesmo sendo clérigo, Pedro se encontrava pervertido e a sua posição

dentro da Igreja tornava seu pecado ainda mais grave, pois “[...] quanto mais alto é o grau de

seu ofício, mais e mais é repreensível, pois atua maximamente contra o fim” (RAMON

LLULL, 1311a). Ora, um membro do clero viciado servia de exemplo tanto quanto um

virtuoso, mas era um exemplo ruim, que não deveria ser seguido. Como poderia converter os

infiéis se não dava bons exemplos?

O transcorrer do debate não altera a forma de pensar de Pedro. Ele encontrava-se,

partindo da lógica luliana em uma situação mais vergonhosa do que a do gentio do Livro do

Gentio e dos Três Sábios. Este último poderia alegar a seu favor, a ignorância em que se

achara por toda a vida. Pedro por sua parte, mesmo tendo conhecimento de tudo que Llull lhe

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apontara, colocava sua felicidade nas coisas terrenas, não se ocupando do ofício para o qual

fora ordenado.

Essa disputa é um bom exemplo do caráter reformador de toda a obra luliana.

Embora seu maior objetivo fosse converter os infiéis, o filósofo tinha consciência de que a

própria Igreja precisava de uma renovação e uma purificação nas suas práticas. Pedro, um

clérigo imaginário, representa todos os membros corruptos e desviados do clero. Embora

admitindo a fé cristã como verdadeira e defendendo que a Salvação só se daria através do

intermédio da Igreja, Ramon não ignorava que muitos de seus membros se esquivassem de

suas obrigações.

Tal disputa mostra a outra faceta de um debate. Enquanto no Livro do Gentio e

dos Três Sábios todas as idéias se desenvolvem em um clima harmonioso, respeitoso e mais

ainda, onde todos compreendem os argumentos de todos ainda que não concordem com eles,

na disputa com Pedro é demonstrada toda uma intolerância e ignorância. Tanto é que ao final

do debate entre os três sábios e o gentio, todos se separam satisfeitos e dispostos a repetir esse

exercício, quantas vezes se fizesse necessário para o conhecimento de qual fé seria a

verdadeira. Já o debate entre Ramon e Pedro, se encerra de forma inacabada. Sem argumento,

Pedro prefere retirar-se, recusando-se a continuar argumentando até provar o que dizia.

Portanto, O Livro do Gentio e dos Três Sábios é, sobretudo, o exemplo fornecido

por Llull de uma disputa ideal. Seus cânones estavam totalmente de acordo com o pensamento

de tolerância desenvolvido pelo filósofo e os princípios utilizados devidamente moldados aos

conceitos da Arte. É esta forma de diálogo que ele procurou utilizar em seus contatos com os

não-cristãos, mesmo que na realidade esta maneira de diálogo tenha se mostrado bastante

difícil de ser colocada em prática. O importante é que, sobretudo esta obra configura-se no

corolário dessa tentativa de compreensão mútua que o filósofo acreditava ser o ponto de

partida para a unificação de todos os homens em torno da religião cristã. (MERCANT, 1998).

Llull, a exemplo de todas as suas obras começa o livro dedicando todo louvor,

honra e glória a Deus. Enumera seus pecados, mas coloca explicitamente sua vontade e

empenho na salvação daqueles que erram.

Inicia deixando claro que seu livro é destinado ao entendimento dos homens

leigos, portanto antecipando que este será escrito da forma mais clara e sucinta possível.

Divide-se em seis partes: o prólogo, onde há apresentação do cenário e das personagens; os

quatro livros sendo que o primeiro tem a função de demonstrar os parâmetros que irão nortear

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a disputa entre os três sábios; nos demais seguem-se as exposições das doutrinas defendidas

por cada sábio. Cada um destes sábios terá que convencer através de argumentos lógicos que

a sua fé é a melhor.

Vale a pena destacar que o gentio, embora desconhecendo a existência da vida

eterna, não é um ignorante, mas um homem “muito sábio em filosofia” (RAMON LLULL,

2001, p. 42). Este sábio, sentindo aproximar-se da hora de sua morte, ficou mergulhado em

profunda melancolia, sabendo que logo teria que deixar este mundo e seus prazeres. Era

desprovido de conhecimento religioso. Então resolveu partir de sua terra natal e ir para uma

floresta a fim de consolar seu coração. A floresta no período medieval era tida como obra de

Deus, expressão de sua perfeição e bondade e lugar de refúgio para os homens. É no meio

dessa encantadora floresta descrita por Llull (cheia de flores, fontes, córregos e animais) é que

o gentio irá ter sua revelação.24

Caminhando neste local e averiguando tal beleza, mais ainda afundava seu

coração no desespero e na angústia, até que encontrou uma trilha. Esta trilha também foi

percorrida por três sábios. Esse grupo chegou a um bosque com cinco árvores. Essas árvores

possuíam flores que alegoricamente representavam Deus, as virtudes criadas e incriadas e os

vícios. Quem dá as explicações acerca das árvores, suas flores e de como estas combinavam

entre si, assim como suas condições é uma bela dama chamada Inteligência. Essas condições

podem ser resumidas em nove premissas:

1. A Deus devem ser atribuídas toda honra, glória e poder.

2. As virtudes divinas25 devem concordar entre si e possuírem a mesma importância

3. As virtudes criadas serão mais aprazíveis quanto mais significarem e

demonstrarem as virtudes incriadas.

4. Virtudes criadas e incriadas sempre deverão concordar entre si e;

5. Não poderão concordar com os vícios

6. O conveniente é negar os vícios e a contrariedade entre as virtudes e afirmar as

formas pelas quais tudo isso é captado pelo conhecimento humano.

24 Llull descreve a floresta como “eremitério” o que sugere que o autor também via este local como um lugar de encontro por excelência com Deus. Ricardo da Costa em seu artigo Ramon Llull e o dialogo interreligioso: cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: O Livro do Gentio e dos Três Sábios (c. 1274) e a Vikuah (c.1264) de Nahmânides sobre a Disputa de Barcelona de 1263, diz que o nome desse local é locus amoenus e é o lugar ideal para debates intelectuais. Coloca também que nessa obra o cenário é tão importante que acaba virando uma espécie de personagem. 25 Também denominadas como virtudes incriadas.

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7. As virtudes criadas também deverão concordar entre si.

8. O que for conveniente para aproximar o homem de Deus é verdadeiro; para

afastar é falso.

9. Que as virtudes mais amadas devem ser as mais contrárias aos vícios e os vícios

mais odiados os mais contrários às virtudes.

Os homens que possuírem discernimento para utilizar-se sabiamente das flores

das árvores alcançarão a Salvação. Desde o início, Llull coloca o desejo de unidade ao afirmar

através de um dos sábios como seria bom que todos os homens professassem a mesma fé e

fossem regidos por uma só lei. (RAMON LLULL, 2001). Também desde o início ele coloca

que as leis serão defendidas sem o uso de autoridades.

A descrição do gentio vai ao encontro dos padrões medievais do que seria um

sábio: magro, pálido, com grande barba e cabelos longos. Ao colocar os três sábios a par de

sua situação, rogou para que eles demonstrassem a existência de Deus e da ressurreição para

que pudesse sair do sofrimento em que se encontrava.

Decidiram então os sábios ajudarem ao gentio. Optaram por utilizar o método

revelado pela dama Inteligência, utilizando das flores das árvores para provar sua doutrina.

Chegaram a um acordo e passaram a explicar o que significavam as flores das árvores para o

gentio.

3.1 O debate ideal: a disputa como forma de alcançar a verdade e a unidade

A partir daqui, Llull inicia seu método de argumentação explicando de forma

detalhada as propriedades de cada flor. Seu princípio pauta-se na conveniência. Conveniência

é algo referente ao ser e o inconveniente ao não-ser. Utilizando a mesma lógica há a

conclusão de que tudo o que é bom é amável e tudo o que é mau, é odiável. Daí, portanto o

que é bom é também verdadeiro e conveniente. Essas flores correspondem às virtudes criadas

(justiça, fortaleza, prudência, temperança, fé caridade e esperança), virtudes divinas ou

incriadas (Bondade, Grandeza, Poder, Perfeição, Amor, Sabedoria e Eternidade) e vícios

(Gula, luxúria, acídia, soberba, avareza, ira e inveja).

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A seguir traçaremos um breve paralelo entre O Livro do Gentio e dos Três Sábios

e O Livro dos Anjos. Estas duas obras utilizam os mesmos princípios e conceitos e uma

auxilia no entendimento de outra. As virtudes e os vícios, por exemplo, servem para explicar

no Livro dos Anjos as semelhanças e diferenças entre Deus, anjos e homens. As virtudes

incriadas ou divinas se unem para formar Deus, estando presente n’Ele de forma infinita e

formando os anos de forma finita, inclusive distinguindo um anjo de outro, pela sua

quantidade. As virtudes humanas são as criadas, através das quais o homem combate os vícios

e se aproxima da vontade de Deus. (RAMON LLULL, 2002). Cada virtude criada se opõe a

um vício como demonstrado no esquema abaixo:

Tabela 1 – Virtudes e Vícios segundo o Cristianismo

Outro ponto importante é que o anjo é formado de três elementos: memória

vontade e entendimento. As três completam-se com a memória lembrando a Glória de Deus,

que é entendida pela inteligência para que este queira mais a Deus. No Livro do Gentio e dos

Três Sábios Llull estabelece essa relação também no homem. Amamos o que entendemos e

queremos o que amamos. Essa é uma das finalidades de seus tratados apologéticos. O gentio

passa a amar e querer a glória divina a partir do momento que tem conhecimento dela. O que

os sábios fazem na primeira parte do livro é mostrar como virtudes criadas, virtudes incriadas

e vícios, se combinam ou se opõem. Também demonstram ao gentio a existência de Deus e da

vida eterna.

Ao ser informado de tais coisas o gentio demonstra grande caridade, pois em seu

coração lamentou por todos aqueles que ainda se encontravam no erro, principalmente aqueles

de sua terra, além dos seus pais que já haviam morrido. Aqui o gentio faz um questionamento

VÍCIOS VIRTUDES

Gula Temperança

Luxúria Prudência

Acídia Fé

Soberba Esperança

Avareza Caridade

Ira Fortaleza

Inveja Justiça

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bastante crítico aos sábios. Por que estes não se apiedavam das demais pessoas que ignoravam

a existência de Deus? Nesse momento os sábios revelam que não acreditam na mesma Lei,

causando grande confusão e perplexidade na mente do gentio.

Nesse ponto, há um desentendimento entre os sábios que ficaram apontando os

erros dos outros sem chegarem a um acordo. Então, o gentio sugere uma disputa para que

pudessem chegar à verdade. Note-se que a preocupação com a verdade estava presente em

todas as disputas sendo sua principal finalidade. Para Llull, ela adquire ainda maior

importância na medida em que o verdadeiro condizia com o bom e o belo. No tratado

apologético aqui estudado as regras da disputa travada serão as nove premissas dadas pela

dama Inteligência.

Apesar do desentendimento inicial, logo os sábios voltam à cordialidade e o

respeito. A exposição de cada sábio seguirá a ordem cronológica na qual surgiram suas

doutrinas.

O Judaísmo é a religião monoteísta mais antiga da qual se tem conhecimento.

Embora existam atualmente judeus espalhados pelo mundo inteiro, o Judaísmo se faz muito

forte no Estado de Israel para onde muitos judeus têm migrado, desde antes de sua fundação.

A palavra Judaísmo advém de Judéia, capital do antigo reino de Israel. A religião é também

conhecida como mosaica devido ao papel que Moisés tem para os judeus.

A religião judaica é indissociável da História, uma vez que todos os

acontecimentos são marcados pela interferência ou vontade divinas. Consiste em um pacto

que Deus fez com seu povo escolhido, o povo hebreu, que mais tarde se tornaria o povo

judeu. Pode-se afirmar que foi aquela mais influenciada por circunstâncias históricas que

delinearam seus costumes e tradições. Por exemplo: a saída do Egito originou o ritual da

Páscoa; a guerra contra os filisteus impôs a necessidade da organização de uma monarquia

centralizada; a dispersão pelo mundo fez com que sua tradição oral fosse registrada no

Talmude, para que não se perdesse, ou seja, o Judaísmo buscou adaptar seus preceitos às

modificações que ocorriam em sua relação com os fatos históricos e sua relação com os outros

povos.

Os sábios concordam previamente que durante a exposição o único interventor

deverá ser o gentio. Isso deriva do pensamento luliano que acreditava estarmos mais aptos a

aprender quando estamos de boa vontade em relação ao que buscamos entender, “[...] porque

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pela contestação se origina a má vontade no coração do homem, e pela má vontade turba-se o

entendimento para a compreensão” (RAMON LLULL, 2001, p. 83).

Cada sábio vai defender os artigos de sua fé. O judeu é o primeiro e seus artigos

são oito:

1. Crer em um Deus único.

2. Que esse Deus é o criador de todas as coisas

3. Que Ele deu a Lei a Moisés.

4. Que Ele enviará o Messias para libertar os judeus de seu cativeiro

5. Crer na Ressurreição

6. Crer no juízo final quando Deus virá separar os justos dos pecadores.

7. Acreditar na glória de Deus e

8. Na existência do Inferno.

Um a um os artigos vão ser defendidos de acordo com as flores das árvores

escolhidas livremente pelo sábio. Destacaremos aqui os pontos principais:

No período medieval foi aceita pelos estudiosos a Teoria dos Quatro Elementos de

Empédocles e Aristóteles. De acordo com ela, os corpos terrestres possuem quatro estados:

frio, quente, seco e úmido que se unem em proporções diferentes formando os corpos. Estes

estados referem-se aos elementos terra, água, ar e fogo. A presença de cada um deles é que

determina as características, a saúde e o humor dos homens. (RAMON LLULL, 1275-1285).

Toda a criação terrena consiste na combinação e variação destes elementos. Assim

todos os sábios concordavam que o mundo formado de matéria efêmera não poderia ser

eterno

Ao falar sobre a criação, o judeu toca em um ponto bastante abordado por Llull

em outros de seus escritos: a eternidade do mundo. Ora, se o mundo é criado por Deus e como

tudo que foi criado tem início e fim, assim também o mundo é finito, pois se assim não o

fosse, se igualaria à infinitude de Deus o que não é possível, uma vez que o mundo é formado

de coisas corruptíveis.

O gentio questiona se Deus criou o mal. Este ao responder divide o mal em duas

categorias: o mal causado pela culpa e o mal causado pela pena. A pena aqui é vista como

concordante com a justiça e portanto criada por Deus para que através dela os pecadores

possam ser punidos.

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Vale a pena ressaltar que em diversos momentos da exposição do judeu o gentio

se revelou satisfeito com as demonstrações, sobretudo naqueles artigos que mais se

aproximavam dos dogmas cristãos. Ao explanar sobre a criação do mundo, o sábio cita

Aristóteles, porém não o utilizando como prova de seus argumentos, mas a título ilustrativo.

Já foi mostrada a grande influência de Aristóteles sobre os pensadores da época.

A Lei foi dada a Moisés através da Bondade divina que a deu de graça a fim de

restaurar o povo judeu em sua caminhada. E a deu por justiça, porque o homem só pode julgar

sobre aquilo que sabe. De posse da Lei, o homem pode discernir o que é bom ou ruim.

É importante frisar que o Deus dos judeus, Iahweh é o Deus da Aliança. A sorte

de seu povo está relacionada com o cumprimento dos preceitos estabelecidos na Torá. Ele é

uno, exige fidelidade total, o que pode ser percebido pela maneira como se dirige a seu povo:

Não tenhas outros deuses diante de mim. Não faça para você ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não se proste diante desses deuses, nem sirva a eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento: quando me odeiam, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos; mas quando me amam e guardam os meus mandamentos, eu os trato com amor por mil gerações (grifos nossos) (Ex 20, 3-6).

Baseado nesta passagem Scliar questiona se nesse momento o Judaísmo pode ser

considerado como um monoteísmo puro, pois ele admite a existência de outros deuses.

(SCLIAR, 1994). Mas é, sobretudo, um Deus próximo do homem que se dirigiu diretamente a

vários justos do povo hebreu como Abraão, Moisés, entre outros, orientando-os para que estes

conduzissem o povo segundo seus mandamentos.

Ao falar sobre a vinda do Messias, o judeu esclarece os principais pontos de

divergência entre a sua lei e a dos cristãos, inclusive começando daí a sua crítica à lei cristã.

Os judeus crêem que o Messias virá para retirá-los do cativeiro. Faz menção aos cativeiros

anteriores.

Os cativeiros citados pelo judeu equivalem justamente a dois importantes

momentos para a história do povo judeu: quando estes foram escravos no Egito e mais tarde

quando foram levados como cativos para a Babilônia. Estas narrativas encontram-se nos

livros do Êxodo e do profeta Isaías.

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O cativeiro é uma maneira de seu povo demonstrar devoção e amor a Deus, já que

mesmo sem saber por que se encontravam em tal sofrimento louvam e têm fé e esperança. O

judeu coloca o sofrimento como uma escolha que o povo de Israel fez com enorme

humildade, humildade tal que não existe nem nos cristãos, nem nos sarracenos que ele chama

de orgulhosos e soberbos e os têm como seus algozes.

O gentio não escuta de forma passiva, mas questiona e dá opiniões acerca do que

lhes falam seus interlocutores. No caso do judeu, por exemplo, ele exprime o pensamento de

que os judeus possam estar sendo castigados por algo que fazem julgando correto.26

No artigo seguinte “Sobre a Ressurreição”, o judeu revela as divergências sobre a

doutrina entre os próprios judeus. Estes estão divididos em três grupos:

Tabela 2 – As diferentes visões dos judeus sobre o Julgamento Final e o Além

Novamente o gentio irá repreender o judeu, replicando que seu povo não deveria

se achar dividido sobre algo tão importante.

O dia do juízo é o artigo seguinte e é a própria razão de ser das árvores. Se não

houvesse julgamento, não haveria diferenças entre bons e maus, nem entre virtudes e vícios.

26 Llull habilmente coloca esta dúvida na personagem do gentio. Na realidade o próprio autor acreditava que o sofrimento dos judeus advinha por não aceitar Jesus Cristo como Messias.

GRUPO 1

Aqueles que não acreditam na Ressurreição, uma vez que consideram que é impossível para o corpo corruptível do homem, retornar ao estado anterior ao da sua morte. Além disso, consideram o Paraíso como um local de deleite espiritual e não corporal, portanto, acham que é inviável que os homens lá comam e bebam.

GRUPO 2

Crêem que a Ressurreição se dará após o fim do mundo e em seguida reinará a paz e todos defenderão somente uma fé, que é obviamente a fé judaica. Isso acontecerá por algum tempo. Virão outros tempos em que todos morrerão e não haverá mais ressurreição do corpo, mas somente da alma.

GRUPO 3

Deste terceiro grupo participará o sábio, que acredita que todos ressuscitarão após o fim do mundo. Os maus serão punidos no Inferno, mas esta pena é temporária. Apenas uma pequena minoria que cometeu pecados gravíssimos ficará lá pela eternidade.

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A doutrina judaica assim como a cristã está alicerçada na crença deste julgamento. Ele norteia

as atitudes do homem em vida e por causa dele foi criado todo um código moral e religioso,

para que esse homem possa alcançar um melhor fim no dia da ressurreição. Nesse dia,

ninguém escapará de prestar contas. Segundo o judeu, nesse dia todos os homens verão a

Deus e receberão sua sentença publicamente. Todos saberão o que está reservado a todos “[...]

e tudo isto em um só tempo e em um só lugar”. (RAMON LLULL, 2001, p. 114)

O dia do juízo é a manifestação máxima da sabedoria, poder e justiça divinos.

Apesar das réplicas do gentio, os sábios lhe têm um amor piedoso, pois desejam que ele

conheça a verdade. Um exemplo disso é a forma de tratamento quase paternal com a qual se

dirigem a ele: “Amado filho, bem sabes [...]” (grifos nossos). (RAMON LLULL, 2001, p.

116).

Falando sobre o Paraíso, o judeu afirma que lá não existirão coisas corporais

como comidas, bebidas e mulheres. Os medievais consideravam tudo o que se referia ao

corpo e aos sentidos como corruptível e uma forma de condução ao pecado. É através das

sensações que o homem peca e cada vício está intimamente ligado com os sentidos.

Tabela 3: Conexão entre os vícios e os sentidos humanos

GULA Ligada ao paladar; comer exageradamente ACÍDIA Preguiça; descanso excessivo do corpo AVAREZA Sentimento de apego às coisas materiais

ORGULHO Ligada também ao sentimento; também chamado de soberba, é o sentir-se superior a outrem

LUXÚRIA Coração; deleite carnal IRA Coração; raiva incontrolável INVEJA Sentimento de cobiçar o que é do outro, também ligado à matéria.

Por isso é compreensível a lógica apresentada pelo judeu; se as coisas materiais e

corporais levam o homem a esquecer-se das coisas divinas, logo, o Paraíso deve ser composto

de coisas espirituais; alegria, cantos, orações, etc. A plenitude espiritual torna desnecessária a

busca por prazeres mundanos. Já no Inferno, os homens são punidos no corpo e na alma,

sentindo fome, sede, calor, frio e dor, para manifestar a justiça de Deus. E mais ainda: ao

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morrerem, os homens deverão necessariamente ter lembrança deste mundo, para que no outro,

saibam as razões de estarem sendo punidos ou recompensados.

A crença na existência do Inferno colabora para que o homem procure a retidão.

Sobre o Inferno, também existem diversas opiniões entre os judeus. Alguns acreditam que ele

se localiza no mundo em que estamos; outros no ar, outros em tormentos infindáveis e outros

ainda na perda da glória celeste.

O judeu encerra sua explanação afirmando que sarracenos e cristãos estão no erro

e admoestando o gentio que a maior pena está reservada para os que pecam conhecendo a

verdade.

Todos os sábios antes de iniciarem sua exposição rezam de acordo com os

costumes de sua religião. Por isso ao iniciar, o sábio cristão fez menção à Trindade Santa

através do sinal-da-cruz. Os artigos cristãos são quatorze, todos referentes a Cristo, sendo que

sete dizem respeito à sua natureza divina e sete à sua natureza humana. Adverte o gentio de

que os artigos cristãos requerem muita fé e inteligência para serem entendidos e cridos.

O gentio contenta-se com a explicação de apenas um sábio quando há existência

de pontos comuns. Por esse motivo o sábio cristão não precisou provar a existência de um

Deus único (artigo já provado pelo judeu), mas sim passou ao ponto seguinte, referente à

Trindade. Este é um dos artigos mais complexos da lei da cristã e um nos quais mais o sábio

se deteve ao explicar. Ramon Llull utiliza largamente em seus escritos a analogia. A analogia

é uma espécie de semelhança entre duas coisas. Llull faz isso a fim de facilitar o entendimento

daqueles que acessarão sua obra. Ao falar sobre a Trindade faz uso da seguinte analogia:

O mundo é dividido em animal, sensível e intelectual. Na natureza animal estão todas as coisas viventes e sensíveis, que são compostas de corpo e alma sensível. Na natureza sensível estão todas as coisas que são corporais e não tem vida. Na natureza intelectual estão os anjos, as almas e tudo aquilo que não tem corpo. E estas três naturezas constituem o mundo, que se compõem delas. Cada uma destas três naturezas tem seus indivíduos. E como isto é assim, por isso a Trindade de Deus e a Unidade são significadas pela unidade e trindade que se encontra em todas as criaturas. (RAMON LLULL, 2001, p. 137).

O cristão assim define Deus: “E que dois, amante e amado, provenha aquela outra

propriedade pessoal que seja amante e amada, e que os três, amantes e amados, sejam uma

Essência amante e amada em si mesma, sua infinita bondade e seu infinito poder”

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(RAMON LLULL, 2001, p. 140).

Ao falar sobre a bondade e a soberba, afirma que Deus tem infinitas as suas

Dignidades e ao doar um tanto dessa essência para outro ser, não fica incompleto e não há

alterações em seu Ser. Comenta sobre o livre-arbítrio. A escolha, a liberdade são dadas pela

bondade e sabedoria de Deus. Isto concorda com a humildade do homem. Portanto Deus não

cria o mal, mas deixa os homens livres para optarem entre o bem e o mal27.

Em Deus já havia obra, mesmo antes da criação do mundo. Isso tira o receio do

homem de chegar um tempo em que nada exista. Deus vive eternamente em si mesmo.

Quanto mais complexo é um ser, mais coisas podem ser entendidas sobre ele. É a partir disso

que o sábio diz que o homem pode entender mais de Deus sendo Este Três do que Um,

lembrando que o Deus cristão é a um só tempo uno e trino. Porém o outro lado da moeda é

que ao mesmo tempo quanto mais detalhes, mais escapáveis serão e portanto se entendemos

mais do mais completo também ignoramos mais. Aqui temos então um ponto importante:

quanto maior o entendimento do homem, menos ele recorrerá à fé, pois o homem deve

esforçar-se para compreender, mas recorrer à fé, naqueles pontos que não for capaz de

entender.28

O fato de haver três em uma só pessoa gera confusão na mente do gentio. Para os

humanos existe uma ordem entre o surgimento de cada coisa. De acordo com esta ordem, os

pais são anteriores aos filhos. Como explicar isso, dentro da doutrina cristã? O sábio replica

que devido à grande perfeição divina e à diferença de temporalidade entre a natureza criada e

a incriada, o processo de geração de Deus é diferente do humano. Como em Deus não há

início, meio ou fim, não há relação de anterioridade ou posterioridade Nele. Além de não

existir tal relação também não há mais nobreza no Pai, no Filho ou no Espírito Santo. Todos

são iguais.

Falando sobre a recriação29, o cristão explica que para que a bondade de Deus

fosse melhor expressa é que Este uniu-se à criatura tornando-se homem. Isto se dá para que

27 Essa é a resposta que o sábio cristão deu ao gentio quando este perguntou por que Deus com a sua bondade, não impede o mal de existir. É interessante que o gentio tenha feito esta pergunta a todos os sábios. 28 Chega a impressionar a maneira como Llull consegue sintetizar os pontos principais do Cristianismo. Além de explanar sobre estes complexos artigos da profissão de fé, ele menciona a questão do livre arbítrio e seu papel na salvação do homem, a importância da Virgem Maria na devoção dos fiéis, menciona a existência dos anjos, e o exemplo dos santos, a concepção do surgimento do homem e do universo na teologia cristã, enfatizando a paixão de Cristo ao dizer que existe maior perfeição em perdoar do que em criar.

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através da união entre Deus e os homens, estes possam ser absolvidos das culpas e dos

pecados. Se Cristo não tivesse morrido pelos pecados do homem, todos estariam condenados.

E afirma que há maior perfeição em perdoar a culpa do que em criar. Esse perdão é geral, pois

o pecado estende-se por toda a espécie humana.

A ira é contrária à misericórdia. O homem pode mortificar sua ira ao relembrar da

misericórdia cristã que com sua morte salvou o homem. Igualmente a esperança, fez com que

o homem seja mais forte contra as tentações. A espera da glória celeste faz o homem adotar

um melhor comportamento, mais condizente com as virtudes.

Apesar do respeito mútuo, os sábios vez ou outra criticam os fundamentos

religiosos dos outros. O cristão, por exemplo, chega a afirmar que os muçulmanos “têm

coração duro e um entendimento embotado, por isso não conseguem compreender a Lei

Cristã” (RAMON LLULL, 2001, p. 173). Ao descrever o Paraíso o cristão faz isso. Para ele o

homem não comerá, nem beberá na glória eterna. Seu deleite será espiritual e não carnal.

Nossa Senhora Santa Maria e todos os anjos, arcanjos, santos e mártires estão nessa glória que

não tem fim.

O papel de Nossa Senhora como mãe do Criador e mediadora é muito importante.

Ela é apontada como mulher justa e virtuosa. Na criatura, o nascimento se dá em virtude da

corruptibilidade do corpo feminino o que não aconteceu na Recriação. Jesus Cristo é filho da

perfeição (Deus) e de um ser imaculado (Virgem Maria). Llull mais uma vez utiliza-se da

analogia: assim como o sol passa pelo vidro sem corrupção ou alteração alguma, assim

também ocorreu na natividade de Cristo, sem alteração na virgindade de sua mãe.

A natividade de Deus é então melhor que a dos outros homens. O autor mostra

também ser influenciado pelo pensamento da época: para ele, o homem é superior à mulher

em sua natureza. Deus ao escolher Maria, exprime grande humildade pois deu tal honra a uma

mulher destituída de bens temporais.

Tanto o anjo quanto a alma racional são imortais30. Jesus ao morrer teve sua alma

separada do corpo, mas mesmo assim ela permaneceu ligada à divindade. A alma de Jesus

Cristo desceu ao Inferno com a finalidade de libertar Adão, os profetas e todos os justos que

morreram antes de sua vinda a este mundo.

29 O termo utilizado é recriação, levando em consideração que a primeira criação foi a de Adão. A recriação é o nascimento de Cristo. Adão trouxe o pecado e Jesus Cristo redime o pecado. 30 Ainda falando desse artigo o cristão coloca que o homem é superior ao animal porque é dotado de uma alma racional.

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De acordo com o princípio luliano da conveniência, Deus se fez homem,

morrendo para salvá-lo e significar o Seu amor para que com isso o homem não tenha seu

querer contrário ao amor divino.

O sábio cristão coloca em diversos pontos que o pecado original foi a gula que fez

com que Adão desobedecesse a Deus. Adão, portanto, rebaixou o homem a um estado de

vileza. Jesus Cristo é o restaurador, na medida em que veio para que voltasse a haver

concordância entre o homem e sua finalidade (amar e contemplar a Deus. Por isso – afirma o

sábio – é um erro que os sarracenos digam que Cristo não morreu, para dar-lhe honra. A honra

Dele está justamente em ter morrido pelo homem para que este possa ter esperança Naquele.).

A perfeição de Deus é manifestada na descida ao inferno sem sofrer dano,

tormento, nem corromper-se. Também sem sofrimento em sua alma. Este sábio acreditava que

a crença cristã é mais verdadeira que a dos judeus. O cristão colocou que crer que o Messias

já veio, está mais de acordo com a fé e a esperança do que crer que Ele ainda está por vir.

O corpo é ressuscitável assim como o foi o de Jesus Cristo. Para ilustrar suas

palavras o sábio utilizou o exemplo do próprio gentio. Ora, se este que estava triste ficou feliz

em ter a esperança na vida após a morte, imagina então sua felicidade agora em crer na

ressurreição. As almas racionais têm um local próprio para estarem. Este local não é o mundo

em que vivemos, por isso a alma de Cristo ascendeu ao seu lugar.

No último artigo, o cristão revela que o grande poder de Deus é manifestado no

julgamento. Pois somente Ele tem a propriedade de julgar todas as almas. O homem por ser

criatura, não possui tal capacidade, pois se a possuísse, não seria mais criatura e sim Criador.

A justiça e a sabedoria estão interligadas ao conhecimento da seguinte maneira: “[...] quanto

maior a sabedoria, tanto mais a justiça é dirigida a julgar sabiamente, e tanto mais longe está

da ignorância” (RAMON LLULL, 2001, p. 195).

É interessante perceber que tanto a doutrina judaica quanto a cristã estão pautadas

na culpa do homem. De acordo com ela, é que um homem ganha ou perde sua salvação. Aqui

mais uma vez o cristão afirma ser sua religião melhor que as demais, reiterando que em

nenhuma outra, tantos homens se sacrificaram ou dedicaram sua vida por amor a Deus. Esses

homens (religiosos e mártires) desprezaram as coisas mundanas. Para ele a justiça e a

misericórdia são manifestadas no povo cristão porque:

a) o Deus homem, esteve ligado à pobreza;

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b) os cristãos que pecam terão maior pena do que os infiéis que pecam, pois estes

não O conhecem e em decorrência disso;

c) também serão perdoados de maiores pecados que os demais homens.

É necessário que o juiz supremo seja Deus e homem, para que sua sentença possa

ser vista e compreendida pelos homens. Ao concluir, o sábio coloca que o homem tem “a

memória para lembrar, o entendimento para entender e a vontade para amar a Deus e às suas

obras”.31 (RAMON LLULL, 2001, p. 199). Ele lembra que estão disputando de uma “nova

maneira”, o que demonstra que Llull expõe aqui, como acreditava que deveriam acontecer as

disputas reais. Sua disputa imaginária (dos três sábios querendo provar a veracidade de sua fé)

é nada mais nada menos que uma sugestão de como Llull desejava que fossem os debates

reais na sua época.

Todos os sábios iniciaram a oração conforme seu costume. O sarraceno lavou

partes de seu corpo, ajoelhou-se e beijou a terra. Os artigos de sua crença são doze: crer em

Deus como criador e em Maomé como profeta, no Alcorão como lei, na pergunta do anjo ao

homem morto em sua tumba, na morte de todas as coisas com exceção de Deus, na

Ressurreição, na exaltação de Maomé no dia do juízo; no juízo final e na existência do Paraíso

e do Inferno.

Cada uma das religiões monoteístas escolheram homens que passaram a ser

símbolos de fé e confiança e mensageiros de Deus. Moisés para os judeus, Cristo para os

cristãos e Maomé32 para os islâmicos. Estes homens foram exemplos, referenciais e os

responsáveis pela Lei e os artigos adotados por cada religião. A particularidade cristã é que

Cristo é tido como mais que um mensageiro de Deus. Ele é a encarnação do próprio Deus.

Vale mencionar que o Judaísmo e o Cristianismo exerciam influência em boa

parte do Oriente Médio. Assim, o profeta do Alcorão, deu origem a uma nova religião, mas

31 Tal como é explicado no Livro dos Anjos (1274-1283), cujo conceito já fiz menção anteriormente. 32 Maomé, Mohammed ou Muhammad é considerado o fundador da religião islâmica. Ele nasceu em Meca, Arábia, no final do século VI, ficando órfão ainda na infância; foi entregue aos cuidados de um dos seus tios, Abu Talib. Na Arábia de sua época, a sociedade organizava-se de acordo com o sistema tribal. Esse sistema era regulado pelos laços de sangue. Dessa maneira, o assassinato de um dos membros de uma tribo era vingado por meio do assassinato de um membro da tribo do assassino, o que desencadeava uma série de rixas sangrentas. Não havia outro código e as leis da tribo eram as únicas e no caso de serem transgredidas, resultavam no afastamento do membro desobediente. Essas tribos cultuavam várias divindades, sendo a principal a pedra negra de Meca que recebia visitas de peregrinos. Assim, Maomé com sua doutrina, instaurou não só um novo modelo religioso, mas também uma nova organização política, através de meios tanto diplomáticos quanto militares, conseguindo unificar a Arábia sob um só domínio e religião, um feito notável, considerando-se a grande fragmentação político-religiosa dessa região.

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também recebeu elementos das duas religiões abraâmicas já existentes como nos esclarecem

Gaarder; Hellern; Notaker (2000, p. 120):

Os judeus se estabeleceram em toda a Arábia depois da queda de Jerusalém e da destruição do Templo, no ano 70 d.C., e aos poucos passaram a adotar a língua e o estilo de vida árabes, ao mesmo tempo que mantinham sua própria crença e seu culto mosaico. Também o cristianismo se espalhou rapidamente por todo o Oriente Médio durante os primeiros séculos da nossa era. Havia Estados cristãos como a Abissínia (atual Etiópia). Muitas tribos beduínas se converteram ao cristianismo, e era possível encontrar cristãos entre os escravos e as camadas inferiores em Meca. Provavelmente foram os monges e eremitas cristãos, os quais viviam isolados do mundo no deserto da Arábia, que exerceram a maior influência sobre Maomé.

No primeiro artigo: “crer na existência de um só Deus”, embora o gentio dissesse

já ter compreendido através da fala do sábio judeu, assim como o cristão fez questão de

explicar que seu Deus é uno e trino, o sarraceno também quis esclarecer que o seu Deus não é

composto.33

Na explicação do segundo artigo “criador” o sarraceno diz que Deus criou todas

as coisas, inclusive o mal e a culpa. Essa pergunta já tinha sido feita pelo gentio aos outros

sábios; a resposta do sarraceno é que foi diferente. Por isso, o gentio irá refutar dizendo que

este está indo contra as condições das árvores, uma vez que se Deus tivesse criado o mal e os

vícios, isso seria contrário à sua Bondade e Justiça34.

A obra O Livro do Gentio e dos Três Sábios, mostra com clareza o

posicionamento luliano. Este combatia mais aos sarracenos do que aos judeus. É

perfeitamente verificável que o sábio mais contestado pelo gentio é o sarraceno. De acordo

com este sábio Deus também teria deixado alguns homens no erro para que aqueles que estão

na verdade35, estejam aptos a exortar e converter aqueles que ainda não estão no caminho

certo.

O sábio afirma que por prudência, Deus mandou homens em diferentes épocas,

para que as mudanças e costumes se adequem para melhor servi-Lo. Mais uma vez o gentio

33 Para os muçulmanos a divisão de Deus em três pessoas configura-se em um politeísmo. 34 Parece ilógico que Deus tenha criado o pecado, se, mais tarde, no julgamento irá condenar o homem por pecar. 35 Entende-se nesse contexto por verdade a existência de um Deus único e da glória da Ressurreição

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discorda do sarraceno, argumentando que Deus não poderia enviar um profeta contra outro,

nem renegando o que já foi dito.

Se o Cristão colocou que na pessoa de Cristo, Deus revelou a humildade através

de sua pobreza, o sarraceno também afirma que Deus revelou humildade e sabedoria ao enviar

Maomé para revelar sua Lei, já que foi um homem “leigo e sem letras”. Considera o Alcorão

como o livro mais belo já escrito que “[...] nem os anjos, nem os demônios poderiam fazer

[...]” (RAMON LLULL, 2001, p. 208).

Ao discutir o Alcorão, o sarraceno toca no “calcanhar de Aquiles” de judeus e

cristãos. Diz que Jerusalém embora sendo uma cidade sagrada para eles foi entregue por Deus

nas mãos dos sarracenos “e nela se lê o Alcorão e nenhum outro livro nem nenhuma lei é ali

tão honrada como o Alcorão” (RAMON LLULL, 2001, p. 208). Para o sábio esse fato é uma

comprovação do poder e da justiça de Deus.

Também é prova da sabedoria de Deus ter enviado o Alcorão, pois através dele, o

homem toma conhecimento da existência de um Paraíso com grandes riquezas e mulheres

para que na terra não inveje os outros.

Mais uma particularidade da fé muçulmana é que estes crêem que o homem ao ser

morto e sepultado dois anjos de Deus lhes fazem cinco perguntas:

1. Quem é Deus?

2. De quem é a sua Lei?

3. Qual a sua Lei?

4. Maomé é profeta?

5. Meca está ao sul?

Sobre estas perguntas, bem-aventurados serão aqueles que responderem: é o meu

Criador, minha lei é a de Deus, Maomé é mensageiro de Deus e sim.

Falando sobre a morte, o sarraceno fez a seguinte associação: IMPERFEIÇÃO =

mortalidade e PERFEIÇÃO = imortalidade. Por isso todos os seres viventes morrerão,

inclusive anjos e demônios, mas todos reviverão. Para ele “[...] a prudência pode ser maior em

conhecer a morte, maior caridade pode existir naquilo que retornou da morte para a vida que

naquilo que nunca morreu.” (RAMON LLULL, 2001, p. 216).

Sobre a ressurreição este diz que a terra será muito branca e haverá grande calor e

os homens suarão de acordo com os seus pecados. Os anjos descerão de céu em céu, até que

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Deus venha fazer o julgamento. Tudo isto após quarenta dias e do toque da trombeta do anjo

Serafim.

No oitavo artigo, o sarraceno demonstra a grande estima, respeito, admiração e fé

dos seus para com Maomé. Quando Deus estiver julgando, ele será o único justo a rogar pelos

homens e Deus o ouvirá. Mais ainda, afirma que nem Adão, Noé, Abraão, Moisés ou Cristo

terão coragem para fazê-lo, inclusive dizendo que Cristo não será digno para tal, por ter

deixado que os povos o adorassem como se fosse Deus. Pela prece de Maomé, homens serão

retirados até mesmo do inferno.

Associa a ciência à soberba, por isso Deus ouvirá Maomé, um homem sem

ciência.36 Na Idade Média era comum que os mestres ensinassem seus estudantes a serem

humildes não desprezando nenhuma forma de conhecimento e aprendendo com todos, não se

julgando melhor que os demais após ter alcançado o conhecimento. (COSTA, 2003)

Julga que os sarracenos têm mais fé e esperança do que judeus e cristãos, por

acreditarem que pelas preces de Maomé, sairão do inferno. Mais uma vez o gentio discorda,

afirmando que, com efeito, se as coisas transcorressem de tal forma “Deus amaria mais uma

fé e esperança grandes do que uma perfeição e uma justiça grandes, e isto é impossível.”

(RAMON LLULL, 2001, p. 221).

O sarraceno explica que todos prestarão contas, inclusive animais e aves, para

espanto do gentio que não vê o porquê de seres sem discernimento, terem que prestar contas,

ao que o sarraceno respondeu que estes servirão de exemplo para os homens pecadores que

desejarão não existir.

Curiosamente ao falar sobre a pesagem dos pecados que o sarraceno chama de

“males”, indica a existência de um lugar entre o Paraíso e o Inferno, onde ficarão os homens

cujos bens igualarem-se aos males que cometeram37.

O caminho o Paraíso será “estreito como um fio de cabelo”, e a velocidade com a

qual cada homem passará, será o reflexo do seu merecimento à glória e se não merecer cairá

deste lugar para o inferno. Quanto mais trabalhos o homem tiver para alcançar o Paraíso, mais

será amado por Deus e menos sentirá penosos os seus esforços.

36 É importante frisar que o conceito de ciência não era ponto comum entre as mentes da época. Cada intelectual dividia o conhecimento de acordo com sua própria perspectiva. 37 A noção lembra um pouco a do Purgatório cristão. Nem todos os cristãos e religiosos acreditavam na existência do Purgatório. Nos escritos de Llull, por exemplo, não encontramos menção a esse local.

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A glória celeste está dividida em duas: a espiritual (ver Deus, amá-Lo e

contemplá-Lo), tal como cristãos e judeus acreditam e a corporal, ligada aos sentidos. Aqui

está uma das principais diferenças entre sarracenos e cristãos. Estes últimos vêem os sentidos

como empecilhos para alcançar a glória divina e são condutores do pecado. Apenas no inferno

serão utilizados, como castigos dos injustos.

O sarraceno diz que o homem verá belos palácios de ouro e pedras preciosas,

lindos tecidos, donzelas e natureza exuberante. Ouvirá cantos de anjos, homens e mulheres

louvando a Deus. Poderá também falar com seus amigos. Cheirará odores agradáveis,

degustará iguarias, frutas e manjares de todo o tipo e sentirá prazer corporal ao unir-se com

virgens dadas por Deus. E de acordo com a glória uns terão mais mulheres que outros. Essas

mulheres jamais envelhecerão e permanecerão sempre virgens, mesmo após terem se unido

aos homens.38

O gentio questiona se ocorrerá o mesmo com as mulheres, ao que o sábio nega,

afirmando assim como o cristão, que Deus deu maior honra aos homens do que às mulheres.

Após ouvir os três sábios, o gentio começou a repetir tudo o que lhe haviam dito.

Esse ato revela um traço da pedagogia medieval, o da repetição para melhor fixar o conteúdo

aprendido. Segundo Costa o próprio termo decorar, de cor, significa de coração, ou seja, os

homens aprendem com mais facilidade as coisas que amam ou têm no coração. Esse ato do

gentio alegrou e honrou os sábios que através deste gesto perceberam a importância que ele

dera às suas palavras, afirmando “[...] que não tinham falado com um homem sem coração,

nem ouvidos”. (RAMON LLULL, 2001, p. 237).

Seguindo-se a isso o gentio, que agora não mais o era, faz uma bela oração

semelhante a um salmo, exaltando a Deus e pedindo-Lhe perdão pelo tempo em que havia

passado em ignorância. Também exaltou as virtudes, desejando-as para seu coração,

rechaçando um a um os vícios mortais. Reconheceu agora chorar de alegria e não pela

angústia em que se achava anteriormente. Os três sábios que o observavam tiveram piedade e

ao mesmo tempo culpa "[...] porque reconheciam que o gentio concebera em tão pouco tempo

maior devoção para louvar o nome de Deus do que eles que por muitos anos tiveram

conhecimento de Deus." (RAMON LLULL, 2001, p. 244).

38 Nessa parte o sarraceno explica que alguns povos não têm essa visão da glória, mas que estes não merecem crédito por serem estudiosos de Lógica e Ciências Naturais. O sábio demonstra um profundo desprezo por essas áreas e chega a afirmar que estes povos para os sarracenos não passam de hereges.

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Quando o agora ex-gentio quis expor por qual lei havia optado, os sábios

discordaram. Cada um preferiu pensar que ele escolhera a sua lei, afirmando que se isso lhes

fosse revelado, não teriam mais “verdades a descobrir”.

A separação entre o ex-gentio e os sábios foi muito sugestiva. Depois de ser

abençoado pelos sábios, ele encontrou dois gentios de sua terra e supomos que este transmitirá

a eles tudo o que aprendeu e julgou correto.

Os sábios por sua vez firmaram um pacto: chegarem a defender uma mesma fé!

Mas aquela que fosse a verdadeira. E para descobrir isso iriam disputar todos os dias,

seguindo a maneira que haviam disputado em testemunho do gentio. Pediram perdão um ao

outro caso tivessem ofendido suas leis e combinaram “[...] o lugar e a hora onde debater, e a

maneira como se honrar e servir e disputar; e o modo de, quando tivessem concordado e unido

em uma fé, irem pelo mundo dando glória e louvor ao nome de nosso Senhor Deus.”

(RAMON LLULL, 2001, p. 248).

Llull esclarece que os sábios cumpriram sua palavra e ao concluir seu livro, mais

uma vez, coloca que o objetivo de seus escritos é a busca pela verdade e traz um pedido:

“despertar os que dormem”, para que estes possam contribuir com a sua causa. É provável que

aqui, o nosso filósofo esteja se referindo aos reis e papas de sua época para que estes o

ajudassem nas três metas que estabelecera para a sua vida e que é a mesma meta alcançada

pelos sábios da obra: ir pelo mundo livrando os homens dos erros e conduzindo-os a Deus.

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CONCLUSÃO

Os historiadores que trabalham com religião e religiosidade têm dificuldades em

encontrar um conceito que se adeqüe a todas as formas de expressão religiosa nos mais

diversos tempos e contextos. O conceito norteador neste trabalho foi apresentado por C. P.

Tiele (1830-1902) no qual a religião implica em uma relação de dependência entre o poder

natural e o sobrenatural e o sobrenatural, sendo o primeiro submetido ao segundo. Essa

relação se expressa através das emoções (amor, confiança, medo); conceitos (doutrinas,

crenças) e ações (ritos e princípios éticos).

A religião traz um conjunto de regras morais e éticas, que direciona o

comportamento humano; é antes de tudo uma filosofia, que busca explicar o mundo e o

próprio homem, de onde viemos, para onde vamos; marca as relações do ser humano com a

natureza e o divino; coloca a noção de que o ser humano existe porque foi criado por um ser

divino e transcendental e deve explicações sobre seus atos em todos os níveis de sua

existência. É uma necessidade humana, uma resposta para o mistério da vida.

Antes de tratar sobre as três religiões incluídas no debate do Livro do Gentio e dos

Três Sábios tentei dar um panorama geral sobre a doutrina, a organização, a experiência e é

claro, o desenvolvimento de cada uma no decorrer da História.

Ao falarmos sobre Ramon Llull podemos destacá-lo como um homem que

colocou em prática o princípio da tolerância, uma vez que esta consiste em respeito. Não

implica no desaparecimento das diferenças, nem na anulação de sua própria crença. Está

relacionada com a coexistência pacífica, até mesmo porque a religião não se relaciona

somente com a espiritualidade desenvolvida por cada indivíduo, mas influencia diretamente

nos demais aspectos da vida dos crentes.

A religiosidade tem se manifestado de uma forma nova na contemporaneidade. É

notável que muitos indivíduos recebam influências e se identifiquem com mais de uma

religião, ou no mínimo tem procurado conhecer melhor outras doutrinas, a exemplo do que

Llull fez em sua época.

Assim como a intolerância gera conflitos no âmbito religioso, o despotismo

provoca prejuízos políticos. A democracia é abandonada em nome de ideais revolucionários

de mudanças sociais que acabam resultando em frustração, abuso e uma busca pela

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aniquilação de opositores. A democracia permite a liberdade e a livre expressão entre aqueles

que a adotam.

As posições radicais sejam políticas, sejam religiosas tendem a extremos

perigosos: a ditadura e o fundamentalismo, que em diversos momentos da História levaram a

humanidade a guerras insanas e derramamento de sangue. De fato, os últimos levantamentos

estatísticos têm sido reveladores a respeito deste tema. Milhões de pessoas foram mortas em

situações de não-beligerância em regimes totalitários e autoritários.

E é um fato notável que autoritarismo político e intolerância religiosa quase

sempre andam de mãos dadas. A segunda surge na maioria das vezes como uma conseqüência

da primeira, embora a questão da tolerância religiosa esteja intrínseca ao pensamento

individual e a experiência de vida de cada indivíduo. Ela é um valor que pode ou não ser

adotado e mais do que isso, uma postura e uma prática de respeito às diferenças.

Os atentados terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos, motivados por

questões religiosas, trouxeram abalos políticos e econômicos aos norte-americanos, inclusive

ao ideal democrático do qual seu governo julga-se portador. O exercício de poder deste país,

deve se direcionar àqueles que realmente possam se constituir em uma ameaça à paz mundial.

Se fizer isso de forma arbitrária desrespeitando as regras internacionais que sua própria nação

ajudou a formular, estará se igualando aos próprios que combate.

Por outro lado é preciso distinguir com clareza e racionalidade quem são os

verdadeiros inimigos. Dessa forma é necessário ponderar que o fundamentalismo é um

fenômeno que pode ocorrer em qualquer religião, não sendo característica peculiar do

Islamismo e que ele corresponde apenas a uma ala, uma minoria dos muçulmanos.

A própria idéia de que Maomé tem sido favorável aos atentados de 11 de

setembro é absurda, pois o Profeta nunca apoiou massacres indiscriminados. A palavra islam,

significa “submissão total e incondicional a Deus e está relacionada com Salam, “paz”.

Atualmente cada vez mais as pessoas buscam informação e conhecimento, não só

sobre o Islam, mas do Oriente como um todo. Vários estudiosos sérios como Bernard Lewis,

Francis Fukuymana e Maxime Rodinson tem ajudado a desmistificar a imagem do Islamismo

como “a religião da espada”.

Não só questões religiosas contribuem para a incompreensão mútua entre Oriente

e Ocidente. A globalização empreendida pelos Estados Unidos e a contínua aculturação não

foram assimiladas pelos orientais. Estes não vêem o capitalismo, a democracia e o avanço

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tecnológico como o modelo ideal para solucionar todos os problemas. Não se trata de um

desconhecimento, mas de uma rejeição do modelo cultural norte-americano, pois vários

seqüestradores do 11 de setembro moravam e estudavam no Ocidente.

Essa cisão Oriente/Ocidente remonta justamente à Idade Média, principalmente ao

período das Cruzadas, quando os contatos entre as duas culturas se intensificaram. Nesse

momento ocorria exatamente o inverso de hoje: a cultura ocidental era minoritária e perdia

espaço para a oriental.

Naquele tempo a situação era bem diferente. O Islã era a grande potência mundial

e a Europa a periferia cultural. Esta só passou a ganhar destaque e estender sua visão de

mundo ao resto do globo a partir do século XIX.

As influências se deram de forma desproporcional. Enquanto os estudantes

europeus liam avidamente textos escritos por árabes, estudavam em universidades orientais e

inspiravam-se nos avanços de sua medicina e costumes, estes foram bem pouco influenciados

pela cultura européia que julgavam inferior.

A Península Ibérica, em especial a Espanha muçulmana, pode ser apontada como

um exemplo de relativa paz e harmonia entre as três religiões monoteístas. Era permitido a

autoridades religiosas não-muçulmanas pregar nas mesquitas, desde que não se ofendesse o

profeta Maomé. Judeus e muçulmanos gozavam de muitas crenças comuns e compartilhavam

de muitos pontos convergentes, como a noção da interferência divina na História em favor de

seu povo.

O crescimento da intolerância cresceu com o advento da Modernidade, quando os

cristãos perceberam que sua posição não era hegemônica. Com a conquista destes territórios

pelos cristãos gradativamente a intolerância cresceu e foi dando lugar a uma contínua

repressão religiosa. Nesse sentido os cristãos ocidentais tiveram uma postura diferente dos

orientais. Enquanto estes mantiveram a liberdade religiosa nos locais que conquistaram, os

cristãos ocidentais logo demonstraram que não abrigariam comunidades e ideologias

religiosas diferentes com o mesmo respeito que muçulmanos e bizantinos.

Atualmente dois conflitos de cunho político-religioso ganharam grande vulto: os

conflitos árabe-israelenses e os conflitos entre radicais do Islã e a cultura ocidental. Estas

questões são complexas e já vem se desenvolvendo ao longo de séculos. Enfocada

brevemente, só resta aludir sobre a segunda questão. Sobre os judeus pode-se afirmar que

embora tenham sido um povo envolvido em conflitos com outras nações desde o seu

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nascimento, eles passaram a ter o estigma da perseguição acentuado durante a Idade Média,

quando cristãos passaram a acusá-los de serem “os assassinos de Cristo”.

O atual Estado de Israel nasceu não só como um fruto de uma antiga aspiração de

unidade dos judeus, mas também da necessidade prática, perante o anti-semitismo

disseminado em todos os lugares onde procuravam abrigo e o perigo de extermínio

materializado pelo governo nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Este movimento nacionalista visando a formação de um Estado foi denominado

sionista. Foi iniciado ainda no século XIX pelo judeu vienense Theodor Herzl. Ele foi um dos

primeiros a vislumbrar na Palestina a pátria perdida pelos seus. Estimulou então a imigração

para aquele território. Nesse período, a região encontrava-se sob o domínio dos turcos

otomanos. Gradativamente os judeus para lá se deslocaram passando a dividir o espaço com

os árabes.

Mais tarde a região acabou tutelada pela Inglaterra que colaborou com os

interesses dos judeus em se estabelecerem como nação. Com o nazismo foram ocasionadas

novas ondas imigratórias. Os palestinos reagiram contra esse fenômeno realizando ataques

armados contra oficiais britânicos e judeus. Daí, passaram a se formar de ambos os lados

organizações militares que viriam se atacar mutuamente.

A Organização das Nações Unidas decidiu em 1947, dividir a Palestina em dois

estados: um judeu e um árabe, ficando Jerusalém sob a administração internacional, erro

capital, pois se tal medida veio a calhar para os judeus, era para os árabes, impensável, pois se

tratava da perda de seus territórios. A partir de então a guerra entre árabes e israelenses tem

sido contínua e até o presente momento parece não ter solução.

A ligação intrínseca entre religião e política, tanto entre árabes quanto entre os

israelenses, dificulta ainda mais o diálogo, conduzindo a um radicalismo que não é validado

por nenhuma das doutrinas. Com efeito, nos livros sagrados destas religiões, mesmo o

Alcorão que legitima a Guerra Santa, não estabelece que a religião deva ser utilizada para este

fim.

Podemos destacar que a obra de Llull está intrínseca aos acontecimentos da época

em que viveu: a perda da Terra Santa pelos cristãos, o avanço muçulmano tanto no campo

ideológico quanto geográfico, pelo menos no Oriente e o método escolástico no ensino

universitário. Também ressaltamos o grande poder de adaptação que o método luliano

alcançou. O filósofo maiorquino ampliou, simplificou e transformou a Arte com o objetivo de

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que esta alcançasse o maior número de homens possível, atendendo assim seu principal

propósito, a conversão dos não-cristãos e a reforma moral espiritual e moral dos próprios

cristãos.

Todos os fatos frisados acima contribuíram e influenciaram a vida e a obra

lulianas. Assim, podemos traçar uma associação de cada um desses fatos aos objetivos que

Ramon buscou executar.

Seu objetivo foi a unidade cristã. Converter todos os homens ao Cristianismo. A

fundação de escolas para formar missionários, a criação da Arte e o martírio eram, na verdade,

os meios e não os fins; eram instrumentos para alcançar este objetivo. O pensamento

filosófico de Llull é bastante complexo, mas sua vida torna-se simples de compreender se

observamos que ela foi dedicada a um único propósito: a conversão das almas.

Os acontecimentos da época determinaram mudanças nos meios utilizados pelo

beato, mas não em sua finalidade. Assim é que primeiramente Ramon Llull busca ciência para

exercer sua tarefa. A primeira conseqüência disso é o desenvolvimento da Arte. Porém este

método ia de encontro a escolástica. Llull embasou seu método na autoridade divina e não nos

gregos. Isto não foi resultado de seus estudos, mas de uma experiência mística.

Mesmo assim, o filósofo tomou de empréstimo do ensino universitário o exercício

das disputas como forma de se alcançar a verdade. A diferença estava na forma de

argumentação. Também assimilou a principal questão debatida nos séculos XIII e XIV: as

relações entre razão e fé, sendo, contudo, inovador, ao afirmar que a fé poderia ser

demonstrada através da razão.

Desta maneira torna-se um defensor do diálogo e da conversão por meio da

palavra. Esta postura paulatinamente vai cedendo lugar a outra mais ofensiva, colocando-se a

favor das Cruzadas. Ora, este pensamento está ligado à perda da Terra Santa para os

muçulmanos e ao crescimento no número de adeptos do Islamismo. Os cristãos e inclusive o

perspicaz Ramon, perceberam a perda progressiva de seu espaço no mundo, o que provocou

um enrijecimento em relação aos não-cristãos. Mas é preciso destacar que o maiorquino

certamente desaprovava as carnificinas promovidas pelos cruzados.

A luta deveria enfocar a conversão e não a aniquilação do outro, ou seja,

converter, deveria ser, antes de tudo, um ato de amor. Tanto é que desenvolve todo um plano

de ação para a retomada dos territórios sagrados que enfatiza, sobretudo, quem e como

deveria pregar, explicitado com pormenores em seu Livro do Fim e no Livro da Aquisição da

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Terra Santa. A cruzada espiritual e ideológica para o filósofo sobrepõe a cruzada militar e

torna-se sua causa e fim. Para tanto, era preciso que os infiéis tomassem consciência de seus

erros, o que ocorreria se aqueles responsáveis por sua conversão estivessem devidamente

preparados. E a principal arma intelectual a ser usada era a Arte que possui cinco finalidades:

1. Conhecer e amar a Deus

2. Buscar a virtude e rechaçar os vícios

3. Convencer os infiéis.

4. Resolver questões de toda a natureza utilizando a lógica e,

5. Adquirir conhecimento das outras ciências.

O Livro do Gentio e dos Três Sábios é a obra na qual Ramon Llull demonstra

como o seu método poderia ser aplicado na prática. Não podemos nos iludir achando que ele

está desprovido de preconceitos. Isto é inevitável, uma vez que o livro, obra escrita por um

cristão, expõe o ponto de vista que um cristão possuía do Islamismo e do Judaísmo. Mas foi

inovador, sobretudo, por configurar-se em uma tentativa de compreensão e respeito ao outro.

Ramon não só procurou conhecer a cultura dos outros (judeus e muçulmanos)

como reconheceu seus valores e costumes, chegando mesmo a absorver muitos deles, como

ficou evidenciado em algumas de suas obras, expostas neste texto, ou seja, por mais que

considerasse as demais doutrinas falsas e (ou) errôneas, culturalmente, não colocava a

sociedade em que vivia em um patamar de superioridade; pelo contrário, propunha inclusive,

reformas urgentes no seio da própria Cristandade.

Neste contexto, sem esquecer das mortes causadas por intolerâncias de matizes

não só religiosas, mas também étnicas, políticas, sexuais, econômicas e culturais, que ocorrem

atualmente O Livro do Gentio e dos Três Sábios traz uma grande atualidade. Apesar dos

séculos de distância que nos separam deste filósofo, o diálogo pensado pelo maiorquino se

efetivado, poderia ter contemporizado as tensões que se avolumaram no decorrer dos séculos,

atendendo, com isto, a aspiração contemporânea de encontrar um meio harmônico de

convivência entre Oriente e Ocidente.

Desde então, Ramon Llull percebia que a intolerância era uma força destruidora e

que a destruição do outro não fazia parte do projeto divino, independentemente da doutrina

escolhida. Quantas guerras, mortes e derramamento de sangue poderiam ser evitados se as

forças em litígio considerassem e refletissem apenas sobre o epílogo desta obra! Os homens

não devem e nem precisam acreditar nas mesmas idéias. A diversidade é benéfica quando

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multiplica o conhecimento, quando se torna base para novos aprendizados. Mas para que isso

aconteça é necessário que aprendamos a conviver e a respeitar nossas diferenças a exemplo da

disputa imaginária criada pelo filósofo, onde o judeu, o muçulmano e o cristão são

merecidamente chamados de sábios.

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