raymond_chandler_o longo adeus.pdf

Upload: 3dvortex

Post on 07-Oct-2015

151 views

Category:

Documents


14 download

TRANSCRIPT

  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • Prefcio

    Raymond Chandler sempre soube e afirmou vrias vezes que seu detetivePhilip Marlowe era um sentimental e um perdedor. Mas nunca isto ficou to clarocomo em O Longo Adeus, sexto dos nove romances (o ltimo inacabado) queChandler criou em torno deste singular personagem da mitologia noir. Mas oimportante que o prprio Marlowe sabe disso. Ele movimenta-se numa LosAngeles transfigurada pelas pequenas paixes criminosas onde todas as maneirasde ganhar a vida so vlidas e no raro significam o assassinato como forma deremover obstculos. O Longo Adeus o romance de Chandler de trama maiscomplicada e portanto a tarefa mais difcil das que caram nas mos do pobreMarlowe. Esse cavaleiro andante de ternos discretos mete-se com um chefe depolcia particularmente brutal para proteger um amigo e acaba humilhado e preso.Mas isto apenas o comeo desse sombrio mergulho na traio e nas ambigidadesdo profissionalismo e da lealdade. Um escritor impotente e bbado, uma mulhercom alucinaes, um psiquiatra que mais parece um carcereiro e alguns gangsterscom um estranho senso de gratido cobrem Marlowe de mentiras e evases. Asinvestigaes se cruzam como estranhos numa festa porque o fio da cumplicidade,que tudo une, permanece oculto pela vacilao, o interesse e vrias formas de culpa.Marlowe mergulha no caso na pior das condies que podem envolver umprofissional: est pessoal e emocionalmente envolvido no centro do caso. Istoquebra a tradicional estrutura romanesca de Chandler, fazendo que tanto ele comoalguns de seus amigos no conseguissem perceber que estavam diante do queprovavelmente a nica novela policial capaz de ombrear com O Falco Malts e,sob vrios pontos de vista, ser superior a esse clssico.

    A opinio de Chandler no importa muito porque ele sempre olhou comceticismo seu trabalho, insistindo em afirmar que jamais algum escreveria umclssico do gnero noir como j haviam feito em outras literaturas. Este norte-americano nascido em Chicago em 1888 tinha uma formao um tanto estranhapara os escritores de pulp magazines. Aos oito anos foi para Londres onde estudouat 1912, exceto por um ano que passou na Frana e na Alemanha. Lutou na IGuerra, voltou em 1919 aos EUA e, at 1932, foi diretor de vrias empresas.Desempregado, voltou a desempenhar atividades literrias, embora diferentes das

  • que exercera quando escrevia para alguns jornais ingleses no seu tempo deestudante.

    A revista Black Mask publicou seu primeiro conto em 1933 e, em 1939, saiu seuprimeiro romance, The Big Sleep. Seguiram-se Farewell, My Lovely, 1940; TheHigh Window, 1942; The Lady in the Lake, 1943; The Little Sister, 1949; A LongGoodbye, 1953; Playback, 1958. Deixou inacabado The Poodle Springs Story.Raymond Chandler morreu em La Jolla, Califrnia, em 26 de maro de 1959.

    Jos Onofre

  • 1

    A primeira vez que vi Terry Lennox ele estava bbado, num Rolls Royce SilverWraith, em frente ao terrao do The Dancers. O manobrista do estacionamentohavia trazido o carro e ainda segurava a porta aberta pois o p esquerdo de Terry sebalanava do lado de fora, como se ele tivesse esquecido de que tinha um. Terrymostrava um rosto jovem, mas seus cabelos eram brancos como ossos. Pelos olhos,podia-se dizer que estava no limite do porre total, mas ao mesmo tempo pareciaapenas um rapaz decente, de smoking, que estivera gastando dinheiro demais numadessas espeluncas que existem para esse fim e no outro.

    Ao seu lado, havia uma garota. Seu cabelo era de um belo tom de ruivo escuro etinha um sorriso distante nos lbios. Sobre os ombros, havia jogado um casaco demink azul, que quase fazia o Rolls Royce parecer um automvel qualquer. Bem,nem tanto. Nada conseguiria isso.

    O manobrista era o sujeito meio duro de sempre. Usava um palet branco como nome do restaurante bordado em vermelho na frente. E estava para explodir.

    Escute, meu senhor disse, com uma lmina na voz , poderia puxar a pernapra dentro do carro, para eu poder fechar a porta? Ou devo abri-la toda para que osenhor possa cair pra fora de vez?

    A garota lanou-lhe um olhar que deve ter penetrado pelo menos algunscentmetros nas suas costas. Mas ele nem ligou, pelo menos no a ponto de sealterar. No The Dancers costuma aparecer este tipo de gente que nos desilude arespeito do que um monte de dinheiro pode fazer personalidade das pessoas.

    Um carro esporte estrangeiro e comum, com a capota arriada, entrou noestacionamento. Um homem desceu e usou o isqueiro do carro para acender umcigarro comprido. Vestia um pulver quadriculado de gola role, calas amarelas ebotas de cavalgar. E foi em frente deixando nuvens de fumaa no ar, sem sequer seimportar em dar uma olhada para o Rolls Royce. Com certeza achou que era umacoisa vulgar demais. Aos ps da escada que dava para o terrao, parou um poucopara ajustar um monculo no olho.

    A garota falou com um jeito encantador: Tive uma idia incrvel, querido. Por

  • que a gente no vai de txi at a sua casa e pega o conversvel para dar uma volta? Anoite est to maravilhosa para um passeio pela costa at Montecito! Conheo umpessoal l que est dando uma festa em volta da piscina.

    O cara de cabelos brancos disse, polidamente: Sinto muito, mas no tenhomais o carro. Fui obrigado a vend-lo.

    Pela sua voz e pelo seu jeito de falar no se poderia saber se ele tinha bebidoalguma coisa mais forte do que suco de laranja.

    Vendeu, meu bem? O que voc quer dizer com isso?Ela se afastou dele, no banco do carro, porm sua voz se afastou um bocado a

    mais. Bem, precisei. Dinheiro para comer. Ah, sim, entendi.Se, nesse instante, algum encostasse nela um sorvete, ele no conseguiria

    derreter.O manobrista no agentava mais o rapaz de cabelos brancos. E baixou o nvel:

    Escute aqui, cara. Preciso tirar um carro. A gente se v outro dia, quem sabe.Deixou a porta aberta, balanando. O bbado logo deslizou do banco e aterrissou

    o traseiro no asfalto. Fui em frente e decidi intervir. Acho que sempre um erro agente se meter com um bbado. Mesmo que ele nos conhea e goste da gente,estar sempre pronto a nos enfrentar e a acertar um soco bem nos dentes. Segurei-opelo brao e coloquei-o em p.

    Muito, muito obrigado ele disse, educadamente.A garota deslizou para trs do volante. Ele fica parecendo um ingls idiota quando enche a cara disse com um tom

    de ao inoxidvel. Obrigada por apanh-lo. Vou coloc-lo no banco de trs. Desculpe. Tenho um compromisso, estou atrasada. Ligou a chave e o motor

    comeou a funcionar. Ele no passa de um co perdido acrescentou, com umsorriso gelado. Talvez voc consiga encontrar um lar pra ele. Anda assim, meiosem saber para onde vai.

    O Rolls Royce foi at a entrada da auto-estrada em direo ao Sunset Boulevard,

  • dobrou direita e desapareceu. Fiquei olhando at o sujeito do estacionamentovoltar.

    Eu ainda segurava o homem, que agora dormia fundo. Bem, por essa eu no esperava falei pro cara de palet branco. Claro ele disse, cinicamente. Por que perder tempo com um bbado? Eles

    ficam dando voltas e voltas e coisa e tal. Voc o conhece? A dona chamou-o de Terry, foi o que ouvi. Fora isso, no conseguiria

    distingui-lo de um vago de carga. Mas estou aqui s h duas semanas. Traga meu carro, por favor. Dei o ticket.Quando ele chegou com meu Oldsmobile, parecia que eu estava segurando um

    saco de chumbo. O sujeito de palet branco me ajudou a coloc-lo no bancodianteiro. Ele abriu um olho, nos agradeceu e voltou a dormir.

    o bbado mais educado que eu j encontrei disse para o cara de paletbranco.

    Eles aparecem por a de todos os tamanhos e formas, com todo tipo demaneiras. E so todos uns vagabundos. Esse a ao que parece j andou alguma vezmexendo com bombas.

    .Dei-lhe um dlar e ele me agradeceu. Tinha razo a respeito do envolvimento

    com bombas. O lado direito do rosto do meu novo amigo parecia congelado, eraesbranquiado e marcado com finas e fortes cicatrizes. A pele tinha uma aparnciahorrvel ao longo das cicatrizes. Mexia com bombas, e de um jeito bastante drstico.

    O que vai fazer com ele? Lev-lo pra casa at ficar sbrio e me dizer onde mora.O de palet branco sorriu pra mim: Tudo bem, cara. Se fosse eu,

    simplesmente jogava ele na sarjeta e seguia em frente. Esses cachorres de caracheia s trazem um bocado de encrenca e nenhuma compensao. Eu tenho umafilosofia sobre essas coisas. Do jeito que a luta pela vida hoje em dia, o cara temmais que guardar suas foras pra se proteger na batalha.

  • Pelo que vejo, voc fez muito sucesso com essa ttica.Pareceu confuso e logo comeou a ficar zangado, mas a essa altura eu j estava

    no carro e em movimento.Mas o sujeito estava parcialmente certo, claro. Terry Lennox me trouxe um

    monte de encrencas. Mas, afinal, esse o meu trabalho.Naquele ano, eu estava morando numa casa na Avenida Yucca, no distrito de

    Laurel Canyon. Era uma casinha no alto de uma rua sem sada, com uma compridaescada de degraus de sequia at a porta da frente e um pequeno bosque deeucaliptos pelo caminho. A casa era mobiliada e pertencia a uma mulher que semudara para Idaho para passar uns tempos com sua filha viva. O aluguel erabaixo, em parte porque a dona queria poder voltar aps um pequeno aviso prvio, eem parte devido aos degraus. A proprietria era velha demais para enfrentar aquelesdegraus toda vez que chegasse em casa.

    De alguma maneira, subi com o bbado. At que ele queria ajudar, mas suaspernas pareciam de borracha e ele caa no sono no meio de uma desculpa. Abri aporta, carreguei-o para dentro e o estendi no sof, joguei um cobertorzinho em cimadele e deixei que voltasse a dormir. Durante uma hora ele roncou como umapequena baleia. De repente acordou e quis ir ao banheiro. Quando voltou, me olhoufixamente, apertou os olhos e quis saber, afinal, onde estava. Eu disse. Falou queseu nome era Terry Lennox e morava num apartamento em Westwood ondeningum o esperava. Sua voz era clara e bem distinta.

    Disse que aceitaria uma xcara de caf. Quando a trouxe, ele bebeucuidadosamente, segurando o pires bem perto da xcara.

    Como que vim parar aqui? falou, olhando em volta. Voc desabou do The Dancers para um Rolls Royce.E sua amiga te deixou na mo. Certo. Sem dvida, tinha toda a razo. Voc ingls? Morei l. No nasci l. Se fizer o favor de chamar um txi, vou embora. Meu carro est l embaixo.Desceu a escada com as prprias pernas. No chegou a dizer muita coisa a

  • caminho de Westwood, a no ser que fora muito gentil da minha parte e que estavachateado por incomodar. Provavelmente havia dito isso tantas vezes e para tantagente, que j era automtico.

    Seu apartamento era pequeno, atravancado e impessoal. Ele poderia ter semudado naquela tarde. Numa mesinha em frente a um sof-cama verde-escurohavia uma garrafa de usque pela metade, gelo derretido numa tigela, trs garrafasvazias de soda, dois copos e um cinzeiro de vidro cheio de pontas de cigarro com esem marcas de batom. No havia fotos nem objetos pessoais de espcie alguma.Poderia ser um quarto de hotel alugado para uma reunio ou para uma despedida,para alguns drinques e um bate-papo, um joguinho de dados. No parecia um lugaronde algum morasse.

    Me ofereceu um drinque, eu disse no, obrigado. No me sentei. Quando sa, meagradeceu ainda mais, mas no como se eu tivesse escalado uma montanha por ele,nem como se fosse uma coisa qualquer. Estava um pouco trmulo e um poucoenvergonhado, mas muito bem-educado. Ficou parado na porta aberta at oelevador automtico chegar e eu entrar. Podia no possuir muitas coisas, mas tinhaboas maneiras.

    No falou de novo na garota. Tampouco mencionou que estava desempregado,sem perspectivas, e que praticamente seu ltimo dlar fora-se embora ao pagar aconta no The Dancers em troca de um pouco de frivolidade de classe, que noduraria muito, mas que lhe daria a certeza de no ser perturbado pela gozao dealguns garotes andando toa de carro ou de ser atropelado por um txi e jogadonum buraco qualquer.

    No elevador, descendo, tive o impulso de voltar e tirar a garrafa de usque de l.Mas no tinha nada a ver com isso e no adiantaria grande coisa, de qualquer modo.Eles sempre encontram uma maneira de conseguir uma garrafa quando estoquerendo mesmo.

    Guiei at minha casa mordendo os lbios. Sou um cara meio duro, mas haviaalguma coisa naquele sujeito que me perturbava. No sabia bem o que era, talvez oscabelos brancos, o rosto com cicatrizes, a voz clara e a gentileza. Desisti dedescobrir.

    No havia razo alguma pra que eu o encontrasse novamente. Afinal, ele nopassava de um co perdido, dissera a garota.

  • 2

    Foi na semana depois do dia de Ao de Graas que o vi novamente. As lojas aolongo do Hollywood Boulevard j comeavam a se encher com lixo natalinoremarcado e os jornais comeavam a anunciar como seria terrvel algum no fazeras compras de Natal antecipadamente. Seria terrvel de qualquer maneira; sempre .

    A cerca de trs quarteires do meu escritrio vi um carro de polcia estacionadoem fila dupla e dois tiras dentro dele que observavam alguma coisa na frente deuma vitrina, junto calada. O "alguma coisa" era Terry Lennox ou o que restavadele e o que se via no era muito atraente.

    Encostava-se na vitrina da loja, precisava encostar em alguma coisa. A camisaestava suja e aberta no pescoo, meio fora da cala. No se barbeava h quatro oucinco dias. O nariz estava achatado. A pele, to plida que mal se via as longas efinas cicatrizes. E os olhos pareciam buracos feitos na neve. Era evidente que ospoliciais dentro daquele carro-patrulha estavam a ponto de encan-lo, de modo queme adiantei e segurei seu brao.

    Fique firme e caminhe disse, bancando o duro. Pisquei-lhe o olho, de lado. Vai conseguir? T se agentando?

    Olhou para mim vagamente e ento sorriu seu pequeno sorriso de canto deboca.

    Tudo bem e respirou. S estou me sentindo um pouco... vazio. OK, mas pise firme. J est a meio caminho de um porre total.Esforou-se e deixou que o levasse pela calada at perto do meio-fio. Havia um

    txi parado, escancarei a porta com fora. Ele est na minha frente o motorista disse, apontando com o dedo um txi

    na frente dele. Virou o rosto para trs e viu Terry. Se que faz diferena... uma emergncia. Meu amigo est doente. Est certo... mas bem que ele podia ficar doente num outro lugar. Cinco dlares. Para ir com cara boa. Hum, bem disse, e ps de lado uma revista com um marciano na capa.

  • Entrei e deixei a porta aberta. Puxei Terry pra dentro e a sombra do carro depolcia bloqueou a janela do lado de l. Um tira de cabelos grisalhos se aproximou.Sa, dei a volta no txi e me encontrei com ele.

    S um momentinho, cara. O que temos aqui? Esse cavalheiro que estava emfrente da loja amigo seu?

    Amigo o suficiente pra eu saber que ele precisa de ajuda. No estembriagado.

    Sem dvida, talvez por razes financeiras disse o tira.Esticou a mo e coloquei minha licena nela. Olhou-a e me entregou de volta. Hum, hum. Um investigador particular pegando um cliente. A voz mudou e

    tornou-se rspida. Isso diz alguma coisa sobre o senhor, sr. Marlowe. E sobre ele? Chama-se Terry Lennox. Trabalha em cinema. timo disse o tira, sarcstico. Inclinou-se no txi e encarou Terry no fundo

    do banco. Diria que no tem trabalhado muito ultimamente, nem que temdormido sob um teto ultimamente. Diria mesmo, em poucas palavras, que se tratade um malandro e que talvez seja o caso da gente lev-lo.

    Sua cota de prises no pode estar to baixa. Pelo menos no em Hollywood.Ele continuava olhando Terry. Qual mesmo o nome do seu amigo, meu chapa? Philip Marlowe disse Terry, lentamente. Mora na Avenida Yucca, Laurel

    Canyon.O tira tirou a cabea da janela. Voltou-se e fez um gesto com a mo. Voc pode ter dito seu nome pra ele. Podia, mas no disse.Me encarou por uns segundos. Desta vez, vou deixar passar. Mas tire este cara de circulao.Entrou no carro-patrulha, que partiu.Entrei no txi, seguimos trs quarteires at meu estacionamento e mudamos

    para o meu carro. Dei os cinco dlares pro motorista. Ele me lanou um olhar frio esacudiu a cabea.

  • Apenas o que marca no taxmetro, cara, ou um dlar a mais se o senhorquiser. J estive na pior, sei o que isso. Em Frisco. Ningum me pegou e me psnum txi. uma cidade de corao de pedra.

    So Francisco falei, mecanicamente. Chamo ela de Frisco. Abaixo os grupos minoritrios. Obrigado.Pegou o dlar e sumiu.Fomos para um drive-in onde se fazia um hambrguer que no chegava a ter

    gosto de qualquer coisa que cachorro no pudesse comer. Terry Lennox comeu doishambrgueres e tomou uma lata de cerveja. Levei-o pra casa. Os degraus aindapareciam difceis pra ele, mas Terry sorriu, respirou fundo e conseguiu subir. Umahora mais tarde, estava barbeado e de banho tomado, parecendo novamente um serhumano.

    Sentamo-nos volta de alguns drinques bem fraquinhos. Que sorte ter se lembrado do meu nome falei. Fiz questo de no esquecer. Alm disso, andei procurando voc. Era o

    mnimo... Por que no me ligou, ento? Moro aqui o tempo todo. E ainda tenho um

    escritrio. Por que deveria incomod-lo? Parece que precisava incomodar algum. Parece que no tem l muitos

    amigos. No, tenho amigos, em certo sentido... Colocou o copo na mesa. Pedir

    ajuda no uma coisa que fao com facilidade, principalmente quando o problema todo meu. Olhou pro alto com um sorriso cansado. Talvez eu possa parar debeber um dia desses. Todos dizem isso, no mesmo?

    Leva pelo menos trs anos. Trs anos? Parecia chocado. Geralmente o que se leva. um mundo diferente. Vai precisar se acostumar

    a um conjunto mais plido de cores, um agregado de sons mais tranqilos. Precisalevar em conta as recadas. Todas as pessoas que conhece vo comear a ficar umpouco estranhas. Voc no vai, inclusive, gostar mais da maioria delas e elas

  • tampouco vo gostar de voc. No, seria uma mudana considervel disse. Virou-se e olhou o relgio.

    Tenho uma valise que vale duzentos dlares guardada na estao de nibus deHollywood. Se pudesse recuper-la, compraria uma mais barata, empenharia aoutra e conseguiria dinheiro para chegar a Las Vegas. L posso arrumar emprego.

    No disse nada. Apenas concordei com a cabea e fiquei sentado cuidando domeu drinque.

    Deve estar pensando que eu deveria ter pensado nisso h mais tempo disse,calmamente.

    Estou pensando que existe alguma coisa por trs disso tudo que no tem nadaa ver comigo. Esse emprego coisa certa ou apenas uma esperana?

    Certssima. Um cara que conheci muito bem no exrcito est dirigindo umagrande boate por l, Terrapin Club. O cara meio bandido, claro, todos so, mas aoutra metade dele um cara legal.

    Posso providenciar a passagem de nibus e algum extra. Mas s faria isso setivesse certeza que era uma sada por algum tempo. melhor falar com ele pelotelefone.

    Obrigado mas no necessrio. Randy Starr no vai me deixar na pior. Nuncadeixou. E a valise vale uns cinqenta dlares no prego. Sei por experincia prpria.

    Escute, posso conseguir o que voc precisa. No sou um otrio de coraomole. Portanto, pegue o que ofereo e se comporte. Quero v-lo longe porque tenhouma sensao esquisita em relao a voc.

    Verdade? Olhou para baixo, para o copo. Estava apenas bebericando. Nsnos encontramos apenas duas vezes e voc foi mais do que legal comigo nas duas.Que tipo de sensao?

    Uma sensao de que a prxima vez irei encontr-lo numa situao to ruim,que no vou conseguir livr-lo dela. No sei por que tenho essa impresso, mas averdade que tenho.

    Tocou o lado direito do rosto suavemente, com dois dedos. Talvez seja isso. Sei que me d um ar meio sinistro. Mas um ferimento

    honroso, pelo menos o resultado de um ferimento honroso.

  • No isso. No ligo nem um pouco. Sou detetive particular. Voc umproblema que eu no preciso resolver. Mas o problema existe. Pode chamar isso decisma. Se quiser ser supereducado, chame de diagnstico de personalidade. Talvezaquela garota no tenha te deixado na mo l no The Dancers apenas porque vocestava bbado. Talvez ela tambm tenha cismado com alguma coisa.

    Sorriu polidamente. Fui casado com ela. Chama-se Slvia Lennox. Eu me casei por causa do

    dinheiro dela.Levantei-me, olhando-o de lado. Vou fazer ovos mexidos. Precisa comer. Espere um pouco, Marlowe. Deve estar pensando por que, estando eu na pior

    e Slvia tendo tanto dinheiro, no pedi uma nota pra ela. J ouviu falar de orgulho? Assim voc me mata, Lennox. Mesmo? Meu tipo de orgulho diferente. o orgulho de um homem que no

    tem mais nada. Sinto muito se estou te chateando.Fui at a cozinha e fritei bacon e ovos mexidos, fiz caf e torrada. Tomamos

    nosso breakfast na mesinha da copa. A casa era de uma poca que sempre tinhauma mesa dessas.

    Disse que precisava passar no escritrio e que na volta pegaria sua valise. Ele medeu o ticket. Seu rosto agora adquirira certa cor e os olhos no estavam mais to lno fundo do rosto. Antes de sair, coloquei a garrafa de usque na mesa em frente dosof.

    Use seu orgulho pra isso. E ligue pra Las Vegas, me faa esse favor.Apenas sorriu e encolheu os ombros. Eu ainda estava meio aflito enquanto

    descia os degraus. No sabia por qu. Como no sabia por que um homem passavafome e vagava pelas ruas em vez de empenhar seu guarda-roupa. Quaisquer quefossem suas regras, orientava-se por elas.

    A valise era a coisa mais esquisita que j vira. De couro de porco clareado,deveria ter sido, quando nova, amarela suave. Tinha detalhes em ouro. Erafabricada na Inglaterra e se eu pudesse compr-la aqui, custaria uns oitocentosdlares e no duzentos.

  • Coloquei a valise na frente dele. Olhei para a garrafa em cima da mesa. Intacta.Ele estava to sbrio quanto eu. E fumava, embora no parecesse gostar muito.

    Liguei pra Randy. Ficou chateado por no ter ligado antes. Foi preciso um estranhote dar um empurro. Presente de Slvia? apontei

    para a valise.Tirou os olhos da janela. No. Um presente que ganhei na Inglaterra muito antes de conhec-la. Muito

    antes mesmo. Gostaria de deix-la com voc, se puder me emprestar uma outra,velha.

    Peguei cinco notas dobradas de dez dlares da minha carteira e joguei-as suafrente.

    No preciso de garantias. No era essa minha inteno. Voc no um agiota. Apenas no quero lev-la

    comigo a Las Vegas. E no preciso de tanto dinheiro. Est certo. Fica com o dinheiro e eu fico com a valise. Mas esta casa fcil de

    ser assaltada. No me importaria muito disse, indiferente. No me importaria mesmo.Trocou de roupa e fomos jantar no Musso's por volta das cinco e meia. Sem

    drinques. Pegou o nibus em Cahuenga e voltei para casa pensando nisso e naquilo.Sua valise vazia estava em cima da minha cama, onde a esvaziara e colocara suascoisas na minha sacola leve. A sua tinha uma chave de ouro, que estava num dosfechos. Tranquei a valise vazia, amarrei a chave na ala e coloquei na parte mais altado armrio. No parecia totalmente vazia, mas o que tinha l dentro no eraproblema meu.

    A noite estava tranqila e a casa parecia mais vazia do que o normal. Sentei emfrente ao tabuleiro de xadrez e joguei uma defesa francesa contra Steinitz. Ele mevenceu em quarenta e quatro jogadas, mas fiz com que suasse algumas vezes.

    O telefone tocou s nove e meia e j escutara antes aquela voz. o sr. Philip Marlowe? Sim, sou Marlowe.

  • Slvia Lennox, sr. Marlowe. Nos encontramos rapidamente em frente ao TheDancers numa noite do ms passado. Soube depois que o senhor foi bastante gentillevando Terry pra casa.

    Foi o que eu fiz. Creio que j deve saber que no estamos mais casados, mas eu ando um

    pouco preocupada. Ele entregou o apartamento que tinha em Westwood e ningumsabe para onde foi.

    Notei o quanto a senhora se preocupa naquela noite em que nosencontramos.

    Escute, sr. Marlowe, fui casada com aquele homem. No simpatizo muito combbados. Talvez tenha sido um pouco insensvel, ou talvez eu tivesse alguma coisamais importante pra fazer. O senhor um detetive particular e podemos conversarsobre esse caso em bases profissionais, se preferir.

    No precisamos colocar o caso em base nenhuma, sra. Lennox. Ele est numnibus a caminho de Las Vegas. Tem um amigo por l que vai lhe arranjar emprego.

    Pareceu iluminar-se de repente. Ah... para Las Vegas? Como ele sentimental. Foi l que ns nos casamos. Talvez ele tenha se esquecido deste detalhe. Seno teria ido pra outro lugar.Em vez de desligar na minha cara, ela riu. Era um risinho charmoso. sempre rude assim com seus clientes? A senhora no uma cliente, sra. Lennox. Mas posso ser um dia desses. Quem sabe? Vamos dizer ento, pras suas

    amigas? Mesma resposta. O cara andava na pior, passando fome, sujo, sem uma

    migalha. A senhora poderia t-lo encontrado se achasse que valia a pena. Ele noqueria nada da senhora e provavelmente nem vai querer.

    Ela respondeu friamente: Isso algo a respeito do que o senhor nada pode saber. Boa-noite.E desligou.Estava mais do que certa, claro, e eu mais do que errado. Mas no me senti

  • errado. Apenas me senti chateado. Se ela tivesse ligado meia hora antes, erapossvel que eu ficasse to chateado que acabaria vencendo Steinitz de vez mesmo considerando-se que ele estava morto h cinqenta anos e a partida dexadrez era tirada de um livro.

  • 3

    Trs dias antes do Natal recebi um cheque ao portador de um banco de Las Vegasno valor de cem dlares. Junto, uma nota escrita em papel timbrado de hotel. Eleme agradecia, me desejava Feliz Natal e toda a sorte do mundo, e esperava me vernovamente em breve. A surpresa estava no ps-escrito. "Slvia e eu estamoscomeando uma segunda lua-de-mel. Ela pede pra no ficar chateado com ela portentar uma segunda vez."

    O resto da histria eu peguei numa dessas esnobes colunas sociais dos jornais.No as leio com freqncia, s quando fujo de notcias que me desagradam.

    "Vosso colunista ficou orgulhoso com a notcia de que Terry e Slvia Lennoxreligaram seus laos em Las Vegas, os muito queridos. Ela a filha mais nova domultimilionrio Harlan Potter, de So Francisco, e Pebbe Beach, claro. Mareei eJeanne Duhaux esto redecorando inteiramente a manso de Encino, do poro aoteto, tudo no mais arrasante dernier cri. Curt Westerheym, o ltimo e singularmarido de Slvia, meus queridos, deu a eles de presente de casamento uma pequenacabana de dezoito quartos, como vocs devem se lembrar. E que fim levou Curt?,vocs devem estar perguntando. A resposta : em Saint-Tropez, e, pelo que sei,parece que para sempre. Da mesma forma, uma duquesa francesa com muito,muito sangue azul e duas crianas realmente adorveis. E o que pensa HarlanPotter da volta de Terry e Slvia?, vocs devem tambm estar se perguntando. Pode-se apenas adivinhar. O sr. Potter o tipo de pessoa que nunca se deixa entrevistar.Quo exclusiva uma pessoa pode se tornar, no mesmo, queridos?"

    Joguei o jornal para o lado e liguei a televiso. Depois da pgina do vmitocanino da coluna social, at a marmelada na TV pareceria boa para se ver. Mas osfatos provavelmente eram verdadeiros. Em sociedade tudo se sabe.

    Fiz uma fotografia mental do tipo da "cabana" de dezoito quartos que seacrescentaria a alguns dos milhes dos Potter, sem mencionar as decoraes deDuhaux na base do ltimo simbolismo subflico. Mas no consegui nenhuma fotomental de Terry Lennox andando toa de bermudas em volta de uma piscina,chamando o mordomo pelo telefone interno para gelar o champanha e esquentar ofaiso. No tinha por que visualizar isso tudo. Se o cara queria ser o ursinho de

  • estimao de algum, problema dele. Simplesmente no queria mais v-lo. Massabia que iria encontr-lo pelo menos por causa de sua maldita valise de couro deporco e placas de ouro.

    Eram cinco horas de uma tarde mida de maro quando ele entrou no meumiservel emprio mental. Parecia mudado. Mais velho, muito sbrio e austero, elindamente calmo. Parecia um sujeito que aprendera a viver na base do refresco.Vestia uma capa de chuva branco-ostra e luvas; no usava chapu seu cabelobranco estava liso como peito de passarinho.

    Vamos at um bar tranqilo beber alguma coisa disse, como se tivesse meencontrado dez minutos antes. Quer dizer, se tiver tempo.

    No nos apertamos as mos. Nunca nos apertvamos as mos. Ingleses noapertam mos o tempo todo como os americanos, e embora ele no fosse ingls,tinha muito dos maneirismos dos ingleses.

    Vamos at l em casa pegar sua fantstica valise. No sei por que ela mepreocupa eu disse.

    Ele sacudiu a cabea. Seria gentil de sua parte se continuasse a guard-la pra mim. Por qu? Prefiro assim. Se incomoda? E uma espcie de ligao com um tempo em que

    eu no era um intil gastador. Que coisa mais maluca. Mas problema seu. Mas se te incomoda por achar que algum pode roub-la... Tambm ser problema seu. Vamos tomar um drinque.Fomos ao Victor's, no carro dele, um Jowett Jpiter cor-de-ferrugem com uma

    fina tela no teto, debaixo da qual s havia lugar para ns dois. Tinha uma plidacortina de couro e um equipamento qualquer prateado. No sou de me deslumbrarcom carros, mas aquele realmente me deixou um pouco com gua na boca. Ele disseque o carro era muito rpido. Tinha uma alavanca de cmbio pequena, que mal lhechegava ao joelho.

    Quatro marchas. Ainda no inventaram um sistema automtico de mudanaque fizesse o trabalho dessas engenhocas. Mas, na verdade, no preciso disso. Voc

  • pode sair em terceira mesmo rua acima, o que o mximo que se precisa notrfego.

    Presente de casamento? Um presente tipo "Eu tava passando e vi esta lembrancinha na vitrina". Sou

    um cara muito mimado. timo. Se no tiver etiqueta de preo.Olhou para mim rapidamente e voltou os olhos para o cho molhado. Duplos

    limpadores de pra-brisas limpavam delicadamente o pequeno vidro da frente. Etiqueta de preo? Sempre existe uma etiqueta de preo, amigo. Voc talvez

    ache que eu no seja feliz. Desculpe, me intrometi onde no devia. Sou um cara rico. Quem, me diga, deseja ser feliz?Na sua voz, havia uma amargura que me era desconhecida. Como vai a bebida? S bebo com perfeita elegncia, socialmente. Por uma estranha razo

    consegui me sair bem do antigo vcio. Mas nunca se sabe, no mesmo? Talvez voc nunca tenha sido um bbado de verdade.Sentamo-nos num canto do bar do Victor's e bebemos gimlets. No sabem prepar-lo bem aqui ele disse. O que chamam de gimlet

    apenas suco de lima ou de limo, gim, um pouco de acar e um pouco de bitter. Overdadeiro gimlet metade gim, metade suco de Rose's Lime e mais nada. Ganhalonge de um martini qualquer.

    Nunca fui muito ligado em drinques. Como se deu com Randy Starr? L deonde venho chamado de barra-pesada.

    Recostou-se e me olhou pensativamente. Acho que ele . Acho que todos eles so. Mas nele nem se nota. Poderia citar

    vrios malandros que atuam no mesmo ramo aqui em Hollywood. Randy noesquenta. Em Las Vegas, um legtimo homem de negcios. Procure-o da prximavez que for l. Ser um amigo seu.

    No creio. No gosto de marginais.

  • Isso apenas uma palavra, Marlowe. Temos este tipo de mundo, fruto de duasguerras, e vamos continuar tendo. Randy, eu e outro sujeito estivemos encrencadosuma vez. Isso criou uma espcie de elo entre ns.

    Ento por que no lhe pediu logo ajuda quando precisou?Bebeu o drinque e chamou o garom. Porque ele no poderia recusar.O garom trouxe outros drinques e eu falei: Conversa... Se por alguma razo

    um cara lhe deve alguma coisa, sempre pensa nos seus objetivos. Ele gostaria de teruma chance para retribuir qualquer coisa.

    Balanou a cabea lentamente: Voc tem razo. Claro que pedi a ele que medesse emprego. Mas trabalhei nesse emprego depois que o consegui. Quanto a pedirfavores ou presentes, no.

    Mas de um estranho voc recebeu.Ele me olhou fixamente. Um estranho segue em frente e finge que no ouviu nada.Bebemos trs gimlets, simples, no duplos, e no lhe causaram nenhum efeito.

    Seria o suficiente para um verdadeiro bbado recomear. Portanto, achei que estavacurado de vez.

    Ele me levou de volta ao escritrio. Jantamos s oito e quinze. S milionrios podem se dar o luxo. S

    empregados de milionrios ficam at tarde hoje em dia. Muita gente simptica vir.Da em diante virou uma espcie de hbito da parte dele passar pelo escritrio

    por volta das cinco. Nem sempre amos para o mesmo bar, mas maisconstantemente para o Victor's do que qualquer outro. Talvez lhe trouxesse algumalembrana desconhecida. Nunca bebia demais e ele prprio ficava surpreso comisso.

    Deve ser alguma coisa como uma febre ter. terrvel quando nos atinge.Quando no se sofre mais dela, como se nunca a tivssemos tido.

    O que no entendo por que um cara com os seus privilgios se incomoda embeber com um detetive decadente.

  • Est sendo modesto? No, estou apenas intrigado. Sou um tipo razoavelmente amigvel mas no

    vivemos no mesmo mundo. No sei nem onde voc vive, a no ser que em Encino.S posso concluir que a vida em sua casa no l essas coisas.

    No tenho nenhuma vida caseira.Bebamos gimlets novamente, o bar estava praticamente vazio. Havia o pequeno

    punhado de bebedores compulsivos, sentados nas banquetas perto do balco do bar,do tipo que se distingue muito pouco um do outro e que cuidam de suas mostentando no bater em nada em volta.

    No entendi. Seria o caso? Grande produo, nenhum roteiro, como diria o pessoal de cinema. Creio que

    Slvia bem feliz, mas no necessariamente comigo. No nosso crculo isso no muito importante. Sempre existe algo pra se fazer quando no se precisa trabalharnem pensar nos custos das coisas. No exatamente divertido mas os ricos nopercebem isso. Nunca se divertem. Nunca desejam realmente nada, exceto talvez aesposa do prximo, o que um plido desejo comparado com a fora com que amulher de um operrio deseja novas cortinas para a sala de estar.

    No disse nada. Deixei a bola com ele. O que mais fao matar tempo, e o tempo morre pesadamente. Um pouco de

    tnis, um pouco de golfe, um pouco de natao e equitao, alm do estranho prazerde olhar os amigos de Slvia fazendo hora at a hora do almoo, antes de elescomearem a tratar de suas ressacas.

    A noite em que voc foi para Las Vegas ela disse que no gostava de bbados.Sorriu falsamente. Estava me acostumando ao seu rosto com cicatrizes, de modo

    que apenas notei o sorriso quando alguma mudana de expresso salientou o seulado impassvel.

    Queria dizer bbados sem dinheiro. Com dinheiro eles mudam de figura. Sevomitarem no tapete, o mordomo que se encarregue.

    No precisava levar a coisa para esse lado.Terminou o drinque de um gole e se levantou. Preciso correr, Marlowe. Alm do mais, estou te chateando e s Deus sabe

  • como estou chateando a mim mesmo. No est me chateando. Sou um ouvinte treinado. Mais cedo ou mais tarde

    vou acabar descobrindo por que gosta de ser um poodle de estimao.Tocou suavemente as cicatrizes com os dedos. Soltou um remoto e pequeno

    sorriso. Deveria se perguntar por que ela me quer por perto e no por que eu quero

    ficar l, esperando pacientemente numa almofada de cetim para ter minha cabeaacariciada.

    Gosta de almofadas de cetim disse enquanto me levantava para sair comele. Gosta de lenis de seda e campainhas para chamar o mordomo que seaproxima com sorriso prestativo.

    Pode ser. Fui criado num orfanato em Salt Lake City.Samos e ele disse que gostaria de andar um pouco.Tnhamos vindo no meu carro e pelo menos uma vez eu havia sido

    suficientemente rpido para pagar a conta. Olhei-o se afastar, saindo do meu campode viso. A luz de uma vitrina captou por um momento o brilho do cabelo brancoenquanto ele desaparecia na neblina luminosa.

    Gostava mais dele quando bbado, na pior, faminto, derrotado e orgulhoso.Ser? Talvez eu gostasse de estar por cima dele. As razes que ele atribua s coisaseram difceis de entender. Na minha profisso, existe um tempo para perguntas eum tempo de deixar o homem cozinhando at ele ficar no ponto. Qualquer bompolicial sabe disso. E um bom lance, como em xadrez ou em boxe. Algumas pessoasa gente tem de pressionar e deix-las perder o equilbrio. Outras voc apenas cutucae elas terminam batendo nelas mesmas.

    Ele teria me contado a histria de sua vida se eu tivesse pedido. Mas nuncaperguntei como ele conseguiu aquela cara estragada. Se tivesse perguntado e elerespondido, talvez eu pudesse ter salvo umas duas vidas. Talvez pudesse, no maisdo que isso.

  • 4

    A ltima vez que tomamos um trago no bar foi em maio; era mais cedo do que dehbito, logo depois das quatro horas. Ele parecia cansado e mais magro, mas olhavaem volta com um leve sorriso de prazer.

    Gosto de bares assim, logo que abrem para a noite. Quando o ar interior aindaest fresco e limpo, tudo brilha e o cara do bar d uma ltima olhada em si mesmono espelho, para ver se a gravata est no lugar e se o cabelo est bem penteado.Gosto das garrafas limpas no fundo do bar e dos belos copos brilhantes, dessaexpectativa toda. Gosto de ver o cara misturar o primeiro drinque da tarde e coloc-lo no copo com canudo e gelo com um pequeno guardanapo de papel dobrado aolado. Gosto de apreciar isso tudo bem devagar. O primeiro e tranqilo drinque datarde num bar tranqilo timo.

    Concordei. lcool como o amor. O primeiro beijo mgico, o segundo ntimo, o

    terceiro, mera rotina. Depois disso, tira-se a roupa da garota. E isso ruim? excitao em alto nvel, mas uma emoo impura, impura no sentido

    esttico. No estou menosprezando o sexo. necessrio e no precisa ser feio. Massempre tem de ser manobrado. Transformado em algo glamoroso, uma indstriade bilhes de dlares e custa cada centavo do nosso bolso.

    Olhou em volta e bocejou. No tenho dormido bem. legal aqui. Mas daqui a pouco os chatos vo tomar

    conta do lugar, falar alto, rir e as malditas mulheres vo comear a abanar as mos,embonecar os rostos e fazer barulhos com seus malditos braceletes; vo entrar nadana do charme geral que muito mais tarde ter um leve mas inequvoco cheiro desuor.

    Vai devagar. Claro, elas so humanas, suam, ficam sujas, precisam ir aobanheiro. Esperava o que, borboletas douradas esvoaando numa nvoa cor-de-rosa?

    Esvaziou o copo, virou-o e observou uma gotinha formar-se na borda, tremer e

  • cair. Tenho pena dela disse, lentamente. Mas que ela no passa de uma puta,

    no passa. Pode ser que eu ainda seja louco por ela, de uma maneira muito remota.Um dia ainda vai precisar de mim e serei o nico cara disponvel sem um cinzel namo. Mas, como muitos, vou acabar desistindo.

    Apenas olhei pra ele. Est sendo um timo relaes-pblicas de voc mesmo disse, depois de um

    momento. Sei, estou sabendo. Meu carter fraco, no tenho fora nem ambio. Peguei

    um anel de lata e fiquei chocado quando descobri que no era de ouro. Um caracomo eu tem uma grande oportunidade na vida, um movimento perfeito no trapziovoador. Depois passa o resto do tempo tentando no cair da calada pra sarjeta.

    Esse discurso em favor de qu? Tirei o cachimbo e comecei a ench-lo. Ela est apavorada, est muito apavorada. Com o qu? No sei. No conversamos muito ultimamente. Talvez com o velho. Harlan

    Potter um filho da puta de corao de pedra. Por fora, toda a dignidade vitoriana.Por dentro, to impiedoso quanto um criminoso da Gestapo. Slvia umavagabunda. Ele sabe disso, odeia o fato e no pode fazer nada a respeito. Mas esperae espreita; se um dia Slvia armar um grande escndalo, ele vai parti-la em dois eenterrar as duas partes a cem quilmetros uma da outra.

    Voc o marido dela.Levantou o copo vazio e lanou-o de volta contra a quina da mesa. O copo

    partiu-se com um barulho agudo. O barman olhou mas no disse nada. isso, amigo. Isso mesmo. Ah, claro, sou o marido dela. o que diz a

    certido. Sou como os trs degraus brancos e a porta grande e verde de entrada e acampainha que soa um toque longo e dois curtos, e assim o empregado deixa vocentrar na casa da puta de centenas de dlares.

    Levantei e deixei algum dinheiro em cima da mesa. Anda falando demais pro meu gosto; sobretudo demais sobre voc mesmo. A

    gente se v outra hora.

  • Sa, deixando-o sentado, espantado e com o rosto plido pelo que podia ver comaquele tipo de luz tpico de bar. Ainda disse qualquer coisa, mas continuei andando.Dez minutos mais tarde eu estava arrependido. Mas dez minutos mais tarde eu jestava em outro lugar. Ele no apareceu mais no escritrio. Nem uma vez. Devo t-lo atingido bem onde costuma doer.

    Durante um ms no o vi mais. Quando voltei a v-lo eram cinco da manh, malcomeava a clarear. A insistente campainha da porta me tirou da cama. Mergulheicorredor abaixo, atravessei a sala e abri a porta. L estava ele me olhando como seno dormisse h uma semana. Vestia uma capa leve com a gola virada pra cima eparecia trmulo. A aba do chapu de feltro preto cobria os olhos.

    Na mo, um revlver.

  • 5

    O revlver no estava apontado para mim, ele apenas o segurava. Era umaautomtica de calibre mdio, de fabricao estrangeira; com certeza no se tratavade um Colt ou um Savage. Com o rosto branco e as cicatrizes, a gola virada pra cimae a aba do chapu puxada pra baixo, alm do revlver, ele parecia ter sado de umvelho filme de gangsters, tipo um-soco-no-meio-dos-dentes.

    Vai me levar at Tijuana para pegar um avio s 10h15. Tenho um passaportee um visto e estou praticamente pronto; s me falta o transporte at l. Por razesque no vm ao caso, no posso pegar um trem, um nibus ou um avio aqui de LosAngeles. Quinhentos dlares seria um pagamento razovel pelo seu "txi"?

    Fiquei em p na porta de entrada e no me mexi para deix-lo entrar. Quinhentos dlares mais essa mquina a?Olhou para o revlver distraidamente. Logo colocou-o no bolso. Pode ser til para proteo. Sua proteo, no minha. Pois ento entre.Fiquei de lado e ele foi entrando com um mpeto cansado; caiu numa cadeira. A

    sala ainda estava escura devido ao crescimento de um arbusto que a dona da casatinha plantado para esconder as janelas. Acendi a luz e peguei um cigarro. Acendi.Olhei pra ele. Ajeitei meus cabelos que j estavam ajeitados. Abri meu cansadosorriso.

    O que est acontecendo comigo, dormindo numa manh linda destas? Dez equinze, hem? Bem, temos muito tempo. Vamos at a cozinha que vou fazer caf.

    Me meti numa encrenca que no tem mais tamanho, detetive.Detetive; era a primeira vez que ele me chamava assim. Mas devia ter a ver com

    a maneira como chegou, o modo como estava vestido, o revlver, etc. Vai ser um dia bonito, com brisa leve. A gente pode escutar os velhos

    eucaliptos do lado de l da rua assoviando uns para os outros. Conversando sobre osvelhos tempos na Austrlia quando os cangurus pulavam debaixo dos galhos e oscoalas se cutucavam uns aos outros com varas. Claro, j saquei a coisa toda: voc

  • est metido numa embrulhada. Vamos falar disso depois de tomar algumas xcarasde caf. Na hora de acordar me sinto sempre com a cabea meio pesada. Vamosconferir com os srs. Huggins e Young...

    Escute, Marlowe, no hora... No tenha medo, meu velho. O sr. Huggins e o sr. Young so dois dos

    melhores. Eles fazem o Caf Huggins-Young pra mim. o trabalho da vida deles,orgulho e alegria deles. Um dia desses ainda vou ver se recebem o reconhecimentoque merecem. At agora s esto ganhando dinheiro. No se pode esperar que sisso os satisfaa.

    Deixei-o depois desse papo brilhante e fui at a cozinha. Coloquei a gua praesquentar e peguei a maquininha de fazer caf no armrio. Sequei a parte central ecalculei a medida certa; a esta altura a gua estava fervendo.

    Joguei-a na maquininha pela metade, ajustei o fogo. Coloquei a parte de cima,torci um pouco para que se encaixasse bem.

    Ele apareceu atrs de mim. Inclinou a cabea na porta e depois passou pelamesinha do canto e acomodou-se numa cadeira. Tremia. Peguei uma garrafa deusque no armrio e servi-lhe uma boa dose num copo grande. Sabia que iriaprecisar de um copo grande. Mesmo assim precisou usar as duas mos para lev-lo boca. Engoliu, ps o copo na mesa com um som seco e encostou-se na cadeiracom um som agudo.

    Quase desmaiei murmurou. At parece que estou por a h uma semana.Na noite passada no dormi nem um pouco.

    O caf estava quase fervendo. Baixei o fogo e observei a gua subir. Quaseatingia a borda do recipiente de vidro. Aumentei um pouco o fogo, depois baixei-orapidamente. Mexi o caf e tapei-o. Marquei o medidor de tempo pra trs minutos;Marlowe, um cara muito metdico. Nada deve interferir na sua tcnica de fazer caf.Nem um revlver na mo de um sujeito desesperado.

    Servi-lhe mais uma dose. Fique sentadinho a. No diga nada. Apenas sentado...Segurou a segunda dose com uma mo. Fiz uma rpida arrumao no banheiro e

    quando voltei o medidor de tempo soou. Apaguei o fogo e arrumei o caf em cimade uma esteira de palha na mesa. Por que eu entro nesses detalhes todos? Porque a

  • atmosfera carregada fazia com que cada coisinha dessas assumisse um ar especial,distinto e enormemente importante. Era um desses momentos hipersensveisquando cada um dos movimentos automticos, no importa h quanto tempoestabelecidos, no importa se habituais, tornam-se atos separados de vontade. como se voc fosse um homem aprendendo a andar depois de ter paralisia. Deve-secomear pelo princpio, deve-se comear do zero.

    O p j pousara no fundo e o ar se contaminara com seu cheiro de sempre; ocaf borbulhou e logo se acalmou.

    Retirei a tampa e coloquei-a num canto da mesa. Peguei duas xcaras. Caf puro pra voc, Terry.Pus duas pedras de acar e um pouco de creme no meu. Estava terminando

    meu ritual. No cheguei a perceber como abri a geladeira e peguei a caixa de creme.Sentei na sua frente. Ele no se mexera. Apoiava-se na parede sentado no canto

    da mesinha, rgido. Depois, sem um sinal prvio, a cabea se inclinou sobre a mesae ele comeou a soluar.

    No prestou ateno quando peguei a arma do seu bolso. Era uma Mauser 7.65,uma beleza. Cheirei-a. No fora disparada. Abri o tambor. Cheio. Nenhuma bala naagulha.

    Ele levantou a cabea, viu o caf e tomou lentamente, sem olhar pra mim. No atirei em ningum. Pelo menos, no recentemente. O revlver precisaria ter sido limpo. Vou contar como foi. Espere um pouco.Bebi o caf quente o mais rpido que pude. Enchi a xcara outra vez. Vamos l, mas seja cuidadoso com o que for me dizer. Se realmente quer que

    te leve no meu carro at Tijuana, existem duas coisas que no pode me contar. Umadelas est escutando?

    Ele fez que sim com a cabea, lentamente. Olhava um ponto qualquer da paredeatrs da minha cabea. As cicatrizes estavam bem visveis naquela manh. A peleparecia quase morta de to branca, mas as cicatrizes assim mesmo pareciam brilhar.

    Uma delas repeti, bem devagar que, se cometeu algum crime ou

  • qualquer coisa que a lei chama de crime, um crime srio, vamos dizer assim, eu nopoderei saber. Dois, se voc sabe que tal crime foi cometido, tampouco posso ficarsabendo. Pelo menos se quiser que eu te leve at Tijuana. Est bem claro?

    Olhou para mim. Seus olhos entraram em foco, mas continuavam sem vida. Jhavia bebido o caf. Estava sem cor, mas firme. Servi mais um pouco de caf paraele.

    J disse que estou numa encrenca. Estou ouvindo. No quero saber que tipo de encrenca. Preciso ganhar a vida,

    tenho uma licena pra proteger. Eu poderia estar apontando o revlver pra voc.Sorri e empurrei o revlver pro outro lado da mesa. Ele olhou-o mas no tocou

    nele. At Tijuana, no, voc no poderia ficar apontando um revlver pra mim,

    Terry. No at cruzar a fronteira, nem at subir as escadas de um avio. Sou umcara que vez por outra acaba se envolvendo com armas. Vamos esquecer esserevlver. Eu iria parecer um heri explicando pra polcia que estava to assustadoque precisava fazer o que voc mandasse. Supondo, claro, o que no sei, que noexiste nada a dizer pra polcia.

    Escute, antes do meio-dia ou at mais tarde ningum vai bater na porta. Osempregados tm ordem para no acord-la quando vai dormir tarde. Mas a pelomeio-dia a empregada vai bater na porta e entrar. Ela no estar no quarto.

    Bebi um gole do caf e no disse nada. A empregada vai notar que a cama no foi desarrumada. Vai ento pensar em

    procur-la num outro lugar. H uma grande casa de hspedes bem longe da casaprincipal. Tem seu prprio estacionamento, garagem, etc. Slvia passou a noite l.Eventualmente a empregada ir encontr-la.

    Franzi a testa: Preciso ter muito cuidado com as perguntas, Terry. Ela no poderia ter

    passado a noite longe de casa? Suas roupas estariam espalhadas pelo quarto. Nunca pendura coisa nenhuma.

    A empregada saberia que ela colocou um robe em cima do pijama e saiu assim

  • mesmo. Portanto, s resta a casa de hspedes. Tem certeza? Ela teria ido para a casa de hspedes. Ou ser que acha que esse pessoal no

    sabe o que acontece naquela casa de hspedes? Os empregados sempre sabem. Continue, ento.Passou um dedo no lado do queixo sem cicatriz, com bastante fora a ponto de

    deixar uma risca vermelha. E na casa de hspedes prosseguiu, lentamente a empregada iria

    encontrar... Slvia bbada como uma pedra, paralisada, gelada at as sobrancelhas eu

    disse, abruptamente. Claro, isso mesmo. Slvia no alcolatra. Mas quando passa dos limites, a

    coisa fica feia. E assim a histria termina. Ou quase. Vamos ver. Na ltima vez que bebemos

    juntos, fui um pouco brusco com voc, deixei-o falando sozinho, se bem se lembra.Voc me irritou. Pensando melhor depois, percebi que voc estava com a sensaode que mais cedo ou mais tarde aconteceria um desastre. Falou que tem umpassaporte e um visto. Leva algum tempo para se obter um visto para o Mxico.Eles no deixam qualquer pessoa entrar no pas. Portanto, andou planejando tudoisso. O que eu me perguntava era at quando voc agentaria.

    Acho que me sentia com certa obrigao de ficar por perto. Achava que elapoderia precisar de mim para alguma coisa. Alm do mais, sei que sirvo como umaespcie de biombo em relao ao velho, pra ele no ficar xeretando a vida dela. Porfalar nisso, liguei para voc no meio da noite.

    Meu sono pesado. No escutei. Da fui para uma sauna pblica. Fiquei l algumas horas, tomei banho de

    vapor, mergulhei na piscina, tomei uma ducha, fiz massagem e depois dei unstelefonemas. Deixei meu carro na esquina de La Brea e Fountain. Andei at aqui.Ningum me viu andando pela tua rua.

    Esses telefonemas tm alguma coisa a ver comigo? Um foi para Harlan Potter. O velho viajou ontem para Pasadena a negcios.

  • No tem parado em casa. Foi difcil localiz-lo. Mas finalmente falei com ele. Disseque sentia muito mas estava me mandando.

    Olhava um pouco enviesado enquanto falava, olhava para a janela e para oarbusto que pressionava o vidro.

    Como foi que o velho reagiu? Disse que sentia muito. Me desejou boa sorte. Perguntou se precisava de

    dinheiro. Terry riu timidamente. Dinheiro. So estas as primeiras letras do seualfabeto. Respondi que tinha o suficiente. Depois liguei pra irm de Slvia. O mesmopapo. E foi isso.

    Queria perguntar uma coisa. Voc alguma vez a encontrou com algumnaquela casa de hspedes?

    Balanou a cabea: Nunca tentei. No teria sido difcil. Nunca foi. Seu caf est esfriando. No quero mais. Muitos homens, hem? Mas voc voltou atrs e casou-se novamente.

    Concordo que ela seja tima, mas mesmo assim... No sou um sujeito confivel, j disse isso antes. Porra, por que abandonei

    Slvia a primeira vez? E por que, depois disso, ficava caindo de bbado toda vez quea via? Por que preferia rolar na sarjeta a pedir dinheiro pra ela? Ela j se casou cincovezes, sem contar comigo. Todos os seus ex-maridos voltariam correndo numsimples estalar de dedos. E no apenas por um milho de dlares.

    Ela um mulhero disse. E olhei o relgio. Por que tem de ser o vo das10h15 para Tijuana?

    Tem sempre lugar nesse vo. Ningum de Los Angeles gosta de voar num DC-3 por cima das montanhas quando pode pegar um Constellation e chegar na Cidadedo Mxico em sete horas. E o Constellation no pra aonde quero ir.

    Levantei e me inclinei junto mesa. Vamos agora amarrar as coisas e por favor no me interrompa. Voc veio me

    procurar nesta manh, em pssimo estado emocional, querendo ir de carro atTijuana para pegar o primeiro avio. Trazia um revlver mas eu no precisava ve-

  • lo... Me disse que agentou o que pde, mas que na noite passada estourou de vez.Encontrou sua mulher podre de bbada e um homem esteve com ela. Resolveu saire entrou numa sauna para passar o tempo at a manh chegar. Ento ligou para osdois parentes mais prximos de sua mulher e contou pra eles o que pretendia fazer.Onde voc vai no de minha conta. Possui os papis necessrios para entrar noMxico. Como os conseguiu, tampouco da minha conta. Somos amigos e eu fiz oque me pediu sem pensar muito. Por que no? Voc no est me pagando coisaalguma. Tem carro mas est se sentindo meio perturbado para dirigir. Tambm isso da sua conta. Voc um cara emocional e arranjou um ferimento bravo durante aguerra. Creio que devo pegar seu carro e estacion-lo numa garagem qualquer.

    Procurou nos bolsos, tirou o chaveiro de couro e ps em cima da mesa. O que lhe parece? perguntou. Depende de quem estiver escutando. Ainda no terminei. No trouxe nada

    consigo a no ser a roupa do corpo e algum dinheiro que conseguiu com seu sogro.Deixou pra trs tudo o que ela lhe deu, inclusive aquele belo exemplar de mquinaestacionado na esquina de La Brea com Fountain. Quis se mandar to limpo quantopossvel. Tudo certo. Aceito isso. Agora vou fazer a barba e me vestir.

    Por que est me ajudando, Marlowe? Beba mais um drinque enquanto fao a barba.Sa da cozinha, deixei-o l sentado e curvado no canto da mesinha. Continuava

    com o chapu e com a mesma capa leve. Mas parecia um bocado mais vivo. Entreino banheiro e fiz a barba. Voltei ao quarto de dormir e dava o lao na gravataquando ele apareceu e encostou-se na porta.

    Lavei os copos em caso de... Mas continuei pensando. Talvez fosse melhorvoc chamar a polcia.

    Chame voc. No tenho nada pra lhes dizer. Quer mesmo que eu chame?Virei-me rapidamente e lancei-lhe um olhar duro. Porra, cara! gritei praticamente. Ser possvel que no possa deixar as

    coisas rolarem? Desculpe.

  • Claro, pede desculpas. Caras como voc esto sempre pedindo desculpas esempre tarde demais.

    Voltou-se e caminhou pelo corredor at a sala. Acabei de me vestir e fechei aparte dos fundos da casa. Quando cheguei sala, ele havia cado no sono numacadeira; cabea para o lado, o rosto sem qualquer cor, o corpo inteiro paralisado decansao. Digno de pena. Quando toquei seu ombro, acordou aos poucos como sefosse uma longa jornada de onde ele se encontrava at onde eu estava.

    Depois de atrair sua ateno, disse: E que tal a valise? Ainda tenho aquelacoisa branca de pele de porco na parte de cima do meu armrio.

    Est vazia disse, sem interesse. Alm disso, chama muito a ateno. Vai chamar muito mais a ateno sem nenhuma bagagem.Voltei ao quarto, subi no degrau do armrio e puxei a valise branca de couro de

    porco da prateleira mais alta. O quadrado do topo do armrio estava bem em cimada minha cabea, de modo que puxei com fora, alcancei-a a muito custo e deixeicair seu chaveiro de couro atrs de uma gravata colorida ou seja l o que fosse.

    Fui descendo com a valise, limpei a poeira dela e coloquei algumas coisasdentro, um pijama novo, pasta de dente e escova de dente extra, um par de toalhasbaratas e roupas de baixo, um pacote de lenos de algodo, um tubo de quinzecentavos de creme de barbear e um desses barbeadores que do de brinde com umpacote de giletes. Nada usado, nada marcado, nada suspeito, a no ser que as suasprprias coisas seriam de melhor qualidade. Juntei ainda uma garrafinha debourbon ainda embrulhada. Fechei a valise, deixei a chave num dos fechos e leveitudo comigo. Ele cara no sono outra vez. Abri a porta sem acord-lo, carreguei avalise para a garagem e coloquei-a no conversvel atrs do banco da frente. Tirei ocarro da garagem, fechei-a e voltei para acord-lo. Terminei de fechar tudo e samos.

    Dirigi rpido mas no o suficiente para ser multado. Praticamente no falamosno caminho. Tampouco paramos pra comer. No havia tempo.

    O pessoal da fronteira nada tinha a nos dizer. L em cima, na pequena elevaoonde ficava o aeroporto de Tijuana, parei o carro perto do escritrio e fiquei neleenquanto Terry comprava a passagem. As hlices do DC-3 j comeavam afuncionar lentamente, apenas para manter o motor aquecido.

    Um cara alto da tripulao, de uniforme cinza, conversava com um grupo de

  • quatro pessoas. Um tinha cerca de 1,80m e carregava um revlver no coldre. Haviauma garota de calas compridas ao seu lado, um baixinho de meia-idade e umamulher de cabelos grisalhos to alta que fazia o outro sujeito parecer um tampinha.Trs ou quatro mexicanos estavam por ali tambm. Seria esta a "carga" do avio. Aescada j estava na porta s que ningum parecia ter muita pressa. Mas a umaaeromoa mexicana desceu os degraus e ficou esperando. Parecia no havernenhum equipamento de chamada por alto-falante. Os mexicanos subiram noavio, mas o piloto continuou batendo papo com os americanos.

    Havia um grande Packard estacionado ao lado do meu. Sa do carro e dei umageral no ambiente. Talvez um dia ainda aprenda a no me meter onde no souchamado. To logo botei minha cabea pra fora, vi a mulher alta olhando na minhadireo.

    Terry ento se aproximou pisando no cho arenoso. Tudo pronto. aqui que me despeo.Esticou a mo. Apertei-a. Parecia bem agora, apenas cansado, cansado pra burro.Tirei a valise de couro de porco de dentro do Oldsmobile e coloquei na areia.

    Olhou para ela, um olhar zangado. Eu disse que no queria essa valise falou, asperamente. Tem um pouco de tudo a dentro, Terry, pijama, etc. E tudo bem annimo. Se

    no quiser, despache a valise. Ou jogue-a fora. Tenho minhas razes falou, contrafeito. Eu tambm.Sorriu de repente. Pegou a valise e apertou meu brao com a mo livre: Est

    bem, amigo. Voc quem manda. E lembre-se, se as coisas ficarem pretas, tem umcheque em branco. No me deve nada. Tomamos alguns drinques juntos, ficamosamigos e eu falava demais sobre mim mesmo. Deixei cinco notas de cem na sua latade caf. No fique chateado comigo.

    Preferia que no tivesse deixado. Nunca vou conseguir gastar metade do que tenho. Boa sorte, Terry.Os dois americanos subiram a escada do avio. Um cara baixo e troncudo com

  • um rosto largo e escuro veio at a porta do prdio do aeroporto, abanou a mo eapontou pro avio.

    Suba a bordo eu disse. Sei que no matou Slvia. por isso que vim ataqui.

    Retesou-se. Todo seu corpo estava rgido. Virou-se devagar, depois olhou devolta.

    Sinto muito falou, tranqilamente. Mas est enganado. Vou andarlentamente at aquele avio. Se quiser, poder me deter.

    Andou. Olhei pra ele. O cara na porta da companhia esperava, mas no pareciaimpaciente demais. Os mexicanos geralmente no so impacientes. Estendeu amo, tocou a valise de couro de porco e sorriu para Terry. Ps-se de lado e Terryatravessou a porta. Em pouco tempo ele aparecia atravessando uma outra portaonde ficavam os agentes alfandegrios para quem chega. Caminhava, semprelentamente, pisando o cho arenoso at chegar escada. Parou ento e olhou denovo pra mim. No fez nenhum sinal ou abanou. Nem eu.

    Entrou no avio e a escada foi retirada.Entrei no Oldsmobile, dei a partida, e andei meio estacionamento de marcha a

    r. A mulher alta e o homem baixinho ainda estavam por l. A mulher abanava umleno. O avio foi at o fim da pista, levantando muita poeira. Virou bem l na pontae os motores se aceleraram num rudo trovejante. Comeou a mover-se pra frente,pegando velocidade aos poucos.

    Olhei o avio levantar vo lentamente no ar pesado e se misturar ao cu nu eazul em direo ao Sudeste.

    Fui embora. Ningum no posto de fronteira olhou pra mim, como se meu rostofosse to banal como os ponteiros de um relgio.

  • 6

    De volta de Tijuana o caminho longo e um dos mais chatos do Estado. Tijuana no nada; s querem saber de grana. O garoto que surge do lado do seu carro olha pravoc com olhos grandes e cobiosos e diz: "D uma moeda, por favor, mister". Vaiquerer vender sua prpria irm na prxima frase que disser. Tijuana no Mxico.Nenhuma cidade de fronteira outra coisa alm de uma cidade de fronteira, assimcomo um porto no passa de um porto. San Diego? Uma das mais belas baas domundo e com nada nela alm de barcos de pesca e da Marinha. A noite, uma terrade diverses. O ambiente to domstico quanto uma velha dama cantando hinos.Marlowe, no entanto, precisa ir para casa e ficar quietinho.

    A estrada do Norte to montona quanto uma cantilena de marinheiro. Vocatravessa uma cidadezinha, desce um morro, segue por um pedao de praia,atravessa outra cidadezinha, desce outro morro, segue por outro pedao de praia.

    Eram duas horas quando cheguei e eles j esperavam por mim no sed escurosem nenhum sinal de polcia, sem luz vermelha, apenas a antena dupla, mas noso apenas carros de polcia que tm estas antenas. Eu estava a meio caminho dosdegraus de casa quando saram do carro e gritaram pra mim, a dupla de sempre coma roupa de sempre, com o jeito pesado de caminhar de sempre, como se o mundoestivesse esperando ansioso e silencioso que eles dissessem o que se precisa fazer.

    O senhor se chama Marlowe? Queremos falar com o senhor.Ele me deixou ver o brilho do distintivo. Pelo que consegui perceber, poderia ser

    do Setor de Controle de Peste. Era loiro grisalho e parecia firme. Seu parceiro eraalto, boa-pinta, bem arrumado e mantinha uma precisa diferena em relao a ele,era um duro mas bem-educado. Ambos tinham os olhos que olhavam e esperavam,olhos pacientes e cuidadosos, frios, olhos desdenhosos, olhos de tira. Elesconseguem este olhar depois de aprovados na parada final da Escola de Polcia.

    Sargento Green, Homicdios. Este o detetive Dayton.Continuei subindo e abri a porta. No se aperta a mo de policiais de cidade

    grande. Chegar to perto assim chegar perto demais.Eles se sentaram na sala. Abri as janelas e a brisa soprou. Green comandou a

  • conversa. Um homem chamado Terry Lennox. Conhece, no? Bebemos alguns drinques juntos de vez em quando.Ele mora em Encino, deu o golpe do ba. Nunca estive na sua casa. De vez em quando... Qual a constncia desses encontros? uma expresso vaga. Foi o que quis dizer. Poderia ser uma vez por semana

    ou uma vez em dois meses. Encontrou a esposa dele? Uma vez, muito rapidamente, antes de se casarem. Quando foi a ltima vez que o viu e onde?Peguei um cachimbo na ponta da mesa e enchi de fumo.Green se inclinou na minha direo. O cara alto sentou-se mais afastado

    segurando uma caneta e uma caderneta com lado vermelho. Esta a hora em que digo: "qual o assunto", e o senhor responder: "ns

    que fazemos as perguntas". Ento melhor s respond-las, no?Acendi o cachimbo. O fumo estava um pouco mido.Levei algum tempo tentando acend-lo direito trs fsforos. No tenho pressa disse Green. Mas j esperei um bocado a fora.

    Portanto, vamos logo com isso. Sabemos quem o senhor . E o senhor sabe que noviemos at aqui para uma visita social.

    Estava apenas pensando. Costumvamos ir ao Victor's com certa freqncia, ecom menor freqncia ao The Green Lantern e ao The Buli and Bear, que umlugar no final da Strip que tenta ser alguma coisa parecida com uma tabernainglesa...

    Evite certos detalhes. Quem morreu? perguntei.O detetive Dayton falou. Tinha uma voz forte, madura, tipo no-tente-me-

    enganar-cara.

  • Responda apenas as perguntas, Marlowe. uma investigao de rotina. tudo o que voc precisa saber. Talvez eu estivesse cansado e irritado. Talvez mesentisse um pouco culpado. Saberia como odiar esse cara mesmo sem conhec-lo.Poderia apenas avist-lo atravs da extenso de um bar e dar-lhe uma porrada nosdentes.

    No venha com esse papo, cara. Guarde pro Departamento Juvenil. Mesmopra eles capaz de no colar.

    Green refreou um sorriso. Nada mudou no rosto de Dayton que se pudessenotar, mas de repente ele pareceu dez anos mais velho e vinte anos mais antiptico.O ar atravs de suas narinas saiu como um assovio fraco.

    Ele passou nos exames legais disse Green. melhor no brincar comDayton.

    Levantei lentamente e fui at a estante. Tirei de l um exemplar do Cdigo Penalda Califrnia. Estendi a Dayton.

    Ser que voc poderia gentilmente me mostrar o artigo que diz que souobrigado a responder perguntas?

    Ele se segurava. Estava a ponto de me esmurrar e ns dois sabamos disso. Masesperava que a briga detonasse. Isto , no confiava que Green o apoiasse no fim detudo. Mas disse:

    Todo cidado precisa cooperar com a polcia. A polcia julga necessrio fazerperguntas, de qualquer maneira, e especialmente perguntas de carter no-incriminatrio.

    Sua voz saiu dura, ntida e calma. assim que as coisas funcionam disse eu. Geralmente por intimidao

    direta ou indireta. Este tipo de obrigao no existe na lei. Ningum precisa dizernada polcia, em nenhum momento, em nenhum lugar.

    Melhor calar a boca disse Green, impaciente. Voc est pescando emguas turvas e sabe disso. Sente-se. A mulher de Lennox foi assassinada. Na casa dehspedes de sua manso em Encino. Lennox fugiu. Pelo menos no conseguimosencontr-lo. Portanto, estamos procurando um suspeito de um assassinato. Estsatisfeito?

  • Joguei o livro numa poltrona e voltei a me sentar do outro lado da mesa ondeestava Green.

    E por que vieram me procurar? Jamais estive perto daquela casa. J disseisso.

    Green bateu com os dedos, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo. Daytonno se mexia no seu canto. Seus olhos me comiam.

    Porque seu nmero de telefone estava escrito numa agenda no quarto dele,pelo menos nas ltimas vinte e quatro horas. uma agenda com data e a folha deontem chegou a ser rasgada, mas pudemos ver a marca dos nmeros na pgina dehoje. S no sabemos quando ele telefonou pra voc. No sabemos para onde ele foiou por que ou quando. Mas precisamos pelo menos perguntar, no ?

    Por que na casa de hspedes? perguntei, sem esperar que respondesse. Masele ficou um pouco vermelho e respondeu: Parece que ela ficava l com certafreqncia, noite. Recebia visitas. Os empregados podiam ver tudo atravs dasrvores onde as luzes se mostram. Carros vinham e iam embora, s vezes tarde, svezes muito tarde. Isso diz tudo, hum? No se engane. Lennox o cara queprocuramos. Ele se mandou a pela uma da madrugada. O mordomo viu. Voltousozinho, talvez vinte minutos depois. Depois disso, nada. As luzes continuaramacesas. De manh, nada de Lennox. O mordomo foi at a casa de hspedes. Amulher estava nua como uma sereia na cama e posso dizer que no foi reconhecidapelo rosto. Praticamente no tinha mais rosto. Bateram nele com a estatueta de ummacaco de bronze at despecla-lo.

    Terry Lennox no iria fazer uma coisa dessas. Est certo, ela o traa. A velhahistria. Ela sempre aprontava. Eles estiveram divorciados e se casaram de novo.No creio que ele ficasse feliz, mas por que iria agora enlouquecer com essa histriatoda?

    Ningum sabe a resposta disse Green pacientemente. Acontece o tempotodo. Com homens e com mulheres. Um cara agenta, vai agentando, vaiagentando. De repente no agenta mais. Ele mesmo talvez no saiba dizer porque em determinado momento se tomou violento. Acontece que se torna violento ealgum morre. E a que temos trabalho pela frente. Da fazermos a voc umasimples pergunta. Pare portanto de despistar ou seremos obrigados a lev-loconosco.

  • Ele no vai falar nada, sargento Dayton sugeriu, ferinamente. Ele leueste livro de leis. Como um monte de gente que l livros de direito, ele pensa que alei est nos livros.

    Voc apenas toma nota disse Green e pare de pensar. Se for realmentebom a gente deixa voc cantar o hino da escola na sala de estar da Polcia.

    V pro inferno, sargento, se que posso falar assim com o devido respeitopela sua patente.

    Vou deixar vocs dois brigarem eu disse para Green. Quando ele estivercado, vou recolher o que sobrar.

    Dayton colocou sua caneta e caderneta de lado cuidadosamente. Levantou-secom um brilho nos olhos. Andou um pouco e colocou-se diante de mim.

    De p, garoto esperto. S porque eu fiz faculdade no significa que devaagentar insultos de um inseto como voc.

    Comecei a me levantar. Ainda no havia me equilibrado quando ele me atingiu.Me acertou no queixo com a esquerda e arremeteu com o outro punho. Campainhastocaram, mas no eram chamadas pra jantar. Sentei pesadamente e sacudi a cabea.Dayton continuava por l. Estava sorrindo agora.

    Vamos tentar de novo disse ele. Voc no estava preparado, reconheo.No foi uma jogada limpa.

    Olhei para Green. Ele olhava seu polegar como se examinasse alguma coisa naunha. No me mexi nem falei nada, esperando que ele me fizesse olhar pra cima. Seeu tornasse a me levantar, Dayton me atingiria de novo. Iria me acertar de novo dequalquer maneira. Mas se ficasse em p e ele me batesse, eu o deixaria em pedaosporque o soco que ele me deu provava que no era grande coisa em boxe. Colocou osoco no lugar certo, mas precisaria de muito mais para me deixar cado.

    Green falou, como se nem estivesse ali: Belo trabalho, garoto. Deuexatamente o que ele estava pedindo.

    Depois olhou para cima e falou suavemente: Mais uma vez, pro teu controle,Marlowe. A ltima vez que voc viu Terry Lennox, onde e como e sobre o queconversaram, e de onde que voc est chegando. Sim, ou no?

    Dayton l estava em p, mais relaxado, bem em posio. Em seu olhar havia um

  • brilho suave, macio. E sobre o outro sujeito, nada? perguntei, ignorando-o. Que outro sujeito? No ninho, na casa de hspedes, sem roupa. Voc no est querendo dizer que

    ela precisava ir at l pra jogar pacincia. Isso vem depois depois que a gente pegar o marido. timo. Quando se tem um otrio, no preciso se preocupar com outras

    coisas. No fale, Marlowe, seno vamos ter de lev-lo conosco. Como testemunha material? Material meu saco. Como suspeito. Suspeito de cumplicidade ps-crime. Por

    ter ajudado um suspeito a escapar. Meu palpite que voc levou o cara para algumlugar. E neste momento um palpite tudo o que preciso. Mas o nosso capitoparece duro na queda. Ele conhece o livro da Lei, s que tem crises deesquecimento. Isso pode ser pssimo pra voc. De um modo ou de outro,conseguiremos um depoimento seu. O difcil consegui-lo, mas estamos certos queprecisamos dele.

    Isso papo furado demais pra cima dele disse Dayton. Ele conhece olivro da Lei.

    papo furado pra todo mundo disse Green calmamente. Mas aindafunciona. Vamos nessa, Marlowe. J dei a partida pra voc.

    Tudo bem, d a partida. Terry Lennox era meu amigo. Eu investi uma grandequantidade de sentimento nele. O suficiente para no estragar essa amizade sporque um tira vem na minha casa. Voc tem uma acusao contra ele, talvez muitomais do que me disse. Motivo, oportunidade e o fato de ele ter escapado. O motivo a velha histria, h muito tempo neutralizada, praticamente parte do acordo delesdois. No admiro esse tipo de acordo, mas esse o tipo de sujeito que ele umpouco fraco de carter e extremamente gentil. O resto no quer dizer nada, a no serpor ele saber que ela estava morta; sabia tambm que seria um pato imvel esperada polcia. No julgamento, se houver algum e se eu for chamado, terei de responderperguntas. No sou obrigado a responder s perguntas de vocs. Posso ver que voc

  • um cara legal, Green. Assim como posso notar que seu parceiro no passa de umhomem com distintivo e com um complexo de poder. Se quiser me pr numaconfuso pra valer, deixe que ele me ataque novamente. Quebrarei seu malditolpis na cara dele.

    Green se levantou e olhou para mim, com tristeza. Dayton no se moveu. Eraum duro de um lance s. Precisava de tempo para retomar o mpeto.

    Green foi at o telefone e levantou o fone lentamente, seu rosto mostrando umalonga, lenta expresso de agradecimento. Este o problema com os tiras. A genteest preparada para odi-los e de repente encontra um deles que tem umcomportamento humano em relao a voc.

    O capito disse pra me levarem e logo.Colocaram algemas nos meus pulsos. No vasculharam a casa, o que me pareceu

    descuido da parte deles. Possivelmente calcularam que eu tivesse experinciasuficiente para no deixar nada que pudesse me incriminar. No que estavamerrados. Uma busca feita por especialistas teria dado com a chave do carro. Equando o carro fosse encontrado, como seria, cedo ou tarde, eles experimentariam achave nele e saberiam que Terry estivera comigo.

    Pra falar a verdade, como acabou acontecendo, isso no significava nada. O carronunca foi encontrado por polcia nenhuma. Foi roubado numa hora qualquerdurante a noite, levado possivelmente para El Paso, equipado com novas chaves epapis falsos e colocado no mercado da Cidade do Mxico. Coisa de rotina.Geralmente o dinheiro volta sob a forma de herona. Parte da poltica de boavizinhana, na viso dos malandros.

  • 7

    O chefe do departamento de homicdios nesse ano era o capito Gregorius, um tipofeito de cobre que est ficando cada vez mais raro mas nem por isso extinto; o tipodo sujeito que resolve crimes com luz brilhante, solapando devagar, chute nos rins,joelho no baixo ventre, soco no peito aberto e porrete noturno na base da colunavertebral. Seis meses mais tarde ele foi indiciado por falso juramento, demitido semjulgamento e posteriormente pisado at morrer por um grande garanho em suafazenda em Wyoming.

    Mas no momento eu lhe servia de matria bruta. Sentou-se sua mesa, semcasaco e com as mangas enroladas quase at os ombros. Era careca como um tijoloe sua cintura ganhava volume como geralmente acontece com homens musculososao chegarem meia-idade. Os olhos eram cinza-peixe. O nariz grande era uma redede veiazinhas saltadas. Bebia caf mas no em silncio. As mos brutas, fortes,apresentavam grossos plos nas costas. Tufos acinzentados apontavam de suasorelhas. Tocou em alguma coisa em cima da mesa e olhou para Green.

    Green falou: Tudo o que conseguimos dele que ele no pretende nos dizer nada, capito.

    Fomos atrs dele por causa do nmero de telefone anotado. Ele estava fora com seucarro e no quis nos dizer onde. Conhece Lennox muito bem e no diz quando foique o viu pela ltima vez.

    Pensa que duro disse Gregorius, com indiferena. A gente pode mudarisso.

    Falou como se no se importasse com uma coisa ou outra. E provavelmentepouco se importava mesmo. Ningum era duro pra ele. Continuou: O problema o procurador-geral, que j est cheirando as manchetes sobre este caso. No culpa dele, j que a garota filha desse velho importante. Acho melhor a gentetorcer o nariz desse cara por causa do procurador.

    Olhou pra mim como se eu fosse uma ponta de cigarro ou uma cadeira vazia.Apenas uma coisa na sua linha de viso, sem nenhum interesse pra ele.

    Dayton falou, respeitosamente: Parece bastante evidente que a atitude dele

  • destina-se a criar uma situao na qual possa recusar-se a falar. Andou citando leispara ns e me cutucou at eu lhe dar um soco. Ele me fez sair do srio, capito.

    Gregorius olhou para ele friamente: Deve se deixar cutucar com facilidade, seesse sujeitinho conseguiu te irritar. Quem foi que tirou as algemas dele?

    Green disse que tinha sido ele. Coloque elas de novo. Bem apertadas. D-lhe alguma coisa para ocupar os

    braos.Green colocou as algemas de novo ou comeou a coloc-las. Atrs das costas disse Gregorius, como se latisse.Green me algemou com os braos pra trs. Eu estava sentado numa cadeira

    dura. Mais apertado mandou Gregorius. Faa com que as algemas mordam ele.Green apertou-as mais ainda. Minhas mos comearam a ficar insensveis.Finalmente Gregorius olhou para mim, com ar triste. Voc pode falar agora. Facilite as coisas.No respondi. Ele inclinou-se e arreganhou os dentes.A mo avanou lentamente procurando a xcara de caf e deu a volta nela.

    Inclinou-se um pouco para a frente. O caf voou mas me defendi me jogando prolado com a cadeira. Ca pesadamente sobre o ombro, virei o corpo e levanteilentamente. Minhas mos estavam mais insensveis ainda. No sentiam nada. Osbraos acima das algemas comeavam a doer.

    Green me ajudou a voltar para a cadeira. O cheiro molhado do caf espalhava-sepelo assento e as costas da cadeira, mas a maior quantidade dele estava no cho.

    Ele no gosta de caf Gregorius falou. um cara rapidinho. Move-seligeiro. Tem bons reflexos.

    Ningum disse nada. Gregorius me deu uma geral com seus olhos de peixe. Aqui, meu caro, uma licena de detetive particular significa a mesma coisa

    que um papel qualquer. Vamos agora ao seu depoimento, verbal em primeiro lugar.Depois a gente toma nota. Um depoimento completo. Queremos, vamos dizer, umadescrio pormenorizada de seus movimentos desde as dez horas da noite passada.

  • Eu disse pormenorizada. Esta delegacia est investigando um crime e o maiorsuspeito sumiu. Voc se comunicou com ele. O cara flagra a mulher traindo-o e batenela com fora, transformando a cabea da moa numa pasta de carne crua, ossos ecabelos empapados de sangue. Nosso velho amigo usa uma estatueta de bronze.Nada original, mas funciona. Voc est pensando que qualquer xereta particular demerda vai ficar citando lei pra cima de mim diante disso tudo, cara? Se for assim,nem imagina o que o espera. No existe fora policial no pas que possa fazer seutrabalho com um livro de leis. Voc tem informao e eu quero essa informao.Deu pra sacar? Se disser "no" eu posso dizer que no acredito em voc. Mas vocainda nem disse no. No vai querer me fazer de bobo, meu amigo. No valeria apena, nem um centavo. Vamos em frente.

    Poderia tirar essas algemas, capito? Quer dizer, se eu fizer um depoimento? Pode ser. Se for direto ao assunto. Se eu lhe disser que no vi Lennox nas ltimas vinte e quatro horas, no falei

    com ele e no tenho a menor idia onde ele possa estar ficaria satisfeito, capito? Poderia... se acreditasse. Se eu lhe disser que andei vendo Lennox e onde e quando, mas no tinha a

    mnima idia de que ele tivesse cometido um crime ou que qualquer crime tivessesido cometido, e alm disso no tenho a menor idia de onde ele est nestemomento, isso tampouco iria satisfaz-lo, no ?

    Se der mais detalhes, poderei escut-lo. Coisas como onde, quando, como eleestava, sobre o que conversaram, pra onde ele se dirigiu. So coisas que podemchegar a dados concretos.

    Com seu tratamento, tudo isso provavelmente poderia me transformar numcmplice.

    Os msculos de seu queixo viraram uma protuberncia.Os olhos pareciam gelo sujo. E da? disse. No sei. Preciso de assistncia legal. Gostaria de cooperar. Que tal se

    tivssemos aqui entre ns algum do escritrio do procurador-geral?Ele soltou um riso curto e rouco. Que chegou ao fim antes do tempo. Levantou-

  • se devagar e circundou a mesa. Inclinou-se na minha direo, uma mozona emcima da mesa; sorriu. Depois, sem mudana de expresso, me bateu do lado dopescoo com um punho que parecia um pedao de ao.

    O impacto viajou uns dois ou trs centmetros, no mais. E quase arrancouminha cabea. Um gosto de bile na minha boca. Gosto de sangue misturado combile. No ouvi nada a no ser um ronronar na minha cabea. Ele se inclinou sobremim ainda sorrindo, a mozona esquerda ainda na mesa. Sua voz parecia vir demuito longe.

    Eu costumava ser duro, mas estou ficando velho. Voc levou um bomsopapo, cara, e tudo o que vai conseguir de mim. Temos rapazes l na cadeia quedeviam estar trabalhando na estiva. Talvez a gente no precise cham-los porqueeles no so muito bonzinhos, nem limpos, nem lutadores de boxe com p no rostocomo o nosso Dayton. Eles no tm quatro filhos e um jardim de rosas como oGreen. Eles vivem para estas diverses diferentes. Gostam de qualquer tipo delas eultimamente anda faltando trabalho. Voc ainda tem outra dessas idias engraadasa respeito do que vai ou no vai falar, se que no se incomoda de nos dizer?

    No com essas algemas, capito. E me doeu mesmo o fato de falar isso.Inclinou-se sobre mim e senti o cheiro de seu suor e o hlito da corrupo.

    Ento endireitou-se, voltou a circundar a mesa e assentou suas slidas ndegas nacadeira. Pegou um esquadro e passou o polegar sobre uma de suas extremidadescomo se fosse uma faca. Olhou para Green.

    O que est esperando, sargento? Ordens. Green disse a palavra como se odiasse o som de sua prpria voz. Precisa que te digam? Voc um sujeito experiente, o que diz o teu dossi.

    Quero um depoimento pormenorizado dos movimentos deste homem nas ltimasvinte e quatro horas. Talvez mais do que isso, mas principalmente nestas ltimasvinte e quatro horas. Quero saber o que ele fez cada minuto. Quero isso tudoassinado e com testemunha e tudo checado. Quero isso em duas horas. Depoisquero ele de volta aqui, bem limpinho, arrumadinho e sem marcas. E mais umacoisa, sargento...

    Fez uma pausa e lanou um olhar a Green que poderia congelar uma batatarecm-cozida.

  • ...da prxima vez que eu pedir para fazer algumas perguntas civilizadas praum suspeito, no quero ver voc a em p, olhando como se eu tivesse puxado suasorelhas.

    Sim, senhor. Green virou-se para mim. Vamos disse asperamente.Gregorius mostrou os dentes para mim. Que precisavam e como de uma

    boa limpeza. Vamos ver o que voc tem a dizer, amigo. Sim, senhor respondi, educadamente. O senhor provavelmente no tinha

    a inteno, mas acabou me fazendo um favor. Com uma ajuda do detetive Dayton.O senhor resolveu um problema pra mim. Nenhum homem gosta de trair um amigomas, para o senhor, eu no trairia nem um inimigo. O senhor no apenas umgorila, um incompetente. No sabe como encaminhar uma simples investigao.Eu estava numa corda bamba e o senhor poderia ter me empurrado para um lado ououtro. Mas tinha de me maltratar, jogando caf no meu rosto e usando seus punhosquando eu estava numa situao em que minha nica reao s poderia ser levar osoco. De agora em diante, no lhe diria nem que horas marcam o relgio da suaparede.

    Por alguma estranha razo, ele ficou sentado perfeitamente quieto e permitiuque eu dissesse tudo isso. Depois fez uma careta: Voc no passa de um dessescaras que odeiam a polcia, amigo. isso que voc , xereta, um cara que odeiapoliciais.

    H certos lugares onde policiais no so odiados, capito. Mas nesses lugareso senhor no seria um policial.

    Ele engoliu isto tambm. Creio que podia se dar ao luxo. Provavelmente jouvira coisas muito piores. Mas ento o telefone soou na sua mesa. Olhou-o e fezum gesto qualquer.

    Dayton contornou espertamente a mesa e levantou o fone. Sala do capito Gregorius. Fala o detetive Dayton.Escutou. Um leve risco uniu suas simpticas sobrancelhas. Falou suavemente:

    Um momento, senhor, por favor.Passou o telefone para Gregorius: O comissrio Allbright, senhor.

  • Gregorius franziu o cenho: O qu? O que este filho da me quer?Pegou o fone, segurou-o por um momento, recomps o rosto: Gregorius,

    comissrio.Ouvia. Sim, ele est aqui no meu escritrio, comissrio. Estive fazendo algumas

    perguntas a ele. No cooperou, no cooperou nada... Como ?De repente sua expresso mudou, torcendo todo seu rosto num s n escuro. O

    sangue escureceu suas tmporas.Mas a voz no mudou de tom nem um pouquinho: Se isto uma ordem

    direta, deve vir atravs do chefe dos detetives, comissrio... Claro, vou segurar aspontas at ser confirmada. Claro... Pelo amor de Deus, no. Ningum encostou umdedo nele... Sim, senhor. Agora mesmo.

    Colocou o fone no gancho. Achei que sua mo estava tremendo um pouco. Osolhos se moviam de um lado pro outro pelo meu rosto e depois pelo rosto de Green.

    Tire essas algemas dele disse, numa voz sem tom.Green abriu as algemas. Esfreguei minhas mos, esperando as pontadas e

    agulhadas da circulao. Coloque-o na cela do Condado Gregorius falou, devagar. Suspeito de

    assassinato. O procurador-geral tirou o caso das nossas mos. um sistemamaravilhoso, esse nosso.

    Ningum se mexeu. Green estava perto de mim, respirando forte. Gregoriusolhava Dayton.

    O que est esperando, seu bosta? Que algum lhe traga um sorvete, hem?Dayton quase entrou em pnico. No recebi nenhuma ordem sua, capito. Diga "senhor" quando falar comigo, porra! Sou capito para os sargentos, no

    mnimo. No pra voc, garoto. Pra voc no. Fora. Sim, senhor.Dayton passou rpido pela porta e saiu. Gregorius levantou, foi at a janela e

    ficou l de costas para o escritrio.

  • Vamos, vamos embora Green murmurou no meu ouvido. Leva esse sujeito daqui antes de eu chutar a cara dele Gregorius disse l da

    janela.Green foi at a porta e abriu-a. Comecei a sair. De repente, Gregorius gritou:

    Pra a! Fecha essa porta!Green fechou e deu as costas para ela. Voc, vem at aqui Gregorius gritou de novo, desta vez pra mim.No me movi. Fiquei onde estava e olhei para ele.Green tampouco se moveu. Houve uma pausa desagradvel. Depois, lentamente

    Gregorius caminhou atravs da sala e ficou me encarando, bem de perto. Colocou asmos duras e grandes nos bolsos. Balanou nos calcanhares.

    Nunca encostei um dedo nele disse com seu bafo, como se falasse consigomesmo. Os olhos, remotos e sem expresso. A boca mexia-se convulsivamente.

    Ento ele cuspiu na minha cara.Deu um passo pra trs. Isso tudo, obrigado.Deu meia-volta e voltou para perto da janela. Green abriu a porta novamente.Passei por ela procurando o leno.

  • 8

    A cela n 3 no setor criminal tem dois estrados como cama, estilo cama de trem,mas o setor no estava muito cheio e fiquei sozinho. No setor criminal o tratamentocostuma ser bom. A gente recebe dois cobertores, nem sujos nem limpos, umcolchonete de forma indefinida, com cinco centmetros de espessura, para pr emcima das tiras cruzadas de metal. Tem banheiro completo, pia, toalhas de papel esabo spero cinza. As paredes da cela so limpas e sem cheiro de desinfetante. Osempregados trabalham. E geralmente so em nmero suficiente.

    Os encarregados das celas controlam os presos e so muito vivos. A no ser quevoc esteja bbado, seja psictico ou finja ser louco, eles permitem que voc fiquecom cigarros e fsforos. Pelo menos no incio a gente usa a prpria roupa. Maistarde veste-se o uniforme de preso, sem gravata, sem cinto, sem cordo de sapatos.Voc senta no estrado e espera. No h mais nada pra fazer.

    No depsito de bbados no to bom assim. No tem cama, nem cadeira, nemcobertor, nada. Voc se deita no cho de cimento. Voc se senta na privada e vomitano prprio colo. o fim da desgraa. Eu vi.

    Embora ainda fosse dia, as luzes estavam acesas. Na porta de ao das paredes dacela havia algumas barras tambm de ao, cobrindo o que chamam de janela deJudas. As luzes eram controladas do lado de fora das celas. Apagavam-se s nove danoite. Ningum aparecia na porta ou dizia qualquer coisa. A gente podia estar nomeio de uma frase de um jornal ou revista. Sem nenhum som ou aviso aescurido. E l fica a gente at amanhecer, sem nada para fazer a no ser dormir, sese conseguir, fumar, se se tiver alguma coisa pra fumar, e pensar, se se tem algumacoisa pra pensar que no nos faa sentir pior ainda do que no pensar em nada.

    Numa priso um homem no tem personalidade. Ele um problema menor aser resolvido e algumas anotaes num relatrio. Ningum se importa com quemgosta dele ou o odeia, como sua aparncia, o que ele fez com sua prpria vida.

    Ningum reage a ele a no ser que ele cause problemas. Ningum o maltrata.Tudo que pedem que ele fique quieto, siga tranqilo para sua cela e permaneaquieto depois que entrar nela. No existe nada com que lutar, nenhuma razo paraficar zangado. Os carcereiros so homens quietos, sem animosidade ou sadismo.

  • Todas essas histrias que vocs lem de homens gritando e berrando, se atirandocontra as grades, batendo com colheres nas barras de ferro, guardas correndo comporretes tudo isso a penitenciria. Mas uma boa priso um dos lugares maiscalmos do mundo. Pode-se caminhar por todo o bloco das celas noite evislumbrar, atravs das barras, vultos enrolados em cobertor pardo, os cabelos deuma cabea ou um par de olhos olhando para coisa nenhuma.

    Pode-se ouvir um ronco. Uma v