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Reflexões sobre o ensino de Saúde Pública em escola médica em tempos de reforma curricular Reflecting about teaching Public Health in medical school after curriculum reform Aparecida Mari Iguti doutora, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Lucia Kurdian doutora em Saúde Coletiva, professora substituta Departamento de Nutrição Social, UERJ, ex-colaboradora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Resumo: Em consonância com as modificações propostas nas grades curriculares dos cursos da saúde pelo Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, no espírito dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, o SUS, as autoras vivenciaram novas formas de abordagem do ensino- aprendizado no campo da Saúde Pública, focadas na Atenção Básica de Saúde, através de contato precoce de alunos ingressantes ao curso médico, com as Unidades Básicas de Saúde - UBS. Foram descritas as experiências, os campos de atividades e práticas dos alunos de duas docentes com os temas problematizados, por quatro anos consecutivos. Cada grupo de alunos foi alocado em diferente Unidade Básica. No primeiro semestre de cada ano foram levados a conhecer o território de abrangência da unidade, seus equipamentos sociais (de diferentes setores), o perfil demográfico e epidemiológico de sua população, a estrutura e organização do serviço e de sua relação com a rede. Do ponto de vista teórico, textos e discussões foram feitos, incluindo os modelos de atenção à saúde, o SUS, a dimensão e papel da Atenção Básica e o processo saúde-doença. Descreveram-se oito diferentes propostas de atividades envolvendo distintas demandas das UBS e suas equipes, que resultaram em 16 relatórios semestrais. A partir das vivências e experiências foram feitas reflexões, avaliando as situações e as reações dos alunos em relação a este novo fazer e aprender. Entre os desafios da implantação da reforma segundo o paradigma da integralidade, consideram-se as dificuldades na superação da formação fragmentada e especializada, como um dos desafios a ser enfrentado. Palavras-chave: reforma curricular, saúde pública, ensino, experiência. Abstract: In Brazil changes in professionals of health curriculum have been proposed by Education and Health Ministry to adequate to the principles and guidelines of the National Health System, the NHS. The authors have experienced with students new approaches of teaching-learning focused on Primary Care (Public Health). This study aimed to describe the experiences, fields of activities and practices of students from two teachers related to problematized issues, for four consecutive years through early contact with the Primary Care Units - of medical school new students. Each group of students was allocated in different Primary Care Unit. In the first half year they were taken to meet the coverage area of the unit, its social facilities (in different sectors), the demographic and epidemiological profile of the population, the structure and organization of the service and its relationship with the network. From the theoretical point of view, texts and discussions were made,

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Reflexões sobre o ensino de Saúde Pública em escola médica em tempos de reforma curricular

Reflecting about teaching Public Health in medical school after curriculum reform

Aparecida Mari Iguti – doutora, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da

Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Lucia Kurdian – doutora em Saúde Coletiva, professora substituta Departamento de Nutrição Social,

UERJ, ex-colaboradora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Resumo: Em consonância com as modificações propostas nas grades curriculares dos cursos da saúde

pelo Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, no espírito dos princípios e diretrizes do

Sistema Único de Saúde, o SUS, as autoras vivenciaram novas formas de abordagem do ensino-

aprendizado no campo da Saúde Pública, focadas na Atenção Básica de Saúde, através de contato

precoce de alunos ingressantes ao curso médico, com as Unidades Básicas de Saúde - UBS. Foram

descritas as experiências, os campos de atividades e práticas dos alunos de duas docentes com os

temas problematizados, por quatro anos consecutivos. Cada grupo de alunos foi alocado em diferente

Unidade Básica. No primeiro semestre de cada ano foram levados a conhecer o território de

abrangência da unidade, seus equipamentos sociais (de diferentes setores), o perfil demográfico e

epidemiológico de sua população, a estrutura e organização do serviço e de sua relação com a rede. Do

ponto de vista teórico, textos e discussões foram feitos, incluindo os modelos de atenção à saúde, o

SUS, a dimensão e papel da Atenção Básica e o processo saúde-doença. Descreveram-se oito

diferentes propostas de atividades envolvendo distintas demandas das UBS e suas equipes, que

resultaram em 16 relatórios semestrais. A partir das vivências e experiências foram feitas reflexões,

avaliando as situações e as reações dos alunos em relação a este novo fazer e aprender. Entre os

desafios da implantação da reforma segundo o paradigma da integralidade, consideram-se as

dificuldades na superação da formação fragmentada e especializada, como um dos desafios a ser

enfrentado.

Palavras-chave: reforma curricular, saúde pública, ensino, experiência.

Abstract: In Brazil changes in professionals of health curriculum have been proposed by Education

and Health Ministry to adequate to the principles and guidelines of the National Health System, the

NHS. The authors have experienced with students new approaches of teaching-learning focused on

Primary Care (Public Health). This study aimed to describe the experiences, fields of activities and

practices of students from two teachers related to problematized issues, for four consecutive years

through early contact with the Primary Care Units - of medical school new students. Each group of

students was allocated in different Primary Care Unit. In the first half year they were taken to meet the

coverage area of the unit, its social facilities (in different sectors), the demographic and

epidemiological profile of the population, the structure and organization of the service and its

relationship with the network. From the theoretical point of view, texts and discussions were made,

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including models of health care, the NHS, the size and role of primary care and health-disease process.

It was described eight different proposals for activities involving different demands of Primary Care

Units and their teams which have resulted in 16 reports. The discussions are made from the

experiences evaluating situations and the student’s responses in relation to this new approach of

learning. Among the challenges of reform implementation under the paradigm of integrality, we

consider the difficulties to overcoming the fragmented and specialized training, as one to be faced.

Keywords: curriculum reform, medical school, Primary Care, education, experience.

Introdução

Em tempos de discussão curricular dos cursos de medicina, participamos como docentes em

duas disciplinas de Saúde Pública, por oito semestres consecutivos, na implantação da reforma em

uma faculdade de medicina pública incluída no programa PROMED do Ministério da Saúde. Os

objetivos deste texto são de refletir sobre as experiências didático-pedagógicas no campo da saúde

coletiva, no contexto da reforma curricular.

A intervenção no processo formativo tem como meta o deslocamento do eixo da formação

centrada na assistência individual prestada em unidades hospitalares para um processo mais

contextualizado, que “levem em conta as dimensões sociais, econômicas e culturais da população” no

sentido de “enfrentar os problemas do processo saúde/doença da população”, numa perspectiva de

equilíbrio entre a excelência técnica e a relevância social. Para isso, existe a necessidade da

sustentação dada pelas verdadeiras parcerias entre as universidades, os serviços e os grupos

comunitários (CAMPOS et al., 2001). Para assegurar os princípios e diretrizes do Sistema Único de

Saúde – SUS com acesso universal e equidade às ações e serviços de saúde, exige-se superar barreiras

e dificuldades, e os desafios, que agrupam quatro grandes focos, que o autor chama de ‘vetores’:

formação, atenção, gestão em saúde e participação, que se entrelaçam num todo (CECCIM, 2002).

O movimento deflagrado na década de 1990, que teve como marco a Conferência Mundial de

Educação Médica de Edimburgo em 1988 (GUSSO et al, 2009), levou nas últimas décadas os cursos

de medicina a reformularam de seus currículos para atender às diretrizes das Leis de Diretrizes e Bases

da Educação – LDB e do Ministério da Saúde (BRASIL, 2001). Várias escolas foram incentivadas

através da PROMED, Programa de Incentivo à Mudança Curricular para as Escolas Médicas, lançado

pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação. A iniciativa reafirmou as

orientações contidas nas Diretrizes Curriculares dos cursos médicos, para formação de profissionais

com postura ética, visão humanística, responsabilidade social e compromisso com a cidadania, e

orientados à proteção, promoção da saúde e prevenção das doenças com competência para atuar em

nível primário e secundário de atenção, e resolvendo com qualidade, os problemas de saúde mais

prevalentes no país.

De modo geral, “os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina devem

estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade,

integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do

cuidar em saúde”, e especificamente em relação à Saúde Coletiva, temos a meta de “vincular, através

da integração ensino-serviço, a formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde, com

ênfase no SUS” (ALMEIDA, 2003)

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De acordo com as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina, o

aluno em formação deverá adquirir competências e habilidades gerais e específicas que atendam as

necessidades de saúde da população do país (ALMEIDA, 2003). Dos 21 grandes blocos de habilidades

e competências listados pelas diretrizes, onze estão diretamente relacionados ao campo da Saúde

Coletiva, envolvendo o trabalho de equipe, a humanização, a integralidade, as ações de prevenção e

promoção da saúde.

Essas mudanças preveem a constituição de currículos nucleares, horizontalizados, integrados

interdisciplinarmente e a responsabilização compartilhada de modo crescente e amplo das escolas com

o sistema de saúde. Priorizam-se os serviços públicos, sendo o SUS, em especial, o Programa de

Saúde da Família, demandantes de novo perfil profissional (CHEHUEN et al, 2011). CAMPOS et al

(2009) estudando o currículo médico em três universidades do Estado do Paraná observaram a

presença de 5%, 6% e 20% de temas relacionados à Saúde Pública com atividades no SUS, indicando

a adequação às diretrizes MEC/ MS.

No ano do início da reforma da qual participamos, iniciou-se a implantação do Programa da

Saúde da Família, com algumas inovações virtuosas, o Projeto Paidéia, onde “se busca uma síntese

representada pelo respeito ao saber técnico e ao popular, considerando os interesses e os desejos dos

agrupamentos” tendo como foco a “ação social em defesa da vida”. Nessa idéia, a implantação da

Estratégia da Saúde da Família deveria ter suas ações com alterações do modelo assistencial e do

modelo gerencial, com novos arranjos no processo de trabalho das equipes e nas suas relações com os

usuários. Entre as características, destacaram-se a Clínica Ampliada, a ampliação das ações de saúde

Coletiva no nível local, as equipes de referência, as equipes matriciais, o acolhimento a

responsabilização (ANDRADE et al, 2006). Foi neste espírito que as autoras fizeram o relato de

experiências.

Descrevendo a experiência

As autoras participaram como docentes desde a implantação da reforma curricular em uma

faculdade de medicina de uma universidade pública em módulos de Ações de Saúde Pública I

(primeiro semestre) e II (segundo semestre), com a proposta de “construir conhecimentos iniciais com

os estudantes sobre: (1) necessidades de saúde, a partir dos modos de vida, saúde e doença, do ponto

de vista do usuário e das equipes de saúde; (2) as atividades desenvolvidas pela unidade,

acompanhando e avaliando-as, participando, na medida do possível, dessas atividades e a partir

dessas informações, elaborar propostas para o serviço; (3) a organização das práticas do serviço em

suas formas de intervenção; (4) o território de saúde em sua abrangência, com suas distinções sócio-

econômicos e culturais; (5) a participação dos diversos atores sociais na dinâmica do serviço

(controle social); (6) o trabalho em equipe e a atuação multiprofissional, em abordagem

multidisciplinar” (PROGRAMA MÓDULO AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA, 2001)

Operacionalização dos módulos

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Os módulos contaram com 120 alunos, divididos em nove grupos com um ou mais docentes

por grupo, que se desenvolvem em diferentes Unidades Básicas de Saúde (UBSs), definidas como

locais de inserção e distribuídas em quatro dos cinco Distritos de Saúde do município de Campinas.

Ocorrem sempre às quintas feiras, no período da manhã. O deslocamento até as unidades é feito com

ônibus fretados pela faculdade.

Tentando explorar os saberes prévios dos alunos, trabalhamos com pequenos grupos,

construindo roteiros para as atividades que irão realizar no território e na UBS. Em grandes linhas, os

roteiros de conteúdo a serem cumpridos, constam, no primeiro semestre, de diagnósticos do território e

do perfil de morbidade e mortalidade da população da UBS. Neste primeiro momento, os alunos foram

estimulados a refletir e a buscar informações que podem ser obtidas, considerando as situações

estruturadas por indicadores, em fontes organizadas (bases de dados, estatísticas do serviço, etc.) e as

em estruturação, obtidas a partir de observações diretas e de entrevistas de abordagem qualitativa. O

trabalho didático pedagógico centrou-se na perspectiva da produção do conhecimento de modo

construtivista que opera com vivência, problematização e teorização. No segundo momento, partiu-se

de uma proposta de ação de saúde pública pontual, de acordo com o nível de conhecimentos dos

alunos (primeiro ano de medicina) e com as demandas dos serviços, onde desenvolveram a ação,

levando em conta suas limitações teóricas e práticas.

Os dados

Nos quatro anos, as atividades realizadas totalizaram 960 horas, para oito grupos de

estudantes, com 100 alunos ao todo, envolvendo dois Distritos de Saúde do município (Quadro 1). Um

dos distritos sanitários tinha população estável e em envelhecimento, perfil socioeconômico classe

média-média, com alguns bolsões de pobreza e perfil epidemiológico de morbidade e mortalidade de

doenças crônico-degenerativas (doenças cardiovasculares e metabólicas). Outro distrito apresentava

população jovem, de classe média-baixa e baixa com extensas áreas de ocupação, alta mobilidade,

perfil de morbidade e mortalidade de causas externas em jovens e as doenças crônico-degenerativas na

população adulta em geral.

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Quadro1. Caracterização dos grupos por território, população e ações desenvolvidas.

Ano 1 2 3 4

Grupo

G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2

Distrito

L L SE SE SE SE L L

UBS*

CS 1 CS 29 CS 37 CS 13 CS 37 CS 13 CS 4 CS 21

População Envelhecida Envelhecida Jovem Jovem Jovem Jovem Envelheci

da

Envelhecida

Perfil

epidemiológic

o

Degenerativ

a crônica

Degenerativa

crônica

Perfil de

transição

Perfil de

transição

Perfil de

transição

Perfil de

transição

Degenerat

iva

crônica

Degenerativ

a crônica

Ação

Construção

de Banco

dados sobre

portadores

de HAS e

análise.

Levantamento

dos

equipamentos,

instituições de

apoio social e

programas

para idosos.

Avaliação

de saúde

de

escolares

Avaliação

de saúde e

nutriciona

l de pré-

escolares

Educação

em Saúde

reprodutiv

a para

escolares

pré-

adolescent

es

Avaliação

do programa

de

desnutridos

da UBS.

Construçã

o do

Cadastro

Hiperdia

Levantamen

to do

consumo de

cigarro de

tabaco.

*A numeração das UBS corresponde à classificação oficial da Secretaria de Saúde do município. (G=

Grupo)

As ações de saúde desenvolvidas nos quatro anos compreenderam (1) o levantamento, a

construção de um banco de dados e a análise descritiva dos registros da clientela portadora de

hipertensão arterial, (2) o conhecimento dos equipamentos e das instituições de apoio social à

população de idosos, (3) a avaliação da saúde de escolares, (4) a avaliação nutricional de pré-escolares

(5) o desenvolvimento de ações educativas sobre saúde reprodutiva junto a escolares e adolescentes,

(6) a avaliação do impacto do programa de desnutridos, (7) o preenchimento do cadastro de

HIPERDIA (Programa do Ministério da Saúde para controle de Hipertensão e Diabetes) e (8) o

levantamento do consumo de cigarro de tabaco em uma amostra de domicílios da área de abrangência

da UBS.

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Detalhamento das demandas que geraram as “ações”

Ano 1

G1. A percepção da coordenação da Unidade Básica de Saúde era de que os pacientes que

mais demandavam o serviço eram os hipertensos, procurando atendimento com maior

frequência, em menor espaço de tempo. Entretanto, como a unidade não possuía estatística

dessa população atendida, a solicitação do serviço foi de levantar os dados de hipertensos que

retiravam medicamentos anti-hipertensivos. Foram levantados 335 prontuários contendo os

dados do perfil socioeconômico destes usuários. Além disso, o grupo acompanhou os

programas de atividades físicas e de orientação nutricional, existentes na unidade; também se

organizou uma “feira de saúde” (feirinha de artesanato em um sábado pela manhã).

G2. O CS possui a sua maior demanda no bairro mais populoso, situado na área mais próxima

da Unidade. Sua população possui um grande contingente de idosos, fato que levou a um

consenso entre a docente, os alunos e a Coordenação da Unidade, acerca da ação a ser

desenvolvida. A ação consistiu em levantar a oferta de outros serviços de apoio social a este

grupo, tais como programas de melhoria de qualidade de vida e da assistência

institucionalizada (casas de repouso para idosos).

Ano 2

G1. A demanda da unidade foi de estabelecer contato com uma escola estadual da região de

abrangência, realizando um primeiro “diagnóstico” de saúde dos escolares, tendo como meta

criar uma ponte de acesso (considerado difícil para unidade de saúde), para facilitar as

atividades educativas. Foram entrevistados 312 escolares utilizando-se um breve questionário

de morbidade referida, avaliação de acuidade visual e avaliação antropométrica com cálculo

do Índice de Massa Corpórea - IMC.

G2. A coordenação da unidade solicitou atividades junto a uma creche localizada próxima ao

centro de saúde onde crianças de seis meses a quatro anos permaneciam das 7h às 17h. Foram

levantadas as ocorrências de problemas de saúde nas crianças e o seu estado nutricional. As

queixas de saúde foram informadas pelas atendentes de creche e dados de saúde foram

coletados das fichas das crianças. A avaliação nutricional foi realizada pelos alunos que

receberam treinamento da docente.

Ano 3

G1. Neste grupo a demanda de ação foi uma atividade com pré-adolescentes numa escola

municipal. A demanda de atividades com a abordagem em educação e saúde deveu-se ao fato

que na região a prevalência de gravidez na adolescência era a mais prevalente em relação ao

distrito de saúde. A preparação envolveu as questões dos alunos de medicina e foram feitas

algumas dinâmicas. Depois, levantamos as dúvidas mais freqüentes sobre a saúde reprodutiva,

entre os 142 escolares; foram feitas atividades de “aquecimento” para propiciar o

conhecimento do corpo humano, em pequenos grupos (cada aluno ficou responsável por 9-10

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escolares, separados por sexo); posteriormente os escolares tiveram a liberdade para conversar

e tirar suas dúvidas. Nas duas últimas semanas, as dúvidas foram categorizadas e divididas em

cinco grandes temas que os estudantes de medicina prepararam e os apresentaram, utilizando

cartazes, figuras, vídeos. As atividades foram finalizadas com a produção de um vídeo de 9

minutos, constando das etapas do projeto.

G2. A coordenadora do programa de atenção aos desnutridos do CS solicitou-nos uma

avaliação do impacto do programa na recuperação do estado nutricional das crianças

atendidas pelo programa. Foram estudadas as fichas de notificação epidemiológica de

52 casos de desnutrição em crianças de até 7 anos. Variáveis sócio-econômicas, peso

ao nascer, grau de desnutrição, perfil da amamentação, episódios de infecção e

existência ou não de esgotamento sanitário foram levantadas e descritas. Além disto,

foi utilizado o indicador de incremento de peso segundo sexo e idade no início do

acompanhamento e o tempo de intervenção do programa. Os alunos também fizeram

visitas domiciliares às casas das crianças desnutridas para conhecer a realidade de vida

dessas famílias e conversar com as mães sobre o grau de conhecimento delas sobre a

desnutrição. Os resultados do trabalho foram apresentados pelos alunos à equipe que

trabalhava junto o programa. Ano 4

G1. Desde o primeiro contato, a coordenação solicitou uma atividade bem específica, de

iniciar o cadastro do HIPERDIA, um programa que a unidade priorizava na atenção aos

pacientes crônicos. Os alunos receberam treinamento para ‘tomada’ de PA (com docente de

Enfermagem), avaliação antropométrica com cálculo do IMC e da relação cintura-quadril

(com docente de Nutrição) para o correto preenchimento do cadastro; a unidade convocou os

pacientes hipertensos e diabéticos para avaliação. Foram preenchidas 125 fichas de cadastro

do programa. Além disso, por demanda espontânea, foram avaliados mais 102 usuários, não

pertencentes aos programas de hipertensos e diabéticos.

G2. Após reunião com a coordenação e a médica pediatra do CS, foi apontada a

necessidade de trabalhar preventivamente as doenças respiratórias junto aos moradores

do bairro onde ficava localizado o CS, principalmente junto á população infantil. O

trabalho realizado pelos alunos tinha como objetivo principal verificar a presença de

associações entre tabagismo e doenças respiratórias nos moradores e passar

orientações sobre malefícios do uso de cigarro de tabaco. Foram levantados dados

sobre o perfil sócio-demográfico dos moradores; freqüência de fumantes entre os

moradores; presença e tratamento de morbidades entre os moradores e ocorrência de

doenças respiratórias nos moradores, assim como o número de episódios e a

necessidade de internação. Foram visitados 73 domicílios, e aplicado, para

levantamento dos dados, um questionário semi-estruturado. Durante a visita os

moradores eram informados da importância da cessação do tabagismo entre os

fumantes e da existência de tratamento no SUS.

Nosso olhar sobre a experiência

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Quadro 2. Comparação entre o modelo ‘clássico’ e a inovação da reforma

Clássico Modelo da reforma

Objetivos das disciplinas Passar informações sobre

modelos de atenção à saúde,

políticas públicas e conceitos

da Saúde Pública.

Introduzir, a partir de

vivências precoces em

serviço, o conhecimento

sobre a estrutura e

organização dos serviços de

Atenção Básica de Saúde

tendo como foco as

necessidades em saúde da

população.

Locus das Atividades Sala de aula com turmas

completas; visitas esporádicas

às UBS.

UBS e outros equipamentos

sociais, conhecer o território;

pequenos grupos.

Abordagem pedagógica Passiva, com exigências

centradas em frequência e

provas, às vezes resumos de

textos.

Ativa, numa abordagem

construtivista, participação

ativa, com produção de ações

pontuais, relatórios.

Desenvolvimento de

habilidades

Centrada na informação,

individualizada.

Trabalho em equipe,

interação com serviços,

diferentes profissionais da

saúde.

Avaliação Provas e relatórios teóricos Participação ativa nas

atividades, construção de

ações pontuais demandadas

pelas UBSs, incluindo

apresentação e devolutiva.

Relação docente-alunos Formal, muitas vezes o

docente desconhece os nomes

dos alunos

Vínculo, conhecimento

individualizado,

conhecimento por nomes e

características individuais.

Relação aluno e-profissionais

de serviço

Ausente ou esporádico em

visitas pontuais.

Necessária e ativa, incluindo

as dificuldades

interprofissionais.

Carga horária 60 horas anuais 120 horas anuais

A riqueza de informações, o aprendizado em condições “reais” e concretas

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Avaliando o processo de construção de conhecimentos produzidos no decorrer do ano e dos

relatórios feitos, tivemos a percepção de que os alunos cumpriram as metas estabelecidas num

contexto que permitiu integrar informações com os saberes e conhecimentos, numa dinâmica muito

favorável ao ensino-aprendizado. O potencial para desenvolver atividades foi grande, potencializando

boas ideias e trabalhos, alguns dos quais reconhecidos pelo serviço, gerando inclusive ‘pequenos’

trabalhos para congressos da área e alguns projetos de iniciação científica. O aprofundamento de

conhecimentos dependeu da interação docente-alunos.

O vínculo docente-alunos e o vínculo com os serviços

Dois módulos sequenciais, cada um com 60 horas semestrais, permitiram estabelecer um grau

de aproximação muito forte entre docente e aluno, seja positivo ou negativo. Conhecer cada aluno pelo

nome, discutir aspectos mais específicos e em certos casos, permitir um aprofundamento mais

individualizado, deu uma qualidade diferenciada ao trabalho docente. Mesmo no serviço, alguns

alunos passaram a se preocupar com os cuidados de pacientes, encaminhando-os para agendamento de

consultas e chegando até a resolver pequenos problemas dos usuários, como orientações sobre a

compreensão de uma prescrição de medicamentos. Assim, esses usuários passaram até mesmo a

demandar diretamente a atenção dos alunos.

As possibilidades de atividades

O potencial de atividades foi considerado por nós enorme, contribuindo com o retorno de

informações relevantes às unidades. Na maioria das vezes ocorreu um aumento da demanda, gerada

pelas ações desenvolvidas pelos alunos, nem sempre visto com bons olhos pela equipe do serviço (que

compreensivelmente já trabalhava com demanda reprimida).

A avaliação dos alunos

Embora os resultados (relatórios e devolutivas dos serviços) fossem considerados muito

positivos existiram muitas queixas dos alunos, tendendo a ser negativa no seu conjunto. Ir para os

serviços, sem dúvida, demandou preparação teórica (para não se transformar numa mera abordagem

‘impressionista’). As dificuldades de leituras e preparação para o campo foram grandes. Mesmo

quando os temas foram de clínica médica, existiu a resistência em estudar e preparar as atividades

práticas. Os aspectos que destacamos no núcleo da saúde pública foram muitas vezes menosprezados

e, para muitos, tratou-se de uma mera atividade obrigatória, sem sentido na sua formação

profissionalizante. Alguns alunos inclusive propuseram a reintrodução de “aulinhas”, indicando uma

incompreensão a uma abordagem diferente da tradicional, pouco satisfeitos com o aumento da

participação /exposição /responsabilização ou não adesão a um modelo não tradicional. Muitos alunos

‘resistiram’ às atividades coletivas, preferindo as tarefas individualizadas; o trabalho em equipe (entre

os estudantes) foi em algumas ocasiões dificultado por atitudes quase hostis de alguns alunos; em

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outros casos, descobria-se que os alunos dividiam as tarefas, chegando inclusive até a sortear algumas

tarefas, como a preparação de relatórios e apresentação final do trabalho de grupo.

Também se queixaram da diversidade de projetos entre os subgrupos: “cada grupo é uma

matéria diferente”. Para eles, na troca de experiências, ficou como se cada grupo fizesse, com seu

docente e sua unidade, uma disciplina diferente, mesmo que argumentássemos que as bases, o núcleo

de conhecimentos, fossem comuns. Neste item, houve alguma certa variação, que correspondia às

diferenças entre docentes, os temas e as características das unidades. Os alunos encararam a

diversidade de situações como um aspecto negativo da disciplina. Para minimizar as queixas houve

uma regressão aos parâmetros mais tradicionais, para ‘uniformizar’ os grupos. Por exemplo, na

avaliação, reintroduziram-se as provas dissertativas. Também se tentou padronizar as idas a campo,

reduzindo justamente a variação e a flexibilidade de situações demandadas pelas diferentes ações dos

serviços em função das necessidades de saúde da clientela, que impuseram ritmos distintos para cada

grupo.

O projeto didático teórico-prático também fez com que fossem necessárias as leituras, uma vez

que a prática requer fundamentações teóricas, de modo a se construir um sentido para as vivências e

experiências dos alunos. Leitura é na atualidade uma das grandes dificuldades: parcela de alunos, caso

não sejam cobrados, não leem os textos indicados, incluindo os de natureza ‘médica’. Não querem

estudar por exemplo, o tema da hipertensão e diabetes, embora estivessem se preparando para

cadastrar portadores destas duas doenças crônicas. Pediram uma ‘aulinha’ com algum ‘especialista’.

Muitos não gostaram do sistema de avaliação, (que incluiu assiduidade, participação,

cumprimento de tarefas, o trabalho em equipe, a postura adequada diante do serviço e dos pacientes, e

apresentação oral final e a confecção de um relatório), tido por vários como “muito subjetivo”.

Pressionaram por avaliação “objetiva”, embora reclamassem quando se instituíram as provas escritas.

Na avaliação da proposta curricular desenvolvida por uma equipe de professores, os alunos

formados na primeira turma após a implantação do novo currículo manifestaram-se favoráveis ao

currículo e apesar das muitas críticas aos primeiros semestres do curso, os alunos consideram que sua

postura profissional e a compreensão da realidade social foram fortemente influenciadas por esse

currículo (KOIFMAN, 2004).

A avaliação docente

Destacamos como pontos positivos as atividades extramuros, o contato precoce com serviços e

usuários no contexto da realidade da comunidade. Configuraram-se inúmeras ocorrências e situações

de aprendizagem, embora os alunos, com poucas exceções, percebessem toda a riqueza como parte

integrante de sua formação; sentiam como se não fossem conhecimentos, no máximo coisas

‘interessantes’. Um exemplo prático ocorreu numa visita aos equipamentos da saúde do território,

onde os estudantes conheceram um Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS. Houve muita estranheza

dos alunos à proximidade dos pacientes, e o grupo se esquivava de qualquer contato com os usuários,

que curiosos, se aproximavam. Após a visita, fizemos uma discussão sobre o que eles sentiram, e aí

apareceu o medo; aproveitamos a oportunidade para discutir o preconceito, o medo, a dificuldade de

lidar com o outro, com o diferente, uma dinâmica linda. Entretanto, aparentemente o que ficou, foi

como se fosse uma ‘conversa de bar’. Na nossa percepção, houve dificuldade dos alunos em

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compreender o sentido das atividades propostas e realizadas, onde várias situações não foram por eles

consideradas como conhecimentos/saberes “médicos”, e por serem não quantitativos e não diretamente

relacionados com a formação dita ‘técnica’.

PEREIRA e ALMEIDA (2004) observaram em experiência de reforma curricular, que

existiam barreiras às reflexões oriundas das Ciências Humanas nos temas dos grupos tutoriais, que

ficam reféns dos discursos tradicionais sobre o corpo e sobre a relação saúde/doença. A explicação se

deveria à impregnação, pelos atores da educação médica, de um imaginário social que concede ao

saber médico tradicional o lugar privilegiado de produção da verdade, reproduzido pelos

tutores/facilitadores/médicos e refletido no comportamento diante dos alunos. Já os alunos teriam a

motivação para a escolha da medicina, a atração por essa posição de poder/saber conferida pelo ofício

da medicina. Consideram ainda a refração encontrada entre os estudantes no que diz respeito às

abordagens críticas que as Ciências Humanas aportam à problemática da medicina, mostrando a

relação do corpo com a cultura, com a sociedade e com trajetórias individuais, e que esses

conhecimentos, nomeados genericamente de “psicossociais”, são tratados como de menor importância,

sendo vistos na condição de complementares aos “verdadeiros” e “supervalorizados” conhecimentos

médicos de base exclusivamente biológica. (PEREIRA e ALMEIDA, 2004)

Os grupos pequenos permitem maior interação docente-aluno e vínculo dos alunos com os

serviços; construção de conhecimentos a partir da interação direta com as equipes, profissionais e

usuários. O tempo prolongado com os alunos possibilita múltiplas abordagens, de acordo com as

condições e interação com o serviço. Entretanto a participação dos estudantes é heterogênea ao

compor os grupos de trabalho, pois muitos estão acostumados às atividades individuais e a cobrança

direcionada à performance informacional. Em relação ao serviço, os estudantes não aceitam as

impossibilidades e limitações deste (por exemplo, um cancelamento de uma atividade agendada;

pacientes que não aparecem na convocação).

AGUIAR (2001) observa em sua pesquisa que a maioria dos tutores entrevistados aprecia o

trabalho, embora considere que a função docente hoje seja mais complexa que no passado; relatam

gratificar-se interagindo mais com os alunos, observando seu desenvolvimento profissional e pessoal;

também destacam o expressivo grau de sofisticação quanto ao ensino das habilidades e atitudes, objeto

de avaliações mais rigorosas, devendo os alunos demonstrar maestria na relação com pacientes,

colegas e situações-problema. (AGUIAR, 2001)

ASSUNÇÃO et al (2008) avaliando a relação médico-paciente no novo currículo observam

que ainda persistem as formas pouco humanizadas no ensino médico e que as experiências desse

contato com os usuários, em inserção precoce na Atenção Básica, depende dos próprios alunos, no

dizer dos autores, “os estudantes que aproveitam essa oportunidade”. Também não é possível

desconhecer as disputas entre os departamentos e sua discordância no processo de reformulação

curricular nos objetivos da formação do médico estabelecidos no novo currículo (conteúdos), assim

como as dificuldades na forma de condução do processo formativo, por exemplo, a abordagem

construtivista (KOIFMAN, 2004).

O aprendizado docente é alavancado pelas condições e situações que ele enfrenta e assim,

possibilita o acúmulo de saberes e experiências/vivências do ponto de vista didático. Uma última

questão, embora tenhamos no conjunto uma avaliação muito positiva, também temos que destacar o

aspecto do tempo de preparação e das constantes negociações exigidas por esta formatação; o

consumo de tempo e a exigência de dedicação são grandes, sem que haja uma real valorização pela

instituição, que cobra a participação através de “aulas efetivamente dadas”, como já apontam outros

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autores, que frente às dificuldades institucionais, os esforços dependeram de uma adesão ideológica de

docentes e estudantes, representando “um elevado ônus” para os que assumiram o processo de

integração do ensino-aprendizagem nas redes de serviços (CAMPOS et al., 2001).

Os Desafios

Entre os desafios, a eterna busca de um canal de comunicação efetiva com os alunos, de forma a

que possam ter uma melhor compreensão do que se pretende, que consigam perceber o sentido das

práticas e da teoria no cuidado da saúde. Nesse sentido, há necessidade de superar a atual concepção

(hegemônica) do trabalho médico organicista e tecnicista, introduzindo o paradigma da integralidade

(LAMPERT, 2002). Sabemos que não basta criar novas disciplinas, nem promover a ‘reforma’ para

que as mudanças ocorram. A atual conjuntura não favorece os olhares sobre as diferenças, sobre o

coletivo, nem sobre o trabalho em equipe; o individualismo predomina inclusive na formação desses

estudantes.

A relação com as unidades tem ao longo do tempo se tornado melhor com criação de vínculos; a

participação das coordenações locais tem sido essencial para o bom andamento das atividades

desenvolvidas pelos alunos, mas a construção de uma efetiva parceria entre serviço e universidade,

está longe de se completar. Dar continuidade às ações que se mostraram com potencial nas unidades,

um questionamento frequente dos serviços e dos alunos foi um dos desafios que após vários anos se

conseguiu dar sequencia, ficando alunos e docentes ‘fixados’ em uma mesma unidade por dois anos

consecutivos, reduzindo desta forma a fragmentação produzida por grande variação de docentes,

coordenadores e unidades de saúde.

Também a discussão entre docentes, coordenação da disciplina e a coordenação da graduação

poderia ser implementada, no plano teórico e operacional, no sentido pedagógico – didático, para uma

melhor articulação do trabalho docente, com os princípios e diretrizes do currículo médico. Neste item

sentimos a necessidade de uma melhor capacitação docente, para lidar com método construtivista em

situações díspares e complexas, em relação às demandas dos alunos e do serviço. A formação docente

também segue os modelos tradicionais de ensino, com aulas expositivas e com foco técnico operativo.

Necessita-se ainda de uma linguagem comum com maior entendimento da própria disciplina pelos

diversos docentes e uma maior integração entre as disciplinas, tanto verticalmente como

horizontalmente.

Os estudos e relatos de experiências em diferentes ‘disciplinas’ nas escolas médicas brasileiras

mostram semelhanças no discurso em relação ao perfil que se deseja formar, de um médico com maior

aproximação com a população, mais humanizado, com formação generalista; os conteúdos

programáticos são relativamente semelhantes, mantendo as bases de formação (estrutura e função do

corpo humano normal/patológica), com maior integração entre as diversas disciplinas e o contato

precoce com a rede de Atenção Básica de Saúde, deslocando o foco do modelo de aprendizado

especializado, centrado no hospital e em ‘casos’ complexos. Em um dos estudos os autores destacaram

as avaliações da opinião dos alunos sobre a formação generalista como no exemplo a seguir e entre

100 alunos cursando o quinto e sexto anos de medicina, somente 23% concordou e apoiou, 34%

concordou, mas não apoiou, apoiou, mas não concordou 33% e 10% não apoiou nem concordou com

esta diretriz de formação (CHEHUEN et al, 2011).

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As avaliações de docentes e alunos envolvidos neste processo também apresentam muitas

semelhanças nas dificuldades da relação com os serviços, com destaque nas dificuldades para lidar

com alunos de medicina, principalmente nas unidades com pouca experiência desta natureza, onde a

organização do trabalho encontra-se focado em demanda de usuários, com pouco espaço para mais

atividades que aumentam as exigências de organização das equipes já sobrecarregadas, numa

infraestrutura deficitária, que impede atividades bem definidas, tutorias cujos papéis necessitam e uma

melhor construção e as resistências docentes a aceitar novos modelos e papéis. Não se trata de tarefa

fácil a avaliação dos impactos da implantação dessa reforma e dependendo da forma como se dá a

avaliação, podem-se notar aspectos negativos em relação até do conteúdo programático pelos alunos

(que, na falta de avaliações comparativas entre os dois modelos, fica prejudicado, nada garantindo que

no modelo antigo as mesmas questões poderiam estar presentes).

Avaliando a reforma curricular médica brasileira

CAMPOS e colaboradores (2001) traçam uma tipologia e “um perfil radial de avaliação”,

considerando a reforma curricular como um processo de mudança em direção a um ‘tipo-ideal’,

tomando como referência o paradigma da integralidade. Nessa avaliação categoriza três eixos, a

orientação teórica, a abordagem pedagógica e os cenários de práticas, cada um com três vetores que

marcam o grau de avanço nas mudanças em curso (CAMPOS et al, 2001). Observando os eixos e

vetores, percebe-se a necessidade geral de avançar na implementação da reforma, com vistas à

completa integração universidade-serviços de saúde, nos princípios e diretrizes do Sistema Único de

Saúde, SUS, constituindo-se este, em nossa opinião, o maior desafio a se superar.

PIERUCCI (2011) analisa as principais diferenças entre as formações tradicionais e as propostas pela

reforma destacando (1) o método de ensino; no modelo tradicional as disciplinas das áreas básicas são

semestrais, enquanto que a formação comunitária é composta por módulos temáticos cujo conteúdo é

abordado através de situações‐problemas, relacionados ao processo saúde-doença. Além disso, nas

atividades extramuros há a adoção do sistema de tutoria multiprofissional, formada por enfermeiros,

psicólogos, dentistas que acompanham os alunos no sistema básico de saúde, a extinção das aulas

teóricas e a adoção de conferências semanais. (2) A criação de grupos interdisciplinares de

trabalho, que ‘borram’ o espaço dos departamentos, buscando maior integração do corpo docente em

suas atividades de ensino, pesquisa e assistência. (3) A transferência do lócus de ensino clínico, dos

hospitais‐escola às unidades básicas de saúde. Na proposta de diversificação de cenários e práticas

médicas, dos hospitais para ambulatórios, também ampliada às outras instituições como creches,

sindicatos e escolas infantis. As novas abordagens geram modificações nos indicadores do ensino

médico como a proporção professor‐aluno, as cargas horárias curriculares e disciplinares, os

números de leitos hospitalares por aluno, os números de alunos por cadáver ou por microscópio

entre outros. No modelo tradicional os indicadores são mais elevados pelo foco na especialização

exigindo mais professores e menos alunos, mais disciplinas, mais hospitais, entre outros, voltada para

a excelência técnica, o aprendizado prático nos serviços hospitalares e ambulatoriais, privilegiando o

atendimento de casos raros que exigem um conhecimento e um raciocínio mais estruturado, enquanto

que o modelo da reforma, pautada no Sistema Único de Saúde, no trabalho em equipes

multidisciplinares, no Programa de Saúde da Família, para o aumento da cobertura médica da

população nas unidades básicas de saúde, leva a diminuição do número de professores ‘clássicos’ com

foco nas necessidades gerais da população, podendo inclusive comportar um maior número de alunos.

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A autora destaca a importância do contexto nacional-internacional, onde a discussão da reforma se

apresenta e as disputas entre modelos de formação médica (e dos cuidados à saúde) onde se inserem as

racionalidades distintas e os representantes das disputas possuem trajetórias que buscam reproduzir no

espaço acadêmico.

Em relação a Saúde Pública e a Atenção Básica de Saúde no currículo da reforma, as discussões

avançam e em 2009

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