reflorestameento

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347 Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 347-350, jan./dez. 2004/2005 Resenhas Desumanização e reumanização no campo da medicina Everaldo Tôrres Barbosa – UFRN MARTINS, Paulo Henrique. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médi- cas modernas. Petrópolis: Vozes, 2003. O autor tem como linha central de sustenta- ção da sua tese o resgate do dom, na perspectiva da teoria da dádiva de Marcel Mauss. Indaga-se so- bre a contribuição da Sociologia para as mudanças dos paradigmas médicos, nesta contemporaneida- de. Para muitos profissionais formados nas faculda- des de Medicina, tidas como guardiãs dos saberes canônicos da clínica moderna, não haveria relação direta entre uma e outra disciplina. Para o sociólo- go, porém, tudo é matéria de interesse sociológico, desde que tenha implicação na produção material e simbólica das práticas sociais. Nessa perspectiva, compreender os rumos atuais da medicina moderna constitui um importante desafio para a “imaginação sociológica”. Afinal de contas, os preços dos medica- mentos e serviços médicos, os usos e manipulações das novas tecnologias ou, então, as transformações do sofrimento e da doença em mercadorias e obje- tos de lucro incessante, aparecem como temas que tiram o sono diário do brasileiro. A tese central do autor é de que está em curso uma reorganização no campo da “medicina moderna” com reflexos em níveis sociais, políticos, técnicos e institucionais di- versos pelo abandono de certas práticas médicas e pela integração de tantas outras. Mudança de pa- radigma? Ao menos, podem-se observar, desde há algumas décadas, fortes tensões contraditórias entre as duas principais tendências presentes no interior do campo da medicina: uma, de “desumanização/ tecnicização”; outra, de “reumanização” dos mode- los médicos, a partir da integração, em certa me- dida, de terapias alternativas. Estas se apresentam como um tema relativamente pouco explorado no meio sociológico, observa o autor, sobretudo nas suas interações com a “medicina” moderna, tornan- do necessário uma série de incursões teóricas e temá- ticas com vistas a explorar seus diferentes matizes. Na pesquisa que o autor e sua equipe empreendem, observam, na dimensão cultural, os vínculos estrei- tos das terapias alternativas com os movimentos da contracultura americana e européia, surgidos no pós-Segunda Guerra Mundial, quando começam a se fazer presentes, no imaginário dos profissionais, clientes e adeptos das “medicinas paralelas”, certos temas recorrentes como gênero, corpo, emoção, li- bertação, vida natural, dentre outros. Identificou-se, igualmente, que o tema da religiosidade era signi- ficativo para a formação do “campo alternativo”, apontando para um sincretismo inédito, composto de diversas tradições orientais e ocidentais, mesmo que marcado fortemente pela tradição cristã. Nes- sa perspectiva, seguindo a trilha aberta por Marcel Mauss de que existe uma interpenetração importan- te entre técnica e magia, entre ritual e rotina, entre razão e emoção, o autor acredita que para a sociolo- gia interessam tanto as inovações e reflexos sobre o social, provocados pela “biomedicina moderna” de origem cartesiana, como a manifestação de todas as outras práticas médicas e de cura, que também inci- dem sobre o processo de constituição do vínculo so- cial. Para o sociólogo de inspiração maussiana, todas as práticas de cura e todos os depoimentos daqueles que se dizem terapeutas são importantes e contri- buem para esclarecer as mudanças paradigmáticas em curso. Este livro é composto de quatro capítulos:

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    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 347-350, jan./dez. 2004/2005

    Resenhas

    Desumanizao e reumanizao no campo da medicina

    Everaldo Trres Barbosa UFRN

    MARTINS, Paulo Henrique. Contra a desumanizao da medicina: crtica sociolgica das prticas mdi-cas modernas. Petrpolis: Vozes, 2003.

    O autor tem como linha central de sustenta-o da sua tese o resgate do dom, na perspectiva da teoria da ddiva de Marcel Mauss. Indaga-se so-bre a contribuio da Sociologia para as mudanas dos paradigmas mdicos, nesta contemporaneida-de. Para muitos profissionais formados nas faculda-des de Medicina, tidas como guardis dos saberes cannicos da clnica moderna, no haveria relao direta entre uma e outra disciplina. Para o socilo-go, porm, tudo matria de interesse sociolgico, desde que tenha implicao na produo material e simblica das prticas sociais. Nessa perspectiva, compreender os rumos atuais da medicina moderna constitui um importante desafio para a imaginao sociolgica. Afinal de contas, os preos dos medica-mentos e servios mdicos, os usos e manipulaes das novas tecnologias ou, ento, as transformaes do sofrimento e da doena em mercadorias e obje-tos de lucro incessante, aparecem como temas que tiram o sono dirio do brasileiro. A tese central do autor de que est em curso uma reorganizao no campo da medicina moderna com reflexos em nveis sociais, polticos, tcnicos e institucionais di-versos pelo abandono de certas prticas mdicas e pela integrao de tantas outras. Mudana de pa-radigma? Ao menos, podem-se observar, desde h algumas dcadas, fortes tenses contraditrias entre as duas principais tendncias presentes no interior do campo da medicina: uma, de desumanizao/tecnicizao; outra, de reumanizao dos mode-los mdicos, a partir da integrao, em certa me-dida, de terapias alternativas. Estas se apresentam como um tema relativamente pouco explorado no

    meio sociolgico, observa o autor, sobretudo nas suas interaes com a medicina moderna, tornan-do necessrio uma srie de incurses tericas e tem-ticas com vistas a explorar seus diferentes matizes. Na pesquisa que o autor e sua equipe empreendem, observam, na dimenso cultural, os vnculos estrei-tos das terapias alternativas com os movimentos da contracultura americana e europia, surgidos no ps-Segunda Guerra Mundial, quando comeam a se fazer presentes, no imaginrio dos profissionais, clientes e adeptos das medicinas paralelas, certos temas recorrentes como gnero, corpo, emoo, li-bertao, vida natural, dentre outros. Identificou-se, igualmente, que o tema da religiosidade era signi-ficativo para a formao do campo alternativo, apontando para um sincretismo indito, composto de diversas tradies orientais e ocidentais, mesmo que marcado fortemente pela tradio crist. Nes-sa perspectiva, seguindo a trilha aberta por Marcel Mauss de que existe uma interpenetrao importan-te entre tcnica e magia, entre ritual e rotina, entre razo e emoo, o autor acredita que para a sociolo-gia interessam tanto as inovaes e reflexos sobre o social, provocados pela biomedicina moderna de origem cartesiana, como a manifestao de todas as outras prticas mdicas e de cura, que tambm inci-dem sobre o processo de constituio do vnculo so-cial. Para o socilogo de inspirao maussiana, todas as prticas de cura e todos os depoimentos daqueles que se dizem terapeutas so importantes e contri-buem para esclarecer as mudanas paradigmticas em curso.

    Este livro composto de quatro captulos:

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    1 Sociedade, ddiva e paradigmas mdi-cos. O captulo contempla aspectos terico-metodo-lgicos para a realizao de uma crtica sociolgica do fenmeno social total complexo a medici-na moderna mundializada. Uma apreciao mais cuidadosa desse plano, focando o microssocial, de-monstra, por sua vez, estarem ocorrendo no seu interior questionamentos importantes nascidos de experincias negativas dos pacientes com relao a uma medicina oficial, que vem sendo submetida a crescente tecnificao e especializao e que, ultima-mente, vem sendo contaminada por uma axiologia do interesse que sinaliza tendncias privativistas na sade e no campo mdico, sustentada por um mo-delo antomo-clnico, que se funda sobre o princpio da separao radical entre o mdico e o paciente, da doena e do doente. A limitao desse modelo mdi-co dominante contribui para interromper o proces-so interativo da cura, impedindo que o sofrimento se exprima adequadamente no plano simblico (das palavras, dos gestos, dos rituais, dos cuidados) e que a ddiva mdica possa funcionar eficazmente na cir-culao dos bens de cura (ateno, confiana, pa-lavras, tcnicas, remdios), dados pelo curador em troca dos males (doenas) e devolvidos pelo pa-ciente ao primeiro. O paradigma da ddiva/dom prope que a sociedade se constitui de uma regra social primeira, a obrigao de dar-receber-retribuir, e que a constituio do vnculo social mais im-portante que a produo de bens, como registrou Mauss no clebre Ensaios sobre a ddiva, de 1924. De fato, a idia da medicina como um fenmeno so-cial total, ancorado inicialmente na circulao de dons entre sujeitos (troca do sofrimento por bens de cura), permite entender-se que as mudanas em curso, tanto no plano institucional como nos mode-los de gesto da sade, so precedidas por transfor-maes nas prticas concretas de cura da doena. A partir dessas reflexes e indagaes, P. H. Martins busca contextualizar o modelo de gesto da sade e o sistema mdico de cura, classificando os princi-pais sistemas instalados, ou em instalao, levando em considerao tanto os sistemas bioorgnicos e os

    sistemas biopsquicos. O autor descreve, ainda, de forma brilhante o percurso da medicina oficial, da objetivao do corpo na lgica cartesiana, o disci-plinamento progressivo das instituies mdicas, a regulamentao jurdica do campo mdico e a sis-tematizao da pesquisa biomdica, fazendo surgir uma medicina social, que inspirou a organizao do modelo de gesto da sade, o da sociedade medica-lizada.

    2 Utilitarismo e desumanizao da me-dicina. Elabora-se, neste captulo, uma leitura sociolgica da prtica mdica a partir do registro an-tiutilitarista, permitindo compreender as mudanas na medicina, para alm dos discursos que tem como central o falso dilema da modernidade e tradio. No lado oposto ao modelo biomdico de fundo car-tesiano, a lgica da ddiva, inspiradora da vertente humanista da medicina que tinha ficado oculta na diviso tcnica do trabalho na modernidade , re-torna via movimentos sociais e culturais. O retorno da ddiva estimulou o aparecimento de uma plurali-dade de mtodos empiristas fundados na valorizao da experincia direta dos atores. Nessa perspectiva, as mudanas apontam para o surgimento de um modelo de gesto mais complexo, cujo imaginrio da sade significa, prioritariamente, o doente e no a doena, a relao entre os sujeitos (mdico-doente) e no a relao entre sujeito e coisa (mdico/doen-a). Do ponto de vista sociolgico, a mera mudana de paradigmas observada dentro do campo cient-fico constitui uma condio necessria, mas insufi-ciente, para que mudanas polticas mais profundas ocorram nos planos dos ensinamentos cientficos, das prioridades acadmicas e dos usos sociais dessas inovaes. Fazem-se necessrias mudanas efetivas, reflete o autor, na gesto poltica e nos usos sociais das inovaes cientficas, a exemplo da atual pol-mica em torno da propriedade do cdigo gentico por laboratrios privados.

    3 Reaes a favor de uma medicina hu-manista. Busca-se, nesse ponto, a dimenso hist-rica discutindo o imaginrio restritivo da medicina

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    mercantil e o mal-estar que ela produz com o seu movimento de desumanizao. observada a defa-sagem importante entre o discurso e a realidade do capitalismo biotcnico, demonstrando, na prti-ca, sua insuficincia para responder ao novo quadro etiolgico surgido com as doenas, ditas emocionais, que vicejam num contexto de crise da sociedade do trabalho, de estresse nas relaes interpessoais, de insegurana das condies de vida em geral. Con-tudo a medicina moderna, capturada pelo capi-tal mdico, intenta conservar a sua hegemonia no campo, condicionando a validade das prticas de cura ao funcionamento de uma certa racionalidade instrumental e tendo como uma de suas estratgias o impedimento da institucionalizao das outras medicinas paralelas. Entretanto, observvel o posicionamento em favor da valorizao da experi-ncia vivida e da reumanizao das prticas mdicas, no qual se situam os defensores dos novos sistemas de cura abertos diferena e pluralidade. A pre-sena da ddiva na base desses modelos humanistas no permite concluir, porm, que estaramos presen-ciando a emergncia de um modelo mdico benevo-lente e gratuito. O retorno da ddiva na medicina significa, sobretudo o resgate da confiabilidade do doente na capacidade/possibilidade material e mgi-ca de que dispe o mdico para curar o doente. Es-sas variaes das medicinas humanistas so, logo, a ponta de lana de uma reao social em larga escala, visando reformular o discurso cientfico da medicina mundial (e no apenas ocidental) e fundar um saber mais complexo em que haja o resgate do carter da medicina, como instituio ao mesmo tempo tcnica e mgica, objetivista e simblica, uni e pluridiscipli-nar. Considerando os limites das reformas, nas reas da sade e da medicina, a partir dos modelos atu-almente dominantes, estatista e mercantil, o autor entende que a sociedade busque recriar novos pa-dres que respondam mais adequadamente a alguns desafios, como aqueles do respeito multiplicidade e s diferenas das tcnicas de cura ou ento da de-mocratizao do acesso aos servios mdicos.

    4 As terapias alternativas: o retorno da ambivalncia. Neste captulo, P. H. Martins pro-cura explicar como essas novas prticas no consti-tuem um campo parte daquele mdico oficial. As crticas de Merleau-Ponty ao mtodo cartesiano e sua limitao para compreender a complexidade das sensaes humanas permanecem como uma refern-cia estratgica para este debate atual entre tecnifi-cao e humanizao da medicina. Ento, tem-se, de um lado, uma medicina tecnicista e utilitria e, de outro, uma medicina humanista e tica; dife-rentes no modo como operam e representam a so-ciedade. A primeira tende a considerar a sociedade como uma soma de indivduos que esto em eterna competio, tendo como principal instrumento para se digladiarem a razo pensante. A segunda tende a enfocar a sociedade como um sistema de circula-o de bens simblicos e materiais no qual os indi-vduos so momentos importantes no conjunto das redes e aparelhos de que fazem parte; neste ponto, o autor se inspira nos estudos de Jacques Godbout e Allain Caill (O esprito da ddiva. Rio de Janeiro: FGV, 1999). Nessa segunda medicina, mais huma-nista, as habilidades dos indivduos para calcularem racionalmente, segundo seus prprios interesses, so relativas proporo que os atores esto at certo ponto condicionados por sistemas (lngua, religio, famlia etc.) que os envolvem e limitam seu cam-po de ao. As idias de doena e de cura seguem naturalmente os mesmos raciocnios. Ainda de se considerar que o fato de ser a doena um fenmeno social no isenta os indivduos com relao s suas responsabilidades sobre os riscos que conhecerem para viver e para morrer. A nfase na dimenso so-ciolgica serve, sobretudo, para dar visibilidade po-ltica discusso sobre a sade coletiva e sobre a importncia da coletividade como sendo, em ultima instncia, o agente capaz de decidir o que melhor para os seus membros. Mas a nfase no todo no anula a autonomia dos indivduos para gerirem, nos limites dados pela sociedade, suas prprias decises. No se trata, pois, de recusar o individualismo e fa-vorecer a viso holstica, da totalidade, mas apenas

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    de lembrar a necessidade de situar a parte e o todo numa perspectiva dinmica: a de circulao de bens materiais e simblicos, enfatizados por Mauss nos Ensaios sobre a ddiva. O novo sistema sugere que a aproximao e a interpessoalidade so critrios deci-sivos para responder complexidade dos sintomas e da organizao do tratamento, em particular a cir-culao dos dons de cura entre curador e paciente. Por isso, a compreenso dos sentidos polticos atuais desses novos sistemas mdicos de cura pode faci-litar enormemente o entendimento do que se passa nas proximidades territoriais, dentro e fora do cam-po oficial, levantando pistas de reflexo e pesquisas em outras direes, antes no-pensadas. Essas me-dicinas no-convencionais constituem as reaes mais ofensivas da sociedade contra a ameaa de ge-neralizao da racionalidade utilitarista do capita-lismo mdico.

    guisa de concluso, o autor sugere que a compreenso da crise vivida pela medicina oficial e, tambm, da mudana de paradigmas no campo mdico exige uma distino preliminar dos lugares ocupados pelo utilitarismo cientfico e pelo utilitaris-mo econmico na organizao da instituio mdica. O primeiro constitui um determinante inerente ao surgimento da medicina moderna. O segundo fez sua entrada mais recentemente, sobretudo aps os anos 1980, viabilizando uma aliana oportunista da cincia biomdica e do capital especulativo em tor-no do projeto de criao de um mercado de doenas e curas. A clnica moderna justamente aparece como o meio necessrio para traduzir, no domnio poltico, esse utilitarismo cientfico voltado para o controle da experincia. A exploso das medicinas alternativas nasce das reaes contra os perigos para a sociedade dos efeitos nefastos dessa tentativa encabeados pelo utilitarismo cientfico-mercantil, de abafar a nature-za social da pratica mdica para garantir o sucesso do mercado de bens e servios mdicos. Tais disci-plinas alternativas constituem um campo mdico de outra natureza, que encontra seu cimento, no no controle exercido pela organizao disciplinar (faculdades, laboratrios tcnicos, corporaes eco-

    nmicas, associaes profissionais etc.), mas na valo-rizao de uma formao mdica que se assente na experincia vivida de modo espontneo, livre, obri-gado e, tambm, interessado pelo futuro terapeuta. O esforo para se compreender as transformaes da medicina oficial a partir das medicinas alternati-vas permite-nos ultrapassar certos preconceitos e resistncias concernentes possibilidade de emer-gncia de um novo campo mdico que priorize a reumanizao dos sistemas de cura. Enfim, toda essa trama faz parte da nova medicina em gestao na contemporaneidade. absolutamente encantadora a narrativa histrica desse processo de instalao de um novo olhar sobre a medicina. P. H. Martins se vestiu de bravuras e ousadias, para adentrar numa arena to bem marcada pelos bares estruturalistas dos modelos aqui elencados e que destituem o indi-vduo-doente do seu direito de ser ativo, de poder vivenciar a sua dor e o seu desencanto. Porm, face instalao natural do lado perverso do utilitarismo mdico e econmico, as guerras fazem surgir pos-sibilidade das incertezas, pois a guerra destrutiva, assim como os utilitarismos. Ter podido me aventu-rar nessa gostosa e delicada ateno, deu-me nimos e possibilidades de respiraes profundas, por poder acompanhar luzes no final do tnel. O processo do aprendizado numa linguagem da transdisciplinari-dade aponta para a rede das organizaes sociais.

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    Vidas desperdiadas

    Joo Batista de Menezes Bittencourt UFRN

    BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiadas. Traduo de Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 176 p.

    Para onde mandar os indivduos que no pos-suem mais nenhuma utilidade e que, por sua vez, no podem mais ser incorporados a nenhum sistema produtivo? essa a pergunta que orienta toda a dis-cusso do socilogo polons Zygmunt Bauman, em sua obra recm-publicada Vidas desperdiadas (2005). O autor nos brinda com uma instigante reflexo acerca de uma problemtica bastante contundente dos ltimos tempos: os problemas ocasionados pela produo e remoo do refugo humano. O mundo est cheio, afirma Bauman, e no se trata de uma constatao fsica e/ou geogrfica, mas sim de uma preocupao poltica e social. Existem enormes ex-tenses de terra, e muitas delas, at mesmo habita-das por um nmero nfimo de pessoas, o que no existe espao social para os chamados prias da modernidade, os inadaptados, os expulsos, os mar-ginalizados, enfim, o lixo humano que foi produzido pela sociedade do consumo. O grande problema dos Estados, em nossos dias, pensar alternativas de re-moo desse refugo humano que insiste em tornar a paisagem desagradvel, contaminando-a com seu aspecto desconcertante.

    No primeiro captulo, denominado No comeo era o projeto, o autor discute a idia de que a produo do refugo humano est intrinsecamente ligada cons-truo de uma ordem universal. A modernidade foi construda sob a idia de que uma boa sociedade seria aquela que disponibilizaria emprego para to-dos; nesse sentido, os redundantes, desse perodo, seriam o exrcito de reserva que estaria esperando por sua chance na fila de espera dos desemprega-dos. Os redundantes de hoje, no tm esperana de serem chamados de volta ao servio ativo, vo di-

    reto para o depsito de dejetos humanos. nessa perspectiva que Bauman distingue a sociedade dos produtores da sociedade dos consumidores. Duran-te todo o sculo XIX, a imagem mais recorrente, foi a do produtor potencial, aquele indivduo que, para ser aceito como tal, bastaria preencher os re-quisitos propostos pela companhia dos produtores. A idia do eterno retorno que se sustentava de-vido formao de fortes unidades de reserva, foi minada, segundo o autor, pelo advento da sociedade do consumo. Para ser admitido na companhia dos consumidores, no basta reivindicar o status de con-sumidor para si, e concomitantemente no existe exrcito de reserva para os consumidores falhos; a nica certeza que os mesmos possuem que, exclu-dos do nico jogo disponvel, no sero mais jogado-res: Os desempregados da sociedade de produtores (incluindo aqueles temporariamente afastados da li-nha de produo) podem ter sido desgraados e mi-serveis, mas seu lugar na sociedade era seguro e inquestionvel (p. 22).

    As preocupaes com a redundncia, atualmen-te, diferem dos problemas vivenciados e registrados pelas geraes anteriores. Apoiando-se no estudo de Mary Douglas1 sobre os rituais de poluio em v-rios povos e culturas, onde a autora considera que os conceitos de pureza e sujeira fazem parte de um todo maior, Bauman reafirma a tese de que a idia de eliminao no um movimento negativo, mas um esforo positivo para organizar o ambiente. Para criarmos o novo faz-se necessrio alterarmos algo que j existe, o novo no pode nascer a no ser que

    1 DOUGLAS, M. Pureza a perigo. So Paulo: Perspectiva, 1976.

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    algo seja transformado. Em situao ambivalente, o mesmo lixo que tende a ser repudiado, se torna indispensvel ao processo criativo: o lixo subli-me; uma mistura singular de atrao e repulsa que produz um composto tambm singular, de terror e medo (p. 32).

    Outro elemento indicado pelo autor como alia-do e cmplice do lixo o excesso, o qual exem-plificado atravs do enorme contedo informacional proveniente da internet e que passamos a dispor a partir de uma pequena consulta a um site de busca. Como a informao se tornou o bem mais precioso dos ltimos tempos e o excesso da mesma gran-de demais para ser despejado nos crebros huma-nos, fez-se necessrio a criao de um depsito de refugo da informao, e isso s foi possvel graas tecnologia computacional. A produo de lixo in-formacional, tal como toda a atividade produtora de refugo, tem o poder de autopropulso, ou seja, os esforos para remover o lixo produzem mais lixo. A propsito, Bauman, em 29 de Novembro de 2002, fez uma busca na internet para encontrar pginas na web que se referiam noo de refugo e cons-tatou um grande nmero de sites tratando do tema do lixo, isso em comparao com os grandes temas discutidos atualmente na agenda pblica, entre os quais: desemprego, terrorismo, fome, racismo e po-breza. Apesar de aparecer nas manchetes com certa relevncia, o tema do lixo tornou-se uma das maio-res preocupaes contemporneas, e isso num plano global. J que ele figura entre os temas mais discu-tidos dos ltimos tempos, por que sempre o relega-mos a um segundo plano? Para Bauman, a histria em que e com que crescemos, no tem interesse no lixo, e o que nos interessa o produto e no o refu-go. Dois tipos de caminhes deixam todos os dias o ptio da fbrica, um com destino as lojas de mer-cadorias e departamentos e outro para os depsitos de lixos, mas a nossa histria indica que devemos valorizar apenas o primeiro. Somente passamos a observar o lixo do segundo, quando seu excesso se torna uma ameaa concreta. Da mesma forma, s passamos a enxergar os dejetos humanos quando

    eles aparecem nossa porta devido falha de nosso sistema de defesa. At isso acontecer, ns os trata-mos com indiferena, o que lhes assegura o status de problema angustiante mais guardado nos nossos dias.

    No segundo captulo Sero eles demasiados?, a obra contm a anlise focada naquele que seria o refugo do progresso econmico. O captulo inicia-se com uma discusso acerca da idia de superpopula-o e de como ela afetaria o progresso da sociedade. A viso de que o crescimento populacional colocaria em risco nossa existncia por falta de alimentos su-ficientes se opunha quilo que o sonho da moderni-dade prometia, pois numa sociedade de produtores, o crescimento populacional, seria aquilo que garan-tiria a cura para a escassez atravs da fora de traba-lho: a terapia para o excesso de populao era mais populao. A questo que no pode haver um nmero demasiado de ns. Como, em nossos dias atuais, o excesso deles que nos preocupa, ten-tamos correr atrs de estratgias discretas que pos-sam garantir a extirpao desse mal que tanto nos aflige. O exemplo de Botsuana, em que empresas farmacuticas no mostraram empenho para forne-cer a um preo acessvel remdios para combater a epidemia de AIDS que se abateu por toda a regio, fazendo com que a expectativa de vida local casse de 70 para 36 anos, um dado importante para ana-lisarmos o grau de racionalidade empregado nes-sas estratgias discretas.

    importante, neste ponto, destacar a discusso sobre o medo do outro. Medo esse que perpassa toda nossa existncia. O que existiria nos seres hu-manos que tanto nos amedronta? O socilogo inicia a reflexo situando-nos na descrio do medo cs-mico, a partir das idias do filsofo russo Mikhail Bakhtin. Esse medo consistiria na emoo humana, demasiadamente humana, desencadeada pela mag-nificncia imaterial e desumana do universo. Dian-te do poder extraordinrio do universo, vemo-nos como criaturas vulnerveis e assustadas. O medo csmico tambm o horror do desconhecido, o ter-ror da incerteza (p. 61). Vulnerabilidade e incerteza

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    so as duas qualidades da condio humana a par-tir das quais se molda o medo oficial, o medo do poder humano, do poder criado e manipulado pelo homem. Bauman trabalha esses argumentos de um ponto de vista filosfico para entendermos que a in-certeza e insegurana (ontolgicas) so provocadas pelo medo do desconhecido, o estranho produz nos seres humanos sensaes desestabilizadoras. Para o autor, as imagens folclricas de demnios que, no passado, eram usadas para incutir os difusos temores sobre segurana foram transformadas em perigo e risco. No toa que os imigrantes e os recm-che-gados so vistos com desconfiana, um prato cheio para o Estado, um outro desviante ideal.

    No terceiro captulo, A cada refugo seu depsito de lixo, o socilogo apresenta as estratgias modernas de controle das massas desordenadas que brotam nos arredores da cidade. Os presdios se configuram como os principais depsitos de dejetos humanos da contemporaneidade. Os redundantes constituem um alvo fcil para a descarga de ansiedades provocadas pelos temores generalizados. Os poderes do estado no podem fazer nada para aplacarem a incerteza, muito menos elimin-la (p. 84). O mximo que o Estado pode fazer mudar seu foco para objetos al-canveis, e os produtos rejeitados pela globalizao se encaixam perfeitamente nesse papel. Procura-mos em vo por outros escoadores mais adequados, os temores e ansiedades se despejam sobre alvos mo e reemergem como o medo e a raiva populares dirigidos aos estranhos que vivem nas redondezas (p. 85).

    Assistimos passagem de um modelo de comu-nidade includente do Estado social para um Esta-do excludente penal, voltado para o controle do crime. Os infratores, cada vez mais, deixam de ser reconhecidos como cidados destitudos em busca de apoio, e so mostrados, em vez disso, como indi-vduos censurveis, imprestveis e demasiado peri-gosos. As fronteiras, por sua vez, permitem a sada, buscam se proteger contra o ingresso indesejvel de unidades provenientes do outro lado. Bauman indi-ca que um dos principais resultados da modernidade

    (talvez o mais fatal) a crise aguda de remoo do lixo humano. A modernidade tende a morrer sufo-cada, em meio a dejetos criados por ela mesma. O volume superou a capacidade de controle. O plane-ta est cheio e no h terras vazias para servir de depsito de lixo. Agora, busca-se desesperadamente resolver os problemas globais de maneira local, os depsitos de lixo devem ser estabelecidos dentro da localidade que as tornou suprfluas; dessa manei-ra que surgem os hiperguetos2. Os guetos podem ser voluntrios ou involuntrios. Os guetos tradicionais, apesar de terem sido enclaves cercados por barreiras (fsicas e sociais), no eram depsito de lixo para a populao excedente. O novo gueto, nas palavras de Wacquant, citado por Bauman, no serve de mo de obra industrial descartvel, mas de depsito de lixo. De amortecedor coletivo a mecanismo puro e simples de excluso social. As prises, que antes pos-suam a tarefa de reciclagem, se tornaram tambm depsitos de lixo. Reciclar no mais lucrativo, en-to preciso acelerar a biodegradao. Os medos contemporneos, alm de provocar sensaes deses-tabilizadoras, tambm dissolvem a confiana, que segundo o autor o sustentculo da vida humana. Sem confiana a rede de compromissos humanos se desfaz, tornando o mundo um lugar ainda mais perigoso e assustador (p.115).

    No ltimo captulo intitulado A cultura do lixo, Bauman nos mostra que na histria confusa da produo e remoo do refugo humano, a viso de eternidade tem ocupado um papel crucial. Na infinitude tudo reciclado sem parar, como na idia hindu de eterno retorno e encarnao (p. 118). A idia de redundncia no est presente no plano da infinitude, a infinitude, por sua vez, liga-se idia de Deus e da Divina cadeia do ser, sendo que a nada pode ser redundante. Se a vida pr-moderna era

    2 Conceito utilizado pelo socilogo francs Loic Wacquant para definir os espaos produzidos por polticas extremas de gue-tizao, espaos esses que acabam por perderem os poucos aspectos positivos do gueto, em particular, a capacidade de produzir e de sustentar, mesmo com dificuldade, uma rede mo-desta de instituies comunitrias que atendam s necessidades bsicas de seus residentes.

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    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 351-354, jan./dez. 2004/2005

    uma recitao diria da durao infinita de todas as coisas, com exceo da existncia mortal, a vida l-quido-moderna uma recitao diria da transito-riedade universal (p. 120).

    Nessa tica, a redundncia seria uma inveno contempornea, produto do excesso, caracterstica marcante da modernidade. Ao convite para uma dis-cusso sobre cultura e eternidade, o autor indica que ns, seres humanos, sabemos que somos mortais, destinados a morrer; e, conviver com essa possibili-dade nos causa uma forte inquietao. Se no fosse pela cultura, essa convivncia seria impossvel, ela que consegue transformar o horror da morte numa passagem para outra vida, a qual marcada pela eternidade. Quando o medo da morte sai de cena, aparece o medo da vida, que, por sua vez, faz com que tenhamos uma abordagem calculista da vida. No existe uma populao humana que no tenha a eternidade como algo evidente. A eternidade, tal como foi pensada nas sociedades pr-modernas, no se sustenta mais na sociedade lquido-moderna. A espera e o atraso se transformaram em estigmas de inferioridade. Vivemos, segundo Bauman, na era do curto-prazismo. Esperar uma vergonha, e a ver-gonha de esperar recai sobre aquele que espera (p. 135). E, conclui: Vivemos na era do desengajamen-to, da desconfiana, do esquecimento. A viagem mais desejada que a chegada, no toa que beleza e felicidade so os ideais mais almejados da moder-nidade, porm ningum nunca ser belo e feliz, por completo. No importa se o objetivo ser alcanado, persistir na sua busca j suficiente, esse percurso que d sentido nossa existncia.

    Em Vidas desperdiadas, Zygmunt Bauman nos convida a uma reflexo apurada do caminho trgi-co a ser trilhado por indivduos em diversas partes do mundo, caminho esse que nos conduz a uma ex-cluso forada e que , ao mesmo tempo, inerente ao convvio social. Astcia reflexiva e sensibilidade aguada fazem dessa obra um item indispensvel para aqueles que se preocupam com o destino da humanidade.

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    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 355-356, jan./dez. 2004/2005

    Resenhas

    Vida a beira do abismo: juventude, drogas e invisibilidade

    Ana Tereza Lemos-Nelson UFRN/UFPE

    ATHADE, Celso; MV Bill; SOARES, Luiz Eduardo. Cabea de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

    O livro no faz gnero, embora possa estar inaugurando um, ento no preciso comear essa resenha pelo contexto literrio ou setorzinho acad-mico em que se confinaria. Mas talvez essa afirma-o no esteja to correta, visto que chega perto, com as distncias histricas e culturais, dos textos do movimento dos direitos civis americanos, escritos por seus poetas ou militantes1, essa mistura ansiosa e impertinente de exposio do bvio que ningum queria ver, com as palavras que ningum ousava di-zer, quebrando a cumplicidade do pacto do silncio classe mdia, rasgando nosso peito para deixar sair a emoo contida, o tremor de tsunami que sentimos sob nossos ps quando caminhamos em qualquer aparente calma pensando no nosso futuro como povo. O empreendimento comum de um rapper de voz nacional, de um produtor cultural que sempre abriu caminhos no aparente impossvel, e do cientis-ta social, poeta cotidiano, que entra e sai em fardas polticas como antroplogo fascinado pela pesquisa-ao no s nos leva Cabea de porco, mas s suas entranhas doloridas. um texto sobre o movimento, em movimento, no movimento poltico.

    Os meninos invisveis que falam no livro so as vtimas passadas, presentes e futuras, presas nas in-trincadas redes de todas nossas equivocadssimas es-colhas passadas e presentes sobre poltica de drogas, direitos de cidadania, prerrogativas policiais, pol-ticas sociais e culturais que formam uma trama to

    1 Luiz Eduardo resgata com versatilidade o conceito de Homem Invisvel, de Ralph Ellison, homenageando o clssico do movi-mento dos direitos civis.

    densa que nos garante o egosmo, cegos culos de filtro solar para no ver na luz, que funciona como muro de to grosso, e os torna, do outro lado, me-ninos invisveis, em suas lutas sangrentas nos guetos de todo pas, nas cordas bambas entre o ser e o no-ser. Invisvel aquele que no tem a chance de ver o reconhecimento nos olhos dos outros. At antes de Cabea de porco era possvel dizer que a gente no sa-bia, passavam por ns, mas no eram do nosso mun-do. O livro mostra que somos todos responsveis.

    Ficam invisveis tambm porque morrem to mais rpido entre os 15 e 24 anos que j se abrem rombos nos mapas estatsticos.E quando se lhes d a oportunidade de voz, essa invisibilidade vai sendo preenchida com carne, ossos, coraes, famlias, de-sejos, to como os nossos, leitores de jornais, e tra-jetrias de profundas privaes e escolhas difceis e quase sempre fatais, que no teramos a menor idia de como resolver sem pelo menos uma ida ao psica-nalista. Perto de ns, os invisveis se agigantam na luta constante por re-humanizao, mas a arma, que apontam como instrumento para exigir visibilidade, um dia os mata.

    Embora se imagine que o tema central seja o mundo das drogas, j que a pesquisa de campo foi feita ao risco da prpria pele dos trs pesquisadores nos buracos quentes de grandes cidades de Norte a Sul, o desafio a pergunta grande demais para a resposta: possvel uma vida em comum, possvel resgatar uma sociedade e um Estado de seus farra-pos? possvel nos resgatar, em conjunto, de nossas mentiras e omisses assassinas? Temos coragem de

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    Resenhas

    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 355-356, jan./dez. 2004/2005

    interromper o carnaval e despir a mscara cordial do nosso racismo que discrimina, separa, culpabiliza, invisibiliza e finalmente mata com a frieza das nor-mas culturais politizadas e naturalizadas? Ateno: no mata apenas pessoas negras: mata identidades, canibaliza a solidariedade, impossibilita as normas compartilhadas de ordenao pacfica da sociedade, fratura o que se poderia chamar de Bem coletivo, impossibilita completamente qualquer noo de se-gurana pblica, porque nada pblico, nem de todos, nem transparente, nem pressupe cidados e cidads conscientes discutindo com franqueza as alternativas, estendendo as mos, os coraes e as mentes, se apropriando daquele poder que Hannah Arendt sempre via como oposto ao poder armado: o poder de ao poltica. Quanto mais o poder ar-mado, e quanto mais montado em tabus, no h possibilidade de mudana pela via da poltica. Que poderosa dupla de tabus: poltica de drogas e ra-cismo! Que intrincada dupla de ideologias para nos manter com os olhos ofuscados, tanta gente invis-vel, tanto sofrimento reproduzido ad infinitum.

    Para os autores de Cabea de porco hora de ti-rar a idia de paz do quadrinho na parede e traze-la para o espao pblico, antes que ela vire ex-voto de cera. Falamos de paz positiva, de uma vida com jus-tia social, econmica e cultural, de vida desfrutada em comum. Mas para se desencadear uma transfor-mao, preciso primeiro conhecer o que queremos mudar. Isso, para Luiz Eduardo, transforma o livro numa ponte de sentido entre o real e a ao sobre ele. Por isso se despe da linguagem acadmica, en-frenta a questo da raa na raa, e das drogas no barato natural, na energia intelectual dos que no passaram pela lavagem cerebral das novelas das oito. Mas, avisam os autores: a pergunta maior que a resposta: e se esse mundo brasileiro no der certo? (Sempre achamos que daria, apesar da beira do abismo). A esperana um compromisso tico, escudo contra a omisso.

    Temos que comear reconhecendo como um todo nosso universo fracionado, a invisibilidade como uma disputa por espao legtimo, por reco-

    nhecimento nos olhos dos outros. Mas enquanto uns lutam para no serem reconhecidos como portado-res de carteira num nibus apertado, outros lutam por reconhecimento como seres dignos de direitos, respeito, e futuro. A qualidade necessria, a virtude mais primria nesse difcil processo, no a simpatia sentir com mas sim sendo diferente, se permitir se colocar no lugar do outro, e sentir o que ele sen-te. Ser que daramos outra chance a ns mesmos? Os estudiosos da paz no encontraram essa empa-tia necessria nos principais pases que passaram por limpeza tnica, onde o processo de reconciliao encontra a barreira dos dios subterrneos. Parece com nosso modelo de invisibilidade. Mas temos uma vantagem: cada um pode comear por si mesmo, no preciso ficar esperando a mudana para mu-dar. Basta se desarmar interiormente para ver, se re-ver e reagir. nesse diferencial positivo que Cabea de porco aposta.

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    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 357-359, jan./dez. 2004/2005

    Resenhas

    Expanso e descontrole da segurana privada no Brasil

    Cristiane do Socorro Loureiro Lima UFRN

    CUBAS, Viviane de Oliveira. Segurana privada a explorao dos servios de proteo e vigilncia em So Paulo. So Paulo: Associao Editorial Humanitas, 2005. 176 p.

    Viviane de Oliveira Cubas uma jovem e bri-lhante pesquisadora do Ncleo de Estudos da Vio-lncia da Universidade de So Paulo (NEV-USP), que vem oportunamente nos brindar com seu estu-do sobre a segurana privada na cidade de So Pau-lo. Originariamente foi escrito como dissertao de mestrado apresentada ao programa de Ps-Gradu-ao em Sociologia da USP, orientada pelo Prof. Dr. Sergio Adorno.

    Segundo Cubas, a segurana privada sur-ge como algo que possibilita a manter a seguran-a pessoal e material numa poca de aumento da criminalidade e de descrdito da populao peran-te as instituies encarregadas de manter a ordem e controlar os conflitos. Diante disso ela aborda no seu trabalho, o servio de vigilncia oferecido por empresas da cidade de SP, nos anos 90, a sua rpida expanso no mercado e a aceitao deste servio por parte da populao.

    O primeiro captulo, O pblico e o privado e na tradio social brasileira, Cubas apresenta como a so-ciedade brasileira trabalha com as noes de pblico e privado, mostrando que o entendimento da fluida diviso que entre esses dois mundos fundamental para compreenso do processo de expanso dos ser-vios de segurana privada.

    Primeiramente, buscou uma teoria para a for-mao do Estado Moderno, onde deu nfase ao trabalho de Norbert Elias. Em seguida, o enfoque foi dado aos autores que trabalham com diferentes abordagens sobre a colonizao do Brasil e a forma-o do Estado brasileiro, suas caractersticas, o uso

    dos poderes locais e, a ausncia do poder pblico e, sobretudo, a fraca definio das fronteiras entre a esfera do pblico e a esfera do privado, justamen-te no tocante segurana pblica, para isso recor-reu as anlise de Oliveira Vianna (1973), Gilberto Freyre (1977), Roberto DaMatta (1991), Wanderley Guilherme dos Santos (1992), Boaventura de Sousa Santos (1998), entre outros.

    Considerando o que j foi produzido pelos di-versos autores, fica claro que a sociedade brasileira profundamente marcada por relaes orientadas por interesses particulares em detrimento de interesses coletivos. Com a sociedade brasileira ainda preser-vando suas caractersticas particularistas, a atual expanso das empresas de segurana privada pode representar uma radicalizao de uma caracterstica tradicional dessa sociedade no tocante questo da segurana pblica.

    Considerando que a violncia um fenmeno que toca no cerne da cidadania, pois incide no direi-to integridade fsica das pessoas, a credibilidade e a legitimidade do Estado, como provedor dessa inte-gridade, ficam abaladas num contexto de iniciativas particulares para a resoluo do crescente aumento da violncia.

    O segundo captulo, Segurana privada e polti-ca de segurana pblica em So Paulo, relata os estu-dos realizados sobre segurana pblica, as polticas pblicas existentes e as formas de accountability das foras pblicas e dos efetivos de segurana privada em outros pases.

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    Resenhas

    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 357-359, jan./dez. 2004/2005

    Cubas relata experincias descritas em trs tex-tos. Um deles, publicado pela Policing and Society, em 1995, aborda o enfoque dado s pesquisas sobre segurana privada. Outro descreve os resultados de obtidos a partir da realizao, pela Fundao Cana-dense para as Amricas (Focal), de um workshop so-bre a privatizao da segurana na Amrica Latina, mostrando as experincias da Argentina, Honduras e Mxico. A discusso envolveu oficiais dos gover-nos, juzes, especialistas sobre a polcia, acadmicos, representantes de movimentos de direitos humanos e organizaes policiais. Tambm o texto preparado pelo Vera Institute of Justice, publicado em agos-to de 2000, discute a questo do accountability no caso da segurana privada e, para isso, conta com os exemplos de trs experincias desenvolvidas em Nova York, Joanesburgo e Cidade do Mxico.

    Aps o relato das trs experincias apresenta-das no workshop (Argentina, Honduras e Mxico), a autora chega concluso de que a privatizao da segurana nas Amricas um sintoma de seguran-a pblica frente ao crescimento da criminalidade. um importante fator da perda da capacidade das instituies do Estado em cumprirem a sua princi-pal obrigao da segurana individual e coletiva de seus cidados. A privatizao da segurana tambm vem abalando a governabilidade e as instituies democrticas na Amrica Latina e Caribe, pois as estruturas de accountability so insuficientes ou no existentes para as foras de segurana privada. A se-gurana privada ameaa democracia tambm por-que introduz mtodos de mercado para a justia e servios policiais, o criando duas camadas de cida-dania, aqueles que podem e aqueles que no podem pagar pela segurana. E, por ltimo, h vrias cau-sas para o fenmeno, como a falta de recursos do Estado, falta de competncia, trfico de armas, cri-minalidade, entre outras.

    O relatrio The public accountability of private po-lice do Vera Institute of Justice apresenta trs expe-rincias distintas da aplicao da segurana privada e suas respectivas formas de accountability e afirma que a privatizao da segurana algo irrevers-

    vel e sugerindo que a privatizao de alguns servi-os pode ajudar a polcia pblica a centrar esforos nas atividades que requerem maior conhecimento e treinamento. Um ponto fundamental de reflexo e preocupao encontrado nessas experincias que as polcias privadas esto desempenhando papis quase idnticos aos da polcia pblica.

    No terceiro captulo, O processo de expanso das empresas de segurana privada em So Paulo, h um en-foque histrico das empresas de segurana, sobre seu surgimento e desenvolvimento, as conseqncias da sua expanso, inclusive uma discusso sobre servi-os clandestinos. Destaca-se o fato que grande parte dos recursos humanos que exercem ou organizam as empresas de segurana privada so oriundos ou ain-da pertencem aos quadros da segurana pblica.

    Neste captulo, Cubas enfatiza que a legitimi-dade de um governo est intrinsecamente relaciona-da sua capacidade em manter a ordem e que essa capacidade e autorizao para o uso da fora fsica na manuteno dessa ordem emana dos cidados, tornando-se fundamental que estes mesmos cida-dos possam ter controle sobre a maneira como esse poder exercido, mas essa uma questo que no est presente nas discusses acerca da expanso da segurana privada.

    Por fim, o quarto captulo, Estrutura e funcio-namento das empresas de segurana privada: seleo, re-crutamento e treinamento dos profissionais em segurana privada, aborda os processos de seleo e treinamen-to dos profissionais do setor de suas formas de ac-countability.

    Cubas situa que conforme estabelece a Lei 7.102, cabe a Polcia Federal todo o controle sobre as empresas de segurana privada do pas, mas ex-plicita neste captulo o quanto este controle ainda insipiente. E seguindo uma lgica de mercado, para os empresrios deste ramo, o controle mais impor-tante o exercido pelos prprios clientes da empre-sa e pela propaganda que a mdia faz sobre os seus servios.

    A necessidade de um controle externo sobre as polcias privadas uma relevante preocupao

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    Cronos, Natal-RN, v. 5/6, n. 1/2, p. 357-359, jan./dez. 2004/2005

    Resenhas

    da autora e espera-se que num pas democrtico, o debate sobre a segurana no se limite lgica de mercado, da simples relao compra e venda de ser-vios, e ser torne uma discusso realmente de dom-nio pblico.

    Cubas termina o livro, destacando que apesar das sociedades de democracia tradicional e conso-lidada enfrentarem os desafios de controlar os ser-vios de segurana privada, esse problema muito maior no caso de sociedades como a brasileira, onde h persistncia de graves violaes de Direitos Hu-manos e o no respeito aos direitos civis. A oferta de servios privados de segurana pode no represen-tar um problema em sociedades em que esse servio funciona como um complemento atividade de se-gurana pblica e onde o Estado tem um forte con-trole no funcionamento e fiscalizao das empresas. Numa sociedade extremamente desigual, na qual o poder pblico no consegue garantir a segurana pblica de sua populao, esses servios funcionam como um substituto segurana pblica, como uma opo para os que podem pagar por sua segurana.

    A leitura deste livro abre o debate sobre a ex-panso dos servios de segurana privada, fomenta o debate pblico dos caminhos de enfrentamento da violncia e apresenta os riscos que o descontrole da segurana privada agrava o quadro de insegurana e desproteo da sociedade brasileira. Esse livro cons-titui-se uma leitura essencial para todos preocupados e interessados nos caminhos da poltica de segurana brasileira, assim como seus reflexos e interligaes com a cidadania e a democracia brasileira.