relações de apego no contexto

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  • Psicol. Argum. 2012 jan./mar., 30(68), 75-85

    ISSN 0103-7013Psicol. Argum., Curitiba, v. 30, n. 68, p. 75-85, jan./mar. 2012PSICOLOGIA ARGUMENTO ARTIGOS

    Relaes de apego no contexto da institucionalizao na infncia e da adoo tardia[I]Attachment in the context of institutionalization in the infancy and in late adoption

    [A]

    Abstract

    Studies provide evidence that there are many factors that can influence the quality of attachment

    between parents and adopted children, particularly when it involves children with a history of

    long-stay in shelters and similar institutions. The theme has yet been little explored by the scien-

    tific literature, whereas there are rare studies that propose discussion about the formation of at-

    tachment on such specific context. Among the studies held in recent decades, there is a suggestion

    that, for a child, the effects of time she spent, before being adopted, in contact with important

    figures from the origin family and in children shelter institutions are important for the develop-

    ment for that child. Thus, studies have shown a set of factors that might promote or inhibit the

    formation of attachment in such relationships, but a few of them highlight the availability of a

    late-adopted child, as well as of her new caretakers for this form of binding. This way, this paper

    complies with the purpose of presenting references that illustrate the production on the issue and

    provide input to this debate in contemporary society. #][K]Keywords: Attachment. Institutionalization in childhood. Late adoption. #]

    [R]

    Resumo

    Estudos apresentam evidncias de que so vrios os fatores que podem influenciar a qualidade

    do apego entre pais e filhos adotivos, em particular quando isso envolve crianas com hist-rico de longa permanncia em abrigos e instituies similares. O tema tem sido ainda pouco

    explorado pela literatura cientfica, considerando que so raros os estudos que propem a

    discusso da formao do apego nesse contexto especfico. Entre as realizadas nas ltimas dcadas, est a sugesto de que so importantes os efeitos para o desenvolvimento do tempo que a criana passou no convvio com figuras de referncia na famlia de origem e em institui-es de acolhimento infantil antes de ser adotada. Desse modo, estudos tm apresentado um

    conjunto de fatores que podem favorecer ou inibir a formao do apego nessas relaes, mas

    poucos destacam a disponibilidade da criana adotada tardiamente, assim como de seus novos

    cuidadores, para essa forma de vinculao. Este artigo cumpre assim com o propsito de apre-sentar referncias bibliogrficas que ilustram a produo sobre o tema e oferecem subsdios para esse debate na contemporaneidade. [#] [P]Palavras-chave: Apego. Institucionalizao na infncia. Adoo tardia. [#]

    [A]Llia Ida Chaves Cavalcante[a], Celina Maria Colino Magalhes[b]

    [a] Docente do Programa de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Par (UFPA), professora adjunta da Faculdade de Servio Social, Belm, PA - Brasil, e-mail: [email protected]

    [b] Docente do Programa de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Par (UFPA), bolsista de produtividade do CNPq, Belm, PA - Brasil, e-mail: [email protected]: 05/04/2011Received: 04/05/2011Aprovado: 14/07/2011Approved: 07/14/2011

    [T]

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    Relaes de apego na infncia: Notas introdutrias

    Entre estudiosos do desenvolvimento humano, com maior ou menor nfase, a infncia tem sido apre-sentada como um perodo que engloba vrios e com-plexos processos: crescimento orgnico e maturao neurolgica, organizao do pensamento e raciocnio, percepo e expresso da emoo, interao e rela-o social (Bowlby, 1997; Bronfenbrenner, 1996).

    Nessa rea do conhecimento, estudos tericos e empricos sobre desenvolvimento infantil tm pri-vilegiado o que tem sido considerado como talvez a mais importante das propriedades humanas: a ca-pacidade de construir vnculos e relaes de apego.

    Para Hrdy (2001), os humanos, assim como outras espcies animais, nascem biologicamente preparados para estabelecer e manter uma ligao emocional, forte e duradoura com a me ou qual-quer outra figura de apego primrio. As crianas j nascem com a necessidade de se apegar. Os se-res humanos so, por assim dizer, nascidos para o apego. o que podemos considerar como a dimen-so biolgica do vnculo. Das ligaes primrias depende a sobrevivncia do filhote humano, princi-palmente nos primeiros anos de vida, pois requer ajuda para ser alimentado, protegido do frio e calor excessivo, mantido prximo e a salvo de estranhos que ofeream risco sua segurana.

    Assim, Bowlby (1997) compreende que entre os mamferos, sobretudo os primatas, incluindo os hu-manos , o primeiro e mais contnuo dos vnculos o estabelecido entre a me e seu filho pequeno, entre a criana e seu cuidador habitual, prolongando-se em geral da infncia at a vida adulta. Nessas condies, entre os parceiros, existe o que pode ser definido, se-gundo o autor, como uma inclinao natural para manterem-se prximos um do outro. Nesse sentido, a vinculao se estabelece e se consolida pela proximida-de, pela convivncia contnua. A formao do vnculo essencial e torna possvel, na eventualidade da separa-o dos parceiros, disposio para recompor os laos afetivos que foram desfeitos. Por isso, argumenta que a separao entre pares vinculados no ocorre comu-mente sem resistncias o mais fraco agarra-se ao mais forte buscando proteo contra o elemento estranho, especialmente quando se trata da dade composta por me e filho.

    Em que pese a existncia de crticas nfase dada por essas formulaes iniciais base instintiva das ligaes humanas, a compreenso da natureza

    do vnculo entre animais inspirou estudos seme-lhantes com humanos e que at hoje so refern-cias importantes no meio cientfico, entre os quais se deve dar merecido destaque ao conjunto da obra de Mary Ainsworth, resultado de uma fecunda par-ceria com John Bowlby, a partir da dcada de 1950 (Bretherton, 1992).

    Entre 1953 e 1967, Mary Ainsworth realizou es-tudos precursores sobre o apego entre me e filho. Primeiro com bebs na faixa etria de 1 a 24 me-ses, na frica; depois, em Baltimore, nos EUA, com crianas que tinham entre 10 e 24 meses. O experi-mento, que ficou conhecido no mundo inteiro como Situao Estranha, procurou registrar comporta-mentos que promoviam a proximidade entre me e filho, constatando que os sinais emitidos pela crian-a eram dirigidos predominantemente me. Aps vrias repeties do mesmo experimento, ficou cla-ro que a maioria dos bebs, cerca de 60%, brinca e explora o novo ambiente de maneira mais tranquila e ativa, quando na presena da me. Contudo, os be-bs reagem de maneira diferente s circunstncias criadas pelo experimento o afastamento da me e a proximidade do estranho. Em geral, demonstram satisfao e alvio diante da presena da me, mas, por vezes, manifestam raiva ou indiferena ao reen-contr-la aps o perodo de separao.

    Os resultados obtidos permitiram categorizar diferentes tipos ou padres de apego quanto ao grau de confiana e segurana presente na relao entre me e filho. O apego foi definido basicamen-te como seguro ou inseguro, embora existam outras variaes de qualidade indiferente, ambivalente ou desorganizado. No apego seguro, o mais comum nas situaes pesquisadas at hoje, a criana busca, de forma moderada, conforto e contato fsico com a me, mas especialmente ao reencontr-la aps um perodo de afastamento. A criana demonstra cla-ramente que prefere a me ao estranho. No apego inseguro-esquivo, a criana evita o contato com a me, principalmente quando se rene a ela aps a separao. No resiste s tentativas da me em fa-zer contato, mas tambm no busca a proximidade. A criana trata de forma semelhante a me e o es-tranho. No apego inseguro-desorganizado, a criana apresenta comportamento contraditrio, confuso ou apreensivo em relao ao contato com a me. Quando a reencontra aps a separao, pode acei-tar o conforto oferecido por ela e, ao mesmo tempo, evitar manter qualquer contato visual.

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    Os efeitos da separao ou perda da figura de apego investigados por Bowlby (1995) e Ainsworth (1983), contriburam para deixar claro o valor das figuras primrias de apego para o desenvolvimento humano, alm de discutir questes que dizem res-peito situao de crianas encaminhadas a insti-tuies precocemente e tempos depois acolhidas em lares adotivos. Em todo o, mundo essa uma realidade secular e possvel encontrar ainda hoje milhares de crianas que passam os primeiros dias, meses e at anos de sua infncia em instituies de abrigo, sob a responsabilidade de profissionais que se revezam na tarefa de lhes prover cuidados subs-titutos, que funcionam como uma alternativa con-vivncia em famlia.

    Por essas e outras razes, considera-se que os limites e as possibilidades para a construo de novos vnculos afetivos e a formao do apego en-tre pais e filhos adotivos devem ser discutidos luz da compreenso terica dos efeitos da insti-tucionalizao prolongada na chamada primeira infncia para a criana, sob pena de se subtrair dos fundamentos dessa anlise aspectos outros que so decisivos face s particularidades de sua trajetria desenvolvimental.

    Institucionalizao na infncia e suas implicaes para a formao do apegoNo Brasil (Ipea, 2004), assim como em vrias regies do mundo (Unicef, 2010), a separao involuntria dos pais ou a exposio violncia, doena, ao abuso e explorao, dentro e fora do lar, so situaes frequentes e servem como justificativa para a longa permanncia de crian-as em instituies abertas ou fechadas, a exem-plo dos abrigos, orfanatos, internatos, hospitais e unidades psiquitricas.

    De acordo com Roy, Rutter e Pickles (2000), a despeito do relativo consenso entre os especialistas de que a privao do cuidado parental nos primei-ros anos de vida pode oferecer riscos ao desenvol-vimento infantil, observa-se que as sociedades em geral ainda reforam a ideia de que a colocao da criana em instituies de abrigo pode ser a nica e, por vezes, a melhor alternativa em pases atingi-dos por guerras, epidemias, catstrofes naturais, n-veis extremos de pobreza e precariedade das redes de apoio social.

    Entre os pesquisadores que se destacam no trato cientfico dessa questo, existe relativo consenso em torno da ideia de que, nos primeiros anos de vida, so graves as sequelas fsicas, cognitivas, afe-tivas e sociais derivadas do tempo passado em instituies asilares, uma vez que a criana afastada do seu ambiente familiar e passa a con-viver com pessoas e situaes estranhas, o que pode resultar em intensas manifestaes emocionais como angstia e medo. Se o tempo passado longe de casa for demasiadamente longo, a possibili-dade das sequelas decorrentes dessa experin-cia serem mais graves e persistentes tende a ser ainda maior, como mostram observaes clnicas e pesquisas longitudinais que acompanharam a colocao de crianas em instituies, e depois, a sua convivncia em lares adotivos.

    Alguns desses estudos foram realizados h mais de meio sculo, mas permanecem atuais quando se consideram as contribuies apresentadas ao deba-te do tema em pauta. Outros, mais recentes, relati-vizam a pertinncia dos estudos precursores para a compreenso do fenmeno na contemporaneidade, difundindo a ideia de que toda e qualquer sequela pode ser prevenida ou minimizada a partir de fatores que protegem e promovem o desenvolvimento da criana durante a sua prolongada permanncia em instituies, mas principalmente aps essa experincia, em que as oportunidades de vinculao e apego com novos cuidadores em um lar adotivo podem ser decisivas para a qualidade do desen-volvimento esperado.Nesse sentido, estudos divulgados a par-tir de meados do sculo passado, como os tra-balhos de Bowlby [1976] 1995, ([1979] 1997), Bronfenbrenner ([1994] 1996), Freud e Burlingham (1960), Provence e Lipton (1962), Spitz ([1965] 1998), Tizard e Hodges (1978), guardam impor-tncia histrica na medida em que impulsionaram o debate sobre os efeitos do cuidado institucional precoce e prolongado para a aquisio de importantes competncias cognitivas, onde se ressalta o seu processo de desenvolvimento scio-emocional.Entre os precursores do debate sobre esse tema est Spitz ([1965] 1998), que, na primeira metade do sculo XX, demonstrou que situaes de privao afetiva, total ou parcial, levam muitas crianas cui-dadas em instituies a manifestar uma espcie de sndrome, um conjunto de sintomas de natureza fsica e psquica que afetam o desenvolvimento da criana.

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    Nesses termos, a chamada Depresso Nosolgica est relacionada presena de um quadro clnico que envolve, inicialmente, choro insistente, perda progressiva de peso, evoluindo para a recusa do contato com outras pessoas, perturbaes no ritmo do sono, maior vulnerabilidade a doenas infecto--contagiosas graves, e, em casos extremos, possibi-lidade de poder haver manifestao de rigidez facial e outros problemas neurolgicos.

    Freud e Burlingham (1960) tambm realizaram estudo em berrios que acolhiam crianas sem lar e privadas do convvio com os pais. As autoras dedicaram especial ateno ao estudo dos efeitos do stress gerado pela privao dos cuidados mater-nos para o desenvolvimento dos chamados rfos da Guerra, analisando com propriedade a extenso dessas sequelas psicolgicas e os recursos ofere-cidos pela terapia psicanaltica infantil para sua reparao. Na discusso do contedo de suas ob-servaes clnicas deixaram claro a pertinncia dos achados de outros estudos psicanalticos sobre a traumtica experincia da institucionalizao pro-longada e suas implicaes para a dimenso afetiva das relaes da criana com seus cuidadores e pa-res, realizados mais ou menos no mesmo perodo.

    o caso do trabalho publicado por James Robertson, em 1948, que realizou avaliao diag-nstica sobre a situao da sade mental de crian-as institucionalizadas, apoiado pela Organizao Mundial da Sade. O estudo envolveu crianas de ambos os sexos, com 2 e 3 anos, que tinham em co-mum o fato de terem sido cuidadas fora do lar por um determinado tempo. Ele as observou antes, du-rante e depois do retorno ao convvio com a famlia. As crianas que participaram da pesquisa permane-ceram durante semanas ou at meses em ambien-tes institucionais, como hospitais ou entidades de assistncia social, sempre em regime de internao e com o convvio de profissionais que se revezavam em seus cuidados dirios, mas sem a presena de uma me-substituta estvel.

    Na esteira dessa polmica, em 1952, John Bowlby publicou obra que apresenta e discute questes re-lacionadas privao do contato fsico entre me e filho e as implicaes afetivas dessa separao nos primeiros anos da infncia, lanando luzes sobre a investigao de situaes nas quais a criana recebe os cuidados primrios em ambiente institucional, mas no consegue estabelecer trocas afetivas e con-tnuas com os cuidadores substitutos, procurando

    alertar para os prejuzos deixados por essa expe-rincia ao desenvolvimento infantil. Em que pese crticas sofridas ao longo do tem-po, o conjunto dos trabalhos citados nos pargrafos anteriores serve ainda como referncia para estu-dos mais recentes sobre a condio psicossocial da criana institucionalizada, mas principalmente quanto aos limites e s possibilidades do desenvol-vimento humano em contextos marcados pela pri-vao material e afetiva. Entre os representantes de uma perspectiva eco-lgica acerca dos efeitos da longa permanncia em instituies para a condio psicossocial da criana, Bronfenbrenner ([1994] 1996) resgata a impor-tncia dos precurssores nesse debate. Traz novas e importantes contribuies ao argumentar que o po-tencial desenvolvimental das crianas cuidadas em instituies aumenta na razo direta em que o meio fsico e social favorece a assimilao de padres de interao recproca com seus pares e cuidadores que desempenham papel parental, assim como abre espao para a construo de relacionamentos di-dicos primrios cada vez mais complexos, como de-vem ser definidas as relaes de apego.Na perspectiva da ecologia do desenvolvimento, Bronfenbrenner (1996) considera que a famlia e as instiuies infantis constituem-se contextos pri-mrios, abrangentes e complexos, no qual a criana realiza atividades, constri relaes e desempenha papis que podem beneficiar em maior ou menor medida o curso do desenvolvimento. Isso significa dizer que a criana no interrompe a sua trajetria de desenvolvimento a partir do momento em que deixa a convivncia com a famlia de origem e passa a viver sob os cuidados de uma instituio. Ao con-trrio, como contexto ecolgico abrangente, a insti-tuio oportuniza criana o envolvimento em ml-tiplas atividades, papis e relaes que, em maior ou menor medida, exercem influncia sobre a sua trajetria desenvolvimental como um todo.

    Por seu turno, Zeanah et al. (2003) chamam ateno para o fato de que viver e crescer em uma instituio do tipo asilar implica em acumular ex-perincias que tm o poder de afetar o desenvol-vimento global da criana, principalmente quando ocorrem nos primeiros 36 meses de vida. O per-odo que se estende da concepo at a idade de trs anos particularmente decisivo para o desen-volvimento, uma vez que so processadas rpidas, complexas e profundas mudanas na formao da

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    mente da criana. precisamente nessa fase da vida que a criana passa de um quadro de completa de-pendncia dos cuidadores primrios em razo de limitaes de ordem motora, verbal e cognitiva, a uma refinada capacidade de entendimento e partici-pao ativa em situaes regidas por regras sociais. Entende-se, assim, que o afastamento da fam-lia e a permanncia da criana em instituio que oferea pouco estmulo ao funcionamento das es-truturas cerebrais, so experincias que podem li-mitar os notveis avanos desenvolvimentais espe-rados nessa fase da vida. Com base nos achados de Zeanah et al. (2003), possvel notar que sequelas derivadas de um longo e precoce perodo de priva-o costumam ser mais graves e persistentes se, e somente se, o ambiente institucional for limitado em sua capacidade de gerar estmulos criana que est em uma fase da vida particularmente sen-svel ao aprendizado social e constituio de um padro afetivo.

    Sobre a questo, Dozier, Stovall, Albus e Bates (2001) defendem que a longa permanncia em ins-tituies de acolhimento pode resultar em riscos ao desenvolvimento global da criana, e, por isso mes-mo, deve ser evitada. Contudo, os riscos implicados nessa experincia assumem contornos mais preo-cupantes apenas quando limitam a capacidade da criana de criar e manter relaes estveis e dura-douras, seja com profissionais responsveis por sua rotina de cuidados, seja com seus pares no intenso convvio no cotidiano da instituio.

    Na presente dcada, pesquisas comeam a dar um passo frente na compreenso da complexida-de que envolve os processos de institucionalizao e seus efeitos imediatos e em longo prazo para o desenvolvimento humano. Estudos comparam hoje diferentes aspectos do desenvolvimento de crian-as que, em seus primeiros meses ou anos de vida, foram cuidadas em instituies e, depois, em lares adotivos. Em sua maioria, so estudos comparativos e longitudinais que tm em comum o fato de traba-lharem com amostras de crianas com histrico de institucionalizao precoce e prolongada, como res-gatam Sigal, Perry, Christopher, Rossignol e Ouimet (2003) e Zeanah, Smyke, Koga e Carlson (2005) a partir de minuciosa reviso da literatura disponvel sobre o tema.Assim como os precursores na discusso des-se tema, pesquisas recentes evidenciam ora a pre-sena de dficits duradouros no funcionamento

    psicolgico da criana institucionalizada, ora os efeitos perceptveis da privao afetiva para a se-gunda gerao. Na trajetria do desenvolvimento da criana com histrico de institucionalizao prolon-gada e adoo tardia (aps os dois ou trs anos de idade), estudos mostram que tais sequelas esto ge-ralmente associadas privao afetiva associada ao cuidado material e emocionalmente negligente de-dicado criana no tempo em que conviveu com a sua famlia de origem e/ou na instituio onde pas-sou parte significativa da infncia. De maneira geral, estudos atuais confirmam a tese j existente de que a privao afetiva traz, em alguma medida, prejuzos ao desenvolvimento fsico, cognitivo e emocional, contudo definem hoje a hiptese de que a extenso desses efeitos depender dos riscos potenciais da exposio da criana a um padro de acolhimento e cuidado institucional, ao mesmo tempo, precoce, exclusivo e prolongado.

    Os achados e hipteses de estudos realizados nos dez ltimos anos assumem, portanto, clara importncia para a discusso proposta neste arti-go, por permitirem a compreenso de como e por que os processos de institucionalizao prolonga-da e adoo tardia esto comumente imbricados e exercem influncia na capacidade da criana sob essas condies desenvolvimentais, construir e manter relaes de apego ao longo da infncia e nos anos seguintes.Entre as pesquisas que contribuem para esse debate, faz-se referncia especial aos estudos que avaliam o curso do desenvolvimento de crianas adotadas a partir de instituies sediadas no Leste Europeu, Rssia e outros pases onde muitas fam-lias enfrentam adversidades sociais graves, com-pondo uma populao que apresenta um leque de problemas relacionados, ora privao do cuidado parental, ora s caractersticas hostis que marcam a vida institucional.

    Em estudo longitudinal realizado por OConnor, Rutter, Beckett, Keaveney e Kreppner (2000), em conjunto com pesquisadores do English Romanian Adoptees Study Team (ERA), avaliam a extenso dos efeitos da privao severa sobre o desenvolvimento da criana nos primeiros anos de vida. Nesse estu-do, em particular, a equipe de pesquisadores traba-lhou com trs amostras de crianas adotadas por famlias residentes no Reino Unido, entre 1990 e 1992. No primeiro, grupo selecionaram 165 crian-as (de um total de 324) com histrico de privao

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    severa de ordem material e emocional. Aps rigoro-sa avaliao dos pesquisadores, a amostra final foi composta por 111 crianas adotadas de 0 a 24 me-ses de idade, sendo 51% dos participantes do sexo masculino. No segundo grupo, estavam 48 crianas romenas tambm adotadas por famlias do Reino Unido, na faixa etria de 24 a 42 meses, com pre-domnio do sexo feminino (65%). O terceiro grupo era constitudo por um contingente de 52 crianas, oriundas do Reino Unido, que no possuam em seu histrico experincia de privao severa anterior.Independente da idade em que foram adotadas as crianas participantes da pesquisa, a maioria foi encaminhada instituio nas primeiras semanas de vida, apenas um pequeno nmero convivera an-tes em ambiente familiar. Em geral, as crianas pes-quisadas estavam severamente desnutridas e apre-sentavam as marcas do cuidado negligente recebido em instituies romenas.

    Os procedimentos da pesquisa que objetivavam submeter avaliao o desenvolvimento global das crianas e comparar resultados apresentados pelas amostras, foram os seguintes: 1) Medidas Antropomrficas (registra peso, altura e circun-ferncia da cabea); 2) ndice Global Cognitivo (analisa aspectos como percepo, memria, ex-presso verbal e quantitativa por meio da Escala de McCarthy, 1972 e Merril-Palmer, ANO); 3) Questionrio Revisado de Denver (recupera relatos parentais quanto a alteraes nos comportamentos sociais, linguagem, psicomotricidade fina e gros-sa). Do ponto de vista qualitativo, outras medidas foram ainda utilizadas pelos pesquisadores: per-cepo dos pais adotivos quanto manifestao de problemas comportamentais na fase pr-escolar, a frequncia s aulas e o tipo de instituio de ensino que a criana passou a frequentar no Reino Unido (pblica ou privada).

    O experimento revelou avanos na evoluo dos dados antropomrficos e na aquisio de habilida-des cognitivas entre as crianas que compunham os trs grupos de adotados. Foram considerados dados da avaliao feita no momento em que ingressaram no Reino Unido e os escores obtidos em nova afe-rio feita aos 4 e 6 anos a partir de uma bateria de testes e relatos parentais. Entretanto, quando os pesquisadores observaram o desempenho das crianas em todas as medidas de avaliao do de-senvolvimento, as que foram colocadas tardiamente em lar adotivo, ou seja, aps os dois anos de idade,

    apresentaram sempre os escores mais baixos. Na Escala de Denver, por exemplo, 18% das crianas expostas h mais tempo aos riscos prprios do cui-dado institucional, negligente e exclusivo, alcana-ram pontuao inferior a 70.

    Os resultados indicam que parte das crianas expostas privao severa no incio da vida apre-sentou dficits cognitivos mais elevados quando comparadas as que no haviam tido essa experin-cia, ainda que os pesquisadores tenham notado expressiva variabilidade em termos das diferenas individuais nos escores referentes avaliao reali-zada aos de seis anos de idade, fato que talvez esteja associado aos benefcios derivados do cuidado no pr-natal e influncias genticas.

    Em que pese reconhecerem a importncia desses achados, para OConnor, et al. (2000) e pesquisado-res do ERA, no seria possvel afirmar de forma con-clusiva que a deteriorao e os avanos no desen-volvimento fsico e cognitivo das crianas avaliadas guardam correlao significativa com a durao da privao (se foi longo o tempo de permanncia na instituio ou no) ou ainda o tempo de convivncia em famlia substituta (se a adoo ocorreu tardia-mente ou no). Para esses autores, assim como para muitos dos por eles citados, outras variveis preci-sam ser consideradas para explicar de maneira con-sistente alteraes no curso do desenvolvimento de crianas com histrico de privao severa e cuidado institucional prolongado.

    O trabalho de Ames (1997) amplia o leque dessas anlises ao sinalizar os elementos que precisam ser considerados na avaliao das trajetrias desenvol-vimentais dessas e outras tantas crianas adotadas. Para a autora, que estudou detidamente o proces-so de adaptao de crianas romenas adotadas por famlias em pases de cultura anglo-saxnica, entre 1990 e 1991, entre outros fatores que podem ter contribudo para atenuar os efeitos da longa espera por uma famlia em instituies asilares, o contato regular com brinquedos e atividades ldicas deve ter sido decisivo para a melhoria da qualidade dos cuidados recebidos no perodo. Estudos tm mostrado que a brincadeira facilita a elaborao pela criana de sentimentos e emoes intensos, tais como o medo, a raiva e a tristeza, per-mitindo alargar as fronteiras do autoconhecimento e identificar limites e recursos prprios para lidar com essas manifestaes emocionais. Por meio da brinca-deira, a criana sente-se a vontade para ex pressar

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    Relaes de apego no contexto da institucionalizao na infncia e da adoo tardia 81verbalmente aspectos do seu universo afetivo, com-preendendo comportamentos que traduzem seu grau, a sua angstia diante de privaes de toda ordem, como tambm os mecanismos de supera-o que a tornam to resiliente quanto possvel face s condies adversas presentes em seu ambiente imediato. Sob a tica de Ames (1997), a convivncia em instituies que oportunizavam experincias ldicas que favorecem sensaes de prazer, confor-to e segurana, aproximando afetivamente adultos e crianas, provavelmente aumentou a chance da preveno de graves sequelas cognitivas e emocio-nais na populao de crianas estudada por ela e outros autores.

    Esses e outros trabalhos de autores como OConnor et al. (2000) e Ames (1997), definem, neste artigo, as bases para uma compreenso alar-gada da influncia que podem ter experincias an-teriores de privao severa na adaptao da criana ao lar adotivo, onde se inclui a sua disponibilidade para a construo de novos vnculos afetivos, assim como os desafios postos por esse processo em ter-mos da superao por pais e filhos dos efeitos gera-dos pela prolongada exposio pobreza e a convi-vncia em ambientes com pouca oferta de estmulos fsicos e sociais.Percebe-se, assim, que a discusso sobre os efei-tos da privao severa para a adaptao posterior da criana s condies apresentadas pelo lar adotivo deve envolver outras questes importantes: a vali-dade da hiptese que prev a existncia de perodos crticos do desenvolvimento que favorecem a aqui-sio de certas habilidades cognitivas e sociais; os limites da resilincia infantil em contextos marcados por condies material e emocionalmente adversas; a existncia de mecanismos pelos quais experincias precoces podem se constituir em fatores de risco para o amadurecimento psicolgico da criana.

    O pioneirismo desses primeiros trabalhos teve certamente o mrito de levantar questes que per-manecem atuais entre pesquisadores contempo-rneos. Entre tantas, destaca-se: Quais as impli-caes da interrupo dos cuidados em famlia e a longa permanncia em ambiente institucional para a formao de um padro de apego emocionalmen-te seguro a partir do momento em que a criana passa a conviver em lares adotivos?

    Talvez o primeiro passo para se buscar poss-veis respostas a essa e outras questes esteja no reconhecimento de que a importncia das ligaes

    primrias para o desenvolvimento e a atualidade do debate acerca dos efeitos da privao afetiva que est associada a um padro de cuidado institucio-nal, prolongado e exclusivo, na fase inicial da vida. Essas so, portanto, questes inexoravelmente liga-das entre si. O apego entre pais e filhos em situaes de adoo tardiaEstudos tm mostrado que bebs adotados que, desde os primeiros meses de vida, receberam os cui-dados primrios por parte de pessoas com as quais no mantm vnculos familiares, provavelmente tm diante de si o desafio da formao do apego e do lao afetivo que os unir aos seus novos cuidadores. Em geral, quando so deixados em instituies por muito tempo, por vezes desde o nascimento, os be-bs adotados experimentaram antes condies re-conhecidas como emocionalmente problemticas, em particular a interrupo nas relaes estabele-cidas com seus cuidadores primrios na famlia ou em ambiente institucional.

    Especificamente sobre essa questo, Zeanah, Smyke, Koga e Carlson (2005) realizaram estudo que examinou a qualidade do apego em dois grupos de crianas que residiam em Bucharest, na Romnia. O primeiro era formado por 95 crianas cuidadas exclusivamente em ambiente institucional. O outro grupo reunia 50 crianas que nunca haviam sido institucionalizadas, tendo convivido em ambiente familiar desde o nascimento. As crianas seleciona-das eram de ambos os sexos e tinham idades entre 12 e 31 meses. Ao longo da durao da pesquisa, fo-ram realizadas entrevistas estruturadas com os cui-dadores primrios dessas crianas e procedimen-tos do experimento elaborado por Ainsworth, Bell e Donelda (1983), mundialmente conhecido como Situao Estranha. Nesse estudo, na ausncia dos pais, os pesquisa-dores procuraram identificar quem eram os cuida-dores habituais por quem as crianas manifestavam clara preferncia. Os resultados demonstraram que as crianas que recebiam os cuidados primrios, exclusivamente em instituies assistenciais, com-punham o grupo que apresentou maior dificuldade para se vincular aos seus cuidadores e apresentar comportamentos associados formao e organiza-o do apego. Zeanah et al. (2005) verificaram ainda

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    que apenas 22% das crianas que se encontravam institucionalizadas por ocasio do experimento de-senvolveram estratgias de apego em situaes de interao com cuidadores por quem demonstravam algum nvel de proximidade ou preferncia. J entre as crianas que eram cuidadas exclusivamente em ambiente familiar, esse percentual foi mais elevado, aproximadamente 78% desenvolveram estratgias para a formao do apego. As crianas que convi-viam com seus pais apresentaram diferenas signi-ficativas na quantidade e na qualidade do contato com seus cuidadores, o que deve ter sido decisivo do ponto de vista emocional para a formao do pa-dro de apego seguro em ndices mais elevados do que os encontrados no grupo que recebia ateno somente de cuidadores profissionais.

    Igualmente, para Dozier, Stovall, Albus e Bates (2001), existem hoje evidncias empricas suficien-tes de que essas experincias prvias podem, em alguma medida, diminuir as chances dos filhos ado-tivos construrem relaes de confiana com seus novos pais e cuidadores, o que no significa exata-mente elimin-las. Sobre a polmica que gira em torno desse debate, a literatura sobre o tema mos-tra que, mesmo em condies consideradas pou-co favorveis do ponto de vista social e emocional formao do vnculo e manifestao do apego, crianas adotadas conseguem organizar seu com-portamento de apego. Isso em razo da presena de variveis fortemente relacionadas ao processo de vinculao, em que tem sido destacada pelos auto-res a disponibilidade de seus novos cuidadores para a vivncia desse tipo de experincia.

    Dozier et al. (2001) consideram que, ainda que existam fortes evidncias de que a formao do ape-go esteja relacionado de uma ou de outra forma s sequelas deixadas pelo longo tempo de privao afe-tiva ao qual a criana esteve exposta antes e durante a sua permanncia em instituies asilares, poucos so os estudos dedicados especificamente ao exame da natureza do apego formado por crianas adota-das com seus novos cuidadores. De acordo com os autores, de maneira geral, esse um tema ainda pouco explorado na literatura cientfica, quando se toma como referncia a quantidade de vezes em que crianas de diversas nacionalidades so adota-das em seu prprio pas ou por outros de culturas distantes. Graas a isso, as publicaes destinadas questo da questo acabam por tomar como re-ferncia a experincia afetiva de dades intactas,

    reconhecendo-as como teis na sugesto de hip-teses tericas que podem esclarecer como se do as relaes de apego entre pais e filhos adotivos com histrico de institucionalizao nos primeiros anos da infncia.

    Em qualquer contexto relacional, sabe-se hoje, a questo da qualidade do apego considerada muito importante pelos pesquisadores da rea da Psicologia e afins, porque reflete a qualidade da re-lao da criana com quem dela cuida no cotidiano, alm de que comumente est associada funo in-terpessoal que ela ir desenvolver posteriormente. Em reviso literatura que discute o tema, Dozier et al. (2001) verificaram que as crianas que desenvol-vem apego seguro com seus cuidadores primrios mostram-se mais competentes na habilidade de re-solver problemas posteriores, mais independentes e confiantes com professores e outros pr-escola-res, mais dispostas aos comportamentos interativos com seus pares na idade escolar do que outras que vivem em ambientes pobres em estmulos para a in-terao social e a vinculao afetiva. Inversamente, concluram que crianas com experincia de apego desorganizado na relao com seus cuidadores pri-mrios e pessoas de referncia apresentaram mais frequentemente comportamento agressivo com seus pares e sintomatologia dissociativa evidenciada no decorrer da infncia.

    Para tornar mais consistentes e vlidos os acha-dos cientficos relativos s experincias de apego vividas em diferentes contextos relacionais, Dozier et al. (2001) afirmam que tem sido investigada a qualidade do apego de crianas com cuidadores que foram definidos pelos pesquisadores como no bio-lgicos, e que foram, ora adotadas logo aps o seu nascimento, ora mantidas por longo perodo em instituies como abrigos e orfanatos. Entende-se que essas investigaes tm sido teis por sugeri-rem, no mnimo, o nvel de complexidade que envol-ve a formao de novas relaes de apego em subs-tituio as que eram antes mantidas pela criana em perodos anteriores de sua vida.

    Com base em dados que revelam as condies extremamente desfavorveis ao cuidado infantil em orfanatos na Romnia, Dozier et al. (2001) chamam ateno para a experincia de crianas que cresce-ram nesse contexto especfico e que depois passa-ram a ser estudadas a partir da sua insero em fa-mlias substitutas no Reino Unido, Canad e Estados Unidos. Entre outros resultados, constatou que 66%

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    das crianas adotadas por volta dos quatro meses de idade desenvolveram apego seguro com seus pais adotivos. Esses autores consideram que essa realidade no significativamente diferente daque-la que foi encontrada em um grupo de crianas no adotadas em condies semelhantes por Chisholm (1998), que observou que 58% delas desenvolve-ram apego seguro. No entanto, a situao comea a mudar quando se considera a amostra de crianas que haviam convivido em ambientes institucionais por pelo menos oito meses. Nessas circunstncias, o pesquisador verificou que somente 37% desenvol-veram apego seguro na relao com seus pais ado-tivos. Igualmente, apurou que essas crianas que permaneceram sob a guarda da instituio por um perodo considerado demasiadamente longo apre-sentavam ndices mais altos de apego desorganiza-do e comportamento indiscriminadamente amig-vel com estranhos.

    Na interpretao desses e de outros achados que apontam na mesma direo, Dozier et al. (2001) ressaltam que algumas ponderaes precisam ser feitas para que no se tirem concluses precipitadas e distorcidas sobre a questo. A primeira e principal ponderao a ser feita diz respeito inadequao do cuidado ofertado s crianas romenas ao longo do tempo passado continuamente em orfanatos e similares, qualificado por Cicchetti e Barnett (1991) como pouco estvel e personalizado, tendo sido a maioria das crianas que passaram pela instituio, negligenciada emocionalmente ao extremo. Por isso, advertem eles, esta entre outras descobertas, suge-re muitas possibilidades de investigao do apego de filhos adotivos a seus novos cuidadores, mas especialmente ressalta a importncia de se olhar para trs e reconhecer as condies em que eram cuidadas as crianas adotadas em instituies e o tempo em que estiveram expostas aos efeitos pre-judiciais da privao afetiva. Entretanto, como trao comum entre tais experincias, fica a certeza de que necessrio olhar tambm para frente e analisar as condies reais e as oportunidades de vinculao efetivamente colocadas pela convivncia em um lar adotivo, com seus novos cuidadores, como analisam Dozier et al. (2001). De acordo com esses autores, aps um perodo de ajuste e consolidao, os filhos adotivos tendem a organizar seu comportamento de apego em torno da disponibilidade de seus no-vos cuidadores, entre outras condies contextuais apresentadas. Nesse contexto, chamam ateno

    para a hiptese de que, se so potentes os efeitos das experincias anteriores dos filhos adotivos no que diz respeito qualidade do acolhimento institu-cional e interrupo desse cuidado nos primeiros anos da infncia, ento, pode ser que as caracters-ticas dos pais adotivos e/ou dos novos cuidadores sejam em razo disso completa ou parcialmente neutralizadas. como se as sequelas deixadas por um perodo da vida marcado por perdas afetivas subsequentes no conseguissem ser atenuadas e/ou reparadas completamente em razo das novas experincias de vinculao colocadas pela adoo.Contudo, outros aspectos precisam ser adiciona-dos e investigados no trato da questo. As associa-es entre as variveis de interesse primrio (por exemplo, estado da mente da me adotiva e apego da criana) e as variveis de interesse secundrio (idade da me adotiva, receitas financeiras, corres-pondncia racial) foram pouco exploradas no estu-do realizado por Dozier et al. (2001), indicando que os resultados por esse tipo de exame so ainda in-conclusivos. No a toa que nesses estudos h cons-tantemente a indicao da necessidade de anlises subsequentes que possam captar a complexidade que envolve a pesquisa desse tipo de evento com-portamental e desenvolvimental.

    Desse modo, conforme salientam Dozier et al. (2001), considera-se que a idade e o estado civil da me adotiva, a condio scio-econmica da fam-lia adotiva, o nmero de filhos adotivos na famlia substituta, a causa do encaminhamento da criana instituio e ao lar adotivo, o nmero de colocaes anteriores e a correspondncia racial entre a me e o filho adotivo, so variveis que no foram significa-tivamente relacionadas ao estado da mente da me adotiva e ao apego da criana, ou mesmo a ambos.

    Em resumo, em acordo com Dozier et al. (2001), conclui-se que os resultados dos estudos que inves-tigam as relaes de apego no contexto da adoo tardia confirmam a fora da propenso humana para vincular-se ao outro capaz de lhe oferecer pro-teo, como uma experincia que tem por isso valor de sobrevivncia para essa espcie. Nesse sentido, possvel afirmar que essa disposio est presen-te na criana adotada, a despeito das experincias de cuidado inadequado s quais esteve entregue, quer na famlia de origem uma vez que apresenta geralmente mltiplas adversidades psicossociais (Beckett, et al. 2006), quer em instituies mar-, et al. 2006), quer em instituies mar-et al. 2006), quer em instituies mar-2006), quer em instituies mar-quer em instituies mar-cadas comumente pela convivncia com muitos

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    cuidadores substitutos, mas nenhum em condies de ter com ela um relacionamento exclusivo (Tizard & Hodges, 1978). Em razo do exposto, pode-se afir-mar que essa propulso humana para o apego se faz sentir na criana adotada apesar de interrupes subsequentes na relao estabelecida por ela com figuras de referncia a partir de formas de cuidado previamente experimentadas (Dozier et al. 2001).Entretanto, sempre interessante lembrar que, nos casos mais graves em que esto presentes for-mas precoces e prolongadas de privao afetiva, como as citadas neste artigo, estudos tm mostrado que, quanto menor for a idade da criana e o tem-po passado em instituies asilares, maiores so as chances de conseguir desenvolver confiana e ape-go seguro na relao com seus novos cuidadores em um lar adotivo. Isso significa que todos os esforos pessoais, institucionais e familiares devem apontar em uma nica direo: quando no for possvel evi-tar a separao da criana de sua famlia de origem, tornar o tempo de permanncia na instituio o mais breve possvel e oferecer a ela estmulos so-ciais e afetivos capazes de ativar a disposio para manter-se prximo de seus cuidadores substitutos e com eles construir relaes estveis, prazerosas e de confiana.

    Sob essas condies, entende-se que a adoo tardia pode oferecer criana a oportunidade de continuar investindo na construo de relaciona-mentos sociais mais estveis e vnculos afetivos mais duradouros, porm, agora, em um novo e defi-nitivo ambiente familiar. Consideraes finaisPelo exposto neste artigo, percebe-se ser muito difcil desenhar concluses firmes a partir dos re-sultados apontados por estudos aqui citados. Tais estudos investigaram as experincias afetivas entre pais e filhos no contexto da adoo tardia, visto que muitos foram e continuam sendo realizados em so-ciedades e culturas nem sempre compatveis com a realidade de pases como o Brasil. Desde a promul-gao do Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990, e a Lei Nacional da Adoo, de 2009 (Unicef, 2010), a sociedade brasileira vem acumulando avan-os significativos no sentido de reduzir o tempo de permanncia de bebs nos abrigos e promover melhores condies de cuidado nesses ambientes.

    Assim como, por fora da lei, cresce a preparao dos candidatos adoo de crianas acima dos dois anos que se encontram abrigadas, discutindo com eles aspectos sociais e psicolgicos que envolvem essa experincia afetiva. Isso porque, como se pro-curou mostrar, a criana com histrico de institucio-nalizao precoce e prolongada em geral acumula interrupes experimentadas nos relacionamentos com figuras de apego primrias na famlia, na ins-tituio e acumula expectativas de que, no lar ado-tivo, o desfecho dessa relao possa ser diferente.

    De qualquer modo, considera-se que os estu-dos aqui reportados servem como referncia e es-tmulo para a realizao de pesquisas semelhantes no Brasil, mas que possam apreender o mximo possvel a complexidade que envolve o tema e as particularidades das experincias afetivas, reais e potenciais, nos contextos da institucionalizao na infncia e/ou das adoes consideradas tardias.

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