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  • FIDES REFORMATA XII, N 1 (2007): 147-153

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    RESENHAFilipe Costa Fontes

    PIPER, John; TAYLOR, Justin; HELSETH, Paul K. Tesmo Aberto Uma teologia alm dos limites bblicos. So Paulo: Vida, 2001. 501 p.

    O Tesmo Aberto, movimento que nasceu no evangelicalismo norte-americano, uma corrente de pensamento que coloca em cheque um dos principais aspectos da f crist histrica: sua concepo acerca de Deus. Seu propsito primordial primeiramente abandonar o conceito tradicional de Deus que, segundo seus proponentes, fruto de uma sntese de pressupostos bblicos com pressupostos da filosofia grega clssica, mais especificamente o platonismo e neoplatonismo, o que o tornou um Deus distante e no relacional. Em segundo lugar, propor um novo conceito de Deus baseado unicamente na exegese bblica, livre de pressupostos filosficos, que apresenta um Deus mais pessoal, relacional e envolvido com a histria humana.

    crucial compreender que o tesmo aberto no simplesmente outra batalha intramuros entre os evanglicos. No um debate sobre doutrinas de segunda categoria, mincias ou assuntos perifricos. Ao contrrio, um debate sobre Deus e as caractersticas centrais da f crist (p. 17).

    Esse edifcio teolgico-filosfico apresenta um Deus que, por amor, dotou o homem de completa autonomia e se abriu para novas experincias, dentre elas, a de conhecer progressivamente os acontecimentos histricos, medida que eles se processam, colocando em cheque atributos divinos es-senciais, tais como sua soberania, oniscincia, providncia e imutabilidade, dentre outros.1

    1 Para mais informaes sobre o Tesmo Aberto, ver CAMPOS, Heber Carlos de. O Tesmo Aberto: Um ensaio introdutrio, Fides Reformata, IX, n 2 (2004): 29-55.

  • TESMO ABERTO UMA TEOLOGIA ALM DOS LIMITES BBLICOS

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    O livro Tesmo Aberto Uma Teologia alm dos Limites Bblicos chega em tempo oportuno ao nosso pas, onde os pressupostos dessa corrente de pensamento comeam a fazer parte do pensamento de alguns nomes do evan-gelicalismo brasileiro.

    A obra organizada por John Piper, Justin Taylor e Paul K. Helseth composta de uma srie de ensaios que respondem a mais recente literatura dos testas abertos norte-americanos. Sua proposta disponibilizar uma anlise do pensamento desses telogos, bem como de seus argumentos contrrios con-cepo tradicional de Deus, em pelo menos quatro perspectivas, quais sejam: histrica, filosfica, exegtica e teolgica, as quais determinam a estrutura da obra. Para tanto, alm de escrever parte dos ensaios, os organizadores contam com a colaborao de nomes como A. B. Caneday, Chad Owen Brand, Mark R. Talbot, Michael S. Horton, Russel Fuller, Stephen J. Wellum, Wayne Grudem e William C. Davis.

    A primeira parte da obra, composta por dois ensaios, visa analisar, numa perspectiva histrica, a crtica de que a teologia crist tradicional e a teologia judaica teriam sido distorcidas pela sua sntese com pressupostos da filosofia grega clssica, bem como verificar a suposta neutralidade filosfica do tesmo aberto. No primeiro ensaio, Russel Fuller analisa a crtica quanto corrupo da teologia judaica. Utilizando fontes primrias, sobretudo o testemunho dos primeiros rabinos do Talmude e do Midrash, Fuller mostra que, embora existam paralelos teolgicos e exegticos, os mesmos so ocasionais, e que a influncia da filosofia grega na literatura rabnica se limita tica e s leis. A concluso do autor que uma anlise histrica, teolgica e exegtica sria no permite a comprovao da afirmada corrupo.

    Est claro que os cristos devem rejeitar as afirmaes do tesmo aberto: suas afirmaes histricas so mal informadas os rabinos seguem Moiss e Isaas, e no Plato e Aristteles , sua teologia mal orientada os rabinos sustentam que Deus antev at mesmo as aes futuras livres , e sua exegese falha os rabinos interpretam os antropomorfismos de maneira figurada (p. 49).

    O segundo ensaio, escrito por Chad Owen Brand, analisa a crtica quanto sntese entre a ortodoxia crist e a filosofia clssica. Brand tenciona mostrar que h muitos aspectos paralelos entre a teologia tradicional e o pensamento grego; no entanto, o apontamento de paralelos no indica necessariamente dependncia, a no ser que essa seja claramente demonstrada, o que em mui-tos aspectos no possvel nessa relao. Em segundo lugar, ele argumenta que, de fato, houve influncias no somente da filosofia grega clssica, mas tambm da filosofia medieval no pensamento teolgico tradicional. Contudo, essa influncia exercida pela filosofia sobre a teologia se deu mais profunda-mente no mbito instrumental do que de contedo propriamente dito. Como

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    homens de seu tempo, os telogos antigos utilizaram vocabulrio e conceitos prprios de seu tempo para comunicar as verdades crists. Mas, por serem homens da Bblia, eles cuidaram para que as controvrsias fossem resolvidas por ela, de forma que se pode afirmar que no houve influncia substancial da filosofia pag na teologia crist tradicional. Por fim, Brand demonstra que o tesmo aberto, mais que a teologia tradicional, possui paralelos com escolas pags de pensamento. Dentre os nomes ou pensamentos que possuem paralelos com o tesmo aberto esto a escola do processo de Herclito, o tesmo do livre-arbtrio de Socino, o dualismo maniquesta e a desvalorizao do Antigo Testamento comum no marcionismo.

    Depois de analisar a crtica teologia judaica e teologia tradicional, a obra se prope a considerar em dois ensaios respectivamente as pressuposies filosficas do tesmo aberto e as razes da difuso do mesmo no pensamento cristo. O primeiro ensaio possui um aspecto peculiar: escrito por Mark R. Talbot, consiste no testemunho de algum que experimentou o sofrimento na prpria pele, o que tem sido, em muitos os casos, a razo principal da adeso ao tesmo aberto; no entanto, ele encontrou consolo no Ser de Deus conforme revelado nas Escrituras Sagradas. Nesse ensaio, Talbot mostra que o edifcio terico do tesmo aberto tem como fundamento um falso conceito de liber-dade. Ele argumenta que os testas abertos abriram mo do conceito bblico de liberdade, liberdade para, em prol do conceito de autonomia comum na filosofia moderna, liberdade de, fazendo desse conceito a mola propulsora de seu pensamento. Por conseqncia, outros conceitos determinantes para a teologia foram afetados, dentre eles os de amor, comunho e autoridade.

    Consideradas essas distores, pode-se inquirir: por que o tesmo aberto tem se difundido tanto entre a teologia crist? Quais as razes pelas quais o mesmo tem encontrado guarida entre os cristos? O segundo ensaio dessa parte visa responder a tais perguntas.

    William C. Davis, apresenta trs razes da rpida difuso do tesmo aberto nos crculos cristos. A primeira razo tem a ver com suas qualidades. preciso, segundo Davis, admitir que o tesmo aberto possui caractersticas metodolgicas elogiveis, a principal das quais a ateno para com o texto bblico. Segundo seus proponentes, a abertura de Deus concluso de pura exegese. Alm do apego ao texto bblico, a preocupao com a histria da igreja relevante. Um dos propsitos do tesmo aberto, segundo seus proponentes, revisar essa histria e corrigir seu pensamento distorcido durante esses dois mil anos. Destaca-se ainda sua afirmao de exclusividade. O tesmo aberto no apresentado como uma alternativa somente, mas como uma correo da nica verdade. Por fim, os testas abertos revelam uma grande nfase em preocupaes pastorais. Sanders afirmou que o seu sistema surgiu da preo-cupao com o relacionamento do homem com Deus e com a vida de orao. O tesmo aberto uma teologia sistemtica falha, mas bem-sucedida em parte

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    porque liga a teologia ao desejo do cristo de conhecer a Deus de maneira ntima (p. 144). Esses so aspectos que seduzem os cristos.

    A segunda razo da propagao dessas idias acerca de Deus o fato de que as mesmas se coadunam com o ambiente cultural atual, ou seja, suas concluses se encaixam dentro das correntes de pensamento vigentes. Aspectos como a desvalorizao da autoridade, a paixo pela liberdade e o paralelo entre liberdade e autonomia, e a impacincia para com o mistrio so algumas das semelhanas entre o tesmo aberto e o pensamento ps-moderno.

    A terceira razo pela qual o tesmo aberto tem sido visto de maneira sim-ptica em alguns crculos cristos, e tende a se propagar, que o mesmo apre-senta um Deus para este tempo. O Deus que se abre se encaixa nas expectativas contemporneas quanto autoridade, liberdade, mistrio e comunidade.

    Motivados pelo zelo de resgatar o Deus da Bblia das distores gregas, o que eles produziram foi um Deus de distores norte-americanas. No lugar de um tirano esttico, erigiram o derradeiro pai norte-americano. O Deus do tesmo aberto est tranqilamente livre do mistrio e alegremente zeloso em confirmar nossa autonomia (p. 166).

    A terceira parte da obra, por sua vez, trata da relao do tesmo aberto com a Escritura Sagrada em termos metodolgicos. Quanto a esse aspecto, A. B. Caneday, autor do primeiro ensaio, aponta elogiosamente para o fato de que os testas abertos valorizam a linguagem antropomrfica usada pela Escritura Sagrada para transmitir conceitos acerca de Deus e seu relacionamento com o ser humano. No entanto, critica de maneira veemente o fato de que esses antropomorfismos no so interpretados por eles como linguagem analgica, mas literal. O conflito, disseminado dentro da Igreja pelo tesmo aberto, no se deveramos conceber Deus com imagens verbais, mas como devemos entender a natureza e a funo das imagens bblicas (p. 240). Quando se perde de vista o aspecto analgico da revelao divina acontece uma inver-so epistmica. Ou seja, ao invs de olhar para si tendo Deus como ponto de referncia, o homem faz de si mesmo o ponto de referncia para atribuies a Deus, tornando-o consequentemente anlogo a si mesmo. Assim se originam os dolos conforme a imagem e semelhana humanas.

    Na quarta parte a obra se prope a analisar as implicaes teolgicas da abertura de Deus. Considerando o cerne da proposta do tesmo aberto, a refor-mulao da doutrina de Deus, mais especificamente sua soberania e oniscincia, e a reformulao da doutrina da liberdade humana como liberdade autnoma, Stephen J. Wellum e Paul Kjos Helseth chamam a ateno para as drsticas conseqncias teolgicas acarretadas por essa corrente.

    Esses autores mostram primeiramente que a proposta do tesmo aberto enfraquece a base sobre a qual, segundo seus proponentes, sua posio est

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    fundamentada: a Escritura Sagrada e, mais especificamente, a doutrina funda-mental da sua inspirao e inerrncia. A crena na liberdade libertria permite uma afirmao lgica da inerrncia, mas no oferece garantia alguma de que os autores humanos escreveram exatamente aquilo que Deus quis que escre-vessem. A no-oniscincia de Deus, por sua vez, compromete as profecias preditivas da Bblia.

    Em segundo lugar, a proposta do tesmo aberto ataca a soteriologia. A negao do conhecimento amplo e definitivo de Deus compromete a doutrina da eleio, tanto na perspectiva calvinista quanto arminiana. Se os indivduos e suas aes no podem ser conhecidos por Deus antes que existam, Deus no pode t-los eleito, seja essa eleio baseada nas obras ou no. O mesmo se aplica obra vicria de Cristo na cruz do Calvrio. Se os indivduos no so conhecidos por ele antes de existirem, a quem Cristo substituiu?

    Em terceiro lugar, a reformulao teolgica dos testas abertos quanto soberania de Deus e a responsabilidade humana abala a expectativa do cum-primento de qualquer esperana escatolgica. Se Deus est sujeito a mudanas inesperadas, nada pode garantir que ele cumprir o que prometeu.

    A certeza e a especificidade do plano de Deus, na eternidade passada, para sal-var os pecadores; os atos salvficos de justificao e expiao sacrificial pelo pecado na vida do Israel do AT; a natureza certa da prpria morte substitutiva e da ressurreio de Cristo, nosso Salvador; e a confiante e expectante esperana para esta vida e para a eternidade tudo isso exige uma enorme reformulao diante dos comprometimentos centrais do tesmo aberto (p. 415).

    Dois ensaios conclusivos escritos por Wayne Grudem e John Piper, res-pectivamente, encerram a obra. No primeiro Grudem chama a ateno para a necessidade da redefinio de fronteiras doutrinrias em tempos de controvr-sia. Segundo ele, sempre que um falso ensino tenha se tornado um problema significativo e antes que cause grandes danos, ganhando muitos adeptos den-tro da organizao, eles exigem das organizaes religiosas a clarificao de aspectos doutrinrios que, embora anteriormente cridos, no estavam claros por questo de necessidade momentnea. Isso deve ser feito basicamente por duas razes. Primeiramente porque as fronteiras doutrinrias funcionam como muros que protegem a igreja de falsos ensinos normalmente atrativos. E, em segundo lugar, porque o estabelecimento de fronteiras nos livra de gastar tem-po posteriormente em controvrsias, em vez de realizar atividades em prol do crescimento do reino de Cristo.

    Piper conclui a obra com um ensaio sobre a gravidade da controvrsia atual. Ele apresenta diversas conseqncias prticas danosas do tesmo aberto e reafirma o fato de que a batalha em questo no uma batalha intramuros, mas uma luta contra distores de um dos aspectos mais centrais da f crist, sua concepo acerca Deus. Ele afirma:

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    Como pastor que deseja fundamentar a vida e o ministrio na Bblia e que quer exaltar Cristo e ser eternamente til ao meu povo, vejo o tesmo aberto como teologicamente nocivo, desonroso a Deus, depreciativo a Cristo e pastoralmente pernicioso (p. 470).

    O livro em apreo uma crtica bastante contundente da viso de um novo deus que parece ingressar na teologia de alguns pensadores do evangelicalismo brasileiro. Portanto, faz-se necessrio refletir sobre as consideraes bsicas le-vantadas pelos autores dessa obra, dentre as quais possvel ressaltar algumas.

    Primeiramente, evidencia-se o fato de que a crtica de que a teologia tradi-cional foi contaminada pela sntese com pressupostos da filosofia clssica no original. Essa a mesma crtica da tradio liberal revisionista do sculo 19. Quanto crtica em si, deve-se pontuar que o uso metodolgico de conceitos filosficos dentro de critrios bem definidos no leva necessariamente a distor-es no contedo, a no ser que o uso do mtodo extrapole certos limites. Cal-vino mesmo, no Livro I das Institutas, sobre a doutrina da trindade, reconheceu que o ideal seria que os termos filosficos usados para designar essa doutrina fossem sepultados, mas visto que a mesma requeria uma definio precisa que impedisse o erro e, ao mesmo tempo, facultasse certa medida de entendimento daquele santo mistrio, ele reconheceu a utilidade dos mesmos.2

    Percebe-se tambm que o tesmo aberto fruto de uma metodologia exegtica comprometida. No que diz respeito ao mtodo exegtico, os testas abertos cometem o erro oposto ao erro da teologia natural: eles hipostatizaram os antropomorfismos e antropopatismos deixando de consider-los como analogiae scripturae.

    Por fim, a obra se apresenta como um auxlio no desnudamento da suposta neutralidade filosfica do tesmo aberto, apontando os pressupostos sobre os quais o mesmo est erigido. Embora seja bem-vinda toda e qualquer iniciativa que vise uma apresentao do contedo bblico da forma mais isenta possvel, relevante constatar que, na esperana de purificar a teologia dos resqucios metafsicos da filosofia clssica, os testas abertos aderiram a outros pres-supostos mais aceitos num contexto ps-moderno, tais como a equivalncia do conceito de liberdade de autonomia, o que, ao que tudo indica, foi feito de forma inconsciente. Alm disso, a obra aponta para o perigo de se cair no extremo do modismo crtico prprio da ps-modernidade, que, por definio, tem seu ponto de partida na crena na neutralidade da razo.

    Essa obra organizada por Piper, Taylor e Helseth certamente haver de fortalecer as convices daqueles que, como eu, crem na concepo histrica do Deus da Bblia. Conforme declara a Confisso de F de Westminster:

    2 Ver CALVINO, Juan. Institucin de la religin cristiana. Espaa: FELIRE, 1999. Vol. I.I.13.3, 4, 5.

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    H um s Deus vivo e verdadeiro, o qual infinito em seu ser e perfeies. Ele um esprito purssimo, invisvel, sem corpo, membros ou paixes; imutvel, imenso, eterno, incompreensvel, - onipotente, onisciente, santssimo, comple-tamente livre e absoluto, fazendo tudo para a sua prpria glria e segundo o conselho da sua prpria vontade, que reta e imutvel. cheio de amor, gra-cioso, misericordioso, longnimo, muito bondoso e verdadeiro remunerador dos que o buscam e, contudo, justssimo e terrvel em seus juzos, pois odeia todo o pecado; de modo algum ter por inocente o culpado. Deus tem em si mesmo, e de si mesmo, toda a vida, glria, bondade e bem-aventurana. Ele todo suficiente em si e para si, pois no precisa das criaturas que trouxe existncia, no deriva delas glria alguma, mas somente manifesta a sua glria nelas, por elas, para elas e sobre elas. Ele a nica origem de todo o ser; dele, por ele e para ele so todas as coisas e sobre elas tem ele soberano domnio para fazer com elas, para elas e sobre elas tudo quanto quiser. Todas as coisas esto patentes e manifestas diante dele; o seu saber infinito, infalvel e independente da criatura, de sorte que para ele nada contingente ou incerto. Ele santssimo em todos os seus conselhos, em todas as suas obras e em todos os seus preceitos. Da parte dos anjos e dos homens e de qualquer outra criatura lhe so devidos todo o culto, todo o servio e obedincia, que ele h por bem requerer deles.3

    3 Confisso de F de Westminster II. 1, 2.