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Resgate da vida
Júlia completou um ano em julho deste ano. Três meses antes, emabril, chegou com a família à comunidade de Nossa Senhora Aparecida,em Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ogrupo, formado pela mãe, Andréa da Silva Santana, de 30 anos, e os trêsirmãos mais velhos, Fátima, de 11 anos, João, de 9, e Tiago, de 8, tentavarefazer-se do trauma de ter perdido em apenas uma semana dois deseus integrantes. “Em novembro do ano passado, perdi minha mãe emeu marido, o pai da Júlia, em apenas sete dias”, conta Andréa, que,depois disso, reuniu os filhos e foi morar com o pai.
No primeiro mês, Andréa recebeu duas visitas domiciliares dasvoluntárias da Pastoral da Criança e levou Júlia à pesagem mensal damaior organização não governamental da América Latina, que estápresente no Brasil e em 19 países. Foi orientada a não dar maisrefrigerante para a filha, que ainda não sabe andar, e a brincar comoa menina. Por meio dos jogos, Andréa aprendeu que pode contribuirde forma significativa para o desenvolvimento da filha e até mesmoajudá-la a superar a perda do pai.
Júlia já arrisca os primeiros passos e as primeiras palavras: diz“Ti-a-go”, silabando o nome de um dos irmãos, e “pa-pai”, dirigindo-seao avô. A menina chupa com voracidade o dedo do pé e engatinhapela casa. É estimulada a brincar muito. Junta-se ao primo MarcosPaulo, de 2 anos, e à cadela Tieta, uma simpática vira-lata, e sai fazendoestripulias pela casa.
Desde 2002, a Pastoral, que conta há 24 anos com o apoio doCriança Esperança, incluiu uma atividade chamada “Brinquedos eBrincadeiras” no cardápio da pesagem. Uma pessoa da comunidadeensina às mães a importância do elemento lúdico no desenvolvimentodos pequenos e, enquanto as crianças são pesadas, o brinquedistadá exemplos práticos de jogos que podem ser reproduzidos em casa.Das 39 mil comunidades em que a Pastoral está presente em todo opaís, há brinquedistas em 8,5 mil.
Júlia Santana
Pastoral da CriançaNacional
1ano
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Celebração da vida
A pesagem é uma das ações mais importantes na estratégiada Pastoral, organização que contribuiu para reduzir a mor-talidade infantil no Brasil. Os 50 óbitos para cada 1000 criançasnascidas vivas, em 1990, foram reduzidos para 25 para cada 1000,em 2005. É nessa oportunidade que a comunidade se reúne paracompartilhar uma refeição e tratar de questões relativas aodesenvolvimento das crianças.
Enquanto 2,6% das crianças de 0 a 6 anos atendidas pelaPastoral são desnutridas, o percentual atinge 4,1% do total dapopulação brasileira de 5 anos e 5% dos brasileiros de 6 anos.A taxa média da mortalidade infantil nos 3.952 municípios em quea Pastoral está presente é menor do que a média do país: 10,6%.As crianças são atendidas a um custo de menos de U$ 1 por mês.
Foi Míria, a cunhada de Andréa, quem a apresentou à Pastoral.“Minha filha não comia direito, começou a receber leite forte,enriquecido com fubá torrado, farelo de trigo torrado e leite empó, e pegou peso rapidamente”, atesta. É por causa de milhares dehistórias como as do bebê de Míria que a pesagem, na Pastoral,se chama “Celebração da Vida”. Na comunidade de Andréa eMíria, as 150 crianças de 0 a 6 anos são atendidas por 20 volun-tárias, que, em dupla, fazem 15 visitas por mês.
Tradição
Júlia é uma das 1.985.347 crianças atendidas pela Pastoral daCriança no Brasil. Soma-se a outro grupo, de 108.342 gestantes. Todaessa gente é atendida por uma estrutura que tem em sua base228.926 voluntárias, das quais 125.528 são líderes e fazem visitasdomiciliares mensais às famílias, em 39.420 comunidades.
Os voluntários dedicam em média 24 horas por mês ao trabalhode educar as mães, a maioria moradora de bolsões miseráveis, combaixa escolaridade. Seguem uma cartilha baseada em noçõesde higiene, nutrição e prevenção de doenças. Um dos objetivosprincipais é identificar os primeiros sintomas da diarreia eprevenir a desidratação, que pode agravar o estado de saúde decrianças frágeis. Disenterias são frequentes entre crianças quevivem em domicílios sem saneamento básico e com coleta de lixoprecária. No Brasil, apenas 52% das casas estão ligadas à rede deesgoto (PNAD, 2007).
É por meio de um tecido social fortalecido pela ação dasvoluntárias e capilarizado pelo país que a Pastoral se renova. Oobjetivo é o mesmo: ajudar comunidades pobres a organizarem--se, promovendo a qualidade de vida das famílias, assegurando
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a sobrevivência e o desenvolvimento integral das crianças de0 a 6 anos. Há alguns anos, a coordenação da Pastoral chegouà conclusão de que, se não investisse na educação das mães, amortalidade não cairia em algumas cidades. Foi assim, porexemplo, em Buíque, Pernambuco, que ostentava altos índicesde mortalidade. Foram abertas 91 classes de alfabetização. Oscursos foram oferecidos para as mães e os óbitos praticamentezeraram depois de dois anos. Hoje, a pastoral conta com 5.358alunos, a maioria mulheres, em 22 estados.
Missionários Leigos
Há ainda os Missionários Leigos – uma ação tocada pormissionários que implantam a Pastoral da Criança em municípiospobres do Norte e do Nordeste, com baixos Índices de Desenvol-vimento Humano (IDH). Mudam-se para lá durante 11 meses eorganizam a comunidade para que, ao final do período, um líderlocal assuma a função de organizar voluntários locais para tocara rotina bem-sucedida da ONG que colocou o Brasil no rankingdos cinco países com o maior número de voluntários do mundo.
A equação é relativamente simples – se o município não temPastoral da Criança, é porque é muito afastado de qualquer centrourbano. Para vencer esse desafio, a Pastoral conta com o apoio doCriança Esperança, o maior financiador privado da ONG. Em 2010,o show do Criança Esperança apresentou reportagem do jornalistaCaco Barcellos, relatando a implantação da Pastoral em duascomunidades na zona rural de Icó, Ceará – Icozinho e Santa Maria.
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Santa Maria
A comunidade é Santa Maria. A dona de casa Cleide Sarah tem 19 anos etrês filhos pequenos – a menor acabou de nascer. Até as 11h15 min da manhã,seus filhos só tomaram café puro com açúcar. Não comeram nada. Na cozinha,havia um punhado de feijão duro na panela; na dispensa, um saco de arroz eum pouco de açúcar. A missionária Dulcinéia Marcondes olha para a câmera, erestam poucas dúvidas de quanto trabalho a espera. Nas comunidades em quea Pastoral está consolidada, esse tipo de situação raramente acontece: acomunidade aprende a fazer horta, a usar alimentos regionais, e um ajuda ooutro. Aprendem, na prática, o que quer dizer solidariedade.
Dulcinéia decide ir visitar a casa de uma família em que ajudou a mulher ater bebê no mês de julho. Enquanto a menina vinha ao mundo, a mãe, semforças, desmaiou. A missionária ouvira falar em novo desmaio. O motivo: fome.“Tenho 12 anos de Pastoral, a gente acha que se acostuma, mas não seacostuma, não com essa violação dos direitos mais básicos das crianças. Olheesse bebê. Ele está aqui tentando viver”, diz Dulcinéia, enquanto a criança semovimenta em seu colo.
“Com a Pastoral, aprendi coisas simples, como filtrar água, ferver, lavar bemos alimentos, administrar remédio para vermes, vacinar no prazo correto elevar sempre ao médico, mesmo quando as crianças não estão doentes. Éum incentivo e uma ajuda”, diz a dona de casa Patrícia Ramos da Rocha,de 38 anos, mãe de quatro filhos, moradora de Duque de Caxias, no Rio deJaneiro.
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A Pastoral atende 1,9 milhões de crianças e 108 mil gestantes. Há em sua base 229 mil voluntárias que fazem visitasdomiciliares. O objetivo é educar as mães para que aprendam a identificar doenças simples, como diarreia, e saibamprevenir a desidratação, que pode gravar o estado de saúde de crianças frágeis.
Estrela
No dia 12 de janeiro de 2010, a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, foi uma das dezenas demilhares de vítimas do grande terremoto no Haiti. Momentos antes, proferiu discurso para 150 pessoas numaigreja de Porto Príncipe, a capital, onde estava implantando a Pastoral. “Vi diante de mim muitos gestos desabedoria e amor aprendidos com o povo”, disse ela.
A médica falou sobre um dos maiores segredos de sucesso da Pastoral: a simplicidade na sua comunicação.“Era preciso criar um sistema de informações com indicadores de fácil compreensão, inclusive para líderesanalfabetos ou de baixa escolaridade”.
Em dezenas de entrevistas ao longo dos últimos anos, a Dr.ª Zilda, como era conhecida, repetiu que seu desafioera manter “animada” a rede das voluntárias. Esse era o encanto, que, no seu vocabulário também tinhasolidariedade por sinônimo. Isso fazia que mais de 200 mil Marias, Joanas e Sílvias saíssem diariamente de suascasas para dedicar seu tempo a outras tantas Elianas, Amélias e Anitas. “Fé é vida”, dizia.
O Criança Esperança, a TV Globo e a UNESCO dedicam o primeiro capítulo deste livro comemorativo dos25 anos de existência do Programa, à médica que devotou sua energia às crianças de um Brasil esquecido pelageografia oficial. Finalizamos este capítulo da maneira como sempre começam as comunicações entre osintegrantes da vasta comunidade da Pastoral da Criança: com o acolhedor cumprimento de “Paz e Bem”.
Zilda Arns1934 – 2010
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Nas ruas das capitais brasileiras, meninos
e meninas sujos e maltrapilhos perambulam
pelas calçadas. A imagem é quase sempre a
mesma: esquálidos, andam em bandos, chei-
rando cola, correndo da polícia, driblando
aqui e ali tentativas de linchamento por parte
da população, que os vê como ameaça.
Um fato ocorrido dois anos antes, em 1984,
resgatado do arquivo da revista Retrato doBrasil, ilustra a temperatura do país em re-
lação às crianças que viviam nas ruas. No cen-
tro de São Paulo, um procurador de Justiça
conseguira deter um menino que fugia de
uma multidão após furtar um cordão. Pai de
quatro filhos, membro do Ministério Público,
o homem torceu o braço da criança e piso-
teou-a até a morte.
Mesmo assim, 1986 foi também o ano de
avanços. O debate sobre os direitos de crianças
e adolescentes intensificou-se a partir da
redemocratização do país. Em 1986, o Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
primeira organização internacional parceira
da TV Globo no Criança Esperança, lançou
a campanha Criança Constituinte, incenti-
vando os brasileiros a votarem em candidatos
comprometidos com as causas da infância.
Sobrevivência
Crescia um clamor de norte a sul do país,
chamando a atenção para os direitos das
crianças e adolescentes que viviam nas ruas,
o símbolo maior da exclusão da infância bra-
1986
Crianças que vivem nas ruas são
“pivetes” e “trombadinhas”;
a lei vigente é o Código de Menores
TV Globo e UNICEF lançam a Campanha Criança Esperança e
colocam no ar um programa com nove horas de duração com
texto sobre a Declaração Universal dos Direitos da Criança
sileira. De Belém do Pará veio uma convoca-
ção nacional: uma carta chamou os jovens
em situação de risco em todo o país para se
conhecerem, debaterem seus problemas,
buscarem soluções. Foi o ponto de partida
para a realização do I Encontro Nacional de
Meninos e Meninas de Rua, em Brasília, ini-
ciativa inédita no mundo, que contou com a
presença de quase quinhentas crianças e ado-
lescentes. A união de que sempre precisaram
para sobreviver em cada esquina ganhou a
força de uma onda em todo o país.
Nesse período, TV Globo centrou-se em
campanhas focadas no desenvolvimento
infantil e na sobrevivência das crianças.
A taxa de mortalidade infantil estava em
aproximadamente 50 para cada mil crianças
nascidas vivas, o dobro de hoje, em 2010.
Zé Gotinha
O Ministério da Saúde criou, então, o Zé Go-
tinha, personagem-símbolo da campanha de
vacinação contra a poliomielite. Onipre-sente
na mídia e bem recebido pela população, o bo-
nequinho ajudou a sedimentar a noção de que
o cumprimento dos direitos das crianças de-
mandava responsabilidade de todos.
A longa caminhada em busca dos direitos
de crianças e adolescentes brasileiros teve al-
gumas de suas marcas iniciais definidas em
1986. Foi neste ano, por exemplo, que a TV
Globo colocou todo seu potencial de mobili-
zação em prol da causa da infância.
O programa “Os Trapalhões” comemorou
20 anos, lançando a campanha Criança Es-
perança. Didi (Renato Aragão) levou ao ar um
programa com nove horas de duração, tendo
como tema a Declaração Universal dos Di-
reitos da Criança (Universal Declaration of theRights of the Child). Adotado pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1959 e ratificado
pelo Brasil, o tratado definiu as bases para a
proteção e a integridade dos direitos de me-
ninos e meninas de todo o mundo.
Utopia
“Toda criança tem direito à educação gra-
tuita e ao lazer infantil” – prega o texto em
seu artigo 6º, um dos tantos que foram decla-
mados por artistas famosos, escalados para
participar do programa –, isso no contexto de
um país em que o Estatuto da Criança e do
Adolescente ainda era utopia e em que viver
nas ruas era sinônimo de ser “pivete” e
“trombadinha”.
Três anos mais tarde, em 1989, a Decla-
ração Universal dos Direitos da Criança foi
aprovada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas como uma Convenção. Em outras
palavras, passou a ser um documento que,
além de proteger a infância, impôs sanções
aos países-membros da ONU que descum-
prirem suas determinações. (Ver UNICEF.
Convention on the Rights of the Child. Dis-
ponível em: <http://www.unicef.org/crc/
index_30197.html>).
CO
NTEXTO
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“Em minha casa, desde muito pequeno, via meus pais incomodados com a desigualdade a que muitosbrasileiros estavam expostos. Aprendi que mesmo pouco, cada um de nós pode fazer alguma coisa. Em1991, ao receber o convite do UNICEF para ser o Embaixador Especial das Crianças Brasileiras, meu coraçãotremeu. Senti o peso da responsabilidade. Mas lembrei-me do quanto sou devedor às crianças e de quantoas amo. A mobilização do povo, a cada programa Criança Esperança, me surpreendia e me enchia doorgulho de ser brasileiro. Tenho certeza de que essa mobilização contribuiu para que os direitos dascrianças e adolescentes passassem a ser assunto de alta relevância em nosso país. É muito bom olharpara trás e ver o que o esforço de cada brasileiro já conseguiu, ver quantas vidas já foram salvas, às vezescom ações tão pequenas aos nossos olhos. É muito bom olhar para o futuro e acreditar que nosso esforçovai fazer a diferença, que juntos estamos construindo um país mais justo para nossos filhos.”
Foto
div
ulga
ção:
Lilia
n Ar
agão
Renato AragãoEmbaixador do UNICEF eEmbaixador do Criança Esperança
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