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48 Estilos da Clínica, 2009, Vol. XIV, n° 27, 48-81 RESUMO Apresentamos os resultados de uma pesquisa no domínio de uma clínica do social, desenvol- vida na França – Copsy-enfant, 2005 – sobre a construção iden- titária adolescente relativa às referências de gênero e interge- neracionais. Foram realizadas observações em sala de aula, bem como organizados sete “grupos de palavra” em dois colégios de bairros da periferia. Avaliamos os efeitos do discurso social so- bre essa construção adolescente. A indagação clínica foi possibi- litada pela acolhida da palavra adolescente nestes dispositivos grupais que, em sua função de elaboração, permitiu que esses jovens pudessem se confrontar com o seu próprio dizer. Descritores: clínica; grupos de palavra; sujeito adolescente; identidade sexual; discurso so- cial. Dossiê COMO OS ADOLESCENTES DAS PERIFERIAS (SE)FALAM? JOGOS NA FORMA DE SE ENDEREÇAR AOS PESQUISADORES. 1 Laurence Gavarini Um discurso social sobre os “jovens das periferias” á bem pouco tempo, produziu-se na so- ciedade francesa, um discurso pouco reluzente so- bre a juventude das periferias urbanas, fazendo com que esses “jovens da periferia” se transformassem num sintagma fortemente negativo. À esta parte da população francesa, se atribuiu todos os perigos, toda culpa pela violência dos bairros populares, todos os pequenos e grandes delitos. Hoje, eles são, também, sinônimo de “confusão” e de conflitos com a justi- ça. Essa imagem se enraizou nos espíritos, a partir de alguns episódios de guerrilhas urbanas e confron- H Tradução: Viviani S. C. Catroli Psicanalista, professora titular da Université Vincennes-Daint-Dennis (Paris VIII), França.

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RESUMO

Apresentamos os resultados deuma pesquisa no domínio deuma clínica do social, desenvol-vida na França – Copsy-enfant,2005 – sobre a construção iden-titária adolescente relativa àsreferências de gênero e interge-neracionais. Foram realizadasobservações em sala de aula, bemcomo organizados sete “gruposde palavra” em dois colégios debairros da periferia. Avaliamosos efeitos do discurso social so-bre essa construção adolescente.A indagação clínica foi possibi-litada pela acolhida da palavraadolescente nestes dispositivosgrupais que, em sua função deelaboração, permitiu que essesjovens pudessem se confrontarcom o seu próprio dizer.Descritores: clínica; gruposde palavra; sujeito adolescente;identidade sexual; discurso so-cial.

Dossiê

COMO OSADOLESCENTES DAS

PERIFERIAS (SE)FALAM?JOGOS NA FORMA DE

SE ENDEREÇAR AOSPESQUISADORES.1

Laurence Gavarini

Um discurso social sobre os “jovensdas periferias”

á bem pouco tempo, produziu-se na so-ciedade francesa, um discurso pouco reluzente so-bre a juventude das periferias urbanas, fazendo comque esses “jovens da periferia” se transformassemnum sintagma fortemente negativo. À esta parte dapopulação francesa, se atribuiu todos os perigos, todaculpa pela violência dos bairros populares, todos ospequenos e grandes delitos. Hoje, eles são, também,sinônimo de “confusão” e de conflitos com a justi-ça. Essa imagem se enraizou nos espíritos, a partirde alguns episódios de guerrilhas urbanas e confron-

H

Tradução: Viviani S. C. Catroli

Psicanalista, professora titular da Université

Vincennes-Daint-Dennis (Paris VIII), França.

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tos entre grupos de jovens encapuzados e policiais, que foram for-temente midiatizados. Este imaginário social sobre os jovens dasperiferias, foi desconstruído por sociólogos como Mucchielli (2001),que relativizam que a realidade dos fatos da violência organizadadecorra de relações finas e complexas entre um mundo guetizado,poder político e sociedade.

Gostaria de apontar, a partir de uma experiência de pesquisa2,uma representação diferente: menos dramática, mas não relativista,fundada sobre uma clínica social elaborada do encontro com Sujei-tos adolescentes. Estes Sujeitos, nós os observamos em sala de aulae os ouvimos por ocasião da criação de grupos de palavra3 em doisestabelecimentos escolares, um colégio e um liceu4; lugares muitasvezes vividos por esses jovens pela experiência do fracasso e daexclusão. A pesquisa de campo que realizamos com jovens da peri-feria norte de Paris nos distanciou da concatenação desta fórmula“jovens-de-periferia” que é tirada de uma sociologia profana e pre-matura, que ao isolar alguns particularismos, lhes caracterizaria comodiferentes de todo resto da juventude, sem discutir seus traços es-pecíficos. Assim, nos caberá ainda nos distanciar da identificaçãoantiga, feita por Rassial (1998), de um “psicopatologia das perife-rias” e das hipóteses sobre as quais se funda.

Os adolescentes que não são aquilo que delesdizemos

Esses jovens nos pareceram incomparáveis aos estereótipos eirredutíveis às representações que lhes são atribuídas, pelo simplesfato de que suas modalidades de inscrição social e suas relaçõescom seus pares e com os adultos são múltiplas. Além disso, o dispo-sitivo mesmo que realizamos, a partir de nossa pesquisa, os fizeramexistir de outro modo, ganhar consistência e forma singulares, nãoficando aderidos aos estigmas nos quais eles tem tendência a secolarem.

Eles são, em sua maioria, vindos de famílias modestas, em ou-tros tempos, qualificadas como proletárias ou operárias e que, hoje,são nomeadas “populares”; como se a dimensão econômica da classesocial tivesse perdido, através dessa adjetivação mais cultural “po-pulares”, a força de sua discriminação. Por outro lado, esses jovens

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não se apresentam mais, ou poucos ofazem, através desses pertencimentossociais e, logo que eles explicitam suasidentificações, trata-se de reivindicarafiliações comunitárias ou culturais, apartir de enunciados fluidos, comodesenvolverei mais adiante. A maiorparte dessas familias passou por his-tórias de imigração e de exílio, muitasvezes dramáticas em razão das sepa-rações impostas.

Estas histórias são intrincadas,com problemas de precarização e des-qualificação social e econômica, comosão mostradas em diversos trabalhossociológicos5. Nesses estabelecimen-tos escolares, estão concentrados, demaneira massiva, filhos e filhas de paisque carregam estes relatos migrató-rios, que puderam ou não serem di-tos ou transmitidos; pais que são, elestambém, Sujeitos vulneráveis econo-micamente e socialmente. Eles habi-tam os “quartiers 6”, como eles mes-mo dizem e, em sua grande maioria,conhecem apenas esses espaços ur-banos relegados, feitos de entrecru-zamentos de zonas pavillonnaires e Ci-tés. Ao contrário do discurso socialque manifesta uma forte repulsão poresses quartiers, eles dizem, com umcerto orgulho, “amá-los”, pois sãofeitos de habitações agrupadas, ladoa lado, onde não há vias que separemos prédios, e onde quase todos se co-nhecem. Um deles nos dirá mesmoque “em uma cité, não há conflito” Eleatribui uma imagem de mundo está-vel e fechado, onde não restaria dúvi-das, a seu ver, da convivialidade des-

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ses laços, mesmo que eles tenhamuma consciência astuta de que aquiloque eles apreciam é, no entanto, con-siderado pela sociedade, como algo“podre”, em seu jargão.

Um jogo sutil deendereçamentos einterpelações

Essas periferais não são um lu-gar estrangeiro a nós pesquisadoresimplicados em nossa pesquisa. Noentanto, nós nos colocamos um pou-co além do ordinário, dois anos, nocoração desses territórios urbanosonde esses estabelecimentos escola-res parecem ter crescido como apên-dices do habitat popular. Fomos aco-lhidos de “braços abertos” pelasequipes educativas, já que nossa pro-posta de pesquisa sobre a construçãoadolescente ia de encontro às suaspreocupações e interrogações.

Nós pudemos compreender, se-gundo os diferentes dispositivos dapesquisa, as problemáticas dos Sujei-tos adolescentes e constatar que elasse exprimiam, frequentemente, emsituação escolar, sob a forma de ten-sões, de contradições, entre aquilo quefaz parte de sua realidade subjetiva esocial e suas obrigações e funções dealunos. Nossa atenção foi atraída pelojogo, discreto, de observações recí-procas e de interações que nossa pre-sença no colégio e no liceu, colocouem cena. Nós não fomos assimilados

como adultos da equipe educativa. Deacordo com as situações, as percep-ções dos alunos variavam. Para os alu-nos do liceu, éramos os “psis”, oupesquisadores; mas ficamos invisíveis,como que transparentes, para muitosdesses alunos, não concernidos dire-tamente por nossa pesquisa. Estesrestaram indiferentes a nossa presen-ça dentro dos muros da escola. Paraos do colégio, de acordo com o caso,podíamos ser, aos olhos dos “bonsalunos”, pessoas oniscientes, “comoos professores de história”; “Inspe-tores” para os alunos marcados porseu fracasso escolar ; mas podíamosainda, sermos tomados como “pes-soas da universidade que fica ao ladoda estação de metrô”. No geral, nos-sa instituição tinha pouca importân-cia para esses alunos já portadores deum não-futuro escolar!

Eu me lembro de uma frase deum jovem aluno que nos recebiaimpreterivelmente, nos corredores docolégio, com um interrogatório sobrenossas origens: “de onde vocêsvêm?”, e que, um dia, após termos járespondido uma ou duas vezes a estamesma questão, nos lançou umainterpretaçao radical: “Vai, vocês sãoda Inspeção7! Senão, por que vocêsestariam interessados na gente, quesomos menos que nada para todomundo?”. Esta desconfiança, repou-sada sobre uma fantasia ligada a nos-sa presença física em certas aulas queobservávamos, apontava sem dúvidapara a função escópica das observa-ções de classe. Mas, o significante

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“Inspeção”, dizia também qualquer coisa da função de controle e deintrusão desempenhada por esta figura administrativa que é umaautoridade de tutela para os estabelecimentos escolares e pode, nolimite, pedir explicações à familia no caso de grande abstenteísmoescolar. Estes adolescentes desconfiavam que nosso interesse esti-vesse relacionado a um lugar de uma polícia administrativa. “Osmenos que nada para todo mundo” demonstra, assim, que eles im-putavam aos outros uma não consideração, um não-valor, retoman-do, assim, como a análise feita por Goffman (1975), em sua catego-ria de estigma.

Ao lado desta desconfiança, cheia de curiosidade como tam-bém de ambivalência, a atitude dos adolescentes, a nosso ver, sem-pre foi receptiva. Isso contrastou com seus enunciados recorrentesnos grupos de palavra sobre o fato de que não tinham, com os adul-tos, qualquer interlocução, nem alguém a quem confiar no caso deuma necessidade. Eles evocaram, por exemplo, o tema das violên-cias intrafamiliares que eles podiam sofrer de seus pais ao exerceremum hipercontrole sobre as meninas, ou por seus irmãos mais velhos,que tentavam submetê-las a seu jugo. Evocavam também o “deixarfazer” parental, o que eles viviam como uma espécie de abandono;ou as chantagens ambíguas exercidas pelos professores sobre asmeninas ao proporem ajudá-las nas provas em troca de beijos, ou,ainda, os problemas sexuais como uma gravidez indesejada que nãose pode contar a mãe. Sobre esses pontos cruciais, eles dizem estarsozinhos, em todo caso, sem ajuda de uma figura adulta da família eda escola e que, assim, tinham que se virar entre eles. Mas eles fize-ram de nós, nos grupos de palavra, os depositários de todas essasvicissitudes e sofrimentos de suas vidas adolescentes.

Assim, em nossa demarche clínica, fomos sensíveis a esses ende-reçamentos e as suas manifestações de sociabilidade, mesmo quan-do estivemos atentos aos gestos e aos discursos trocados em nossapresença, e que, às vezes, nos foram significados como uma espéciede mostração, algo para além de um endereçamento direto. Comoexemplo, durante uma observação de um curso de educação física,assistimos a uma verdadeira mise en scene, no sentido de Goffman(1973), onde os corpos eram colocados fortemente em jogo diantede nossa presença, mulheres-observadoras de uma classe de alunosmista. Os alunos do colégio procuravam, manifestamente, informa-ções para nos situar enquanto “parceiros” de uma interação, paranos testar e colocar a prova nossos códigos sociais e nossos anseios

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em relação à situação. Enquanto oprofessor tentava lhes explicar a éticado rugby – a fraternidade, igualidadedurante o jogo – antes de irem à qua-dra de esportes, os meninos se colo-cavam em nossa frente e faziam umverdadeiro “negócio” entre eles, fa-lando de dívidas e fazendo menção aaltas quantias em dinheiro. Suas inte-rações faziam alusão a uma outra cenarelacionada a suas vidas de quartier eseu propósito era em tudo alheio aoque o educador tentava lhes transmi-tir sobre a ética no rugby! Nesta mes-ma aula – ainda em andamento –, demaneira um pouco menos barulhen-ta e verbal, as meninas se maquiavamtranquilamente. E o professor seguiafalando… sozinho.

Retrospectivamente, pensei queessas comunicações sobre assuntos dedinheiro, dissonantes com relaçãoàquilo que eram supostos a fazer nainstituição escolar, lembravam o“Mercato”, ou seja, a compra de jo-gadores pelos times esportivos, comose esse business durante uma exposi-ção pedagógica trouxesse uma nega-ção inconsciente ao discurso moralque o professor se esforçava a lhesexplicar sobre o esporte, na tentativade que eles fizessem um bom uso.Não podemos excluir que nosso dis-positivo de observação silenciosapôde gerar nessa situação alguns efei-tos artificiais, mesmo que no planocomportamental os alunos dos colé-gios e liceus parecessem bem confor-mes à imagem dada deles por seusprofessores, ou seja, nossa presença

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não os traformou radicalmente. Oque, no entanto, ela pôde modificarnuma situação como esta, numa clas-se com os alunos mais perturbados,seria algo do registro simbólico: nósintroduzimos o Outro, sustentados pornosso desejo de pesquisadores-clíni-cos, o que produziu manisfestaçõestransferenciais sobre nós mesmos, “es-trangeiros” à suas experiências e uni-versos.

Assim, pudemos ver reverberaresta observação feita na aula de es-porte em um lugar totalmente dife-rente, por esses mesmos meninos, emum grupo de palavra conduzido porum outro colega clínico. Esse episó-dio foi retomado pelos meninos paradizer de seu embaraço em estaremvestidos “diante de Mme. Gavarini,que anotava tudo em seu caderno”,com uniformes de esporte cheios demanchas, cobertos de terra, com osquais outros meninos já haviam sua-do antes deles. A cena descrita no gru-po de palavra não foi, de modo al-gum, aquela que pude observar“objetivamente”. Um ligeiro desloca-mento se introduziu em suas narrati-vas, resultado da atividade fantasmá-tica inconsciente liberada por minhapresença acompanhada por Mme.Ilaria Pirone, uma jovem doutoran-da. Como se nós tivéssemos atualiza-do algo que podia circular entre eles,da ordem de uma homossexualidadelatente revelada pela carga de afetosna qual eles investiam seus uniformesde ginástica e que o professor os for-çava a assumir diante de nós. Todos

esses elementos de mise en scène e detransferência nos pareceram relevan-tes para nosso approche clínico de pes-quisa.

A ética da palavra e aquestão da alteridade

Boa parte de nossa pesquisa8 foia condução dos grupos de palavrajunto a esses adolescentes; realizamosum total de sete grupos. Tratou-se deinstituir um espaço-tempo de palavracoletivo, um espaço bem diferentedos tempos de expressão habituais docolégio e do liceu, durante o qual elespuderam (se) falar fora da presençados adultos da instituição. Fomos,enquanto pesquisadores e clínicos, osportadores de uma certa ética, garan-tindo um cadre, um limite suscetível afavorecer a discussão e de possibili-tar uma palavra protegida da vida ins-titucional ordinária, garantindo assim,a confidencialidade dessas trocas.Desta forma, carregamos o desejo defavorecer uma forma de laço socialentre eles, uma palavra subjetivada daqual eles não fossem ejetados enquan-to Sujeitos, como de costume nosparece acontecer.

Já que os adolescentes se quei-xavam da atitude dos adultos, pais eprofessores, nosso dispositivo visava,então, a sustentar a palavra de cadaum deles, autorizar a emergência deuma fala que fosse endereçada, quenão pudesse ser “desentendida”. Nós

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sustentamos o grupo como pesqui-sadores, a partir de nosso desejo delhes escutar, elaborar aquilo que é desua construção enquanto indivíduossexuados, tema central de nossa pes-quisa, e tudo isso ao tentar lhes aju-dar a tecer os laços de sua história ede seu futuro – outro eixo temáticode nosso trabalho. Os adolescentesficaram bastante interessados por essaoportunidade que lhes foi oferecida:de um laço e de um tempo onde falare de ser entendido. A grande maioriadeles nos pedia para prolongar as ses-sões dos grupos de palavra para alémdas quatro sessões inicialmente pre-vistas.

Um encontro se produziu, e po-deríamos pensá-lo como o queLevinas (1985) propôs como o encon-tro do “olhar do Outro”, pois essesadolescentes e essas adolescentes, aoganharem consistência, realidade, nosmarcaram, pesquisadores e clínicos,com seus dizeres – autênticas enun-ciações – e com sua presença; mas,sem dúvida, também, pela responsa-bilidade manifestada no grupo, o quecontrastou com o traço vitimizadoque lhes é constantemente atribuídopela sociedade e por seus educado-res. A alteridade se manteve no en-contro mesmo, no real, no limite darelação entre “não semelhantes”: se-melhantes não em idade, semelhan-tes não no estatuto, semelhantes nãoem relação ao lugar ocupado no gru-po. No mesmo movimento, eles nosmostraram que nosso interesse, umem direção ao outro, podia ser recí-

proco e que o projeto de conhecimen-to que animava nossa pesquisa pode-ria ir ao encontro das sua problemá-tica e de seus questionamentos. Adiferença entre nossos mundos eraclara, nós não procuramos reduzi-lapor conveniência. Ela não se susten-tava pelo “terreno” “distante”, comopoderiam reconhecer os etnólogosem suas missões, frente aos hábitos ecostumes dos indígenas. Esta diferen-ça, nós a significamos reciprocamen-te, simbolicamente, através de signose de códigos de boa educação e desociabilidade compartilhada. Um sim-ples exemplo: nós mantivemos, todoo tempo, o tratamento mais polido,vouvoyer 9, ao nos dirigir aos jovens,enquanto o usual seria de lhes tutoyer,ou seja, tratá-los de modo menos for-mal. Os adolescentes nos demonstra-ram, eles também, abertamente, osmesmos signos de distinção, sem queisso tenha alterado sua maneira gene-rosa e abundante de nos falar deles,de (se) falar – falar deles mesmos efalar entre eles –, tomando sempre odevido cuidado, em serem precisos aresponderam nossas interrogações.

O que contava, para nós, era oencontro com os adolescentes e, paraisso, tivemos que manter à distância,em nosso pensamento, todos os pre-conceitos que lhes eram conferidos,mesmo pelos educadores mais dis-postos ao entendimento com seusalunos. Estranhos movimentos deaproximações paralelas entre pesqui-sadores e adolescentes: nós estávamossituados, talvez, a seu ver, ao lado de

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um inquietante estranhamento. Elesse intrigavam conosco, assim com nósnos intrigávamos com eles! Assim,diversas vezes, suas questões nos che-gavam a propósito dos laços existen-tes entre os membros de nossa equi-pe composta por universitários e porjovens doutorandos. Nós éramos,aparentemente, diferentes dos adul-tos que eles tinham o hábito de en-contrar, além disso, os laços interge-racionais que se davam a ver no nossogrupo, assim como a transmissão quese operava, lhes eram enigmáticos,desta forma, eles não se cansavamde nos interrogar. Sem dúvida, estaalteridade – as fantasias, bem como,as projeções que esta alteridade po-larizava –, permitiram que se criasseuma relação transferencial em nossadireção.

Entre si face aos outros

Como bons adolescentes, estesalunos, do colégio e do liceu, têmcomo ideia que a sua própria adoles-cência lhes transforma num “outro”.Os sociólogos souberam muito bemdescrever a dimensão tribal do modode consumo dos adolescentes: eles sereconhecem em seu “style”, palavra deuso múltiplo, que pode designar “aturma” na qual reconhecem e são re-conhecidos por nossos pares, mastambém, de forma mais banal, a es-colha estética de combinar roupas emodas. Todos esses atributos, que re-

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metem a diversas práticas, são pro-fundamente sociais na medida em quesão regras comuns e normas compar-tilhadas, e que têm claramente comofunção, incluir e excluir, até mesmo anós pesquisadores, que eles habilmen-te integraram em suas trocas, mas quetambém souberam excluir quandoqueriam praticar uma novalínguacompletamente impenetrável.

Eles se re-apresentam esponta-neamente, ante nós, como um grupotribal que compartilha entre si umalinguagem própria, que alia velocida-de de ritmo à palavra, gírias e a inver-são das sílabas; um grupo que “fala”através de gestos que acompanhamou escandem as interações linguagei-ras. Mas eles muito pouco se endere-çaram a nós segundo essas modali-dades de linguagem intra-grupais. Seuendereçamento se distinguia dessasmodalidades linguageiras destinada àrelação entre eles; com exceção de umou dois jovens que nos capturaramnesse funcionamento, numa transfe-rência bem particular, que consistiana negação da diferença de nossoslugares e de nosso estatuto; por exem-plo, uma menina que usava o tu ao sedirigir a nós, numa espécie de desa-fio; uma outra fez o mesmo, em umaconfusão linguageira evidente quetocava a temporalidade de sua narra-tiva, o endereçamento de seu relato,bem como o gênero das palavras. Osmeninos, enfim, julgados “difíceis”por seus professores, insistiram nes-sa forma particular de falar, e incluí-ram ainda, a essa impossibilidade de

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se comunicar com todo adulto “es-trangeiro” à sua língua, um outro fa-tor: eles falavam todos ao mesmotempo, como se seu discurso indivi-dual devesse ficar inseparável e inau-dito.

Nos grupos de palavra, certosadolescentes nos mostraram que po-diam passar rapidamente da interaçãoa um tipo de anomia linguageira, sa-biamente organizada, e que lhes ser-via manifestamente como defesa ourecuo segundo a circunstância. Àsvezes, o emaranhadado e o acúmulode temas produziam um intensoblábláblá, que dava marcas de umagrande excitação oratória, de nívelsonoro extremamente elevado. Amultiplicação de falas e de proposi-ções não endereçadas nos levou apensar que o caos das palavras e oseu entrechoque tinham como fun-ção principal tornar inaudível cada umdeles, e isso incluía também cada umde nós. Não apenas era impossívellhes acompanhar ou entender numatal interação, mas eles produziam ain-da uma indiferenciação, uma confusãogeneralizada. Ao re-escutar cada ses-são que foi gravada para fins de pes-quisa, e mesmo ao ler as transcrições,sentimos uma espécie de agressão so-nora, magmática, na qual as individua-lidades se fundiam e desapareciam, naqual eles eram Um, todos juntos, in-distintos. Uma cacofania da qualemergem, inevitavelmente, as interpe-lações do adulto “Msieur!”, “Mdame!Mdame!”, parece-me ser uma dasmodalidades das quais eles mais se

servem, principalmpente, os meninos.Este é o nível de confusão sonora quepudemos observar, ao qual estão ex-postos os professores diariamente emsuas aulas.

Era como se eles precisassemnão ser reconhecidos enquanto Sujei-tos singulares, mesmo participandoativamente de nossos trocas (Gavari-ni, 2009). Minha exposição a estasmanifestações linguageiras extrema-mente confusas e barulhentas me fi-zeram pensar que, por um lado, trata-va-se de uma espécie de catarsecoletiva na qual eles conseguiam, fi-nalmente, como no jogo surrealistado cadavre exquis 10, constituir um tipode melodia associativa interminável esobretudo sem pontuação e, por ou-tro lado, uma usurpação deliberada doterritório do outro, uma espécie deintrusão até suas fronteiras vocais, atésuas palavras. Como se se tratasse deentrar em sua área intermediária. Masem outros momentos, ao menos comsujeitos menos juvenis e menos pul-sionais, nós tivemos o sentimento deum tipo de polifonia, onde eles fala-vam e se entendiam, como se procu-rassem a participar juntos de um Todoque fizesse identidade comum.

A alteridade que eles pareciamcultivar – diante da infância da qualeles dizem terem se afastado “já hámuito tempo”, dos adultos, pais, pro-fessores com os quais eles trocam “re-almente pouco” –, se inscreve, preci-samente, até o sentimento comum deser “não compreendido”, “não ouvi-do”, e afinal, “não reconhecido”.

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Uma jovem chega a dizer, disparan-do a aprovação das outras meninas,que os adultos os “detestam”. Nisso,os jovens das periferias que encon-tramos se mostram exatamente idên-ticos aos demais jovens que pudemosescutar em outros grupos de palavra.No entanto, alguns se singularizamnaquilo que lhes parece ainda resistiraos estragos mais marcantes do libe-ralismo ao qual eles não podem ounão querem assumir às injunções dogozo, notadamente, no que se trataao consumo e a sexualidade.

De modo explícito, eles se colo-cam sob a autoridade do que chamam“tradição”, que não se reduz, contra-riamente ao que veicula o discursosocial, à religião. Evocam, frequente-mente, esta tradição, mas não conse-guem defini-la, mesmo após nossastentativas de retomada do tema. Apalavra “tradição” tem, em todo caso,a função de designar um traço deunião imaginária, que reagrupa diver-sos elementos heterogêneos, fazendoàs vezes de um relato mítico das ori-gens, de identidade. Os antropólogostrataram desta referência necessária àtradição, a uma história (Hobsbawn& Ranger, 2006), a uma cultura “in-ventada” sem cessar, com força deinscrição em uma “comunidade deficção” (Benveniste, 1998). Esses ado-lescentes, quando falam de tradição,se remetem a categorizações referen-tes a uma etnia, ao nacional e ao lo-cal. Um “nós outros” conjugado comuma série de qualificativos de diferen-tes ordens: africanos, maleses,

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senegaleses, algerianos, marroquinos, kabiles, portuguses, guadalu-peanos, o “bled 11”, ou uma Cité qualquer. O que faz “comunidade” eque tem força de lei, em seus relatos, são os objetos culturais com-partilhados, as prescrições, as interdições, as formas de estar nomundo, as regras de aliança que estão intactas, inalteradas, mesmoanos após o tempo e o exílio.

Este posicionamento imaginário e esta relação às origens po-dem ser igualmente colocados no plano daquilo que Douville (2008)nomeia, a “construção mito-histórica que produz o adolescente, afim de se orientar em sua existência”. Esta ideia de Douville se alia,em minha opinião, a uma percepção que eles próprios têm – sem apensar evidentemente nesses termos –, tomando de empréstimo apalavra “mito”, a propósito de um certo tipo de funcionamento queeles reconhecem e interrogam no outro. Gostaria de mostrar algu-mas dessas construções mítico-históricas, a partir de dois casos, oprimeiro de uma menina e o outro de um menino. Eles foram esco-lhidos dentre uma dezena de jovens, pois nos levaram a pensar osefeitos de singularização numa situação de grupo. Eles são, ainda,emblemáticos daquilo que pudemos compreender e ver. Aqui, eume arrisco a considerar que as lógicas de vir a ser, de futuro, dosjovens que vivem nas periferias podem ser decifradas a partir dessashistórias singulares, trazidas nos grupos de palavra, pensadas emsuas ressonâncias aos significantes do discurso social de nossa épo-ca. Estas “histórias”, nós as “tecemos”, pois esses adolescentes en-contrados numa situação social particular (situação escolar e emgrupo), nos quiseram dar a nosso conhecimento.

“Como eles e elas se falam?”É no plural que se conjugam os dizeres dos adolescentes que

eu gostaria de apresentar aqui. Nós os acolhemos neste dispositivode espaço-tempo formalizado que nomeamos: “grupos de palavra”.Foi assim que se tornou possível que uma palavra coletiva fosseconstruída e pudesse circular entre eles, ao mesmo tempo em queabriu à possibilidade de eles (se) dizerem coisas sobre eles mesmos.Os grupos de palavra nos permitiu colocar em jogo uma “negocia-ção”, ou seja, um ajustamento permanente que todos esses jovensdeverão operar nesse espaço social que é a escola, pois cada umdeles deverá se situar em sua fala face aos valores e saberes – estes,muitas vezes antagônicos – da escola, dos pais, de seus pares, acercade questões complexas como a sexualidade, a diferença de sexos e adiferença geracional.

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Destes grupos de palavra, surgea figura de Mlle. O., que nos prendeu– pesquisadores e clínicos – por suapresença determinada nas sessões degrupo de palavra dos quais ela parti-cipou. Durante esses encontros efê-meros – pois Mlle. O. estava constan-temente ausente na escola – ela melevou a pensar como o paradigmadaquilo que pode produzir o discur-so social atual pode se inscrever so-bre um Sujeito. Sua maneira de seapresentar aos outros, ao grupo, aosclínicos que conduziam o grupo, nosevoca uma forma radical da nova eco-nomia psíquica identificada por Mel-man (2005). Ela parece, em todos osseus atos, estar incansavelmente atre-lada a seu próprio gozo. Ela fala des-te gozo, como se não fosse tocada,enquanto Sujeito, por qualquer ope-ração de recalque. Nisto, me pareceque esta jovem é menos representati-va das periferias, do que das subjetivi-dade contemporâneas marcadas pelamesma negação, carregando os estig-mas de um “sem limite integral”, paraprolongar a fórmula de Jean-PierreLebrun (1997). Sua marca pessoalexibe, num contraste, de um lado,uma aparência viril – a entonação desua voz, de sua fala e seu endereça-mento ao outro –, e de outro lado,os signos de uma feminilidade orna-mentada de branco e de ouro12 queela deixa transparecer com uma fra-gilidade pouco disfarçada. Imediata-mente desde o começo do grupo depalavra, ela coloca à prova a pesqui-sadora-clínica, colocando em cheque

a possibilidade mesma de coordenarum grupo de palavra onde ela esti-vesse presente; em todo caso, a exis-tência de um grupo no qual ela nãoseria nada além de uma entre outras.Mlle. O. nos demanda muita energiapara lhe conter durante as sessões emque participa.

Agora, ao escrever, me vêm amente, a fluidez de sua prosódia, mar-cada pelas influências musicais do Rapou do R’n’b (Rhythm and blues/ R&B).Ela compartilha esta modalidade dapalavra com outros jovens da perife-ria norte parisiense, e também uma“flutuação” de palavras e de ritmosque torna difícil distinguir uns dosoutros quando escutamos as grava-ções das sessões dos grupos de pala-vra. Sua cadência é o Rap, seu falar éo Rap, sua tessitura é o Rap, seu ritmoé o Rap. Ao re-escutá-la, entendemosque ela parece se apaziguar nesse fun-do musical que ela mesma produz,sorte de litania rebelde, uma músicapessoal, que tem como efeito, desen-gajá-la da palavra, desinvestí-la. A for-ma tomada por seus enunciados dãomostras de seu pertencimento socialàs periferias populares.

Bem distante desta jovem de 15anos, Cristophe, aluno de um liceu,que nos diz ter 16 anos – mesmo queele nos pareça evidentemente maisvelho –, é capturado por esta possi-bilidade de nomear, como nos dizArendt, a tradição. Ele se distinguedaquilo que os outros chamam “aTradição” e que eu evoquei anterior-mente. Trata-se mais de objetos cul-

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turais próprios a uma comunidade, deuma certa relação do sujeito ao pas-sado e a história, uma relação que dásentido ao futuro e ao presente.Cristophe é um jovem “com gravida-de” em contraste ao Homem sem Qua-lidades descrito por Melman (2005).Ele nos descreve uma fórmula dasexuação à sua maneira, sutil. Paraalém disso, os efeitos de sua fala natroca com os outros jovens do grupoforam remarcáveis. Caminho feito, deum rosto a outro destes jovens, sãotambém outros que começam a apa-recer, tais como Melissa que insisteem colocar em jogo a marca da de-pendência materna e a possível de-vastação do maternal diante da ausên-cia de uma figura masculina.

Mlle. O., uma “crápula”13

na escola, denominada “achefe” por seus colegas

Assim que propus à direção docolégio montar dois grupos de pala-vra com uma turma do 4º. ano, apeli-dada no colégio, os “4-4”, uma tur-ma relegada de um estabelecimentoescolar, ele mesmo, classificado emZona de Educação Prioritária14, eutinha em mente que principalmente osmeninos deste grupo deveriam mere-cer os estigmas que lhes eram legados,como se fossem os duros e potentes“veículos 4X4”. Eles eram, em todocaso, à toda prova, tanto sua resistên-cia quanto sua agitação já haviam fi-

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cado evidentes durante as observações que fizemos nesta turma. Eunão havia percebido Mlle. O., “a grande ausente da turma”, esta quesuas colegas chamavam discretamente entre elas, “a chefe”.

As meninas se mostravam um tanto apáticas, e a grande maio-ria empreendia um tipo de atividade subterrânea e paralela ao gran-de comércio sonoro e gestual dos meninos. Estes faziam reinar umbazar sabiamente orquestrado, de uma lado a outro do espaço daturma e do tempo da aula. Os professores se exauriam para lhesimpor uma ordem relativa e sempre efêmera, a custas de reprimendas,gritos, ameaças, de registros nos livros de correspondência de disci-plina e expulsão das aulas. No entanto, na primeira sessão do grupode palavra com as meninas “4-4”, “A Chefe” estava presente, mealertaram. Nós ficamos diante de um grupo de 6 jovens meninas.Esta assim designada é, por seu tamanho, uma das menores do gru-po, o que não a impede de ser “a líder”; remarcável em seu modo deapropriação do espaço e da palavra: boa de garganta, ela irá nosmostrar com quem estamos lidando, num tipo de desafio/provoca-ção endereçado às coordenadoras, através de um convite especialque faz aos outros alunos, convocando-os ao assentimento pelo riso,e colocando-os a seu serviço.

Ela provoca, constantemente, uma espécie de risada coletiva,pois ousa dizer em voz alta coisas surpreendentes. Ousa também seendereçar ao adulto, lhe transformar em destinatário de seu “gran-de número”, o que hesitamos a qualificar como uma sedução ouum ataque permanente àquilo que faz de nós Sujeitos “faltosos”.Falar dela mesma é, obviamente, um grande gozo para ela. Seuscolegas não creem no que veem. E Mlle. O. sabe lhes satisfazer e ofaz inúmeras vezes. Esta jovem mestiça, de fisico pouco à vontadecom a insolência na qual ela se mete na frente de todos, todo otempo: atenção, a palavra é dela!

A este propósito, me vem uma imagem, da qual fala o antropó-logo Roger Bastide acerca do “encosto pelas divindades” no can-domblé: é um pouco como se ela estivesse possuída por seu gozo,mas também por um narcissismo ao qual não quer renunciar. Elaescande suas falas com enunciados que não sei bem se ela lhes pro-fere como numa vertigem ou como um tipo de lamentação. Ela diz“eu sou independente de meus pais”, “eu sou livre” e, em um certomomento, ela lança essas formulações marcantes: “eu sou livre até amorte”, “eu sou independente de mim mesma”. O que ela convocado Outro, ao falar assim, dela mesma no grupo?

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Mlle. O. pertence a esta nova eco-nomia psíquica, na qual ela é lançadasobre seu gozo. Ela parece nadarecalcar, se é que isto é possível, emtodo caso, em seus dizeres no grupo:uma imediatez e uma liberdade inte-gral é reivindicada. Esta é a mensa-gem que ela quer passar ao grupo. Elanão cessa de se exibir, ela embarcanuma mostração aos outros. Este gozoela impõe de inicio a seus pais, redu-zidos em seu discurso a lhe seremobedientes, exigindo de sua mãe, porexemplo, que ela “lhe dê dinheiro”.Aquilo que ela exprime, induzia emmim, a partir deste enunciado, umafantasia de que sua mãe seja uma“prostituta” e ela, uma “cafetina” quetentaria lhe tirar dinheiro. Ela se im-põe, a si mesma, este gozo, como umimperativo. Ela expõe sua receita aosseus colegas: ela diz tudo a seus pais,ela não lhes esconde nada, logo elesnão podem, segundo ela, ficar descon-fiados – estes são os termos que usa– e eles, então, lhe satisfazem comorecompensa. Gozo da transparênciaaos outros… Em seu discurso, suamãe é sua cúmplice em tudo.

O que nos inquieta, de início,nesta menina é que ela se instala nocentro das trocas grupais, quando elanão as impede de acontecer, com suaambição em obter uma quase exclu-sividade de acesso à palavra. Mlle. O.não se endereça a alguém. Ela está emum não-endereçamento ao outro, oque faz pensar em uma “transferên-cia irresistível”: ela sustenta um dis-curso face aos outros; um discurso

que marca os pequenos outros quesão seus colegas. No entanto, remar-quei que suas jovens colegas, total-mente aderidas aos seus dizeres, rea-giam diferentemente quando ela nãoestava presente no grupo de palavra.Esta é sem dúvida a razão pela qual énomeada “a chefe”. Depois deste lu-gar no discurso, ela exibe seus nãoli-mites, como se fossem fatos glorio-sos, relacionados, essencialmente, aseus pais. As outras meninas ficam li-teralmente fascinadas.

Em relação a saber como se pas-sou o ano escolar que termina paratodas, ela responde prontamente, im-pedindo que as outras se exprimam eimpedindo também a emergência deum eventual enunciado de grupo: “eufico entediada”. Ela dita o tom denossas trocas e ao que pode ser ditosobre a experiência escolar que tive-ram: “na verdade eu passei um anosem fazer nada!”. “Na verdade já faz3 anos que eu fico entendiada nasaulas”, diz ela da altura de seus 15anos. E ela lança essa frase poucobanal: “na verdade, o professor nãofala para mim, ele fala talvez para osoutros. Mas quanto a mim, o que elevai dizer… passa longe…”. Esta jo-vem nos diz que ela espera que o pro-fessor lhe fale, ou ao menos que elefale “para ela”. Isso me faz associarcom o serviço que presta no grupode palavra para desempenhar umaascendência sobre as outras, inclusi-ve sobre as coordenadoras, se possí-vel. No momento em que ela é con-cernida por uma fala, e que ela pode

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ocupar, então, uma posição central em uma interlocução – que setransforma num solilóquio –, ela se interessa. Difícil de nãoreconhecê-la ao lado de uma “toda potência infantil” não desmas-carada, o que nos faz sentir, diante do que seu professor qualificavacomo arrogância, o real desespero desse Sujeito. Mas até o fim esti-ve presa a esta representação, de estar talvez, perdida nas explica-ções de Mlle. O., tal mobilizados ficamos subjetivamente com suaerrância psiquica.

Ao reler a transcrição das sessões do grupo de palavra, o mo-nólogo instaurado por ela é ainda mais evidente, como o fato de elater me levado a sustentar sua palavra se eu não quisesse que o grupo“fracassasse” ou “pegasse fogo” (essas foram minhas próprias pa-lavras enquanto eu falava desse grupo e de Mlle. O. a meus colegas).Ela teve, a despeito de tudo, um papel regulador da palavra, já queesse grupo não conheceu os momentos caóticos que eu poderiaesperar que acontesse. Como se ela, com sua palavra, ordenasse asfalas dos outros e confrontasse às coordenadoras do grupo a suasdefesas subjetivas.

Mlle. O. parece ter achado uma solução ao seu tédio escolar:ela anuncia que fará uma formação (uma espécie de estágio alterna-do: escola e prática profissionalizante) com “um chefe” de pâtisserie.Este projeto a encanta. Pergunto o que mais gosta neste projeto.Ela responde: “bom, tu não tem que fazer sempre a mesma coisa”.Percebo esse seu modo de me responder, fazendo uso do pronometu. Entendo que não me é endereçado especificamente, mas queconstitui seu modo de expressão, uma maneira mostrar a todos asua familiaridade, sua paridade conosco, seus interlocutores. Eu nãotenho muita certeza deste seu não-endereçamento, pois para alémde todos essas falas de desafios, ela sempre deixou transparecer umaconfusa adesão ao outro. Será que ela recusaria a diferença de luga-res e de estatuto que se impõe aqui a seus colegas? Isso nos pareceverdadeiro. Em todo caso, ela tem o caráter de um futuro “chefe”pâtissier, isso não resta dúvida, ela já carrega aos olhos de todosesse significante!

Em seguida, as jovens meninas enumeram as matérias escola-res que as entediam, as classificam quanto à sua utilidade/inutilida-de para o presente e para o futuro, e dizem: “estamos pouco noslichando!”. Para algumas, a matemática, para outras história, paraoutra ainda, todas as matérias, o que acaba por causar um riso gene-ralizado. Mlle. O. vai mais longe ao dizer: “não, mas história é uma

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matéria que eu nem sei mesmo comoeles puderam inventar…”. Sua curio-sidade em relação à invenção da his-tória não dura muito tempo e acabapor se tornar uma lamentação. Elatermina a discussão com uma falabrutal: “e depois, Louis XVI, nós nãoo conheceremos nunca mesmo …não estou nem aí!”. Retrospectiva-mente, me perguntei sobre sua esco-lha da figura deste rei da França: umfigura real decaptada na RevoluçaoFrancesa. Este rei representa, no ima-ginário popular, o contrário de umavirilidade assegurada, bem como umcaráter não muito forte. A sua queda,enquanto último monarca do RegimeAntigo, está aderida à representaçãode um phallus atacado em sua potên-cia, de um rei que vacilou diante dopovo antes de ser destituído do tro-no. Mlle. O., para deixar claro seudescontentamento, insiste mais umavez: “não, mas na verdade, ele estámorto. E a coisa é que ele está mor-to, e que não tem nenhuma impor-tância pra gente.”

À propósito da utilidade da his-tória, uma outra menina emite esteenunciado engraçado, que mostracomo esses adolescentes preveem queseus professores detêm um saber fu-turista de antecipação da história: “aoinvés de nos falar do que vai se pas-sar no futuro, eles nos falam do pas-sado! Como se isso fosse nos ser-vir…”. O passado não faz sentido. Osmortos não fazem avançar os vivos.O utilitarismo teria virado, para essesadolescentes, o sentido daquilo que

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os liga à existência. Em todo caso, aqui, o sentido dado pela escola.Este utilitarismo que eles valorizam – o conhecimento deve servir aalguma coisa – pode ser interpretado sobre o aspecto sociológicodas classes sociais: nos meios populares, de onde vêm essas jovens,o que conta é a relação do saber prático e concreto, enquanto elas seencontram em fracasso escolar pelos saberes científicos. (Gavarini& Pirone, 2009).

O significante da morte tem lugar nas falas de Mlle. O.: mortedo rei, morte dela mesma quando diz que é “livre até a morte”,morte por invalidez de seu pai “meu pai é contra tudo o que eu faço.Mas se minha mãe diz sim, meu pai está morto, ele já não tem nadaa dizer!”. Ela insiste em traçar um triângulo que vai do Rei ao Pai,passando por ela mesma. Ela fala da morte para dizer de sua irrita-ção a propósito das inúmeras viagens da professora de inglês”nósnão temos nada a fazer…nós vamos mesmo morrer na França semnem mesmo ter ido… a Espanha!” Contar sua vida, suas viagenspelo mundo anglofônico, um mundo linguístico novo, de domíniosgeográficos sobre os quais essas jovens meninas estão em deficit derepresentação, lhes é insuportável. Este desgosto trazido pelas via-gens da professora, não é, talvez, estranho a este fato: Mlle. O., filhade um pai da Guadalupe e de uma mãe italiana, nunca saiu da regiãoparisiense. Seu futuro, ela parece não poder imaginá-lo, senão res-trito às estreitas fronteiras da França metropolitana, sem ligação aosentido do relato migratório de seus pais.

Vemos, talvez, o porquê de seu desinteresse agressivo pela his-tória: uma construção de defesa entre suas origens familiares, queela parece desconhecer, e a história nacional oficial e os programasdisciplinares do colégio. A propósito das origens, seus colegas evo-cam o “le bled”, como um lugar de destino das férias familiares, um“algum lugar” mítico no discurso dos pais. Este “algum lugar” pode,às vezes, constituir uma ameaça levantada pelos pais, se por acaso, oadolescente “terminar mal” na França: um retorno ao país de ori-gem pode ser cogitado pela família.

Para além da maneira caricatural que Mlle. O. pretende negartoda a função do ensino de história na escola, fomos surpreendidospelo fato de que esta disciplina e seus professores eram depositáriosde fortes afetos da grande maioria dos alunos. Afetos estes que iamda repulsão à fascinação pela onisciência que eles supunham destadisciplina: a história não tem fim, e aqueles que a ensinam são su-postos a adquirir todo este saber interminável, como também a ad-

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miração dos alunos. Apenas os alu-nos em grande dificuldade escolar(como Mlle. O. e alguns de seus cole-gas próximos), e talvez também al-guns alunos que têm de brigar comsua própria história familiar, com seussilêncios e não-ditos.

A única professora que é admi-rado por Mlle. O. e seus colegas é ade italiano, língua esta que sua mãenão lhe transmitiu, ou que ela, Mlle.O., não se deixou transmitir. Mas oque lhes interessa tanto nesta profes-sora de italiano? Nos diz uma meni-na do grupo, “Ela é alegre”. Por ou-tro lado, a professora de inglês écaracterizada com termos bem duros:“por que ela ousa abrir a boca?” di-zem eles, e Mlle. O. dá seu toque pes-soal: “é uma covarde!”. Esta desqua-lificação é, explicada por eles, pelofato que de ela não lhes trazia nadados países que visitava e dos quais elafalava sem parar em suas aulas. So-bretudo, ela não lhes presenteava coma comida local, e isto todos os outrosprofessores de língua faziam. Ela osnutria apenas com seus relatos de via-gens, ou melhor, com um imagináriodistante e sem sabor. Dito de outromodo, ela não era uma boa mãe quelhes alimentava: é uma “picareta” quelhes frustra a oralidade.

Todos essa insatisfação justifica,aos olhos de Mlle. O., seu desinteres-se escolar. Ela nos resume seu per-curso escolar: “… desde o maternal,eu fiz todos os tipos de besteiras emtodos os estabelecimentos escolares”.Ela considera que faz parte do rol dos

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“piores”. Para nos convencer, elamasculiniza significativamente suasações: foi expulsa de seu outro colé-gio, depois colocada na turma dos“bagunceiros” da escola; ela troca aspalavras da língua, comete erros, umde seus colegas a corrige, incomoda-do com seus erros de linguagem – aoque ela responde para terminar comtoda objeção a sua fala: “Deixe-me empaz! Eu falo o meu francês, não oseu”. Vemos então Mlle. O. fazendosua própria lei de uso dos gêneros:seu posicionamento de rebelde trazo feminino e lhe dá todos os direitossobre a língua.

Podemos nos apoiar sobre seucaso particular e tentar compreenderem que as leis da língua são subverti-das pelos efeitos do discurso atual.Aqui se situa toda o problema da re-lação entre um Sujeito singular por-tador de sintomas e aquilo que é dolaço social contemporâneo. E em setratando da questão da língua, umapista merece ser explorada: Mlle.O.compartilha com outros jovens de suageração, nascidos de configuraçães biou tri linguísticas, uma relação pro-blemática com a língua francesa e, deforma mais geral, com relação a lín-gua enquanto estrutura. A questão datransmissão familiar parece aqui de-sempenhar um papel central, mesmoque não possamos inferir uma causa-lidade única nos problemas da línguaque apresenta um Sujeito como essajovem menina. Pois sabemos que asconfiguraçães familiares multilinguís-ticas podem, ao contrário, ser de enor-

me valia a alguns indivíduos que semostram extremamente à vontade naaprendizagem linguística escolar. Oque se esgarça neste choque culturale linguageiro vivido pela geração des-ses pais e, mais ainda, de seus ascen-dentes, que faz com que suas crianças“gaguejem” na língua, escamoteiem,e faz com que tenham enorme difi-culdade de construir um récit?15

A fim de permitir ao grupo rea-gir diante do relato implacável de Mlle.O.,”eu falo o meu francês, e não oseu!”, eu tento produzir uma brechaque lhe permita dizer algo mais. Eulhe digo: “não deve ser muito fácildizer tudo isso… Você entrou em umcomportamento e depois não conse-gue mais sair dele”. Ela vacila apenasum curto instante. E ela se reconstróie diz que seu comportamento “final-mente” lhe “agrada bastante”. E suaúnica concessão a dica que eu lhe deiconsistiu em reconhecer que ela sabebem o que faz: “algumas coisas demaluco nesses 3 anos” em seu colé-gio anterior. Mas essa é ainda sua for-ma de se vangloriar.

Através de sua epopeia, ela seconstitui, aos olhos de seus colegasde classe, como uma figura relativa-mente heróica que resiste à lei esco-lar. Se sua atitude é tolerada por seuspais, é porque ela não lhes deixa es-colha. Enquanto que os outros pare-cem duvidar da cólera de seus pais,dos golpes do pai ou do irmão maisvelho, e às vezes mesmo do irmãomais novo, seu absenteísmo é marca-do pelo colégio. Mlle. O. se dobra face

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a constatação realista da carência deseus pais: “deve se dizer a verdade,eu tenho pais que sempre cederam atudo, principalmente minha mãe, e aí,deu no que deu … eles não podemrealmente dizer mais nada, agora étarde demais!”. Eu noto a formadenegativa de seu enunciado, que po-demos interpretar como um chama-do ao avesso. Ela não pode realmen-te evocar, como toda criança, asinterdições e os limites contra os quaislhe seriam impostos, logo, ela nos dizque seus pais nunca lhe “colocaram apressão”. De toda forma, ela descre-ve cinicamente o assentimento de suamãe: “quando ela veio me buscar, poiseu tinha sido expulsa três vezes emquatro dias… durante três minutos eladisse “bom, isso não é nada bom,você não vai recomeçar, né?”, “e doisminutos depois, nós já estávamosindo comprar coisas para mim”. Seuspais são presentes, mas pouco seve-ros e isto não a desagrada. A queixanão é seu modo de expressão, nemuma lógica que lhe cabe.

Essa jovem possui, no grupo,uma espécie de alter ego. Uma jovemmenina de origem portuguesa, que eunomeei, entre pesquisadores, sua “as-sistente” em razão de sua estimulaçãopermanente à provocação e ao actingout. Ela, também ausente e em fracas-so escolar, se delicia num jogo de es-pelho com Mlle O. Esta a reconhececomo uma semelhante ao nos decla-rar, de modo jubilatório, que elas sãoduas delinquentes, – o que despertao riso de todo o grupo. As mães de

ambas são também amigas, e elas lhescontam tudo de suas vidas. No en-tanto, o pai severo desta segundamenina a amedronta com seus gol-pes e ameaças. Ela pensa que ele écontra tudo o que ela faz. Em suacabeça, sua mãe é obrigada a lhe serconivente para esconder do pai umcerto número de atos que ela cometee que iria expô-la a sua raiva. Segun-do ela, sua mãe tem medo que o paiexerça seu estilo de autoridade sobrea filha. Ela nos diz que, se não hou-vesse o risco de seu pai ser advertidoe que a locação familiar16 lhe fosse su-primida, ela não iria mais as aulas.

Numa via contrária, a mãe deMlle. O., na representação da filha,dominaria o pai, com o que ela pare-ce não ficar descontente. Ela vibra aodizer que seu pai tem “um porta moe-das pequeno, bem pequeno”. Assim,nós não podemos deixar de pensarque ela faz referência, aqui, à potên-cia fálica de seu pai, que ela lhe tomade empréstimo, reduzindo a algo bempequeno. Sua mãe tem 54 anos e 5filhos. Mas, ela nos diz, “a coisa é queela tem 54 anos, mas se veste comoeu”. A palavra “coisa”, da qual ela fazuso abundante, enquanto gíria na lín-gua francesa, “truc”, me remete ao seusentido italiano: o “trucco” em italianosignifica maquiagem, mas também otruque que faz o mágico. A mãe deMlle.O. maquia, disfarça, apaga a di-ferença das gerações: “ela esquece aidade que tem”, diz a filha. Como elanão sustenta um discurso de adulto,sua filha entra em pane. Ela continua:

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“Por exemplo, se hoje eu vou fazeralguma coisa (truc) bizarra, eu sei queeu posso entrar em casa tranquila-mente! Meus pais irão me encher osaco por três segundos… depois tudovai voltar ao normal e de noite eu vousair para ir à festa! Mlle. O. sabe serbem esperta com seus pais.

Eu tentei de novo dar-lhe umadeixa ao lhe dizer que entendia queela se arrependia dessa relação comos pais. Ela me lança uma respostaradical, remetendo minha interpreta-ção ao seu devido lugar: “não! por-que mesmo sendo jovem, eu faço oque quero.” Fazer o que quer é o mes-mo que falar seu francês aproximati-vo, e se associa a ideia de poder “sesafar” sempre, quando ela bem qui-ser. Ela nos diz, “não é uma pena aforma como fui criada, pois eu sei quese talvez eles tivessem me batido ouse eles tivessem sido mais rigorososeu seria, talvez, de outro jeito, mastalvez poderia ser mais malvada ain-da”. Nesta anomia parental, Mlle. O.tenta se apegar a seu pai com o qualas trocas são limitadas, mas pelo me-nos ele, ela nos diz, “fala de seu pro-jeto de futuro”, de se tornar patissière.É assim que ela diz que ama seu pai,e também, quando a noite eles se en-contram: ela chegando de suas festas,ele saindo para seu trabalho de ma-nhã cedo.

Há uma forma de autoerotismono seu modo de construir o relato quefaz a seus colegas. Até o último mi-nuto o grupo lhe deu a oportunidadedeste mise en scène, e ela recusara todos

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os meus convites para sair desse seu papel. Pelos traços comporta-mentais e discursivos, esta jovem, que sua professora de francês nosdizia ser “mignonne”, nos faz pensar nos “crapulosas” descritos porStéphanie Rubi (2005). Ela seria uma “chefe” mas um tanto isoladae desertada por seu bando. Se as outras riem de suas provocaçõesverbais, elas lhe mostram, diversas vezes que ela é “maluca” ou“mito17”, pois ela lhes constrange profundamente com seus enun-ciados recorrentes sobre o assujeitamento de seus pais às suas lei. Éprovável que elas tenham achado uma certa graça do espetáculo deMlle. O. nos colocando à prova a todo instante, e que elas tenhamtido interesse daquilo que extraíamos de seus ataques, sem levá-losa mal como a maioria dos adultos que as cercam.

O. carrega uma errância solitária, o que não a impede de ter umnamorado fixo, que passa as noites na casa da família. E foi no dispo-sitivo do grupo de palavra que ela, sem dúvida, tocou os limites deseu poder de sedução e entrou em contato com sua devastação.

Christophe e sua gravidade alegre

Longe, bem longe da jovem O., desta “chefe”, designada assimpor seus colegas, Cristophe se impôs a nós por seu estilo e por suapresença forte no grupo de palavra de uma turma do 2º. ano. Eleme remete a um enunciado: ele é alguém com uma gravidade alegre.Este jovem rapaz de 16 anos é bem afiado sobre as questões quesão as nossas: a sexuação e as marcas da diferença geracional. Eudecidi lhe evocar, pois ele mostrou uma certa determinação, umaenergia para o riso, para descrever os outros alunos do liceu, outrosadolescentes com uma identidade sexuada fluida, figuras típicas dotempo atual. Este jovem nascido em Angola cresceu no Congo. Eleteria visto seus pais serem assassinados em circunstâncias aparente-mente ligadas a guerra e foi pego para criar por um tio que mora naregião parisiense. Ele já tem uma longa história; Cristophe sabeser sério, apresenta uma real gravidade diante de seus amigos dogrupo, que vimos quando ele lhes conduz a grandes momentos derisos irrepreensíveis, sempre quando abordamos questões que lhesatordoam.

Nós os sentimos plenos de existência. Ele tem enunciados for-tes sobre a responsabilidade: “para mim é uma obrigação … ser

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responsável”. E ele continua nisso queparece mais uma aproximação linguís-tica ao dizer “Ser responsável pormim mesmo”. Como se ele devessede qualquer forma desenvolver, porele mesmo, uma função de injunçãode tipo parental. Ele pensa que estaresponsabilidade não é universal nosjovens. Segundo ele, as diferenças denascimento são determinadas em re-lação à responsabilidade: “as criançasnascidas na França, elas são muito li-gadas aos pais; elas esperam que ospais façam isso, façam aquilo. Quan-do nascemos no estrangeiro ou naÁfrica … mesmo quando somos pe-quenos já é diferente.” “Nós já temosum pouco de responsabilidade. àsvezes tem gente que morre de fomeou você mesmo nem tem o que co-mer. Mesmo quando se é pequeno,você já tenta se virar para achar qual-quer coisa pra comer. Isto é uma res-ponsabilidade”. A “fome pela vida”estruturou alguma coisa de importan-te para Cristophe e determinou suarelação com o outro e a vida. Perce-bo também que ele usa o tu para sedirigir a nós, pesquisadores, mas queele lhe coloca logo após ter usado ovous, o que acaba por nos implicar emseu propósito dramático, nos convi-dando à compaixão pela criança queele um dia foi. A argumentação deCristophe é compartilhada porMelissa, jovem menina, cujo os úni-cos elementos de vida que conheço éque sua mãe é de Guadalupe e queseu pai não vive em casa. Ela acom-panha o discurso de Cristophe: “A

França é um país que tem de tudo paraas crianças. Tudo nos é oferecido…então depois cabe a nós escolher… écomo se nos oferecessem um cestocheio e que devemos saber o que pe-gar e o que deixar”. Eu penso que elaevoca, nesta frase, a sociedade de con-sumo com suas ofertas e suas pres-sões que embaraçam o Sujeito ado-lescente. Ela acrescenta: “de fato oque pode dar medo é a autonomia”.

Esta autonomia do adolescentedeve ser aproximado daquilo queMelissa nos disse anteriormente a res-peito de sua tomada de consciênciade sua identidade. Ela descobriu aexistência de um “outro mundo” aostrês anos de idade, com a sua entradana escola maternal. Ela fala disso comouma prova iniciática e simbólica quefaz com que fiquemos “grande”. Estesalto no desconhecido desconcerta:“entre 2 e 3 anos, nos separamos denossas mães pela primeira vez. Nósnão nos sentimos à vontade, não nossentimos seguros”. Diante deste des-conhecido e seus efeitos de revelação,ela rapidamente achou seu quinhão:os amigos, o conhecimento que elajamais teria em casa. O significanteescola – mesmo que associado a es-cola maternal, veio fazer corte paraesta menina, face à figura tutelar desua mãe e, também sem dúvida, como universo dominante feminino desua infância, pois esta jovem vive jáhá alguns anos apenas com sua mãe esuas tias. Ela vive numa família mo-noparental, assim como diversos ou-tros adolescentes do grupo.

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Mesmo que a escola maternalcontinue a ser uma instituição predo-minantemente feminina, a jovem nãoé boba: “na escola maternal só há aprofessora. Mas ela não é sua mãe.Não é alguém que a criança tem ohábito de ver desde que nasceu”. Aescola é boa para esta jovem, assimcomo para seus colegas que atestam,neste sentido, um encontro com a fi-gura de um Outro.

Os meninos, de seu lado, comexceção de Cristophe, insistem sobreo fato de que a identidade e a auto-nomia para eles começaram bem maistarde: “é no colégio que nos forma-mos”, nos diz Denis. O salto no mun-do do não familiar se produziu, se-gundo suas representações atuais, comsua entrada no colégio, aos 11-12 anos.Este “atraso” no crescimento comrelação às meninas vale aos meninosalgumas ironias destas últimas. Até ocolégio, os meninos pertencem aomundo encantado e lúdico da infân-cia. Será então um novo significante– colégio –, o portador de uma for-ma escolar mais estrita e mais exigen-te – que terá esta função de separa-ção deste despreocupado estágioinfantil. Eles parecem não comparti-lhar e mesmo, não entender esta re-presentação de corte com a mãe tra-zido por Melissa e pelas outrasmeninas. Em todo caso, as problemá-ticas do se tornar grande e da separa-ção com a mãe não coincidem emseus espíritos. Compreendemos bemque Cristophe destoa, por sua histó-ria, mas sobretudo por seus dizeres,

fazendo-nos recriar o sentimento deresponsabilidade da infância.

Em diversas ocasiões, os jovensdo grupo de palavra de Cristophe eMelissa mostraram que meninas emeninos não são iguais em sua toma-da de consciência da identidade, ter-mo que deve ser entendido aqui nosentido de sua individuação, particu-larmente no que diz respeito a toma-da de consciência de uma identidadesexuada. “Não iguais”, não tanto narelação ao outro sexo e principalmen-te a sexualidade, à “primeira vez”, nãoiguais mas bem atentos e curiosos dasrepresentações do outro sexo. Elespensam, ao contrário, que existiria umsaber imedianto e evidente sobre ossemelhantes, no seio de seus grupossexuados respectivos. Sobre o temada identidade sexuada e da diferençade sexos, várias sessões do grupo depalavra foram o palco de trocas mo-vimentadas e, às vezes, de discussõespolarizadas entre meninos de um ladoe meninas e de outro.

Até no espaço físico, sistemati-camente o mesmo, eles se colocavamde maneira bem distinta: meninos emeninas, face a face, em torno demesas dispostas em retângulo. Umamodalidade de defesa manifesta dosmeninos era o riso: de início emba-raçado, um rir entre meninos, depoisrisos coletivos que se tornavamdesestabilizadores ao ponto queCristophe caiu de sua cadeira duasvezes, frente a evocação de pessoasde identidade sexuada pouco defini-da. Nesta sessão, a conversa era so-

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bre meninas que faziam trabalhos demeninos (a construção, especifica-mente). Cristophe e Denis dizem queelas poderiam estar nos escritórios ouem casas de família, mas não na cons-trução, que seria “perigoso” para elas.Eles pensam que essas “mulheres nãodevem ter marido”, nos diz Cristophe,pois “os homens gostam das mulhe-res doces ao seu lado”, completaDenis. Em seguida, uma séria de “pa-pos” sobre a oposição doçura e mús-culos, sobre as meninas que seriammasculinas, viris, do “tipo que batemem marido”, nos dizem eles. A gran-de maioria das meninas e meninos dogrupo acham que isso não é lá muitoatraente. Cristophe é o mais virulen-to sobre esse tema e não conseguereprimir uma crise de riso compulsi-va que me evoca uma representaçãode sua própria confusão e sua vergo-nha de que estas questões sejam dis-cutidas, assim, abertamente.

As meninas criam entre elas, umadiscussão sobre os enunciados pro-postos pelos meninos sobre estes gê-neros sexuais confusos, mal definidos.Umas banalizam o fato e sustentamque tudo isso é apenas uma coisa deimagem, de convenção ou de modasconstruídas pela sociedade; outrasdizem de um certo desgosto pelas me-ninas musculosas, pois os músculostirariam toda a sensualidade de umamulher. Uma menina que se apresen-ta com uma aparência de menino,mais andrógina do que musculosa,manteria essa idéia da diferença desexos balizada pela aparência: “se ela

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é musculosa, se ela parece mais com um “cara”. Não dá certo. É ummenino num corpo de menina”. Num primeiro momento, eu acheiestranho o contraste que esta adolescente, originária do Senegal, nosdava a ver e a entender simultaneamente com sua frase: “É um meni-no num corpo de menina”. Pois eu me perguntei se em sua lógica, elanão seria mais “uma menina num corpo de um menino”? Então,para parafraseá-la, eu poderia dizer: “Não, isto não dá certo”.

Se opera claramente nesse grupo, um tipo de condensação en-tre meninas viris e homossexualidade, o que parece se conjurar ape-nas no âmbito masculino com suas fantasias. Como se essas jovens,meninas masculinas, impusessem uma negação radical da diferençade sexos, lhes fazendo pensar numa impossível heterossexualidade.

Os meninos não conseguiram reprimir suas confusães diantedestas representações confusas da sexuação, inconscientementeangustiantes. Vale dizer que a figura das meninas masculinizadas éconstante nesta periferia onde elas recebem o nome de “bons ho-mens” em razão de sua forma de se vestir e sua aparência . Ele nosdiz, Denis: “tem que haver diferença !”, como um grito que faz cortena conversação, como uma escansão que produz interpretação.

Por outro lado, causa o mesmo incômodo a menção dos meni-nos que seriam afeminados, que se ocupariam muito de seu físico,ostentando os atributos do outro sexo. Mas a intensidade dos risose a paixão das discussões são menores do que logo que são justa-postos masculinidade e mulher, assim que eles escutam o masculinona mulher: neste caso, a mistura é explosiva. O uso do string peloshomens, mesmo se Cristophe que aí “vamos longe demais”, parecepara a grande maioria deles, um novo acessório da moda, com cer-teza um pouco “afetado”, mas não condenável. Seria um sinal deque os homens se cuidam. Esta sua reação me faz pensar se a femi-nilidade do homem não é mais tolerada porque ela já está integradana lógica do mercado, onde “tudo é permitido”, uma lógica que seapoia em um discurso social que lega um grande lugar a feminização.

Diante da minha pergunta do que seria o masculino e o femini-no, eles se opõem entre eles sobre a influência respectiva de trêscategorias de identidade sexuada, que eles identificam como: anatô-mica, mental e social. Estas categorias não estão articuladas em suasmentes, mas têm cada uma a força de um determinante absoluto.Eles tecem, todos juntos, uma ideia de sexuação ligada à problemá-tica da identidade e da alteridade (alteridade que eles nomeiam “di-ferença”, ou “outro sexo”).

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A identidade e a alteridade estãorelacionadas, para eles, num além dosexo anatômico, da influência dos ou-tros e de uma espécie de porosidadedas experiências que tiveram do am-biente quando crianças, assim comodos laços privilegiados com os repre-sentantes de seu próprio sexo e dooutro sexo com o qual o individuoviveu. Os mecanismos aos quais elespensam são efeito do mimetismo eda impregnação, mais do que dos pro-cessos de identificação.

Cristophe intervém neste deba-te e apresenta sua fórmula da sexua-ção, que lhe gerou de início a goza-ção de seus colegas, mas depois umacerta admiração. Ele nos dá o exem-plo de um amigo: se eu lhe chamopor um outro nome que não o seu eele me responde, isso quer dizer queele não se reconhece em sua identi-dade”. Ele é obrigado a usar pelomenos dois exemplos usando os no-mes dos colegas presentes para queeles pudessem compreender: “você sechama Paula e na rua eu te vejo e tedigo, oi Nicole! Você não vai me res-ponder porque você sabe quem évocê!”. A identidade sexuada consis-te em uma resposta a um chamado, aum endereçamente que vem do exte-rior. Diante da resistência de seus co-legas a compreender, Cristophe refor-ça sua teoria com a fórmula decisiva:“é uma coisa como um comprimidoque nos foi dado: você é isto! você éaquilo!” Em outros termos, o Sujeitonão pode responder a um significan-te que não é o seu. Ele é assujeitado e

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não pode se virar, se virar para umoutro chamado. Na falta deste assu-jeitamento que Cristophe acaba deexpor, o Sujeito se acha com umaidentidade confusa, como indivíduosvazios, sem gravidade e prontos a sevirar para não importa qual interpe-lação do Outro. Cristophe, está lon-ge das teorias dos Gender Trouble, deButler que sugere que a sexuação dizda escolha de um significante para oSujeito, segundo uma lógica perfor-mática puramente liberal.

Em segundo plano destas figu-ras remarcáveis, diversas problemáti-cas se anunciam. No entanto, o traçocomum destas duas vinhetas, paraalém da singularidade das pessoas edas questões de estrutura do Sujeitos,é de nos permitir entrever os efeitosdo discurso social liberal sobre a cons-trução das subjetividades adolescen-tes, em particular do ponto de vistade seus futuro enquanto Sujeitossexuados.

Nós vimos uma variedade deposicionamentos subjetivos, com asadesões de uns, os conflitos de ou-tros, as resistências e as formaçõesreativas de quase todos. Esta explo-ração clínica não teria sido possívelsem o dispositivo que nós desenvol-vemos para acolher a palavra dos ado-lescentes, sem os grupos e sua fun-ção elaborativa e de contenção, sema exigência ética que supõe a discus-são, no senso de Habermas, que nóstrouxemos para que sua palavra pu-desse ser entendida… e por nós mes-mos.

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HOW DO TEENAGERS IN THE CITY OUTSKIRTS TELL (ABOUT)?AN ADDRESSING GAME TO RESEARCHERS

ABSTRACT

We present results from a research work in the domain of the social clinic, developed in France– Copsy-enfant, 2005 – on the construction of gender and intergenerational identity amongteenagers. We conducted classroom observations and organized seven “word groups” in twoschools located in peripheral districts. We assessed the effects of the social discourse on thisadolescent construction. The clinical exploration was made possible by a device of welcoming theadolescent word: the groups, on their function of elaboration, allowed these young people toconfront their own saying.

Index terms: clinical approach; “word groups”, adolescent subject; sexual identity; socialdiscourse.

COMO LOS ADOLESCENTES (SE) HABLAN?JUEGO DE FORMAS DE HABLAR CON LOS INVESTIGADORES

RESUMEN 

Se trata de los resultados de una investigación clínica social desarrollada en Francia – Copsy-enfant,2005 – sobre la construcción identitaria adolescente respecto a las referencias de género eintergeneracionales. Fueron realizadas observaciones en escuelas secundarias y organizados “gruposde palabra” (o grupos focales) en dos colegios de barrios pobres. Focalizamos los efectos del discursosocial sobre esa construcción adolescente. La experiencia clínica fue posible gracias a la puesta enfuncionamiento de grupos continentes donde cada uno pudo confrontarse con su propio decir.

Palabras clave: clínica; grupos focales; sujeto adolescente; identidad sexual; discurso social.

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NOTAS

1 Título original: “Comment des adolescent-e-sdes banlieues  (se) parlent? Un jeu d’adresses auxchercheurs” [N.T.].

2 Esta pesquisa (ANR, Appel Blanc, “Copsy-enfant, 2005”), sob a direção de S. Lesourd(Unidade de Pesquisas em PsicologiaSubjectivité, Connaissances et Lien Social del’Université de Strasbourg) foi conduzida se-gundo uma abordagem específica para a re-gião de Ile de France pela equipe “Approchescliniques en éducation” (L. Gavarini, dir. –Equipe Education, Social isation, Suje ts,Institutions, Université Paris 8). O tema cen-tral foi a construção da identidade de crian-ças e adolescentes e suas marcas para a dife-rença entre os sexos e a diferença de geraçõesface às mutações dos laços sociais e das con-figurações familiares contemporâneas.

3 Para maiores informações sobre o desen-volvimento sobre os grupos de palavra comadolescentes, ver Gavarini, L. (2009). Desgroupes de parole avec les adolescents:l’émergence d’une parole “autre”. Cliopsy: revueélectronique, 1, 51-68.

4 Les collèges sont des établissements quicorrespondent au premier cycle del’enseignement secondaire, d’une durée dequatre années; ils scolarisent des élèves, filles

et garçons, ayant entre 10 ans et 15 ans. Leslycées, second cycle de l’enseignementsecondaire, d’une durée de trois ans, sespécifient en lycée professionnel ou généralet accueillent des élèves de 16 à 18 ans.

5 Notadamente, Paugam (1997) ou Stébé &Marchal (2007).

6 A tradução literal dos quartiers para o por-tuguês, seria o equivalente aos bairros. No en-tanto, o sentido trazido pelo texto faz refe-rência ao seu uso exclusivo feito aos bairrosda periferia. Assim, da mesma forma, o sen-tido da palavra Cité, não é apenas, a cidade.Ela diz de um certo aglomerado de habita-ções populares da periferia destinado às fa-mílias de estatuto social e econômico precá-rios nas grandes cidades francesas.

7 Na França, a Inspeção corresponde a au-toridade de tutela, uma representação do Mi-nistério da Educação dentro dos estabeleci-mentos escolares. Para além de sua funçãoadministrativa e institucional, é desta instân-cia que dependem os alunos em forte difi-culdade e a advertência do absenteísmo es-colar aos organismos sociais ligados àsalocações familiares. Estas são uma sorte deajuda do Estado francês às famílias com ummínimo de dois filhos.

8 Estes grupos concerniram cerca de 50 jo-vens, entre 14 e 18 anos, com os quais desen-volvemos entrevistas clínicas aprofundadas,observações de classe que tratavam detemáticas como: o corpo, a puberdade, a se-xualidade, a contracepção, as relações entresexos, e gêneros). A co-condução desses gru-po de palavra foi assegurada por colegas clí-nicos de orientação psicanalítica ou socio-clí-nica: Eric Bidaud, Jean Cahors, GillesMonceau, François Petitot , FrédéricRousseau, Annie Benveniste. Bem comoIlaria Pirone e Milvio Meuci, estudantes queco-conduziram alguns grupos.

9 Na língua francesa, é sinal de educação erespeito se dirigir a alguém, que não faz par-te de nosso círculo mais próximo, usando opronome pessoal na 2ª pessoa do plural: vous.

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Quando se trata de pessoa próxima, o usualé o emprego na 2ª pessoa do singular: tu.

10 Este jogo consiste na composição de umafarse ou um desenho por diversas pessoas,sem que eles saibam das produções precentesfeitas por outras pessoas. O princípio destejogo é de que cada participante escreva umaparte de uma frase, na ordem sujeito-verbo--complemento, sem saber o que o preceden-te escreveu.

11 “bled ”, termo genérico que designa a ter-ra de origem, que não é necessariamente oMaghreb, já que o termo é árabe.

12 Mlle O. veste-se, dos pés a cabeça, comroupas brancas ou rosa e adorna-se com bi-juterias douradas.

13 Faço referência, aqui, à terminologia deRubi (2005).

14 Zonas onde estão situados os estabeleci-mentos escolares dotados de estratégias e re-cursos diferenciados para fazer face às difi-culdades de ordem escolar e social de seusalunos.

15 Ver o trabalho de Pirone (2007).

16 Ver nota 5.

17 Referência ao termo mitomaníaco.

[email protected] [email protected]

Recebido em julho/2009.Aceito em setembro/2009.

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