revista subversa volume 1 | n.º 8 | dez 2014
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|literatura luso-brasileira| www.canalsubversa.com [email protected]TRANSCRIPT
SAMUEL H DIAS | GABRIELA RUGGIERO NOR
EVANDRO DO CARMO CAMARGO| TÂNIA ARDITO
CATIA PENALVA| BRENO RICARDO
MORGANA RECH | LUIZA FERREIRA
8ª Edição | DEZ /2 2014
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
SubVersa | literatura luso-brasileira |
8ª Edição
© originalmente publicado em 15 de Dezembro de 2014 sob o título de
SubVersa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Fotografias:
©Luciana Belinazo: Das Imagens |Pensamentos Mortos | Ser poesia é habitar a
música | O ONS do RU | Mas tu sabias, pai | Jeci
© Tânia Ardito: Lírica Grega
© Morgana Rech: Siri morrendo
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como
autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos
ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
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8ª Edição
Dezembro de 2014
GABRIELA RUGGIERO NOR | © DAS IMAGENS | 5
EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © SIRI MORRENDO|9
SAMUEL H DIAS | © PENSAMENTOS MORTOS | 13
LUIZA FERREIRA | © SER POESIA É HABITAR A MÚSICA | 16
BRENO RICARDO | © O ONS DO RU | 19
CATIA PENALVA | © MAS TU SABIAS, PAI | 21
TÂNIA ARDITO |© LÍRICA GREGA| 22
MORGANA RECH | © JECI | 25
Apresentamos a 8ª edição da SubVersa,
a última do ano que representa o
encerramento de um ciclo. Com certeza,
daqui a um tempo, nós editoras sentiremos
saudades boas e orgulho desses seis meses de
acertos, muitos erros, ideias entusiasmantes,
experiências, risadas e aprendizagem. Já na
nossa chamada para a oitava edição,
apresentamos o 8 como o símbolo do infinito,
sendo o nosso maior desejo para o ano que se
aproxima e para o novo começo da
SubVersa, que possa ser um novo ciclo infinito
de ideias, textos, colaboradores e parceiros
deste projeto.
Sim, a Sub, como carinhosamente
chamamos, está em fase de remodelação. O
nosso trabalho visa ser, cada vez mais, uma
ponte luso-brasileira da literatura
contemporânea, sem nos esquecermos do
nosso conceito inicial, o desejo de ser uma
mais-valia a quem procura espaço dentro do
difícil mundo literário. Estamos de volta ao
começo, não num retrocesso, mas num
processo de evolução. Voltar às origens será
sempre necessário para evoluir e ultrapassar
os desafios do caminho. O mesmo que
esperamos aos autores e leitores. Desejamos a
todos um 2015 repleto de energia, entusiasmo
e inspiração. É o que nos move!
EDITORIAL
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GABRIELA RUGGIERO NOR
SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL
Labirintos e a perseguição sem trégua, fugindo – depois de correr até o
coração parar, termino num grito abafado, lençóis que mudaram de
lugar sem que eu visse.
(como queria puxar sua mão junto comigo, para o fundo fundo fundo)
meu corpo como o de um pássaro; leve, frágil, as asas cortadas de
Frida – alas rotas y ganas de volar – recosida mi espalda por la mañana,
el dolor solo en el punto más central de la lumbar – uma estrella y todos
los amores vividos y frustrados en mis riñones – pero me muevo como los
gatos y ¡de pie estoy! Antes que lo sepas ya me fui
era um cachorro morto, pendurado pela pele solta, com o focinho
humilde despencado – era a dor de novo, mais minha porque não em
minha pele, mais minha porque causada por nós
DAS
IMAGENS
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ela, por quem eu quase desisti de tudo, tinha um perfume forte de
invadir as narinas e ficar o dia inteiro amortecendo os poros – ela, cujo
perfume sinto às vezes inesperadamente, carregado no vento, sem sinal
da íris violeta e das pupilas de gato, deixando-me na confiança esquiva
do faro humano – era uma bruxa.
eram as sobrancelhas doces, doces, claras, loiras, que se tornavam
cruéis, a lua pesada em cima de todos, a lua pesada e o carro azul;
azul-escuro, profundo, de se ir pra dentro e não sair – até o penhasco
ele dirigiu e de lá seus olhos se avermelharam para sempre, nunca mais
suas sobrancelhas claras claras de sol, nunca mais seus olhos azuis,
agora, porém – un coup de dés jamais n'abolira le hasard – as cartas
que ela (Madame Pequenina) consultou disseram que seríamos
abençoados, que eu tinha uma inclinação espiritual – revelação? -
inclinação espiritual -
(da qual me livro com álcool que retorna em pesadelos e sede em
madrugada verde. Da qual me livro com o embotamento de todo e
qualquer sentido – extrasentido – paranormalidade – le hasard, la
femme-oiseau, moi, celle qui va mourir seule sans chats et sans savoir
coudre les chaussettes de mon fils imaginaire – une bouteille de vin à
côté de mon livre favori, jamais écrit mais bien chéri)
era o corpo amado festejando em suor alheio, era a garganta
amada gritando nomes outros que não o meu, eram os olhos
amados denunciando a falta grave, e o desprezo que acompanha
as traições sofridas e a culpa que acompanha aquelas praticadas.
era a sombra que se instalava sem permissão e não ia embora
nunca, eram as marcas debaixo dos olhos que retornavam mais
vívidas;
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a carne saliente cada vez mais apodrecida, cada dia 22 do mês em
que os cachorros mordem mais, era o signo canhoto registrando cada
visão de morte, eram as mãos dele nos quadris perfurados de desejo
que não saciava nunca, era a frigidez que chegava após o gozo e a
tormenta de novamente submeter o corpo às alucinações do quarto
escuro
e frio
bones that crackled in the bed, legs wrapped in nightmares
[I had a rented skull and borrowed brains to be able to go to college in
the morning: stealing everyone else's souls with a fake bright smile there I
went – will you sing along my dear, sing along, sing along, will you sing
along when my wings get loose? when my arms are released from the
smothering confinement of his lips, will you sing along? when my
deprived body comes to light again? will you blow the ashes off my pale
skin when I'm finished burning every bit of this rock this marble this thick
silver layer that encloses my teeth? Let's make a promise an agreement
an art to live by and through – let's hold hands till our hands vanish]
à noite toquei profundamente em suas mãos e soprei na ponta de seu
queixo; beijei suas pálpebras doces, escovei com as pontas dos dedos
os seus cílios, abençoei seu corpo nu, pedi aos anjos que não te
deixassem nunca, rezei para que sempre fosse feliz, e tranquilo, e que a
vida fosse boa com você, e que você fosse bom com as pessoas, que
seus filhos fossem fortes e te suportassem o peso na velhice, que sua
esposa tivesse olhos de lua e sorriso de cristal, murmurei repetidamente
que Deus respeitasse a ingenuidade de minha prece, que eu queria
você sempre feliz e alheio à dor e ao medo, que eu queria que você
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tivesse sempre onde descansar suas costas, que tivesse sempre um
prato cheio de comida, que nunca passasse frio, que não se deixasse
consumir pelo desejo ou pelo dinheiro, que você continuasse forte e
bom, com os braços fortes e bons de quem se levanta repetidamente
para acompanhar a doente até o leito, braços fortes e bons de quem
carrega a bondade maior, mais elevada, mais firme, eu rezei pra que a
pureza que conserva nos olhos passasse adiante numa geração
dourada, altiva, contente
que nunca ninguém te abandone
que me seque o veneno dos lábios
que me faça uma prece por hoje.
GABRIELA RUGGIERO NOR é professora de línguas e doutoranda em
literatura brasileira. Escreve também sobre maternidade consciente e
humanização no atendimento da mulher.
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EVANDRO DO CARMO CAMARGO
ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL
Tem um siri muito sério
Na areia da praia, olhando triste
Seus dois bracinhos,
Com suas garrinhas,
Caídos na areia,
Separados do corpo.
Coitadinho do siri.
Pego ele na mão e reparo:
Falta ainda a última perninha de trás, do lado esquerdo.
Mas ele está vivo. Com medo,
Recolhe os olhinhos retráteis quando o apanho.
SIRI
MORRENDO
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Tento grudar suas perninhas,
Não colam mais.
Penso em colocá-lo na água,
Mas acho que seria comido, ou morreria afogado.
Tento fazê-lo andar,
Andar já não pode.
Está quebrantado,
Imóvel.
Uma mosca percorre seu casco.
Siri morrendo II
Sento-me em um balanço embaixo de um chapéu-de-sol,
E fico imaginando na situação do siri,
Reflexivo.
A mosca não o deixa mesmo em paz.
Muito de vez em quando, o siri faz que vai andar.
Cansadamente, flexiona lento as perninhas que restaram.
Mas não sai do lugar,
Resignado.
Penso de novo em colocá-lo na água.
É um animal marinho.
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Deve preferir morrer na água salgada.
Pelo menos não tem moscas.
E vai que no mar as perninhas restantes não ficam mais espertinhas?
Talvez nadar ele ainda consiga.
É isso mesmo!
Vou salvar o bichinho.
Pra ele não ficar assustado,
Coloco-o na areia, em um lugar onde uma ondona acabou de bater,
mas que agora está seco.
Fico à espera de outra onda daquelas, mas nada.
Eu esperando e ele lá, paradão.
O chato é que não dá pra saber o que ele prefere.
Às vezes tem de novo aquele espasmo.
Mas não sei se quer ir logo pra água ou fugir dela.
E essa onda que não vem...
Chega a vinte centímetros dele e nada mais.
Impaciente, coloco o bicho mais adiante,
Onde, sem mais tardar, se banhará talvez pela última vez nas águas frias
do Atlântico sul.
Uma onda termina a cinco centímetros dele.
Está com os olhinhos arregalados, acho.
A outra que vem, vem forte, e derruba nosso herói,
Que agora está de ponta-cabeça, mexendo as perninhas.
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Não esperava esse acidente.
Não esperava.
Mesmo.
Meio zonzo, me afasto rápido, olhando pra trás,
Preocupado.
Minha súbita retirada o coloca em desespero.
As perninhas frenéticas e os olhinhos estalados parecem querer dizer
algo.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
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SAMUEL H DIAS
MUZAMBINHO, MINAS GERAIS, BRASIL
- Um corte um pouco acima do pescoço, às nove horas da manhã de
um sábado bem enjoativo, o café frio espalhado pelo chão e meu
assassino sentado em meu sofá comendo um sanduíche de presunto e
tomate, a TV estava ligada, ele tinha quase dois metros de altura e
vestia um sobretudo preto e até tendo certeza que eu já estava morto
era cuidadoso e não retirava o capuz, era muito cedo para ser morto e
estava muito cansado para ser morto.
" Suspiros"
- Minha visão já não está tão clara como a de alguns segundos atrás,
estou me curvando para o lado, estava até agora pouco encostado no
PENSAMENTOS MORTOS
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armário embaixo da pia da cozinha, lembro-me de ter deixado a ração
do Bob ali dentro, lembro-me também de ter comprado a ração
errada, maldita promoção e maldito salário mínimo que não paga nem
mesmo meus impostos.
" Queda"
- Meu corpo encontra o chão gelado de meu apartamento, agora
não consigo ver o assassino, tudo que vejo é o balcão de mármore no
qual há alguns minutos atrás estava sentado tomando meu café e
comendo aquele sanduíche, mal consegui dar duas mordidas e tão
repentinamente quase não pude ver ele surgindo das sombras.
" Dor"
- Não era humano, eu vi com meus próprios olhos as sombras saírem
pelas paredes e por entre elas este estranho homem encapuzado,
arrisco dizer que era a morte, mas se for, não é muito simpática e como
dizem: vem sem avisar.
" Sangue"
- Minha visão some, estou no escuro e o único sentimento vivo dentro
de mim é o medo, meu coração já está desacelerando como um trem
chegando na estação, nunca mais verei este mundo nojento ao menos
é isto que penso, já que nenhuma lembrança minha ficará para
alguém, se existe algo pior do que morrer, talvez seja não ser lembrado.
"Lágrimas"
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- Já não me restam mais forças...
" Sorriso"
- Ao menos foi rápido, pois não sinto dor.
"Morte"
SAMUEL H DIAS
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LUIZA FERREIRA
RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL
Viveu no esquecimento de sabores, dos cheiros, do sentir e da
companhia de si mesma. Perdeu sua aura colorida, seus indecifráveis
mistérios que tornava-na única. Desfez-se da natureza, perdeu o olfato
ao cheirar uma rosa e o paladar ao saborear as frutas de outono.
Buscou os caminhos das ideias perfeitas, dos ideais e do que está acima
de todas as suas experiências, sentidos e paixões. Foi acompanhada
pelo falso e, em suas trilhas imaginárias, segurou infinitos que foram
quebrados meio a palavras de ferro e sem a menor chance tentar
reconstruir os cacos deixados pelo chão. Fez-se só. Acolheu-se nos
braços de sua alma, segurou o abismo na mão esquerda e, com a
direita, ainda procurava um resquício de equilíbrio. A chuva a derrubou
e a tempestade a fez desistir. Desfez-se nos mares das lembranças,
afogou-se em melancolias resguardadas de um verão em vão, e
cobriu-se de silêncio da cabeça aos pés.
Era como um choque. Uma canseira que lhe tirava o sono, um
SER POESIA É HABITAR A MÚSICA
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silêncio barulhento, uma linguagem travada e suas rimas que não
rimavam mais. Começava pelas suas pernas, tomava conta de suas
costas e chegava até os seus braços. Eram ventanias trazidas de um
mar remoto, nostálgico, breve e antes leve. Era o barulho das ondas
quebrando nos seus ouvidos através de estalos, de pânico, de um ser,
mas não ser. Antes, com seus pés descalços e suas mãos sobre a areia,
conseguia contemplar toda a vista daquele mar, que a acariciava
gentil e sereno. Filha das conchas e dos oceanos, foi invadida nas
profundezas de toda sua alma e, aquelas águas, antes amigas,
tornaram-se caminho para a queda. Foi imobilizada pelos seus sentidos
e desprendeu-se de seus quereres remotos quaisquer. Assim que
chegou aos seus ouvidos, o movimento que lhe revestia, foi interrompido
e seguiu outra direção.
As janelas tremeram. Algo mudou. Ouviu, pelos vidros
empoeirados antigos, e pela transparência de uma noite escura e
inesperada, uma distante melodia. Uma melodia que a lembrava o
canto de sereias e que a chamava para se levantar e procurar de onde
vinha o que seduzia seus ouvidos. Era a melodia das estrelas. Correu até
onde pudesse estar mais próxima àquele som que, com cheiro de flor e
que alivia a dor, se apresentava como uma espécie de mudança.
Cantarolando meio a nuvens perturbadas e meio ao resmungo da Lua,
insistiram em notas, em canto e em movimentos circulares e paralelos.
Entrelaçaram seus corações e fizeram de várias, um só ponto brilhante.
Ao cantar naquela noite solitária, vazia de tudo e conturbada por ruídos
de uma multidão silenciosa, tornou-se o centro das atenções e,
principalmente, das atenções de uma mulher. Tudo ia se refazendo.
Como se os dias perdidos fossem iluminados por uma espécie de
sensibilidade incansável. Estava tudo tão longe e tão perto! Era como se
aquela noite tivesse acenado para uma espécie de passado não-vivido
e apresentasse uma aventura: aquela colorida e que aliviava o cinza,
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de cheirar flores, brincar com a lua, beber gotas de chuva. Sair do que
tem cheiro de bomba e gosto de solidão, pra fazer abraçar a alma e
rejuvenescer a aura. A partir daquela pequenina cantora de danças
serenas, pôde sentir e habitar, pelos seus ouvidos, as profundezas de
todo seu espírito. Assim como passava horas em sua mistura de canto
interior com exterior, imaginando além do que sê vê e toca, juntando
devaneios e colocando em papéis brancos e amarelos, e em
mergulhos em letras embaralhadas e rabiscadas, encontrou, no canto,
na música, a poesia que acalentava o seu rosto, rejuvenescia sua alma
perdida e mostrava-lhe as flores de um passado bom. Já não era mais
um rabisco derrubado inacabado. Era um desenho completo, de
rabiscos que se completavam, pintados por cores coloridas e escuras.
Trouxeram-lhe de volta às dimensões prediletas, aquelas de quando
ainda podia dialogar com as plantas, voar com os passarinhos e nadar
naquele mar das sereias, de ondas aventurosas e não agressivas. Era
como enxergar a si mesma.
É indescritível como uma canção, um só som, uma melodia
contínua pode fazer com que saiamos de nossa dimensão comum e
contemplemos os nossos mais distantes encontros com nós mesmos. É
fascinante como se consegue alcançar o próprio eu, reconhecer os
nossos próprios estados, através da musicalidade de algo – o que quer
que seja – que exista a música.
A poesia está nos mares, nos ventos, nos dias difíceis. Ela ilumina,
abre caminhos e abriga o coração na palma de uma mão.
A música é amiga da poesia. E ser poesia é habitar a música.
LUIZA FERREIRA é estudante de Português-Inglês da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
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BRENO RICARDO
JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL
“Invém o ons do RU!”
Sob a propagação de tais palavras, o espírito do aluno da UFJF se
exalta, o sangue lhe ferve e corre veloz pelas veias dilatadas. A
empolgação se lhe instala e a expressão desta são as correrias – sim,
um punhado de jovens correndo felizes como crianças premiadas com
um doce, até que ocorra a reunião de todos em torno do ons cinza, de
sua estreita porta traseira que se abre, refrescando-nos a alma pelos
seus característicos sons.
Adentram os estudantes, sorridentes. Conversam alto, como
bêbados num bar. Uns têm onde sentar, outros – não. Ao chegar no ICB,
mal se tem como subir, todavia sempre é possível, menos devido ao ons
ser um coração de mãe, que pela necessidade que nos rege e a
solidariedade que nos faz dizer: “Vai ter que caber!”. Amontoamo-nos
partilhando de um calor humano, no frio juiz-forano, urgente; em seu
calor, sofrível. Seguimos pelos morros, entre belas sequências de
pinheiros. Passamos pelas Artes e pelos artistas; pela Engenharia e
Arquitetura – paramos, chegamos. Para descer, paciência. Depois,
O ONS DO RU
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tickets e filas, assinaturas – e mais filas: paciência!
As revoltas estomacais trazem-nos à memória aquilo que nos dá
esperança: o Restaurante Universitário. Um estudante da UFJF que passa
toda a sua graduação sem prover-se de ao menos um almoço no RU,
em verdade em verdade vos digo – não teve uma graduação
completa. Ele é de tão sumo valor que deveria ter sido construído no
centro do campus. Apesar de esse local de honra estar ocupado pela
Reitoria, porque é de praxe a inversão de valores no Brasil, no nosso
coração reina o RU e o seu ons, que são a magia dessa mágica
universidade.
A realidade que, em oposição à magia, é triste, é que somos 1500
cabeças necessitadas. Afinal, o sobrenome do RU é Necessidade. A
comida às vezes é boa, contudo, o suceder de tal fato é tão raro que
nos surpreende e, abismados, perguntamo-nos se o nosso paladar já
não está perdido, desprovido de bons valores morais, e já julga
comestível, a comida duvidosa. O suco, contudo, mantém-se intacto:
com gosto, sem ele, doce ou amargo, o seu sabor ruim é imperturbável.
A despeito disso, como mulher de malandro, recusamo-nos a trocá-lo
pela água, que se supõe mais saudável – todavia, pouco se sabe sobre
ela.
Reclamamos, mas almoçamos. A antítese do amor e do ódio é o
tema de nossas conversas. E isso só finda, temporariamente, no advento
do ons do RU, quando o vemos dobrar a esquina da Engenharia, em
toda sua simplicidade e esplendor. Reduz distâncias, economiza
energias, mantendo-nos descansados. Sinceramente, mesmo a ojeriza
que por vezes nos provoca, é como a da mãe quando vê o filho em
ruínas: deve prover do amor!
BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi
diretor de um grupo de teatro amador; possui três livros publicados on-
line e, atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do
Bom Samaritano.
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CATIA PENALVA
VIANA DO CASTELO, PORTUGAL
O Alzheimer conduzia-te de volta à África, à tua oficina, às
ferramentas que me pedias no quarto do hospital com o olhar
desaparecido, circular. Mas tu sabias, pai, sabias que eu estava grávida
e eu julgava-te louco. Mas tu sabias, pai! Dois meses depois, o teste deu
positivo. Atónita, corri ao hospital e lá estavas tu outra vez em Malange.
Segurei-te a mão e sorriste-me " já não vou conhecer a minha neta." Eu
não quis acreditar, pai, mas tu sabias!
CÁTIA PENALVA já foi professora do 1º ciclo do ensino Básico e agora é
Mestre em Educação Artística e dá formações de escrita criativa na sua
cidade.
MAS TU SABIAS, PAI.
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TÂNIA ARDITO
SÃO PAULO – PORTO
Agora estou neste quarto… com as paredes todas pintadas de
branco, tão impessoal, sem nenhuma marca das histórias que passaram
por aqui. Começo a pensar como eu as preencheria, como escreveria
nestas paredes com as minhas canetas multicoloridas; escreveria
minhas histórias, versos, meus e dela e penso nela…só consigo pensar
nela. Saudades? Será mesmo que tenho saudades dela? Aqui me sinto
tão só, precisando de alguém para segurar a minha mão, confortando,
dizendo “tudo vai ficar bem” “logo você estará em casa”. Casa. Sinto
saudades de um lar também, mas não da casa que dividi com ela, mas
o lar dos meus pais, que abandonei batendo a porta após uma briga.
Sinto falta da minha mãe, como sinto a sua falta, mesmo com todas as
nossas diferenças, mesmo ela nunca tendo se conformado e das nossas
discussões. As brigas dela com o meu pai porque não queria que ele
apoiasse a minha opção… que falta me faz agora o meu pai, vejo
aquele rosto bondoso piscando o olho para mim e dizendo: “deixa, logo
LÍRICA GREGA
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ela se acalma”. Lembro o escândalo que a minha mãe fez quando
levei minha namorada para um almoço de família, coitada tinha
vergonha. Hoje eu entendo, na época só achava que ela tinha de
aceitar e ponto. Agora até consigo compreender, era mesmo difícil, os
comentários, as tias olhando com aquela cara de reprovação,
reprovando mais a minha mãe do que a mim, pois afinal culpavam-na
e diziam que ela não soube me criar.
Será que demoram ainda muito? Engraçado eu estar ansiosa
para passar por isso… eu não quero ficar sem meu…nem consigo ainda
pensar direito nisso, definitivamente não quero passar por isso, mas qual
a alternativa? Deixar que tome conta do meu corpo? O doutor disse
que hoje há implantes muito bons, fica igualzinho… de repente,
aumentar a autoestima, me sentir mais mulher…está aí, eles nunca
entenderam que eu era ainda uma mulher, com toda a minha
feminilidade, será que agora vou mesmo me sentir menos feminina,
menos mulher? Será mesmo isso um castigo? Eu li num desses artigos
que a opção de não ter filhos aumenta a chance de desenvolver a
doença. Fui eu que procurei isso? Eu lembro que uma vez nós
queríamos, até conversamos na possibilidade de um doador… mas qual
ficaria grávida? Eu logo descartei a possibilidade, estava numa fase de
vida de muito trabalho e confesso que nunca tive o sonho de ser mãe…
será mesmo isso possível, a mulher foi feita para parir, essa é a nossa
função?
E se a minha história com ela não tivesse durado tanto tempo?
Meu pai consolava a minha mãe afirmando que era passageiro “são
experiências da juventude, logo ela enjoa, conhece um rapaz e vai
encher a casa de netos”… minha mãe morreu esperando por isso, ela
até me perdoou, conviveu cordialmente com a minha companheira,
mas nunca se conformou. Coitada rezava todas as noites para a Virgem
Maria me dar juízo. Virgem Maria, a mãe de todas as mães… queria
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rezar para ela também, mas não sei se ela me ouvirá, andei tão
distante…e não sei se tenho o direito…no fundo me culpo, mas por que
me culpo? Não lutei a vida toda pelo direito de ser quem eu sou, fui
uma boa pessoa, cumpridora de meus deveres… será que ela que foi o
meu grande amor também se sentia culpada? Ela que sempre foi tão
mais forte do que eu…e agora me sinto tão frágil, culpada… mais do
que me senti durante a vida toda.
Quando descobri a doença... Doença, é assim que eu chamo,
tenho medo do seu nome, como se fosse ficar mais doente se eu disser
câncer, sim tenho um tumor no seio que vai obrigar-me…preciso ser
forte, corajosa, afinal não é difícil só para mim, quantas não passam
pelo mesmo que eu? O médico até comentou que eu tive sorte, pois
descobri a tempo… sorte, se isso for sorte eu não sei dizer o que é azar.
Talvez, na lógica médica isso é ter sorte, mas como posso sentir-me uma
afortunada, se vou ser mutilada, retirar o meu símbolo, sempre fui tão
elogiada por ter belos seios… uma vez ela até escreveu uns versos neles
e achou tão bonito que insistiu para que eu fizesse uma tatuagem. –
Nunca – protestei - gostava deles assim, da pele sem nenhuma marca…
e agora, vou ficar marcada pelo resto da vida, será que o implante fica
mesmo bom?
Logo que sair deste hospital… detesto este cheiro de remédio
misturado com suor…estas paredes brancas, tão brancas que faz sentir
um vazio… logo que sair vou consultar um cirurgião plástico… isto não
há de ser nada, vai passar… como passou a dor por tê-la perdido, foi-se
embora… apaixonou-se por um professor especialista em lírica grega,
me senti duplamente traída, sabia que o romance começou quando lia
com o seu ar provocatório os mesmos versos…pensei em ligar, mas
depois desisti. Não quero pena, é o pior sentimento. Só queria uma
mão… uma mãe… mas, tenho que ser forte… vai passar.
TÂNIA ARDITO é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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MORGANA RECH
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
Acordar subitamente assombrada pela tontura e descobrir que
aquilo tudo estava acontecendo era como respirar dentro de uma
sacola plástica. A dor na garganta penetrou pelo rosto e, depois, pelo
corpo, adormecendo a pele por onde passou.
Do espaço que consegui abrir nas pálpebras, pude ver um céu
encoberto e poluído. Fazia muito calor.
Percebi que um líquido vinha da minha camisa e pingava, denso,
no chão. Vinham das costas, pois eu estava sendo carregada por dois
homens robustos, um pelos pés, outro pelas mãos.
A comunicação tornou-se impossível quando parei de ouvir o que
eles diziam para apenas ouvir o ar entrando e saindo dos meus
pulmões. Lembrei-me de quando fiz um mergulho numa praia do Rio de
Janeiro. Desci três metros para o fundo do mar e a sensação de
calmaria era exatamente a mesma. Não fosse o calor que saía e
entrava cada vez mais forte pelo meu corpo, numa onda de ebulição
JECI
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frenética, eu poderia jurar que me levaram para lá de novo, para a paz
que havia nas profundas águas marítimas.
O calor ficou insuportável quando caí para fora. Pensei que me
fosse ver livre e chegar à superfície, respirar, descobrir que era a
aproximação com o Sol que estava esquentando a subida. Mas tudo
piorou quando o carro começou a acelerar mais e mais. Foi por uma
corda que me dirigi lenta e penosamente à morte.
Do fundo do mar para o pior dos contatos com a terra, tive
naquele momento a consciência de tudo.
O sangue dos tiros rapidamente se fundiu com os da pele, que
derreteu a roupa ao passar pelas fibras de tecido. Algumas pessoas se
aproximaram, tentando me ajudar a fazer uma pausa na viagem.
Ouvi mais tiros. Neste momento perdi outra vez a consciência e
não saberia dizer ainda se eram novos ou antigos os tiros que ouvi
naquele momento, pois aos poucos me acostumei com eles.
Ao reabrir as pálpebras, desta vez um pouco mais, a imensa luz
amarela e quente tomou conta do meu corpo para sempre.
Amortecida, não valia mais a pena tentar entender para onde fui em
concreto. Permiti, como se fizesse parte da luz solar, que as mais altas
temperaturas finalmente estivessem em paz comigo e me levassem
para onde bem entendessem.
Derreti-me por completo.
A minha vida, igualzinha a minha morte, foi uma luta belíssima.
MORGANA RECH é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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