revista subversa
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Subversa do centro das atençõesTRANSCRIPT
SUBVERSA
GLAUBER COSTA | GERALDO LAVIGNE DE LEMOS
ANDERSON S. FREIXO | CAROLINE POLICARPO
MARCILANE SANTOS | HERBERT DO NASCIMENTO
LUCIENE BERNARDES | ELLEN MARIA VASCONCELLOS
RAFAEL ZACCA | JOÃO CERQUEIRA
Vol. 4 | n.º 07 | abril de 2016 ISSN 2359-5817
Ilustração | LILA BITTEN
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WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 4 | n.º 07
© originalmente publicado em 15 de abril de 2016 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
LILA BITTEN| INSTAGRAM | [email protected]
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
3
ANDERSON S. FREIXO | MITO DA CARTEIRA | 6
CAROLINE POLICARPO | PERSONA(GEM) | 8
ELLEN MARIA VASCONCELLOS | PANORÂMICA | 11
GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | A MEU TEMPO | 13
GLAUBER COSTA | A HOMENAGEM SECRETA | 15
HERBERT DO NASCIMENTO | LÍQUIDO | 22
JOÃO CERQUEIRA | O DITADOR E A POESIA | 26
LUCIENE BERNARDES | O VENDEDOR DE BALAS| 34
MARCILANE SANTOS | ECO | 37
RAFAEL ZACCA | UM SONHO | 40
SOBRE LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil) | 42
SUBVERSA
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EDITORIAL
"Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referência
'ontológica' do humano ao livro que se toma como fonte de informações, ou
como 'utensílio' para aprender, como um manual, quando é, na verdade,
uma modalidade do nosso ser. Com efeito, ler é manter-se acima do realismo -
ou da política -, da preocupação por nós mesmos, sem desembocar,
contudo, nas boas intenções das nossas belas almas, nem na idealidade
normativa do que 'deve ser'".
Emmanuelle Lévinas, Ética e Infinito
Número 7, volume 4. Prestes a completar dois anos de projeto, essa Subversa
conta histórias sobre ser o centro das atenções: um escritor que não consegue
escrever, um pinguim em plena praia de Copacabana, um ditador que quer proibir a
poesia, e por aí vai.
Um texto literário é uma forma de centro de diversas atenções. A grande
liberdade da leitura é poder introduzir esse centro de maneira mais ou menos
dogmática, mais ou menos agressiva, com menor ou maior atenção, etc. Tentar
estabelecer uma única função para a literatura é, ao mesmo tempo, afirmar a sua
falta de liberdade, o corte das suas asas. Um dos problemas das discussões sobre o
que é literatura é esse: para dizer o que é literatura é preciso negar o que ela não é?
O que tentamos fazer na Subversa é permitir que a literatura simplesmente
exista, que exista alguém para recebê-la e para trabalhar por sua própria liberdade e
autonomia. Talvez essa seja melhor forma dessas páginas continuarem a refletir as
mudanças e as contradições sociais e individuais pelas quais constantemente
passamos. É isso que a literatura é, afinal: um reflexo que nunca acaba.
Com muito gosto, convidamos a todos a apreciar e a colocar como centro de
sua atenção as imagens que a artista Lila Bitten oferece ao número. Com apenas 18
anos, iniciando o curso de design da UFSC, Lila mostra nas ilustrações o cuidado e a
profundidade da ligação que estabeleceu com os textos.
Vocês podem conhecer mais trabalhos da @lilabitten e acompanhar a
@revistasubversa no Instagram! ;) Desejamos a todos uma ótima leitura.
As editoras
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Em breve, Subversa versão impressa #2
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ANDERSON S. FREIXO | Salvador, BA.
MITO DA CARTEIRA
“Prisão de caixa”, ilustração de Lila Bitten
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O último cigarro da carteira
Viu, um a um, seus amigos serem puxados para fora
E sentiu o cheiro da fumaça
Do corpo queimado
De seus 19 colegas de quarto
Gelou de medo
Quando sentiu um par de dedos
Puxando ele
Pelo rabo
Já com a cabeça pegando fogo
O último cigarro
Que teve o tempo hábil pra ser sábio
Consolou-se
Sacudido e aturdido no universo circundante:
"É melhor que viver dentro da caixa"
ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente
em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outras
revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente
publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página
do Facebook (Zona do Freixo). | [email protected]
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CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.
PERSONA(GEM)
“Agonia”, ilustração de Lila Bitten
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essa garota que precisa tanto cre(r)
(scer)
ser
tornar-se
essa garota que precisa tanto ir
embora
essa garota tão necessária
e necessitada
sempre com medo das próprias perguntas
do próprio fascínio intenso demais
ela nunca pediria pra ser salva
ela tentaria salvar (-se) mas talvez fracassasse
essa garota que precisa tanto entender
os passos
as asas
a poeira da estrada
a insuficiência dos mapas
imprescindíveis
essa garota que não sabe o quanto está perto
-(e longe)
de si
essa garota que ainda não percebeu que o inalcançável
pode estar tocando-a
e mesmo assim ser inalcançável
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essa garota com medo de perder-se nos espelhos e mapas
precisa perder-se
antes
de encontrar-se
(re)criar-se
descobrir-se ela, outra, tantas,
e enfim fazer-se
quem quiser
(ver-se no espelho, enfim, e enfim entender os mapas)
essa garota, tão eu, é outra,
é uma quase personagem
que ganhou vida
e tornou-se a minha
CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas,
publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias
coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Ponto Reverso, O Corvo -
um livro colaborativo e King Edgar Hotel. Também tem publicações nas
revistas Trasgo e Friday. É fascinada por astronomia, aspirante a
desbravadora de universos (inclusive os inventados) e escreve por
necessidade existencial. | [email protected]
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ELLEN MARIA VASCONCELLOS| São Paulo, SP.
PANORÂMICA
“Padrão repetitivo”, ilustração de Lila Bitten
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Apesar de não originais, hoje, eles se bastavam.
Tantas vezes decepcionados pela previsível repetitividade do mundo
hoje se surpreendiam com a textura de uma pele.
Ora, todas as peles não são apenas células mortas?
Não enxergam o contato entre elas ou o que as agarram ainda
a outras mais profundas camadas
mas de fato, também não há nada de original nelas.
Uma pele, um pouco queimada, da mesma cor que tantas outras
com pelos, pintas e pontos
além de pequenas cicatrizes, marcas de obstruções de poros e
picadas...
Apesar de não originais, velhos e cansados
e necessitados de uma camada não muito fina de vidro, lente de
aumento
em armação de aço que já começara a perder a tinta,
enxergam essa pele
como se nunca houvesse outra pele
retida por essas retinas, nunca houvera passado nenhuma imagem
e ainda que datassem mais de quarenta anos de vida,
luz, sombra, poeira e lágrimas,
aquela pele ademais histórica e impregnada
de memória de outras miradas
refúgio de alguns corpos e comida para ácaros,
recebia o presente de ser admirada, recém-nascida,
pelos olhos deste homem.
ELLEN MARIA VASCONCELLOS é autora do livro de poemas bilíngue
(português/espanhol) Chacharitas & gambuzinos (Patuá, 2015) e tradutora do
livro Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner (book,e-galáxia).
Tem textos e traduções de poetas de toda América publicados em diversas
antologias e revistas impressas e digitais no Brasil, Chile, México e Espanha.
Colaboradora da Malha Fina Cartonera, e editora da Revista Adelitas.
http://ellenmartins.wix.com/home [email protected]
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GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | Ilhéus, BA.
A MEU TEMPO
“A vida no tempo”, ilustração de Lila Bitten
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faço muito uso do quando
porque o tempo me parece inconstante
às vezes é água represada
por outras, atira-se como cachoeira
sabido desta verdade
não costumo confiar nas máquinas
pois meu tempo confunde os relógios
confio, sim, na linha da vida
que, tesa, dispara o carretel
e, frouxa, para-o
GERALDO LAVIGNE DE LEMOS é membro da Academia de Letras de Ilhéus,
autor dos livros À Espera do Verão (2011), amenidades (2014) e alguma
sinceridade (2014), todos de poesia e pela Editora Mondrongo. |
[email protected] | INSTAGRAM: @GERALAVIGNE
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GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.
A HOMENGEM SECRETA
“Frustração”, ilustração de Lila Bitten
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Matutava, com o olhar para cima, querendo pegar a ideia do
que escrever. Precisava retribuir tamanha receptividade da firma.
Estava feliz, era bem aceito, como quase nunca tinha sido antes. Iria
escrever uma homenagem aos patrões e aos colegas de trabalho,
estava decidido. Só não sabia bem o quê. Mas iria fazer.
Agradeceria, com certeza, a alguém em específico, que estava
sempre a postos a ajudar, apesar de sua destacada misantropia. E a
outro também, que sempre lhe dava dicas, que depois ele foi vendo
serem mesmo imprescindíveis para lidar com aquele lugar. Aquele lugar,
que se abria como uma casa agora, que se repetia como uma casa
agora.
Acordar era penoso, mas sempre fora mesmo antes do emprego.
E, depois, foi vendo como era bom estar acordado o dia todo,
exercitando-se de deveres feitos. Às vezes, sentia que decepcionava
em certo ponto ali ou acolá, mas logo refletia que esse era um defeito
seu. Queria perfeição demais. Tanto que em alguns dias até
desanimava... Mas, no outro, tudo voltava às rotinas.
Finalmente, trabalhar estava funcionando. Daí a homenagem.
Pois para ele, sempre tão desconfiado, sentir-se acolhido era algo que
merecia recompensa. Quer dizer, nunca pensara assim, mas agora essa
vontade contente lhe surgiu. E ele não sabia outra forma de expressar a
gratidão. Sob uma forma mais espontânea e natural ele ficaria
encabulado. E não seria isso ainda resquícios de desconfianças?
Pensou. Mas logo abandonou a dúvida. Não, não, era apenas cautela.
Mas, por quê? Começou a suar as mãos.
Em casa, a mulher estranhava a apreensão na frente do
computador, com o editor de texto aberto. Ele não era de ficar assim
estranho desse jeito. Nunca foi. Mas a mulher só ficou reparando de
longe mesmo. Sentia uma angústia vendo-o assim concentrado, mas
pensava que fosse alguma incumbência do trabalho. E era, de certa
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forma. Aquilo virou obsessão. A escrita não saía. Ele pensava, pensava,
até ficar nervoso.
Começou, então, a ir estressado para o escritório. E somente lá,
aos poucos, é que ele ia se acalmando. Ou melhor, era uma gradação
ainda misteriosa para ele. O agito interno parava. E ele ia ficando meio
que sedado. Sedado, mas não anestesiado. Pois doía. Aquilo doía de
uma forma absurdamente desnecessária. E ele sentia pela primeira vez
essa dor charmosa de ter flagrado algo na mente e não conseguir
repelir para o papel. Aquilo era um peso, uma agonia. Foi ficando
distante, foi se sentindo sozinho...
Até que, em casa, a mulher, diante da repetição desproporcional
daquilo, tomou coragem e procurou saber, de uma vez por todas, do
que se tratava. Mas ele relutava como quem aperta forte os lábios para
não mostrar o que está mastigando. E ela insistia, como sabia insistir, até
ele ficar bem irritado, ela o conhecia, até ele desabar sua muralha para
ela, como de costume.
Depois, vendo-a ler, pensou que seria até bom uma leitora para
aquilo. Pois essa coisa toda não parecia ter futuro com ele sozinho.
Estava mais para um devaneio daqueles bem fortes, incoerentes e
passageiros; sem testemunhas, sugados pelo filtro das coisas
imperceptíveis e insignificantes. E o que ele sentia não era bem um
bloqueio, mas um engasgo maluco, misturado a gostos de clipes, de
mesas, de documentos, de óculos... Talvez ela desbloqueasse tudo com
aqueles seus olhos que sempre sabiam como olhar.
Ele alertara logo que não precisaria ser nada descomunal. Era só
uma coisinha que sensibilizasse. Enquanto ela lia e ajudava como quem
ajuda em um trabalho prático e sério, ele ficava imaginando os colegas
admirados pelo talento secreto de poeta e o patrão satisfeito por ver
aquela originalidade na firma.
Depois de semanas, enfim, saiu. A mulher aplaudiu. Ela dera os
seus pitacos. Ficou bem arrumadinho, fácil de ler. Talentos de
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advogada. Porém, depois que imprimiu, ele não levou logo. Guardou
em uma gaveta para pegar logo mais. E ficou nisso: todo dia pegava e
colocava de novo lá. O que temia? Talvez fosse uma antiga
inconstância que sempre lhe acometia nesses momentos. Que
momentos? O que ele fazia? Aonde ele se carregava com uma ideia
assim impensada, infantil? Ele dizia. Mas a cada dia ele via e sentia que
os colegas mereciam o tal agradecimento, que ele não conseguiria
jamais expressar pessoalmente e que, por isso, estava até se achando
antipático já. E esse sentimento só piorou depois da homenagem
pronta, guardada em casa, cada vez mais amassada e abandonada
no quarto.
Foi em uma segunda-feira, então, que é o dia da novidade do
espírito, o dia de algo lá no interior suspeitar de qualquer mudança, o
dia daquela preguiça, mas, por isso mesmo, da coragem, do pavor
cristalizado, sacudido e gelado, de coisas aleatórias sendo repousadas,
assentadas, que ele se revolveu. Meio disperso. Na verdade quem
resolveu foi o corpo mal acordado, do qual a mente se aproveitou sem
pensar. Nada era muito claro, algo nele sentia que só a insensatez
levaria isso adiante. Mas nele, só existia a homenagem. Algo que havia
construído, afinal. Uma intimidade de si para si confundida com um
poder desejado. E era um texto bonito, todo suspirado para fora. Quase
um acalanto. Pensou no sorriso discreto do patrão, na gargalhada do
colega de brincadeiras. Suspirou mais alguma coisa que ainda estava
circulando por dentro e partiu. Colocou no bolso e não tirou dessa vez.
Pois tinha que ser hoje, do contrário, estaria sendo o maior dos ingratos.
Logo que chegou à repartição, sentiu que estava sendo notado
por todo mundo. Seria isso efeito da ocultação? Natural que fosse. O
prestativo colega logo lhe fez uma brincadeira e um elogio. Sua mão
suava. Tocou no bolso. Viu o chefe. Não seria tudo aquilo ridículo
demais? E se fosse ridículo? Ou pior, se não fosse nada? Se não fizesse
efeito algum e fosse subitamente esquecido? Todo inseguro, todo
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incerto e desajeitado, ele convivia com esses pavores. Pegou o papel.
Olhou para todo lado para confirmar se estava sendo vigiado mesmo.
Não estava. Ninguém olhava. Quem sabe se ele deixasse o papel na
mesa do patrão e ficasse tudo acabado? Seria mais fácil. Não, não, isso
não valeria. Seria covarde, pior até do que qualquer nulidade. E
também podia originar algum mal entendido. E se comentasse com
aquele colega antes? Podia ser uma boa ideia... Mas logo temeu ser
imediatamente exposto. Guardou.
Só que era exposto que teria de ser. Bem, pensou, se tinha de ser,
que fosse, então, na hora que o próprio fôlego permitisse. Assim,
manteria ainda o orgulho, que não podia perder. Ainda mais em uma
situação dessas, desarticulada, de quebrar qualquer um. Passou em
frente à sala da chefia, olhou e foi logo flagrado. Estava à vista. O
patrão deu o velho sorrisinho leve de sempre e o chamou. Agora, ele se
sentiria mais nervoso do que de costume. Tremeu e suspirou, tentando
ficar relaxado. Não tinha razão, tudo aquilo. Afinal, era só um papel, ele
poderia queimar, jogar fora, rasgar. Não era obrigado a nada, pensou.
E o chefe foi falando do trabalho, da rotina, naturalmente de certos
descuidos, de momentos que só foram testemunhados por alguns
colegas de risinhos. Aquilo foi ganhando texto. O chefe foi fazendo
recomendações, pedindo reflexão universal, para além da firma, para
além do medo, do pavor de tudo, pavor que foi pegando sua
respiração, intensificando seu olhar, boquiabrindo-o a partir da cabeça.
Ouvindo: é tanta ajuda dos seus colegas. O que é bom para você? O
que é bom para você? O que é bom para...? O eco, o ouvido, a
flutuação do espírito...
Que o chefe soubesse das relações entre os colegas, não seria
novidade, mas aquilo foi ganhando detalhes demais, até ficar estranho
de vez. Nesse momento, esquecera o que tinha no bolso. Esquecera até
que havia bolsos no mundo, nas calças... Sentou. Ouviu muito mais. E
um abatimento maior foi pairando, causando certo ensurdecimento.
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Como se ele estivesse mergulhando em um rio bem fundo,
devagarzinho. Tinha mãos, mas não as sentia. Era mais fácil a parte da
alma que equivale à mão sair sozinha, sem o corpo, para tentar tocar
em vão o papel onde residia a homenagem. Ah, a homenagem, agora
tão sólida como uma pedra naquele bolso.
Sair com desvios de olhares dos colegas, espalhados como
pingue-pongue entre as paredes, foi qualquer coisa sufocante. O papel
pesando no bolso de trás. Os passos lentos. Quase não chegaria ao
portão, se não fosse pela amálgama espacial que confere
superpoderes aos atordoados. Por um momento pensou se não iria
refletir sobre tudo aquilo. Se não iria comparar logo aquilo com outras
experiências. Mas não conseguiu nem formular um raciocínio. O
ensurdecimento permanecia, e zumbia. E ele arrastava uma cauda. A
homenagem... A homenagem... Que palavra vergonhosa... Corava.
A homenagem... Uma vontade fora dele, como um anjo ao redor,
pensou em voltar e entregá-la. Mas se isso tinha sentido, só o anjo
sentia, porque ele mesmo não sentia nada. Continuou saindo, saindo,
saindo, mesmo já na rua. Não sabia mais de onde sair. A decepção
arrasa mesmo, como se diz na língua. Ele constatou. O papel, ele pôs na
mão direita. O papel era amassado. Sim, parecia ter sido forjado já
amassado. Era algo assim que sentia. Era algo assim que continha
naquele papel. Algo amassado, desde o princípio. Como se desde a
vontade inicial, ele já adivinhasse tudo. Como em um sonho do destino,
que ele encarnou em um repente, fraco como é e sempre foi. E seus os
ombros encolhidos não o negavam. Afirmavam um drama estranho,
que se causasse asco em alguém, ele nem teria as forças de se
importar. Ele era a fraqueza, a própria frescura... Uma homenagem...
Em um momento, indagou-se distraidamente por que não estava
pensando no que dizer à mulher. Não obteve resposta. Mais, a própria
pergunta foi para o vácuo. A cada passo, ele se fazia mais traste, rumo
ao nada que seus olhos enxergavam. Um nada que apareceu até
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quando tentou ler o papel elevado ao sol. Papel que não largou da
mão direita, amassado, carregado como um sorriso de criança
interrompido, sendo levado pelo braço, como em um cortejo fúnebre,
muitos anos atrasado, de uma infância antiga, de berros distantes, de
umas paisagens distraídas, por onde se vai o homem com a sua
homenagem secreta escorregada no vento poeirento da cidade...
GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e
“Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores.
Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte
do primeiro volume impresso. Escreve no blog glauber-
manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada
Manuscritos. | [email protected]
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HERBERT DO NASCIMENTO| São Paulo, SP / Dublin, Irlanda
LÍQUIDO
“Amor no olhar”, ilustração de Lila Bitten
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– “E eu que nunca amei a ninguém”... – ele cantarolava na cama
quando foi interrompido por ela.
– Está errado. Não precisa de preposição.
– Obrigado. Estranho, né? Falta algo, se você tirar o ‘a’.
– Qual o melhor livro que você já leu?
– A Fera na Selva.
– O que é a Fera na Selva, pra você?
– A Fera é o Devir, é a dialética...
– E a dialética é o que?
– A dialética... a dialética...
Segurou a pia do banheiro como um náufrago segura uma boia, olhou-
se no espelho e respirou fundo. Mais um dia que começa.
Andava pela cidade meio sem destino, disse para si mesmo que ia
comprar material de arte, que ia fazer uma pintura pra colocar na
parede da sua casa, para ornamentar um pouco aquele espaço
espartano. Iria fazer uma deusa africana num pedaço de compensado.
A cor da madeira seria a pele dela e colaria pedaços de jornal e flores
e tudo ficaria bonito. Mas parou na frente da loja de material para
pintura, girou nos calcanhares e voltou pelo mesmo caminho.
Choveu, fez sol, ventou, choveu de novo.
– O que aconteceu com você? Você virou um porra-louca! Todo
rodeado por meninas nas fotos, os amigos fazendo declarações
públicas de amor...
– Você ainda está com o Bruno?
– Ele me mandou uma mensagem para a gente tomar uma cerveja um
dia desses. Mas ele some, fico irritada com isso. Eu estou saindo
recorrentemente com o Léo, ele é amigo do Gordo...
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– Gordo?...
– É, o Paul.
– Ah... O que significa saindo recorrentemente?
– Quase todo fim de semana. Esse sábado mesmo eu saí só com as
meninas, ele me pediu para dormir com ele depois. Não é estranho? Eu
cheguei lá toda suada, cheirando a álcool e cigarro e tinha jantinha
quentinha pra mim às cinco da manhã...
– Homem 2.0...
– Você devia fazer design. O Léo montou um estúdio, tá se dando bem!
– Quem é Léo?
– O amigo do Gordo...
Acordou suada, assustada, pensou ter gritado enquanto dormia. Já era
quase manhã, o céu já estava ficando claro. Não que ela tivesse visto,
seu quarto não tinha janelas. Subiu os degraus de pijama, bateu na
porta.
– Eu to com medo.
– Entra, fecha a porta, deita aqui.
– Obrigado.
– Isso, se cobre, tá frio. Quer que te abrace?
– Não, obrigada. Tá tudo bem agora.
– Qual é o problema?
– Eu tive um pesadelo.
– Quer me contar?
– Não, não quero falar sobre isso. Eu sou estranha, não sou? Eu não
consigo me definir enquanto pessoa.
– Sabe quando você vai pegar um copo d’água na cozinha?
– Sei.
– Aí você derruba o copo do nada e de repente tem água e vidro
espalhado pela sua cozinha inteira?
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– Sei.
– Isso é você.
Não se lembrava da última vez que tinha ficado sóbrio por tanto tempo.
Já fazia mais de vinte e quatro horas que não bebia. Tirou as botas e
acendeu um cigarro, com os pés na grama gelada.
– Tô me divertindo sem reflexão, agora. Vai dar merda, não vai?
– Por que daria?
– Sei lá...
– A gente só não dá certo um com o outro, não é?
– Você fazia chantagem emocional comigo e nunca foi capaz de
andar com as próprias pernas. E eu era uma idiota que corria da vida,
me escondia de mim mesma... mas se sete anos é não dar certo...
Era uma e meia da manhã e ela chorava baixinho sobre o travesseiro,
virada para a janela enquanto ele lia um livro qualquer. Um grande
clichê de novela.
– Não me olha assim! Você está me julgando! – ela brincou.
– Não, eu só estou te olhando! – ele sorriu.
– É porque eu estou comendo como um elefante? – ela sorriu.
– Eu não disse nada, mas você está fazendo um juízo pesado sobre si
mesma, moça...
– Você está o típico porra-louca mesmo. – riram juntos, terminaram o
café. Ela foi trabalhar e ele foi andar um pouco pela cidade.
HERBERT DO NASCIMENTO era um operário. Agora é escritor e tradutor. Já
participou de diversos concursos literários. Nunca venceu
nenhum. Pudera… Fanático por todo tipo de literatura e por prosear com
quem cruza seu caminho, é dessa experiência que toma inspiração para
escrever. Fugiu do calor do Brasil há um tempo para a Irlanda, de onde
escreve. Atualmente pensa em fugir do frio da Irlanda. Talvez para o Brasil. |
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JOÃO CERQUEIRA | Viana do Castelo, Portugal.
O DITADOR E A POESIA
“Repreensão poética”, ilustração de Lila Bitten
27
O ditador estava preocupado com o estado do país. Corriam
rumores de que o povo andava triste, tinha perdido a alegria de viver,
não demonstrava iniciativa. O ditador não podia compreender por que
tal sucedia. Afinal, ele tomava conta deles, dava-lhes tudo o que eles
precisavam, resolvia-lhes todos os problemas. ‘’Porquê?’’, perguntava-
se, ‘’o que terá acontecido?’’ Não sabia a resposta, mas tinha a
certeza de que só poderia ser algo muito grave. Os seus opositores –
todos presos – diziam que a razão era a falta de liberdade. ‘’Tolices’,
pensava o ditador, no seu país não existia nenhuma falta de liberdade,
toda a gente podia sair de casa, ir trabalhar e passear com a família
quando quisesse. Só as pessoas que criavam problemas é que eram
presas. Os restantes cidadãos eram até mais livres do que os povos de
outros países porque estavam protegidos por si.
Desesperado, reuniu-se com os seus três conselheiros.
- Quero saber o motivo do meu povo andar deprimido! A minha
reputação está em jogo. Dou-vos uma semana para me apresentardes
relatórios.
Os conselheiros olharam uns para os outros assustados.
- Os motivos são complexos, senhor presidente… - disse um deles.
- A culpa é dos nossos inimigos… - disse outro.
- O povo é assim mesmo, nunca está contente com nada… - disse
o terceiro conselheiro.
- Calai-vos – gritou o ditador. Quero provas concretas. E se dentro
de uma semana não conseguirdes descobrir o verdadeiro motivo, ides
todos para a cadeia. Está encerrada a sessão.
Uma semana depois o ditador voltou a reunir-se com os três
conselheiros. Estavam pálidos, com olheiras e mais magros. O ditador
mandou-os sentar e começou a interrogá-los.
- Começas tu – e apontou o dedo a um dos homens.
O visado estremeceu, engoliu em seco, e só então falou.
28
- Senhor presidente… estudei a fundo o problema e cheguei à
conclusão de que o povo anda deprimido por causa… por causa do
aquecimento global…
- Idiota. Guardas, prendam-no! – gritou o ditador. E agora fala tu –
e apontou o dedo a outro conselheiro.
Este fechou os olhos e pareceu entoar uma reza antes de falar.
- Senhor presidente… fiz uma pesquisa entre os cidadãos e conclui
que… que as pessoas estão preocupadas com o seu estado de
saúde…
- Quem vai ter problemas de saúde és tu. Guardas, prendam-no.
Sabendo-se perdido, o terceiro conselheiro aceitou o seu destino e, de
entre as várias teorias que tinha inventado para agradar ao ditador,
escolheu aquela que lhe pareceu mais disparatada. Pelo menos,
gozaria um pouco com ele.
- Senhor presidente, a razão é a poesia…
O ditador não contava com aquilo.
- O quê?
- Sim, senhor presidente. O povo anda a ler demasiada poesia e
depois fica triste.
O ditador olha-o desconfiado.
- A poesia põe as pessoas tristes? Eu pensava que os poetas
falavam de amor, felicidade, gozo da vida…
- Alguns poetas sim, mas os nossos só compõem versos
deprimentes. Ouça este:
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
29
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...1
- Realmente é horrível! Até a mim me deprime.
- Está a ver? É esta a verdadeira razão do povo estar infeliz.
- Malditos poetas. Eu bem sabia que havia alguma coisa errada
com estes tipos. Que tipo de homem é que perde o seu tempo a fazer
versos?
- São pessoas fracas, incapazes de suportar os problemas da vida.
Os homens verdadeiros, como o senhor presidente, pegam em armas e
lutam. Os poetas baixam os braços e choram. A poesia é isso mesmo:
uma choradeira sem fim.
- Tens razão, os poetas são uns desgraçados que corrompem a
sociedade.
- Muitos deles suicidam-se para provarem que a vida não tem
sentido. Por muito que um governante faça, os poetas deitam tudo
abaixo. E basta-lhes uma caneta e uma folha de papel…
- Nunca pensei que pudesse ter um inimigo assim.
- A poesia é a maior ameaça ao seu governo, senhor presidente.
Os outros opositores dizem o que pensam, são previsíveis, podemos
controlá-los. Os poetas, não, dissimulam as suas intenções e nunca
sabemos o que andam a tramar.
- A poesia é uma arma…
- Eu diria que é um veneno…
- A partir de hoje, acabaram-se os poemas. Prende esses tipos!
No dia seguinte, todos os poetas e poetisas que tinham publicado
livros ou escrito versos para revistas e jornais foram presos. Foi decretado
que doravante a poesia, escrita ou declamada, ficava proibida. A
posse destes livros seria considerada um acto de terrorismo. A
1 Fernando Pessoa – Tenho dó das estrelas.
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população foi obrigada a entregá-los e fez-se uma grande fogueira
numa praça. Pelo ar enrolaram-se versos de fumo.
O ditador fez algumas aparições públicas e comprovou que já se
notavam algumas melhorias no humor da população. Viu até uma
adolescente a sorrir. ‘’Isto leva algum tempo, mas daqui a alguns meses
já deverão ser felizes outra vez’’ – disse para consigo. Ter erradicado a
poesia fora a melhor decisão da sua vida.
Foi então que numa festa em honra de um diplomata recém-
chegado conheceu Madalena, a sua esposa. Era uma ruiva de olhos
verdes, alta e elegante. Tinha um vestido azul colado ao corpo. O
ditador nunca vira uma mulher assim. A voz dela silenciou o barulho à
volta. O toque da sua mão deixou-o arrepiado. Durante o serão, seguiu-
a com os olhos, tentou manter-se perto dela, mas não foi mais capaz de
lhe falar. O coração atravessava-se-lhe na garganta e a boca fechava-
se como uma cela.
Quando se deitou sonhou com ela o resto da noite.
No dia seguinte mandou chamar o único conselheiro que lhe
restava.
- Eu quero a mulher do embaixador. A ruiva…
O conselheiro percebeu que estava de novo em apuros.
- Senhor presidente, esta mulher é diferente das outras. Não pode
raptar a esposa de um diplomata. Haveria uma guerra…
O ditador ficou a olhar para o chão. Sem muita convicção,
perguntou.
- E qual é o problema?
- O problema, senhor presidente, é que o país dele é mais forte do
que o nosso.
O ditador coçou o queixo durante alguns segundos.
- E se ela vier ter comigo de livre vontade? Já não haverá nenhum
problema, pois não?
- Nesse caso, suponho que não…
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O ditador dá uma gargalhada.
- Pois então, será fácil. Como poderá ela resistir-me?
- Sim, como poderá ela resistir-lhe…?
Nesse mesmo dia, o ditador enviou um convite ao embaixador
para uma festa dentro uma semana. Chamou o seu alfaiate para lhe
fazer um fato novo, deixou que o barbeiro lhe aparasse as sobrancelhas
e, pela primeira vez na vida, mandou comprar um perfume.
Madalena apresentou-se com um vestido preto e uns sapatos de
tacão alto. O seu cabelo parecia estar em chamas e os seus olhos
cintilavam como pirilampos. O ditador achou-a ainda mais bela. Como
o conselheiro fora encarregado de entreter o marido, ficou com o
caminho livre. E desta vez não lhe faltou a coragem para a abordar.
Convidou-a a sentar-se numa varanda com vista para o mar e
ofereceu-lhe champanhe. Depois, conservou com ela sobre os seus
temas favoritos: o governo do país, as medidas em prol dos cidadãos, o
futuro da humanidade.
Estava tudo a correr bem quando ela disse algo inesperado.
- Se realmente deseja o bem do seu povo, deve libertar
imediatamente os presos políticos.
O ditador ficou perplexo.
- Mas não existem presos políticos no meu país. Eu apenas prendo
pessoas perigosas para a sociedade.
Madalena levanta-se. A brisa espalha-lhe os cabelos.
- Se não prometer que vai libertar essas pessoas, não poderei
voltar a conversar consigo.
O ditador abre os braços e entorna a garrafa de champanhe.
- Está bem, prometo. Se isso a faz feliz, amanhã mando libertá-los.
No fim da festa, o ditador estava radiante. Que importância tinha
libertar aqueles patetas? Dali a uns tempos voltaria a prendê-los de
novo. Por agora, o importante era agradar àquela deusa. Libertava até
os poetas, se ela lhe tivesse pedido.
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Dias depois, planeava o ditador o próximo passo para a seduzir –
uma nova festa? enviar-lhe flores? uma parada militar? - quando
recebe uma mensagem dos seus espiões: ‘’A mulher do embaixador
apanhou um avião e foi-se embora…’’. O ditador não quis acreditar -
devia haver algum engano. Como poderia aquela mulher tê-lo deixado
sem sequer se despedir? Estava praticamente seduzida.
Pegou no telefone e ligou para o embaixador.
- Senhor embaixador, disseram-me que a sua esposa partiu…
- Sim, não se adaptou ao clima e à comida…
O ditador deixou cair o auscultador. Nesse dia cancelou todos os
compromissos.
Nos dias seguintes o ditador continuou a isolar-se, dando ordens
para ninguém o incomodar quando se fechava no seu gabinete. Às
refeições comia pouco, mas bebia demais. Na cama enfrentava noites
de insónia. Quando sonhava, Madalena aparecia-lhe nos braços de
outros homens. Aos poucos, começou também a emagrecer, a ficar
pálido e a ganhar olheiras. Deitou fora o perfume. Vagueava pelo
palácio como um fantasma e ficava horas à varanda a olhar para o
mar. Se alguém lhe perguntava se precisava de algo, não respondia.
Mas, por vezes, falava sozinho. Por fim, desinteressou-se do governo do
país e deixou que o seu conselheiro tomasse decisões por ele.
Uma manhã, a porta do quarto do ditador abre-se num estrondo
e surge um grupo de soldados que lhe apontam metralhadoras. Atrás
deles estava o conselheiro.
- Informo-o que foi deposto. Agora o presidente sou eu. Vista-se
por que vai ser fuzilado.
O ditador pareceu aceitar a sua sorte e obedeceu sem um
protesto. Vestiu o fato novo e deixou-se algemar. Duas horas depois
estava morto.
O povo saiu à rua e deitou foguetes. Toda a gente sorria.
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No dia seguinte, estava o novo ditador a instalar-se no palácio
quando, ao abrir um armário, descobre uma caixa de marfim. Julgando
que poderiam estar ali documentos importantes, abriu-a. Encontrou
várias folhas escritas à mão e sentiu um aroma de perfume. Começou a
ler a primeira:
‘’Madalena, luz da minha vida
levaste contigo o meu coração….’’
JOÃO CERQUEIRA é doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto.
É autor de oito livros, entre eles A Tragédia de Fidel Castro, publicado nos EUA
com o título The Tragedy of Fidel Castro, que venceu diversos prêmios, como o
USA Best Book Awards 2013, Beverly Hills Book Awards 2014 e o Global Ebook
Awards 2014. Em 2015 será publicado em Espanha pela Funambulista, na Itália
pela Leone Editore, no Reino Unido pela Freight Books e na Argentina pela
Eduvim. Seus textos são publicados em uma série de revistas internacionais. |
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LUCIENE BERNARDES | Belo Horizonte, MG.
O VENDEDOR DE BALAS
“O desastre”, ilustração de Lila Bitten
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A mamãe não tinha com quem nos deixar e todos os dias nos
carregava atravessando a cidade para nos levar para casa. Já havia
me acostumado a ver e andar entre vultos que iam e viam sem parar,
imersos nas cores cinzentas dos prédios e do asfalto da cidade. Apesar
do movimento dos carros e ônibus que paravam e continuavam, era
tudo um silêncio absoluto. E mesmo com a multidão que seguia
desordenadamente por todas as direções, era um vazio tão grande
que a gente sentia o quão pequeno e minúsculo que éramos dentro da
imensidão.
Estávamos parados em um ponto de ônibus quando papai
chegou para nos encontrar. Agora estávamos completos e podíamos
seguir para a nossa casa. Passamos a esperar pela condução. Eu
estava ali, sempre atenta e à espreita vendo o movimentar e o parar
das pessoas, quando de repente uma criatura franzina me chamou a
atenção. Era um jovem rapaz branco, muito branco, quase pálido.
Tinha o cabelo liso escuro ensebado e mal cortado. A blusa encardida
de listras vestiam um tronco magrelo e envergado. As pernas finas e os
braços raquíticos combinavam terrivelmente com os traços profundos
de um rosto sem muita expressão.
Acompanhei com o olhar tal o que para mim foi como uma
aparição. Ele trazia uma velha mochila preta quase vazia pendurada
pelas costas, e à frente uma bandeja com muitas balas e chicletes
coloridos. E como se a vida fosse um incessante caminhar, parar e
balbuciar, ele caminhava não indiferente ao resto da multidão, quando
de repente veio em nossa direção. Ele parou ao lado de minha mãe e
balbuciou alguma coisa. Vi quando minha mãe, com seu aflito e
bondoso coração, olhou para os olhos tristes do moço e
silenciosamente buscou pelo meu pai que sacou uma moeda do bolso.
Então a mamãe comprou uma bala colorida para a gente.
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O moço recebeu a moeda e qual não foi a minha surpresa ao vê-
lo esboçar um sorriso grande, mesmo que por segundos fosse um
lampejo temporário. Pensei que fosse a primeira moeda que ele tivesse
ganhado no dia, ou talvez em longas horas. Mas depois descobri que foi
a última. O moço andou alguns passos com o rosto iluminado. Com
certeza foram poucos os que ouviram o estrondo do ônibus no corpinho
magro do jovem rapaz. Quase que tudo passou despercebido no
burburinho imenso da cidade se não fossem as balas coloridas que se
espalharam logo pelo chão. E como se anunciassem uma grande festa,
todas elas inocentes começaram a picar e a pular cada vez mais alto
até chegarem lá no meio do escuro do céu, iluminando a escuridão
numa infinita e brilhante explosão.
O acontecimento fez parar toda a cidade. Papai e mamãe nos
seguraram junto ao corpo com medo de nos perderem. Logo se
aglomerou uma multidão cinzenta de gente admirada e boquiaberta
assistindo ao espetáculo de luzes e cores. Mas quando o fogo se
apagou, as pessoas encabuladas consultaram os seus relógios,
tentaram algum balbucio com o vizinho e logo se puseram a marchar
os seus passos apressados em rumo aos seus trajetos.
Vi quando mamãe olhou para o papai e ele consentiu com a
cabeça. Ela entrou numa loja e conversou com a mulher do balcão.
Depois foi em direção aquele corpinho acabado. Parou um instante e
ficou em silêncio. Depois cobriu o moço com jornal velho. Quando ela
vinha em nossa direção começaram a chegar carros com sirenes e
luzes piscando, trazendo os homens de uniformes que cuidavam da
ordem da cidade. E também vieram aqueles engravatados com seus
microfones, como urubus. Então nós olhamos nos olhos e entendemos
que naquele dia a volta para casa seria diferente.
LUCIENE BERNARDES escreve para se esvaziar, para se sentir livre, até que
novamente novas histórias pululam ao redor querendo ganhar vida. Autora do
blog O Véu de Ìsis, quando brotam as palavras (oveudeisis.wordpress.com) |
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MARCILANE SANTOS | Santa Rita, PB.
ECO
“Somos um”, ilustração de Lila Bitten
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ECOA
ECOA A VOZ
A VOZ NO MURO
A VOZ NO MURO ESPALHA-SE
ESPALHA-SE A ALMA
ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR
ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR AO SENTIR
AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO
AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO
QUE ESTAVA PRESO
DAQUILO QUE ESTAVA
PRESO NO PEITO
E
QUE DO PEITO QUERIA SAIR
ECOA
ECOA E SOA
ECOA E SOA O ECO
ECOA E SOA O ECO NO VERSO
NO VERSO ECOA O SOPRO DAQUELA ALMA
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A ALMA
A ALMA SOA
O VERSO
O VERSO ECOA
SOA A ALMA
ECOA O VERSO.
MARCILANE SANTOS, 22 anos, natural do Rio de Janeiro – RJ, reside na Paraíba
desde a infância. Logo nesta fase da vida, se apaixonou pela literatura.
Costuma ler e escrever crônicas, poesias e contos. Em 2011 criou o blog
“Simples Inspirações”, onde publica trabalhos de sua autoria. Inspira-se em
seus próprios sentimentos e no cotidiano à sua volta. |
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RAFAEL ZACCA | Rio de Janeiro, RJ.
Um pinguim amanheceu
a febre dos turistas
na praia de Copacabana.
UM SONHO
“Centro das atenções”, ilustração de Lila Bitten
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Não tinha nado.
Não era frio.
Tinha um peixe podre na boca
enquanto sonhava
o nosso filho
um acumulado
de noites. Nasceria
já velho
calculando o tanto
de aviões
fracassados no Atlântico.
O super filho de todas as noites em que não fizemos amor.
Salvando o mundo, limpando o lixão –
Mas não tinha filho.
O pinguim, asa de tripa,
fingia o voo.
Todo sem jeito...
O amor doído nas cartilagens...
E as fotos dos turistas.
RAFAEL ZACCA é poeta e crítico literário. É doutorando em filosofia pela PUC-RJ. É
membro do corpo editorial da Revista Chão, integrante do Núcleo de Estudos da
Cultura no Capitalismo Contemporâneo (UFF) e participa da Oficina Experimental de
Poesia, no Rio de Janeiro. Dá oficinas de criação poética. Publicou o livro de poemas
Rafael Zacca | Kraft (Ed. Cozinha Experimental, 2015). | [email protected]
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INSTAGRAM | E-MAIL: [email protected]
Lila Bitten tem 18 anos e estuda design na UFSC. Se
interessa pelo desenho desde a infância e associa a ligação
com as artes à sua formação escolar de método Waldorf.
A artista utiliza principalmente a caneta nanquim,
misturando diversas técnicas e traços e privilegiando a
experimentação de outros materiais como a aquarela, o
grafite e a esferográfica.
Lila garante que continuará treinando e aprendendo
novas técnicas para cada vez mais conseguir passar pela sua
arte as sensações, sentimentos e pensamentos que lhe
inspiram.
LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil)
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PARCEIROS:
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: