revista subversa

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SUBVERSA GLAUBER COSTA | GERALDO LAVIGNE DE LEMOS ANDERSON S. FREIXO | CAROLINE POLICARPO MARCILANE SANTOS | HERBERT DO NASCIMENTO LUCIENE BERNARDES | ELLEN MARIA VASCONCELLOS RAFAEL ZACCA | JOÃO CERQUEIRA Vol. 4 | n.º 07 | abril de 2016 ISSN 2359-5817 Ilustração | LILA BITTEN

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Subversa do centro das atenções

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Page 1: Revista Subversa

SUBVERSA

GLAUBER COSTA | GERALDO LAVIGNE DE LEMOS

ANDERSON S. FREIXO | CAROLINE POLICARPO

MARCILANE SANTOS | HERBERT DO NASCIMENTO

LUCIENE BERNARDES | ELLEN MARIA VASCONCELLOS

RAFAEL ZACCA | JOÃO CERQUEIRA

Vol. 4 | n.º 07 | abril de 2016 ISSN 2359-5817

Ilustração | LILA BITTEN

Page 2: Revista Subversa

2

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

[email protected]

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 4 | n.º 07

© originalmente publicado em 15 de abril de 2016 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

LILA BITTEN| INSTAGRAM | [email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

Page 3: Revista Subversa

3

ANDERSON S. FREIXO | MITO DA CARTEIRA | 6

CAROLINE POLICARPO | PERSONA(GEM) | 8

ELLEN MARIA VASCONCELLOS | PANORÂMICA | 11

GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | A MEU TEMPO | 13

GLAUBER COSTA | A HOMENAGEM SECRETA | 15

HERBERT DO NASCIMENTO | LÍQUIDO | 22

JOÃO CERQUEIRA | O DITADOR E A POESIA | 26

LUCIENE BERNARDES | O VENDEDOR DE BALAS| 34

MARCILANE SANTOS | ECO | 37

RAFAEL ZACCA | UM SONHO | 40

SOBRE LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil) | 42

SUBVERSA

Page 4: Revista Subversa

4

EDITORIAL

"Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referência

'ontológica' do humano ao livro que se toma como fonte de informações, ou

como 'utensílio' para aprender, como um manual, quando é, na verdade,

uma modalidade do nosso ser. Com efeito, ler é manter-se acima do realismo -

ou da política -, da preocupação por nós mesmos, sem desembocar,

contudo, nas boas intenções das nossas belas almas, nem na idealidade

normativa do que 'deve ser'".

Emmanuelle Lévinas, Ética e Infinito

Número 7, volume 4. Prestes a completar dois anos de projeto, essa Subversa

conta histórias sobre ser o centro das atenções: um escritor que não consegue

escrever, um pinguim em plena praia de Copacabana, um ditador que quer proibir a

poesia, e por aí vai.

Um texto literário é uma forma de centro de diversas atenções. A grande

liberdade da leitura é poder introduzir esse centro de maneira mais ou menos

dogmática, mais ou menos agressiva, com menor ou maior atenção, etc. Tentar

estabelecer uma única função para a literatura é, ao mesmo tempo, afirmar a sua

falta de liberdade, o corte das suas asas. Um dos problemas das discussões sobre o

que é literatura é esse: para dizer o que é literatura é preciso negar o que ela não é?

O que tentamos fazer na Subversa é permitir que a literatura simplesmente

exista, que exista alguém para recebê-la e para trabalhar por sua própria liberdade e

autonomia. Talvez essa seja melhor forma dessas páginas continuarem a refletir as

mudanças e as contradições sociais e individuais pelas quais constantemente

passamos. É isso que a literatura é, afinal: um reflexo que nunca acaba.

Com muito gosto, convidamos a todos a apreciar e a colocar como centro de

sua atenção as imagens que a artista Lila Bitten oferece ao número. Com apenas 18

anos, iniciando o curso de design da UFSC, Lila mostra nas ilustrações o cuidado e a

profundidade da ligação que estabeleceu com os textos.

Vocês podem conhecer mais trabalhos da @lilabitten e acompanhar a

@revistasubversa no Instagram! ;) Desejamos a todos uma ótima leitura.

As editoras

Page 6: Revista Subversa

6

ANDERSON S. FREIXO | Salvador, BA.

MITO DA CARTEIRA

“Prisão de caixa”, ilustração de Lila Bitten

Page 7: Revista Subversa

7

O último cigarro da carteira

Viu, um a um, seus amigos serem puxados para fora

E sentiu o cheiro da fumaça

Do corpo queimado

De seus 19 colegas de quarto

Gelou de medo

Quando sentiu um par de dedos

Puxando ele

Pelo rabo

Já com a cabeça pegando fogo

O último cigarro

Que teve o tempo hábil pra ser sábio

Consolou-se

Sacudido e aturdido no universo circundante:

"É melhor que viver dentro da caixa"

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente

em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outras

revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente

publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página

do Facebook (Zona do Freixo). | [email protected]

Page 8: Revista Subversa

8

CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

PERSONA(GEM)

“Agonia”, ilustração de Lila Bitten

Page 9: Revista Subversa

9

essa garota que precisa tanto cre(r)

(scer)

ser

tornar-se

essa garota que precisa tanto ir

embora

essa garota tão necessária

e necessitada

sempre com medo das próprias perguntas

do próprio fascínio intenso demais

ela nunca pediria pra ser salva

ela tentaria salvar (-se) mas talvez fracassasse

essa garota que precisa tanto entender

os passos

as asas

a poeira da estrada

a insuficiência dos mapas

imprescindíveis

essa garota que não sabe o quanto está perto

-(e longe)

de si

essa garota que ainda não percebeu que o inalcançável

pode estar tocando-a

e mesmo assim ser inalcançável

Page 10: Revista Subversa

10

essa garota com medo de perder-se nos espelhos e mapas

precisa perder-se

antes

de encontrar-se

(re)criar-se

descobrir-se ela, outra, tantas,

e enfim fazer-se

quem quiser

(ver-se no espelho, enfim, e enfim entender os mapas)

essa garota, tão eu, é outra,

é uma quase personagem

que ganhou vida

e tornou-se a minha

CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas,

publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias

coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Ponto Reverso, O Corvo -

um livro colaborativo e King Edgar Hotel. Também tem publicações nas

revistas Trasgo e Friday. É fascinada por astronomia, aspirante a

desbravadora de universos (inclusive os inventados) e escreve por

necessidade existencial. | [email protected]

Page 11: Revista Subversa

11

ELLEN MARIA VASCONCELLOS| São Paulo, SP.

PANORÂMICA

“Padrão repetitivo”, ilustração de Lila Bitten

Page 12: Revista Subversa

12

Apesar de não originais, hoje, eles se bastavam.

Tantas vezes decepcionados pela previsível repetitividade do mundo

hoje se surpreendiam com a textura de uma pele.

Ora, todas as peles não são apenas células mortas?

Não enxergam o contato entre elas ou o que as agarram ainda

a outras mais profundas camadas

mas de fato, também não há nada de original nelas.

Uma pele, um pouco queimada, da mesma cor que tantas outras

com pelos, pintas e pontos

além de pequenas cicatrizes, marcas de obstruções de poros e

picadas...

Apesar de não originais, velhos e cansados

e necessitados de uma camada não muito fina de vidro, lente de

aumento

em armação de aço que já começara a perder a tinta,

enxergam essa pele

como se nunca houvesse outra pele

retida por essas retinas, nunca houvera passado nenhuma imagem

e ainda que datassem mais de quarenta anos de vida,

luz, sombra, poeira e lágrimas,

aquela pele ademais histórica e impregnada

de memória de outras miradas

refúgio de alguns corpos e comida para ácaros,

recebia o presente de ser admirada, recém-nascida,

pelos olhos deste homem.

ELLEN MARIA VASCONCELLOS é autora do livro de poemas bilíngue

(português/espanhol) Chacharitas & gambuzinos (Patuá, 2015) e tradutora do

livro Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner (book,e-galáxia).

Tem textos e traduções de poetas de toda América publicados em diversas

antologias e revistas impressas e digitais no Brasil, Chile, México e Espanha.

Colaboradora da Malha Fina Cartonera, e editora da Revista Adelitas.

http://ellenmartins.wix.com/home [email protected]

Page 13: Revista Subversa

13

GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | Ilhéus, BA.

A MEU TEMPO

“A vida no tempo”, ilustração de Lila Bitten

Page 14: Revista Subversa

14

faço muito uso do quando

porque o tempo me parece inconstante

às vezes é água represada

por outras, atira-se como cachoeira

sabido desta verdade

não costumo confiar nas máquinas

pois meu tempo confunde os relógios

confio, sim, na linha da vida

que, tesa, dispara o carretel

e, frouxa, para-o

GERALDO LAVIGNE DE LEMOS é membro da Academia de Letras de Ilhéus,

autor dos livros À Espera do Verão (2011), amenidades (2014) e alguma

sinceridade (2014), todos de poesia e pela Editora Mondrongo. |

[email protected] | INSTAGRAM: @GERALAVIGNE

Page 15: Revista Subversa

15

GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

A HOMENGEM SECRETA

“Frustração”, ilustração de Lila Bitten

Page 16: Revista Subversa

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Matutava, com o olhar para cima, querendo pegar a ideia do

que escrever. Precisava retribuir tamanha receptividade da firma.

Estava feliz, era bem aceito, como quase nunca tinha sido antes. Iria

escrever uma homenagem aos patrões e aos colegas de trabalho,

estava decidido. Só não sabia bem o quê. Mas iria fazer.

Agradeceria, com certeza, a alguém em específico, que estava

sempre a postos a ajudar, apesar de sua destacada misantropia. E a

outro também, que sempre lhe dava dicas, que depois ele foi vendo

serem mesmo imprescindíveis para lidar com aquele lugar. Aquele lugar,

que se abria como uma casa agora, que se repetia como uma casa

agora.

Acordar era penoso, mas sempre fora mesmo antes do emprego.

E, depois, foi vendo como era bom estar acordado o dia todo,

exercitando-se de deveres feitos. Às vezes, sentia que decepcionava

em certo ponto ali ou acolá, mas logo refletia que esse era um defeito

seu. Queria perfeição demais. Tanto que em alguns dias até

desanimava... Mas, no outro, tudo voltava às rotinas.

Finalmente, trabalhar estava funcionando. Daí a homenagem.

Pois para ele, sempre tão desconfiado, sentir-se acolhido era algo que

merecia recompensa. Quer dizer, nunca pensara assim, mas agora essa

vontade contente lhe surgiu. E ele não sabia outra forma de expressar a

gratidão. Sob uma forma mais espontânea e natural ele ficaria

encabulado. E não seria isso ainda resquícios de desconfianças?

Pensou. Mas logo abandonou a dúvida. Não, não, era apenas cautela.

Mas, por quê? Começou a suar as mãos.

Em casa, a mulher estranhava a apreensão na frente do

computador, com o editor de texto aberto. Ele não era de ficar assim

estranho desse jeito. Nunca foi. Mas a mulher só ficou reparando de

longe mesmo. Sentia uma angústia vendo-o assim concentrado, mas

pensava que fosse alguma incumbência do trabalho. E era, de certa

Page 17: Revista Subversa

17

forma. Aquilo virou obsessão. A escrita não saía. Ele pensava, pensava,

até ficar nervoso.

Começou, então, a ir estressado para o escritório. E somente lá,

aos poucos, é que ele ia se acalmando. Ou melhor, era uma gradação

ainda misteriosa para ele. O agito interno parava. E ele ia ficando meio

que sedado. Sedado, mas não anestesiado. Pois doía. Aquilo doía de

uma forma absurdamente desnecessária. E ele sentia pela primeira vez

essa dor charmosa de ter flagrado algo na mente e não conseguir

repelir para o papel. Aquilo era um peso, uma agonia. Foi ficando

distante, foi se sentindo sozinho...

Até que, em casa, a mulher, diante da repetição desproporcional

daquilo, tomou coragem e procurou saber, de uma vez por todas, do

que se tratava. Mas ele relutava como quem aperta forte os lábios para

não mostrar o que está mastigando. E ela insistia, como sabia insistir, até

ele ficar bem irritado, ela o conhecia, até ele desabar sua muralha para

ela, como de costume.

Depois, vendo-a ler, pensou que seria até bom uma leitora para

aquilo. Pois essa coisa toda não parecia ter futuro com ele sozinho.

Estava mais para um devaneio daqueles bem fortes, incoerentes e

passageiros; sem testemunhas, sugados pelo filtro das coisas

imperceptíveis e insignificantes. E o que ele sentia não era bem um

bloqueio, mas um engasgo maluco, misturado a gostos de clipes, de

mesas, de documentos, de óculos... Talvez ela desbloqueasse tudo com

aqueles seus olhos que sempre sabiam como olhar.

Ele alertara logo que não precisaria ser nada descomunal. Era só

uma coisinha que sensibilizasse. Enquanto ela lia e ajudava como quem

ajuda em um trabalho prático e sério, ele ficava imaginando os colegas

admirados pelo talento secreto de poeta e o patrão satisfeito por ver

aquela originalidade na firma.

Depois de semanas, enfim, saiu. A mulher aplaudiu. Ela dera os

seus pitacos. Ficou bem arrumadinho, fácil de ler. Talentos de

Page 18: Revista Subversa

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advogada. Porém, depois que imprimiu, ele não levou logo. Guardou

em uma gaveta para pegar logo mais. E ficou nisso: todo dia pegava e

colocava de novo lá. O que temia? Talvez fosse uma antiga

inconstância que sempre lhe acometia nesses momentos. Que

momentos? O que ele fazia? Aonde ele se carregava com uma ideia

assim impensada, infantil? Ele dizia. Mas a cada dia ele via e sentia que

os colegas mereciam o tal agradecimento, que ele não conseguiria

jamais expressar pessoalmente e que, por isso, estava até se achando

antipático já. E esse sentimento só piorou depois da homenagem

pronta, guardada em casa, cada vez mais amassada e abandonada

no quarto.

Foi em uma segunda-feira, então, que é o dia da novidade do

espírito, o dia de algo lá no interior suspeitar de qualquer mudança, o

dia daquela preguiça, mas, por isso mesmo, da coragem, do pavor

cristalizado, sacudido e gelado, de coisas aleatórias sendo repousadas,

assentadas, que ele se revolveu. Meio disperso. Na verdade quem

resolveu foi o corpo mal acordado, do qual a mente se aproveitou sem

pensar. Nada era muito claro, algo nele sentia que só a insensatez

levaria isso adiante. Mas nele, só existia a homenagem. Algo que havia

construído, afinal. Uma intimidade de si para si confundida com um

poder desejado. E era um texto bonito, todo suspirado para fora. Quase

um acalanto. Pensou no sorriso discreto do patrão, na gargalhada do

colega de brincadeiras. Suspirou mais alguma coisa que ainda estava

circulando por dentro e partiu. Colocou no bolso e não tirou dessa vez.

Pois tinha que ser hoje, do contrário, estaria sendo o maior dos ingratos.

Logo que chegou à repartição, sentiu que estava sendo notado

por todo mundo. Seria isso efeito da ocultação? Natural que fosse. O

prestativo colega logo lhe fez uma brincadeira e um elogio. Sua mão

suava. Tocou no bolso. Viu o chefe. Não seria tudo aquilo ridículo

demais? E se fosse ridículo? Ou pior, se não fosse nada? Se não fizesse

efeito algum e fosse subitamente esquecido? Todo inseguro, todo

Page 19: Revista Subversa

19

incerto e desajeitado, ele convivia com esses pavores. Pegou o papel.

Olhou para todo lado para confirmar se estava sendo vigiado mesmo.

Não estava. Ninguém olhava. Quem sabe se ele deixasse o papel na

mesa do patrão e ficasse tudo acabado? Seria mais fácil. Não, não, isso

não valeria. Seria covarde, pior até do que qualquer nulidade. E

também podia originar algum mal entendido. E se comentasse com

aquele colega antes? Podia ser uma boa ideia... Mas logo temeu ser

imediatamente exposto. Guardou.

Só que era exposto que teria de ser. Bem, pensou, se tinha de ser,

que fosse, então, na hora que o próprio fôlego permitisse. Assim,

manteria ainda o orgulho, que não podia perder. Ainda mais em uma

situação dessas, desarticulada, de quebrar qualquer um. Passou em

frente à sala da chefia, olhou e foi logo flagrado. Estava à vista. O

patrão deu o velho sorrisinho leve de sempre e o chamou. Agora, ele se

sentiria mais nervoso do que de costume. Tremeu e suspirou, tentando

ficar relaxado. Não tinha razão, tudo aquilo. Afinal, era só um papel, ele

poderia queimar, jogar fora, rasgar. Não era obrigado a nada, pensou.

E o chefe foi falando do trabalho, da rotina, naturalmente de certos

descuidos, de momentos que só foram testemunhados por alguns

colegas de risinhos. Aquilo foi ganhando texto. O chefe foi fazendo

recomendações, pedindo reflexão universal, para além da firma, para

além do medo, do pavor de tudo, pavor que foi pegando sua

respiração, intensificando seu olhar, boquiabrindo-o a partir da cabeça.

Ouvindo: é tanta ajuda dos seus colegas. O que é bom para você? O

que é bom para você? O que é bom para...? O eco, o ouvido, a

flutuação do espírito...

Que o chefe soubesse das relações entre os colegas, não seria

novidade, mas aquilo foi ganhando detalhes demais, até ficar estranho

de vez. Nesse momento, esquecera o que tinha no bolso. Esquecera até

que havia bolsos no mundo, nas calças... Sentou. Ouviu muito mais. E

um abatimento maior foi pairando, causando certo ensurdecimento.

Page 20: Revista Subversa

20

Como se ele estivesse mergulhando em um rio bem fundo,

devagarzinho. Tinha mãos, mas não as sentia. Era mais fácil a parte da

alma que equivale à mão sair sozinha, sem o corpo, para tentar tocar

em vão o papel onde residia a homenagem. Ah, a homenagem, agora

tão sólida como uma pedra naquele bolso.

Sair com desvios de olhares dos colegas, espalhados como

pingue-pongue entre as paredes, foi qualquer coisa sufocante. O papel

pesando no bolso de trás. Os passos lentos. Quase não chegaria ao

portão, se não fosse pela amálgama espacial que confere

superpoderes aos atordoados. Por um momento pensou se não iria

refletir sobre tudo aquilo. Se não iria comparar logo aquilo com outras

experiências. Mas não conseguiu nem formular um raciocínio. O

ensurdecimento permanecia, e zumbia. E ele arrastava uma cauda. A

homenagem... A homenagem... Que palavra vergonhosa... Corava.

A homenagem... Uma vontade fora dele, como um anjo ao redor,

pensou em voltar e entregá-la. Mas se isso tinha sentido, só o anjo

sentia, porque ele mesmo não sentia nada. Continuou saindo, saindo,

saindo, mesmo já na rua. Não sabia mais de onde sair. A decepção

arrasa mesmo, como se diz na língua. Ele constatou. O papel, ele pôs na

mão direita. O papel era amassado. Sim, parecia ter sido forjado já

amassado. Era algo assim que sentia. Era algo assim que continha

naquele papel. Algo amassado, desde o princípio. Como se desde a

vontade inicial, ele já adivinhasse tudo. Como em um sonho do destino,

que ele encarnou em um repente, fraco como é e sempre foi. E seus os

ombros encolhidos não o negavam. Afirmavam um drama estranho,

que se causasse asco em alguém, ele nem teria as forças de se

importar. Ele era a fraqueza, a própria frescura... Uma homenagem...

Em um momento, indagou-se distraidamente por que não estava

pensando no que dizer à mulher. Não obteve resposta. Mais, a própria

pergunta foi para o vácuo. A cada passo, ele se fazia mais traste, rumo

ao nada que seus olhos enxergavam. Um nada que apareceu até

Page 21: Revista Subversa

21

quando tentou ler o papel elevado ao sol. Papel que não largou da

mão direita, amassado, carregado como um sorriso de criança

interrompido, sendo levado pelo braço, como em um cortejo fúnebre,

muitos anos atrasado, de uma infância antiga, de berros distantes, de

umas paisagens distraídas, por onde se vai o homem com a sua

homenagem secreta escorregada no vento poeirento da cidade...

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e

“Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores.

Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte

do primeiro volume impresso. Escreve no blog glauber-

manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada

Manuscritos. | [email protected]

Page 22: Revista Subversa

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HERBERT DO NASCIMENTO| São Paulo, SP / Dublin, Irlanda

LÍQUIDO

“Amor no olhar”, ilustração de Lila Bitten

Page 23: Revista Subversa

23

– “E eu que nunca amei a ninguém”... – ele cantarolava na cama

quando foi interrompido por ela.

– Está errado. Não precisa de preposição.

– Obrigado. Estranho, né? Falta algo, se você tirar o ‘a’.

– Qual o melhor livro que você já leu?

– A Fera na Selva.

– O que é a Fera na Selva, pra você?

– A Fera é o Devir, é a dialética...

– E a dialética é o que?

– A dialética... a dialética...

Segurou a pia do banheiro como um náufrago segura uma boia, olhou-

se no espelho e respirou fundo. Mais um dia que começa.

Andava pela cidade meio sem destino, disse para si mesmo que ia

comprar material de arte, que ia fazer uma pintura pra colocar na

parede da sua casa, para ornamentar um pouco aquele espaço

espartano. Iria fazer uma deusa africana num pedaço de compensado.

A cor da madeira seria a pele dela e colaria pedaços de jornal e flores

e tudo ficaria bonito. Mas parou na frente da loja de material para

pintura, girou nos calcanhares e voltou pelo mesmo caminho.

Choveu, fez sol, ventou, choveu de novo.

– O que aconteceu com você? Você virou um porra-louca! Todo

rodeado por meninas nas fotos, os amigos fazendo declarações

públicas de amor...

– Você ainda está com o Bruno?

– Ele me mandou uma mensagem para a gente tomar uma cerveja um

dia desses. Mas ele some, fico irritada com isso. Eu estou saindo

recorrentemente com o Léo, ele é amigo do Gordo...

Page 24: Revista Subversa

24

– Gordo?...

– É, o Paul.

– Ah... O que significa saindo recorrentemente?

– Quase todo fim de semana. Esse sábado mesmo eu saí só com as

meninas, ele me pediu para dormir com ele depois. Não é estranho? Eu

cheguei lá toda suada, cheirando a álcool e cigarro e tinha jantinha

quentinha pra mim às cinco da manhã...

– Homem 2.0...

– Você devia fazer design. O Léo montou um estúdio, tá se dando bem!

– Quem é Léo?

– O amigo do Gordo...

Acordou suada, assustada, pensou ter gritado enquanto dormia. Já era

quase manhã, o céu já estava ficando claro. Não que ela tivesse visto,

seu quarto não tinha janelas. Subiu os degraus de pijama, bateu na

porta.

– Eu to com medo.

– Entra, fecha a porta, deita aqui.

– Obrigado.

– Isso, se cobre, tá frio. Quer que te abrace?

– Não, obrigada. Tá tudo bem agora.

– Qual é o problema?

– Eu tive um pesadelo.

– Quer me contar?

– Não, não quero falar sobre isso. Eu sou estranha, não sou? Eu não

consigo me definir enquanto pessoa.

– Sabe quando você vai pegar um copo d’água na cozinha?

– Sei.

– Aí você derruba o copo do nada e de repente tem água e vidro

espalhado pela sua cozinha inteira?

Page 25: Revista Subversa

25

– Sei.

– Isso é você.

Não se lembrava da última vez que tinha ficado sóbrio por tanto tempo.

Já fazia mais de vinte e quatro horas que não bebia. Tirou as botas e

acendeu um cigarro, com os pés na grama gelada.

– Tô me divertindo sem reflexão, agora. Vai dar merda, não vai?

– Por que daria?

– Sei lá...

– A gente só não dá certo um com o outro, não é?

– Você fazia chantagem emocional comigo e nunca foi capaz de

andar com as próprias pernas. E eu era uma idiota que corria da vida,

me escondia de mim mesma... mas se sete anos é não dar certo...

Era uma e meia da manhã e ela chorava baixinho sobre o travesseiro,

virada para a janela enquanto ele lia um livro qualquer. Um grande

clichê de novela.

– Não me olha assim! Você está me julgando! – ela brincou.

– Não, eu só estou te olhando! – ele sorriu.

– É porque eu estou comendo como um elefante? – ela sorriu.

– Eu não disse nada, mas você está fazendo um juízo pesado sobre si

mesma, moça...

– Você está o típico porra-louca mesmo. – riram juntos, terminaram o

café. Ela foi trabalhar e ele foi andar um pouco pela cidade.

HERBERT DO NASCIMENTO era um operário. Agora é escritor e tradutor. Já

participou de diversos concursos literários. Nunca venceu

nenhum. Pudera… Fanático por todo tipo de literatura e por prosear com

quem cruza seu caminho, é dessa experiência que toma inspiração para

escrever. Fugiu do calor do Brasil há um tempo para a Irlanda, de onde

escreve. Atualmente pensa em fugir do frio da Irlanda. Talvez para o Brasil. |

[email protected]

Page 26: Revista Subversa

26

JOÃO CERQUEIRA | Viana do Castelo, Portugal.

O DITADOR E A POESIA

“Repreensão poética”, ilustração de Lila Bitten

Page 27: Revista Subversa

27

O ditador estava preocupado com o estado do país. Corriam

rumores de que o povo andava triste, tinha perdido a alegria de viver,

não demonstrava iniciativa. O ditador não podia compreender por que

tal sucedia. Afinal, ele tomava conta deles, dava-lhes tudo o que eles

precisavam, resolvia-lhes todos os problemas. ‘’Porquê?’’, perguntava-

se, ‘’o que terá acontecido?’’ Não sabia a resposta, mas tinha a

certeza de que só poderia ser algo muito grave. Os seus opositores –

todos presos – diziam que a razão era a falta de liberdade. ‘’Tolices’,

pensava o ditador, no seu país não existia nenhuma falta de liberdade,

toda a gente podia sair de casa, ir trabalhar e passear com a família

quando quisesse. Só as pessoas que criavam problemas é que eram

presas. Os restantes cidadãos eram até mais livres do que os povos de

outros países porque estavam protegidos por si.

Desesperado, reuniu-se com os seus três conselheiros.

- Quero saber o motivo do meu povo andar deprimido! A minha

reputação está em jogo. Dou-vos uma semana para me apresentardes

relatórios.

Os conselheiros olharam uns para os outros assustados.

- Os motivos são complexos, senhor presidente… - disse um deles.

- A culpa é dos nossos inimigos… - disse outro.

- O povo é assim mesmo, nunca está contente com nada… - disse

o terceiro conselheiro.

- Calai-vos – gritou o ditador. Quero provas concretas. E se dentro

de uma semana não conseguirdes descobrir o verdadeiro motivo, ides

todos para a cadeia. Está encerrada a sessão.

Uma semana depois o ditador voltou a reunir-se com os três

conselheiros. Estavam pálidos, com olheiras e mais magros. O ditador

mandou-os sentar e começou a interrogá-los.

- Começas tu – e apontou o dedo a um dos homens.

O visado estremeceu, engoliu em seco, e só então falou.

Page 28: Revista Subversa

28

- Senhor presidente… estudei a fundo o problema e cheguei à

conclusão de que o povo anda deprimido por causa… por causa do

aquecimento global…

- Idiota. Guardas, prendam-no! – gritou o ditador. E agora fala tu –

e apontou o dedo a outro conselheiro.

Este fechou os olhos e pareceu entoar uma reza antes de falar.

- Senhor presidente… fiz uma pesquisa entre os cidadãos e conclui

que… que as pessoas estão preocupadas com o seu estado de

saúde…

- Quem vai ter problemas de saúde és tu. Guardas, prendam-no.

Sabendo-se perdido, o terceiro conselheiro aceitou o seu destino e, de

entre as várias teorias que tinha inventado para agradar ao ditador,

escolheu aquela que lhe pareceu mais disparatada. Pelo menos,

gozaria um pouco com ele.

- Senhor presidente, a razão é a poesia…

O ditador não contava com aquilo.

- O quê?

- Sim, senhor presidente. O povo anda a ler demasiada poesia e

depois fica triste.

O ditador olha-o desconfiado.

- A poesia põe as pessoas tristes? Eu pensava que os poetas

falavam de amor, felicidade, gozo da vida…

- Alguns poetas sim, mas os nossos só compõem versos

deprimentes. Ouça este:

Não haverá um cansaço

Das coisas,

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,

De ser,

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Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...1

- Realmente é horrível! Até a mim me deprime.

- Está a ver? É esta a verdadeira razão do povo estar infeliz.

- Malditos poetas. Eu bem sabia que havia alguma coisa errada

com estes tipos. Que tipo de homem é que perde o seu tempo a fazer

versos?

- São pessoas fracas, incapazes de suportar os problemas da vida.

Os homens verdadeiros, como o senhor presidente, pegam em armas e

lutam. Os poetas baixam os braços e choram. A poesia é isso mesmo:

uma choradeira sem fim.

- Tens razão, os poetas são uns desgraçados que corrompem a

sociedade.

- Muitos deles suicidam-se para provarem que a vida não tem

sentido. Por muito que um governante faça, os poetas deitam tudo

abaixo. E basta-lhes uma caneta e uma folha de papel…

- Nunca pensei que pudesse ter um inimigo assim.

- A poesia é a maior ameaça ao seu governo, senhor presidente.

Os outros opositores dizem o que pensam, são previsíveis, podemos

controlá-los. Os poetas, não, dissimulam as suas intenções e nunca

sabemos o que andam a tramar.

- A poesia é uma arma…

- Eu diria que é um veneno…

- A partir de hoje, acabaram-se os poemas. Prende esses tipos!

No dia seguinte, todos os poetas e poetisas que tinham publicado

livros ou escrito versos para revistas e jornais foram presos. Foi decretado

que doravante a poesia, escrita ou declamada, ficava proibida. A

posse destes livros seria considerada um acto de terrorismo. A

1 Fernando Pessoa – Tenho dó das estrelas.

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população foi obrigada a entregá-los e fez-se uma grande fogueira

numa praça. Pelo ar enrolaram-se versos de fumo.

O ditador fez algumas aparições públicas e comprovou que já se

notavam algumas melhorias no humor da população. Viu até uma

adolescente a sorrir. ‘’Isto leva algum tempo, mas daqui a alguns meses

já deverão ser felizes outra vez’’ – disse para consigo. Ter erradicado a

poesia fora a melhor decisão da sua vida.

Foi então que numa festa em honra de um diplomata recém-

chegado conheceu Madalena, a sua esposa. Era uma ruiva de olhos

verdes, alta e elegante. Tinha um vestido azul colado ao corpo. O

ditador nunca vira uma mulher assim. A voz dela silenciou o barulho à

volta. O toque da sua mão deixou-o arrepiado. Durante o serão, seguiu-

a com os olhos, tentou manter-se perto dela, mas não foi mais capaz de

lhe falar. O coração atravessava-se-lhe na garganta e a boca fechava-

se como uma cela.

Quando se deitou sonhou com ela o resto da noite.

No dia seguinte mandou chamar o único conselheiro que lhe

restava.

- Eu quero a mulher do embaixador. A ruiva…

O conselheiro percebeu que estava de novo em apuros.

- Senhor presidente, esta mulher é diferente das outras. Não pode

raptar a esposa de um diplomata. Haveria uma guerra…

O ditador ficou a olhar para o chão. Sem muita convicção,

perguntou.

- E qual é o problema?

- O problema, senhor presidente, é que o país dele é mais forte do

que o nosso.

O ditador coçou o queixo durante alguns segundos.

- E se ela vier ter comigo de livre vontade? Já não haverá nenhum

problema, pois não?

- Nesse caso, suponho que não…

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O ditador dá uma gargalhada.

- Pois então, será fácil. Como poderá ela resistir-me?

- Sim, como poderá ela resistir-lhe…?

Nesse mesmo dia, o ditador enviou um convite ao embaixador

para uma festa dentro uma semana. Chamou o seu alfaiate para lhe

fazer um fato novo, deixou que o barbeiro lhe aparasse as sobrancelhas

e, pela primeira vez na vida, mandou comprar um perfume.

Madalena apresentou-se com um vestido preto e uns sapatos de

tacão alto. O seu cabelo parecia estar em chamas e os seus olhos

cintilavam como pirilampos. O ditador achou-a ainda mais bela. Como

o conselheiro fora encarregado de entreter o marido, ficou com o

caminho livre. E desta vez não lhe faltou a coragem para a abordar.

Convidou-a a sentar-se numa varanda com vista para o mar e

ofereceu-lhe champanhe. Depois, conservou com ela sobre os seus

temas favoritos: o governo do país, as medidas em prol dos cidadãos, o

futuro da humanidade.

Estava tudo a correr bem quando ela disse algo inesperado.

- Se realmente deseja o bem do seu povo, deve libertar

imediatamente os presos políticos.

O ditador ficou perplexo.

- Mas não existem presos políticos no meu país. Eu apenas prendo

pessoas perigosas para a sociedade.

Madalena levanta-se. A brisa espalha-lhe os cabelos.

- Se não prometer que vai libertar essas pessoas, não poderei

voltar a conversar consigo.

O ditador abre os braços e entorna a garrafa de champanhe.

- Está bem, prometo. Se isso a faz feliz, amanhã mando libertá-los.

No fim da festa, o ditador estava radiante. Que importância tinha

libertar aqueles patetas? Dali a uns tempos voltaria a prendê-los de

novo. Por agora, o importante era agradar àquela deusa. Libertava até

os poetas, se ela lhe tivesse pedido.

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Dias depois, planeava o ditador o próximo passo para a seduzir –

uma nova festa? enviar-lhe flores? uma parada militar? - quando

recebe uma mensagem dos seus espiões: ‘’A mulher do embaixador

apanhou um avião e foi-se embora…’’. O ditador não quis acreditar -

devia haver algum engano. Como poderia aquela mulher tê-lo deixado

sem sequer se despedir? Estava praticamente seduzida.

Pegou no telefone e ligou para o embaixador.

- Senhor embaixador, disseram-me que a sua esposa partiu…

- Sim, não se adaptou ao clima e à comida…

O ditador deixou cair o auscultador. Nesse dia cancelou todos os

compromissos.

Nos dias seguintes o ditador continuou a isolar-se, dando ordens

para ninguém o incomodar quando se fechava no seu gabinete. Às

refeições comia pouco, mas bebia demais. Na cama enfrentava noites

de insónia. Quando sonhava, Madalena aparecia-lhe nos braços de

outros homens. Aos poucos, começou também a emagrecer, a ficar

pálido e a ganhar olheiras. Deitou fora o perfume. Vagueava pelo

palácio como um fantasma e ficava horas à varanda a olhar para o

mar. Se alguém lhe perguntava se precisava de algo, não respondia.

Mas, por vezes, falava sozinho. Por fim, desinteressou-se do governo do

país e deixou que o seu conselheiro tomasse decisões por ele.

Uma manhã, a porta do quarto do ditador abre-se num estrondo

e surge um grupo de soldados que lhe apontam metralhadoras. Atrás

deles estava o conselheiro.

- Informo-o que foi deposto. Agora o presidente sou eu. Vista-se

por que vai ser fuzilado.

O ditador pareceu aceitar a sua sorte e obedeceu sem um

protesto. Vestiu o fato novo e deixou-se algemar. Duas horas depois

estava morto.

O povo saiu à rua e deitou foguetes. Toda a gente sorria.

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No dia seguinte, estava o novo ditador a instalar-se no palácio

quando, ao abrir um armário, descobre uma caixa de marfim. Julgando

que poderiam estar ali documentos importantes, abriu-a. Encontrou

várias folhas escritas à mão e sentiu um aroma de perfume. Começou a

ler a primeira:

‘’Madalena, luz da minha vida

levaste contigo o meu coração….’’

JOÃO CERQUEIRA é doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto.

É autor de oito livros, entre eles A Tragédia de Fidel Castro, publicado nos EUA

com o título The Tragedy of Fidel Castro, que venceu diversos prêmios, como o

USA Best Book Awards 2013, Beverly Hills Book Awards 2014 e o Global Ebook

Awards 2014. Em 2015 será publicado em Espanha pela Funambulista, na Itália

pela Leone Editore, no Reino Unido pela Freight Books e na Argentina pela

Eduvim. Seus textos são publicados em uma série de revistas internacionais. |

[email protected]

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LUCIENE BERNARDES | Belo Horizonte, MG.

O VENDEDOR DE BALAS

“O desastre”, ilustração de Lila Bitten

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A mamãe não tinha com quem nos deixar e todos os dias nos

carregava atravessando a cidade para nos levar para casa. Já havia

me acostumado a ver e andar entre vultos que iam e viam sem parar,

imersos nas cores cinzentas dos prédios e do asfalto da cidade. Apesar

do movimento dos carros e ônibus que paravam e continuavam, era

tudo um silêncio absoluto. E mesmo com a multidão que seguia

desordenadamente por todas as direções, era um vazio tão grande

que a gente sentia o quão pequeno e minúsculo que éramos dentro da

imensidão.

Estávamos parados em um ponto de ônibus quando papai

chegou para nos encontrar. Agora estávamos completos e podíamos

seguir para a nossa casa. Passamos a esperar pela condução. Eu

estava ali, sempre atenta e à espreita vendo o movimentar e o parar

das pessoas, quando de repente uma criatura franzina me chamou a

atenção. Era um jovem rapaz branco, muito branco, quase pálido.

Tinha o cabelo liso escuro ensebado e mal cortado. A blusa encardida

de listras vestiam um tronco magrelo e envergado. As pernas finas e os

braços raquíticos combinavam terrivelmente com os traços profundos

de um rosto sem muita expressão.

Acompanhei com o olhar tal o que para mim foi como uma

aparição. Ele trazia uma velha mochila preta quase vazia pendurada

pelas costas, e à frente uma bandeja com muitas balas e chicletes

coloridos. E como se a vida fosse um incessante caminhar, parar e

balbuciar, ele caminhava não indiferente ao resto da multidão, quando

de repente veio em nossa direção. Ele parou ao lado de minha mãe e

balbuciou alguma coisa. Vi quando minha mãe, com seu aflito e

bondoso coração, olhou para os olhos tristes do moço e

silenciosamente buscou pelo meu pai que sacou uma moeda do bolso.

Então a mamãe comprou uma bala colorida para a gente.

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O moço recebeu a moeda e qual não foi a minha surpresa ao vê-

lo esboçar um sorriso grande, mesmo que por segundos fosse um

lampejo temporário. Pensei que fosse a primeira moeda que ele tivesse

ganhado no dia, ou talvez em longas horas. Mas depois descobri que foi

a última. O moço andou alguns passos com o rosto iluminado. Com

certeza foram poucos os que ouviram o estrondo do ônibus no corpinho

magro do jovem rapaz. Quase que tudo passou despercebido no

burburinho imenso da cidade se não fossem as balas coloridas que se

espalharam logo pelo chão. E como se anunciassem uma grande festa,

todas elas inocentes começaram a picar e a pular cada vez mais alto

até chegarem lá no meio do escuro do céu, iluminando a escuridão

numa infinita e brilhante explosão.

O acontecimento fez parar toda a cidade. Papai e mamãe nos

seguraram junto ao corpo com medo de nos perderem. Logo se

aglomerou uma multidão cinzenta de gente admirada e boquiaberta

assistindo ao espetáculo de luzes e cores. Mas quando o fogo se

apagou, as pessoas encabuladas consultaram os seus relógios,

tentaram algum balbucio com o vizinho e logo se puseram a marchar

os seus passos apressados em rumo aos seus trajetos.

Vi quando mamãe olhou para o papai e ele consentiu com a

cabeça. Ela entrou numa loja e conversou com a mulher do balcão.

Depois foi em direção aquele corpinho acabado. Parou um instante e

ficou em silêncio. Depois cobriu o moço com jornal velho. Quando ela

vinha em nossa direção começaram a chegar carros com sirenes e

luzes piscando, trazendo os homens de uniformes que cuidavam da

ordem da cidade. E também vieram aqueles engravatados com seus

microfones, como urubus. Então nós olhamos nos olhos e entendemos

que naquele dia a volta para casa seria diferente.

LUCIENE BERNARDES escreve para se esvaziar, para se sentir livre, até que

novamente novas histórias pululam ao redor querendo ganhar vida. Autora do

blog O Véu de Ìsis, quando brotam as palavras (oveudeisis.wordpress.com) |

[email protected]

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MARCILANE SANTOS | Santa Rita, PB.

ECO

“Somos um”, ilustração de Lila Bitten

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ECOA

ECOA A VOZ

A VOZ NO MURO

A VOZ NO MURO ESPALHA-SE

ESPALHA-SE A ALMA

ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR

ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR AO SENTIR

AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO

AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO

QUE ESTAVA PRESO

DAQUILO QUE ESTAVA

PRESO NO PEITO

E

QUE DO PEITO QUERIA SAIR

ECOA

ECOA E SOA

ECOA E SOA O ECO

ECOA E SOA O ECO NO VERSO

NO VERSO ECOA O SOPRO DAQUELA ALMA

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A ALMA

A ALMA SOA

O VERSO

O VERSO ECOA

SOA A ALMA

ECOA O VERSO.

MARCILANE SANTOS, 22 anos, natural do Rio de Janeiro – RJ, reside na Paraíba

desde a infância. Logo nesta fase da vida, se apaixonou pela literatura.

Costuma ler e escrever crônicas, poesias e contos. Em 2011 criou o blog

“Simples Inspirações”, onde publica trabalhos de sua autoria. Inspira-se em

seus próprios sentimentos e no cotidiano à sua volta. |

[email protected]

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RAFAEL ZACCA | Rio de Janeiro, RJ.

Um pinguim amanheceu

a febre dos turistas

na praia de Copacabana.

UM SONHO

“Centro das atenções”, ilustração de Lila Bitten

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Não tinha nado.

Não era frio.

Tinha um peixe podre na boca

enquanto sonhava

o nosso filho

um acumulado

de noites. Nasceria

já velho

calculando o tanto

de aviões

fracassados no Atlântico.

O super filho de todas as noites em que não fizemos amor.

Salvando o mundo, limpando o lixão –

Mas não tinha filho.

O pinguim, asa de tripa,

fingia o voo.

Todo sem jeito...

O amor doído nas cartilagens...

E as fotos dos turistas.

RAFAEL ZACCA é poeta e crítico literário. É doutorando em filosofia pela PUC-RJ. É

membro do corpo editorial da Revista Chão, integrante do Núcleo de Estudos da

Cultura no Capitalismo Contemporâneo (UFF) e participa da Oficina Experimental de

Poesia, no Rio de Janeiro. Dá oficinas de criação poética. Publicou o livro de poemas

Rafael Zacca | Kraft (Ed. Cozinha Experimental, 2015). | [email protected]

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INSTAGRAM | E-MAIL: [email protected]

Lila Bitten tem 18 anos e estuda design na UFSC. Se

interessa pelo desenho desde a infância e associa a ligação

com as artes à sua formação escolar de método Waldorf.

A artista utiliza principalmente a caneta nanquim,

misturando diversas técnicas e traços e privilegiando a

experimentação de outros materiais como a aquarela, o

grafite e a esferográfica.

Lila garante que continuará treinando e aprendendo

novas técnicas para cada vez mais conseguir passar pela sua

arte as sensações, sentimentos e pensamentos que lhe

inspiram.

LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil)

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]