revista subversa volume 2 | n.º 4 | mar 2015
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Sub 12, maravilhosamente bem ilustrada e cheia de maravilhas literárias :)TRANSCRIPT
SUBVERSA
12ª Edição | Março/1 2015
SERIS MARQUES | AMANDA CIPULLO | FLÁVIA PRITSCH
JORDANO SOUZA | ANDREA MASCARENHAS |
LUISA FRESTA |JUAN TORO | SÁ NINGUÉM | J. CIPOLLA
ESTEVAN KETZER | RAFAELA MANICKA | CABRAL PINTO
SÉRGIO SANTOS
EDIÇÃO ILUSTRADA
JULIÊ CAROLINE &
ISABELA JERÔNIMO
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Subversa | literatura luso-brasileira |
12ª Edição
© originalmente publicado em 02 de Março de 2015 sob o título de Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações:
Juliê Caroline & Isabela Jerônimo
Juliê: PORTFÓLIO | INSTAGRAM | [email protected]
Isabela: [email protected]
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como
autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos
ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
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AMANDA CIPULLO | © UM DOCUMENTO SEM NOME | 5
LUISA FRESTA | © A ESPERA|9
ANDREA MASCARENHAS | © ÁGUA FURTADA | 14
JUAN TORO | © CURTAS RAZÕES | 16
RAFAELA MANICKA | © NÁUFRAGO | 19
ESTEVAN KETZER | © APÓSTATA | 21
SÁ NINGUÉM |© MEMÓRIA QUE QUERIA SER AMNÉSIA| 24
J. CIPOLLA | © JÁ ESTOU MELHOR, OBRIGADA. | 27
SERIS MARQUES | © COTIDIANOS | 30
SÉRGIO SANTOS | © FAMÍLIA DE FORRETAS | 31
ESPECIAIS
CABRAL PINTO | © DESPIEDADE | 37
FLÁVIA PRITSCH | © VIVO.MORTO.VIVO | 39
JORDANO SOUZA| © VIDA | 41
12ª Edição
MARÇO DE 2015
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EDITORIAL
O trabalho de edição que temos desenvolvido aqui tem se mostrado
cada vez mais interessante, a força motriz de todo o projeto da Subversa. É e
sempre será o nosso carro chefe.
Estudamos bastante, lemos bastante e escrevemos bastante. Primeiro,
porque evidentemente é a nossa paixão e a nossa vocação, mas também
para ter um conhecimento digno de resposta a um material tão complexo
como um texto literário. E, mesmo estudando e lendo e escrevendo, a cada
texto recebido e lido, aprendemos sempre e todos os dias, mais.
Porque é justamente esta a questão, tal qual não cansam de afirmar os
diversos teóricos da literatura. E é simples. O conhecimento teórico, as linhas de
análise, tudo aquilo que aprendemos nos livros é incontestável, mas o que faz
realmente uma boa leitura crítica é a capacidade de enxergar o que o texto
provoca, enquanto um objeto artístico digno das mais diversas sensações,
reflexões e perspectivas em seu leitor. E nos sentimos gratas pelo fato de bons
autores nos confiarem esta leitura que nos ensina diariamente.
Esta edição é cuidadosamente ilustrada por duas jovens artistas de João
Pessoa, Juliê Caroline e Isabela Jerônimo. Temos procurado ressaltar sempre o
nosso imenso prazer em divulgar estes trabalhos às redes de contato
interessadas, pelo material em si, que é belíssimo e pelo trabalho experimental
que estes artistas tem feito conosco, apostando também na literatura.
O que estas imagens lhe provocam?
Veja, leia e desfrute de mais uma Subversa.
As editoras.
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UM DOCUMENTO SEM NOME
Amanda Cipullo
SÃO PAULO, SP
Luzes azuis e vermelhas iluminam uma máquina caça níqueis, e outra de
cigarros – por aqui, é assim que se compra palitos de câncer no pulmão.
O lugar é pequeno, tabaco e maconha se misturam no ar, formando
uma nuvem branca que cobre todas as cabeças e todas as histórias.
Foi aqui que tudo começou?
Um casal entra, falam mal inglês e carregam uma pequena mala.
Perguntam se há vagas, o recepcionista responde, sonolento, que já está tudo
completo.
Eles vão embora e eu dou a primeira tragada no cigarro.
De quem é essa história?
Em frente à recepção, um cinzeiro acumula bitucas com marcas de
© Isabela Jerônimo
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batom vermelho. Três loiras dividem dois becks. Falam alto, em um idioma que
não entendo.
Dou mais umas tragadas no cigarro...
De quem é essa história?
Ele pede o terceiro whisky, com gelo, e uma vodka com coca-cola.
Depois de dois tiros, ainda restam 3 camisinhas no bolso. Vira o whisky de uma
vez, se levanta, dá um pequeno gole na vodka e caminha até a máquina de
jogos – é o que resta para hoje. Perde naquela noite – talvez, como em tantas
outras – mas a essa hora da madrugada, já não há diferença entre quem
ganha e quem perde. Daqui a pouco, vai estar no conforto de algum
banheiro, vomitando as tripas para se sentir vivo – e talvez esse seja o destino
de todos nós. Não sei.
De quem é essa história?
Agora é a minha vez de pedir mais um whisky. Cowboy, sempre cowboy.
O barman já sabe, então economizo palavras, apenas levanto o copo vazio e
ele acena com a cabeça, trazendo a garrafa. Tudo parece simples.
Depois da quarta dose, algumas coisas vão se organizando na cabeça,
da mesma forma como as imagens iguais da máquina de caça níqueis
definem o vencedor. Talvez, essa noite eu tenha sorte para colocar os
pensamentos no lugar. Talvez. Então, me lembro que, no final, a máquina
sempre ganha, essa é a regra do jogo. No final, a cabeça nos engole.
Peço outra dose.
Três ou quatro cidades. Oito ou nove dias de viagem. Uma quantidade
indizível de camas pelas quais passei. Quartos sem calefação, aquecedores
enormes e edredons que mantivessem o corpo aquecido. Ainda há mais pela
frente. Quando penso em tudo isso, o tempo parece fora do tempo, os rostos
se misturam... Minha mente tem sido traiçoeira. Talvez seja a maconha, o Jack
Daniel's e o bacon em excesso... dizem que faz mal à saúde, tudo junto deve
ser pior ainda. É, esse deve ser o problema.
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Já não me lembro se o colombiano se chamava Juan Carlos ou Juan P
ablo, se tinha 23 ou 26 anos. Não me lembro quantas vezes trepamos.
Mas acho que era ele que dizia “que rico” enquanto me comia.
E o equatoriano? Como era o nome dele? Alex... acho que sim.
Dois espanhóis, um sem nome – para mim pelo menos. Cara de palhaço,
pinta de muchacho louco!
Un chico com olhos de menino, que tirava lentamente as minhas roupas
e olhava com tristeza quando eu as colocava de volta. Disso eu me lembro!
Ainda consigo ver os olhos dele.
E se nada disso for verdade? Eu nunca vou saber de quem são essas
histórias, quais são as minhas e quais foram inventadas.
Quantas falsas lembranças moram na nossa cabeça?
O fato é que vim até aqui porque queria ver o abismo de perto. A
loucura que há tanto eu temia que me devorasse e, logo na primeira noite, me
lembro de ouvir a história de alguém que se debatia entre realidade e ficção.
Ele ouvia vozes e dizia que talvez tivéssemos pouco tempo, que era provável
que logo se perdesse de novo no abismo – a cabeça sempre nos engole.
Me lembro de dizer a ele que não havia com que se preocupar:
- o mundo todo está louco e sanidade é algo que inventaram para
nos manter na linha, para que criássemos pontes que transpusessem o abismo,
sem termos que olhar para ele, sem que desejássemos cair dentro dele. Alguns
conseguem, outros não.
E eu sempre tive curiosidade para saber o que existia embaixo, bem
dentro, naquele lugar escuro que ninguém acessa. Por isso que eu vim até
aqui. Por isso que cruzei oceano e cai no lugar mais estranho em que já estive –
dentro e fora de mim.
De qualquer forma, toda essa viagem deve servir para alguma coisa,
para um conto ou algo do tipo, mesmo que eu ainda não saiba de quem é
essa história. Se é minha ou deles... ou de todos nós.
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Ou se depende de quem conta.
Enfim, a essa hora da madrugada, tanto faz. Na verdade, sempre tanto
faz.
Peço mais uma dose.
Que as minhas memórias não me traiam, mas se traírem, nós nunca
vamos saber.
AMANDA CIPULLO é formada em Publicidade e Propaganda, apaixonada por cinema
e música; escritora entusiasta e aprendiz de atriz. Acredita que sem mistura não há
repertório, tampouco, criatividade.
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Todos os dias, consultava a sua caixa de correio. Porém, devido a
um qualquer erro temporário de acesso, durante várias horas não pôde
verificar as novas entradas. Quando finalmente o fez, mais por rotina do
que por interesse real, quase não reparou naquele mail insólito, sem
título, que lhe chegou de um remetente pouco frequente por aquela
via.
A Espera LUISA FRESTA
(Lisboa)
© Juliê Caroline
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Isa era uma pessoa metódica e ordenada. Alguns colegas
achavam-na obsessiva e diziam-lho com frequência, carinhosamente,
mais para a embaraçar do que para criticá-la. Depois de descartar os
numerosos spams e as mensagens reencaminhadas que apagava
sempre sem ler, abriu finalmente aquela que viria a revelar-se a
informação mais importante do dia.
Embora não tivesse qualquer título, Isa acabou por descobrir um
minúsculo texto que se resumia a duas breves e aterradoras palavras:
«chego hoje». Por instantes chegou a duvidar da sua lucidez; com uma
frieza que lhe era estranha, fechou a caixa de correio e voltou a abri-la:
lá estavam as duas mesmas palavras lacónicas e um anexo com um
cartão de embarque. Percebeu então que o seu “contacto” chegava
nesse mesmo dia, às 10h55, em proveniência do aeroporto Charles de
Gaulle, de Paris. «Terminal 1, voo AF 1024, companhia Air France»,
repetiu várias vezes antes de recuperar a sua pulsação habitual. Olhou
para o relógio e verificou, apavorada, que eram 8h12 dispunha
exactamente de duas horas e quarenta e três minutos para tratar da
sua higiene, voar para as «Chegadas» e esperá-lo, mordendo-se de
impaciência dissimulada, como tantas vezes haviam imaginado.
Fingindo ler um livro sem entender uma única palavra, ajeitando o
cabelo, cruzando e descruzando as pernas, olhando sem ver os
transeuntes e as famílias que se reuniam com alarido. Quase se deixou
tomar pelo pânico pensando na depilação que precisava já de um
leve retoque, na pele que de repente lhe pareceu assustadoramente
ressequida, nas olheiras profundas e numa teimosa borbulha que
despontava, vermelha e ameaçadora, na face esquerda. Os
abdominais não tinham ainda atingido o ponto desejado de hipertrofia,
o cabelo não ostentava o brilho costumeiro e a sua insegurança pré-
menstrual não ajudava em nada! Depois de alinhar sobre a cama
quatro indumentárias diferentes, (qual delas a mais inapropriada),
decidiu-se finalmente por uma saia de ganga de corte muito feminino,
algo rodada e com um folho discreto, moderna e confortável, à qual
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juntou uma blusa acetinada verde água que fazia sobressair o seu
bronzeado incipiente. As outras roupas jaziam despeitadas pela cama:
demasiado formais, apagadas ou pouco citadinas, por algum motivo
teriam sido dispensadas daquele dia invulgar. Olhou de novo para o
relógio: 8h31. Um pouco mais confiante, disse então para consigo que
ainda sabia gerir o tempo sob stress, mesmo que isso resultasse numa
maquilhagem mais imperfeita ou que se visse obrigada a deixar um ou
outro frasco de creme aberto sobre a cómoda. Os cheiros femininos
espalhavam-se ainda pelo quarto quando entrou no táxi em direcção
ao aeroporto de Lisboa. O taxista, reservado como poucos,
proporcionou-lhe o recolhimento mental necessário para pôr em ordem
todos os acontecimentos que tinham antecedido o inevitável encontro
com o seu “contacto”, dentro de horas, que se transformavam em
minutos a uma velocidade assustadora. Ismael era então um actor
medianamente conhecido no teatro europeu e também um
encenador e guionista muito respeitado no seu país. Reservado,
fechado e volúvel, tinha-a conhecido durante uma entrevista on-line.
Vinham mantendo contacto próximo e regular no universo virtual,
pensado encontrar-se um dia, quando ambos sentissem esse apelo
inadiável e consideravam-se carinhosamente o “contacto” um do
outro.
Ele dizia-lhe: «Quando a temperatura subir acima dos 35º em Paris,
podes contar comigo em 48h!». Ela ria-se, contente com as brincadeiras
inconsequentes, com as cenas que representavam juntos: a do
encontro no aeroporto, a das peripécias no comboio para Évora, a dos
passeios em Montmartre e a dos jantares no «13ème», situado na
margem esquerda do Sena; pensou nas personagens e nas histórias que
partilhavam madrugada adentro – A Bela e o Monstro, de Cocteau,
encabeçando essa eclética lista - e nos guiões que escreviam a 4 mãos.
E não o levava a sério, nunca, flirtando apenas com o destino.
No entanto, essa ridícula profecia estava agora prestes a cumprir-
se, exactamente como ele tinha preconizado. Isa pagou a conta do
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táxi maquinalmente sem esperar pelo troco e entrou no espaço
reservado à espera dos passageiros. O voo estava atrasado: «Que
alívio!», pensou. Aqueles 10 minutos imprevistos permitiam-lhe reflectir
sobre os vários cenários possíveis, num guião que ainda estava por
escrever. Conhecia-o, até certo ponto: era um homem alto, confiante,
de personalidade dominadora, com olhar incisivo, algo rude mas
também excepcionalmente sedutor e envolvente, de onde em onde.
Os seus passos eram seguros e amplos, as suas mãos esguias de uma
beleza rara. Possuía o dom de dominar o espaço que o rodeava e a
assistência rendia-se sem reservas ao timbre grave e invulgar da sua voz.
Num segundo podia transformar-se na besta que às vezes parecia
repousar, mal dominada, dentro da sua natureza selvática, o que só lhe
conferia maior encanto e mistério. Estar perto dele significava viver em
constante adrenalina, em permanente desassossego: recusava rotinas
rígidas, frases feitas e comportamentos previsíveis. Tinha os seus próprios
talismãs, ritmos e rituais, como o cachimbo de couro e cobre comprado
num mercado da sua cidade natal, os cigarros enrolados, os vinhos
escolhidos a dedo (millésimes) e a cozinha sofisticada e demorada; e
impunha-os, mesmo involuntariamente, a quem com ele privasse ou se
movesse nos seus círculos mais próximos.
De repente o olhar de Isa parou num homem alto e atraente que
descia a rampa com pouca bagagem, envergando um casaco de
malha desportivo e um cap beige. O homem olhou-a com algum
interesse, ela procurou os óculos na carteira, mas logo em seguida o seu
olhar atravessou-a e foi poisar numa mulata vistosa que lhe acenava
com os óculos de sol. «Falso alarme», pensou, sorrindo para dentro, e
chegou a agradecer esse momento de paz, antes do decisivo
encontro. Durante mais de meia hora viu desfilar diante de si toda a
espécie de passageiros, muitos homens sós, alguns com o mesmo tipo
físico daquele que esperava. Por fim, ao cabo de uma longa espera,
desistiu de continuar a iludir-se: teria ele viajado sob disfarce, para
poder ver sem ser visto? Teria perdido alguma mala? Com a cabeça
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confusa e sentindo uma tontura próxima do desmaio, julgou sentir um
cheiro a um perfume conhecido. Dirigiu-se ao café mais próximo, a
alguns metros apenas.
- Faz favor…- o garçon empertigado impacientava-se com o seu
olhar ausente.
Finalmente conseguiu balbuciar:
- Uma bica cheia, por favor.
Entretanto já o empregado se dirigia ao cliente atrás de si, cuja
sombra a incomodava pois não encontrava as moedas no seu
pequeno porta-moedas de veludo negro.
- E o senhor?
- A mesma coisa que a senhora - respondeu a voz grave atrás
dela, enquanto lhe colocava a mão sobre o ombro esquerdo e lhe
afagava timidamente o braço.
LUISA FRESTA nasceu em Portugal e viveu a maior parte da infância e
adolescência em Angola, país com o qual mantém laços de cidadania e
envolvimento cultural e familiar. Dedica-se, sobretudo à escrita, escrevendo
regularmente no Jornal Cultura - Jornal Angolano de Artes, no portal brasileiro
O Gazzeta e na Metropolis, revista portuguesa especializada em cinema.
Publicou em 2014 49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito (poesia), pela Chiado
Editora.
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[água furtada] Andréa Mascarenhas
Salvador, BA
© Juliê Caroline
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< Na rua das albufeiras
não há porto feliz >
teu desejo em linhas rasas
formam ondas em meu ser
pelas calles do coração
há fremosas compulsões
tem rostos assombrados
epifanias de nós
em asas de passarinho
vão teus sorrisos e mais
das abas de meus sentidos
nascem nossos retratos e sós
mares, desesperança
outros dias, novos sais
navego lembranças d’agora
contigo digo adeus aos ais
tuas noites, madrugadas
nunca amanhecem como nós
não há mais portos decadentes
já nascem ruas em teus céu e sol
brilham ruínas nesse instante
reconstruídas todas por eco e voz
< Na rua das albufeiras
não há porto
só gente feliz >
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA é docente da área de
Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ficou em 13º lugar no 'XII
Festival de poesia, crônica e conto', organizado pela Fundação Cultural de
Imperatriz – MA (2001) com o poema intitulado Procissão da espiritualidade.
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Juan Toro
São Carlos, SP
Corre muita coisa de tudo a uma velocidade estonteante
nas madrugadas e nas tardes
cobrindo o azul do dia com uma febre afastada da inocência
do puro, indivíduo, iníquo solene
CURTAS RAZÕES
© Isabela Jerônimo
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Enrugado pelas coisas que correm nos lugares estáticos
no corpo parado,
estancado e encarando com a frente murcha
escondendo os olhos do Sol
do tempo que falta para a Lua
para a noite que combina sábios e vazios,
girando e correndo rapidamente pelas paredes
intercalando os gostos e os princípios vitais da vida
corrida e pouco vivida
Curtas razões em ruas sem saída
palavrões e correria
pés quentes e ducha fria,
curtas explicações abortam as missões
com todas as amplas opiniões
que se perdem e estreitam nas ruas ditas
malditas avenidas,
ofuscam o asfalto e entorpecem o andar plural
curtas declarações batem à porta
parece gente honesta, mas que pede porque a barriga ronca
e a família cobra
e a luxúria se torna
se faz prazerosa
Nada obriga
nem a ganância da doce menina
nada implica
nem os palavrões do Estado que ganha em cima
nada determina os dias e o respiro
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nem as atividades diárias
nada consegue obrigar os atos
nem o tempo climático
nada impede
tudo se faz
riacho
pedregulhos
brumas
JUAN TORO é formado em Comunicação Social (2012) e mestrando em
literatura (2014). Publicou Puxando a Rede (2014, Editora Multiofco), Estado de
poesia e prosa (2014, Editora Buriti) e está trabalhando em seu terceiro livro,
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Nacadema, a sair pela Editora Kazuá. Já participou em antologias literárias
nacionais e internacionais. É diretor e roteirista do curta metragem Silvano
(2013).
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NÁUFRAGO
Rafaela Manicka
Curitiba, PR
© Juliê Caroline
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Lembro-me de me refugiar por uns dias naquela praia em que
conheci você. Lembro-me de ter escrito várias vezes o seu nome na areia e
de observar as ondas vindo na direção dele só para ter o prazer de apagá-
lo naquele vai e vem infinito.
Num misto de melancolia e sofreguidão, era como se o mar, com
toda sua imensidão, viesse ao meu encontro apenas para me alertar de que
tudo o que vivi teve um fim. Tudo o que um dia eu ousei em sonhar se
estilhaçou ao chão com o baque da realidade. E não há motivo para tentar
encaixar os caquinhos que o vento já levou.
Aquelas cartas que escrevi estão todas inacabadas. São várias e,
cada uma delas, traz um sentimento diferente. O envelope não está
preenchido pois percebi que nem o seu endereço eu sei mais. Talvez seja
por isso que essas cartas nunca chegaram ao seu destinatário final. E eu só
não joguei todas no lixo por receio de algum dia precisar delas.
O som da sua voz ainda me visita na calada da noite, a sua silhueta já
está estampada nas sombras que inundam as paredes do meu quarto e o
silêncio soa melhor do que qualquer música que tenha embalado o nosso
amor. Os lugares já não são mais os mesmos e os livros que você deixou na
estante já não me chamam mais atenção.
Pudera eu ficar aqui estagnado nesse mar de desilusões, mas assim
como um marujo abandona o seu posto quando avista uma tempestade
mais a frente, é preferível naufragar em águas desconhecidas do que
permanecer eternamente nessa solidão a dois.
RAFAELA MANICKA é formada em Publicidade e Propaganda pela Universidade
Positivo e, desde 2010, possui o "Amanhã tanto faz", projeto literário onde posta
textos que escreve sobre a vida em suas diversas formas.
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Apóstata ESTEVAN KETZER
Porto Alegre, RS
© Juliê Caroline
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Relincho com tanta lassidão. São os cascos na terra seca o suficiente
para despertar. No canto dos olhos está a tenebrosa elegância ereta
daquelas patas. O campo imenso costumava chamar a família ao redor da
figueira. Quanto tempo ficamos ali entre a casa e a árvore? Cuidarias de
mim com prazerosa sombra para que a casa estivesse sempre ao abrigo do
sol. E com a trovoada longa despertara a mãe dos monstros, mantida
guardada e serena em meu coração ao longo de todos aqueles anos.
Descobri o sagrado que há em um breve instante. Naquele dia jurei
permanecer em pé apesar do medo de ver o horizonte nublado. Decidi
ajoelhar e pedir perdão. Gesto tão ingrato esse, exigência estampada no
rosto dos piedosos crentes. Porque a pergunta é espontânea, verdadeira,
torpe dessa delinquência: por que reverenciar é um dever? Foi a velha noite
que fechou minha mão com tanta força até chegar a coragem. Lembra
aquele um e-mail recente cheio de orgulho e covardia. Linhas escritas para
incitar a revolta nos vermes ao teu redor.
Seria ousado entrar no baixio? Olhar a besta de frente para então
desferir-lhe o primeiro golpe? Tu impedirias que o diabo me desse as tuas
coisas mais profundas, pois ele se move sorrateiro. Bem perto se implantam
ideias até explodirem minha cabeça impura, penetrando com sufoco o
ânus, doendo na mudez, como as tuas palavras sem vontade, amarfalhadas
e gastas, prontas a defender a consciência de tantos ataques. Ao menor
dos pesadelos tu te obrigavas a engolir, restando ao final do dia este desejo
contido de submeter aqueles que não estavam à altura de teus mais
sublimes sentimentos. Isso foi tão lentamente até o ovo da serpente quebrar.
E assim uma criança é sempre humilhada no outono. O silvo estridente
indica que os alimentos saem das tripas como a merda indigesta do dia.
Como é maravilhoso este matrimônio entre o céu e o inferno...
É a chuva amarga da tarde, chega em monções delinquentes.
Grande desfecho do teu filho sem olhos para ver ou mãos para tocar em
todo o teu desejo. Aqui é tão escuro, pai! E já o teste inicia: calar em
resignação. Fugir aqui nesta carta, feita às pressas, como um óbito sem a
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prova ou corpo estendido... Querias um filicídio para fazer o sacrifício que
paralisa os pensamentos? Fim do jogo noturno. Vem, dê-me tua mão, teu
sorriso, quero voltar para casa, cessar esse frio, te dar meus sentimentos,
porque não fui capaz de te amar como tu és, nem amar essas mãos
caprichosas e tão limpas, que nem sequer sabem o custo da intensidade do
toque, ou nem mesmo podem te impedir desse crime delicado. É isso um
ritual de iniciação? Posso morrer ao menos? Gritar? Lembrar ainda, para teus
olhos decidirem como se observa a culpa bem distante? Não. Assim,
manténs firme o segredo solitário como aqueles antes de nós o fizeram, com
passos pobres e uma virtude escolar bem comportada, com teus dedos
frágeis cheios de silêncio... Estar curado de um veneno, finalmente.
A chuva parece mansa agora, enfim. Invade minhas têmporas, como
se atendesse este antigo chamado de socorro. Abro os braços na grama
alta para chegar ao solo. Será isso uma conversão? Estamos expulsos do
paraíso? O que não devia ter começado, com o pulso aberto, goteja. É o
preço da nossa herança.
ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a
relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de
ensaísta.
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Memória que queria ser
amnésia
Sá Ninguém
LISBOA
© Juliê Caroline
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27 de Janeiro de 2015. Completam-se vinte e cinco mil e quinhentos e
sessenta e oito dias desde a libertação do campo de extermínio de
Auschwitz-Birkenau. Há luzes e música e palmas e silêncio. Sentados em
cadeiras de plástico, sobreviventes e gente-comum misturam-se de
estômago constrito - como se partilhassem a mesma dor e memória. Mas a
gente-comum não traz amarrado ao olfacto o cheiro fétido do fumo
pesado. Na terceira fila, uma senhora treme. Treme há 48 horas. Não dorme
há 3 noites.
Ainda sente a fome dos 3 dias de viagem até àquele mesmo local, há
72 anos. De pé. Comprimida. Esgotada. Quando o comboio pára, a porta
abre. A porta abre e ela é arrastada para a direita. A sua mãe, para a
esquerda. Para um pavilhão. Uma barraca. Uma câmara. O escuro. Os
gritos. O ar que asfixia. A morte. O fumo. O cheiro.
São três da tarde de um verão quente. A piscina azul povoada de
gente em fatos-de-banho. De fundo, uma pequena orquestra faz ouvir "It's
now or never". Ainda hoje chora. Tamanha ignorância de não saber que o
que viveria com a sua família nessa tarde de sol, seria somente então. E
nunca mais. Rasgo sonoro nas colunas que transportam música. É Hitler que
grita louco - devem morrer.
Três dias se passaram desde a chegada a Auschwitz. Tem 15 anos e os
sonhos aniquilados em vedações de arame farpado. Ao longe, alcança a
figura do pai que marcha junto com outros homens. Um pelotão de gente
perecível. Esconde-se. Não quer que o pai a veja assim. Assim. De cabelo
rapado e pele suja, metida num pijama desajeitado que não se faz ao
corpo. Mas os olhares voam e acorrentam-se um no outro. Choram e não
percebem. Sentem somente o insustentável peso de algo terrível que vive
naquele local. A morte.
Correm três meses numa marcha lenta, até um oficial russo atravessar
a terra gasta e respirar-lhe que a guerra terminou. Tem 17 anos e 35 quilos de
ossos. Não sabe onde está a mãe. Não sabe onde está o pai. Não sabe
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para onde vai. Não sabe quem é. É uma sobrevivente. Acorda em
Auschwitz. Adormece em Auschwitz.
27 de Janeiro de 2015. Há música e discursos e palmas. E gente de
fato-e-gravata que nunca viu um pijama-às-riscas. Mas julga saber e
conhecer e aplaudir a dor de quem perdeu a dignidade naquele chão. De
quem perdeu nome e se fez número. De quem retorna àquele lugar sem
sede de música e discursos e palmas. De quem se contorce na cadeira de
plástico. De quem tem olhos e ouvidos cerrados para só estar ali em corpo. E
o espírito noutro lado qualquer.
SÁ NINGUÉM é licenciado em Antropologia, tem sede de terras, de mares, e de
gentes. E de solidão. Precisa de tempo fechado em si; e só então tem espaço para
o mundo. Escreve. Porque as palavras são-lhe oxigénio. Publicou o seu primeiro livro,
Terra, enquanto autor independente. Podem seguir textos e novidades em
www.saninguem.com
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Já estou melhor, obrigada. J. CIPOLLA
São Paulo, SP
© Juliê Caroline
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já estou melhor obrigada
voltei a cortar as unhas
no chuveiro
(não passam no ralo, guardo
jogo na terra úmidas o cálcio
faz bem para a pele)
(( a queratina é uma proteína fibrosa porque a sua estrutura tridimensional
lhe confere características especiais (...) ))
a queratina – é sua melhor amiga
faz 15 graus no brooklyn e os gringos tomam café doce
puro
(doce orgânico e frutado favor não confundir com açúcar de cana)
30 graus onde deixei parte de mim na volta pra casa
dizem que foi extravio mas eu sei
onde escondi a mala sob o piso
do apartamento
(entre a geladeira e a máquina
de fazer torradas
mas não contei pra ninguém)
não é segredo pois as coordenadas variam com o estado
de ânimo hoje
monitoro daqui – há anos já existe aquilo de
CONTROLE UNIVERSAL
a areia, na mesa, faz meus dentes rangerem com feijão
(se escondeu no saleiro no lugar do sal
e do arroz – pra umidade)
para você ver, querida, que sal demais não faz bem.
deixei a porta destrancada
mas sempre
que saio surto como se tudo fosse bem
“ metrô / subway -> “ (à direita)
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e sinais de cuidado
cigarro dá câncer”.
e à noite no cinema a brigada de incêndio está a postos
em caso de emergência.
já estou melhor obrigada.
J. CIPOLLA estudou Gastronomia e Letras, mas sempre quis estudar Artes Plásticas.
Gosta de plantas, de cozinhar. É artista e escritor.
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COTIDIANOS Seris Marques
Fortaleza, CE
Era um evento gastronômico qualquer... desses que só pode comer
depois de tirar uma foto do “pratinho gourmet” (pensamento azedo esse,
melhor guardar contigo, deixe que as modernidades falem por si) Famílias,
casais de namorados, um cenário bem agradável de se ver, quase de
novela... Fomos. Eu, vinte e nove, ela três. Ambas com a cumplicidade
mútua e silenciosa que o andar de mãos dadas reserva à vida. A música era
agradável, porém alta demais. Comemos um cachorro-quente sentadinhas,
embaladas pelo ritmo e alvoroço ao nosso redor. Ela olha, mastiga, reflete...
-Mamãe isso é uma festa?!
Dou um beijo e penso cá comigo sobre toda essa inocência: Isso
mesmo, minha pequena, uma festa sinto dentro de mim por que você está
aqui ao meu lado.
SERIS MARQUES é mãe, estudante de enfermagem e escreve informalmente.
© Juliê Caroline
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Sérgio Santos
Barreiro, Portugal
Eles eram mesmo inacreditáveis, nunca vi ninguém assim. Culpa
certamente do lado materno da família, três irmãs que educadas tentaram
moldar a descendência e causaram estragos inimagináveis. Da província
donde vieram, sofreram agruras, aprenderam a contar os poucos tostões
que tinham com uma educação férrea a chicote, os progenitores rapavam
o tacho com arranca-pregos.
Todas elas eram temíveis, monstros da poupança com recursos
inimagináveis, e das três a mais nova era a mais fanática, dir-se-ia que à
medida que iam nascendo a forretice aumentava alucinadamente. A mais
velha apesar de seriamente doente era a mais contida e a do meio tinha já
sintomas agravados de fúria selvagem.
Família de Forretas
© Juliê Caroline
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Vamos analisar então a família Ribau, onde a irmã mais nova é a
matriarca da família, indominável farol da poupança.
Celestina Ribau, 62 anos - Trabalhou durante muito tempo como
costureira e trata dos afazeres da casa, como o marido teve muito tempo
embarcado como cozinheiro numa carreira marítima, raramente regressava
ao lar. Infortunadamente teve um acidente quando os filhos ainda eram
novos e faleceu, coube à mulher a missão de continuar a educá-los.
De mentalidade espartana, era exigente, nada de brinquedos ou
luxos, de nada serviam as gritarias da miudagem apelando a um qualquer
doce, a resposta era invariavelmente "Não"! Visitas de estudo com
comparticipação dos encarregados de educação só em fantasias, ficarem
fechados no quarto fortalecia o carácter e afastava os perigos. A
propaganda era constante, os maus exemplos eram citados, ser “esbanjão”
perdulário não chega a ser um horror é mesmo o inferno! Com altos gritos,
vilipendiava as vizinhas doidas e as suas famílias que gastavam o que não
tinham, mas avisava, na queda o castigo seria temível, o que era muito bem
feito.
Nas compras o seu olho de falcão não perdoava, era capaz de andar
quilómetros só para ir fazer compras no local que lhe oferecesse o melhor
preço.
Tudo em casa tinha que durar mais do que era suposto, um rolo de
papel higiénico obrigatoriamente teria que ser usado apenas num mês,
mesmo com algum esforço, com quatro pessoas a morar em casa ao fim de
uma semana ele acabava. Todos teriam que usar material alternativo para
colmatar a falha, imaginação não faltava e lá se encontravam soluções.
Apesar de atualmente os filhos serem já crescidos, aprenderam bem a
lição da "poupança" tendo inclusive superado a progenitora de forma
notável. Foram de tal forma moldados que hoje florescem exibindo a sua
admirável forretice de 1ª água.
Mário Ribau, 38 anos - Tirou o curso de arquitetura, tem casa própria,
mas mora a pouca distância da mãe, como habita sozinho o lar onde vive,
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todos os dias vai a casa da mãe comer o almoço e jantar, poupando uns
preciosos trocos. Costuma armazenar um grande monte de roupa suja que
traz para a casa da mãe onde será feita a lavagem, não comprou uma
máquina de lavar roupa, tendo feito aí uma poupança engenhosa muito
útil, além de evitar um esforço inútil e burocrático que lhe roubaria dinheiro e
tempo para outras funções mais vitais.
Adora ir passear a centros comerciais e lojas e munido de calculadora
e com a sua agenda está sempre atento às flutuações dos preços. Escusado
será dizer que está em alerta geral na altura dos saldos, faz uma marcação
cerrada quando procura um determinado produto ou bem. Capaz de
esperar algumas horas antes da loja abrir com a gula de ser o primeiro a
saborear a conquista da preciosa pechincha.
Arranja todas as desculpas inacreditáveis para se desculpar perante
os seus amigos e colegas para não ter que comer em restaurantes, seria
uma despesa incomportável que traria danos incalculáveis. Ir a bares e
discotecas jamais, seria um dispêndio inútil, perdulário e devastador.
Oferecer prendas, só mesmo por obrigação e de preferência adquiridas em
lojas de conveniência e de baixo valor. Só de pensar que terá que oferecer
a um colega um par de meias chinesas em 2ª mão, o coração até dói.
Apesar de ter a carta de condução nunca comprou um veículo
automóvel, prefere viver à custa da boleia dos outros. A maneira como
arranja amigos é absolutamente cínica e calculista, existe uma ponderação
muito cerebral na escolha das amizades em virtude da utilidade.
Por exemplo o vizinho do lado está já aborrecido com o assédio constante e
neste momento mantém uma distância incómoda o que traz alguns
transtornos inevitáveis. Porque não tentar conhecer melhor o vizinho do
andar de baixo, terá que existir um estudo exaustivo a respeito de horários e
rotina de vida. A "sanguessuga" terá que estudar bem a vitima para a
espoliar da maneira mais eficaz e duradoira.
Existem também os transportes públicos e os documentos forjados
para ter o desconto no fim do mês são um agradável alívio. Nada como
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chular o Estado e o dinheiro dos outros. Existam abusos e fracos recursos de
proteção e nunca faltará vontade para o "Robin dos Bosques" praticar a sua
justiça, roubando de todos para ele.
Na verdade ele é um herói, a sociedade de consumo institui
armadilhas de desejo para que os imbecis se suicidem com as suas parcas
poupanças. Não ele, qual vietcongue rebelde, no seu esconderijo
subterrâneo subverte as regras e tem uma vida de rei à sua maneira.
Márcia Ribau, 36 anos - Bem, entramos agora num novo nível,
esqueçam palavras como pão-duro, sovina, bola elástica surge um novo e
mais potente termo, que é "Marcinar". Ela recusa-se a sair da casa dos pais,
casar, praticar atividades tempos livres, enfim ter vida social ou mesmo vida
própria, tudo isso custa dinheiro e traz muitos transtornos e trabalhos. A vida
dela é simples: comer, dormir, trabalhar, necessidades mínimas e mais
nada...
O pequeno-almoço é sempre o mesmo, sopas de pão duro do dia anterior
com leite barato quase no limite do prazo de validade. O emprego fica a
dois passos de casa, poupança muito útil, evita pois gastar fortunas em
deslocações. Apesar de ter habilitações literárias superiores para uma
simples empregada doméstica, optou por esta profissão para ganhar mais
dinheiro.
Ruben Ribau, 23 anos - Benjamim da família, mas mostra já o seu
potencial, sente horrores só de pensar que pode ter que pedir dinheiro à
mãe ou gastar a sua mesada de cêntimos. Opta pelo roubo, poder-se-ia
dizer que o faz pelo prazer da transgressão e rebeldia, mas não! Trata-se de
uma opção cerebral e ponderada e dessa forma consegue fazer grandes
poupanças.
Roubar ourivesarias e bancos, meter-se em tráfico de droga... Ridículo!
Demasiado perigoso... Gamar um Bollycao, sumos e mesmo pão é
igualmente vantajoso e muito mais inteligente numa estratégia a longo
prazo.
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Bilhetes de concertos, assistir a jogos de futebol, entrar em discotecas
de consumo mínimo... Ele consegue fazer tudo isso sem gastar um vintém, ou
contrário dos irmãos, a fama de forreta é bem dissimulada, na calada ele
comete as ilegalidades que o salvam. Surripiando, engendrando esquemas
contorna os obstáculos.
Comprar um carro? Rouba-se um. Comprar gasolina para abastecer?
Com uma bomba consegue surripiar o combustível dos carros dos vizinhos,
arranjou cópias das chaves da tampa do depósito e pela calada da noite
lá enche o material do saque num pequeno bidão.
Tem tanto sucesso que nem precisa ter um emprego fixo. A forma
como arranja pequenos trabalhos temporários tem sempre por trás uma
necessidade, se precisa de fazer cópias de chaves vai trabalhar numa loja
onde fazem esse serviço, aproveitará os recursos da loja para servir-se a ele
próprio e aos seus interesses.
Várias vezes pensa neste assunto, se um dia for apanhado e for para a
cadeia o que poderia ser um problema, afinal até pode ter virtualidades.
Nunca iria poupar tanto se não estivesse lá, alojamento e alimentação
gratuitas, com o serviço de saúde prisional à sua disposição caso fosse
necessário.
Preocupa-o a vida agitada que ele tem, gostaria de ter mais tempo para
desenvolver as suas necessidades intelectuais, ali num quarto só para ele,
talvez pudesse transformar-se num escritor de sucesso, sem distrações a
produtividade dele seria fabulosa. Era capaz de ganhar milhões e quando
fosse posto em liberdade poderia gastar tudo numa reforma dourada e
aproveitar os últimos dias em grande.
SÉRGIO SANTOS é designer, formador, autor de banda-desenhada e escritor, no
tempo livre.
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ESPECIAIS
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DESPIEDADE Cabral Pinto
VILA NOVA DE CERVEIRA
© Luciana Belinazo
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Na cidade onde os muros
fecham as portas
e as valas da cegueira
são profundas
a iniquidade dos homens
resvala lenta e silenciosamente
nas vielas da tortura.
Sozinhos, circunspectos,
os senhores do mal
caminham
pelas ruas da mórbida crueldade.
Que sonhos misteriosos
têm os deuses da infinita desumanidade!
CABRAL PINTO é professor, artista plástico e poeta. Publicou o 1º livro de
poesia, “Coisas de Nada” em 2014 e, actualmente, além de estar trabalhando no
seu segundo livro de poesia, é Consultor Cultural na Fundação da Bienal
Internacional de Vila Nova de Cerveira.
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Vivo. Morto. Vivo
Flávia Pritsch
PORTO ALEGRE, RS
© Luciana Belinazo
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Andei por aí, pelo mundo e depois nasci. Sem saber porquê, ia
seguindo. Quando quis parar de andar, não me deixei. Até que nasci. O
nascimento foi a introdução de um sentido; a invenção de um motivo.
Enquanto era um semimorto-vivo (a alma estava adormecida, não morta)
vaguei pelas ruas, parques, escadas, corredores, camas. Não suguei o
tempo; antes, joguei-o fora, para longe. Disse palavras absurdas e adoeci,
pois doentes eram os meus pensamentos. Cravei meus dentes em pescoços,
machuquei, mas não me feri. Semimortos-vivos não sentem. São palhaços,
mas não sabem; tem pressa, mas não sabem de quê. São tolos, ingênuos,
tristes. Não sabem para onde ir, porque já estão meio enterrados. Sentem a
terra sob seus pés, subindo em seus joelhos, grudando-se em seus pelos. Eu a
sentia se aproximar de minhas coxas. Reagi.
Quando nasci, dei um chute no ar, atirando a terra que me cercava
para longe. Houve uma testemunha. Ela assistiu de longe, enquanto meu
grito, sem som no começo, foi aumentando e se prolongando, afastando de
mim todo ar podre que eu respirava. Ela sabia quem eu era até então, mas
não sabia no que me tornaria. Eu já havia cravado meus dentes em seu
pescoço, sugado seu tempo e tentado me adonar de sua vida, mas ela
resistira a tudo. Agora, muda, me assistia de longe e, pacientemente, me
aguardava.
O tempo entrou em meus pulmões e eu passei a inspirá-lo com
cuidado. Tive que aprender a esperar. A escolher com atenção a cama em
que me deitaria. Minhas palavras não eram mais o vômito de antes. Aprendi
a não procurar por pescoços para saciar minha sede por vida. Eu a saciei no
mundo, na arte, no som, na cor. Mas, o mais difícil e que tirou de meus pés o
único resquício de terra que ainda sobrava, foi habituar-me aos meus olhos
totalmente abertos, vivos, por onde a alma, agora desperta, não cessava
de pedir que eu não os fechasse, nunca mais.
FLÁVIA PRITSCH é estudante de Letras e atualmente procura nos livros o tempo
perdido.
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Vida
Jordano Souza
SÃO GOTARDO, MG
Um carro velho
Casa simples
Cômodos pequenos
Cozinha com azulejos caídos
Quintal com grama alta (mas verde)
© Banksy
43
Cachorro cansado
Ração barata
Água corrente saciando a sede
Cordas enferrujadas
Violão enferrujado
Relógio parado
Tempo sem usar.
Precisa de mais?
Temos condução
Abrigo
Lar
Comoção
Admiração
Mais?
Essa imagem
Amarela
Preta
Branca
Essa imagem
Real
Bem vivida
Viva
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No seu olho
No meu
É vida.
JORDANO JOÃO BATISTA DE SOUZA escreve desde a adolescência, já publicou
vários poemas em blogs e revistas digitais, tendo alguns textos classificados em
concursos. Atualmente o autor se dedica aos Haicais e poemas sobre o cotidiano.
Depois de passar por Goiás e Brasília, voltou a morar em Minas Gerais, onde
continua escrevendo.
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais:
Colaboração especial:
Juliê Carolina e Isabela Jerônimo