revista subversa vol 3 n.º8 nov.2015

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SUBVERSA EBER CHAVES BRUNO FLORES ANDERSON FREIXO BOMQUEIROZ MILTON REZENDE GLAUBER COSTA MARCO AURÉLIO DE SOUZA DEMETRIOS GALVÃO PEDRO BELO CLARA KRISHNAMURTI Vol. 3 | n.º 8 | Novembro de 2015 ISSN 2359-5817 Ilustração A MIMURA

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Uma Subversa que fala de desamparo e loucura.

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Page 1: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

SUBVERSA

EBER CHAVES

BRUNO FLORES

ANDERSON

FREIXO

BOMQUEIROZ

MILTON REZENDE

GLAUBER COSTA

MARCO AURÉLIO

DE SOUZA

DEMETRIOS

GALVÃO

PEDRO BELO

CLARA

KRISHNAMURTI

Vol. 3 | n.º 8 | Novembro de 2015

ISSN 2359-5817

Ilustração A MIMURA

Page 2: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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@CANALSUBVERSA

[email protected]

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 3 | n.º 08

© originalmente publicado em 16 de novembro de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

A MIMURA

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realida

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EBER CHAVES | DRAMA | 7

BRUNO FLORES | A MARCHA DE ALBERTO | 10

ANDERSON FREIXO | CHÁ DE BOLDO | 16

BOMQUEIROZ | DELÍRIO | 18

MILTON REZENDE | EXPURGO | 20

GLAUBER COSTA | O RIO | 22

MARCO AURÉLIO DE SOUZA | O VELOTROL | 26

DEMETRIOS GALVÃO | OS CENTAUROS TAMBÉM AMAM

| 28

PEDRO BELO CLARA | A CHEGADA DAS NUVENS | 31

KRISHNAMURTI GÓES | A PALAVRA NUNCA | 33

SUBVERSA

Page 4: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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EDITORIAL

Os textos que compõem este número já foram escolhidos há

algum tempo, os autores sabem disso. O que ninguém sabia é que

eles seriam publicados como uma espécie de ressaca de um fim

de semana em que o terror saltou mais uma vez aos olhos de

todos e chamou a atenção para o terrorismo cotidiano ao qual

ainda estamos condenados.

O terror não bate à porta de uma só nação. Ele entra em

salas de espetáculos e também na natureza. Desce rio abaixo e

depois a gente mesmo prova-o na língua. O atentado do homem

é contra a própria obra humana, artística ou civil. A crueldade

não está fora de nós, ela só se apresenta através de uma forma

insuportável, de tempos em tempos e, eventualmente, faz a nossa

própria imagem de refém.

Talvez hoje a Subversa que fala de desamparo, descrença e

loucura seja pequena demais. Que trabalho, afinal, pode fazer a

literatura diante da tragédia?

Colocar o homem diante de um espelho, talvez, apaziguar

um pouco as agruras, visualizar a possibilidade de um mundo

harmônico. Mas, acima de tudo, mostrar a importância que tem

um autor no mundo atual, seja rico, pobre, homem ou mulher. O

problema maior na desvalorização do escritor não é, na verdade,

político. O problema é não sermos capazes de entender que um

escritor faz parte daqueles que não querem a paz somente dentro

de si, mas sentem a necessidade de colocá-la para o lado de fora

e fazê-la circular nas ruas. Quiçá, entre as nações.

As editoras.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)

Adquira e apoie o crescimento da revista.

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EBER CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

I

O quão penoso foi

quando atravessei a aflição

do revolto mar azul de infortúnios

e no meio do caminho

avistei uma ilha.

Mas ao abrigar-me sob a sombra acolhedora

de um coqueiral imaculado,

não resisti atribulado

ao desejo de olhar o sol a olho nu.

O quão penoso foi

quando atravessei a solidão

do insensível deserto de indolências

e no meio do caminho

avistei um riacho.

Mas ao transpô-lo e molhar os pés em vívidas águas,

livrei-me das sandálias

e, descalço, caminhei

sobre o musgo de pedras afiadas.

II

Quando as naus cortaram a aflição do mar sem fim,

quebrando noites, ondas azuis e marés infortunas,

DRAMA

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o desembarcar:

de trevas abissais, noite densa foi alívio.

Alívio incinerado ao alvorecer: voavam cinzas soltas ao vento

para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam.

Alívio que buscaram na sombra acolhedora de um coqueiral

imaculado,

vã busca, já estavam deslumbrados

pelo desejo de olhar o sol a olho nu

– e isso cegou-os.

E quando nômades romperam a solidão do deserto sem fim,

saltando dias de areias e sóis cor de ouro e cor de fogo,

o mergulhar:

de inferno, sol do meio-dia foi alívio, desafogo.

Desafogo afogado em águas rasas: corria inerte a correnteza

para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam.

Desafogo que buscaram na transparência de cristalino lago,

vã busca, já estavam descalços

caminhando sobre o musgo de pedras afiadas

– e isso dilacerou-os.

EBER CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara, Bahia. Atualmente, reside em

Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro,

apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de

ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. |

[email protected]

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BRUNO FLORES | Rio de Janeiro, RJ.

Alberto Silveira Braga, almirante quatro estrelas reformado, abria

caminho com duas sacolas de compras entre o Gandhi, a Marilyn

Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e

serpentinas, enquanto uma colorida bola de praia era estapeada pra lá

e cá sobre o mar de cabeças. Um palhaço de circo passava em

pernas-de-pau, uma fadinha purpurinada balançava um bambolê e

homens travestidos de noivas, baianas e quengas tocavam

instrumentos. Nem Lewis Carroll imaginaria tamanha lógica do absurdo

materializada no mundo real; a vitória inquestionável da insanidade

coletiva. Afinal, não se tratava de um pesadelo nem o velho Braga

estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, o carnaval do Rio de

Janeiro; período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem

para cinco dias de embriaguez, galhofa e sem-vergonhice.

O teu cabelo não nega mulata

Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega mulata

Mulata eu quero o teu amor

A marchinha trouxe lembranças dos bailes de gala no Teatro

Municipal, ele e os amigos de escola naval vestindo fraques elegantes,

as mulheres brilhando em fantasias de Cleópatra. Tempo de alegrias

comedidas, sem drogas ou libertinagem, rumo à estabilidade: uma

esposa decorosa e comprometida a criar futuros gênios da medicina,

advocacia ou política. Doutores e senadores. Seus rebentos. “Os Braga?

Estes sim são exemplares, modelo de estirpe, não há uma semente ruim

entre eles, todos ajuizados e bem-sucedidos”, diriam os colegas de

farda, de Clube Naval, e, mais tarde, de seus seletos círculos de

A MARCHA DE ALBERTO

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gabinete. Acreditou que tudo fluiria no automático quando casou-se

com Marieta, e a sensação de dever cumprido o permitiu dedicar-se a

sua outra obrigação, comandando corvetas pelo Rio Negro e São

Francisco.

Hoje, a simples troca de uma lâmpada lhe exigia um esforço

sobre-humano. O tempo é mesmo uma amante inescrupulosa; nos tira

tudo e arruína nossa existência. Sortudo havia sido o Heraldo, morto

durante o “milagre” do Médici, muito antes de experimentar os

dissabores dessa rotina sem apetite sexual, escrava da diabete,

hipertensão e colesterol galopante.

Tens um sabor bem do Brasil

Tens a alma cor de anil

Mulata mulatinha meu amor

Fui nomeado teu tenente interventor

Alberto sempre fora entusiasta da boa e velha ironia, mas essa,

que o destino miserável lhe imputava, era demais até pra ele. Aquela

mesma marchinha, criada por uma geração que sonhava com um

Brasil progressista, agora era entoada por esses baitolas e imbecis que

deviam estar atrás das grades por perturbação da ordem pública.

Como haviam se enganado! Anos e anos desperdiçados tentando

limpar a merda desse país, para que, cedo ou tarde, os bueiros todos

fossem abertos e a podridão se instalasse como musgos sobre a terra.

Que esgoto a céu aberto! Sentiu o rosto em chamas, uma fúria que lhe

varria as vísceras, e bendisse sua sorte por não ter trazido o trinta e oito.

Se tivesse, sem dúvida esvaziaria o tambor para pôr fim àquele ultraje.

Um rapaz loiro fantasiado de sheik árabe chacoalhava o

esqueleto com cerveja na mão. Alberto se deu conta de que lembrava

muito Henrique: mesmo tipo franzino, fracote, com olhar de palerma.

Deu uma trombada violenta no moleque, que foi ao chão levando

outros dois junto com ele, como num jogo de dominó.

- Qualé coroa!?

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- Calma ai, meu senhor!

- É carnaval...

Seguiu em frente com um sorriso de canto de boca, num lampejo

de satisfação ao interromper, mesmo que por um minuto, a farra

daqueles pulhas. Já estava puto da vida por ter tido que sair na rua.

Desde a morte de Marieta, todo ano fazia um estoque de comida e

bebida antes dessa ode à estupidez chamada carnaval. Ficava

trancafiado os cinco dias, distraindo-se com seus livros e telejornais,

apenas ouvindo, a uma distância segura, rumores da algazarra. Sempre

dava certo e ele conseguia evitar o estresse, mas esse ano calculara

mal a quantidade de vinho do porto, religioso acepipe antes de cada

refeição. Não conseguia engolir uma garfada sequer sem antes

entornar duas doses de Porto Quevedo. Ainda assim, decididamente,

não tinha valido a pena pisar fora de casa.

Entrou e sobre a mesa da sala estava uma carta. Porteiro filho da

puta! Já advertira o Antônio, seu filho mais velho, que essa história do

porteiro ter uma chave do apartamento era não apenas desnecessária,

mas também imprudente. Embora ele nunca viajasse, nem mesmo

dormisse fora de casa, os porteiros conheciam sua rotina e poderiam

entrar quando ele não estivesse, pegar uma cerveja aqui, um gole do

uísque ali, um bombom de licor acolá... Talvez aí estivesse a explicação

porque seu Porto Quevedo acabara tão depressa dessa vez. Filhos da

puta!

Aproximou-se da mesa e viu o que estava escrito no envelope:

“A/C Almirante Alberto Braga”.

Paralisou. Sentiu como se mergulhasse num oceano em

tempestade. Um suor gelado e opressivo se formou em segundos,

escorrendo em gotículas por seu corpo, o coração palpitando como

rufos de tambor. Era a letra, a inconfundível letra de Henrique.

Hesitou por longos minutos. Caminhou com dificuldade até a

cozinha, as pernas ameaçando ruir como colunas seculares, e encheu

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o copo de Jack Daniels. Agora, o vinho do porto simplesmente não

daria conta. Virou metade da dose, rasgou o envelope e começou a ler

a carta, mas parou quando o copo de uísque se espatifou no assoalho.

Encarou o vazio, neurônios pipocando por terrenos baldios da

memória, até o som da marchinha resgatá-lo das profundezas. Andou

feito um zumbi até a cômoda da sala, tirou o trinta e oito da gaveta e

saiu à varanda.

O bloco estava parado bem em frente ao seu prédio, oculto sob

a copa das árvores.

Ó jardineira porque estás tão triste

Mas o que foi que te aconteceu

Foi a camélia que caiu do galho

Deu dois suspiros e depois morreu

Engatilhou e disparou um tiro em cada direção, conscientemente,

numa insanidade ordenada. Voltou para dentro, alheio aos gritos de

desespero, e sentou-se na cadeira com o revólver no colo. O olhar,

perdido no porta-retratos, buscou viajar no tempo: ele, de farda branca

e quepe da Marinha, Marieta num vestido austero de dona de casa,

Antônio com oito anos e o pequeno Henrique, com quatro, camisa do

Botafogo, shorts e meião, o único que não olhava para a câmera,

encarando de cenho franzido algo que apenas ele enxergava. Mais

atrás, atracada na base naval de Aratu, via-se a Fragata Niterói, que

Alberto estava prestes a comandar pela baía de Todos-os-Santos.

O porteiro e a polícia irromperiam porta adentro pouco depois,

levando o velho almirante Braga para uma viagem sem volta.

No carnaval seguinte, o bloco da Rua do Catete levou dois mil

foliões às ruas. Ninguém se lembrava do velho militar aposentado que

morava no prédio da esquina, sujeito rabugento que vira e mexe

arrumava briga com vizinhos e comerciantes. Nem ao menos se

lembravam da história que dera cabo de sua vivência por ali e que na

época inundara os jornais e tabloides sensacionalistas: o almirante

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descarregara um revólver da varanda, matando dois jovens fantasiados

de Raul Seixas e Bob Marley, que acompanhavam o cortejo.

Condenado a dez anos de prisão, foi negado o regime semiaberto,

apesar das limitações da idade. A pena, contudo, foi encurtada pelo

próprio almirante, habituado a comandar seu destino como se fossem

navios de guerra, graças a uma navalha surrupiada para dentro do

presídio pelo filho de um colega de farda. Um corte limpo na garganta

e pronto, o fim da marcha do velho almirante Braga.

Ah sim, o surto na varanda supostamente ocorrera após a

descoberta do suicídio de seu filho esquizofrênico. Mas disso também

ninguém se lembrava, uma vez que a Terra já completava uma volta

em torno do Sol e os deuses da “embriaguez, galhofa e sem-

vergonhice” nos traziam um novo carnaval.

BRUNO FLORES é autor do romance "Rumah" (Editora Multifoco, 2015), uma

aventura épica sobre um povo neolítico das ilhas do Pacífico Sul. Tem duas

resenhas críticas publicadas em livro de homenagem ao centenário de Jorge

Amado, lançado na Bienal do Livro de São Paulo em 2012, além de contos,

críticas de cinema e literatura em revistas digitais e blogs. Reside no Rio de

Janeiro (RJ), é jornalista e pós-graduado em Gestão e Produção Cultural. |

[email protected]

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ANDERSON S. FREIXO | Salvador, BA.

Um chá de boldo, com cidreira pro boldo descer melhor. Ainda não sei

quando estarei apto a comer, por isso fumo. Pois é. Ontem eu bebi demais. De

tudo que me falta sinto uma fome violenta. Tirando os amores e umas letras

que sei de cor, não tenho nada. Sonho até às oito, depois trabalho. Depois

das cinco eu tropeço nas calçadas. Tento deslizar pelo chão áspero da vida,

me dividindo, me fragmentando, pra escorrer melhor pelo ralo. Já elaborei

uma equação que engloba o universo todo. Só me falta saber matemática. E

não há quem me ensine, não há quem me salve. Pra cada oração que fazem

pra Deus, Deus responde "foda-se". São todos problemas pequenos demais. O

ser humano se desenvolveu para realizar uma tarefa específica: esticar

problemas. O problema é um objeto de culto, já é quase uma religião. Eu

estava sentado no vaso, mijando pelo cu e vomitando ao mesmo tempo e

você vem me dizer que está sofrendo. Eu tomei chá de boldo, não fui

resmungar. E eu nem sei mais de nada. Estudei muito pra isso. Deixe que eles

dominem o mundo, que eles mudem o mundo, que eles salvem as focas. Eu

vou é bater punheta enquanto o salário não cai na conta. Eu nem sei mais de

nada. Esqueci muito pra isso. Se eles roubam cores da cidade pra tornar minha

alma entorpecida, a ferro e fogo eu rasgo a minha pele, e com o sangue eu

torno a cidade colorida. Pra isso eu não dependo de ninguém. Tirando os

amores, umas letras que sei de cor, uns trocados no bolso e os cigarros, eu não

tenho nada. E só preciso disso. Disso e dessa vaga impressão de que vai ficar

tudo bem. Pra seguir vivendo.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em

Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por diversas revistas,

como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos

no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página no Facebook, chamada

Zona do Freixo. | [email protected]

CHÁ DE BOLDO

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BOMQUEIROZ | Uruguaiana, RS.

O carvalho do meu terno envelheceu o vinho do meu cenho. No fundo

do meu rio luzem dois olhinhos coxos e tristes e monótonos e da cor dos

infinitos… As madrugadas não deixam de desabotoar pretumes no

coração encarniçado do sol, e só o silêncio, que em tudo se parece

com o tempo, consegue manter em suspenso suas meias suicidas. Na

pálpebra do sexo a axila do compasso, a asa do moderno, o cheiro do

futuro. Eternizar-se é brincar na superfície da luz; proliferar-se é ser som

sem final. O delírio é uma flor que se arrancou da terra e se arremessou

aos ares num suspiro. Avelãs são passarinhos que não sentem frio e que

irão voar a vida inteira feito ovelhas que assoviam. Pelas sombras,

homens obram claridades; o fracasso é uma ilusão de seres de metal

que desistiram de ser inquebrantáveis. Uma clave sem dó, um

chachimbo sem fornilho, um dom sem nada. As máscaras são

interjeições represadas na alma e os limites são conhecimentos penosos

a desaprender. As pedras são donas do tédio e da paciência, senhoras

de toda meditação. Contudo, as pedras também voam, quando feitas

de pedaços do céu.

BOMQUEIROZ é de Uruguaiana (RS, Brasil) e nasceu embaixo de uma

bergamoteira. | [email protected]

DELÍRIO

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MILTON RESENDE | Ervália, MG.

hoje eu mordi

um chumaço de

papel higiênico

limpo para estancar

(ou tentar conter)

o sangramento

da língua dilacerada:

como um cadáver

antecipado que devora

o seu próprio sudário.

MILTON REZENDE possui nove livros publicados e alguns pássaros. |

[email protected]

EXPURGO

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GLAUBER COSTA FERNANDES | Ubatã, BA.

O rio corria rápido em viagem até ao mar. Ia por dentro de si

mesmo, afoito. Embora, vez ou outra, cansasse e diminuísse o ritmo,

adormecendo, em roncos longínquos.

Num desses cochilos, um pássaro cor de cinza se aproximou.

Aonde vai o rio? Vou para o mar. Dizia, com voz de sede. Mas o que vai

fazer no mar, o rio? Vou correr para o mar. E por que não ficas aqui com

a nossa flora tão densa e apetitosa? Eu corro para o mar. E saiu da

letargia, seguindo seu percurso de rio, sem se despedir do passarinho,

apenas olhando de relance para trás, prestes a cair sob a forma de

cachoeira.

Essas quedas davam-lhe prazer, descia com a sua cara risonha,

esquecido de tudo, no vento. E lá embaixo suspirava. Boiava, olhando

para o céu, esparramado, feliz. Até entrar, sugado, por um beco

estreito, de costas. Um susto! Depois, como sempre, virava-se e seguia

seu rumo. Dava duas tosses e seguia sério para frente, constante, até

voltar a acelerar.

Logo sentiu cócegas por dentro. Eram uns peixes cor de azul a

acompanhá-lo. Para onde vais com tanta pressa, senhor rio? Vou para

o mar. E o que há no mar que lhe faz ter tanta pressa? É para onde vou,

para o mar. E seguia firme, deixando os peixinhos sem fôlego para trás. E

por que não ficas, senhor rio? O que há no mar? Vou desaguar. E corria,

ouvindo apenas o borbulhar das vozes dos peixes já distantes, nadando,

insuficientes.

Na linha reta, a sua cabeça esvaziou, aberta, de testa para o

céu, até que encontrou muitas curvas. Muitas e muitas, de deixá-lo

O RIO

Page 23: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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tonto, ficando todo de rosto rente às margens. Então, o chão com sua

voz rouca e lenta lhe perguntou. Por que não paras um pouquinho a

descansar. Vou para o mar, vou para o mar. Dizia tonto, pelas curvas,

sem saber se falava com a margem direita ou com a esquerda. Vou

para o mar, vou para o mar. Eu não conheço esse lugar, o mar. O que

há no mar? Vou desaguar, vou desaguar. Dizia, confuso, o rio. E por que

a pressa, se tudo o que tens é água e vais desaguar?

Conseguindo sair do labirinto de chão, alargou-se. Mas havia uma

pedra no meio da lagoa que encontrou. Por que desvias de mim? A

pedra perguntou, solitária. Mas em silêncio, pesado, pela conversa com

o chão, o rio apenas lacrimejou no lago aberto, deixando para trás a

pedra e o lago, prosseguindo lento para o mar.

Desacelerou, pensativo. Distraiu-se. Abstraiu-se. Até que veio o

vento por cima e disse ríspido. Por que está tão devagar, o rio? Vá para

o mar, vá para o mar. E o rio, desconsolado, se pôs a continuar. Passou

por muitas plantas, avistou um campo de flores, que ficou a contemplar,

pois sabia que se olhasse para frente já daria para ver, gigante, aquele

mar. O oceano a lhe esperar. Seu coração de rio acelerou. Fechou os

olhos e esperou. Só ouvia o barulho imperativo das águas salgadas e

agitadas do mar.

Mas em meio a tanto barulho, brotava ao fundo outra voz, maior,

que surgia de dentro do burburinho surdo. Abriu os olhos e era uma

árvore grande e serena. Por que veio até aqui, o rio? Disse, tímido, a

gaguejar: vim para o mar, vim desaguar. E por que estás tão triste? É o

fim do meu caminho. Vou desaguar, vou para o mar, vou desaparecer,

vou me matar. Eu também tenho medo, disse a árvore milenar. Tenho

medo de cair na terra e desintegrar. E o que podemos fazer?! Indagou

o rio, apreensivo. Não há nada a se fazer, amigo rio. Chegou a hora de

se desfazer. Mas por quê? Por quê? Perguntou o rio a se afogar.

A árvore segurou-o com um pedaço de raiz e sussurrou. Não

tenha medo. Tu não estás inteiro aqui. Olhe para trás. E o rio olhou todo

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o caminho por onde percorreu. Ainda estava lá. E abriu a boca a se

engolir. Depois cuspiu e tossiu. O que é isso? É você. Tudo é você. Assim

como esses frutos no chão também sou eu. Eles caem de mim e a vida

vai continuar, de mim, sem mim, que logo vou desmoronar.

É assim a vida, tem a morte. E morte é também vida a continuar.

Vês lá atrás, o que deixou? O passarinho, os peixinhos, o chão e toda a

relva ainda perdidos, mas a te amar. Tu estás bem aqui e consegues vê-

los e senti-los lá. Ainda depois que te desfizeres em mar, sem mais poder

vê-los, ou ainda lembrá-los, mesmo assim estarão lá, na tua atmosfera

de mar, distantes, esquecidos, de alguma forma estarão lá, porque

estarão aqui, sabendo o caminho que tu percorres eternamente rumo

ao mar, todos os dias. E se banharão nas chuvas, imaginando quais

gotas nelas são pedaços de ti, ainda que nenhuma seja tua... À beira

de ti, hão de te sonhar.

Mas como saberei se será assim mesmo, se vou desaguar? Feche

os teus olhos, amigo rio, que daqui te olharei chegar ao mar. Até o dia

em que cairei e serei chão, novamente perdido, como também estarás

perdido dentro do mar. Mas achado e perdido, é tudo a vida, meu

velho amigo. Adeus. Vá para o mar. Já não posso te segurar.

E o rio seguiu desconsolado, diante dele o mar, de braços abertos

a lhe esperar. Sentiu-se só. E foi-se, enfim. Sendo fortemente abraçado

pelo mar, a se desfazer, a se embaralhar, mergulhado e debatido, a se

afogar no mar...

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”,

ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto

“Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume

impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage

do Facebook chamada Manuscritos. | [email protected]

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MARCO AURÉLIO DE SOUZA | Ponta Grossa, PR.

Quando me perco nos terrenos

Baldios

Da saudade

Ainda escuto aqueles gritos

De lá vou eu

Ou os ecos oníricos

Do estalo das tampinhas

Que as gasosas de framboesa

Cantavam alto na garagem lá de casa.

Na esquizofrenia momentânea

Da memória

Estou sempre descendo por ladeiras

Desesperadas

Em meu velotrol azul e preto

Inalcançável.

MARCO AURÉLIO DE SOUZA é natural de Rio Negro,PR, graduado em História e

mestre em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela UEPG. Publicou os

romances O Intruso (Dracaena, 2013) e Conexões Perigosas (Kazuá, 2014).

Participa da antologia poética 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015).

Em 2016, publica E os desgarrados retornam para ti, sua estreia no campo da

poesia. Escreve no blog escritaforadesi.tumblr.com. Vive em Ponta Grossa/PR.

| [email protected]

O VELOTROL

Page 27: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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DEMETRIOS GALVÃO | Teresina, PI.

o coração é uma semente inventada.

herberto helder

natural é

existir sem roupa, palavra, cultura, bandeira...

há quem diga

que os centauros também amam

e que são doces os demônios das flores encarnadas.

há quem diga

que o amor transborda o peito

cria renda, bordado, tecido-muscular-elástico.

há quem diga

que o amor amansa a morte

e os rinocerontes de cobre envelhecido.

há quem diga

que o amor é bicho vadio domesticado

e que os amantes inventam esconderijos sublunares.

há quem diga

OS CENTAUROS TAMBÉM

AMAM

Page 29: Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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que o amor bagunça fronteiras

e que os líquidos confundem as estações do ano.

natural é

o amor construindo corpo.

DEMETRIOS GALVÃO, habitante da cidade de Teresina é poeta, professor e

historiador, com mestrado em História do Brasil (UFPI). Publicou os livros de

poemas Insólito (2011) e Bifurcações (2014). Participou do coletivo poético

Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012)

e da AO-Revista (2011-2012). Tem poemas publicados nas antologias

Massanova Literatura (2007) e Poematologia – os melhores novos poetas do

Brasil (2012). Atualmente é um dos editores da revista Acrobata. |

[email protected]

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PEDRO BELO CLARA | Lisboa, Portugal

Um mundo de folhas: este império decadente. Cada superfície um

espelho – o rosto da noite imensa. Sem a lua de outrora ou as estrelas tão fiéis

a quem no caminho havia perdido o norte. De tão brancas as folhas

enegrecem. Antes do abismo houve uma manhã. Um crisântemo brilhava. Em

teus olhos? No mistério do peito? Que sei dos fragmentos planando em

espesso lodo? Como quis falar-te do assombro em que deixam as faces os

botões da rosa, do cálido aroma que paira quando o vento passa suando

memórias de areias e sal, da ave azul e do seu canto na distância diluindo-se

com as serenas fúrias de quem quer dissolver o próprio corpo, do marulhar

antiquíssimo audível somente quando todos os sons se depuram quando todos

os ecos emudecem, das estevas baloiçando à luz da tarde despida sobre rios

de lisa placidez, das adelfas que no néctar de suas flores vertem a fórmula de

uma aguda forma de vida. Sabia porém quando cada palavra me sufocava,

sabia que excretar a inutilidade era mácula sobre os olhos sobre a boca dos

sentidos, eles que bebiam e logo o cálice desviavam certos do veneno

imbuído na torrente do ser cantante. Era tarde demais. Urdia-se por si

tumultuoso e devastador o poema fatidicamente torpe. Não adiantaria o

esforço. Os sexos sempre no silêncio estremeceram súbitos de vida. Tudo o que

a mão intentasse seria um gesto tão fútil quanto o poema paralelo àquele –

esse sim – que sublimemente inspirava o esgar de quem não nasce ainda mas

para sua vaidade o deseja. Não. De tanta majestade escoava-se o ruído da

ideia o rumor da palavra. Assim era.

O soprar das estações deposita na soleira um punhado de cinzas.

PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010), “Nova

Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012), “O velho sábio das montanhas” (2013) e

Cristal (2015). Além de prelector de sessões literárias, é actualmente

colaborador e colunista de publicações literárias. Outros trabalhos seus

poderão ser encontrados no seu blogue pessoal, “Recortes do Real” (crónicas

diversas). |[email protected]

A CHEGADA DAS NUVENS

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KRISHNAMURTI GÓES | Salvador, BA.

Ali está um simples homem sentado no interior de um templo.

Escolhera um assento na longa fileira de bancos, na altura do nicho que

abriga a imagem de São Pedro.

Com as mãos postas, parece recitar uma oração. A cabeça

baixa, mexe os lábios rezando firme, com fé.

Entretanto, com o fluir do tempo, os lábios tornam o murmurar

morno, depois frio e finalmente quase inexistente. A cabeça, por

instantes, lhe pende no abandono de uma sonolência sorrateira, até

que uma estranha oscilação de ideias o desperta. Ele suspira forte

enchendo o peito e esforça-se para voltar-lhe a letra da prece: “Seja

feita a vossa vontade...” Mas, como uma turbina que gira em torno de

um eixo, certa classe de ideias lhe turva o cérebro. Ideias turbinosas!

“Qual teria sido, afinal, o sentido exato daquelas palavras do

safado do Palhares? Depois de me ter forçado a dispensar o Amadeu

dos serviços que ele me prestava com a limpeza e o cultivo da horta,

vem agora com essas ideias de possíveis reformas. De ampliações, de

modernizações, de gestões administrativas! Isto é uma loucura. Isto é

surreal. Como é que pode? E o Amadeu como é que vai ficar? Para

onde terá ido? Como é que um homem sem um braço vai se sustentar?

E pensar que ele veio dar aqui pelas mãos da comissão pastoral dos

sem-terras, quando houve a reintegração de posse daquela fazenda

invadida... E depois que o país inteiro assistiu pela televisão, ao vivo e

em cores, àqueles gritos, correrias, desmaios, prisões e à cena brutal

dele caído no chão, com o braço metralhado, e a mulher, coitada, ao

lado, com as mãos à cabeça a gritar desesperada, a chorar”.

A PALAVRA NUNCA

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As mãos do homem agora estão inquietas, as pupilas brilhantes,

um desassossego de corpo.

“Assim na terra como nos céus. O pão nosso de cada dia... Onde

o Amadeu vai conseguir o pão? Palhares com aquele argumento de

que a diocese tenciona vender parte das terras da igreja e que, com

esse dinheiro, talvez construa uma nova igreja... O problema está

justamente aí. Talvez. O que me aflige é essa sugestão de que eu vá

temporariamente para o retiro espiritual. É para o seu bem, ele disse.

Para o meu próprio bem... Para o meu próprio bem... Para o meu

próprio bem uma porra! Não gostei. O que eu vou lá fazer em retiro

espiritual nenhum? Minha casa é esta. É aqui. Sempre foi. Há sessenta

anos que sou o padre dessa paróquia. Meu Deus! Eu preciso me

concentrar na prece. Não posso ficar entregue agora a essas

cogitações. Dai-nos hoje, Senhor... Mas eu... Não é possível!”

Uma expressão de angústia se reflete nos olhos aumentados.

“Tanto que eu me doei... Hoje eu estou assim inquieto. Uma coisa

aqui por dentro, depois da conversa com o monsenhor Palhares, está

mexendo comigo, como se estivesse me dando um aviso. E eu não

tenho sossego, esse assunto fica indo e vindo na minha cabeça”.

Tornou a se imobilizar, aéreo, pensativo.

“E dizer que o Palhares foi meu contemporâneo de seminário... Eu

nunca confiei nele mesmo, nunca fui com aquela cara de bajulador.

Em muito menos tempo do que era de se esperar, foi indo, de clérigo a

padre, e agora, bispo! Não leva em conta tantos anos que nos

conhecemos. Esqueceu-se de que quando eu aqui cheguei isto era

uma grande capoeira. Esqueceu-se de que ajudei a construir esta igreja

com minhas próprias mãos. É verdade. Eu era um jovem idealista e

neste lugar, naquela ocasião, me sentia tal qual um São Pedro a ouvir

as palavras do Mestre em Mateus, Cap. 16, vers. 18: ‘também eu te

digo: Tu és Pedro, e sobre esta rocha construireis a minha congregação,

e os portões do Hades não a vencerão...’ Para agora, no fim da minha

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vida, vir o pontapé que manda pelos ares tanto tempo? Tudo

esquecido assim?”

Após novo suspiro, inclinou um pouco a cabeça grisalha.

“Engraçada a memória da gente. Há umas coisas de que eu me

recordo como se estivesse vendo agora, outras não... Do que ficou para

trás, ainda hoje vejo nitidamente o tempo de quando entrei para o

seminário. Vejo o irmão Elpídio com aquele vozeirão a nos advertir sobre

o dedo vingador de Deus com aquelas concepções doidas de

caldeirões, espetos e garfos do inferno. Tudo para incitar-nos a ocupar

com o pudor e recato. E pensar que, anos depois, ele mesmo foi

abafadamente afastado da igreja por pura e simples prática de

pederastia”.

Uma chispa de riso aflorou nos lábios do velho padre.

“Oh Pai, que pensamentos! Perdão Senhor... E perdoa, Pai, as

nossas ofensas...”.

Mãos entrelaçadas no ventre. Os polegares tocando-se

nervosamente até que os olhos se desviam para as pedras do piso.

“Assim como nós perdoamos aos nossos devedores. O que será

essa trilha aqui? Meu Deus, serão cupins? Não. São formigas. Esses

insetos indiferentes, eternamente presentes em tudo, a andar nesta fila,

neste vaivém ordeiro. Só queria saber o que essas bandidas vêm fuçar

aqui. Ih! Parece que uma delas se perdeu da marcha, se desorientou e

vem para o lado de cá. Será que ela me alcança os pés? Hum! Dou-lhe

um pisão. Não, não ela, que tão desorientada, deve estar levando as

patinhas à cabeça, como uma pessoa enlouquecida. Como a mulher

do Amadeu na televisão. Não, as formigas só aprenderam a doce

candura da subsistência. Nunca experimentaram o ódio de que sempre

foi feito o perdoai uns aos outros das religiões humanas... Hum... E não

nos deixeis cair em novas tentações, Senhor... Nunca conheceram o

que é um bispo”.

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Recolheu os pés calçados nas velhas alpercatas de couro e

cruzou-os embaixo do banco.

“É certo que o Palhares não falou explicitamente em vender a

igrejinha. Mas hoje quando tudo está sendo vendido... Tudo! E aquele

padre espanhol com o olhar de inquisidor que estava junto com o

Palhares? Santo Deus!”.

As veias do pescoço mostravam-se salientes, as rugas do rosto

vincadas.

“Mas livrai-nos de todos os males... E tudo acontecendo para o

meu juízo ferver... São os sem-terra que vivem a me bater nas portas.

São os sem-teto, são os sem-emprego. É a pastoral carcerária dos

excluídos de tudo. São os maconheiros e os traficantes a se matarem

uns aos outros. Essa sucessão de tragédias sem parar, sem nexo, sem

sentido. Essa associação livre da violência no império do está

acontecendo. Queira Deus que eu tenha nervos para suportar essa

loucura... Onde foi mesmo que eu estava? Sim. Mas livra-nos de todos os

males, Senhor. E o Palhares. Ah, Palhares...”.

Trouxe o corpo para a borda do banco e ergueu a vista.

“O Senhor tem que me acudir para que essa tal venda não se

concretize. Como é que pode? Onde já se viu padre sem igreja, sem

teto, sem terra? O Vaticano. O papa não está vendo isso não é? Ave

Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Ô! Não era essa reza não,

É o Pai Nosso. O que vai ser de mim?”

Levantou-se. Com um frêmito de mãos parecia chamar Deus à

Razão.

“Já não basta, Pai, o brutal afastamento dos fiéis? Nem os antigos

têm vindo mais. Senhor... Eu sozinho... Sem ter quem auxilie nas missas,

nos trabalhos que exigem assistência, e ainda por cima ter que limpar

tudo e cuidar da horta”.

Tornou a sentar-se inquieto.

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“Só eu sei aqui dentro como está o meu coração. Tantos anos a

serviço da igreja. Da igreja, não! Em primeiro lugar, como servo do

Senhor, cumprindo, honrando na castidade o compromisso que assumi.

Aqui, agora, sozinho, sem ter quem me dê a mão na hora da minha

morte. Prestes a virar mais um velho abandonado na Santa Casa, a ser

cuidado pelas irmãs de caridade. As irmãs... Eu que nunca me casei. E

Marina. Onde será que anda a Marina? Aquela perdição. Será que

ainda vive? Ou não? Ah! Minha vontade mesmo é chorar...”

Faz esforço para interromper as lágrimas que lhe crescem nos

olhos e, certamente – a julgar pelo olhar suplicante que lançou - divisa

no altar principal a imagem do Cristo de marfim, com os braços

pregados na cruz de jacarandá, entortada e refratada pelas lágrimas.

“O que me vale é que o Senhor meu Deus sempre me ensinou o

caminho da paciência. Se não fosse isso, não sei o que seria de mim.

Paciência e resignação”.

Deu ao rosto uma expressão mais aberta, conformada; ou melhor,

uma expressão obediente.

“Acatar os desígnios da providência... É triste não ter com quem

falar, não poder ser ouvido neste mundo desconexo e brutal. Que

ironia, tanta tecnologia e a humanidade feito um formigueiro

desbaratado... O mundo mudou muito... Mudou demais... Meu Deus,

que horror...”

Levantou-se, fez o sinal da cruz, espreguiçou os braços e soltou

um longo suspiro de resignação depressiva. Nesse instante, rompendo o

silêncio sem fala possível, um casal de pombos levantou voo da torre do

sino rumo ao inatingível céu azul.

KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS é escritor e pesquisador. Autor de: Il Crime dei

Caminho Novo, Gato de Telhado, Um Novo Século, Embriagado Intelecto e

outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22

coletâneas e antologias, além de textos publicados em revistas literárias

estrangeiras. Seu último livro, O Touro do rebanho (Chiado), obteve o primeiro

lugar no Concurso Internacional da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em

2014, na categoria Romance. | [email protected]

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

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