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Instituto de Energia e Ambiente Programa de Ciência Ambiental/PROCAM USP Inovação para o desenvolvimento sustentável Ricardo Abramovay Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP [email protected] - www.ricardoabramovay.com - @abramovay Relatório de pesquisa São Paulo, outubro de 2017

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Instituto de Energia e Ambiente Programa de Ciência Ambiental/PROCAM

USP

Inovação para o desenvolvimento sustentável

Ricardo Abramovay

Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP

[email protected] - www.ricardoabramovay.com - @abramovay

Relatório de pesquisa

São Paulo, outubro de 2017

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Inovação para o desenvolvimento sustentável

Ricardo Abramovay

Resumo: Nenhuma região do mundo reduziu a pobreza (e, em parte, a desigualdade de renda) mais que a América Latina durante a primeira década do milênio. No entanto, esta redução teve como contrapartida uma estrutura econômica marcada por baixíssima inovação. Já os países desenvolvidos, onde boa parte das inovações contemporâneas se concentram, foram marcados por explosivo crescimento das desigualdades. Reduzir a pobreza sobre a base de baixa inovação na vida econômica é conquista efêmera. Inovação científica e tecnológica que amplia as desigualdades (como tem acontecido cada vez mais nos países desenvolvidos) é ameaça à própria coesão social. Há saídas para este dilema destrutivo? É possível um caminho em que a inovação seja concebida e desenvolvida com o propósito de resolver os mais importantes problemas socioambientais contemporâneos, ou seja, reduzir as desigualdades e permitir a emergência de uma economia regenerativa dos serviços ecossistêmicos que, até aqui, a oferta de bens e serviços tem sistematicamente contribuído a destruir?

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Dois desafios Estamos vivendo uma dupla mudança de época, uma dupla mutação. A primeira, de natureza geológica, corresponde a nossa entrada no Antropoceno. Desde a Revolução neolítica, doze mil anos atrás, a humanidade tornou-se uma força de transformação das bases de sustentação da vida no Planeta, ou seja, uma força biológica. Mas, a partir da explosão da Bomba de Hiroshima, da exploração em larga escala de combustíveis fósseis e da grande aceleração no crescimento econômico global, desde meados do Século XX, nos convertemos em força geológica em escala planetária, por nossa capacidade de alterar o próprio clima e, por aí, as condições favoráveis ao desenvolvimento das sociedades humanas que prevaleceram durante os últimos doze mil anos. O Antropoceno representa o fim de uma época geológica – o Holoceno – em que o clima ameno e relativamente estável foi a premissa mais importante para o florescimento da vida social tal como a conhecemos. Por maior que seja nossa capacidade técnica, ninguém sabe o que será a vida social na ausência dos estímulos favoráveis abertos pelo clima do Holoceno. A segunda mudança é inaugurada quando se fundem o computador e o telefone1, abrindo caminho para o que Manuel Castells chamou de sociedade da informação em rede. Seus dispositivos básicos são não apenas os computadores, mas, cada vez mais, um conjunto variado de objetos conectados entre si e que compõem um poder de processamento que abre caminho à concretização de algo que, até recentemente, morava apenas na cabeça de escritores de ficção científica e entre os muros de alguns poucos laboratórios: a inteligência artificial. A segunda mudança tem, em tese, o poder de ampliar nossas chances de desenvolvimento nas condições criadas pela primeira. Em parte este poder se realiza no avanço das energias renováveis modernas, no surgimento de novos materiais, na capacidade de estabelecer desenhos de bens e serviços que se apoiam no uso decrescente de matéria, de energia e de recursos bióticos. Na verdade, porém, este potencial emancipatório das tecnologias da informação e da comunicação nem de longe vem-se realizando. É verdade que a abundância na oferta de bens e serviços nunca foi tão grande e que, só nos últimos quinze anos, um bilhão de pessoas deixaram a pobreza abjeta em que viveram seus antepassadosi. Em 2013, havia no mundo 1,1 bilhão a menos de pobres do que em 1990, apesar do crescimento populacional no período ter sido de 1,9 bilhão de pessoas2. Não é menos certo também que, graças fundamentalmente a conquistas científicas e tecnológicas inéditas, existem chances reais para que se descarbonize a matriz energética mundial, reduzindo-se assim as ameaças que as mudanças climáticas fazem pesar sobre a vida social. Que se trate de pobreza extrema, educação básica, alfabetização,

1 Kelly, K. (2016) The Inevitable. Understanding the 12 Technological Forces that Will Shape our Future. New York. Viking. P. 2. 2 World Bank. 2016. Poverty and Shared Prosperity 2016: Taking on Inequality. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978-1-4648-0958-3. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO, p. 4

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alimentação, vacinação ou mortalidade infantil, foram imensas as conquistas do Século XX. A narrativa de um mundo cada vez pior é equivocada e paralisante, como mostra o trabalho do economista alemão e professor da Universidade de Oxford, Max Roser3. Apesar destes avanços há dois desafios cruciais sem cujo enfrentamento ampliam-se os riscos de que o Antropoceno se traduza em crescente destruição socioambiental e a revolução digital signifique a diminuição da própria dignidade humana. Avançam as desigualdades... O primeiro é o escandaloso aumento das desigualdades e, sobretudo, sua explosão em muitos dos países que tinham conseguido, ao longo do Século XX, reduzir sua magnitude e, sobre esta base, ampliar as bases da própria democracia. Nos Estados Unidos, por exemplo, a desigualdade de renda, desde 1970 subiu drasticamente, depois de ter caído, durante a primeira metade do Século XX. Na retomada norte-americana, após a crise de 2008, nada menos que 93% dos resultados do crescimento econômico de 2009 e 2010 beneficiaram 1% da população, como mostra o prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitzii. Em 1980, estes mesmos 1% da população norte-americana ganhavam 27 vezes mais que os 50% situados na faixa inferior de renda. Em 2016, eram 81 vezes mais4. Mais de 37% das jovens famílias norte-americanas (abaixo de trinta anos) viviam na pobreza ao final da primeira década do milênio. A pobreza atingia nesta época um total de 15% da população dos EUA, a maior proporção desde que estes dados começaram a ser publicadosiii. A concentração da riqueza é ainda maior que a da renda, segundo dois dos maiores especialistas internacionais sobre o temaiv: as 0,1% das famílias mais ricas dos EUA detinham 7% da riqueza nacional em 1978 e passam a controlar em 2012 nada menos que 22% deste total. São 160 mil famílias com ativos acima de US$ 20 milhões cada.

3 https://ourworldindata.org/a-history-of-global-living-conditions-in-5-charts/ 4 http://equitablegrowth.org/research-analysis/economic-growth-in-the- united-states-a-tale-of-two-countries/

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E esta não é uma particularidade norte-americana, como mostra o importante trabalho de Walter Scheidel. Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Luxemburgo, Nova Zelândia e Reino Unido conheceram também grande concentração da renda entre 1980 e 2010. E o que chama a atenção é a ausência de exceções no levantamento feito por Scheidel. Em onze de vinte e um países que publicam informações sobre a renda dos situados nos andares mais elevados da pirâmide social, a parte obtida na renda pelos 1% mais ricos subiu entre 50% e 100% entre 1980 e 20105. Mas se a situação dos menos abastados nos países ricos não chegou a torna-los miseráveis e se a redução da pobreza nos países em desenvolvimento foi tão importante, por que razão preocupar-se tanto com as desigualdades? John Rawls, um dos maiores nomes da filosofia política do Século XX, caracteriza a ideia de justiça pelo sentimento, por parte dos que se encontram na base da pirâmide social, de que são altas as probabilidades de que sua vida e a de seus descendentes melhore e que os benefícios das atividades econômicas não se concentrem, de forma excessiva, nas mãos dos mais ricos. Se este sentimento predominou na maior parte dos países desenvolvidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a partir do início dos anos 1980 ele foi substituído por uma espécie de desalento pelo fato de os benefícios do crescimento econômico se dirigirem a parcelas cada vez mais reduzidas da população. A riqueza é muito mais concentrada que os ganhos do trabalho. Enquanto a riqueza de 90% por cento da população norte-americana não aumentou entre 1986 e 2012, a dos situados no topo da pirâmide social correspondente a 0,1% da população aumentou nada menos que 5,3% ao ano.

5 Scheidel, 2016, posição 8610.

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O avanço da extrema-direita nos países desenvolvidos é, em grande parte, um reflexo da ruptura que atingiu o próprio contrato social sobre o qual se apoiam (ou se apoiavam) as maiores conquistas e as mais sólidas instituições da democracia contemporânea. Correlativamente ao aumento da desigualdade de renda, ampliaram-se também outras formas de desigualdade, nos países mais ricos do mundo, que se trate da saúde, da educação ou do acesso à justiça e aos bens públicos constitutivos da cidadania. Segundo Branko Milanovik 6 (economista norte-americano do Banco Mundial e um dos mais respeitados pesquisadores sobre desigualdades) a baixa classe média dos países desenvolvidos foi a grande perdedora da globalização. Comentando a vitória de Donald Trump, no Fórum Social Mundial de 2017, Michael Sandel, o célebre professor de filosofia política de Harvard, mostra que as elites não entenderam que estão em jogo, antes de tudo, a perda de senso de comunidade, de auto-estima e o sentimento de que o trabalho realizado pelas pessoas (mesmo quando estão empregadas) é cada vez menos reconhecido. O que está acontecendo não se refere apenas à economia, mas ao sentido de pertencimento comunitário. Desigualdades não podem ser enfrentadas apenas por políticas distributivas, mesmo que estas sejam fundamentais. Elas colocam em cena o tema das “razões cívicas”, que, como mostra Sandel, emergem quando a distância social torna-se tão grande que a esfera pública perde a capacidade de fazer com que nos “sintamos cidadãos engajados num mesmo projeto”7. ...e as inovações patinam O segundo desafio é o da inovação. Apesar do impacto disruptivo da revolução digital no mundo todo e de seu imenso potencial para a resolução dos problemas socioambientais contemporâneos (da agricultura de precisão ao controle do desmatamento ilegal, da energia distribuída aos veículos elétricos autônomos, da economia de materiais às oportunidades de conhecimento e valorização da biodiversidade), ela tem sido um importante vetor para a concentração da renda, das oportunidades e dos resultados das atividades econômicas. Embora seja crescente a quantidade de pessoas conectadas em rede por meio de dispositivos cada vez mais poderosos, a internet, ao final de 2016, não chegava a metade da população mundialv. Pior: estudos recentesvi mostram que é minoritária a real capacidade de uso dos instrumentos característicos da revolução digital na produção de bens e serviços, mesmo nos países mais ricos do mundo. A grande esperança de que a revolução digital poderia (ao contrário da lógica predominante na era tipicamente industrial) conciliar eficiência com radical descentralização das capacidades produtivas e economia cada vez maior de energia e materiais na oferta de bens e serviços, nem de longe vem-se concretizando. Os 8,8 bilhões de vídeos assistidos no YouTube, as 4,2 bilhões de buscas no Google e os 803 milhões de tweets diáriosvii não significam que os indivíduos

6 Milanovic, B. Global Inequality. A New Approach for the Age of Globalization. Harvard. The Belknap Press of Harvard University, 2016. 7 https://www.youtube.com/watch?v=WMafVnxchxc (a partir de 3’40).

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estejam usando os dispositivos digitais para melhorar seu desempenho em atividades econômicas. O avanço das desigualdades é um imenso obstáculo para que as inovações estimulem maior produtividade do trabalho daqueles que, até aqui, foram os principais perdedores do crescimento econômico das últimas duas ou três décadas. Vai-se criando uma polarização em que os ganhos das inovações atuais concentram-se na minoria que reúne as condições para servir-se delas na oferta de bens e serviços. Na maior parte dos países desenvolvidos, a partir da IIª Guerra Mundial, a produtividade do trabalho vinha-se ampliando, juntamente com os ganhos dos trabalhadores. A partir do início dos anos 1980, entretanto, houve uma clara dissociação entre as duas tendências. Desde 1999, segundo a Organização Internacional do Trabalho, a produtividade do trabalho, em trinta e seis países desenvolvidos, aumentou três vezes mais que o salário real, conforme pode ser visto no gráfico abaixo. Globalmente, a participação dos salários no PIB, que era de 57% em 2000, caiu para 55% em 2015, como mostra documento das Nações Unidas que avalia os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável8.

Fonte: ILO. Global Wage Report 2014/15. Wages and Income Inequality, p. 8 http://www.ilo.org/global/research/global-reports/global-wage-report/2014/lang--en/index.htm As capacidades produtivas cresceram, mas seus resultados dirigiram-se, cada vez mais, a uma parcela minoritária da população. Ou, como sintetizou Sumitra Dutta, um dos mais importantes estudiosos da internet: “se você não tem boa educação, não tem boa infraestrutura, mesmo que eu te dê tecnologia, você não vai conseguir tirar o proveito total disso”viii.

8 http://unstats.un.org/sdgs/files/report/2016/secretary-general-sdg-report-2016--EN.pdf

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Um estudo de dezembro de 2015, sobre a economia norte-americana, elaborado pela consultoria global McKinsey e citado no mais recente livro do jornalista norte-americano Thomas Friedman, vai na mesma direção. O estudo mostra uma “distância entre os setores mais digitalizados e o restante da economia ao longo do tempo...Apesar de sua adoção massiva, a maior parte dos setores não chegou a reduzir esta distância na última década...Como os setores menos digitalizados estão entre os maiores, em sua contribuição ao PIB e ao emprego, isso significa que a economia norte-americana como um todo está atingindo apenas 18% de seu potencial digital...Os Estados Unidos terão que adaptar suas instituições e o treino da mão-de-obra para ajudar os trabalhadores a adquirir habilidades relevantes e navegar neste período de transição”ix. Existe imensa discrepância entre o ritmo de transformações nas tecnologias físicas da era digital e a velocidade em que emergem tecnologias sociais capazes de melhorar seu uso e seu proveito social. E isso se exprime claramente no mercado de trabalho, como mostra a McKinsey: “desde 2000, os Estados Unidos criaram o equivalente a oito milhões de empregos em tempo integral. Dois terços destes foram em trabalhos de baixa qualificação...Os setores mais digitalizados são os que, de fato, propiciam os mais rápidos aumentos de salários, mas eles correspondem apenas a 19% do total dos empregos norte-americanos”9. Yual Noah Harari resume bem o problema, ao colocar a questão das desigualdades no centro das perspectivas de mudança tecnológica que a revolução digital nos reserva: “neste século, os que viajam no trem do progresso vão adquirir aptidões divinas de criação e destruição, enquanto os que ficarem para trás enfrentarão a extinção”x. E como bem mostra Thomas Friedmanxi, o ritmo das mudanças tecnológicas, do avanço da globalização e das mudanças climáticas acelera-se de forma exponencial e nem de longe é acompanhado por transformações institucionais, por sistemas de aprendizagem, de treinamento de gestão, por redes sociais de garantia ou por regulações governamentais que permitam à maioria dos cidadãos lidar com seus piores efeitos. Esta discrepância entre o que Friedman chama de “tríplice aceleração” (da inovação tecnológica, da globalização e das mudanças climáticas) e suas bases institucionais é provavelmente, Friedman tem razão em sublinha-lo, “o mais importante desafio de governança no mundo”, tanto em países desenvolvidos como nas nações emergentesxii. Os mais consagrados manuais de economia rejeitam a ideia de que a desigualdade pode funcionar como um freio à inovação. N. Gregory Mankiw, por exemplo, ensina aos iniciantes da disciplina que entre as dez maneiras básicas como pensa um profissional da disciplina está o incontornável trade-off entre equidade e eficiência. Mankiw. Acemoglu (paper LSE na pasta virtual pobreza e desigualdade).

9 McKinsey. Digital America: A Tale of the Haves and Have-Mores, p. 12. http://www.mckinsey.com/industries/high-tech/our-insights/digital-america-a-tale-of-the-haves-and-have-mores

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Mas acumulam-se evidências de que esta impressão é equivocada. Paper LSE. Paper Brookling. Objetivo deste trabalho O objetivo deste trabalho é mostrar que estes dois desafios – crescimento das desigualdades e impactos concentradores da revolução digital – devem e podem ser enfrentados conjuntamente, de forma organicamente articulada. Um mundo em que é crescente o poder de produzir e distribuir bens e serviços, mas em que somente parcela da população é protagonista deste avanço e dele se beneficia será cada vez mais tenso, inseguro, injusto e destrutivo. A luta contra a explosão das desigualdades não pode ser tratada como um assunto de interesse “social”, abordada como corretivo subsidiário à economia. O desenvolvimento sustentável supõe que a redução das desigualdades seja um resultado das atividades econômicas e não um remendo que procure consertar seus efeitos danosos. E esta redução não se refere e não pode referir-se apenas a ganhos econômicos: está em questão o próprio sentido daquilo que as pessoas fazem nos seus trabalhos, seu reconhecimento social e o horizonte de realização pessoal e comunitário nele embutido, como tão bem mostra a conferência de Michael Sandel no Fórum Econômico Mundial de 2017. As políticas sociais em suas várias modalidades são, é claro, indispensáveis. Mas se, como dizem os economistas italianos Luigino Bruni e Stefano Zamagni “continuarmos insistindo que o Estado deve ser a única entidade responsável pela redistribuição e que isso deve ocorrer post-factum...assistiremos passivamente a desigualdade aumentar. Ao contrário, é necessário intervir também no momento em que a produção ocorre. Nas atuais circunstâncias, atuar só na redistribuição é chegar tarde demais”.xiii O mesmo raciocínio se aplica aos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas e que têm sido sistematicamente devastados pelas atividades econômicas, que se trate do clima, da biodiversidade, do ar, do solo ou da água. Foi-se o tempo em que estes serviços eram encapsulados num setor à parte e considerados como externos, alheios à atividades econômica, o que se exprime bem na maneira como a economia convencionalmente os trata, chamando-os de “externalidades”. De fato, a oferta da esmagadora maioria dos serviços ecossistêmicos em que se apoia a vida no Planeta não se submete ao mecanismo dos preços. Por este raciocínio, caberia a uma instância pública, o Estado, proibir ou, de preferência, cobrar pelo seu emprego, fazendo então com que o princípio da escassez se impusesse aos agentes econômicos o que, supostamente, racionalizaria e disciplinaria seu uso. Mas a saúde dos ecossistemas (da mesma forma que a redução das desigualdades) não pode ser tratada como resultado do empenho em corrigir e reparar a destruição. Fica cada vez mais claro que se, em cada produto, em cada projeto, em cada política não estiver contida a intenção explícita não só de criar riqueza, mas de fazer com que esta criação contribua tanto para reduzir as

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desigualdades, como para regenerar serviços ecossistêmicos que sustentam a própria vida, os riscos serão crescentes. Ética no coração dos negócios É fundamental acelerar as inovações, ampliar seu alcance e seus efeitos. Mas não é menos importante que a sociedade discuta o próprio sentido das inovações, ou seja sua capacidade não apenas de criar riqueza e de remunerar os acionistas das empresas que as levam adiante, mas de contribuir para a melhoria da vida social e do estado em que estão os ecossistemas de que dependemos. A mudança de época correspondente à revolução digital só terá sentido se permitir nossa adaptação construtiva à transição do Holoceno para o Antropoceno. Como será visto no decorrer deste trabalho, é crescente, no mundo todo, a preocupação não apenas com os efeitos da inovação sobre a distribuição das oportunidades e da riqueza, mas também com os próprios fundamentos éticos em que a revolução digital contemporânea se apoia. Ninguém melhor que Gerd Leonhard10 sintetizou a urgência da reflexão ética em torno da revolução digital, ao afirmar: “não podemos adotar uma atitude de esperar para ver (wait-and-see) se quisermos ter controle sobre nosso destino e sobre os desenvolvimentos que poderão moldá-lo...A tecnologia não tem ética, mas uma sociedade sem ética está condenada”. Ciência e tecnologia são fundamentais, é claro. Mas elas não nos eximem de formular, permanentemente, a questão central cuja resposta é cada vez mais difícil: de que maneira a expansão dos conhecimentos e sua aplicação prática vão interferir na vida dos indivíduos, na organização social, nos sentimentos cívicos e na relação entre a economia e os recursos ecossistêmicos dos quais não só a produção de bens e serviços, mas a sociedade como um todo dependem? O alerta de Edward Wilson não poderia ser mais atual: “criamos uma civilização de guerra das estrelas, com emoções da Idade da Pedra, instituições medievais e tecnologias divinas” xiv. A formulação de Yuval Noah Harari vai no mesmo sentido: “A mesma tecnologia que pode elevar os seres humanos à condição de deuses também pode fazer com que os humanos sejam irrelevantes”11. No mesmo sentido, os empresários e pesquisadores Don e Alex Tapscott mostram que as tecnologias digitais “criam prosperidade, ao mesmo tempo que destroem a privacidade... [elas] permitem aos seres humanos valorizar e violentar os direitos dos outros de forma ineditamente profunda” 12 Prédica vazia de quem está alheio à objetiva frieza em que vive o mundo dos negócios? Utopia sem chance de realização prática? Ingenuidade ignorante de que a essência do capitalismo é a busca do lucro, o crescimento incessante e que,

10 Leonhard, G. (2016) Technology vs Humanity. The coming clash between man and machine. E-book. Fast Future Publishing. 11 Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo. Companhia das Letras. 2016. p. 73, 12 Tapscott p. 3.

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neste contexto, cabe às empresas satisfazer os interesses de seus dirigentes e acionistas, deixando que o Estado estabeleça os limites em que elas vão atuar? Ressentimento reacionário de quem não é capaz de ver que novas tecnologias estão na raiz da solução dos mais importantes problemas socioambientais contemporâneos? Três exemplos bastam para ilustrar como as respostas a estas perguntas são mais complicadas do que parecem à primeira vista. Cada vez mais carne? O primeiro vem da indústria alimentar. Em outubro de 2016 um grupo de quarenta investidores responsáveis por uma carteira de US$ 1,25 trilhão enviou carta (elaborada pela Farm Animal Investment Risk and Return) a gigantes do agronegócio global, em que se afirma: “apoiar a alimentação em fábricas de criação de animais para a produção de carne para atender à crescente demanda global de proteína é a receita para uma crise financeira, social e ambiental”xv. O que está em questão é a poluição, o bem-estar animal e a saúde humana. A carta chega a falar, em clara alusão à crise de 2008, em uma “bolha de proteínas” que vai derivar da expansão de uma indústria que planeja crescer globalmente 8,4% ao ano, até 2021. Ao mesmo tempo, a carta cita dados mostrando como o consumo excessivo de carne tem trazido doenças cujos custos oneram os sistemas públicos de saúde. Na conclusão, sugere-se às empresas que estimulem junto a seus clientes dietas mais sustentáveis, reduzindo a dependência de carnes e ampliando o consumo de proteínas vegetais. O que os investidores (e é importante notar que a carta é assinada tanto por investidores privados como por fundos estatais de previdência) pedem, em última análise é mudança no sentido das inovações em que se apoiam os ganhos econômicos dos gigantes do agronegócio global. Não é só uma questão “social” ou “ambiental” que está em pauta: é um modelo produtivo. O baixo custo destas carnes vincula-se não apenas ao sofrimento dos animais, mas a um conjunto de danos a recursos ecossistêmicos e à saúde humana que permitem sua venda barata. A solução proposta pelos investidores não consiste em “reduzir os impactos” com correções tópicas e localizadas nas práticas de confinamento. O que eles sugerem é que as empresas sejam vetores de mudanças nos padrões alimentares. É impossível generalizar ao conjunto da humanidade o padrão dominante nos países de maior consumo e a tentativa de contornar estes limites traz ameaças não só às pessoas, aos animais e ao meio ambiente, como também aos negócios em que os investimentos são feitos. Portanto, são os próprios produtores que estão diante de uma situação de risco financeiro, em virtude dos danos socioambientais que suas atividades provocam. Claro que mudanças e restrições vindas de imposições legais são decisivas. O importante porém é que o próprio setor privado não vive no interior de uma bolha, de uma caixa preta imune às pressões vindas da sociedade. E estas pressões vão e irão cada vez mais na direção da dupla urgência de que a inovação contemporânea avance, contribuindo para reduzir as desigualdades mas, ao mesmo tempo, seja norteada pela necessidade de respeitar o bem-estar

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animal e de contribuir à regeneração dos ecossistemas que o progresso material tem até aqui com imensa frequência destruído. Cidades sustentáveis O segundo exemplo, na mesma direção, vem daquilo que a Global Commission on the Economy and Climate (2014) chamou de Better Growth no New Climate Economy Report, lançado em 2014xvi. A ideia central do relatório é que o mundo deverá investir cerca de US$ 90 trilhões, até 2030, na infraestrutura dos três grandes sistemas que compõem a vida social: as cidades, o uso do solo e a energia. O desafio consiste em saber se estes investimentos vão reiterar ou transformar os caminhos trilhados até aqui na maneira como se organizam estes três grandes sistemas. Para responder a esta pergunta o documento aponta três vetores fundamentais. Os investimentos em infraestrutura são o primeiro destes vetores, mas eles operam a partir dos dois outros: a eficiência no uso dos recursos e a inovação. O mais interessante no New Climate Economy Report e em inúmeros outros documentos publicados nos últimos cinco anos é que não se trata simplesmente de preconizar crescimento econômico, mas, antes de tudo, de qualificar este crescimento em função de finalidades de natureza ético-valorativa. Como são, com muita frequência textos dirigidos ao meio empresarial, eles acentuam, claro, as oportunidades de ganhos econômicos propiciadas pelos investimentos. Mas estas oportunidades são qualificadas em virtude de objetivos explícitos, que não se reduzem aos próprios ganhos. É assim, por exemplo, que no New Climate Economy Report (p. 8) fala-se que “o desenvolvimento urbano mais compacto e conectado, construído em torno de transporte público de massa [o contrário portanto da fragmentação que marca a maior parte das cidades dos países em desenvolvimento, ou seja, um objetivo de natureza valorativa] pode criar cidades que são economicamente dinâmicas e saudáveis e que têm baixas emissões”. Por um Conselho Global de Ética Digital O terceiro exemplo origina-se em alguns dos mais importantes estudiosos, empreendedores e investidores ligados à revolução digital contemporânea e a suas expressões mais disruptivas como a robotização, a inteligência artificial, a aprendizagem de máquinas, a computação em nuvem, a internet das coisas, a realidade aumentada, a realidade virtual, a interface cérebro-computador e os indecifráveis algoritmos que regem de maneira crescente os mais variados aspectos da vida social. Tendo em vista o caráter exponencial e combinatório do crescimento do poder computacional ligado a cada uma destas inovações, é imenso o risco de que sua expansão se autonomize e que elas sejam capazes não só de promover uma troca de conforto e conveniência por privacidade,xvii mas sobretudo de alterar a natureza da própria condição humana.

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Em 2015 foi elaborada uma carta aberta (já assinada em novembro de 2016 por quase nove mil pessoas) que, reconhecendo os potenciais destas tecnologias para enfrentar grandes problemas socioambientais contemporâneos, alerta para as ameaças trazidas por sua expansão, das quais a mais importante refere-se à drástica redução de postos de trabalho. A carta levanta também inúmeros problemas éticos e legais que as sociedades enfrentarão cada vez mais na relação entre homens e máquinas. O uso militar da inteligência artificial, por exemplo, é seriamente contestado, neste documento assinado por personalidades como Stephen Hawkins, Bill Gates e Elon Musk. O já citado Gerd Leonhard constatando o potencial destrutivo trazido por estas tecnologias, propõe a formação de um Conselho Global de Ética Digital (GDEC, na sigla em inglês) com a função de definir “as regras fundamentais e os mais básicos e universais valores que uma sociedade dramaticamente diferente, inteiramente digitalizada deve ter”. George Siemens, do Lanoratório Link da Universidade de Texas Arlington resume bem o problema: “Provavelmente seremos a última geração que é mais inteligente do que a tecnologia. E temos que estar muito atentos para as implicações sociais disso tudo”13. Uma economia regenerativa Que se trate de cidades, de sistemas de uso do solo ou de energia, finalidades de natureza ético-valorativa na maneira como se usam os recursos materiais, energéticos e bióticos só podem ser alcançadas com base em muita pesquisa científica e aplicação tecnológica, ou seja, muita inovação. O objetivo central não é o de chegar a uma vida econômica que gradualmente se torne um pouco menos poluente e comprometedora dos serviços ecossistêmicos que a atual. O objetivo tampouco é estimular o crescimento econômico por si só, sob o argumento de que traz efeitos indiretos sobre a criação de empregos e a arrecadação de impostos. O objetivo é favorecer a emergência de uma economia regenerativa dos tecidos socioambientais que até aqui a oferta de bens e serviços tem sistematicamente destruído. E é exatamente aí que se torna mais importante que nunca o papel da ciência e da tecnologia. As organizações empresariais são estratégicas, neste sentido, pelo fato de sua preocupação central não estar apenas naquilo que se deveria fazer e sim naquilo que se pode de maneira realista fazer e que, ainda que de forma minoritária e incipiente, já mostra resultados potenciais interessantes. O documento do Painel Internacional do Progresso Social (IPSP, na sigla em inglês) resume esta ideia de forma emblemática: “O Século XXI precisa de uma Próxima Grande Transformação para incorporar e regular os mercados nas relações sociais, o que inclui suas relações com o meio ambiente”xviii. A inspiração é a obra do grande pensador do Século XX, Karl Polanyi, segundo o qual, a partir do Século XIX os mercados foram-se transformando em esferas institucionais

13 Brigatto, G. (2016) “Inteligência artificial é o nome do jogo”. Valor Econômico, 21/11/2016 p. B7.

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autônomas da vida social. O IPSP preconiza, ao contrário que as necessidades sociais, um conjunto publicamente discutido de imperativos éticos e a regeneração dos ecossistemas norteiem cada vez mais a dinâmica dos mercados contemporâneos. Reduzir as desigualdades (que são sempre socioambientais e nunca estritamente “sociais”) e estimular uma economia inovadora não podem ser duas dimensões separadas e sim os valores centrais de qualquer sociedade democrática do Século XXI. Estes valores estão na essência dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e é em torno deles que poderá emergir uma economia capaz de regenerar os tecidos socioambientais que até aqui o crescimento econômico tem sistematicamente destruído. Isso não depende e não pode depender apenas de ciência e tecnologia. E ciência e tecnologia não se desenvolvem apenas em laboratórios onde inventores geniais e isolados do mundo social trabalham. Ninguém inova sozinho O mais importante é a maneira como os novos conhecimentos se incorporam às atividades sociais, ou seja, como se define a própria cultura material de cada sociedade. O físico chileno Cesar Hidalgo xix mostra que incorporar informação aos objetos é a característica central que distingue as sociedades humanas daquelas formadas por outras espécies. Cristalizar informação e nossa própria imaginação nos objetos supõe a distribuição, entre inúmeros indivíduos, de habilidades que vão se combinar na oferta de bens e serviços, na divisão social do trabalho. E, por mais que esta funcione a partir do mecanismo de preços, o que define sua natureza é a forma como, no seu interior, interagem os seres humanos, ou seja, a quantidade e a qualidade dos conhecimentos que eles conseguem incorporar àquilo que produzem. O conhecimento em uma sociedade não vem estritamente das capacidades intelectuais e das informações que os indivíduos e as organizações detêm. Ele depende, antes de tudo, da maneira como as pessoas, as empresas e os diferentes coletivos humanos combinam e recombinam o que sabem por meio de complexas redes de interação. O segredo das sociedades modernas não é que os indivíduos sabem mais que nas sociedades tradicionais. É que coletivamente nosso conhecimento é muito maior. O segredo está em nossas redes de interação. É daí que resulta nossa capacidade de criar produtos melhores. Cesar Hidalgo e o economista venezuelano Ricardo Hausman usam a expressão “acumulação social de conhecimento produtivo” no Atlas da Complexidade Econômica que criaram, com uma vasta equipe da Universidade de Harvard em 201314. Nele são divulgadas as posições que ocupam diferentes países a partir da densidade em conhecimento daquilo que exportam e daquilo que importam. Setores econômicos densos em conhecimentos não são apenas resultados de bons sistemas escolares e de instituições que sinalizem aos agentes econômicos os incentivos corretos em matéria de direitos de propriedade. O mais importante são os padrões de interação social a partir dos quais a oferta de bens e serviços

14 https://www.hks.harvard.edu/centers/cid/publications/books/atlas

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se estrutura e se organiza. A interação entre pessoas, empresas, organizações e Estado não se faz apenas em função de conhecimentos explícitos e formalizados, mas, sobretudo, com base em conhecimentos tácitos, regras de conduta aceitas com base na própria cultura de cada sociedade ou de cada local. A importância das redes é talvez a marca de transformação do capitalismo contemporâneo. John Hagel III, John Seely Brown e Lang Davison mostram que o mais importante para o bom desempenho das empresas não está mais no estoque de conhecimentos que elas detêm e sim na capacidade de participar dos fluxos de conhecimentos que, cada vez mais, são o traço fundamental da vida econômica. Até a chegada da revolução digital, o esforço das empresas estava em preservar os ganhos capazes de emergir do estoque de conhecimentos detidos por cada uma. Como mostram Hagel III e seus coautores, a fórmula da Coca-Cola era o exemplo emblemático desta cultura empresarial de inovação fechada. Na era digital, o valor daquilo que fazem as empresas e os indivíduos migra dos estoques para os fluxos de conhecimentos, para a capacidade de se conectar com o que os outros estão fazendo de mais interessante e promissor. Isso muda tudo, com relação à maneira como as empresas planejam seu futuro e, sobretudo, sua inovação. Ou, como diz Gerd Leonhard numa conferência TED em 2011, “na sociedade em rede, a interação vem antes da transação”xx. Esta é uma das razões centrais que vinculam de forma inseparável o avanço das inovações e a luta contra as desigualdades. Ciência e tecnologia vão avançar muito menos do que poderiam em ambientes marcados por profundas desigualdades, porque nestas situações são escassas as oportunidades de formação de redes de inovação densas e diversificadas. Limitar as conexões entre segmentos socialmente diversos é um forte estímulo a que ciência e tecnologia se confinem nos muros de certas instituições e se concentrem entre especialistas cuja capacidade de transmitir seus conhecimentos ao mundo social é limitada pelo próprio ambiente restrito em que vivem. Existem na China hoje 81 milhões de pessoas trabalhando em ciência e tecnologia. Esta é uma das bases que permitiram ao governo estabelecer Centros Colaborativos de Inovação que, com apoio governamental, estabelecem ligação entre a inovação científica e tecnológica e o setor industrial15. Em suma, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia será tanto mais robusto, quanto mais for intencionalmente não só voltado à resolução dos grandes problemas socioambientais contemporâneas, mas também norteado por preocupações éticas levantadas cada vez mais por cientistas, ativistas e empreendedores. Sem estes limites, as inovações atuais seguirão como vetores de concentração de riqueza, de poder e como portadoras de ameaças à dignidade humana e a direitos humanos fundamentais. Mas é totalmente ilusória a perspectiva de promover estes direitos e lutar contra as desigualdades num quadro social e institucional avesso ao crescimento das inovações científicas e tecnológicas. O exemplo latino-americano é emblemático

15 McGilvray, A. (2016) “High-tech transformation”. Nature, vol. 537 1º/09, pp. S8-S(.

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da urgência de reunificar organicamente as aspirações de redução das desigualdades e de avanço das inovações científicas e tecnológicas, como será visto a seguir. E esta junção vai depender de redes e coalisões sociais diferentes daquelas que têm dominado até aqui o crescimento econômico do Continente.

Um dilema latino-americano A América Latina das duas primeiras décadas do milênio sintetiza bem os impasses a que levam políticas sociais ambiciosas, sob o ângulo redistributivo, mas que repousam sobre uma base econômica marcada por baixa inovação. É verdade que, em nenhum lugar do mundo, os 40% mais pobres da população tiveram aumento de renda tão expressivo como em nosso Continente desde o ano 2000. Segundo um trabalho do Banco Mundialxxi, neste período, 50 milhões de latino-americanos escaparam da pobreza. 40% dos domicílios da região conheceram mobilidade ascendente inédita. O Índice de Gini do Brasil caiu de 63 em 2004, quando era o segundo país mais desigual do mundo, para 51 em 2014. Neste período os 40% mais pobres da população conheceram um aumento de renda de 6,8% ao ano, contra a média de 4,5% para o País como um todo16. Na Bolívia, a pobreza absoluta atingia 64% da população em 2000, proporção que cai para 36,6% em 2011. No Equador, o movimento foi de 61,6% para 33,6% no mesmo período. No Peru a pobreza cai de 54,7% a 23,9% da população entre 2001 e 2013xxii. Dois problemas, entretanto, ofuscam este quadro redistributivo edificante. Consumo, cidadania e direitos Em primeiro lugar, o contrato social que deu origem a estes ganhos dos mais pobres dificilmente poderia ser mais fragmentário. Se a renda cresceu, o mesmo não pode ser dito do acesso a bens públicos constitutivos da cidadania como educação e saúde de qualidade, saneamento básico e o uso daquilo que de mais interessante podem oferecer as cidades. A comparação internacional sugerida pelo trabalho citado do Banco Mundial, neste sentido, é ilustrativa: “que se trate do pós-guerra na Europa Ocidental, da China pós-revolucionária, da Coréia posterior à reforma agrária ou dos Estados Unidos sob o New Deal, o progresso socioeconômico requereu uma combinação de liberdade econômica e uma salutar fundamentação em educação, saúde e infraestrutura. A maior parte dos países da América Latina e do Caribe vão requerer reformas adicionais a seus contratos sociais para abrir caminho a que seus Estados ofereçam estes fundamentos e apoiem o crescimento”.

16 World Bank. 2016. Poverty and Shared Prosperity 2016: Taking on Inequality. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978-1-4648-0958-3. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO p. 13.

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Como mostra um relatório de 2016 do Banco Mundial, a desigualdade existe em muitas dimensões. Portanto, “a questão ‘desigualdade do quê?’ é essencial”17. O aumento da renda dos mais pobres propiciou um positivo aumento do consumo, mas não melhorou na mesma proporção a qualidade de sua inserção social. O Minha Casa Minha Vida é talvez a expressão mais emblemática deste abismo: o acesso à habitação consolidou um padrão periférico de ocupação do espaço urbano e, sobretudo, um apartheid territorial em que os mais pobres encontram-se distantes dos locais bem dotados de infraestrutura e serviços. Estudo do Instituto Pólis mostra que, de fato, populações de baixa renda têm sido contempladas, mas que tem prevalecido “um padrão de cidade segregada e sem urbanidade, pois são mal servidas por transporte, infraestrutura ou ofertas de serviços urbanos adequados ao desenvolvimento econômico e humano”. A frase vem de um manifesto assinado por dezenas de pesquisadores da UFRJ, da USP, da UFMG e de outras entre as melhores universidades brasileiras, envolvidos com o trabalho do Pólis. Os especialistas prosseguem: “Verificamos uma inadequação das alternativas ofertadas em relação às estratégias de sobrevivência das famílias, especialmente em função da localização periférica e distante das fontes de emprego da cidade”. É exatamente o contrário daquilo que preconiza o Habitat, agência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos: cidades compactas, integradas e conectadas. “Minha vida” não é e não deve ser “minha casa”. Ela depende das oportunidades de interagir com os outros e, sobretudo, com aqueles que são diferentes de mim mesmo. É aí que residem as maiores chances de alargamento dos horizontes de organização da vida de cada um de nós. Nesta interação humana diversificada é que se encontra, de certa forma, a essência da cidadania, as virtudes das relações que estabelecemos uns com os outros. Este é o ponto central das críticas que a reportagem do jornal Valor Econômico encontrou ao programa governamental brasileiro: “o programa deveria se chamar Minha Cidade, Minha Vida” e não “Minha Casa, Minha Vida” porque o que interessa é integrar as pessoas, diz Fernando Serapião, editor da revista de arquitetura Monolito18. Philip Yang19, apoiado em estudo da NRBC20, insiste também no fato de que “segregação espacial da população entre bairros de alta e baixa renda gera graves ineficiências econômicas”. O estudo da NRBC conclui que se fossem reduzidas as barreiras que afastam os pobres das regiões mais ricas em apenas três cidades (Nova York, San Francisco e San José) o PIB americano cresceria 9,5%!

17 World Bank. 2016. Poverty and Shared Prosperity 2016: Taking on Inequality. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978-1-4648-0958-3. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO. P. 3. 18 Barbieri, C. “Minha cidade, minha vida”. Valor Econômico. Eu&Fim de Semana, 18/11/2016. http://www.valor.com.br/cultura/4779617/minha-cidade-minha-vida 19 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/11/1835305-bairros-social-e-economicamente-mistos-geram-riqueza-para-todos.shtml 20 http://www.nber.org/papers/w21154

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Uma das consequências mais dramáticas deste padrão periférico de ocupação do espaço territorial metropolitano na América Latina é a explosão da violência e a tensão que domina a relação com a Polícia e a Justiça. Brasil, México, Colômbia e Venezuela respondem por nada menos que um quarto dos assassinatos por armas de fogo no mundo. Só no Brasil, entre 2011 e 2015 os assassinatos superaram as mortes da guerra civil síria. Com 3% da população mundial, o País conta com 11% dos assassinatos, globalmente. A população carcerária brasileira, hoje a quarta do mundo, explodiu nos últimos quinze anos e é formada majoritariamente por jovens negros e pobres de regiões periféricas. A persistência da cultura difundida pela fracassada guerra às drogas é um dos fatores explicativos de uma relação entre a juventude dos bairros mais pobres com a Polícia e a Justiça21 que se converte em obstáculo para a formação de cidades compactas, integradas e conectadas. É claro que em tal ambiente dificilmente vão florescer talentos científicos ou empreendimentos capazes de aproveitar de forma criativa as mais promissoras inovações tecnológicas. O já citado trabalho da OCDE, que vincula a timidez dos efeitos da revolução digital sobre o crescimento econômico ao avanço das desigualdades, aplica-se também a regiões periféricas de países em desenvolvimento: “em sociedades desiguais, domicílios de baixa renda têm menor capacidade de investir em educação e aproveitar oportunidades do que seus vizinhos mais ricos. Uma estratégia de produtividade que foque apenas nos negócios e nas inovações, ou que se apoie numa corrida para baixo – via baixos salários, desmantelamento da proteção social ou condições inaceitáveis de trabalho – para aumentar a vantagem competitiva de firmas e regiões, será em última análise menos efetiva que uma estratégia que também enfrente as desvantagens que impedem às pessoas de contribuírem para uma economia dinâmica”. Que esta declaração venha de um documento elaborado por um dos principais epicentros do pensamento empresarial global é bem revelador da consciência crescente de que o avanço das desigualdades não será revertido exclusivamente por meio de políticas sociais, mas supõe a emergência de padrões de crescimento econômico orientados por objetivos socioambientais construtivos. Relatório de 2016 do Banco Mundial preconiza que em países com baixos níveis de pobreza extrema, mas alta desigualdade, é “especialmente significativa” a busca de “prosperidade compartilhada”22. Reprimarização em larga escala O segundo problema que obscurece as recentes conquistas latino-americanas é ainda mais grave. As políticas progressistas que beneficiaram os mais pobres (e que não se reduzem, claro, às transferências diretas de renda) apoiaram-se em

21 http://jota.info/especiais/banalidade-reu-um-dia-de-observacao-das-audiencias-de-custodia-19072016 22 World Bank. 2016. Poverty and Shared Prosperity 2016: Taking on Inequality. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978-1-4648-0958-3. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO

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comportamentos econômicos, em redes e coalisões sociais profundamente conservadores. A reprimarização da vida econômica foi a base essencial dos virtuosos processos redistributivos que o Continente conheceu desde o início do milênio. Mas não se trata de um problema setorial, como se produtos primários fossem, por si só, marcados por traços negativos. Afinal, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Noruega também se destacam na produção agropecuária, energética ou mineral. Na América Latina, entretanto, a dependência cada vez maior de produtos primários (agropecuários ou minerais), é a face mais visível de um problema maior: tornamo-nos sociedades em que a inteligência, o conhecimento e a informação desempenham papel secundário na oferta de bens e serviços. Aproveitamos, é verdade, recursos que nenhuma região do mundo possui mais que nós: solos, água, biodiversidade, minérios e até combustíveis fósseis. Fomos capazes de aumentar em grande medida a eficiência no uso de muitos destes recursos. Mas este aproveitamento apoia-se em dois perigos. Em primeiro lugar, é baixa nossa capacidade de agregar valor àquilo que extraímos da natureza. O exemplo da agropecuária brasileira é emblemático: o Brasil tornou-se uma potencia agrícola global ampliando os rendimentos do solo e a produtividade do trabalho. Temos o mais importante centro de pesquisa agropecuária do hemisfério Sul (a EMBRAPA) sem o qual as técnicas que permitiram a expansão agrícola em solos tropicais jamais teriam sido criadas. Esta foi a condição decisiva para que os preços dos produtos alimentares básicos tivessem uma redução real de 50% ao longo dos últimos quarenta anos23. Inovações como o plantio direto são hoje difundidas e respeitadas internacionalmente. Mas a pesquisa levada adiante por organizações privadas também avançou, ainda que restrita a algumas poucas empresas: na área de celulose, por exemplo, o trabalho da Fíbria coloca o País na fronteira da inovação genética, assim como as atividades do Centro de Tecnologia Canavieira em cana-de-açúcar. Ao mesmo tempo, porém, o País continua devastando não só grandes áreas na Amazônia, mas também no Cerrado e apoia sua produção no uso de imensas quantidades de recursos químicos que ameaçam os ecossistemas e a saúde humana. Somos os primeiros consumidores mundiais de agrotóxicos. Nossa busca de eficiência teve sucesso com o plantio direto de grãos, com o reuso do vinhoto da cana-de-açúcar, com a liderança global em papel e celulose, mas nem de longe está conseguindo desacoplar a oferta agropecuária dos recursos químicos em que ela hoje se apoia. É menos predatória que no passado, mas está distante de uma atividade que regenere os serviços ecossistêmicos que até aqui ela tem sistematicamente destruído. E a capacidade de agregar valor aos resultados da produção agrícola é baixa: em 2015 as exportações de produtos agrícolas não processados era de US$ 55 bilhões, em contraste com os semimanufaturados (US$ 8,4 bilhões) e os manufaturados (US$ 6 bilhões).

23 http://www.imaflora.org/downloads/biblioteca/583420241a0d5_Perspectiva_Imaflora_3_novembro_2016_Umaanlisedosavanosecontradiesdaagricultura.pdf

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Daí decorrem, em segundo lugar, práticas econômicas que sistematicamente contribuem a destruir preciosos serviços ecossistêmicos dos quais a vida social depende. Tim Newbold, professor na University College de Londres e seus colaboradores mapeiam, na revista Science, os locais de maior perda de biodiversidade em função da expansão agrícola. O mapa abaixo mostra as regiões mais atingidas. Entre elas estão muitas das principais áreas de expansão agrícola latino-americana.

Fonte: https://www.ucl.ac.uk/news/news-articles/0716/140716-biodiversity-levels-unsafe Ciência longe da economia Ao surfar na onda que manteve altos durante a primeira década do milênio os preços das commodities agrícolas e minerais, a América Latina consolidou posição subalterna nas cadeias globais de valor. Na divisão internacional da exploração e do uso de recursos ecossistêmicos, desempenhamos (juntamente com a África sub-sahariana) o papel de um almoxarifado, onde o mundo vem buscar os materiais, a energia e as bases bióticas do sistema produtivo global. Com isso, desde o início do milênio, foi-se acentuando nossa distância da fronteira global da inovação. Que se trate de energia, de uso do solo ou de nossa organização urbana, a América Latina não apoia seu crescimento econômico e sua vida social naquilo que de mais avançado a ciência contemporânea oferece. Nossas cidades são poluídas, fragmentadas, violentas e pouco propícias a uma vida social construtiva aos que nelas vivem, sobretudo aos que moram em regiões periféricas. Nossos sistemas de uso do solo, apesar da conquista importante que foi a redução em 80% no nível de desmatamento na Amazônia brasileira, ainda são marcados por destruição em escala incompatível com uma economia moderna. E nossos sistemas energéticos, com exceção do uso da biomassa para a geração de energia elétrica, estão distantes do que de mais avançado a ciência e a tecnologia contemporâneas têm permitido.

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A revista Nature publicou em outubro de 2016 um número especial sobre os países cujas economias são orientadas pelos mais importantes resultados da pesquisa científica contemporânea (science led economies). “Um país sem ciência é como um carro sem motor: não vai a lugar algum”, diz sua matéria principal. Entre os trinta países onde é maior a relação entre os gastos em pesquisa/desenvolvimento e o PIB, o único latino-americano é a Jamaica... A revista fez uma “volta ao mundo” (world tour) sobre a influência da ciência na organização econômica dos países e nenhum caso latino-americano é citado como digno de nota ao longo da publicação. É totalmente ilusória a perspectiva de que em plena era da economia da informação e do conhecimento, uma sociedade possa realmente prosperar com base em atividades rotineiras, caracterizadas por baixo grau de inovação. Não podemos nos conformar com aquilo que Naomi Klein24, inspirada nos trabalhos do sociólogo equatoriano Eduardo Gudynas 25 , chamou, com razão, de “extrativismo progressista”. Foi exatamente durante este período em que milhões de famílias saíram da miséria e da pobreza absoluta que se consolidou na América Latina um intenso processo de desindustrialização da economia. Naomi Klein mostra que os governos que mais se preocuparam explicitamente em reduzir a escandalosa desigualdade de renda que marca a história e a atualidade do Continente foram “incapazes de permitir a emergência de modelos econômicos que não se apoiassem níveis extremamente altos de extração de recursos finitos, com custos ecológicos e humanos imensos”. Com isso, as economias foram-se tornando menos diversificadas, o que se exprime bem pelo conteúdo do que exportam. Pior: “forçados a escolher entre pobreza e poluição, estes governos estão escolhendo poluição...”xxiii. A desindustrialização é uma das dimensões mais graves deste modelo de crescimento econômico apoiado em extração-e-redistribuição. A desindustrialização prematura Claro que a indústria (assim como a agricultura) é um setor econômico e não um valor de natureza ética. Da mesma forma que ocorre com a agricultura, conforme um país se desenvolve, a importância da indústria tende a decrescer em benefício de um conjunto muito variado de serviços e, sobretudo, de serviços de alta qualidade, justamente aqueles que conseguem, para usar a expressão de Cesar Hidalgo, mais intensamente imprimir inteligência à matéria e, portanto, a fazer do conhecimento a base fundamental das atividades produtivas. Na verdade, na economia contemporânea, as fronteiras que delimitam claramente o que convencionalmente se consideram os três setores da atividade econômica (agricultura, indústria e serviços) borram-se de forma crescente. O grosso do valor de um iPhone não está fundamentalmente na atividade manufatureira que o elabora, mas num conjunto de atividades criativas e

24 Klein, N. (2015) This Changes Everything. Capitalism vs. The Climate. New York. Simon & Schuster. 25 http://accionyreaccion.com/wp-content/uploads/2017/01/GudynasProgresismosIdeasPracticasLimites16.pdf

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intelectuais, muitas vezes formuladas muito longe de onde o produto é feito. Mas sociedades que passam por processos severos de desindustrialização vão perdendo as possibilidades de desenvolver estes serviços de alta qualidade colocados à disposição do setor industrial. Glauco Arbix, um dos mais destacados pesquisadores em inovação e professor da USP, explica: “o uso intensivo de novos sistemas tecnológicos gera atividades que funcionam a partir da interação entre empresas, universidades e centros de pesquisa e configura o que os americanos denominam Advanced Manufacturing e os alemães de Industrie 4.0. Seus domínios básicos atendem pelo nome de inteligência artificial, “machine learning”, robótica, big data, analytics, internet das coisas e biomanufatura e alimentam as experiências de fábricas digitais”26. O problema da América Latina é que antes mesmo que emergisse aqui um tecido industrial denso, interconectado e suficientemente forte para demandar os serviços típicos desta manufatura avançada, a indústria dos maiores países do Continente foi perdendo expressão e qualidade. A participação do valor agregado na indústria ao PIB era de 15,8% na América Latina em 2005 e cai para 13,3% em 2015. No mesmo período, na média mundial, ele sobe de 15,3% para 16,1% e na Ásia do Leste, vai de 27,3% para 31,4%, como mostram informações das Nações Unidas. A América Latina e a Oceania são as duas regiões do mundo em que o valor agregado da indústria ao PIB entre 2005 e 2015 permanece inalterado. Em todo o restante do mundo, este valor cresce 27. A indústria, de alguma forma, envelheceu antes de amadurecer. “Nossa indústria, mostra Glauco Arbix, em que pesem os avanços, tem pouco a oferecer ao mundo e ao mercado interno quando se trata de bens de alta densidade de conhecimento, o que explica grande parte da perda de espaço interno e da commoditização da pauta externa”. Redução de custos ou agregação de valor? Os serviços mais capazes de fortalecer os tecidos industriais contemporâneos não são aqueles voltados fundamentalmente a reduzir os custos de produção. Jorge Arbache, que pesquisa o tema há anos em organizações brasileiras e internacionais, explica, em artigo publicado no Valor Econômico: “são os serviços de agregação de valor e de diferenciação de produtos, tais como pesquisa e desenvolvimento, design, softwares específicos, marcas, projetos, serviços técnicos especializados e serviços financeiros sofisticados que estariam por detrás da maior produtividade. Já serviços de custos, tais como logística, infraestrutura, armazenamento, reparos, serviços de manutenção, serviços financeiros em geral, acomodação, alimentação e segurança teriam contribuição, quando muito, marginal. Comparação internacional mostra que um dos fatores

26 Arbix, G. (2016) “Como preparar o Brasil para a indústria de nova geração”. Valor Econômico, 4/05/2016 http://www.valor.com.br/opiniao/4548573/como-preparar-o-brasil-para-industria-de-nova-geracao 27 http://unstats.un.org/sdgs/files/report/2016/secretary-general-sdg-report-2016--Statistical-Annex.pdf

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associados à baixa produtividade e competitividade da nossa indústria é o seu relativamente baixo consumo de serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos”. O exemplo da indústria automobilística é emblemático. Entre 2004 e 2013, o impacto do setor automobilístico na indústria brasileira passa de 15,9% a 46,1%. Os incentivos governamentais foram decisivos para este desempenho: a renúncia fiscal, só no setor de automóveis, entre 2009 e 2014 foi de RS$ 12,3 bilhões28. Estes incentivos atraíram para o Brasil montadoras que controlam no País hoje 65 fábricas (incluindo as de motores). Em 2011 eram 53 unidades fabris. O resultado é uma ociosidade que, ao final de 2016 atingia mais de 50% da capacidade produtiva. E o traço fundamental desta indústria é a precariedade dos investimentos em inovação, o que faz, como mostram pesquisadores da McKinsey, que o produto brasileiro não seja internacionalmente competitivo. O mesmo pode ser dito, segundo estes pesquisadores, da indústria de autopeças, focada em produtos de baixo valor agregado. A produtividade do trabalho na indústria brasileira é sofrível: enquanto um operário produz, no Brasil, 33 veículos em média por ano, os chineses chegam a 54 e os norte-americanos a 5529. Um dos principais resultados do baixo grau de inovação em um setor tão importante para a economia brasileira como a indústria automobilística é a dificuldade crescente de entrada dos veículos brasileiros em mercados exportadores. Nos últimos quinze anos as exportações declinaram, como proporção da produção automobilística do País, de 22% para 16%. E como mostra Marli Olmos, este declínio não foi determinado por razões cambiais30 Comparando com a Ásia do Leste É verdade que o início do Século XXI entrará para a história como o período de ascensão econômica do hemisfério Sul e que a América Latina participou intensamente desta ascensão. Mas as diferenças entre a Ásia do Leste e o nosso Continente, nos respectivos padrões de crescimento ajudam a explicar nossa imensa fragilidade econômica, como mostra um trabalho do Banco Mundialxxiv. Os países do hemisfério Sul representavam 20% do PIB global no início dos anos 1970 e dobraram esta proporção em 2012, com a China representando sozinha 12% do total. Os aumentos foram espetaculares também nos fluxos comerciais e destacaram-se nas exportações de manufaturados que aumentaram, entre 2000 e 2012, de 32% para 48% das vendas globais. Hoje, metade do que o mundo compra e vende em produtos industriais origina-se em países em desenvolvimento. E é exatamente aí que as coisas se complicam para a América Latina.

28 http://www.valor.com.br/brasil/3451524/automoveis-ditam-ritmo-da-industria 29 Assis, V., Hagemann, B. e Ferreira B. (2016) “O que aconteceu com a indústria automotive?” Valor Econômico, 16/09, p. A10. 30 Olmos, M. (2016) “Sobra de capacidade atormentya montadoras” Valor Econômico, 21/10 p. B3.

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O Século XXI é marcado pela intensificação dos vínculos entre países em desenvolvimento. No entanto, diz o relatório do Banco Mundial, os “laços da América Latina com outros países do hemisfério Sul são guiados em grande medida por vantagens comparativas baseadas em dotações naturais, muito mais que pela integração manufatureira nas cadeias globais de valor”. Os vultuosos investimentos chineses na América Latina hoje voltam-se fundamentalmente a fortalecer o lugar que já ocupamos nas cadeias globais de valor e concentram-se em setores marcados por baixo grau de inovação tecnológica e ameaçadores impactos socioambientais. Hidrelétricas, fósseis e exploração mineral são suas expressões mais emblemáticas. Isso significa que a recente redução da pobreza de renda na América Latina não teve lastro num processo de mudanças estruturais da vida econômica, mas, ao contrário, apoiou-se exatamente em coalisões sociais, em comportamentos e em instituições que aprofundaram esta forma inferior de inserção nas cadeias globais de valor. A impressionante desindustrialização do Continente é a principal expressão desta fragilidade. Contrariamente ao que ocorreu no Leste da Ásia, em que o fortalecimento da indústria trouxe consigo não só novas oportunidades de trabalho, mas, sobretudo, abriu caminho à emergência de novos atores sociais e de uma densa rede voltada à inovação, a América Latina vive o drama de ter-se desindustrializado, antes de ter chegado a uma renda que lhe permita transitar a uma economia moderna de serviços. O economista Dani Rodrik, da Universidade de Princeton, chama este processo de “desindustrialização prematura” e mostra que a América Latina e a África são hoje suas principais vítimas. Os dados de Rodrik convergem com os do Banco Mundial no sentido de que a atrofia industrial latino-americana não só inibe a inovação, mas é também um obstáculo consistente para que o aumento nos ganhos dos mais pobres se origine nas melhorias vindas do próprio mercado de trabalho. O caminho seguido pela Ásia do Leste nos últimos vinte anos, em que a abundância de mão-de-obra barata foi um importante trunfo para atrair investimentos industriais (juntamente, claro, com um conjunto de incentivos voltados à permanente melhoria da formação e do desempenho desta mão-de-obra), está se fechando. O custo médio da mão-de-obra por hora na China correspondia a 30% do salário industrial norte-americano em 2000 e passa, em termos reais, a 64% deste total em 2015. Em função disso, a China converteu-se, desde 2013, no maior mercado mundial de robôs industriais, superando a demanda de toda a Europa Ocidental31. Em suma, mão-de-obra barata vai deixando de ser vantagem comparativa, capaz de atrair investimentos voltados a fortalecer o setor industrial. O que define a competitividade contemporânea, como mostra Jorge Arbache, com razão, é cada vez menos a capacidade de reduzir custos e, cada vez mais, a de agregar valor àquilo que se faz.

31 http://br.wsj.com/articles/SB12325060321282123625004582257520740509092

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O declínio das cadeias globais de valor Uma das mais importantes expressões destas mudanças nas regras da competitividade global (a substituição crescente das vantagens resultantes da redução de custos por aquelas que se originam na capacidade de geração de valor) é a transformação naquilo que foi, até recentemente, o traço dominante do capitalismo contemporâneo: a dispersão dos processos produtivos em localidades diversas e sua coordenação por gigantes corporativos multinacionais. Jorge Arbache32 mostra que esta fragmentação encontra-se francamente em cheque. Novas tecnologias produtivas decorrentes do avanço das impressoras em três dimensões, da robotização e da computação em nuvem reduzem as vantagens competitivas ligadas a redução de custos (como os de mão-de-obra, por exemplo) e ampliam as chances dos segmentos mais capazes de agregar valor e garantir uma produção de qualidade. A volta de setores que haviam migrado dos países desenvolvidos para a China é um exemplo desta tendência. Mas a própria China está ampliando a densidade de suas cadeias de valor e tornando-se menos dependentes de importações. Matéria do Wall Street Journal mostra queda de 14% das exportações globais para a China, entre 2014 e 2015, o maior declínio anual, desde 1960. Claro que isso se explica em parte pela desaceleração no crescimento chinês. Mas “a China também está se voltando à produção interna para atender à demanda de suas fábricas, especialmente em áreas de margens elevadas como semicondutores e máquinas”33. A China está importando cada vez menos componentes para sua produção industrial. E o mais interessante é que esta redução se refere sobretudo a produtos com alto valor agregado e que entram em sua produção industrial. “A proporção de insumos importados usados nos produtos de exportação chineses caiu numa média anual de 1,6% nos últimos dez anos, atingindo 19,6% em 2015, ante mais de 40% em meados da década de 90, segundo dados de comércio da China”, prossegue a matéria do Wall Street Journal. E o conteúdo de componentes e matérias-primas locais na produção chinesa deve atingir, segundo um plano governamental anunciado em 2015, 40% em 2020 e 70% em 2025. Não se trata de fechamento comercial e sim de capacidade crescente de agregação local de valor por parte de uma indústria que até muito recentemente era marcada fundamentalmente por sua produção de bens baratos. E isso se apoia, antes de tudo, em muito pesquisa e desenvolvimento, que consumiram, em 2015 US$ 213 bilhões, ou 2,1% do PIB chinês. De forma mais geral, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento na Ásia do Leste já eram no início do milênio superiores aos da América Latina, mas cresceram muito mais rapidamente que entre nós. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento

32 https://www.linkedin.com/pulse/o-fim-das-cadeias-globais-de-valor-jorge-arbache 33 http://br.wsj.com/articles/SB12102181175383733663704582384752844279554

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correspondiam, na Ásia do Leste a 1,11% do PIB de seus países componentes em 2000 e passam a nada menos que 2,25% em 2013. Na América Latina e no Caribe, no mesmo período, passam de 0,53% a 0,67% do PIB34. A economia do conhecimento da natureza Carlota Perez, uma das mais respeitadas estudiosas da história da inovação contemporânea vem trabalhando na busca de um caminho pelo qual a América Latina possa melhorar a qualidade de sua inserção na economia global e, por aí, atingir o duplo objetivo de reduzir suas imensas desigualdades e, ao mesmo tempo, estimular as inovações. Em trabalho publicado na revista da CEPAL, em 201035 ela constata que o aumento nos preços das matérias-primas, durante a primeira década do milênio, não propiciou a expansão das capacidades tecnológicas da América Latina, com algumas poucas exceções. Além disso, o crescimento recente pouco alterou, como vimos sumariamente acima, muitas das mais importantes desigualdades do Continente. Diante destas constatações, ela então pergunta: quais os setores de maiores oportunidades, para a América Latina, para desenvolver, de forma vantajosa com relação ao resto do mundo, tecnologias baseadas no que a ciência tem produzido de mais avançado? Como a economia latino-americana pode transformar-se no sentido de agregar cada vez mais inteligência, informação e conhecimento àquilo que faz? O ponto de partida para a resposta é semelhante ao de Rodrik. A América Latina passou por desindustrialização prematura e não vai conseguir reverter este processo de forma a se tornar competitiva, em produtos industriais, com a manufatura asiática. Carlota Perez propõe então que a inovação latino-americana tenha como foco justamente o uso sustentável dos recursos naturais, que se trate de florestas, pastagens ou da agricultura. É aí que estão as maiores oportunidades de acompanhar o que é oferecido pela 4ª Revolução Industrial em biotecnologia, nanotecnologia, bioeletrônica e novos materiais (p. 122). Isso não significa simplesmente fortalecer o agronegócio, tal como ele existe hoje. Se há nos recursos naturais uma janela de oportunidades ela está em “transformar vantagens comparativas estáticas em vantagens dinâmicas, no que se refere aos recursos naturais, fortalecendo a diversificação de atividades intensivas em conhecimento”, como afirma Perez, num texto de 201536. A segmentação crescente dos mercados de produtos que até hoje foram commodities indiferenciadas, as exigências socioambientais vindas não só de legislações nacionais e globais, mas dos próprios consumidores, o peso da agropecuária na emissão de gases de efeito estufa e a urgente necessidade de

34 http://unstats.un.org/sdgs/files/report/2016/secretary-general-sdg-report-2016--Statistical-Annex.pdf 35 http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/11494/100121141I_en.pdf?sequence=1 36 https://ideas.repec.org/p/tth/wpaper/62.html

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regenerar ecossistemas até aqui destruídos pelos sistemas predominantes de uso do solo, tudo isso abre oportunidades que só poderão ser aproveitadas com muita inovação. E neste sentido, trata-se de modelos de inovação bem diferentes daqueles que marcaram predominantemente as tecnologias difundidas pela Revolução Verde, desde os anos 1960. Como mostra o trabalho de Guedes e Guedes e como será aprofundado adiante, temas socioambientais estão migrando da periferia para o centro da agenda do setor agropecuário, ainda que esta migração seja lenta e, muitas vezes, hesitante: “o pioneirismo da agricultura sustentável e certificada ainda convive lado a lado com o predatório, degradante e ilegal”37. O trabalho recente de Carlos Nobre e seus colaboradores38 também vai na mesma direção, ao propor que as tecnologias da Quarta Revolução Industrial sejam aplicadas ao uso sustentável da biodiversidade. A Amazônia deve ser considerada como um “bem público de ativos biológicos que pode propiciar a criação de produtos, serviços e plataformas com alto valor de inovação, por meio da combinação de tecnologias avançadas digitais, biológicas e materiais, da Quarta Revolução Industrial em progresso” (p.10759). Não se trata apenas de desenvolver cadeias de valor de produtos da biodiversidade, mas sobretudo de dirigir esforço científico e tecnológico para que um dos segmentos mais promissores da inovação contemporânea, a biomimética, possa crescer a partir do conhecimento (e não da destruição) da floresta. Esta orientação no sentido de fazer do conhecimento da natureza uma fonte essencial de criação de valor é parte fundamental do esforço de pesquisa levado adiante na Alemanha, como mostra Ralf Fücks39. Para ele, o mundo precisa de uma revolução industrial verde e esta consiste em fazer da luz solar “a fonte primeira de toda a produção e de todo o consumo”. Fücks mostra os progressos extraordinários alcançados pela biomimética, pela biorobótica e pela biogenética. Em torno destas diferentes formas de aprendizagem e de uso sustentável da natureza se organiza uma disciplina, a biônica (bionics em inglês), assim definida pela Associação de Engenheiros da Alemanha: “é uma disciplina científica que visa converter as estruturas, os processos e os princípios de desenvolvimento dos sistemas biológicos em tecnologia”. Só na Alemanha, setenta institutos de pesquisa e universidades orientam-se por programas de pesquisa ligados ao tema (http://www.biokon.de/). A revolução verde de Fücks não deve ser confundida com uma crença cega e mágica no poder da ciência e da técnica. Ele mostra que a tecnologia operou na natureza, até aqui, como um exército inimigo. O que agora está emergindo é uma relação cooperativa entre sociedade e natureza, que pode dar lugar a uma economia regenerativa, capaz de reduzir drasticamente as emissões de gases de

37 http://www.imaflora.org/downloads/biblioteca/583420241a0d5_Perspectiva_Imaflora_3_novembro_2016_Umaanlisedosavanosecontradiesdaagricultura.pdf 38 http://www.pnas.org/content/113/39/10759 39 Fücks, R. (2015) Green Growth Smart Growth. A New Approach to Economics, Innovation and the Environment. Londres. Anthem Press.

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efeito estufa e o uso de energia e de materiais na oferta de bens e serviços. Fücks procura demonstrar que pode ser promissora uma vida social que, desenvolvendo a ciência, a tecnologia e aprofundando a democracia, faz da cooperação com a natureza a base do crescimento econômico e da prosperidade. Conclusões São promissoras as possibilidades técnicas e organizacionais para que a inovação científica e tecnológica seja colocada a serviço da regeneração dos tecidos socioambientais que, até aqui, o crescimento econômico contemporâneo tem contribuído a destruir. É claro que este crescimento proporcionou ganhos extraordinários em matéria de bem-estar humano, ainda mais quando se leva em conta que ele ocorreu no âmbito de um aumento populacional impressionante. Quatro autores espanhóis sintetizam-no bem, ao mostrar que, durante o Século XX, “não só melhorou nossa esperança de vida, mas, de maneira geral, vivemos em melhores condições e desfrutamos de maiores oportunidades, no que se refere ao acesso à educação, a direitos humanos, à satisfação de necessidades básicas e a liberdades humanas”40. O crescimento econômico do Século XX, sobretudo nos países desenvolvidos, foi acompanhado, como mostra o importante livro de Robert Gordon, por massivo processo de redução das desigualdades. Generalização do saneamento básico e da água encanada, eletrificação, eletrodomésticos, telefone, rádio, televisão, alimentação barata e abundante, revolução nos sistemas de mobilidade e amplo acesso a meios modernos de diagnóstico (radiografia, por exemplo) e a antibióticos, são alguns dos elementos que permitiram que as inovações tecnológicas se integrassem organicamente a melhorias não só na extensão, mas na qualidade de vida das pessoas e não apenas nos países desenvolvidos. Os ganhos obtidos pelos que se encontram na faixa mediana de renda na China e na Índia (em contraste com as perdas da baixa classe média dos países desenvolvidos), nos últimos trinta anos, são, como mostra o livro de Branko Milanovic, expressões emblemáticas destes avanços. Mas desde o início dos anos 1980 as virtudes deste crescimento econômico vêm dando lugar a dois problemas cada vez mais difíceis de enfrentar, como se procurou até aqui mostrar. O primeiro é o aumento das desigualdades, sobretudo nos países que as haviam reduzido de forma consistente a partir da IIª Guerra Mundial. O segundo reside no fato de que a revolução digital converteu-se num dos mais importantes vetores de aumento das desigualdades de renda, de riqueza e de poder no mundo contemporâneo, além de embutir em seu desenvolvimento ameaças políticas e éticas inéditas. Na América Latina, estes dois problemas adquiriram uma forma especialmente perversa. Nosso Continente encontra-se, de forma geral, distante da fronteira global da inovação científica e tecnológica. Alcançar esta fronteira (da qual China e Índia converteram-se em importantes protagonistas) vai-se tornando cada vez mais difícil, em função de seu próprio ritmo exponencial de sua evolução. Ao

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mesmo tempo, nosso atraso científico e tecnológico estimula políticas públicas, prioridades de investimentos e iniciativas empresariais que acabam por agravar nossos problemas socioambientais. Tendo em vista o fato de que as inovações contemporâneas têm sido importantes vetores de aumento das desigualdades, o desafio para a América Latina é ainda maior. O Continente conheceu redução importante na desigualdade de renda (embora não em outras formas de desigualdade, como foi visto acima), mas a base desta redução foi uma economia em que conhecimento, inteligência e informação desempenharam e desempenham papel marginal. Políticas públicas de combate às desigualdades num ambiente de tão baixa inovação terão resultados precários e (como a crise atual no Brasil vem mostrando) efêmeros. Ao mesmo tempo, promover a inovação, mas dissociada do combate vigoroso às desigualdades (no plural) tem poucas chances de mudar a qualidade da vida e do crescimento econômico, como mostra o trabalho da OCDE mencionado acima. A ideia central deste trabalho é que este impasse só pode ser resolvido pelo esforço de imprimir sentido, significado aos processos de inovação. Na era digital, mais que nunca, é fundamental estimular a emergência de dispositivos e de instituições voltados explicitamente a um exercício auto-reflexivo sobre as finalidades da inovação. Isso não significa colocar-lhes um freio. Significa reconhecer seus potenciais, suas virtudes indispensáveis para um mundo que ruma aos dez bilhões de habitantes até o final do Século XXI, mas ao mesmo tempo, não fechar os olhos aos riscos crescentes nela embutidos. Plano de capítulos O papel decisivo da ciência e da tecnologia na emergência do desenvolvimento sustentável enfrenta três obstáculos fundamentais, abordados nos próximos capítulos deste trabalho. O primeiro é a força dos interesses consolidados e que tendem a perenizar as formas de utilização dos recursos materiais, energéticos e bióticos que marcam as economias contemporâneas até aqui. Por mais importante que sejam os resultados da Conferência climática realizada em Paris em 2015, os interesses ligados à exploração e ao uso de combustíveis fósseis são ainda poderosíssimos. De maneira geral, são inúmeros os exemplos mostrando que as cidades, o uso do solo e os sistemas energéticos contemporâneos, apesar de realizações fundamentais e exemplares, ainda estão muito longe das exigências de uma economia regenerativa. E há fortes coalisões sociais trabalhando ativamente para manter intactas ou mudando de maneira apenas gradual a configuração destes três grandes sistemas da vida social. É o que será visto no capítulo dois. O segundo obstáculo a que ciência e tecnologia sirvam ao desenvolvimento sustentável está no avanço das desigualdades. O capítulo três faz um apanhado dos mais importantes trabalhos sobre as desigualdades no mundo contemporâneo e na América Latina: se as conquistas científicas e tecnológicas contemporâneas não servirem a reduzir as injustiças que marcam as sociedades atuais (no plano econômico, mas também no plano político e cultural), sua própria legitimidade social estará cada vez mais em risco.

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O terceiro obstáculo refere-se aos próprio rumos da inovação científica e tecnológica. A conexão cada vez mais ampla entre indivíduos, os meios poderosos para ampliar a oferta de bens e serviços e seus potenciais efeitos benéficos na economia de energia e materiais têm como contrapartida o surgimento potencial daquilo que Nick Bostrom chama de “superinteligência” e que coloca desafios políticos, culturais e, sobretudo éticos jamais enfrentados pelas sociedades humanas. Ao mesmo tempo, os impactos da revolução digital no mundo das empresas questiona a própria ideia de responsabilidade socioambiental corporativa, bem como as virtudes tão exaltadas da chamada economia colaborativa, como será visto no capítulo quatro. O capítulo cinco procura apresentar duas vertentes básicas do esforço contemporâneo de promover inovações que favoreçam a emergência do desenvolvimento sustentável. A primeira vem de um conjunto minoritário, mas expressivo de organizações empresariais que se mobilizam justamente em busca do sentido, do significado e das finalidades de suas atividades. A segunda refere-se a iniciativas de cidadãos, grupos e comunidades, com a ambição de romper com a lógica que tem associado a difusão de dispositivos digitais a concentração de renda, de riqueza e de poder. i The World Bank (2016) – Annual Report 2016 https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/24985 (4/10/2016). ii https://www.project-syndicate.org/commentary/the-price-of-inequality?barrier=true iii Wagner, T. Creating Innovators. The Making of Young People Who Will Change the World. New York. Scribner. p. 2. iv https://gabriel-zucman.eu/files/SaezZucman2014.pdf v http://www.internetworldstats.com/top20.htm (4/10/2016). vi https://www.oecd.org/global-forum-productivity/library/The-Productivity-Inclusiveness-Nexus-Preliminary.pdf vii http://www.worldbank.org/content/dam/Worldbank/Publications/WDR/WDR%202016/WDR2016_overview_presentation.pdf viii Brigatto, G. (2016) “Desigualdade não cai com tecnologia, diz pesquisador” Valor Econômico, 4/10/2016, p. B6. ix McKinsey, apud T. Friedman (2017). x Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo. Companhia das Letras. 2016. P. 278. xi Friedman, T. (2017) Thank you for Being Late. An Optimist’s Guide to Thriving in the Age of Accelerations”. New Yor. Farrar, Struas and Giroux. Posição xiixii Thomas Friedman contrapõe o otimismo tecnológico do livro de Brynjolfsson e McAffee ao ceticismo de Robert Gordon, com relação aos impactos da revolução digital na produtividade do trabalho. Segundo Friedman, estamos na iminência de alcançar o momento em que a internet, a inteligência artificial, a computação em nuvem e o aprendizado das máquinas vão beneficiar os mais variados

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setores, da saúde ao ensino, passando pelo planejamento urbano, pelos transportes e pelo comércio. Por mais persuasivos que sejam os argumentos de Friedman, os próprios Erik Brynjolfsson e Andrew McAffee, preocupam-se com os impactos concentradores da revolução digital. Tanto é que lançaram no MIT o “desafio da inovação inclusiva”. https://www.weforum.org/agenda/2017/01/technology-is-changing-the-way-we-live-learn-and-work-how-can-leaders-make-sure-we-all-prosper xiii Bruni, L. e Zamagni S. (2007) Civil Economy. Efficiency, Equity, Public Happiness. Oxford. Peter Lang. Posição 411. xiv Wilson, E. (2012) The Social Conquest of Earth. New York Liveright Publishing Corporation. E-book, posição 147 xv http://uk.reuters.com/article/us-investors-food-idUKKCN11W0KH xvi http://static.newclimateeconomy.report/wp-content/uploads/2014/08/NCE_SynthesisReport.pdf xvii Leonhard, 2016, posição 2404. xviii Capítulo 1, § 22. xix Hidalgo, C. (2015) “Why Information Grows. The Evolution of Order. From Atoms to Economies. Nerw York, Basic Books. xx https://www.youtube.com/watch?v=wwCetNZzlao xxi Ferreira, Francisco H. G., Julian Messina, Jamele Rigolini, Luis-Felipe López-Calva, Maria Ana Lugo, and Renos Vakis. 2013. Economic Mobility and the Rise of the Latin American Middle Class. Washington, DC: World Bank. doi: 10.1596/978-0-8213-9634-6. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 xxii Gudynas, E. (2016) xxiii Klein, 2015, página 181 xxiv https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/21869