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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES NO ABSOLUTISMO FRANCÊS TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Stefanie Righi Santa Maria, RS, Brasil 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS

ELITES NO ABSOLUTISMO FRANCÊS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Stefanie Righi

Santa Maria, RS, Brasil

2014

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RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES

NO ABSOLUTISMO FRANCÊS

Stefanie Righi

Monografia realizada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel

em Relações Internacionais pelo curso de Relações Internacionais, da

Universidade Federal de Santa Maria.

Orientador: José Renato Ferraz da Silveira

Santa Maria, RS, Brasil

2014

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Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Curso de Relações Internacionais

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Monografia

RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES NO

ABSOLUTISMO FRANCÊS

elaborada por

Stefanie Righi

como requisito parcial para obtenção do grau de

Bacharel em Relações Internacionais

COMISSÃO EXAMINADORA

José Renato Ferraz da Silveira, Dr.

(Presidente/Orientador)

(UFSM)

Igor Castellano da Silva, Me.

(UFSM)

Reginaldo Teixeira Perez, Dr.

(UFSM)

Santa Maria, 03 de dezembro de 2014.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a minha avó, Rosa Maria, por tornar possível a

minha graduação e ter me apoiado durante esses quatro anos de estudo. Sua presença e

carinho foram imprescindíveis para a realização deste trabalho. A ela devo cada sonho

realizado, cada meta cumprida.

Também gostaria de agradecer a minha mãe, Rita, minha eterna professora. Sem seus

ensinamentos jamais teria sido possível chegar aonde cheguei, tornar-me a pessoa que sou

hoje. Sua paciência e sabedoria são qualidades nas quais me espelho diariamente.

Agradeço ao meu pai, José Augusto, pelo apoio e auxílio durante as pesquisas, ao

incentivo à busca incessante pelo conhecimento.

Ao meu padrasto, Zélio, pelo companheirismo e bom-humor. Mais do que um

conselheiro, é também um amigo.

A minha avó Emília e minha tia Margarete, pelo amor, carinho e pelos conselhos.

Muito obrigada por estarem sempre ao meu lado, mesmo estando distante.

Ao meu namorado, Giovani, meu melhor amigo. Não seria possível desbravar o

mundo acadêmico em sua totalidade se essa experiência não fosse compartilhada com alguém

tão especial. Obrigada por estar comigo em todos os momentos, inclusive os mais difíceis.

Agradeço também aos meus colegas e amigos pelos momentos de alegria vividos

nestes últimos anos, vocês estarão para sempre na minha memória.

Por fim, não poderia deixar de agradecer ao meu orientador, professor José Renato,

por ter me aceitado como sua orientanda e pela atenção, disponibilidade e entusiasmo durante

todo o processo de construção deste trabalho. Jamais poderei expressar em palavras a

profunda admiração que tenho por este profissional e o quanto me comove que tenha

acreditado em mim desde o início.

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RESUMO

Trabalho de Conclusão de Curso

Curso de Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Maria

RICHELIEU E A RAISON D’ÉTAT: A TEORIA DAS ELITES NO

ABSOLUTISMO FRANCÊS

AUTORA: STEFANIE RIGHI

ORIENTADOR: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA

Santa Maria, 03 de dezembro de 2014.

Durante o século XVII, o regime absolutista francês enfrentou uma ameaça significativa à

integridade e ao interesse nacional. Essa hostilidade se caracterizava pela notável expansão do

Império Habsburgo. À medida que o território da França era cercado, moldava-se o cenário da

Guerra dos Trinta Anos. Neste contexto, a figura do Cardeal Richelieu se destaca no logro da

manutenção da soberania francesa, atuando como ministro do rei Luís XIII. Utilizando-se de

um conceito político próprio, o cardeal se mune da raison d’État como estratégia política

contra a investida Habsburga no continente europeu. Embasado nestes acontecimentos, o

presente trabalho busca investigar a aplicação empírica da Teoria das Elites, elaborada pelo

sociólogo Gaetano Mosca, a fim de comprovar a capacidade de um indivíduo de modificar a

esfera internacional em favor de seu interesse. Para tanto o trabalho será divido em três partes:

a primeira tratará da biografia do cardeal e de sua obra (O Testamento Político); a segunda

parte terá como foco o período da guerra e a atuação de Richelieu através do uso da raison

d’État; e, finalmente, o último capítulo buscará explorar as principais premissas da teoria das

elites e aplicá-las ao fato histórico estudado. O objetivo final, portanto, será concluir o nível

de exequibilidade da Teoria das Elites no sistema internacional, tendo como instrumento para

comprovação, a estratégia política do Cardeal Richelieu.

Palavras-chave: Richelieu, teoria das elites, Guerra dos Trinta Anos, raison d’État.

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ABSTRACT

Monograph

International Relations

Universidade Federal de Santa Maria

RICHELIEU AND RAISON D’ÉTAT: THE ELITE THEORY IN FRENCH

ABSOLUTISM

AUTHOR: STEFANIE RIGHI

TEACHER: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA

Santa Maria, December 3rd

, 2014.

During the XVII century, the French absolutism faced a significant threat to its integrity and

the national interest. This hostility was characterized by the remarkable expansion of the

Habsburg Empire. While the French territory was being surrounded, the Thirty Years War’s

scenario was shaped. In this context, Cardinal Richelieu became a centerpiece in the

maintenance of the French sovereignty as minister of the king Louis XIII. Using his own

political concept, the cardinal makes use of raison d’État as a political strategy against the

Habsburg rush through the European continent. Based on these facts, the present work seeks

to investigate the empiric application of the Elite Theory, elaborated by the sociologist

Gaetano Mosca, in order to prove the capacity of an individual in modifying the international

sphere in favor of personal or political interest. To this end, this work will be parted in three

chapters: the first part will discourse about the biography of Richelieu and his work (The

Political Testament); the second chapter will focus in the warfare and Richelieu’s

performance using raison d’État; and, finally, the last part seeks to explore the main premises

of the Elite Theory, applying them to the historical fact that is investigated in this work.

Therefore, the goal is to measure the level of applicability of the Elite Theory in the

international system, using as instrument to this end, the political strategy of Cardinal

Richelieu.

Keywords: Richelieu, elite theory, Thirty Years War, raison d’État.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cardeal de Richelieu............................................................................................... 32

Figura 2 – O legado de Carlos V, 1519.................................................................................... 48

Figura 3 – Sacro Império Romano-Germânico ao iniciar-se a Guerra dos Trinta Anos.......... 51

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LISTA DE ANEXOS

Anexo A – Personalidades históricas.................................................................................. 104

Anexo B – Acontecimentos históricos................................................................................. 108

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

1 DE ARMAND A RICHELIEU ..................................................................... 17

1.1 Da família .......................................................................................................................... 19

1.2 Armand Jean du Plessis ................................................................................................... 23

1.3 Da púrpura à política ....................................................................................................... 28

1.4 O Testamento Político ...................................................................................................... 33

2 A RAZÃO DE ESTADO NA GUERRA DOS TRINTA ANOS ................ 42

2.1 Antecedentes e causas da guerra ..................................................................................... 44

2.1.1 O contexto francês ........................................................................................................... 51

2.2 A guerra encoberta ........................................................................................................... 56

2.2.1 A batalha de La Rochelle (1627-1628) ........................................................................... 58

2.3 A guerra aberta ................................................................................................................. 61

2.4 A Paz de Westfália ............................................................................................................ 63

3 A TEORIA DAS ELITES EM RICHELIEU .............................................. 67

3.1 A teoria .............................................................................................................................. 70

3.2 Gaetano Mosca e a classe dominante .............................................................................. 75

3.3 Vilfredo Pareto e a élite .................................................................................................... 79

3.4 Richelieu e a Teoria das Elites ......................................................................................... 83

CONCLUSÃO ................................................................................................... 91

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 98

ANEXOS .......................................................................................................... 104

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INTRODUÇÃO

A origem do Estado moderno foi um fenômeno decisivo para a história das relações

internacionais. E, sendo o Estado um dos atores mais antigos do sistema internacional, seu

processo histórico de formação foi permeado pela luta de suas garantias fundamentais:

território e soberania1.

Este foi o dilema enfrentado pela França, no século XVII. Associado à ascensão

constante do protestantismo, o avanço do Império Habsburgo pelo território europeu impôs

com urgência a necessidade de escolha entre duas alternativas: manutenção de um Estado

católico em sua forma legítima, omitindo o cerco Habsburgo; ou renúncia aos dogmas

religiosos em prol da garantia de sua soberania. Tal impasse foi colocado à prova em um dos

conflitos mais violentos da história2: a Guerra dos Trinta Anos.

A hostilidade se estendeu de 1618 até 1648, envolvendo a maioria dos Estados

europeus. A perspectiva francesa é digna de destaque, tendo em vista o fato de que estava

cercada quase que na totalidade de suas fronteiras. Sendo assim, a solução encontrada para

romper o cerco foi exaurir o Império Habsburgo a fim de impedir que surgisse uma potência

nas proximidades da França.

Definido o objetivo, a estratégia francesa foi subsidiar o inimigo Habsburgo – os

príncipes protestantes – para fins de política externa e, com o propósito de manter o Estado

católico estabelecido, combatê-los dentro de seu território. Desobedecendo, mesmo que

parcialmente, a doutrina religiosa regente e mantendo o interesse estatal como prioridade tal

atitude dá origem ao conceito de “razão de Estado”, elaborado e praticado pelo Cardeal de

Richelieu.

1 “No mundo moderno, os Estados existem como partes do sistema de Estados. Entre eles não há

descontinuidades. Daí por que a rigorosa definição do espaço territorial configura-se como fundamental,

constituindo-se no mais das vezes em motivo de numerosos conflitos entre Estados.” (SILVA; GONÇALVES,

2010, p. 73) 2 Segundo Carneiro (2006, p. 163) não há um número preciso de mortes resultantes da guerra. Estas variam

desde números exorbitantes, que contabilizam a morte de metade da Europa Central, até estimativas mais atuais

que determinam que, pelo menos, um quinto, ou seja, quatro milhões de mortos. Ainda segundo autor, a despeito

dos números, durante séculos esta foi considerada a “pior guerra da Europa”.

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Durante sua trajetória política, Richelieu representou um papel de extrema importância

nas relações internacionais. Considerado pai do sistema moderno de Estados, o cardeal ficou

marcado pelo seu pragmatismo e pela sua sensibilidade estratégica em relação à política

externa e interna da França (KISSINGER, 2012, p. 39). Richelieu foi fundamental para a

manutenção da integridade francesa frente à ameaça do Império Habsburgo.

Entretanto, em virtude de sua brilhante carreira política, pouco se explora da trajetória

anterior à atividade cardinalícia. Nascido em 1585, sob o nome de batismo de Armand Jean

du Plessis, Richelieu tem as origens em uma família da pequena nobreza. Seu pai, François du

Plessis foi proclamado, em 1585 – coincidentemente com o ano em que nasce o Cardeal

Richelieu - , Cavaleiro do Espírito Santo3, o que reservara uma ligação privilegiada com a

Corte francesa. Após a sua morte, em 1590, as vezes de chefe de família ficam primeiramente

destinadas à viúva, Suzanne de la Porte e, mais tarde, ao filho mais velho Henri,

autoproclamado marquês de Richelieu (BLUCHE, 2005, p. 22, 23).

As contribuições tanto do pai quanto do irmão mais velho de Armand para que se

firmasse sua posterior carreira política e cardinalícia aconteceram cedo, mas foram suficientes

para que fosse perpetuado o status da família, que rendeu conhecimento da existência dos du

Plessis à Corte. O trabalho de Henri para conhecer exércitos e o próprio círculo social do rei

promoveu relações de confiança com Maria de Médicis4 (Ibidem, p 23). Ainda assim, tardou

para que Richelieu entrasse em contato com segmentos maiores da nobreza da França. A

princípio, Armand não tinha pretensões de ingressar no sacerdócio, mas sim na carreira

militar. Não fosse a desistência do bispado por parte de seu irmão, Alphonse du Plessis,

Richelieu teria permanecido na ocupação previamente escolhida (BLANCHARD, 2011).

O tio de Richelieu recebia benefícios financeiros do arcebispado de Luçon, que coube

a Armand. Porém, desistir do bispado significava, para a família du Plessis, abrir mão de uma

renda indispensável, o que configurou uma obrigação para que assumisse o cargo. Dessa

forma, Armand foi proclamado bispo em 1607, aos 22 anos, e foi levado pelo irmão mais

velho para conhecer a Corte francesa. Porém, decepcionado com a sordidez e a vileza do

ambiente, só veio a retornar em 1610, com a morte do rei Henrique IV (GARCIA, 2002, p.

14).

3 Cargo pertencente à Ordem do Espírito Santo – em francês, L'Ordre du Saint-Esprit ou L'Ordre des Chevaliers

du Saint-Esprit -, ordem de cavalaria subordinada à monarquia francesa. (BLUCHE, 2005, p. 413) 4 Maria de Médicis foi a segunda esposa do rei Henrique IV. Também foi rainha regente até que seu filho, Luís

XIII, atingisse idade adequada para assumir o trono. (GARCIA, 2002, p. 14)

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Tendo em vista as ambições que tinha, a lógica vista por Richelieu classificava Maria

de Médicis como uma via mais acessível para sua ascensão na Corte francesa. Porém, o novo

obstáculo a ser vencido seria o casal Concini, que havia conquistado um lugar confortável

junto à nobreza. Sendo assim, Richelieu somente retorna de modo definitivo em 1615, com o

casamento de Luís XIII com Ana da Áustria. Nesta data o cardeal é designado como um

confessor da nova rainha (Ibidem, p. 14).

Finalmente, após uma dificultada trajetória até o círculo íntimo do rei, em 1616,

Richelieu recebe seu primeiro cargo político: secretário de Estado para negócios exteriores. A

partir de então, e com a morte do casal Concini, para que conquistasse a confiança de Luís

XIII, o cardeal teve que concentrar todas as habilidades possíveis ao manipular diversos

elementos para que fosse bem sucedido em sua permanência na Corte (Ibidem, p. 15).

A participação no ambiente monárquico foi, certamente, o estímulo inicial para que se

desenvolvesse a personalidade política de Richelieu. Mesmo que envolvido em assuntos

internacionais quando em seu primeiro cargo, estes não foram sua prioridade inicial. Antes de

assumir o posto de primeiro-ministro do rei Luís XIII, foi preciso articular agentes internos ao

séquito real. Em face dessas condições hostis, pode-se dizer que a perspicácia do Cardeal

adquiriu formas mais sólidas no que tange aspectos estratégicos, tornando-se cada vez mais

calculista e incompreendido:

Contudo, são muitos os pensamentos, as palavras, as acções que não condizem, no

seu caso, com o que esperamos do bom padre. O seu gosto pela guerra, a sua

cupidez, a sua constante facilidade em mentir e enganar, uma severidade que

partilha com o Rei seu senhor, uma crueldade por vezes quase sádica, nada têm de

evangélico; e a razão de Estado – ou muito simplesmente a razão – não poderia

desculpar tantos defeitos. Eis porque é justo e legítimo não insistir exageradamente

no sacerdócio do estranho Cardeal. (BLUCHE, 2005, p. 29)

A frieza com que tratava de assuntos relativos ao Estado que pretendia defender,

sujeitaram-no à má fama em relação ao seu caráter. Porém, tão condenados defeitos renderam

a Richelieu sensibilidade estratégica ímpar, à teoria política um conceito original e à história

uma performance diplomática memorável.

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O desempenho político do cardeal teve seu auge durante sua atuação na Guerra dos

Trinta Anos (1618-1648)5. O que aparentava ser um refluxo mais violento das Guerras de

Religião do século anterior ascende a outro nível bélico, quando com a entrada da França no

conflito. Na metade do século XVII, o absolutismo francês desfrutava de uma fase próspera

internamente, visto que se recuperou rapidamente - a partir de Henrique IV – após o período

das Guerras de Religião6 (JONES, 2013, p. 157). O rei possuía concentração total de poder

em suas mãos, porém, Luís XIII – dada sua cumplicidade com o Cardeal Richelieu – não foi a

sumidade por trás do triunfo francês sobre o Império Habsburgo.

Contudo, a entrada francesa no conflito não foi declarada abertamente desde o início.

Há duas fases a serem contempladas nesse sentido: a fase da guerra “encoberta” (1629 a

1635) e a fase da guerra “aberta” (1635 a 1642) (BLUCHE, 2005, p. 63). A função da guerra

encoberta – que consistia em auxílio financeiro a Estados protestantes – “foi de criar um

‘terceiro polo’ entre a aliança espanhola imperial e o bloco dos protestantes alemães, suecos e

holandeses” (CARNEIRO, 2006, p. 167). Ou seja, surgia a necessidade de neutralizar o bloco

Habsburgo – liderado pelo Sacro Imperador Romano Fernando II -, e a solução de Richelieu

foi dar apoio os protestantes fora de suas fronteiras:

A Richelieu não compensava o fato de a Espanha e a Áustria compartilharem da fé

católica da França. Muito ao contrário, uma vitória da Contrarreforma era

exatamente o que Richelieu estava determinado a impedir. [...] Richelieu preferiu

tomar partido dos príncipes protestantes a explorar o cisma da Igreja Universal. [...]

Richelieu olhou a fé de Fernando II como uma ameaça estratégica. (KISSINGER,

2010, p. 42, 43)

Foi somente em 1635, após assinar tratados de aliança com a Suécia e as Províncias

Unidas, que se abre a fase “aberta” da Guerra dos Trinta Anos, quando a França declara

oficialmente a guerra contra a Espanha (BLUCHE, 2005, p. 226). “A entrada da França na

guerra, ao lado dos protestantes, favorecia o interesse nacional francês, pois lhe permitia

incorporar as regiões da Alsácia Lorena, além de enfraquecer o principal inimigo Bourbon”

5 A Guerra dos Trinta Anos foi um conflito, envolvendo diversas nações europeias, em virtude do insurgente

domínio católico encabeçado pelo Império Habsburgo. Porém, dentre as principais motivações da beligerância, a

religiosidade não se faz exclusiva, sendo envolvidos também méritos territoriais, dinásticos e econômicos. Ver

Capítulo 2. 6 Pode-se dizer que dentre as monarquias absolutistas da época, a da França estava entre as mais bem sucedidas

em questões de centralização de poder, a despeito das disputas burocráticas internas da Corte (POMER, 1986, p.

24).

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(CARNEIRO, 2006, p. 164). A declaração de estado de beligerância tardia foi prova do

cuidadoso cálculo de poder feito por Richelieu, desde a análise do potencial inimigo, até a

formulação de estratégia apropriada e, enfim, a ação.

O Cardeal de Richelieu foi peça essencial para que a França saísse vitoriosa da Guerra

dos Trinta Anos. Porém, tão importante quanto o personagem em si, é também sua

idiossincrasia. A estratégia de Richelieu não consiste apenas na percepção de ameaça, mas,

igualmente, em uma constante indispensável para o resultado final: o interesse do Estado.

Todos os agentes envolvidos no conflito contavam com este elemento essencial, no entanto,

somente na França ele foi priorizado. Daí a originalidade da estratégia do cardeal: a razão de

Estado – ou, em francês, raison d’État.

Dos elementos tradicionais que constituem um Estado, o interesse é secundário e

etéreo. Uma ameaça ao interesse não consiste em algo mensurável ou material, e nem mesmo

é justificável reivindicá-lo como direito - de existir ou ser preservado a todo custo. Sua

existência no sistema internacional produz efeitos variados, desde cooperação a conflito. No

caso de Richelieu, onde o interesse se encontrava como base de conflito, a raison d’État se

faz indispensável para que o cálculo de poder e a estratégia sigam linhas lógicas de ação.

O sucesso francês se deu pela habilidade de um indivíduo em mobilizar o sistema

internacional a favor de seu Estado. O Estado francês foi personificado em um agente único,

que manipulou todos os elementos disponíveis a fim de obter a solução para um problema.

Em um viés sociológico, o caso francês pode ser descrito no modelo estrutural da Teoria das

Elites: quando um indivíduo, ou um grupo destes, manipula a massa em favor de seus

interesses.

Surgida no século XIX, a Teoria das Elites teve como fundador o filósofo italiano

Gaetano Mosca, apresentando o termo pela primeira vez em sua obra Elementi di Scienza

Politica, publicado em 1896. Neste livro, Mosca estabeleceu os pressupostos da teoria,

estipulando que em toda sociedade, seja ela antiga ou moderna, sempre haverá uma minoria

que é detentora do poder em detrimento de uma maioria que dele está privada (BOBBIO,

2000, p. 385).

Entre as tendências e os fatos constantes que se acham em todos os organismos

políticos, um existe cuja evidência pode ser a todos facilmente manifesta: em todas

as sociedades, a começar pelas mais mediocramente desenvolvidas e que são apenas

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chegadas aos primórdios da civilização, até as mais cultas e fortes, existem duas

classes de pessoas: a dos governantes e a dos governados. A primeira, que é sempre

menos numerosa, cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder e goza as

vantagens que a ela estão anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa, é

dirigida e regulada pela primeira de modo mais ou menos legal ou de modo mais ou

menos arbitrário e violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os meios

materiais de subsistência e os que são necessários à vitalidade do organismo

político. (MOSCA, p. 78 apud Ibidem, p. 385)

Ainda na concepção de Gaetano Mosca, a elite se dá como uma lei constante e

inerente a qualquer organismo estatal existente, sendo este dirigido por um indivíduo ou

grupo destes. O exercício desta minoria é, portanto, manipular a massa menos capaz e dela se

utilizar para se manter na posição dominante, seja ideológica ou coercitivamente.

Valendo-se do caso francês, o objetivo deste trabalho é, portanto, forçar a

compreensão sociológica da Teoria das Elites para o sistema internacional de Estados, tendo

como base elementos do paradigma realista, como a anarquia e a hierarquização do sistema

internacional. Desse modo, será analisado o papel do Cardeal de Richelieu – na posição de

governante - como personificação do Estado francês e agente mobilizador de outros atores

internacionais – na condição de governados -, a fim de garantir a segurança e o interesse

nacional da França.

O trabalho será dividido em três capítulos. O primeiro capítulo diz respeito à biografia

de Armand Jean du Plessis, sua trajetória política e análise de sua obra, o Testamento Político.

Neste item serão abordadas suas motivações ideológicas, bem como sua trajetória profissional

até o clero e a Corte.

Seguindo a linha temporal, o segundo capítulo permanecerá com o foco no cardeal,

porém, em uma abordagem mais pontual: será analisado seu papel na política francesa durante

a Guerra dos Trinta Anos. Assim, serão resgatadas as contribuições teóricas de Richelieu –

com devido destaque à raison d’État - para uma política prática de defesa da integridade da

França frente à ameaça Habsburga.

Finalmente, o terceiro capítulo será chave para a problemática do trabalho. Neste será

apresentada a Teoria das Elites, bem como suas principais premissas e seus principais autores.

Após a análise teórica, esta será aplicada à prática política de Richelieu, buscando provar sua

utilidade para o sistema internacional de Estados.

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O objetivo do trabalho é demonstrar a aplicabilidade da Teoria das Elites no sistema

internacional, haja vista a sua origem sociológica. Para tanto, será necessária a utilização de

elementos complementares às disciplinas principais aqui contempladas, envolvendo

componentes de teoria política, história e teoria das relações internacionais.

Apropriando-se da multidisciplinaridade, que é característica inerente a ambos os

campos de estudo supracitados, neste trabalho procura-se acrescentar uma nova dimensão

para a análise do sistema internacional, extrapolando o uso da Teoria das Elites para além dos

limites da sociedade civil e do aparato estatal domésticos, ou seja, atestar a exequibilidade de

suas principais premissas também no cenário internacional.

Dessa forma, o desempenho do Cardeal de Richelieu na Guerra dos Trinta Anos será o

principal instrumento para que se possa ilustrar tal fenômeno, haja vista sua condição de

“indivíduo vetor” na política internacional. Condição esta manifestada na formulação de uma

estratégia que busca mobilizar elementos complicadores, através de ação unilateral, a fim de

salvaguardar o interesse francês.

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1 DE ARMAND A RICHELIEU

O nome “Cardeal de Richelieu” carrega consigo um importante simbolismo quando se

trata de política e história da França. Não bastantes suas contribuições históricas e político-

teóricas, a Richelieu também pode se atribuir caráter de “personagem”. Retratado por uma

enormidade de autores, as atitudes do cardeal ora são alvo de críticas por sua frieza, ora são

enaltecidas por sua genialidade.

Há muito tempo Richelieu é aclamado por historiadores franceses como arquiteto da

monarquia absoluta que dominou a Europa no decorrer dos séculos XVII e XVIII.

[...] Até mesmo críticos, como Alexandre Dumas, que o fez vilão em Os Três

Mosqueteiros, frequentemente cede à admiração pelo frio saber-fazer, que é

capturado no famoso retrato de Philippe de Champaigne que adorna a capa da nova

biografia de Jean-Vincent Blanchard. Como Richelieu pretendia, ele é mostrado

como um mestre do jogo político com suficiente crueldade para alcançar seus

objetivos, sendo o maior deles a ascensão francesa à grandeza. (BELL, 2012,

tradução nossa)7

O Cardeal de Richelieu é o tipo de personalidade a quem se pode atribuir certa

mitologia. Isto é, tornou-se uma figura icônica, com carga conceitual devido a sua

importância histórica, assim como pela representação literária de Alexandre Dumas. A

existência de um personagem literário, então, se confunde com o homem político, tornando

nebulosa a distinção entre os fatos fictícios e históricos.

Campbell (1991, p. 29) explica os motivos pelos quais esse fenômeno ocorre,

afirmando que “quando se torna modelo para a vida dos outros, a pessoa se move para uma

esfera tal que se torna passível de ser mitologizada”. No caso do Cardeal, a assertiva se

7 “French historians have long hailed Richelieu as the architect of the absolute monarchy that dominated Europe

throughout the seventeenth and eighteenth centuries. Henry Kissinger, in Diplomacy, dubbed him “the father of

the modern European state system.” Even critics, such as Alexandre Dumas, who made him the villain of The

Three Musketeers, often cannot help admiring Richelieu’s icy savoir-faire, which is captured in the famous

portrait by Philippe de Champaigne that adorns the cover of Jean-Vincent Blanchard’s new biography. As

Richelieu intended, it shows a master political player with the ruthlessness necessary to achieve his goals, chief

among them raising France to greatness.” (BELL, 2012)

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manifesta na ruptura paradigmática8 causada pelo conceito de razão de Estado, que mesmo

vista de maneira controversa aos contemporâneos tradicionais defensores da unidade católica,

foi decisivo para modificar o sistema internacional após a Paz de Westfália.

Nesses termos, analisando a imagem do Cardeal como concebida pelos observadores

da época, não se pode afirmar que houve consenso de opinião em relação a sua estratégia,

porém, o que se sucede em relação à forma de fazer política inaugurada por Richelieu não só

lhe confere o valor de mito, como também de figura “carismática”:

O carisma autêntico baseia-se na legitimação do heroísmo pessoal ou da revelação

pessoal. Não obstante, precisamente essa qualidade do carisma como poder

extraordinário, supranatural, divino, o transforma, depois de sua rotinização, numa

fonte adequada para a aquisição legítima de poder soberano pelos sucessores do

herói carismático. [...] (WEBER, 1982, p. 302)

As concepções de heroísmo pessoal são variáveis de acordo com o meio, no entanto, o

reconhecimento que confere o status de herói como de Joseph Campbell, é algo que pode ser

verificado em Richelieu, tanto na legitimação através do ato heroico de Weber, como na saga

do herói, também expressa em Campbell9 (1991, p. 137, 138).

Dessa forma, pode-se dizer que, em virtude da carga conceitual que lhe é atribuída, o

“Richelieu antes de Richelieu” 10

também é um aspecto que não pode ser descartado para uma

análise completa. Mesmo que o reconhecimento seja voltado a sua carreira política, a vida

pessoal do Cardeal é uma base elementar para que se compreenda a dinâmica do período,

assim como suas ambições iniciais e a maturação destas em sua experiência profissional.

8 Essa ruptura pode ser associada à antinomia fundamental da ação de Weber, considerando a reprovação do

Sacro Imperador Romano-Germânico, Fernando II, em relação à preferência dada por Richelieu ao interesse

estatal. Neste caso, aplica-se a moral da responsabilidade que, assemelhando-se à filosofia maquiavélica,

interpreta a ação em termos de meios e fins, ou seja, “se define pela busca de meios adaptados aos objetivos”

(ARON, 2000, p. 470, 471). 9 Campbell descreve a saga do herói como a realização de uma proeza física ou espiritual, um rito de passagem

que envolve, em ambos os casos, “uma partida e um retorno” em um sentido evolutivo, representado pelas fases

da vida humana. Isto é, saindo de uma condição imatura – representada pela partida – para um estágio de

enobrecimento pessoal – representado pelo retorno. (CAMPBELL, 1991, p. 137, 138). 10

Na obra de Bluche (2005, p. 21), o autor utiliza essa expressão para descrever François III de Richelieu, pai do

cardeal, buscando ilustrar a semelhança da personalidade e ideologia de ambos. Porém, aqui o termo foi

“apropriado” para definir um limite entre a vida de Richelieu antes do início de suas atividades cardinalícias e

depois, quando se inicia sua ascensão na Corte.

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19

Como sugere o título desta seção, este capítulo irá discorrer sobre a biografia do

cardeal de Richelieu a fim de investigar evolução histórica deste personagem desde suas

origens até o ápice de sua carreira política. Para que se entenda sua trajetória completa é

necessária a análise de sua linhagem familiar11

, assim como de seu histórico profissional, a

exemplo dos estudos para seguir carreira militar, o sacerdócio e o exercício do cargo de

primeiro-ministro de Luís XIII. Também será contemplada a obra “O Testamento Político de

Richelieu”, a fim de analisar de forma mais profunda as contribuições teóricas de Richelieu

para a política, enfatizando os elementos da razão de Estado – ou raison d’État.

Ao decorrer do capítulo também será dada a devida importância à crescente

sofisticação da percepção estratégica de Armand du Plessis como estadista. É necessário tal

destaque na medida em que há visível amadurecimento no trato das problemáticas relativas à

época, tanto na instituição estatal francesa quanto no sistema internacional.

1.1 Da família

Primeiramente, antes que se possa discorrer sobre os aspectos biográficos de Richelieu

é necessária uma apresentação de determinadas particularidades do período histórico

analisado. Haja vista a relação de longa data da família du Plessis com a monarquia, é

fundamental entender o papel familiar e a carga inerente a este aspecto da vida pessoal no

século XVII.

A tradição familiar é uma peça indispensável para o entendimento da dinâmica de

poder deste período. Além dos elementos tradicionais para expansão da capacidade de

dominação e governança - como os âmbitos econômico e militar – as alianças se destacavam

como uma forma primitiva do que seria o alinhamento entre Estados no sistema internacional

moderno. Visto que os limites fronteiriços eram mais flexíveis, havia dificuldade na distinção

11

Em pleno absolutismo, a tradição familiar se fazia um aspecto primordial para a participação e aceitação de

qualquer indivíduo na Corte. Trata-se de um círculo vicioso entre a manutenção da legitimidade monárquica e

interesse – por parte daqueles que ainda não correspondiam à esfera social da nobreza - pelos privilégios

proporcionados pelo relacionamento com a coroa e seu círculo.

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nacional per se. Isso se devia aos numerosos feudos e principados associados à decadência da

legitimidade e representatividade do Sacro Imperador Romano, o que ora facilitava a

conquista territorial ora dificultava a efetividade do domínio na completude do território

“adquirido”.

Este elemento não só serviu de impulso inicial para que Armand ingressasse em

carreiras promissoras relacionadas com a Corte francesa, como foi também o estigma que

ameaçava a soberania da França. A façanha do Império Habsburgo destaca-se historicamente

pelo seu método de dominação não necessariamente bélico. Obviamente o elemento

estratégico se fez presente no arranjo da expansão territorial, porém, a aliança através do

casamento se tornou uma alternativa pragmática à conquista militar e rendeu aos Habsburgos

um amplo e disforme território 12

.

Já no caso de Richelieu, foi o compadrio da família du Plessis com a Corte que

possibilitou seu ingresso em tal ambiente. De acordo com Bluche (2005, p. 20), “a

antiguidade e as alianças no Antigo Regime não passam de dois parâmetros que permitem

situar determinada família na hierarquia nobiliárquica, verdadeira escada de Jacob13

”, ou seja,

o uso da aliança, assim como as relações de vassalagem não eram métodos necessariamente

exclusivos, mas também um molde hierárquico-social que possibilitava a ascensão de tais

famílias.

Seja como for, existe no séc. XVI uma maneira muito fácil de ascender à nobreza:

provar que se possui um feudo nobre sem ficar obrigado a pagar imposto dos feudos

livres, e isso por duas gerações. Quando numa família se acumula tal possessão e o

exercício de um cargo militar honrado durante as duas mesmas gerações, é raro ser-

se assimilado ao mundo dos vilãos. (Ibidem, p. 30)

Dessa forma, torna-se inevitável a associação de qualquer personalidade com a sua

árvore genealógica. Não indiferente a esta conjuntura, os du Plessis construíram um histórico

significativo para preservar uma posição privilegiada do status social da época:

12

Ver figura 3. 13

A escada de Jacob é mencionada na Bíblia Sagrada em Gênesis (28, 11-19) e refere-se à visão de Jacó em um

de seus sonhos e simboliza o meio entregue pelos anjos para subir e descer do céu. (BÍBLIA, 1993)

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21

Não nos esqueçamos de ponderar em paralelo os serviços e a respectiva recompensa.

Louis du Plessis, antepassado do Cardeal-Ministro, falecido “na flor da idade”,

“serviu honrosamente os reis Francisco I e Henrique II” (P. Anselme); o seu irmão

Jacques foi bispo de Luçon; os outros irmãos foram combatentes incansáveis. Um

deles, François, chamado Perna de Pau, especialista na guerra de cerco e matador de

Huguenotes, tinha a promessa do governo de Havre. O outro, Antoine, igualmente

montador de cercos e matador de Huguenotes, foi governador de Tours. Os serviços

militares destes temíveis du Plessis não podiam senão ter favorecido a carreira de

François III de Richelieu, pai do Cardeal. (Ibidem, p. 21, grifo do autor)

Embora fique clara a ligação da família com a monarquia, há divergência entre as

pesquisas analisadas sobre a procedência nobre dos du Plessis. Enquanto François Bluche

(2005, p. 19, 20) destaca o equívoco cometido por vários historiadores ao classificar a família

du Plessis como “pequena nobreza”, Garcia (2002, p. 10) acentua essa condição, ressaltando

a situação de pobreza vivida pelos du Plessis – sendo, inclusive, este o motivo pelo qual

Richelieu assume o bispado de Luçon, visto que proporcionava uma renda indispensável para

a família (Ibidem, p. 12).

No entanto, é mencionado por Bluche (2005, p. 20) que as origens nobres da família

du Plessis iniciam-se seis gerações anteriores a de Armand, dado o casamento entre Isabeu le

Groing de Belarbre e Sauvage du Plessis – senhor de Vervolière. O casal concebeu o filho

Geoffroy, que desposou Perrine de Clérembaut, dama e herdeira da senhoria de Richelieu – o

que explica a herança do território pela família do cardeal.

Dessa forma, havendo dados que corroboram para a imprecisão histórica, é necessário

o esclarecimento da condição em que se encontrava a família. O impasse é solucionado por

Blanchard (2011, p. 182, 188)14

quando relata a problemática relação de François III, pai de

Armand, com a administração financeira da família:

Como muitos outros oficiais de elite na corte, François usou sua privilegiada posição

política para emprestar dinheiro, porém, com o reino em guerra, esse não foi um

período propício para aventuras financeiras. Ele também arriscou dinheiro em

empresas comerciais estrangeiras. François, ao que parece, encontrava-se com um

considerável débito quando faleceu. (tradução nossa)

14

“Like many other high-ranking officials at court, François had used his privileged position to borrow and lend

money, but with the kingdom at war, this was not a good time for financial ventures. He also risked money in

overseas commercial enterprises. François, it appears, was in considerable debt when he passed way.”

(BLANCHARD, 2011, p. 182, 188)

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22

Também afirma a literatura que, devido às dívidas acumuladas por François III, a

herança do bispado de Luçon seria indispensável para que a família mantivesse renda fixa.

Dessa forma, o cargo de bispo seria obrigatoriamente repassado para um dos três meninos du

Plessis. A Henri coube o caminho da nobreza, deixando Alphonse – o irmão do meio –

determinado como “futuro bispo” 15

(GARCIA, 2002, p. 12).

A família “du Plessis Richelieu” trilha o caminho à nobreza da maneira tradicional

mencionada no início desta seção: as alianças. Havia três que serviriam de origem para a

influência posterior dos Richelieu assim como ocupação de postos relevantes na Corte: os

duques de Montpensier, a casa de Rochechouart e a casa Montmorency. No ano de 1542

casam-se Louis du Plessis e Françoise Rochechouart, avós do cardeal. Um dos filhos do casal,

François III de Richelieu, pai de Armand, é uma das figuras mais importantes no histórico da

ascensão da família e foi definitivo para o sucesso do futuro cardeal:

A personagem permanece envolta de mistério. Falecida prematuramente, tendo

acumulado honras e cargos (grão-preboste da França, conselheiro de Estado, capitão

da guarda pessoal), figura na promoção do Espírito-Santo – no cordon bleu – de 31

de dezembro de 1585. Trata-se de um cursus honorum quase perfeito. O grão-

preboste não conta do número de grandes oficiais da Coroa, mas como chefe de

gabinete e alto dignitário da Corte, partilha quase todos os privilégios daqueles, em

especial o da nobreza de dignidade. Detém funções importantes: ele é magistrado

como preboste dos paços do concelho, mas juiz militar. Ele é polícia encarregado da

vigilância e da segurança, não somente da casa do Rei, mas também da Corte, e com

uma eficácia policial ilimitada, dado que acompanha o Rei nas suas deslocações.

(BLUCHE, 2005, p. 21).

A partir das honrarias coletadas por François III, o pequeno dilema sobre os du Plessis

pertencerem à condição de pequena nobreza fica mais claro, principalmente quando é

analisado também o papel de Suzanne de La Porte16

, mãe de Armand. Levando-se em conta

que os de La Porte não possuíam grandes fortunas, obviamente, em um período inicial, os du

Plessis Richelieu representavam certo “provincianismo” (Ibidem, p. 24), a despeito das

conquistas de François. Entretanto, a constante ascensão do pai de Richelieu e o acúmulo

15

Alphonse, posteriormente, abdica ao cargo de bispo, deixando a herança da carreira religiosa para Armand

Jean. Este detalhe será explorado mais precisamente no item 1.2. 16

Suzanne de La Porte não era exatamente nobre. Seu pai, François de La Porte, um advogado do Parlamento de

Paris, serviu a Ordem de Malta, sendo consagrado “cavaleiro da graça”. Por mais que a fortuna da família não

fosse significativa, Suzanne era digna de certa consideração. (BLUCHE, 2005, p. 24) (GARCIA, 2002, p. 10)

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progressivo de cargos influentes foram cruciais para a perpetuação do status privilegiado da

família:

Quando François du Plessis de Richelieu se tornou cavaleiro do Espírito Santo, a 31

de dezembro de 1585 (o futuro Cardeal-Ministro já era nascido, mas não baptizado),

só havia em França, aliás, só restavam, cento e quatro cavaleiros, representando

noventa famílias. Já não se pode classificar os Du Plessis na pequena nobreza. Já se

encontram na Corte e bem colocados neste sítio privilegiado. Bastava um toque para

fazer deles duques. [...] A partir de 1586, os Richelieu foram-se desembaraçando do

seu provincianismo; será ainda o lugar no cordon bleu que assinala seu lugar na

Corte que consagra sua ascensão notável. (Ibidem, p. 22, 24)

Outro personagem de considerável importância é o irmão mais velho de Armand17

,

Henri. Em virtude do falecimento do pai, em 1590, assim que aflora a idade, o rapaz assume a

posição de chefe de família e se autoproclama Marquês de Richelieu. A fim de preservar o

prestígio conquistado por François III, Henri se propôs a estreitar os laços tanto com o

exército quanto com a Corte, obtendo, como resultado a confiança de Maria de Médicis e

contribuindo consideravelmente para a ascensão do irmão, Armand (Ibidem, p. 25).

É inquestionável a relevância da família du Plessis-Richelieu para a Corte Francesa,

assim como a influência direta deste aspecto na vida e na carreira do Cardeal Richelieu. E é

justamente neste ambiente que se funda a base de sua índole e de sua ambição. A partir de

benefícios designados aos du Plessis, torna-se possível a escalada do cardeal até o cargo de

primeiro ministro, posto que viabilizou a condição de transformador da política francesa e do

sistema internacional.

1.2 Armand Jean du Plessis

No ano 1585 nasce o quarto filho18

da família du Plessis-Richelieu: Armand Jean.

Armand seria o embrião da personalidade emblemática que, posteriormente, tornar-se-ia

Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro do rei Luís XIII. Estando consciente da carga

17

Os filhos de François III du Plessis e Suzanne de La Porte ao todo eram cinco: Françoise, nascida em 1578;

Henri, nascido em 1580; Alphonse Louis, de 1582; Armand Jean, nato em 1585 e Nicole, de 1586. (BLUCHE,

2005, p. 24) 18

Por vezes, em algumas obras, Richelieu é tratado como o terceiro filho. Essa ordem se faz quando são

considerados somente os filhos homens do casal du Plessis. Quando se consideram as meninas na ordem de

nascimento, Richelieu é o quarto filho.

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24

inerente ao nome da família du Plessis, fica evidente que a mediocridade era um aspecto não

só já superado pelos novos integrantes do cordon bleu francês, como uma opção impraticável

no futuro de Armand Jean.

A vida pessoal de Richelieu, principalmente os aspectos anteriores a sua atividade

como estadista, é um traço indispensável para a compreensão desse indivíduo, haja vista o

papel de importância que ocupa na construção da personalidade e idiossincrasia do cardeal.

Nas palavras de Blanchard (2011, p. 93)19

:

O cardeal nasceu há mais de quatro séculos, e, como se percebe, ele cuidadosamente

esculpiu sua imagem pública. Ainda assim, os historiadores dão atenção à vida

privada do cardeal. Isso porque, durante o século XVII, o homem francês não

dissociava o político do pessoal, e, para entender o que se dizia sobre o cardeal, é

preciso considerar a vida ética e emocional do chefe de Estado. (tradução nossa)

Ao condicionar o andamento desta seção à afirmativa de Blanchard, a formação de

Armand será analisada com o propósito de relacionar aspectos de sua vida pessoal antes do

ofício como cardeal e primeiro-ministro e a contribuição destes para a construção de sua

futura identidade. Nesse sentido é importante acrescentar que, sendo Armand o terceiro filho

homem da família du Plessis, não havia muita perspectiva de privilégios destinados facilitar a

consolidação de sua carreira, impelindo-o à busca de formação de forma mais independente

(Ibidem p. 200).

O início das atividades acadêmicas de Armand se dá no ano de 1594, quando ele deixa

Richelieu para se juntar ao seu irmão mais velho Henri, iniciando seus estudos no Collège de

Navarre20

em letras e arte da retórica (Ibidem, p. 195). Após Navarre, Armand frequenta a

academia de Antoine de Pluvinel - fidalgo comandante da estrebaria do rei - onde aprimora as

habilidades como equitação, manuseio de armas, dança e etiqueta. O foco da escola era

formar jovens que pretendiam seguir carreira militar (BLUCHE, 2005, p. 43).

19

“The cardinal was born more than four hundred years ago, and, as just noted, he carefully crafted his public

image. Yet historians do pay attention to the life of the cardinal as a private individual. That is because

seventeenth-century Frenchmen did not dissociate politics from the personal, and to understand what they said

about the cardinal one must consider this emotional and ethical life of the statesman.” (BLANCHARD, 2011, p.

93) 20

A escola estava localizada em uma região onde havia grande concentração de instituições privadas de alto

nível (BLANCHARD, 2011, p. 195).

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25

A princípio, a carreira das armas foi a escolha de Richelieu, visto que a seu irmão mais

velho, Henri, coube o segmento da nobreza, e ao irmão do meio, Alphonse, o bispado. No

entanto, com a desistência de Alphonse para se tornar cartuxo21

, em 1603, a obrigação recai

sobre Armand, que deixa a academia de Pluvinel para iniciar estudos voltados à religiosidade.

Salvo a competência intelectual comprovada do futuro cardeal, este, entretanto, ficou à mercê

da realidade repentina que o acometeu, restando apenas conformar-se com o que lhe foi

imposto:

Porém, em 1603, Alphonse du Plessis, “bispo nomeado” de Luçon – sede episcopal

que Henrique III e depois Henrique IV reservaram à família do grão-preboste –

renuncia à mitra e decide fazer-se cartuxo. É necessário modificar todo o programa

Richelieu. É Henri que assim decide. Armand deve sem demora preparar-se para ser

bispo. Pouco importa se não tem vocação, nem lhe perguntam opinião. Aliás, uma

diocese é mais que um regimento. É necessário que o prelado, contra a sua vontade,

mais dócil que Alphonse, estude filosofia. Mandam-no para o colégio de Calvi e

depois para Navarra, em seguida para a Sorbonne, onde irá preparar o bacharelato

em teologia. (BLUCHE, 2005, p. 43)

Ingressando na escola de Sorbonne – ou Collège du Sorbonne -, uma das mais

prestigiadas instituições de ensino teológico europeia, Armand trilhou o caminho precoce ao

bispado, tendo iniciado o processo para assumir o cargo em 1606, quando é nomeado pelo rei

Henrique IV (BLANCHARD, 2011, p. 205). Os estudos de Richelieu se concluem em abril

do ano de 1607, com vinte e dois anos de idade, quando o bispado é finalmente concedido

pelo papa Paulo V (BLUCHE, 2005, p. 43).

No momento em que Richelieu se insere em um segmento de importância na Igreja

Católica francesa, é revelada a oportunidade de ascensão e influência transcendentes ao mero

exercício do sacerdócio. Paralelamente à insurgência do protestantismo como ameaça ao

catolicismo - e à própria instituição da Igreja Católica -, a França passava um momento

relativamente próspero e pacífico promovido pelo rei Henrique IV, dados os conflitos

religiosos do século anterior (BLANCHARD, 2011, p. 237). Servindo-se desta conjuntura,

Henrique IV também promoveu reformas na estrutura da capital francesa, buscando

representar em Paris a força e a resistência do Estado francês após um longo período de

hostilidades:

21

Espécie de monge.

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26

Henrique IV demonstrou compromisso quase incondicional com a capital. A

importância de Paris para a legitimidade e a força do regime fora sublinhada nas

fases finais das Guerras de Religião. [...] Ambicioso, o novo rei empenhou-se em

modelar a cidade de modo a espelhar a grandeza almejada por ele para a nação

francesa e a dinastia real. (JONES, 2013, p. 160)

Essas reformas foram estendidas a todo território francês, em questões de

infraestrutura, desenvolvendo diversos setores relevantes para a vitalidade Estatal. Somando-

se a outros fatores, como o fortalecimento da fé cristã – em decorrência do revigoramento do

Concílio de Trento (1545 – 1563), face ao sucesso da Reforma Católica -, havia certa

“efervescência espiritual”, o que reafirmava a legitimidade do governo absoluto e da relação

deste com a Igreja Católica22

(BLANCHARD, 2011, p. 225).

A interdependência de ambos os elementos - políticos e religiosos - tornou a

participação no clero uma condição que implica influência além da instituição da Igreja. Tal

conjuntura não passou despercebida aos olhos de Richelieu (Ibidem, p. 219); o conjunto de

obras suntuosas e o crescimento significativo da construção de igrejas a fim de “catolicizar” o

espaço parisiense revelaram a ideologia religiosa como um assunto voltado muito mais à

política do que ao credo e à fé (JONES, 2013, p. 174).

O bispo francês daquele tempo tem várias funções. Além das responsabilidades

espirituais, tem papel político e administrativo, econômico e social. A Igreja tem

bens que é preciso administrar. Tem a seu cargo a instrução (pequenas escolas) e a

assistência (obras da cidade e hospitais). (BLUCHE, 2005, p. 51)

Estando em Paris durante seus últimos anos de estudo, fica claro para o futuro cardeal

que a estrutura da cidade parisiense possuía um profundo simbolismo, que viria a ser

difundida por toda a França. No entanto, quando chega a Luçon, em 1608, tal é sua decepção

com o bispado local que Richelieu se torna um símbolo de apoio à Contra Reforma.

22

A relação entre o agente Estatal e a instituição da Igreja Católica se dá no princípio fundamental que inspira o

absolutismo quando se trata da influência da religião na sociedade: a colaboração de ambas em busca do objetivo

comum do bem do homem. (MARTINA, 1994, p. 24)

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27

Em 1609, o senhor de Luçon deseja ocupar-se do que é mais urgente. Sente-se

perturbado pelo triste estado do clero local. Os curas são pouco instruídos,

indisciplinados, negligentes, sem zelo mesmo que tenham alguma convicção. Não

são nada edificantes. [...] Enquanto Richelieu mora no local – e tanto quanto a saúde

lhe permite – percorre a diocese para observar, vigiar e animar os responsáveis da

paróquia. (Ibidem, p. 54)

Durante todo período em que assumiu o bispado, Richelieu teve desempenho

exemplar. Esse fator foi indispensável para a manutenção dos contatos que mantinha com a

Corte em Paris, que se estreitaram ainda mais a partir de 1610, após de morte de Henrique IV:

Em 1612 Richelieu rezou perante Maria de Médicis, segunda esposa de Henrique IV

e regente do reino após a morte do marido, na igreja de Saint-André-des-Arts, em

Paris. O Bispo de Luçon declarou sua admiração pelo Cardeal du Perron, um

prelado-diplomata que teve também uma reputação por ser um ótimo orador. Talvez

esse fosse o tipo de perfil mais influente que buscava o futuro Cardeal. Na verdade,

é impossível de determinar quais eram as aspirações dele naquela época, e que

propósito havia por trás de seu bom relacionamento com a rainha, exceto que ele

queria ser um respeitável bispo da Reforma Católica Francesa. (BLANCHARD,

2011, p. 274, 280, tradução nossa)23

Mesmo com a apreciação da Corte, especialmente de Maria de Mécicis, Richelieu não

tinha grandes expectativas com os resultados de sua atuação como bispo em Luçon. Porém,

para sua surpresa, é justamente devido à figura da Rainha-Mãe24

que sua ascensão se inicia:

em 1614 é nomeado deputado do Clero nos Estados Gerais, aos vinte e nove anos (BLUCHE,

2005, p. 44).

É devido às boas relações com a rainha regente que Richelieu consegue iniciar a

carreira política na Corte, além de receber a nomeação para se tornar cardeal em 1622

(Ibidem, p. 59). A permanência no bispado de Luçon se manteve até 1623, com a crescente

ausência de Armand nos últimos anos, devido ao progresso de seu relacionamento com a

23

“In 1612, Richelieu preached before Marie de’ Medici, Henri’s second wife and regent of the kingdom after

her husband’s death, in the church of Saint-André-des-Arts, in Paris. The Bishop of Luçon stated his admiration

for Cardinal du Perron, a prelate-diplomat who also had reputation for being an outstanding orator. Perhaps this

is the kind of larger profile that he aimed for. In truth, it is impossible to determine what was the exact scope of

his aspirations at the time, and what purpose there was to his good relations with the regent queen, except that he

wanted to be a respectable bishop of the French Catholic Reformation.” (BLANCHARD, 2011, p. 274, 280) 24

Embora cultivasse boas relações com a Corte antes da morte de Henrique IV, Richelieu compreende que a via

de acesso mais fácil para progredir profissionalmente seria através da simpatia de Maria de Médicis, segunda

esposa do rei. (GARCIA, p. 15)

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monarquia. Este fator foi decisivo para sua permanência e favoritismo em Paris, dando

progressão e continuidade à futura ascensão política do Cardeal.

1.3 Da púrpura à política

Após o assassinato de Henrique IV, em 1610, Maria de Médicis - a Rainha-Mãe – foi

rainha regente até que seu filho, Luís XIII, tivesse idade suficiente para assumir a coroa. Uma

vez oficializada como regente, sua escolha foi de manter o corpo de ministros os quais

serviam o falecido rei a fim de manter a estabilidade do conselho real. Porém, haja vista o

contexto político instável resultante da ascensão do protestantismo, Maria acabou por fazer

escolhas equivocadas e prejudiciais à integridade francesa (BLANCHARD, 2011, p. 280,

286).

Pode-se afirmar que Maria de Médicis não estava ciente da ameaça representada pelo

cerco Habsburgo. Desatenção que somente agravou o quadro após o arranjo do casamento, no

ano de 1612, de Luís XIII com Ana da Áustria – filha do rei espanhol Filipe III. Tal decisão

causou revolta entre os membros do conselho25

, que colaboraram para acentuar ainda mais o

afastamento existente entre a rainha e seu filho (Ibidem, p. 315, 327). Associando-se aos

únicos confidentes restantes, Concino Concini e Leonora Galigai26

, formalizou seu

isolamento, dificultado, inclusive, a participação de Richelieu nos assuntos políticos da coroa

(GARCIA, 2002, p. 15).

Ainda bispo em Luçon nessa época, o futuro cardeal mantinha relações amigáveis com

Maria de Médicis, porém, devido ao favoritismo direcionado ao casal Concini – os quais

Richelieu buscou o apoio sem sucesso -, não foi possível que lograsse grandes feitos no

25

Havia, de certa forma, entre os membros do conselho, descontentamento com a Rainha-Mãe, em virtude do

Corte de gastos que implicava diminuição de seus salários. Configurando rancor generalizado, associado à

ameaça aos interesses pessoal do conselho, tal medida culminou em isolamento total de Maria de Médicis.

(BLANCHARD, 2011, p. 327) 26

“Eram, ambos, florentinos como Maria, e haviam acompanhado a soberana até o dia de seu casamento com

Henrique IV. Leonora Galigai, inteligente e astuciosa, após ter sido companheira de infância de Maria de

Médicis, tinha-se transformado na sua conselheira principal. Concini era o favorito da coroa. Um casal ávido e

hábil: haviam conseguido poder e acumulado riquezas. Mas toda a corte e toda a Paris os detestavam.”

(GARCIA, 2002, p. 14,15)

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29

segmento político. No entanto, a manutenção do relacionamento com a Rainha-Mãe

direcionou o cardeal a uma posição privilegiada aos olhos da Corte. Dessa forma, talvez com

fins de comprovar as “boas intenções” do bispo, em 1615, após do casamento de Ana da

Áustria com Luís XIII, Richelieu foi designado confessor da futura rainha (Ibidem, p. 15).

A constante presença de Richelieu no ambiente da Corte - que durante algum tempo

não ultrapassou o limite de espectador das agitações e hostilidades entre o conselho, a rainha e

o futuro rei – não foi tratada com demérito pela Rainha-Mãe. Mesmo que não fosse um

participante de atividade significativa nos assuntos políticos da dinastia, sua colaboração e

fidelidade fizeram com que ficasse em evidência como alguém confiável, ou seja, um aliado

interno em potencial (BLANCHARD, 2011).

Sendo assim, no momento em que as tensões internas na Corte ficaram críticas, Maria

de Médicis nomeia novos membros para o conselho. Dentre estes, se encontra Richelieu, que

recebe seu primeiro cargo político de importância: secretário do Estado para relações

exteriores27

– tornando-se, mais tarde, responsável também por assuntos militares (Ibidem, p.

479, 485). É neste momento que aparece clara para Richelieu a oportunidade de ascender a

cargos mais importantes na política francesa. Para que se concretizassem suas ambições, dada

a diversidade de elementos complicadores, foi preciso manipular diversas personalidades

importantes simultaneamente, configurando um jogo político complexo.

A peça inicial da estratégia, a Rainha-Mãe, já vinha sido trabalhada de longa data. Era

clara a consideração que Maria de Médicis tinha por Richelieu. No entanto, Concini e sua

esposa, Leonora, ocupavam o posto de “favoritos” da rainha. Sendo assim, mesmo declarando

fidelidade e vassalagem exaustivamente, o casal Concini o ignorava, o que o encorajou a

seguir cortejando Maria de Médicis. Embora o casal se manifestasse como um claro obstáculo

ao relacionamento de Richelieu com a rainha, os cargos que lhe foram designados retratam

uma atitude mais acolhedora da mesma (GARCIA, 2002, p. 16).

Superada essa dificuldade, mesmo que parcialmente, o próximo elemento de

importância para o avanço de Richelieu era Luís XIII. Fator crucial para a contínua ascensão

do futuro cardeal, o jovem rei comportava certa carga emocional que foi decisiva para o

desenvolvimento de sua relação com Richelieu. Desde menino, Luís XIII sofreu com os

abusos de autoridade da mãe e com o constante assédio moral do casal Concini, assim como

27

Já nesta época, Richelieu encaminhava relações diplomáticas de tolerância com príncipes protestantes.

(BLANCHARD, 2011, p. 504)

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30

de outros aliados e membros do conselho. A mágoa crescente fez com que, quando rei, Luís

se retirasse em um isolamento voluntário e desenvolvesse constante desconfiança de todos

que o rodeavam, exceto por uma pessoa: o Duque de Luynes28

(Ibidem, p. 15, 16).

Assim estavam ordenados os agentes os quais Richelieu deveria manipular se quisesse

manutenção e expansão de poder. Quanto ao casal Concini, o problema foi resolvido

rapidamente sem que fosse preciso sua intervenção direta. Assim que proclamado rei, Luís

XIII ordenou a morte de Concino, que foi executada pelo comandante da guarda, Vitry29

,

deixando Richelieu como o principal confidente de Maria de Médicis. No entanto, esta vitória

parcial foi minada pelo desprezo de Luís XIII pelo, ainda, bispo de Luçon. Dentre as

motivações do rei destacam-se dois fatores principais. Primeiramente, pode-se dizer que Luís

confere ao bispo certa incompatibilidade ou antagonismo, haja vista o bom relacionamento de

Richelieu com a Rainha-Mãe e o rancor do rei pela mãe abusiva. Combinado a essa questão, a

presença constante do duque de Luynes e a confiança que lhe depositava o rei, deram-lhe

liberdade para que fizesse o possível para manter-se no poder (Ibidem, p. 17, 18).

Tal liberdade foi reforçada devido ao exílio de Maria de Médicis, que foi convidada a

se retirar das suas dependências de Paris, a pedido do filho. A mediação desta situação foi

feita pelo próprio Cardeal de Richelieu, que se ofereceu ao conselho para que desempenhasse

tal competência:

Após o resultado do golpe, Luís, Luynes e o conselho real foram deixados com um

problema sério: o que fazer com Maria de Médicis, ainda mantida em severa

vigilância em seu apartamento no Louvre. A Rainha-Mãe teve que ser mandada

embora de forma condizente ao seu posto. Destemido apesar de seu fracasso

anterior, Richelieu vislumbrou uma oportunidade. Com o próprio consentimento da

rainha [...] e a despeito da antipatia de Luís, ele convenceu os novos governantes de

que poderia mediar a situação. Negociando um acordo que fosse satisfatório para

ambos os lados, Richelieu salvou sua carreira política. [...] Richelieu tornou-se chefe

do conselho da rainha e administrador de sua casa. (BLANCHARD, 2011, p. 592,

tradução nossa)30

28

O Duque de Luynes pode ser considerado um amigo e confidente de longa data de Luís XIII e, tendo em vista

o ressentimento que tinha pela maior parte das autoridades da Corte, tornou-se praticamente a única pessoa em

quem o rei depositava total confiança (BLANCHARD, 2011). 29

Após de morte do marido, Leonora sofreu de um ataque de histeria, o que foi considerado uma espécie de

manifestação demoníaca. Considerada pela crença da época uma “bruxa” Leonora morreu queimada em praça

pública, como muitos hereges deste período (GARCIA, 2002, p. 18). 30

“In the aftermath of the coup, Louis, Luynes, and his royal council were still left with quite a problem: what to

do with Marie de’ Medici, still kept under tight surveillance in her Louvre apartment. The queen mother had to

be sent away in a fashion befitting her rank. Undaunted by his earlier setback, Richelieu spotted an opportunity.

With the queen’s own consent […] and despite Louis’s animosity, he convinced the new rulers that he could

mediate the situation. By negotiating an arrangement that was satisfactory for both sides, he saved his political

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31

Mesmo tendo salvado sua carreira política, a ausência de Richelieu deu margem para

que Luynes construísse uma forte base de influência sobre Luís XIII além de reforçar cada

vez mais a discórdia entre o rei e sua mãe (Ibidem, p. 649). No entanto, mesmo que sua

ingerência sobre Luís fosse decisiva para dificultar a ascensão do bispo, o rei ainda sentia o

ônus da falta de experiência de Luynes na política, ficando à mercê dos antigos membros do

conselho, nos quais não confiava (Ibidem, p. 664).

Dessa forma, para que Richelieu pudesse cativar Luís XIII, foi preciso que

manipulasse forças de ambos os lados. Para que conseguisse manter-se inserido em ambos os

lados do conflito familiar, foi preciso que lidasse com o triângulo formado pela Rainha-Mãe,

Luynes e o rei, contando com a ajuda de François le Clerc du Tremblay31

– mais conhecido

como Padre José:

Em Blois, Richelieu fez duplo jogo: espionava a rainha e mantinha Luynes a par de

todos os seus movimentos. Na sombra, Padre José tramava para desfazer as

desconfianças de Luís XIII que, embora apegado à mãe, temia-a e queria mantê-la

afastada do trono. [...] Richelieu procurava ganhar ouvidos de Luís XIII,

denunciando os complôs da rainha-mãe. Não conseguia vencer as resistências nem a

antipatia do rei porque Luynes, que ambicionava ser o homem mais poderoso da

França, tornou-se seu inimigo. Apesar de sua pouca inteligência, Luynes havia

avaliado a força intelectual e a ambição de Richelieu. (GARCIA, 2002, p. 19)

Após um longo período de forte hostilidade entre mãe e filho, as inúmeras negociações

e acertos de paz tiveram resultados, fazendo com que Maria de Médicis estivesse presente de

forma mais regular na Corte. Dada tais circunstâncias, Richelieu encontrava-se em situação

mais favorável profissionalmente, haja vista as garantias proporcionadas pela aliança com a

Rainha-Mãe (BLANCHARD, 2011).

No entanto, os frutos dos esforços para ganhar a empatia do rei só se materializaram

após o dia 15 de dezembro de 1621, quando morre em Paris Charles d’Albert – duque de

Luynes. Sensibilizado pela morte do amigo, Luís desistiu da defensiva constante imposta à

career. [...] Richelieu became chief of the queen’s council and administrator of her household.” (BLANCHARD,

2011, p. 592) 31

Padre José, mais tarde conhecido como “Eminência Parda”, foi um amigo de longa data de Richelieu. Ele

esteve ao seu lado desde seus tempos de aprendizado até seus 18 anos na função de cardeal. (GARCIA, 2002, p.

13, 14)

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32

mãe, cedendo-lhe mais credibilidade. E os resultados para Richelieu foram quase imediatos:

no mesmo ano foi submetida sua requisição para se tornar cardeal, fato que ocorreu em 1622,

quando finalmente se viu em posse do característico manto púrpura dos cardeais católicos

(Figura 1) (Ibidem).

Figura 1 – Cardeal de Richelieu Fonte: NNDB

Disponível em: http://www.nndb.com/people/894/000092618/cardinal-richelieu-3-sized.jpg

Ainda a passos lentos, somente em 1624 que se concretiza mais um resultado da

insistência do, então, cardeal para que fossem reconhecidas suas habilidades políticas além do

sacerdócio. De acordo com Bluche (2005, p. 73):

Em 1624, quando o rei, pressionado pela mãe e consciente da mediocridade relativa

do seu séquito, chamou Richelieu para o governo, não lhe mostrou a menor

simpatia. Se o Cardeal se chamou “chefe do Conselho”, só se deveu a sua qualidade

de príncipe na Igreja. Durante muito tempo Armand Jean desagradou ao seu senhor,

que o achava demasiado seguro de si, superior, vaidoso, intimidante, pouco digno de

confiança.

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33

De fato, a confiança do rei só será ganha após o episódio em La Rochelle32

, no ano de

1628. A partir de então, já se torna indiscutível a credibilidade de Richelieu, não deixando

justificativas para a antipatia do rei, resultando na promoção para seu cargo de maior

importância: primeiro-ministro33

de Luís XIII, em 1629.

Começou então seu verdadeiro poder e a longa colaboração com Luís XIII, esta

extraordinária amizade que uniu durante 8 anos dois homens igualmente doentios,

recalcados, misteriosos, mas animados por uma paixão: realizar a unidade da França.

[...] Os ministros anteriores acreditavam chegar ao poder explorando as conhecidas

fraquezas do rei. O cardeal, ao contrário, resolveu encorajar a atração do enigmático

Luís XIII pela grandeur, a grandeza. E foi bem-sucedido. O rei convenceu-se de que

contava com um homem de gênio. (GARCIA, 2002, p. 20)

Devidamente inserido no segmento mais importante da dinastia francesa, Richelieu foi

o elemento decisivo para que a França saísse vitoriosa da Guerra dos Trinta Anos. Após

inúmeras falhas na estratégia estatal, seja por negligência ou por falta de experiência dos

envolvidos, a dinâmica de ação do cardeal é um turning point tanto na política francesa

quanto mundial. Pode-se dizer que é inaugurada uma nova maneira de se pensar o Estado e

seus interesses, desenvolvendo profundamente o exercício da razão em sua forma mais

genuína e mantendo-a acima de quaisquer que fossem as crenças ou doutrinas religiosas

predominantes.

1.4 O Testamento Político

Richelieu redigiu alguns escritos ao longo de sua carreira, no entanto, a maioria

voltada para fins do sacerdócio (BLANCHARD, 2011, p. 632). A obra-prima do cardeal,

32

La Rochelle era o centro de resistência protestante. Em 1627 houve quebra do acordo de trégua previamente

assinado entre Richelieu e os protestantes, resultando no cerco que durou um ano. O cardeal era o general da

missão, saindo vitorioso no ano de 1628, após a resistência ficar exaurida pela fome. (CARNEIRO, 2002, p. 469,

470) 33

“As instituições do reino capetiano nunca previram a existência de um ‘primeiro-ministro’. Por outro lado,

‘um ‘principal ministro, como lhe chamam naquele tempo’, tem uma posição muito mais ambígua. Richelieu é

em princípio, o homem do Rei e deve gerir a sua política, mas sem ter papel nem função bem determinados.’ (J.

Bergin)” (BLUCHE, 2005, p. 74)

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34

destinada para o rei Luís XIII, é um marco na teoria política. “O Testamento Político”,

embora inacabado, tem objetivo semelhante ao da obra “O Príncipe”, clássico político escrito

por Nicolau Maquiavel, publicado em 1532: é um guia político dirigido ao rei – ou príncipe,

como é denominado o soberano em ambas as obras. O conteúdo da obra em si é abrangente,

tocando em diversos aspectos relativos à arte de governar – o que abrange desde a teoria

política a detalhes como armazenamento de alimentos durante a guerra (GARCIA, 2002, p.

8).

Entretanto, mesmo com o caráter eclético do texto, o fator de maior importância

destacado pelo autor é o papel da razão no ato de governar. Dentre as maiores qualidades que

se pode atribuir a um príncipe, a razão acima de todos os outros valores é a principal,

especialmente quando unida ao amor pela nação que este representa. Dessa forma,

espelhando-se, talvez, em sua própria estratégia utilizada durante a Guerra dos Trinta Anos, o

cardeal inaugura um conceito original e revolucionário da teoria política deste período: a

razão de Estado – ou, em francês, raison d’État34

. A razão de Estado é um elemento

diferencial da compreensão política de Richelieu na medida em que não se restringe somente

à teoria, mas também à prática – sendo, inclusive, o fator decisivo na manutenção da

soberania francesa.

Embora as características acima sejam as percebidas neste trabalho, Bluche (2005, p.

194) expõe outros possíveis objetivos que foram explorados ao longo do tempo, todavia, não

confirmados:

Por ser famosa (além de inacabada), esta obra não deixa de ser ambígua. Acreditou-

se durante muito tempo que “a obra não fora concebida para ser publicada” (Léon

Noël); e agora já não se sabe bem o que pensar. Muito se afirmou que este

Testamento nada tinha de tratado teórico; e actualmente cria-se o hábito de ver a

facilidade com que Richelieu introduz axiomas no meio de um discurso pragmático,

ou enxerta exemplos muito específicos no seio de uma demonstração que aparenta

ser abstracta. O livro apresenta-se como resumo das Memórias, obra interminável e

inacabada – teoricamente redigida no intuito de celebrar o monarca - , atrasada pelos

“contínuos incómodos” de que sofria o Cardeal-Ministro devido à “fraqueza da [sua]

compleição e ao peso dos assuntos”.

34

Por mais que este seja o aspecto mais famoso da obra, o termo per se só e empregado três vezes no decorrer do

livro. (BLUCHE, 2005, p. 199)

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35

Mesmo que não tenha sido concebida a intenção inicial de se tratar de um “tratado

teórico”, como afirmou François Bluche, a atribuição de tal característica é inevitável, tendo

em vista a multiplicidade de elementos pertencentes à teoria política clássica.

A obra é composta por duas partes, cada delas uma dividida, respectivamente, em oito

e dez capítulos. Esses estão subdivididos em seções direcionadas a objetivos mais específicos

relativos a cada capítulo.

A primeira parte discorre sobre alguns fatos históricos, além das instituições de maior

importância do Estado francês, tratando também de algumas questões político-teóricas

relacionadas ao Estado, como a legitimidade do absolutismo e a divindade do príncipe. Essas

questões são mais bem desenvolvidas na segunda parte do livro, onde se aprofunda

claramente o estudo em torno das diretrizes e fundamentos de Estado, além de aspectos

funcionais das instituições apresentadas na primeira parte, englobando questões de logística,

economia, organização da sociedade francesa e relações de poder no círculo social

monárquico.

O livro é iniciado com uma breve narrativa dos feitos do rei, em forma de

congratulação pelo seu desempenho na contenção das revoltas huguenotes35

na França. A

narrativa discorre de forma elogiosa, apresentando as dificuldades burocráticas enfrentadas

por Luís XIII, além de manifestar a devoção e a lealdade do cardeal ao seu soberano. Esta

parte inicial, pequena, em relação ao resto do livro, não condiz com o restante da obra.

Mesmo que incansavelmente respaldada pelo “bem da França”, as palavras de apoio de

Richelieu mascaram as críticas incisivas que faz ao status do reino naquele período e servem

para minimizar o efeito ofensivo das inúmeras recomendações que redige ao longo da obra:

Apesar das fórmulas respeitosas, a epístola do rei disfarça mal o objetivo da obra. O

Cardeal-Ministro dá ao monarca um manual capaz de o ajudar na “gestão de um

grande Estado”, ou seja, a prosseguir a obra inaugurada, conduzida e mantida pelo

seu conselheiro mais eminente desde a sua entrada no Conselho. [...] Não é a

modéstia que leva o Cardeal a atribuir ao monarca os êxitos do seu ilustre auxiliar.

Este sabe, há mais de doze anos, como falar com seu amo. Convém “dizer-lhe

incessantemente que ele é o amo”. (Ibidem, p. 195, 196)

35

Denominavam-se assim os protestantes franceses - que eram, em sua maioria, calvinistas - durante os séculos

XVI e XVII.

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36

A partir de então, os próximos capítulos fazem com que o livro tome forma mais

semelhante a um manual36

, apresentando sugestões de correção em múltiplos segmentos da

corte, da nobreza e da Igreja. As reformas sugeridas se referem ao âmbito eclesiástico, à

supressão e limitação de segmentos privilegiados que buscam tirar vantagem de sua posição

excepcional, além de reivindicações para membros da Igreja Católica – a exemplo do pedido

de garantia dos direitos dos bispos, na seção XII, na página 139 da obra -, e também de

observações sobre questões como educação e organização de determinadas instituições do

Estado francês37

.

Após apresentar a estrutura de funcionamento esperada para o Estado e suas

instituições, Richelieu passa para uma análise mais ampla do elemento estatal, onde expõe

uma visão sistemática das instituições exploradas anteriormente. O cardeal faz um

ordenamento hierárquico das divisões do Estado, ressaltando sua importância e a ordem nas

quais devem ser consideradas:

Depois de ter falado separadamente das diversas ordens de que o Estado se compõe,

não me resta quase nada a dizer em linhas gerais senão que, assim como um todo

não subsiste senão pela união das partes em sua ordem e no seu lugar natural,

também esse grande reino não pode ser florescente, se V. M. não faz subsistirem os

corpos de que é composto em sua ordem; a igreja tendo o primeiro lugar, a nobreza

o segundo e os oficiais que marcham à frente do povo, o terceiro. (RICHELIEU, p.

207)

Ao final da primeira parte, no capítulo XIII, o último assunto a ser tratado é o do

conselho do Príncipe, que se refere à importância que deve ser dada pelo rei à formação do

seu conselho de Estado e a atenção com que devem ser escolhidos seus membros. O conteúdo

desta seção enfatiza o papel do “conselheiro de Estado”, que é, basicamente, a condição do

próprio Cardeal. O destaque dado pelo autor a esse fator específico somente reforça a

afirmativa de que o Testamento Político pode ser considerado uma crítica velada.

Um príncipe capaz é um grande tesouro num Estado; um conselho hábil e tal como

deve ser, não o é menos, mas o conjunto de ambos é inestimável, pois que é daí que

36

É importante destacar que a nomenclatura de “manual” se atribui à obra na medida em que esta contém uma

série de instruções para que o príncipe domine a arte de governar. Ainda que limitador, o termo serve,

meramente, para ilustrar o formato na qual a obra é escrita, mesmo não contemplando a profundidade de seu

conteúdo. 37

Como o Capítulo IV, que trata da Terceira Ordem do Reino, na página 176.

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37

depende a felicidade dos Estados. [...] Muitas qualidades são requeridas para fazer

um conselho perfeito; podem ser reduzidas, entretanto há quatro a saber, capacidade,

fidelidade, coragem e aplicação que compreendem várias outras. (RICHELIEU, p.

242, 243)

Por mais que seja digno de suspeita o destaque dado ao dilema do conselho, não há

unanimidade sobre o objetivo por trás do capítulo VIII. Nas palavras de Bluche (2005, p.

196):

É incorreto que o capítulo VIII da obra tenha por vezes sido considerado um

autorretrato: o “conselho do príncipe” não depende de um Richelieu ideal, perfeito,

como sonhava ser ou poderia ter sido. “Os melhores príncipes necessitam de bom

conselho” significa singelamente: o rei Luís escolheu bem o seu braço direito.

Por mais que seja precipitada ou equivocada a suposição de que o capítulo VIII seja

um “autorretrato”, é difícil contestar que haja intenção de passar uma mensagem para o

soberano. É possível identificar em várias passagens a semelhança do conselheiro ideal à

personalidade do Cardeal de Richelieu, tendo em vista que os conselhos são dados com base

na sua própria idiossincrasia, condizendo com seu desempenho e modus operandi.

Já a segunda parte discorre de maneira mais aprofundada sobre questões teóricas

relativas ao Estado. Richelieu estabelece nove princípios para a boa governança, sendo estes

indispensáveis para a boa administração estatal (RICHELIEU, p. 283). São eles:

estabelecimento do reino de Deus (capítulo I); a razão como regra e diretriz do Estado

(capítulo II); prevalência do interesse público acima do particular (capítulo III); dar a devida

importância à previdência (capítulo IV); o papel relevante da pena e da recompensa para

direção do Estado (capítulo V); dar atenção equivalente à política aos negócios estatais

(capítulo VI); atenção à especialidade de cada indivíduo para determinado emprego (capítulo

VII); manter afastados os aduladores (capítulo VIII); e, finalmente, a última seção é dedicada

ao poder do príncipe, subdividindo-se em mais oito subtítulos.

Os três primeiros capítulos se relacionam entre si. O estabelecimento do reino de Deus

é o primeiro passo estabelecido para o bem estar do Estado. Sem a garantia deste fundamento

não há possibilidade de que se consiga um governo saudável (Ibidem, p. 284), o que implica,

além do estabelecimento de um Estado livre das malícias através do culto, que haja

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38

comprometimento genuíno do príncipe em se manter longe da tentação, podendo garantir a

virtude do seu séquito e de seu reino.

Como os príncipes são obrigados a estabelecer o verdadeiro culto de Deus, devem

ter cuidado em banir as falsas aparências, tão prejudiciais aos Estados, que com

verdade se pode dizer que a hipocrisia tem servido de véu para cobrir a feiura das

ações mais perniciosas. (Ibidem, p. 287)

A ausência de “paixões”, inerente ao primeiro item, complementa a execução do

segundo princípio: a prioridade da razão como regra para governar o Estado. O príncipe não

se deve deixar seduzir e nem praticar tal ato a fim de obter qualquer benefício, seja para si ou

para o reino. A tentação dificulta a reflexão sobre qualquer juízo que tenha que ser feito,

prejudicando a saúde do Estado (Ibidem, p. 289), o que interfere, diretamente, no terceiro

princípio.

Sendo influenciado pelas paixões, o príncipe torna-se tendencioso ao que lhe apetece,

o que se pode interpretar, principalmente, como interesses particulares, sendo estes os quais

Richelieu identifica como mal da França e o motivo pelo qual muitas vezes se viu em

desvantagem em relação aos seus inimigos:

Não posso deixar de notar, a propósito, que a prosperidade que sempre acompanhou

a Espanha desde alguns séculos, não tem outra causa senão o cuidado que seu

conselho teve de preferir os interesses do Estado aos outros todos, e que a maior

parte das desgraças sobrevindas à França foram causadas pelo excessivo apego que

muitos daqueles foram empregados na administração tiveram pelos interesses

pessoais com prejuízo dos públicos. (Ibidem, p. 295)

Após as considerações acerca dos princípios relativos à teoria do Estado, o cardeal

prossegue sobre as competências da organização e administração do reino. Estas diretrizes

estão relacionadas à parte institucional, tratando da condução da estratégia – através da

previdência -, bom aparelhamento do judiciário e política econômica eficiente. Os capítulos

referentes a estas problemáticas se desenvolvem de maneira mais descritiva, semelhante aos

da primeira parte do livro.

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39

Um elemento que merece atenção nesta obra é a importância dada por Richelieu à

especialidade e a necessidade desta ser identificada a fim de direcionar o indivíduo ao setor

onde será mais profícuo. A teoria deste pensamento, embora engenhosa, não surge

originalmente no Testamento Político. A proposta do cardeal assemelha-se muito à

abordagem econômica de Platão para o Estado ideal: “Os homens não podem viver sozinhos;

todos precisam de alguma coisa que só os outros podem fornecer, e cada um tem a

possibilidade de contribuir com algo para o bem-estar alheio” (BARKER, 1986, p. 162). A

diferença, todavia, dá-se na finalidade desta organização.

Enquanto Platão buscava algo mais parecido com a posterior divisão do trabalho e a

eliminação da competição constante para estimular a produtividade (Ibidem, p. 162, 163),

Richelieu dava enfoque maior para este último elemento, porém, ressaltando a ameaça dos

improdutivos não somente para a economia do Estado, mas para o desempenho deste como

um todo, envolvendo desde a produtividade interna até performances militares e políticas

medíocres (RICHELIEU, p. 323, 324).

O próximo tópico a refletir com clareza a identidade do cardeal em sua obra trata dos

aduladores. Quanto a estes, é perceptível o rancor guardado por Richelieu em relação a tais

indivíduos. O cardeal dedica boa parte deste capítulo para proferir calorosos insultos aos que

são, de acordo com ele, um dos maiores males que podem assolar um Estado.

Não há peste tão capaz de arruinar um Estado, quanto os aduladores, maldizentes e

certos espíritos que não tem outro desígnio senão formar cabalas e intrigas nas

cortes em que vivem. São tão industriosos a espalhar seu veneno, por diversas

formas imperceptíveis, que é difícil obter-se garantia contra eles sem tomar cuidado

de muito perto. (Ibidem, p. 332)

A antipatia expressa nas palavras do cardeal, embora sejam injúrias graves, não são

injustificáveis. A existência de indivíduos cujo único interesse era o próprio sucesso ou eterno

oportunismo era recorrente na Corte não somente francesa, mas da maioria dos Estados deste

período. O diferencial da perspectiva de Richelieu, neste caso, é ele mesmo já ter sido

“vítima” de ações de má fé, como as do casal Concini e do próprio Duque de Luynes.

Finalmente, o último tópico de significativa relevância, é relativo ao poder do

príncipe. A perspectiva de Richelieu incorpora elementos físicos e psíquicos do soberano. O

capítulo contém instruções sobre a necessidade de manter poderio terrestre – especialmente

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nas fronteiras – e marítimo, contando com boa administração financeira, cavalaria e infantaria

de qualidade superior, assim como seus respectivos comandantes. Entretanto, mesmo que bem

estruturados os programas relativos ao poderio físico, o que se destaca no capítulo são as

observações sobre a personalidade ideal do príncipe.

A semelhança com Maquiavel é identificada logo na primeira seção do capítulo, que

inicia mencionando a importância da reputação tanto interna quanto externamente. Este deve

contar com número bastante de soldados e de dinheiro, assim como com o respeito e a

lealdade dos súditos (Ibidem, p. 341). Porém, não sendo adquirida a estima do povo apenas

com a virtude do príncipe, esta não deve ser buscada somente através da bondade e da

generosidade, visto que ambas em demasiado dão liberdade para que reine a desordem, sendo

preferível “fazer-se temido que amado, quando se tem de renunciar a uma das duas”

(MAQUIAVEL, 2010, p. 80). Essa afirmativa é repetida pelo cardeal, reforçando a ideia de

força e poder inerentes ao rei:

Como a bondade é objeto do amor, o poder é a causa do temor, e é certo que entre

todos os princípios capazes de excitar um Estado, o temor que se funda na estima e

na reverência tem a força de interessar mais cada um no cumprimento do seu dever.

(RICHELIEU, p. 340)

Finalmente, terminadas as recomendações, o capítulo o qual encerra o livro é descrito

por Richelieu como a seção que comprova a legitimidade do Testamento Político como “guia

para a arte de governar” e que dá o caráter descrito inicialmente nesta seção, ou seja, uma

espécie de compilado de instruções úteis e indispensáveis para o bom governo do príncipe.

Caso este seja negligente ou conivente com as falhas do Estado, segundo o autor, fará com

que o conteúdo da obra “inútil se os príncipes e seus ministros não são tão apegados ao

governo do Estado que, nada omitindo daquilo que é adstrito a seu cargo, não abusam, nunca,

do seu poder” (Ibidem, p. 447).

Por mais que a obra como um todo seja extremamente rica em detalhes -

especialmente no que diz respeito à administração do Estado – este não é o motivo pelo qual

se destaca. As inovações conceituais do livro marcam uma nova fase para a política da época,

ressaltando a importância de um governo atento a todos os setores e ponderado ao tomar

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41

decisões, beneficiando-se da lealdade ao princípio que precede todos os outros: a raison

d’État.

Após uma análise da biografia do Cardeal e de suas contribuições político-teóricas, o

próximo capítulo tratará de sua atuação durante a Guerra dos Trinta Anos. O período

compreendido será a partir do ano de 1519 – quando é eleito Carlos I de Espanha como Sacro

Imperador Romano-Germânico – até 1648, quando ocorre a Paz de Westfália. O objetivo do

capítulo será analisar o contexto completo do conflito, incorporando o desempenho do

Cardeal de Richelieu na política externa e interna da França, inserindo as contribuições da

razão de Estado para o resultado final das hostilidades.

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2 A RAZÃO DE ESTADO NA GUERRA DOS TRINTA ANOS

A Guerra dos Trinta Anos ocorreu durante o século XVII, entre os anos de 1618 e

1648. Dentre as principais motivações por trás do conflito, a que mais se destaca é a de mérito

religioso. Isso ocorre devido ao constante antagonismo entre a Igreja Católica e o

protestantismo insurgente, resultado das Guerras de Religião ocorridas no século anterior:

O século barroco, inquisitorial, da Contrarreforma e da guerra de religiões, alcançou

seu momento mais baixo com a Guerra dos Trinta Anos, marcado com o

dilaceramento de milhões de mortos, como resultado de um uso empresarial da

guerra com métodos modernos, usados por todos os estados, tanto os pequenos

principados como as grandes nações, católicas ou protestantes, especialmente a

França, Espanha, Suécia e o Sacro Império Romano Germânico. Mas a justificativa

religiosa dos conflitos, que estava presente inicialmente tanto entre os rebeldes

protestantes como entre os defensores católicos da autoridade religiosa e política do

imperador do Sacro Império Romano Germânico, tornou-se mais difusa durante a

guerra, com a entrada da França. (CARNEIRO, 2006, p. 164)

Não se pode restringir a análise a apenas uma perspectiva sem perder a profundidade

política da hostilidade, especialmente no que concerne à França. No contexto francês, a luta

pela legitimação do catolicismo, não somente em termos de fé, mas também como modo de

assegurar a autoridade e legitimidade do Sacro Imperador Romano-Germânico - então

Fernando II de Habsburgo - significava negligenciar ou compactuar com o forte avanço do

Império Habsburgo através da Europa. A conquista de um território amplo e disforme,

promovida pela casa, principalmente, através de alianças políticas e casamentos, foi vista pelo

governo francês como uma ameaça que tomou forma física de um cerco que colocaria em

risco a soberania da França.

Mesmo que estivesse claro para a França, em termos de cálculo de poder, que as

ambições do Império Habsburgo incluíam domínio sobre suas terras, ainda há controvérsias

em relação a esta questão. Não há comprovação histórica que aponte diretamente para uma

tentativa consciente e planejada dos Habsburgos em tomar a França (KENNEDY, 1994, p.

43). Porém, sendo a França um Estado católico por excelência, o empenho por trás da unidade

religiosa – promovida pelo Sacro Império Romano desde o século anterior – poderia significar

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certo interesse em agregar o território francês, não por questões de poder, mas por meio de

uma reação automática se a França manifestasse interesse idêntico ao Habsburgo38

. No

entanto, esta ameaça não pediu ação imediata nos primeiros momentos da guerra. Foi somente

com a exposição das intenções reais de Fernando II que o equilíbrio de poder se viu

ameaçado:

Esta explosiva situação tornou-se ainda mais perigosa por causa da personalidade do

novo imperador, Fernando II, católico intransigente, não escondia as suas ambições,

que se orientavam – a maior ou menor prazo – para a eliminação do protestantismo e

a transformação das suas possessões hereditárias, das suas coroas electivas (a

Boémia e a Hungria) e do Império Germânico num único e vasto Estado

centralizado, alemão e católico. (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 225, 226)

Apesar da participação efetiva da França na Guerra dos Trinta Anos ter se iniciado no

ano de 1635, até então, o Estado francês estava envolvido na beligerância de forma velada,

não promovendo confronto bélico. Esta fase, denominada “guerra encoberta”, inicia-se no ano

de 1629, contando apenas com subsídios para os príncipes protestantes a fim de

descaracterizar a guerra como somente religiosa (CARNEIRO, 2006, p. 167).

Já no próximo estágio do conflito, a denominada “guerra aberta”, que se prolonga até

1642, foi iniciada quando se declara, oficialmente, guerra contra a Espanha. Este período é

fundamental para que a França saia vitoriosa do conflito. A busca pelo enfraquecimento do

cerco Habsburgo em benefício do equilíbrio de poder só poderia ser atingida em sua

totalidade quando participasse de forma efetiva do conflito. Porém, a decisão e o momento

para esse acontecimento foram resultados do cálculo de poder e da cautela com que foi

dirigida a política de guerra da França.

Tanto durante a guerra encoberta quanto durante a fase aberta, a atuação francesa teve

como principal fator para sua vantagem a estratégia elaborada pelo Cardeal de Richelieu, que

manteve a França católica, mas apoiou a ação dos príncipes protestantes contra o Império

Habsburgo externamente. Por mais que não tenha sido um programa estratégico previamente

planejado, a genialidade que lhe é atribuída se dá pela adaptação circunstancial que

38

Reforçando esta afirmativa, é importante destacar que o território da França se encontrava como uma divisória,

separando as terras espanholas das germânicas, o que fortaleceria os interesses unificadores dos Habsburgos,

caso contassem com apoio francês na luta contra os príncipes protestantes.

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compreende as seguintes fases: percepção de ameaça, estimativa das relações de poder,

balança entre cenário ideal e o cenário possível e, finalmente, a ação.

Com isto posto, o presente capítulo busca analisar o contexto completo da Guerra dos

Trinta Anos, desde seus antecedentes até a Paz de Westfália - 1519 a 1648, aproximadamente

-, a fim de analisar o papel desempenhado por Richelieu na estratégia política francesa. Após

dado o devido contexto histórico que antecedeu a guerra, serão examinadas as duas fases

acima descritas da Guerra dos Trinta Anos juntamente com os principais elementos da raison

d’État. Por último, esta seção discorre sobre a Paz de Westfália e significado do conflito como

um todo para o sistema internacional.

2.1 Antecedentes e causas da guerra

A despeito do conflito per se ter se iniciado em meados de 1600, a Guerra dos Trinta

anos é a combinação de diversos fatores que remontam ao século anterior. A formação do

quadro originário das hostilidades define-se por meio de uma variedade de eventos que

colaboram para uma configuração onde a beligerância é inevitável.

Mesmo que houvesse justificativas específicas para a participação de determinados

Estados na guerra, devem ser consideradas – para fins de melhor entendimento do papel

francês no conflito – razões que impendam ao espectro mais amplo da configuração europeia

nesse período. Sendo assim, há duas questões que necessitam compreensão para que se

explique a tensão contextualizada na Europa:

A primeira foi o advento da Reforma – provocada pela revolta pessoal de Martinho

Lutero contra as indulgências papais, em 1517 - que acrescentou rapidamente uma

violenta e nova dimensão às tradicionais rivalidades dinásticas do continente. Por

motivos socioeconômicos específicos, o advento da Reforma Protestante – e a

reação na Contrarreforma Católica contra a heresia – também tiveram a tendência de

dividir as metades meridional e setentrional da Europa. A segunda razão para o

padrão muito mais generalizado e interligado da guerra depois de 1500 foi a criação

de uma combinação dinástica, a dos Habsburgos, para formar uma rede de territórios

que se estendiam de Gibraltar à Hungria, e da Sicília a Amsterdam, superando em

tamanho tudo que já se vira antes na Europa [...] (KENNEDY, 1994, p. 40)

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A começar pelo aspecto religioso, visto que foi o primeiro a se desenvolver de forma

mais tangível, pode-se dizer que a agitação ideológica provocada por Martinho Lutero com a

Reforma Protestante, em 1517, teve resultados decisivos para o futuro da política e da religião

europeias. Tal agitação se explica na medida em que nos modelos de Estado e sociedade

característicos da Europa deste período, era muito difusa a separação entre questões religiosas

e políticas - o que pode ser ilustrado pelo simbolismo e, mesmo pelo senso de legitimidade,

atribuídos ao Sacro Imperador Romano.

A religião católica é a religião do Estado. O Estado absoluto reconhece oficialmente

a religião católica como a única e verdadeira e a Igreja como uma sociedade

soberana, pelo menos dentro de certos limites, que, de fato, se procura restringir

cada vez mais. O reconhecimento oficial e a íntima relação existente entre a unidade

política e religiosa levam a considerar a religião católica e seus interesses como

intimamente relacionados com os do Estado: trono e altar estão unidos um ao outro.

(MARTINA, 1994, p. 33)

No entanto, mesmo que houvesse interdependência entre as questões de religião e

política, as duas entidades de maior importância para que se legitimasse essa condição na

prática estavam segmentadas. A Igreja já não possuía mais autoridade suficiente para

interferir nos assuntos relativos ao Império, devido ao conflito muitas vezes presente entre o

Sacro Imperador e o Papado, agindo de maneira nociva sobre ambos os lados, fazendo com

que ficasse enfraquecida, também, a autoridade do imperador.

Mas durante a maior parte da era medieval o Sacro Imperador Romano não teve esse

controle central. [...] a razão mais importante foi ter o Sacro Império Romano

separado o controle da igreja do controle do governo. [...] Na Europa Ocidental, o

conflito potencial – e às vezes efetivo – entre o papa e o imperador criou condições

para a separação dos poderes e constitucionalismo, base da democracia moderna.

(KISSINGER, 2012, p. 40)

O cenário estabelecido, somado à insurgência da ideologia protestante, deixa o

imperador em condição de mera autoridade simbólica, sem funcionalidade efetiva:

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46

O conflito deu a vários senhores feudais maior autonomia, preço cobrado de ambas

as facções rivais. O que, por sua vez, conduziu a uma Europa fragmentada, colcha

de retalhos de ducados, condados, bispados, e cidades. Embora em teoria os

senhores feudais prestassem vassalagem ao imperador, na prática faziam o que bem

entendiam. Várias dinastias reivindicavam o cetro imperial e a autoridade central

quase sumiu. [...] Nas fímbrias da Europa, a França, a Inglaterra e a Espanha não

reconheceram a autoridade do Sacro Império Romano, embora continuassem parte

da igreja universal. (Ibidem, p. 40)

Assim, no momento em que as ideias de Lutero propõem uma alternativa ao

cristianismo, a posição dominante do Imperador, como representação de poder, é posta em

xeque. Ou seja, além de uma ameaça para a “suposta” existência de uma unidade religiosa, a

falta de legitimidade conferida à imagem do Império através da contestação de sua

representatividade prediz o desmantelamento da autoridade que lhe é inerente. Da mesma

forma, para que decaísse o modelo estabelecido ao gosto dos favoráveis ao protestantismo,

não poderia haver resquício da autoridade contestada, assim que estabelecido seu paradigma.

Sendo assim, a tolerância não se apresentava como solução praticável nem para o lado

católico nem para o lado protestante:

A ruptura religiosa provocada pelo protestantismo impôs de modo grave e inelutável

o problema da coexistência de diferentes religiões, fundadas todas no exclusivismo

dogmático e pretendentes todas, portanto, ao monopólio eclesial e religioso da

comunidade. [...] Por muito tempo ainda a tolerância pareceu aos olhos dos católicos

bem como dos protestantes um grave delito contra a verdade, contra a caridade,

contra a sociedade. (MARTINA, 1994, p. 158)

Dada a decadência tanto do Império quanto da Igreja, uma reação contra a Reforma

Protestante era necessária para que se reafirmasse a autoridade católica, o que, de forma

geral, não ocorreu de forma efetiva até 1545, quando é convocado o Concílio de Trento39

. Até

então, no primeiro momento da crise católica é que o papel da Monarquia Habsburga começa

a se tornar mais claro.

39

O Concílio de Trento (1545-1563), convocado pelo Papa Paulo III, foi um marco da Contrarreforma, com a

finalidade de assegurar a unidade católica europeia. Realizado em três fases - de 1545 a 1548, de 1551 a 1552 e

de 1562 a 1563 – o Concílio buscava, de certa forma, positivar as leis da fé cristã, a fim de eliminar o

protestantismo. No entanto, sem grandes resultados em sua premissa inicial, o Concílio veio a se limitar apenas

como reafirmação da fé católica.

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A vitória de Carlos V para assumir o cargo de Sacro Imperador Romano-

Germânico40

, em 1519 teve significativa importância para a projeção futura do mérito

político-religioso na Europa, tendo em vista a magnitude do poderio territorial que se

encontrava sob sua responsabilidade:

Carlos de Habsburgo, nascido em Gand em 1500 e educado na Flandres, era um

príncipe borgonhês, de língua francesa. Senhor dos Países Baixos e do Franco-

Condado em 1506, por morte de seu pai Filipe o Belo, tornara-se em 1516 – com o

falecimento de seu avô materno e a incapacidade de sua mãe, Joana a Louca – rei de

Aragão, de Castela, da Sicília, de Nápoles e senhor das colônias espanholas da

América, cuja conquista ainda mal começara. A morte de seu avô paterno

Maximiliano, trouxe-lhe, por fim, as possessões hereditárias dos Habsburgos: a

Áustria, os ducados alpinos e o landgraviado da Alsácia. (LEBRUN, ARRIGNON,

1996, p. 217, 218)

A herança resultante de uma enorme rede de casamentos e alianças políticas deu

proporção ainda maior para a autoridade do Sacro Império Romano-Germânico, tornando

possível para o imperador “aspirar traduzir suas pretensões universais em sistema político”

(KISSINGER, 2012, p. 40). Ademais, a sua vitória ocorrida em 1519, concomitante às

tensões geradas pela Reforma Protestante, possuía um profundo significado no que concerne

ao desgaste da unidade religiosa e política inerente à época. Ocorrida um ano antes da

excomunhão de Martinho Lutero, o cenário instaurado na Europa do século XVI era de

fragmentação quase que absoluta, sendo que foi visto por Carlos V como uma oportunidade

para usufruir de sua posição privilegiada para reverter a situação adversa na qual se

encontravam o Império e a Igreja:

[...] sonhou, pelo menos até 1530 – realizar a “monarquia universal e cristã” tão cara

a Erasmo, o imperium mundi implícito no seu título imperial, e exercer assim o

poder temporal, lado a lado com o poder espiritual do papa, para máximo benefício

da Cristandade. Mas esse sonho medieval dos dois poderes tornara-se já anacrônico

na Europa do século XVI; e Carlos não tardou a compreendê-lo. (LEBRUN;

ARRIGNON, 1996, p. 218)

Apesar dos esforços de Carlos V para unificar a Igreja e o poder do Sacro Império,

uma série de dificuldades o desmotivaram para que seguisse tentando cumprir de objetivo

40

Já nesta época era verificado o sentimento de rivalidade com a França, haja vista a derrota da candidatura de

Francisco I – então rei francês – para Carlos V. (LEBRUN, ARRIGNON, 1996, p. 217, 218)

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inicial. Primeiramente, simultânea à emergência do protestantismo, o novo Imperador carecia

de reconhecimento e legitimidade em seu território. Em contrapartida aos múltiplos domínios

que lhe ficaram de herança - e que funcionavam como símbolo de seu poder -, foi justamente

a diversidade que estigmatizou sua autoridade. Isto é, a incongruência intrínseca à extensão de

suas terras (Figura 2) não permitia governar de forma harmônica.

Figura 2 – O legado de Carlos V, 1519 Fonte: KENNEDY, 1994, p. 42

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Sua posição no império, apesar de seu esplendor, era incerta; [...] Estava na natureza

deste império, composto por vários elementos, que este iria integrar uma variedade

de sentimentos políticos. Não se poderia dizer que essas possessões na Itália,

Alemanha, Espanha, nos Países Baixos, no Mediterrâneo e no além-mar, tinham

alguma conexão. Um governo baseado em qualquer política nacional homogênea era

impossível. Na Espanha Carlos era chamado de alemão, na Alemanha de espanhol, e

ambos estavam certos e errados; ele não intimamente e nacionalmente ligado com

nenhum destes domínios; ele não poderia se devotar a nenhum politicamente: a

construção prescrita de um império o proibia. (HÄUSSER, 2005, p.37)41

Assim que eleito, o novo Sacro-Imperador enfrentou a primeira crise ideológico-

religiosa, ocorrida na Alemanha logo após a excomunhão de Lutero. Houve uma série de

conflitos religiosos, que reforçaram ainda mais a proporção política imanente a todo o cenário

da época. Estes culminaram na paz de Augsburgo, em 1555, sendo este momento decisivo

para o futuro do Império de Carlos V:

A partir de 1520, a Alemanha foi abalada por uma crise temível, provocada pelo eco

que ali encontravam as ideias de Lutero. A revolta dos cavaleiros renanos (1522-

1523), a terrível Guerra dos Camponeses (1525), a formação da Liga de Smalkalde,

que reunia os príncipes convertidos ao luteranismo (1531), e a guerra contra estes

movida pelo imperador e pelos príncipes católicos (1531-1547) foram os episódios

principais dessa crise que, de religiosa, se converteu em social e política. A vitória

de Carlos V em Mühlberg (1547) não foi suficiente para o restabelecimento da

unidade religiosa e política do Império; e o imperador teve de aceitar a paz de

Augsburg (1555), que reconhecia ambas as confissões e o aumento de poder

conseguido pelos príncipes luteranos com as secularizações. (Ibidem, p. 219)

Após a Paz de Augsburgo, estavam definitivamente frustradas as possibilidades de

uma unidade católica através do Sacro-Império Romano-Germânico. Sem mais motivações

para seguir no cargo, em 1555, Carlos V abdica ao posto de Imperador e reparte o Império

entre seu filho e seu irmão. Filipe II, o filho, recebe as coroas espanholas e os territórios da

Borgonha e, ao seu irmão, Fernando I - já rei da Boémia, da Hungria e da Áustria – cede o

cargo de Imperador no ano de 1556 (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 218).

41

“His position in the empire, in spite of its splendor, was uncertain; […] It was not in the nature of this empire,

composed of various elements, that it must comprise a variety of political sentiments. It could not be said that

these possessions in Italy, Germany, Spain, the Netherlands, in the Mediterranean and beyond the sea, had any

natural connection. A government based on any homogeneous national policy was impossible. In Spain Charles

was called a German, in Germany a Spaniard and both were right and both were wrong; he was not intimately

and nationally connected with any of his dominions; he could not from policy devote himself to any one: the

prescribed construction of the empire forbade it.” (HÄUSSER, 2005, p. 37)

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Com a saída de Carlos V do poder, pode-se dizer que seus sucessores não cumpriram

grandes feitos, senão de manutenção da condição em que já se encontrava o Sacro Império

Romano-Germânico. Os sucessores de Fernando I foram respectivamente: Maximiliano II

(que reinou de 1564-1576), Rodolfo II (1576-1612) e Matias I (1612-1619). Por mais

indiferentes que fossem seus governos, o próximo imperador seria decisivo para a condução

das políticas do Império e para o futuro do sistema internacional.

Fernando II é eleito Sacro Imperador Romano-Germânico em 1619. O novo imperador

representou uma espécie de refluxo de todas as ambições não concretizadas de Carlos V:

[...] Fernando II, católico intransigente, não escondia suas ambições, que se

orientavam – a maior ou menor prazo – para a eliminação do protestantismo e a

transformação de suas possessões hereditárias, das duas coroas coletivas (a Boémia

e a Hungria) e do Império Germânico num único e vasto Estado centralizado,

alemão e católico. (Ibidem, p. 225, 226)

Por mais que haja controvérsias sobre as intenções reais ou não de dominação

Habsburga, era certo que a França sentia a ameaça pender sobre suas fronteiras, devido à

extensa área que cobria quase que a totalidade das linhas limite de seu território (Figura 3).

No entanto, não há confirmação de uma dominação consciente e, portanto, planejada e

arquitetada como tal pelos Habsburgos (KENNEDY, 1994, p. 43). Porém, mesmo que não

fosse este o intuito, a conjuntura foi considerada suficiente para que a França tomasse as

devidas providências defensivas a fim de prevenir uma possível invasão no país.

A Guerra dos Trinta Anos, no que tange a participação francesa, pode ser considerada

como um reflexo de manutenção da soberania, assim como do equilíbrio de poder. Impedir

que houvesse uma hegemonia regional era crucial para a independência da França como país

e sua futura constituição como nação. Tal aspiração era comum entre os países aliados contra

o Sacro Império; era necessária a compreensão de independência e autonomia asseguradas

para que se garantissem as liberdades inerentes a qualquer Estado, seja de culto ou fé, seja de

preservação de sua integridade.

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Figura 3 – Sacro Império Romano Germânico ao iniciar-se a Guerra dos Trinta Anos Fonte: CARNEIRO, 2006, p. 165

2.1.1 O contexto francês

As más relações entre a França e a Casa da Áustria, assim como o ordenamento

político que culminou na Guerra dos Trinta Anos, têm origem no século XVI. A rivalidade

pessoal entre Francisco I – rei da França entre os anos de 1515 e 1547 – e Carlos V rendeu a

ambos quarenta anos de hostilidades, de 1519 a 1559, por questões de conquista territorial.

O antagonismo atribuído pela França a Carlos V justificava-se tanto pela ameaça do

“cerco” do Império Habsburgo, cujos domínios rodeavam o território francês, quanto pela

iminência do conflito em virtude da ambição do Sacro Imperador pelos territórios da

Borgonha e da Itália, então sob poder francês (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 220).

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Após várias batalhas, que envolveram, inclusive, apoio de outras potências alheias à

hostilidade, não se pode afirmar que houve impacto considerável do embate no sistema

internacional. De forma geral, a beligerância não teve resultados práticos significativos para

nenhum dos combatentes e só findou após já não estarem no poder nem Carlos V e nem

Francisco I:

Por fim, esgotados de finanças, Henrique II, sucessor de Francisco I, e Filipe II,

sucessor de Carlos V, assinaram a 1559 o tratado de Cateau-Cambrésis: a França foi,

de facto, desapossada da Itália – de então em diante dominada pela Espanha, que

ficou senhora de Milão e de Nápoles – mas conservou, em contrapartida, os três

bispados lorenos de Metz, Toul e Verdun, ocupados em 1552, e Calais, que tomara

aos ingleses em 1558. (Ibidem, p. 220)

Após de derrota, recaiu sobre a França, então, a necessidade de revisão da política

absolutista interna e externa, estando clara a superioridade estratégica e o nível de excelência

militar com que contavam seus adversários. A discrepância entre as capacidades desses dois

agentes confere falta de significância à guerra. Mesmo que tenha se estendido por quarenta

anos, a condição belicosa era somente resultado da falta de clareza dos limites territoriais da

época, rendendo apenas significado futuro para a base da desconfiança francesa em relação ao

Sacro Império Romano.

A monarquia espanhola – política e militarmente mais avançada, dispondo de

controle estratégico das bases Habsburgo na Europa setentrional e superior no

aspecto naval, graças a sua aliança em Gênova – eliminou facilmente seu rival

francês do controle da península transalpina. A vitória nesta luta pertenceu ao

Estado cujo processo de absolutização era mais antigo e mais desenvolvido. Em

última análise, contudo, a derrota nesta primeira aventura externar serviu

provavelmente para assegurar fundamentos mais firmes e sólidos para o absolutismo

francês, forçado ao recuo em seu próprio território. Do ponto de vista imediato, por

outro lado, o término das guerras italianas, combinado às incertezas de uma luta

sucessória, iria revelar o quanto a monarquia Valois estava inseguramente alicerçada

no país. (ANDERSON, 1995, p. 90)

A falta de legitimidade da monarquia Valois ameaçava todo o arranjo político da

França naquele momento e, o entrelaçamento entre os fatores religiosos e políticos tornava a

questão consideravelmente mais complexa. Os Valois tinham contra si a maioria da nobreza,

liderada pela família Bourbon, o que se somava com o dever de conter a ascensão protestante

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dentro dos limites franceses, além da ameaça constante de Filipe II, sob o pretexto de

“unidade” católica (MARTINA, 1994, p. 174).

A tensão interna desse período desencadeou uma série de conflitos político-religiosos

internos que se estenderam pela metade restante do século. As monarquias rivais, Valois e

Bourbon, estavam envolvidas tanto no mérito religioso quanto no mérito político, defendendo

lados opostos em ambas as esferas de confronto.

Na segunda metade do século XVI a França atravessou uma longa crise nacional que

ficou conhecida pelo nome de “guerras religiosas”. Diversos fatores contribuíram

para a gravidade e a complexidade dessa crise: a violência das paixões religiosas, a

debilidade da autoridade régia, a intervenção estrangeira, as dificuldades

econômicas. Os progressos do calvinismo em França até 1559 – data do primeiro

sínodo nacional em Paris – e, em especial a conversão de numerosos fidalgos

constituíam uma ameaça direta à paz e à unidade do reino. Com efeito, os

calvinistas, se bem que muito minoritários, não escondiam, tal como seus

adversários, o desejo de impor a sua crença à totalidade dos Franceses. (LEBRUN;

ARRIGNON, 1996, p. 224)

Além da fraqueza da regência francesa, não foi possível que houvesse continuidade no

estilo de política adotado e nem na competência dos governantes. Durante o período das

guerras religiosas o trono foi ocupado por, pelo menos, cinco pessoas diferentes42

. Com a

constante alternância de regentes, a força do segmento adversário teve tempo hábil para que

se fortalecesse e dificultasse cada vez mais o controle do governo sobre as revoltas da

oposição – constituída pelas linhagens de Guise, Montmorency e Bourbon (ANDERSON,

1995, p. 90).

A fragmentação do Estado francês tomou dimensão crescente. A inconsistência da

conjuntura política fortaleceu a autonomia de províncias, que dividiu o apoio entre a oposição

e a “Liga Católica”. A multiplicidade de indivíduos envolvidos em cada bloco da disputa fez

com que vários segmentos da sociedade francesa participassem das hostilidades, como

senhores feudais e chefes de províncias. Devido a tal conjuntura, as esferas de influência de

cada lado eram favorecidas por extensas redes de clientelas – proporcionando interferência no

aparato estatal –, tropas à disposição e conexões internacionais (Ibidem, p. 90).

42

Henrique II foi morto em julho de 1559, sendo sucedido por seu filho mais velho, Francisco II, que ficou

pouco mais de um ano no poder antes de falecer. Seu irmão mais novo, Carlos IX não pôde assumir o trono

imediatamente, deixando, até que completasse a idade requerida, Catarina de Médicis – sua mãe – como rainha

regente até 1570. Após quatro anos de reinado (não sendo contabilizados os anos de regência de Catarina), quem

assume o trono é seu irmão Henrique III, assassinado em 1589. (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 224)

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O último rei legítimo da linhagem Valois foi Henrique III, que reinou entre os anos de

1574 a 1589. Henrique trouxe consigo a problemática, então, mais temida pela Liga Católica:

a falta de um herdeiro diretamente ligado aos Valois para assumir o trono, o que intensificou

ainda mais a tensão entre os adversários. Durante sua regência, o rei precisava manejar, além

das forças adversas já existentes, a preocupação adicional de ser sucedido por um príncipe

protestante – Henrique de Bourbon-Navarra43

(LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 224).

Somando-se à conjuntura inquietante, a falta de tolerância entre os adversários atingiu

outro nível em 1572. Mascarada pelo mérito religioso, a luta pelo trono despontou em um dos

maiores massacres da história do catolicismo francês: o massacre de São Bartolomeu.

O episódio mais conhecido é o massacre de São Bartolomeu: dia 24 de agosto de

1572, festa de São Bartolomeu, vários milhares de calvinistas foram trucidados em

Paris e no resto da França. [...] O massacre de São Bartolomeu, ainda que não seja o

único episódio do gênero (menos numerosos, outros massacres foram feitos

naqueles anos pelas duas partes), não pode ser considerado como símbolo das

condições francesas e da política monárquica para com os protestantes. Justamente o

contrário é a verdade: as próprias circunstâncias estimulavam fatalmente os reis da

França, embora entre temores, incertezas, hesitações e passos contrários, à única

solução possível num país onde a unidade religiosa estava em forte crise e não se

podia dividir o Estado em diversos feudos independentes. (MARTINA, 1994, p.

174,175)

No entanto, por maior que tenha sido a repercussão, o massacre não teve resultados

práticos. O bloco protestante continuou a investir contra a Liga Católica de forma incisiva,

culminando no assassinato de Henrique III, em 1589. Após a morte do rei se concretiza,

então, o que a Liga mais receava: o poder recai sobre um príncipe protestante. Henrique de

Bourbon-Navarra que era o descendente mais próximo para a sucessão do trono, assume

também em 1589, com título de Henrique IV (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 225).

Henrique IV, entretanto, não teve concretizações equivalentes às esperadas pela

oposição. As tentativas de consolidação do paradigma protestante falharam, não deixando

escolha ao rei senão internalizar a condição predominantemente católica da Corte francesa. O

resultado da conformidade foi o Édito de Nantes (1598), que assegurava aos calvinistas

“liberdade de consciência, liberdade em culto em determinadas localidades, plenitude de

43

Visto que Henrique III não deixava herdeiros, o próximo herdeiro na lista era Henrique de Bourbon-Navarra.

(LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 224)

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direitos civis e políticos e lhes dava como garantia dessas cláusulas algumas fortalezas do

reino” (MARTINA, 1994, p. 176).

O Édito de Nantes foi uma medida singular em um período de crise da identidade

religiosa vigente. O documento previu relativa paz ao Estado francês, garantindo liberdade de

culto para ambas as religiões predominantes – ou únicas – de modo a restabelecer a ordem da

qual carecia o país desde o início do século.

Desde então, sobre regência de Henrique IV, pode-se dizer que a França nunca esteve

tão próspera. O investimento contínuo em infraestrutura modificou a realidade do país, dando

novas dimensões ao absolutismo regente, que amadureceu consideravelmente como regime,

superando a realidade das lutas contra Carlos V no início do século (ANDERSON, 1995, 92,

93).

No entanto, a vitória parcial do regime protestante não foi traduzida como quebra

paradigmática e também não significou melhora significativa em questões de liberdade de

expressão. Embora fosse Henrique IV um calvinista inicialmente, foi durante seu governo que

foram feitos vários empreendimentos de grande porte em termos de infraestrutura na França.

A construção de monumentos e Igrejas com fins de “catequizar” a população eram parte de

um programa que viria a se estender por boa parte do território francês:

A cidade conquistada por Henrique IV “de Navarra” (r. 1589-1610) para sua causa

nas Guerras de Religião estava em péssimo estado. Nos reinados do navarrês e de

seu filho e sucessor Luís XIII (r. 1610-1643), Paris recuperou a energia e entrou

num período dinâmico de crescimento. [...] O assim chamado Grand Sciècle

caracterizou-se também pelo formidável desenvolvimento da máquina estatal – por

exemplo, o número de funcionários da realiza dobrou entre 1560 e 1640 – e pela

consolidação e expansão do território francês. (JONES, 2013, p. 157).

Henrique IV foi regente até o ano de 1610. Casado com Maria de Médicis e pai de

Luís XIII, Henrique foi um regente icônico no que tange a recuperação francesa após as

guerras de religião. A conciliação efetuada com o núcleo protestante foi suficiente para que se

contivessem, ao menos temporariamente, as tensões do reino.

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2.2 A guerra encoberta

A guerra encoberta inicia-se um tempo depois do início das hostilidades no resto da

Europa. Primeiramente o conflito toma suas formas iniciais na Alemanha, quando, em 1618,

os Estados protestantes da Boêmia se rebelam contra Fernando II. Seguindo a linha de ação

boêmia, começam a irromper rebeliões entre alguns príncipes protestantes, que, em um

primeiro momento foram reprimidos com sucesso pelo Sacro Imperador (KENNEDY, 1994,

p. 46).

A relativa vantagem Habsburga, todavia, começa a esmorecer no momento em que o

conflito é generalizado e inúmeros Estados protestantes têm como objetivo comum o

desmantelamento de sua condição dominante. Entretanto, nos primeiros anos da guerra ainda

não há efeitos significativos da reação da oposição, fazendo com que fossem reforçadas as

ambições de Fernando II a fim da unidade católica:

[...] uma combinação heterogênea de forças religiosas e leigas entraram no conflito,

mais uma vez ansiosas por ajustar o equilíbrio na direção oposta. Os holandeses, que

em 1621 suspenderam sua trégua com a Espanha, penetram na Renânia para

enfrentar o exército Spinola. Em 1626, uma força dinamarquesa, comandada pelo

seu monarca Cristiano IV, invadiu a Alemanha pelo norte. Nos bastidores, o

influente estadista francês cardeal Richelieu procurava criar problemas para os

Habsburgos, onde quer que pudesse. Nenhuma dessas manobras militares ou

diplomáticas, porém, teve muito êxito, e em fins da década de 1620 o poderoso

comandante Wallenstein do imperador Fernando parecia estar a caminho de impor

uma autoridade geral centralizadora à Alemanha, chegando até mesmo ao litoral do

Báltico. (Ibidem, p. 47)

Deflagrado o conflito, a formação de blocos foi uma condição inevitável. É possível

identificar dois polos definidos44

: o bloco Habsburgo, liderado pelo Sacro Imperador

Fernando II, aliado a regiões católicas da Alemanha – com destaque para a Baviera, liderada

por Maximiliano I – e também, por questões de parentesco e afinidade ideológica, a Espanha

de Felipe III; o segundo bloco era composto por protestantes da Boêmia e de outras regiões

44

Por mais que as alianças se dividissem em dois blocos principais, no decorrer do conflito é possível observar

mudança de alinhamentos e redirecionamento de rivalidades em níveis bilaterais específicos como, por exemplo:

França versus Espanha, Espanha versus Holanda, etc. (CARNEIRO, 2006, p. 166)

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germânicas – lideradas por Frederico V -, que contavam com apoio dos Países Baixos, da

Suécia, Dinamarca, Inglaterra e França (CARNEIRO, 2006, p. 166).

O papel da França na aliança protestante foi decisivo para a derrota Habsburga na

guerra. Porém, esta tardou ao máximo sua participação efetiva no conflito. A princípio, o

ideal do bloco consistia em garantir as liberdades de culto para os príncipes protestantes,

assim como autonomia frente ao Imperador. Porém, a participação francesa adiciona uma

nova dimensão ao conflito, um “terceiro polo”, que consiste na defesa de seu território – que

se via cercado45

- contra a dominação Habsburga, a despeito da afinidade religiosa (Ibidem, p.

167).

A condução da estratégia francesa só começa a ser efetivada timidamente em 1624,

quando Richelieu é promovido à chancelaria. A priori o plano de ação do Cardeal consistia

em uma série de acordos diplomáticos que permitissem o alinhamento francês aos Estados

empenhados na luta contra o Império Habsburgo. Esta fase compreende o interregno entre

1629 a 1635, enquanto eram assinados tratados de cooperação entre a França e os Estados

protestantes, além do apoio financeiro francês aos rebeldes (Ibidem, p. 176).

A partir deste tipo de atitude que se materializam os fundamentos da raison d’État

com maior clareza. Não era interessante para a França – desde o século anterior - que fosse

mantida a todo custo a doutrina católica, inclusive a custo de sua própria soberania. Mesmo

que não fosse um interesse doméstico o fortalecimento do protestantismo, o cerco de La

Rochelle deixou claro o método de atuação do Cardeal em relação a esta questão.

Richelieu olhou a fé de Fernando II como uma ameaça estratégica. Apesar de

intimamente religioso, tomava suas obrigações de ministro em termos inteiramente

seculares. Salvação eterna podia ser o desejo pessoal, mas para Richelieu, o

estadista, era questão irrelevante. [...] Em outras palavras, estados não recebem

créditos em mundo algum por fazerem o certo; só são recompensados se forem

fortes o bastante para fazer o que é preciso. (KISSINGER, 2012, p. 43)

Fernando II não concebia a ideia de manter a legitimidade do Império a custo da

religião, ou seja, priorizar os interesses nacionais, para ele, era prática desconhecida ou

45

“Um relance no mapa da Europa mostra a França cercada de terras dos Habsburgo por todos os lados: a

Espanha ao sul; as cidades-estados do norte da Itália, dominadas principalmente pela Espanha, a sudeste; a

Franche-Comté (atualmente região de Lyon e Savoia), também sob o controle espanhol, a leste; e a Holanda

espanhola ao norte. As poucas fronteiras fora do domínio Habsburgo espanhol estavam nas mãos do ramo

austríaco da família”. (KISSINGER, 2012, p. 42)

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desconsiderada. O “fanatismo” do Imperador abre a deixa para que Richelieu tome proveito

de sua fraqueza e desenvolva a estratégia decisiva para o sucesso francês na fase encoberta da

guerra: o subsídio para príncipes protestantes, além de práticas como suborno, e incitação de

revoltas contra os Habsburgos (Ibidem, p. 43, 44).

Até 1635 a França foi mera espectadora da devastação que ocorria no território alemão

e, enquanto isso, concluía os últimos acordos com os Estados rebeldes:

A França vacilou durante anos, buscando construir um terceiro polo que atraísse

tanto os príncipes católicos alemães, o mais importante dos quais era Maximiliano

da Bavária, como os luteranos da Saxônia, para um distanciamento do imperador.

Como estava cercada por territórios de seu maior inimigo, a Espanha, buscava

sobretudo controlar suas regiões de fronteira, absorvendo a Alsácia, expulsando os

espanhóis dos Países Baixos e, até mesmo, se possível, anexando a Catalunha.

Finalmente, em 19 de maio de 1635, após concluir tratados de aliança com a Suécia

e as Províncias Unidas, declarou oficialmente a guerra à Espanha e ao arquiduque

governador dos Países Baixos espanhóis. (CARNEIRO, 2006, p. 176, 177)

É então, quando já se encontram exauridas as forças do Império, passando a indicar

talvez o fim do conflito, que Richelieu decide que é o momento para que a França participe da

guerra de modo efetivo (KISSINGER, 2012, p. 45). Por mais que o lado espanhol do Império

ainda tivesse condições de apoiar seus aliados, já não havia mais capacidade militar que fosse

hábil suficiente para conquistar a França (KENNEDY, 1994, p. 47). A guerra aberta que se

delineia a partir deste período, assinala a falha do cálculo Habsburgo e o acerto da estratégia

francesa.

2.2.1 A batalha de La Rochelle (1627-1628)

A batalha de La Rochelle é um evento importante a ser considerado no período que

compreende a Guerra dos Trinta Anos. Não se tratava de um cerco em circunstâncias normais

de combate, haja vista a condição protestante já estabelecida na cidade e suas conexões

internacionais, que sustentavam a condição não aprovada pelo governo regente. O que

favoreceu que, em 1625, não satisfeitos com os direitos previstos no Édito de Nantes, os

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protestantes franceses voltassem a se rebelar contra o Estado católico, fazendo de La Rochelle

seu centro de resistência (CARNEIRO, 2002, p. 469).

La Rochelle, em termos genéricos, era uma cidade, no entanto, desfrutava de

privilégios que possibilitavam situação quase independente em seu território. A condição de

autonomia da qual dispunha, tornava-a uma espécie de federação46

à luz do poder do rei.

Todavia, ao que indica a literatura, a situação de independência era mais profunda; segundo

Bluche (2005, p. 143, 144), La Rochelle se encontrava em condições de “Estado dentro do

Estado”, apresentando aspecto quase internacional, visto que destoava fortemente da política

régia, resistia a sua imposição e, ainda, contava com apoio internacional para que

desempenhasse papel autônomo. Segundo Carneiro (2002, p. 469) a intenção era a criação de

um Estado separado, ao sul da França, em termos semelhantes aos que foram estabelecidos na

Holanda.

Porém, antes que houvesse conflito direto, foi assinado em 1626 um tratado de trégua

com os protestantes, mediado por Richelieu. Entretanto, a trégua não se mostrou como

condição suficiente para que cessasse a tensão em La Rochelle; a cidade contava com apoio

inglês - haja vista a predominância calvinista na região – e, neste momento em particular, as

relações entre França e Inglaterra se encontravam significativamente deterioradas, reforçando

a iminência de conflito (BLANCHARD, 2011, p. 1672).

A partir da Primavera de 1627, “a Inglaterra e a França estavam à beira da ruptura.

Da guerra fria passara-se à guerrilha” (L. Crété). Em Agosto, os rochelenses, vendo

construir pequenas obras preocupantes nas cercanias do Forte Louis, consideraram

que os reais estavam em guerra aberta. Julgando-se atacados, disparam, a 20 de

Setembro, três balas de canhão visando o Forte Louis. [...] O cerco de La Rochelle,

assim provocado, iria durar não menos que treze meses (20 de Setembro de 1627 a

28 de Outubro de 1628), duro, cruel, paradoxal. (BLUCHE, 2005, p. 146, 147)

Estabelecido o estado de beligerância, Richelieu ocupava o comando da operação para

conter a revolta de La Rochelle. Era necessária uma estratégia que limitasse a expansão do

46

O conceito de federação pode ser atribuído a La Rochelle, haja vista a característica clássica do federalismo: a

aversão a tudo aquilo que é relativo ao Estado – ou, em termos mais atuais, ao Estado nacional. Segundo Levi

(2000, p. 475, 476): “Começando a considerar o Federalismo do ponto de vista daquilo que ele nega mais do que

daquilo que ele afirma, é possível, talvez, chegar mais facilmente a compreender o seu significado. De fato, do

ponto de vista histórico, as determinações positivas da teoria do Federalismo foram se esclarecendo através da

experiência da negação da divisão do gênero humano em Estados soberanos. E já que essa divisão se manifestou

numa forma mais aguda na Europa das nações, historicamente o Federalismo se tem definido como a negação do

Estado nacional”.

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conflito para outras áreas da França. Essa necessidade esbarrava em um fator complicador em

potencial: a cidade, contando com o apoio da Inglaterra, recebia pela costa marítima todo tipo

de mantimentos, inclusive munições e pessoal para combate, dificultando ainda mais a

situação francesa, haja vista a falta de especialização da armada, além do altíssimo custo da

manutenção de um cerco deste porte. Daí a necessidade de uma estratégia alternativa; a

Richelieu, na posição de comandante, coube o dever de perceber as fraquezas do inimigo e

explorá-las dentro de um programa que não degenerasse mais a situação financeira da Corte

(Ibidem, p. 148).

A solução encontrada pelo Cardeal foi de “cortar” qualquer acesso da resistência a

mantimentos. O que foi traduzido na construção de uma barreira marítima que impedisse

tanto a chegada de suprimentos do exterior como também a possibilidade de buscar alimento

na costa através da pesca. Sendo assim, é convocado por Richelieu o arquiteto Clément

Métezeau para a construção de um “dique de pedras secas de 1400 metros [...] que por si só

parece capaz de impedir o acesso ao porto sem impedir as marés” (Ibidem, p. 148).

A persistência dos rochelenses foi longa, porém, em meados de 1628 a falta de

alimentos começa a se fazer sentir em La Rochelle. Não havia mais combate físico em virtude

das doenças e da fome que assolavam os sitiados. Foram feitas ofertas de rendição sem

sucesso para os líderes protestantes, porém, já no último mês do cerco, é decida a rendição de

fato:

Abandonado pelos aliados, Guiton quer poupar os 6000 habitantes que restam numa

cidade que, no seu auge, contava com 27000 em 1626. As autoridades de La

Rochelle veem-se obrigadas a passar por todas as exigências do poder real,

restaurado a tão duras penas. (Ibidem, p. 155)

La Rochelle é um símbolo no que concerne a maneira de operar característica de

Richelieu. Verifica-se neste episódio a essência da raison d’État, traduzida no

desprendimento entre a estratégia doméstica e a política externa, a partir do zelo pela

manutenção dos valores tradicionais do Estado francês, mesmo que a custo de inúmeras

mortes.

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2.3 A guerra aberta

O objetivo inicial da participação francesa na guerra, mesmo que velada em sua

primeira fase, consistia em exaurir o ânimo Habsburgo, a fim de minar suas ambições de

concretizar a unidade católica, impedindo, assim, que surgisse uma potência continental nas

fronteiras francesas (CARNEIRO, 2006, p. 167). Pode-se imaginar que em um primeiro

momento não houvesse intenção concreta por parte da França de participar da guerra de fato,

porém, se as hostilidades findassem por volta de 1635 – como afirma Kissinger (2012, p. 45)

– o Império não seria suficientemente enfraquecido a ponto de não representar mais nenhuma

ameaça para a França. Dessa forma, o Cardeal convenceu Luís XIII a unir-se aos protestantes

na contenda:

Richelieu, no entanto, não tinha interesse em acordo até que o rei francês se tornasse

tão poderoso quanto o Imperador Habsburgo, se não mais. Para isso, Richelieu

convenceu seu monarca, no décimo sétimo ano da guerra, a entrar no conflito ao

lado dos príncipes protestantes sem outra justificativa que usar o poder crescente da

França [...] (Ibidem, p. 45)

A performance militar da França não foi excepcional, porém, tendo em vista as

condições em que se encontravam as tropas Habsburgas, pode-se dizer que o desempenho

francês foi suficiente. Um território como o da França, que se encontrava em alerta defensivo

para qualquer ataque iminente, já não estava ao alcance do domínio Habsburgo. Não somente

por questões qualitativas, mas também pela disposição em que se encontravam as linhas de

combate:

A conquista de uma área do tamanho da França estava, porém, acima da capacidade

militar das forças habsburguianas, que se aproximaram de Paris, mas logo tiveram

de estender-se através da Europa. Soldados suecos e alemães pressionavam os

exércitos imperiais no norte. Os holandeses e franceses estavam envolvendo como

pinças os Países Baixos espanhóis. Além disso, uma revolta dos portugueses, em

1640, desviou contingentes e soldados espanhóis do norte da Europa para muito

mais perto da pátria, embora nunca em quantidade suficiente para conseguir a

reunificação da península. (KENNEDY, 1994, p. 47)

Após um período relativamente curto da participação francesa na guerra, é a partir de

década de 1640 que se iniciam as negociações de paz. Nesta década foi firmado o acordo de

trégua entre Espanha e França, porém isso não fez com que cessasse o apoio francês a países

ainda em combate, como a Holanda (CARNEIRO, 2006). Entretanto, mesmo que ainda

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perdurasse a guerra em pontos localizados do continente, é pertinente afirmar que não havia

mais risco de refluxos para dar continuidade à beligerância por muito mais tempo.

Sendo assim, o ciclo de Richelieu se termina em 1642, em virtude seu falecimento, um

ano antes da morte de seu soberano, Luís XIII (1601-1643). Com seus sucessores, Luís XIV –

o Rei Sol – e o Cardeal Mazarino são continuados os trâmites que levariam à Paz de

Westfália, em 1648. Devido ao legado deixado pelo governo de sei pai, Luís XIV será o

representante do momento mais próspero do absolutismo francês (Ibidem, p. 176).

Por melhores que tenham sido os resultados da guerra para a França, é importante

ressaltar que a estratégia do Cardeal de Richelieu não foi um programa elaborado para ser

seguido como um cronograma. A ação era guiada através da busca pelos objetivos finais de

romper o cerco e a ascendência hegemônica dos Habsburgos47

, assim como suprimir o

protestantismo dentro do território francês, adaptando-se às circunstâncias e manipulando os

elementos disponíveis (LEBRUN; ARRIGNON, 1996, p. 227).

O sucesso da política da raison d’état depende, acima de tudo, da correta estimativa

das relações de poder. Valores universais são definidos por seu entendimento e não

exigem interpretação constante; na realidade, até a evitam. Já determinar limites de

poder requer um misto de experiência, visão e adaptação permanente às

circunstâncias. Na teoria, é claro, o equilíbrio de poder deveria ser em boa medida

calculável; mas é dificílimo de por em prática com realismo. Ainda mais complicado

é harmonizar os próprios cálculos com os dos ouros estados, precondição para

operar o equilíbrio e poder. (KISSINGER, 2012, p. 45)

De fato, a razão de Estado em termos da Guerra dos Trinta Anos não foi uma busca

pela maximização de poder, mas sim pela manutenção dos direitos básicos do Estado. Há

valores que não podem ser atribuídos a este caso, como qualquer menção a uma tentativa de

“contra dominação” idealizada pela França48

, por exemplo. A estratégia consistia, na verdade,

na proteção do Estado francês e promoção de equilíbrio no continente europeu. Nas palavras

de Bergin49

(2009, p. 11)50

:

47

A estratégia empregada por Richelieu é mais facilmente entendida quando associada com os tipos de ação

weberianos. Neste caso a ação racional com relação a um objetivo, ou seja, quando “o ator concebe claramente

seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingi-lo” (ARON, 2000, p. 448). 48

Uma ideia semelhante é exposta por Kissinger (2012, p. 45), quando discorre sobre a entrada da França na

guerra em 1635. É equivocado afirmar categoricamente que houve intenção francesa de ascender como

hegemonia. O texto pode se mostrar ambíguo, na medida em que a ideia de dominação pode ser lida apenas

como argumento de Richelieu a Luís XIII para convencê-lo a participar da beligerância, como também pode ser

um valor atribuído pelo autor ao propósito por trás da participação da França na guerra. 49

A ideia exposta não é de Joseph Bergin, autor do artigo, mas sim pela perspectiva de historiadores alemães.

(BERGIN, 2009, p. 10) 50

“Richelieu’s external policy was not a systematic effort to secularize relations between states (a view that is

not confined to German scholarship); Richelieu did not think in terms of massive territorial gains, and even less

of France’s ‘natural’ frontiers. He sought to obtain and keep passages between France and its neighbours, and

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A política externa de Richelieu não foi um esforço sistemático para secularizar as

relações entre estados (uma visão que não se confina somente na escola alemã);

Richelieu não pensou em termos de ganhos territoriais massivos, e muito menos nas

fronteiras “naturais” da França. Ele buscava obter e manter as passagens entre a

França e seus vizinhos, e o fez em uma perspectiva essencialmente defensiva; [...]

Richelieu buscava uma paz durável e geral na Europa, fundada num sistema de

preferência à segurança coletiva acima das alianças clássicas.

A utilização da raison d’État não tinha, portanto, fins de conquista; era um preceito

baseado no bem-estar do Estado e na sua preservação, mesmo que à custa da paz por

determinado período. O bem-comum estatal, assim como o equilíbrio de poder, tende a

assegurar uma condição de harmonia no sistema internacional, com relações de poder mais ou

menos homogêneas, até que surja uma nova hegemonia emergente.

2.4 A Paz de Westfália

A Paz de Westfália marcou o encerramento da Guerra dos Trinta Anos no ano de

1648. E, mais do que o fim da guerra, significou o fim de qualquer possibilidade de

dominação por parte dos Habsburgos, além de reiterar o papel da França como potência

europeia e assegurar a condição de equilíbrio de poder (MARTINA, 1994, p. 182). Houve

também o enfraquecimento da condição de Sacro Imperador, assim como de seu simbolismo

católico, haja vista as garantias compreendidas nos Tratados de Wesfália.

A partir de 1648, uma nova ordem internacional é estabelecida. Considerando a

atividade pendular do sistema internacional, historicamente oscilante entre a ascensão e queda

das hegemonias e potências aspirantes ao status de hegemon51

, a derrota Habsburga representa

o contraponto estabelecido pela mobilização coletiva em favor do equilíbrio de poder.

did so in an essentially defensive perspective; […] Richelieu sought after a durable, general peace in Europe, one

founded on a system of collective security rather than on classic alliances.” (BERGIN, 2009, p. 11) 51

O termo hegemon é utilizado para identificar a condição hegemônica de determinado Estado, ou seja, “o

emprego do termo está relacionado à imposição de poder preponderante de um Estado e de seus interesses sobre

sistemas internacionais regionais ou globais” (SILVA; GONÇALVES, 2010, p. 119).

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As negociações da Paz de Westfália foram compostas de uma série de tratados

organizados na forma de conferências, dentre as quais se destacam as de Osnabrück e

Münster:

Os Tratados de Westfália compõem um conjunto de 11 tratados, dos quais o

primeiro foi entre a Espanha e os Países Baixos (30 de janeiro de 1648), em

Münster. Alguns meses mais tarde firmou-se o tratado entre o Império (Fernando

III), os príncipes germânicos (especialmente Brandemburgo e Bavária), a França, a

Suécia e o Papado, em Osnabrück e Münster (24 de outubro de 1648). (CARNEIRO,

2006, p. 185)

Os tratados de Osnabrück e Münster, além das designações positivadas em seus textos,

consistem também em uma ruptura na política europeia, tendo em vista a forma de que foram

acordados. Até então, não se faziam acordos multilaterais, mas nesta ocasião “estiveram

reunidos 145 delegados representando 55 entidades durante quatro longos anos de

negociações, cujo objetivo era promover a paz e criar uma nova ordem para o continente”

(SILVA; GONÇALVES, 2010, p. 207).

Em termos mais específicos os Tratados de Westfália significaram - além do fim do

Império Habsburgo- a eliminação deste e da Espanha como hegemonias centrais na Europa.

Da mesma forma, asseguraram que Estados como França, Holanda e Inglaterra ascendessem à

condição de potência, fortalecendo o equilíbrio de poder e inaugurando o sistema

internacional de Estados (CARNEIRO, 2006, p. 184).

Quanto à religião, a Paz de Westfália assegurou liberdade de culto aos príncipes de um

modo geral (MARTINA, 1994, p. 183, 184). Tal condição garantiu liberdade de religião ao

Estado, ou seja, a não imposição religiosa como idealizada nos termos do domínio

Habsburgo, podendo ser entendida como a incipiência de políticas de tolerância posteriores a

este período.

Veja-se o exemplo da tolerância religiosa: ela é tida como necessária exatamente

porque traz benefícios ao Estado, uma vez que já “estava demonstrado” que a

intolerância, em seu cortejo de perseguições e conflitos, enfraquecia o Estado.

(FALCON, 1986, p. 20)

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O valor que se encontra por trás desta afirmativa vai de encontro com todo o modelo

que foi desmantelado, que era respaldado pela autoridade do Imperador, assim como pela

unidade católica; não se pode mais atribuir à Europa aspecto de unidade em termos de

religião. O novo padrão conta com regulamentação das relações entre países, garantindo sua

soberania, que pela primeira vez é normatizada (MARTINA, 1994, p. 184, 185).

A Paz de Westfália, no momento em que endossa a liberdade de culto dos países

europeus, assegura a soberania do Estado e o direito de manutenção da mesma. O rompimento

com o modelo medieval de política significou a adoção de uma política pragmática que

vislumbrasse, em primeiro plano, o interesse estatal. Isto é, o método de atuação francês

ascendeu de um patamar de exceção para a regra; a razão de Estado passa a fazer parte dos

direitos garantidos ao sistema de Estados europeu, impedindo que surja uma hegemonia

nociva ao equilíbrio de poder estabelecido.

[...] a raison d’état passou a ser o princípio orientador da diplomacia europeia. [...]

Richelieu frustrou os Habsburgo, e o Sacro Império Romano viu-se retalhado em

mais de 300 soberanos, cada qual com uma política externa própria. (KISSINGER,

2012, p. 47, 48)

A Paz de Westfália também estabeleceu um novo padrão de comportamento do

sistema internacional de Estados. Não seria tolerada a submissão a um conjunto de valores

alheios ao doméstico; um Estado não se deixaria submeter novamente à vontade de qualquer

hegemonia insurgente:

A raison d´état deu o fundamento lógico para o comportamento de estados

individuais, mas não encontrou resposta para o desafio de uma ordem mundial. [...]

No mundo inaugurado por Richelieu, os Estados não seriam mais coagidos pela

presunção de um código moral. O bem do Estado era um valor supremo, a obrigação

do governante era seu engrandecimento e a promoção de sua glória. (Ibidem, p. 49)

As contribuições de Richelieu para a política internacional são observáveis até anos

após seu falecimento. O conceito de razão de Estado se tornou característica inerente às

políticas estatais, contemplando, em primeiro lugar o interesse doméstico a fim do bem do

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país. O pragmatismo imanente a esse tipo de política já não é dissociável do sistema

internacional, sendo pré-condição para quaisquer os níveis de diplomacia e política externa.

Haja vista a importância do papel do Cardeal de Richelieu para a política francesa

pode-se dizer que este se caracteriza como um “indivíduo vetor” no sistema internacional,

com a capacidade de mobilizar uma série de elementos em favor de um objetivo final.

Considerando essa afirmativa, o próximo capítulo busca apresentar a Teoria das Elites e

incorporar suas principais premissas ao caso do Cardeal de Richelieu, com fins de mensurar o

nível de aplicabilidade da teoria ao sistema internacional.

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3 A TEORIA DAS ELITES EM RICHELIEU

Surgida no século XIX, a Teoria das Elites foi elaborada, primeiramente, por Gaetano

Mosca. Em linhas gerais, a teoria pode ser entendida como uma tentativa de uma lei universal

para o processo histórico-político. Suas premissas de base pressupunham a existência

permanente de uma elite que, sendo detentora de poder, subjuga uma massa que não o possui.

Dessa forma, atribuindo à mesma condição de instrumento – do qual a elite se apropria para

legitimar seu poder -, esta é manipulada a fim de efetivar o interesse dominante (BOBBIO,

2000, p. 385).

A priori, a Teoria das Elites é visualizada em termos de Estado - constituído por

população, território, soberania - e de sociedade. No entanto, a elite como em exercício de

dominação, manipulação ou mobilização é identificável também no sistema internacional,

representada como a hierarquização de Estados. A prevalência dos interesses daqueles que se

encontram no topo de hierarquia – incluindo potências e hegemonias – está presente na

realidade da política mundial desde o princípio (JACKSON, SORENSEN, 2007, p. 103).

Esta realidade é expressa pela teoria realista de relações internacionais, desenvolvida,

principalmente, por Hans Morgenthau e Edward Carr. Na concepção teórica realista, há

quatro ideias iniciais a serem consideradas para que se estabeleça seu padrão analítico das

relações entre Estados:

(1) uma visão pessimista da natureza humana; (2) uma convicção de que as relações

internacionais são necessariamente conflituosas e os conflitos internacionais são, em

última análise, resolvidos por meio da guerra; (3) apreciação pelos valores de

segurança nacional e da sobrevivência estatal; (4) um ceticismo básico com relação

à existência de um progresso comparável ao da vida política nacional no contexto

internacional. (Ibidem, p. 102)

A começar pela natureza humana, esta é descrita como em Tucídides, Hobbes e

Maquiavel, ou seja, egoísta. É necessário observar que o egoísmo não é uma característica

necessariamente má em essência, mas sim o sentimento que ampara o pragmatismo político

em termos de busca de poder no sistema internacional. Isso significa dizer, em última análise,

que o interesse próprio é característica explícita nas relações internacionais, em termos de

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realismo. Dessa forma, haja vista a intenção constante por parte do Estado de garantir sua

segurança – e assim sucessivamente entre outros Estados presentes no sistema internacional -,

o conflito se manifesta de forma latente no relacionamento interestatal. Nas palavras de

Morgenthau (2003, p. 16, 17):

O realismo parte do princípio de que seu conceito chave de interesse definido como

poder constitui uma categoria objetiva que é universalmente válida, mas não outorga

a esse conceito um significado fixo e permanente. A noção de interesse faz parte

realmente da essência da política, motivo por que não se vê afetada pelas

circunstâncias de tempo e lugar. A afirmação de Tucídides, fortalecida pelas

experiências da Grécia antiga, de que "a identidade de interesses é o mais seguro dos

vínculos, seja entre Estados, seja entre indivíduos", foi retomada no século XIX pela

observação de lorde Salisbury, segundo a qual "o único vínculo de união que

permanece" entre as nações é "a ausência de quaisquer interesses em conflito".

A teoria realista, além das abordagens referentes ao indivíduo e ao Estado, caracteriza

o ambiente internacional como “anárquico”. A anarquia é circunstância inerente às relações

entre Estados, considerando que não se configura como caos ou desordem, mas sim pela falta

de uma autoridade supra estatal. Essa deficiência impede que seja modificada a dinâmica do

cenário internacional, em virtude da existência de potências e hegemonias, que submetem os

Estados mais fracos a fim de perpetuar sua condição dominante. Isto é, o círculo vicioso

existente entre estes elementos impossibilita que haja qualquer força passível de conter a

atmosfera belicosa do sistema internacional, tornando a anarquia uma constante que deve ser

considerada na política externa de qualquer Estado:

No plano internacional, não seria exagero dizer que a própria estrutura das relações

internacionais - tal como refletida em instituições políticas, procedimentos

diplomáticos e ajustes legais - vem tendendo a distanciar-se da realidade da política

internacional, e a tornar-se irrelevante para a mesma. Enquanto a primeira presume a

"igualdade soberana" de todas as nações, a segunda é dominada por uma extrema

desigualdade dessas mesmas nações, duas das quais são chamadas de superpotências

porque dispõem de um poder sem precedentes de destruição total, e muitas outras

são intituladas de "miniestados", devido ao seu minúsculo poder, se comparado a

dos tradicionais estados-nações. Esse contraste e essa incompatibilidade entre a

realidade da política internacional, de um lado, e os conceitos, instituições e

múltiplos procedimentos destinados a tornar inteligível e controlar a primeira, de

outro, foram as causas, pelo menos no nível inferior ao das grandes potências, da

presente ingovernabilidade das relações internacionais, que chega às raias da

anarquia. (Ibidem, p. 12)

Dessa forma, a dinâmica do sistema internacional - tendo como base sua estrutura

hierárquica e a constante busca por poder - prediz a existência de uma “elite internacional”.

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Esta é ilustrada por potências ou hegemonias que possuem a capacidade de subjugar os

Estados mais débeis, com fins de maximizar sua esfera de influência. No entanto, a existência

de uma elite internacional é mais volátil, visto que a manutenção do papel dominante

depende, em última estância, do conflito – que pode originar um novo Estado influente ou

destruir a hegemonia a partir de uma mobilização coletiva pelo equilíbrio de poder.

Igualmente ao sistema internacional, assertiva de Mosca de que ainda em um grupo da

elite é possível identificar um indivíduo que é “chefe entre os líderes” (MOSCA, 1939, p. 50,

51), também é aplicável a este ambiente. Porém, não somente à redução de um grupo de

Estados para um só, mas também pela representatividade do Estado exercida por um

indivíduo, ou seja, um indivíduo representante de determinado Estado assume seus poderes e

passa a agir como força transnacional, na medida em que manipula esforços em favor da

entidade que representa.

Associando-se as premissas da Teoria das Elites à configuração do sistema

internacional elaborada pelo paradigma realista, o fenômeno referente a uma elite dominante,

assim como um indivíduo “chefe entre os líderes”, é identificável na problemática histórica

referente ao Cardeal de Richelieu. Dessa forma, pode-se dizer que, em um sistema

internacional onde existe a dominação efetivada por uma elite – representada, neste caso, pelo

Império Habsburgo – a França, que fazia parte de um grupo dominante, não se encontrava na

condição hegemônica, ou seja, ainda estava à mercê da influência de um poder maior.

Todavia, a ameaça representada pelo Império Habsburgo, tanto para Estados

protestantes, como para a própria França, exigiu a segmentação da elite internacional nos dois

polos rivais verificados durante a Guerra dos Trinta Anos. Assim, a entrada da França na

guerra, reconfigurando o conflito para a existência de um terceiro polo, torna-a o Estado

principal entre os líderes da oposição aos Habsburgos, mobilizando-os para garantir a

manutenção de sua integridade soberana. Para tanto, sua representação no sistema

internacional fica concentrada em Richelieu, indivíduo vetor que direciona a política de

Estado em favor de sua segurança frente à ameaça latente.

Da mesma forma que Richelieu movimenta atores internacionais a fim de assegurar a

integridade francesa, sua ação se identifica também internamente. Mesmo diferente do modo

como opera no ambiente internacional, a manipulação clássica das massas, prevista por

Mosca, é igualmente visível na política doméstica da França, podendo ser assinalada em

termos do poder inerente a sua função política e posição social. A antítese representada pela

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política conduzida externa e internamente, classifica o cardeal como elite dominante em

ambas as esferas de atuação.

O exemplo capaz de ilustrar essa afirmativa é identificado, principalmente, no cerco de

La Rochelle, entre 1627 e 1628. A batalha travada entre a monarquia francesa e os rebeldes

protestantes foi resultado máximo do controle estabelecido pelo governo francês sobre as

rebeliões anticatólicas no âmbito doméstico, retratando a forma última da dominação

executada pela elite representada por Richelieu.

Com base na problemática descrita, este capítulo tratará da aplicação das premissas

básicas da Teoria das Elites no fato histórico estudado em capítulos anteriores. Inicialmente a

teoria será apresentada em seu âmbito geral, identificando os principais elementos que a

compõem, como surgiu e a relação entre os autores estudados. Após a apresentação, serão

analisadas a obra principal de Gaetano Mosca, Elementi di Scienza Politica, e as principais

ideias de Vilfredo Pareto52

relacionadas ao elitismo53

, destacando seus principais

componentes relacionados à temática aqui compreendida.

Por fim, utilizando o arcabouço teórico apresentado, este será aplicado à realidade

descrita nos capítulos anteriores, ou seja, a Teoria das Elites será empregada à performance do

Cardeal de Richelieu durante a Guerra dos Trinta Anos, com fins de investigar em que nível

uma elite – representada pelo Cardeal – é capaz de mobilizar o sistema internacional em seu

favor.

3.1 A teoria

A teoria das elites toma suas primeiras formas no século XIX. Embora tenha aparecido de

forma mais definitiva no livro de Gaetano Mosca - publicado em 1896, Elementi di Scienza

52

A tríade tradicional da Teoria das Elites é composta por Mosca, Pareto e Roberto Michels. Porém, para os

objetivos deste trabalho, a abordagem de Michels não é adequada, visto que não atende a finalidade proposta

para este estudo, concentrando-se na análise de campos mais específicos, como os partidos de massa. (BOBBIO,

2000, p. 386) 53

A existência da desigualdade entre indivíduos prevista por Pareto não é desenvolvida em apenas uma obra.

Tampouco é a de Mosca, porém, dada a extensão dos trabalhos de Pareto, estes não se dedicam exclusivamente

ao desenvolvimento do elitismo, mas de um sistema teórico muito mais complexo, cujo qual não será analisado

em sua totalidade neste trabalho, em virtude de sua amplitude. Portanto, para cumprir os objetivos propostos,

serão analisados apenas os elementos basilares relacionados ao elitismo.

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Politica -, esta já havia sido delineada em obras anteriores do autor, demonstrada na oposição

constante entre a minoria que exerce a dominação e a maioria que é dominada. A primeira

obra de Mosca foi publicada em 1881, chamada “Sobre a teoria dos governos e sobre o

governo parlamentar”. Nesta obra identificam-se as primeiras ideias de seu sistema teórico,

como a proposta de um estatuto de ciência à reflexão política. Segundo Hollanda (2012, p.

153):

Para o autor, os maus hábitos intelectuais produziam obstáculos à formação do

verdadeiro saber científico, então confinado aos estudos da natureza e da física. A

constituição de um método científico rigoroso, inacessível às mentes comuns,

deveria libertar o estudo da política e da sociedade do juízo vulgar e desqualificado.

Era essa a ordem de motivações que impelia Mosca ao mundo acadêmico.

A proposta de Mosca para um conjunto de regras que estruturasse o estudo da política

não foi exclusividade sua neste período, sendo uma questão contemplada também por outros

estudiosos da época, como o próprio Vilfredo Pareto, que mais tarde viria a contribuir para os

estudos da Teoria das Elites. Porém, o novo estatuto proposto proferia uma série de críticas a

qualquer distinção política que envolva generalizações ou categorizações. A estas, Mosca não

atribuía utilidade para o estudo da política.

A ciência proposta por Mosca era avessa à sedução das aparências e das fórmulas

fáceis. No primeiro capítulo da obra, o autor critica a permanência injustificada das

classificações de governo de Aristóteles no cenário político-intelectual. As

diferenças de forma entre monarquia, aristocracia e politeia seriam irrelevantes para

o entendimento das dinâmicas reais da política. Para Mosca, a única distinção

política que importava era aquela entre governantes – minoria que acumula o poder

– e governados – grupo numeroso sobre o qual incide o poder. (Ibidem, p. 160)

Sendo assim, a oposição importante à compreensão da organização social dividia-se

apenas nas duas categorias supracitadas por Cristina Buarque de Hollanda: os governantes

constituem uma minoria que detém o poder, que cumpre todas as funções públicas e usufrui

de todos os benefícios inerentes ao monopólio do mesmo; já a segunda classe, governada, não

só é privada do poder que detém os governantes, como também é dirigida pela minoria,

encontrando-se submetida pelos mecanismos de Estado (MOSCA, 1939, p. 50).

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A separação da sociedade em dois polos já havia sido compreendida por outros

estudiosos da política54

, no entanto, a relevância desta polarização não era percebida como lei

regente da organização social, da forma como foi exposta por Gaetano Mosca e, também não

foi desenvolvida por ele em sua completude na obra de 1881. “Sobre a teoria dos governos e

sobre o governo parlamentar”, muito mais do que o desenvolvimento da Teoria das Elites, foi

uma crítica à política italiana da época.

Além de um exercício de análise científica, posteriormente amadurecido, a fase

siciliana original de Mosca teve ainda a marca forte de denúncia e condenação das

práticas políticas locais. Sobre a teoria dos governos foi obra representativa dessa

motivação. Nesse texto, a rotina do sistema parlamentar italiano, distante do ideal da

fórmula política democrática, é narrada como prática de corrupção e imoralidade.

[...] As classes políticas diretamente ligadas ao mundo institucional da democracia,

garantiam seus interesses em detrimento das expectativas de seu eleitorado.

(HOLLANDA, 2012, p. 188)

O prosseguimento dos estudos de Mosca se dá a partir de 1893, com seu retorno ao

meio acadêmico. Esse acontecimento marca uma nova fase do desenvolvimento de seu

argumento científico, marcado pelo amadurecimento das ideias publicadas em 1881. O

abandono, pelo menos em parte, da crítica exposta em sua primeira obra abre espaço para o

desenvolvimento mais apurado da Teoria das Elites, destacado pela publicação de Elementi di

Scienza Politica (ALBERTONI apud HOLLANDA, 2012, p. 203).

São delineadas na obra de 1896, as principais ideias da Teoria das Elites: o

estabelecimento de uma lei constante inerente ao mundo político confere à elite o caráter de

força material, guiando a ação da massa conforme seus objetivos (MOSCA; BOUTHOUL,

1975, p. 11); da mesma forma, como minoria, a força da elite é encontrada na organização –

da qual a massa carece – manifestando sua dominação através do aparelho Estatal:

Mosca não se limitou a enunciar o princípio segundo o qual existe, em toda

sociedade, uma classe política composta por um número restrito de pessoas, mas

procurou também dar uma explicação do fenômeno, insistindo repetidamente sobre

a observação de que a classe política encontra sua própria força na organização,

54

Como na obra de Hyppolite Taine, “As origens da França contemporânea: o antigo regime”, onde o autor

francês observa, no primeiro livro, a existência de uma “classe privilegiada” na estrutura do Acient Regime

(TAINE, 2001). Segundo Livingston (1939, p. 9), as intenções de Mosca em sua primeira fase, compreendida

entre os anos 1878 a 1881, eram de generalizar o método utilizado por Taine para analisar a política francesa,

identificando a antítese entre dominantes e dominados.

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tanto o conjunto de relações de interesse que induzem os membros da classe política

a coligarem-se entre si e a constituírem um grupo homogêneo e solidário contra a

mais numerosa, dividida, desarticulada, dispersa e desagregada classe dirigida, como

aparelho ou máquina estatal da qual se serve a classe política como instrumento para

realização de seus próprios fins. (BOBBIO, 2000, p. 385, 386).

Fixada a estrutura básica da teoria, esta foi complementada por Vilfredo Pareto, que é

identificado como um dos maiores expoentes no desenvolvimento do elitismo, podendo ser

considerado um dos fundadores dessa escola, juntamente com Gaetano Mosca e Roberto

Michels. Porém, embora o consenso aponte Mosca como autor primeiro da Teoria das Elites,

é importante destacar a disputa travada entre ambos os estudiosos em relação às suas

contribuições à teoria:

Há portanto um forte entrelaçamento entre os dois pensadores, obrigando a que não

se possa falar de um sem que ao menos se faça referência ao outro. Uma das razões

para tanto, a mais óbvia, é a de que ambos estão localizados nas origens da teoria

das elites. Se isso é óbvio, contudo, o é como efeito de imposição, resultado da

disputa que Mosca e Pareto travaram em torno da primazia na elaboração da tese

elitista. Foi essa disputa que, em grande parte, forçou o encadeamento entre os dois

e, mais ainda, contribuiu para a sua consolidação como fundadores da referida

teoria. (GRYNSZPAN, 1999, p. 37)

Outro fator a ser considerado é discrepância entre a visibilidade científica de cada um

dos autores. Mosca normalmente é lembrado por seus intérpretes pelos insucessos de sua

carreira acadêmica, sendo, inclusive, caracterizado por Bobbio (2000, p. 386) como

“provinciano”, enquanto Vilfredo Pareto já possuía notável credibilidade estabelecida, mesmo

que tenha iniciado seus estudos após Gaetano Mosca:

Se Pareto era um autor bastante lido e conhecido, o mesmo não se pode dizer em

relação a Mosca. Embora se tivesse iniciado na atividade acadêmica mais jovem,

bem antes de Pareto, tanto no magistério quanto na publicação de textos, como autor

Mosca era pouco difundido. Foi como político, principalmente, que ele se afirmou,

sendo suas posições conhecidas por suas intervenções na Câmara dos Deputados e

depois no Senado, como também por seus artigos de jornal. (GRYNSZPAN, 1999,

p. 38)

Embora ambos os autores sejam estudados em conjunto, como afirma Mário

Grynszpan, a competição estabelecida tanto entre os teóricos quanto entre seus estudiosos é

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interpretada por Arhur Livingston como irrelevante. O diferencial entre Gaetano Mosca e

Pareto é perfeitamente visível:

Não há conexão dialética ou histórica entre a teoria da elite de Pareto e a teoria de

Mosca sobre a classe dominante. No lado dialético, a teoria de Mosca da classe

dominante deriva de uma crítica da doutrina da dominação da maioria e é, como já

vimos, uma generalização do método de Taine. A teoria da elite de Pareto deriva de

um estudo das relações de distribuição de bens para diferenciações de classe na

sociedade e procura, especificamente, corrigir Ammon. (LIVINGSTON, 1939, p.

36, tradução nossa)55

Pareto identificava, basicamente, a desigualdade entre os indivíduos como fator

presente em todos os segmentos sociais, considerando o antagonismo entre dominadores e

dominados como “inerente à própria condição humana” (HOLLANDA, 2012, p. 291). Sendo

assim, estes podem ser dispostos em níveis, que variam do superior ao inferior, classificando

como elite aqueles pertencentes ao nível mais elevado (BOBBIO, 2000, p. 386).

Considerando a antinomia comum às obras dos dois autores, a inerência da

desigualdade prevista por Pareto precede o processo histórico permeado pela alternância de

elites no poder. Em outras palavras, a condição frágil da legitimidade atribuída à determinada

elite, faz com que não haja garantia de sua permanência em posição dominante, implicando a

luta contínua entre uma minoria e outra, de modo que, constantemente, a elite detentora do

poder seja substituída (Ibidem, p. 386).

Dessa forma, a contribuição de Pareto em relação ao processo histórico, assim como a

distribuição de níveis em termos de poder, configura aprofundamento da visão de Mosca, na

medida em que não é limitada apenas ao aparato Estatal, podendo ser identificada em todos os

segmentos da sociedade:

É um caso de dois autores que iniciaram com o mesmo método, o histórico, e

mesmo espírito objetivo de se empenhar em duas pesquisas que se desenvolveram

paralelas entre si em vários aspectos e ultrapassam os mesmos limites. Mas mesmo

similares em método e espírito, essas duas pesquisas são vastamente diferentes em

extensão e magnitude. A pesquisa de Pareto, baseada na análise do equilíbrio social,

55

“There is no dialectical or historical connection between Pareto's theory of the élite and Mosca's theory of the

ruling class. On the dialectical side, Mosca's theory of the ruling class derives from a criticism of the doctrine of

majority rule and is, as we have seen, a generalization of the method of Taine. Pareto's theory of the élite derives

from a study of the relations of distribution of wealth to class differentiations in society and aims specifically at a

correction of Ammon.” (LIVINGSTON, 1939, p. 36)

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leva a uma compreensiva visão da sociedade e resultados em enormes proporções

[...] (LIVINGSTON, 1939, p. 37, tradução nossa)56

A diferença entre os níveis de abrangência de cada estudo confere às contribuições

desenvolvidas caráter complementar entre si; ambas inauguram a definição de um modelo

antigo sob um prisma de análise ainda não contemplado por outros autores.

Os ecos da obra de Pareto no texto de Mosca não excluem o movimento inverso, de

recepção de Mosca por Pareto. Ainda que a rivalidade manifesta entre esses autores

tenha resultado em escassas referências mútuas, a influência de um na obra do outro

não escapa a um olhar mais observador. (HOLLANDA, 2012, p. 271)

Pode-se dizer que a contribuição de Elementi di Scienza Politica enfatiza questões

principais de reflexão em relação à Teoria das Elites, porém, na maioria das vezes estas não

são aprofundadas, creditando a Pareto a transformação das “intuições” de Mosca em uma

hipótese científica da qual se origina a teoria social (LIVINGSTON, 1939).

3.2 Gaetano Mosca e a classe dominante

A obra publicada em 1896, Elementi di Scienza Politica, foi o marco teórico que

consagrou a Teoria das Elites elaborada por Gaetano Mosca. Embora a reflexão tivesse sido

iniciada em obras anteriores, é em 1896 que ela se torna mais sólida, em termos de

formulação. Segundo Hollanda (2012, p. 271), “Mosca foi o primeiro autor a sistematizar a

interpretação elitista do fenômeno político e influenciou as gerações sucessivas de intelectuais

atentos ao tema”. A versão a ser examinada nesta seção data de 1939, editada por Arthur

Livingston, em inglês sob o título de The Ruling Class57

.

56

“It is a case of two authors who start with one same method, the historical, and in the same objective spirit to

prosecute two researches that run parallel to each other in many respects and pass many of the same landmarks.

But similar as they are in method and spirit the two researches are vastly different in range and magnitude.

Pareto's research, based on an analysis of the social equilibrium, leads out to a comprehensive view of all society

and results in a monument of gigantic architectural proportions […]” (LIVINGSTON, 1939, p. 37) 57

Quando traduzidos os termos das obras de Mosca e Pareto para o português pouco se vê da diferenciação de

nomenclaturas em relação à elite aos quais os autores se referem. Porém, em inglês, quando se trata de Mosca,

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76

A discussão sobre a existência de uma classe dominante inicia-se no segundo capítulo,

intitulado com o mesmo nome da obra em inglês. O primeiro trecho, citado por Bobbio (2000,

p. 385)58

, define as linhas que fundamentam a Teoria das Elites, deixando clara a existência –

em quaisquer sociedades ou civilizações – de uma elite dominante. A dicotomia expressa por

Mosca divide a sociedade em duas classes: a dominante e a dominada. A classe dominante,

normalmente, tem seu poder legitimado pela instrumentalização da classe que domina, ou

seja, aproveita-se de sua condição menos favorecida para ascender ao poder, envolvendo

coerção ou não.

A doutrina de que em todas as sociedades humanas que chegaram a um certo grau

de desenvolvimento e controle político da civilização no sentido mais amplo do

termo (liderança administrativa, militar, religiosa, econômica e moral) é sempre

exercitada por uma classe especial, ou organizada ou uma minoria, é mais antiga do

que comumente suposta por aqueles que a sustentam. (MOSCA, 1939, p. 329,

tradução nossa)59

Embasando-se nesta configuração padrão, Mosca destaca duas peculiaridades que

podem ser igualmente identificadas entre a classe dominante: o “chefe entre os líderes” e a

influência da massa na política conduzida pelo Estado. A primeira afirmativa assume a

existência de um segmento interno à elite, ou seja, dentre uma minoria que domina as relações

de poder de um Estado, há um indivíduo – ou, em casos excepcionais, dois – que possui mais

influência do que o resto do grupo; em segundo lugar, Mosca identifica a pressão exercida

pela massa para que sejam cumpridas suas aspirações enquanto determinada elite se encontra

no poder. Ou seja, o papel desempenhado pelo “descontentamento” dos dominados exerce

determinada ingerência na condução da política dos dominantes (Ibidem, p. 51).

Em resumo, é possível assinalar determinado encadeamento de dependências nestes

fatos, isto é, um líder, que se respalda no amparo do grupo que o sustenta e a elite resultante

deste grupo, que se apoia na legitimidade conferida pela massa. Sendo assim, da mesma

forma que a elite necessita do suporte da massa que, na maioria das vezes a conduziu até o

normalmente a elite é denominada como ruling class, ou seja, classe dominante; já, quando se trata de Pareto, o

termo aparece em francês nas edições de Arthur Livingston: élite. 58

O trecho pode ser encontrado na página 14 deste trabalho. 59

“The doctrine that in all human societies which have arrived at a certain grade of development and civilization

political control in the broadest sense of the term (administrative, military, religious, economic and moral

leadership) is exercised always by a special class, or by an organized minority, is older than is commonly

supposed even by those who support it.” (MOSCA, 1939, p. 329)

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poder, o “chefe entre os líderes” necessita do amparo da classe que representa e que sem a

qual seu poder não será legítimo:

Mas o homem que é o chefe de Estado certamente não seria hábil de governar sem o

suporte da numerosa classe para reforçar o respeito de suas ordens e para manipulá-

los; e admitindo que ele pode fazer um indivíduo, ou mesmo muitos indivíduos , na

classe dominante sentirem o peso de seu poder, ele certamente não deve estar em

desacordo com a classe como um todo ou será deposto. (Ibidem, p. 51, tradução

nossa)60

Porém, segundo o próprio autor, ambos as fatos não são necessariamente verificados

em larga escala, sendo amplamente difundidos, porém sem grandes representações práticas

em sua maioria (Ibidem, p. 50). Mais precisamente, a elite mencionada por Mosca, de maneira

geral, refere-se àquela que detém poder do aparato do Estado, ou participa, mesmo que

indiretamente, da dominação realizada por esse grupo. Tal classe necessita de organização

para que funcione em plenos poderes. Inclusive, esse é o contraponto essencial entre os

dominantes e os dominados: a falta de organização da massa coloca-a a mercê de uma elite

mais preparada e capaz de submetê-la, fazendo com que tome forma meramente instrumental

para sua ascensão.

Na realidade, o domínio de uma minoria organizada, obedecendo a um único

impulso, sobre uma maioria desorganizada é inevitável. [...] Ao mesmo tempo, a

minoria é organizada pela mesma razão de que é uma minoria. Cem homens atuando

de maneira uniforme, com entendimento entre si, vão triunfar sobre mil homens que

não estão de acordo e que podem ser enfrentados um por um. [...] Quanto maior uma

comunidade política, menor será a proporção da minoria governante para com a

maioria, e mais difícil será para que a maioria organize uma reação contra a minoria.

(Ibidem, p. 53, tradução nossa)61

60

“But the man who is at the head of the state would certainly not be able to govern without the support of a

numerous class to enforce respect for his orders and to have them carried out; and granting that he can make one

individual, or indeed many individuals, in the ruling class feel the weight of his power, he certainly cannot be at

odds with the class as a whole or do away with it.” (Ibidem, p. 51) 61

“In reality the dominion of an organized minority, obeying a single impulse, over the unorganized majority is

inevitable. […] At the same time, the minority is organized for the very reason that it is a minority. A hundred

men acting uniformly in concert, with a common understanding, will triumph over a thousand men who are not

in accord and can therefore be dealt with one by one. […] It follows that the larger the political community, the

smaller will the proportion of the governing minority to the governed majority be, and the more difficult will it

be for the majority to organize for reaction against the minority.”(Ibidem, p. 53)

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Para que fosse realizada, de fato, a dominação, Mosca previu três critérios de distinção

para identificar a elite que ascende frente à maioria:

O primeiro deles, a riqueza, teria migrado de uma prevalência de direito a uma

prevalência de fato, que seria sua característica moderna. [...] O segundo critério

distintivo, o lugar social do nascimento, teria importância crucial na definição das

biografias individuais. Para Mosca o nascimento situa homens em um universo de

conhecimentos, valores e posturas que os aproxima ou não dos modos de vida da

minoria dominante. Entre os bem e os malnascidos haveria distância significativa

nas chances de incorporação às elites. Apenas em sociedades avançadas o mérito,

terceiro operador de distinção, poderia superar os efeitos sociais das marcas de

origem. (HOLLANDA, 2012, p. 170)

Tendo ascendido ao poder, a elite impõe seu ideal primeiro como forma de governo.

Porém, mesmo que tenha seduzido a massa temporariamente, esta não possui garantias de

permanência no poder. Qualquer mudança na estrutura inerente à sociedade põe em risco a

legitimidade representada pelo regime vigente, ou seja, à medida que o conhecimento se torna

instrumento disponível ou outra classe intermediária concentra riqueza, à elite dominante será

inevitável a obsolescência:

O que vemos é que assim que há uma mudança na balança das forças políticas

quando se sente a necessidade de que diferentes poderes devem assumir a gerência

do estado, quando os antigos, de alguma forma, perdem sua importância ou ocorrem

mudanças em sua distribuição, então a maneira como se constitui a classe dominante

muda também. Se uma nova fonte de riqueza se desenvolve na sociedade, se a

importância prática do conhecimento cresce, se a antiga religião declina e uma nova

nasce, se uma nova gama de ideias se espalha, então, simultaneamente, uma

desarticulação de longo alcance ocorre. [...] Classes dominantes declinam

inevitavelmente quando não encontram mais espaço para os poderes através dos

quais ascenderam, quando eles não podem mais fornecer os serviços sociais que

uma vez forneceram, ou quando seus talentos e serviços fornecidos perdem

importância no ambiente social em que vivem. (MOSCA, 1939, p. 65, 66, tradução

nossa)62

62

“What we see is that as soon as there is a shift in the balance of political forces when, that is, a need is felt that

capacities different from the old should assert themselves in the management of the state, when the old

capacities, therefore, lose some of their importance or changes in their distribution occur then the manner in

which the ruling class is constituted changes also. If a new source of wealth develops in a society, if the practical

importance of knowledge grows, if an old religion declines or a new one is born, if a new current of ideas

spreads, then, simultaneously, far-reaching dislocations occur in the ruling class.[…] Ruling classes decline

inevitably when they cease to find scope for the capacities through which they rose to power, when they can no

longer render the social services which they once rendered, or when their talents and the services they render

lose in importance in the social environment in which they live.” (Ibidem, p. 65, 66)

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Cada elite está fadada a desaparecer, porém a lacuna deixada por uma classe

dominante deposta logo será preenchida por outra. A Teoria das Elites em Mosca prevê a

existência permanente de um poder maior a cargo do processo histórico, especialmente devido

à capacidade de manipulação que a elite possui, usada tanto para que chegue ao comando,

quanto para manter sua condição ativa de dominação – esta protegida por uma instituição que

favorece a perpetuação da desigualdade:

Não há organização humana sem rankings ou subordinação. Qualquer forma de

hierarquia necessariamente requer que uns devem comandar e outros devem

obedecer. E já que está na natureza do ser humano que muitos homens amam

comandar e que quase todos vêm a obedecer, uma instituição que dá àqueles que

estão no poder uma maneira de justificar sua autoridade e ao mesmo tempo ajuda a

persuadir aqueles que estão abaixo a se submeterem pode ser considerada uma

instituição útil. (Ibidem, p. 397, tradução nossa)63

Estabelecida a condição constante entre a relação dos dois polos sociais

compreendidos por Mosca, é importante observar o caráter cíclico referente à ascensão e à

queda da elite. Por mais que a massa se manifeste insatisfeita com o poder vigente, esta será

apenas instrumento para que outra elite substitua a anterior, caracterizando o círculo vicioso

intrínseco a qualquer sociedade.

Sendo este o fundamento chave para que se entenda a teoria das elites, Mosca, embora

não apresentando uma teoria completa como Pareto, estabeleceu uma lei fundamental que foi

condicionante de muitas contribuições em relação à escola elitista.

3.3 Vilfredo Pareto e a élite

Vilfredo Pareto, como já mencionado, encontrava-se em um patamar muito superior a

Mosca em termos acadêmicos, sendo reconhecido em diversas áreas, como engenharia,

economia e sociologia. Com exceção das contribuições relativas à engenharia, o elitismo é

63

“There can be no human organization without rankings and subordinations. Any sort of hierarchy necessarily

requires that some should command and others obey. And since it is in the nature of the human being that many

men should love to command and that almost all men can be brought to obey, an institution that gives those who

are at the top a way of justifying their authority and at the same time helps to persuade those who are at the

bottom to submit is likely to be a useful institution.” (Ibidem, p. 397)

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identificável em, pelo menos, três obras de importância do autor: Cours d’économie politique

– em português “Curso de economia política”, publicada em 1897 -, Les systèmes socialistes –

“Os sistemas socialistas”, do ano de 1902 – e, por fim, sua obra-prima Trattato di sociologia

generale – “Tratado de sociologia geral” -, publicado em 1916 (GRYNSZPAN, 1999).

A existência de um grupo dominante, como condição inerente a uma sociedade, não é

pontuada por Pareto nos mesmos moldes em que se faz na pesquisa de Mosca. A elite é

analisada como parte de um organismo maior, ou seja, a classe que domina se faz presente no

processo histórico, inserida como elemento de um organismo que compreende a interação de

múltiplos fatores para sua existência. A elite também não é verificada como exclusividade do

âmbito governamental e pode ser identificada em todos os segmentos, visto que seu

instrumento de legitimidade difere do que foi explorado por Gaetano Mosca.

O conceito de elite de Pareto, à diferença da noção de classe política de Mosca, não

se limita aos quadros formais do governo e da política. Trata-se de uma categoria

mobilizada para a observação de todos os grupos dispostos na sociedade. A premissa

dessa ideia é que, em qualquer ramo da atividade humana, alguns homens são

melhores do que outros e alcançam maior destaque no desempenho de seus ofícios.

[...] Nessa perspectiva, o critério para definir uma boa ou má elite é a maior ou a

menor capacidade de executar uma atividade específica. [...] O que define as elites,

assim, é um princípio de eficiência e não um critério moral. (HOLLANDA, 2012, p.

382)

A elite em Pareto se identifica na qualidade desigual inerente à sociedade. Sendo

assim, a desigualdade pressupõe níveis nos quais estão dispostos os indivíduos, que vão de

um patamar inferior ao superior – o qual pertence à elite (BOBBIO, 2000, p. 386). Tais níveis

são identificáveis não somente no âmbito econômico, mas em outros aspectos sociais,

configurando a existência de uma “pirâmide social”:

Pareto erigiu sua crítica ao socialismo sobre a base da noção de elite, que aqui já

aparecia de forma intercambiável com aristocracia, tendo a sua origem em uma

extensão, aos diversos campos sociais além do econômico, daquilo que se observava

na curva de distribuição da riqueza. Essa curva, afirmava o autor, conformava uma

pirâmide social, ocupada no topo pelos ricos e na base pelos pobres. Tal era a forma

imutável de todo organismo social. (GRYNSZPAN, 1999, p. 172)

É importante destacar que, no momento em que Pareto caracteriza o organismo social

como “imutável”, refere-se à condição, não à organização ou aos elementos que a constituem.

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Em outras palavras, a imutabilidade resultante da desigualdade constatada não confere caráter

estático à elite dominante, ou seja, esta é passível de alterações ou substituições.

Longe de constituir uma realidade estática, a dominação é dinâmica, baseada em

uma negociação tensa entre dirigentes e dirigidos. As condições do domínio não são

estáveis e passíveis de reprodução indefinida. Os fundamentos do poder exigem,

portanto, renovação constante. [...] As elites, portanto, embora constituídas pelos

melhores, não estão imunes ameaças externas. (HOLLANDA, 2012, p. 382, 396)

Estas modificações se devem à diversidade de aptidões disponíveis ao indivíduo,

variando desde a riqueza até capacidades matemáticas ou musicais, por exemplo. Porém, um

indivíduo pertencente ao nível mais alto da pirâmide em relação à inteligência não

necessariamente faz parte da elite dominante, ou seja, ser o mais inteligente não o aloca

automaticamente à condição de classe dirigente. A convergência de valores resultante na elite

dominadora somente se verifica quando levados em conta, intersecionados, a riqueza, o poder

e a influência social e política (GRYNSZPAN, 1999, p. 172, 173).

A elite que combina os quatro fatores supracitados, é descrita por Pareto como uma

aristocracia, dotada de qualidades boas ou más. Associando estes fatores à imutabilidade da

existência da elite que, no entanto, é passível de ser substituída ou sofrer processos

transformadores, Pareto indica a existência do processo de “circulação”:

Um fato de extrema importância para a fisiologia social é o de que as aristocracias

não duram. Todas elas passam por uma decadência mais ou menos rápida. Nós não

temos que pesquisar aqui as causas desse fato, sendo-nos suficiente constatar a sua

existência, não apenas para as elites que se perpetuam pela hereditariedade, mas

também, ainda que em um grau menor, para as que se recrutam por cooptação.

(PARETO, 1965, p. 9 apud Ibidem, p. 174)

Da mesma forma que Mosca, Pareto aponta a efemeridade da condição dominante da

aristocracia -, destacando a presença da circulação no processo histórico (BOBBIO, 2000, p.

386), expressa na contínua ascensão e queda de determinada elite. A queda de uma

aristocracia pode ser desencadeada de várias formas, dentre elas a morte ou a degeneração de

seus elementos. Esta última pode ser remediada à custa da substituição da elite que não

cumpre mais seu papel ou do segmento degenerado, configurando atividade de circulação

necessária para manutenção do equilíbrio; já a morte, originada na falta de circulação do

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organismo prediz uma quebra no equilíbrio social, colocando em risco a integridade da

sociedade, então, desprovida de elites:

Um simples atraso naquela circulação pode ter um efeito de aumentar

consideravelmente o número de elementos degenerados que pertencem às classes

que ainda possuem o poder e de aumentar, por outro lado, o número de elementos de

qualidade superior das classes sujeitas. Nesse caso o equilíbrio social se torna

instável; o menor choque venha do exterior ou do interior, o destrói. Uma conquista

ou uma revolução levam tudo a uma desordem, alçando ao poder uma nova elite,

estabelecendo um novo equilíbrio que permanecerá estável por um período mais ou

menos longo (PARETO, 1965, p. 11 apud Ibidem, p. 174).

Como afirmado anteriormente, a elite em Pareto não se trata de um grupo homogêneo

que corresponde às mesmas funções na sociedade. Esta não é expressa da mesma maneira que

a classe dominante de Gaetano Mosca, não estando necessariamente ligada aos poderes

formais do Estado. A classificação feita por Pareto diferencia dois tipos detentores de poder: a

classe governante e a elite governante.

Mesmo a elite, ou a classe governante, na visão de Pareto, não podia ser tomada

como um todo homogêneo. Ela apresentava diferenças no que tocava, por exemplo,

à maneira e aos mecanismos como galgava e se mantinha no poder, quer

privilegiasse o emprego de maiores doses de força, quer de astúcia, ardil, na busca

de consentimento. (Ibidem, p. 193)

Utilizando-se do exemplo monárquico, Pareto ilustra a elite governante como aqueles

que desempenham liderança na condução da política, o que, em termos de monarquia, é

exemplificado no rei regente; quando se trata de classe governante, esta pode ser observada na

nobreza que suporta a condição dominante do soberano, ou seja, mesmo que não atue

diretamente no governo, desempenha um papel de importância na manutenção do modelo

político vigente. Entretanto, a diferenciação se dá não somente em termos de área de atuação

de cada segmento, mas também é identificável na maneira como ascendem e se mantêm no

poder, variando entre elementos como astúcia e força (Ibidem, p. 193). De acordo com

Bobbio (2000, p. 386):

[...] a teoria do equilíbrio social é fundada, em grande parte, sobre o modo como se

combinam, se integram e se intercambiam as diversas classes de elite, cujas

principais são as políticas (estas têm dois polos: os políticos que usam a força (leões)

e os que usam a astúcia (raposas); as econômicas (com polos nos especuladores e

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nos banqueiros) e as intelectuais (onde se contrapõem continuamente os homens de

fé e os homens de ciência).

Em resumo, mesmo que assumam várias formas, independente dos tipos ou da

maneira como atuam, as elites são fatores estáticos observáveis em todas as sociedades, em

antítese à mobilidade cíclica inerente aos componentes desse processo histórico. (Ibidem, p.

387). A obra de Pareto buscando compreender a sociedade em sua completude, não restringe

– especialmente no “Tratado de sociologia geral” – a análise apenas a uma fração do

organismo social. O resgate das ideias de Gaetano Mosca adquire fundamentos mais

profundos quando analisadas por Vilfredo Pareto, agregando novas dimensões à Teoria das

Elites inaugurada no século XIX.

3.4 Richelieu e a Teoria das Elites

As relações de vassalagem que compunham a dinâmica de ascensão social nos séculos

XVI a XVIII64

pressupunham desde já a existência de uma classe dominante em evidência na

França e na Europa. O método utilizado para ascender – ou se manter – ao poder, através de

alianças e subordinação ao poder vigente, garantia, em parte, segurança e legitimidade ao

soberano, da mesma forma que proporcionava benefícios e privilégios àqueles que

costumavam fazer parte do cordon bleu.

Em 1789 três classes de pessoas, o Clero, os Nobres e o Rei, ocupavam a posição

mais proeminente no Estado com todas as vantagens relativas como, autoridade,

propriedade, honrarias, ou, no mínimo, privilégios, imunidades, favores, pensões,

preferências e afins. Se eles ocuparam essa posição por tanto tempo, é porque por

tanto tempo a mereceram. Eles passaram, em suma, por um imenso e secular

esforço, construído por graus das três principais fundações da sociedade moderna.

(TAINE, 2001, p. 12, tradução nossa)65

64

Haja vista a permanência de tal condição até o período compreendido por Hippolyte Taine em The origins of

contemporary France: the Ancient Regime, sua obra será utilizada para que melhor sejam ilustrados

determinados aspectos da sociedade francesa. 65

“In 1789 three classes of persons, the Clergy, the Nobles and the King, occupied the most prominent position

in the State with all the advantages pertaining there to namely, authority, property, honors, or, at the very least,

privileges, immunities, favors, pensions, preferences, and the like. If they occupied this position for so long a

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O Cardeal de Richelieu, desde seu nascimento, pertence a um segmento privilegiado

da sociedade francesa do século XVII. Como membro da família du Plessis, a origem

aristocrática de sua família remonta seis gerações anteriores, o que possibilitou que

participasse do ambiente monárquico desde sua adolescência, ou seja, podendo ser

identificado desde a juventude como parte de uma elite.

A questão da influência dos laços familiares na constituição da classe dominante,

criticada por Gaetano Mosca em sua primeira obra já permite que se atribua a Richelieu tal

condição:

Em primeiro lugar, todas as classes dominantes tendem a se tornar hereditárias em

fato senão em lei. Todas as forças políticas parecem possuir o que na física

costumava se chamar inércia. Eles têm uma tendência em permanecer no ponto e no

estado em que se encontram. Riqueza e coragem militar são facilmente mantidas em

certas famílias pela tradição moral e pela hereditariedade. [...] Mas deve ser notado

que candidatos que obtém sucesso nas eleições democráticas são quase sempre

aqueles que possuem forças políticas acima enumeradas, que são frequentemente

hereditárias. Nos parlamentos ingleses, italianos e franceses nós frequentemente

vemos filhos, netos, irmãos, sobrinhos e genros de membros e deputados, ex-

membros e ex-deputados. (MOSCA, 1939, p. 62, tradução nossa)66

Mesmo identificando a família como fator preponderante para constituição da elite em

modelos políticos democráticos, a assertiva pode ser observada com ainda mais clareza

quando se trata da nobreza do Antigo Regime. As relações de desigualdade existentes no

absolutismo francês permitem que a classe dominante seja colocada em evidência muito mais

acentuada, tendo em vista o fato de que não havia uma classe intermediária expressiva que

suavizasse a transição da classe nobre ao campesinato.

Sendo assim, a sociedade onde se funda a ascensão de Richelieu situava perfeitamente

a preferência pelo tipo de carreira seguida pelo Cardeal. Mesmo não tendo realizado as

time, it is because for so long a time they had deserved it. They had, in short, through an immense and secular

effort, constructed by degrees the three principal foundations of modern society.” (TAINE, 2001, p. 12) 66

“In the first place, all ruling classes tend to become hereditary in fact if not in law. All political forces seem to

possess a quality that in physics used to be called the force of inertia. They have a tendency, that is, to remain at

the point and in the state in which they find themselves. Wealth and military valor are easily maintained in

certain families by moral tradition and by heredity. […] But it must be noted that candidates who are successful

in democratic elections are almost always the ones who possess the political forces above enumerated, which are

very often hereditary. In the English, French and Italian parliaments we frequently see the sons, grandsons,

brothers, nephews and sons-in- law of members and deputies, ex-members and ex-deputies.” (MOSCA, 1939, p.

62)

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ambições primeiras de seguir a carreira militar, o sacerdócio foi igualmente benéfico para a

iniciação política de Armand du Plessis na Corte, especialmente quando consideradas as três

principais fundações do Estado moderno de Taine.

Em suma, Richelieu fazia parte de uma classe dominante desde seus primeiros anos de

vida, porém, é ao decorrer de sua carreira profissional que se identifica a progressiva ascensão

da condição de classe dominante à elite de nível superior – como descrita em Pareto.

A trajetória é iniciada de fato, quando Richelieu ingressa na carreira religiosa,

assumindo o bispado de Luçon. A influência do Clero nesse período, especialmente após a

excomunhão de Lutero no ano de 1520, passa a atingir, além das competências de credo e fé,

a esfera política, reforçando o avanço de Richelieu ao status de elite. Nas palavras de Mosca

(1939, p. 59) 67:

Em sociedades onde as crenças religiosas são fortes e ministros da fé formam uma

classe especial, uma aristocracia sacerdotal quase sempre ascende e ganha possessão

de uma parte mais ou menos importante da riqueza e do poder político. [...]

Conscientemente ou não, hierarquias sacerdotais mostram frequentemente uma

tendência de monopolizar a aprendizagem e dificultam a difusão dos métodos e

procedimentos que tornam a aquisição de conhecimento possível e fácil. (tradução

nossa)

Sendo assim, devido ao reconhecimento pela carreira religiosa, Richelieu se faz

presente na Corte com mais frequência. Suas boas relações com Maria de Médicis resultam

em seu primeiro cargo político, assim como na nomeação de cardeal após a morte de Luynes,

no ano de 1621. Porém, são conhecidos os obstáculos enfrentados para que se efetivasse sua

atividade na política, o que exigiu de Richelieu sua imposição frente à problemática que

impedia sua ascensão. Dessa forma, o Cardeal passa a manipular todos os elementos

complicadores para que possa assegurar posição de maior influência.

Utilizando Maria de Médicis como instrumento para ganhar a confiança de Luís XIII,

Richelieu foi agregando, progressivamente, cada vez mais responsabilidades para que fosse

67

“In societies in which religious beliefs are strong and ministers of the faith form a special class a priestly

aristocracy almost always arises and gains possession of a more or less important share of the wealth and the

political power. […] Consciously or unconsciously, priestly hierarchies often show a tendency to monopolize

learning and hamper the dissemination of the methods and procedures that make the acquisition of knowledge

possible and easy.” (MOSCA, 1939, p. 59)

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comprovada sua capacidade e lealdade ao soberano, chegando a assumir o comando de

assuntos militares e de política externa.

Foi Maria de Médicis quem originalmente viu potencial em Richelieu [...] Ela

rapidamente o introduziu ao círculo interno de poder, colocando-o a cargo da

política externa da França em 1616. Em 1618, após o início da guerra entre mãe e

filho, Luís baniu Richelieu para Avignon. Mas o jovem bispo conseguiu convencer o

rei de sua lealdade e se mostrou um instrumento para trazer a reconciliação da

família. Seguido à morte do conselheiro de Luís em 1621, o Duque de Luynes,

Richelieu veio à tona, tornando-se conselheiro mais confiável e importante do rei.

Em 1622, o papa concordou em fazê-lo cardeal. (BELL, 2012, tradução nossa)68

Porém, suas competências são postas à prova, de fato, nos anos de 1627 e 1628,

quando o Cardeal é encarregado do Cerco de La Rochelle. É, especialmente, neste evento que

pode ser constatada a efetivação do Cardeal de Richelieu como elite dominante. A supressão

violenta da revolta garantiu o sucesso católico frente aos protestantes em La Rochelle,

consolidando o pertencimento de Richelieu ao nível mais alto da elite, quando é nomeado

primeiro-ministro do rei Luís XIII, em 1629 – data que coincide com o início da participação

francesa na Guerra dos Trinta Anos.

A ameaça representada pelo Império Habsburgo já era observável de longa data,

porém, é a partir do exercício de Richelieu como primeiro-ministro que o Estado francês toma

atitudes claras para garantir sua segurança, desprendendo-se de qualquer valor ético católico

que pudesse ameaçar sua soberania, atentando-se ao uso da raison d’État. Sendo assim,

Richelieu passa a conduzir a política externa do Estado francês de maneira praticamente

independente, conferindo a Luís XIII papel coadjuvante. Segundo Mosca (1939, p. 50, 51):

O primeiro desses fatos, a qual se deve apenas abrir os olhos para enxergar, é que

em todo organismo político há um indivíduo que é chefe entre os líderes da classe

dominante como um todo e fica a frente do estado. Essa pessoa não é sempre a

pessoa que detém poder supremo de acordo com a lei. Às vezes, ao lado de um rei

hereditário ou imperador há um primeiro-ministro ou um mordomo que empunha

poder real maior que o do soberano. (tradução nossa)69

68

“It was Marie who originally saw the potential in Richelieu […] She quickly brought him into the inner circles

of power, placing him in charge of French foreign policy in 1616. In 1618, after war broke out between mother

and son, Louis banished Richelieu to Avignon. But the young bishop managed to convince the king of his

loyalty and proved instrumental in bringing about a family reconciliation of sorts. Following the 1621 death of

Louis’ chief adviser, the Duc de Luynes, Richelieu came to the fore, eventually becoming the king’s most trusted

and important councilor. In 1622, the pope agreed to make him a cardinal.” (BELL, 2012) 69

“The first of these facts and one has only to open one's eyes to see it is that in every political organism there is

one individual who is chief among the leaders of the ruling class as a whole and stands, as we say, at the helm of

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Ou seja, já como membro da elite nacional, Richelieu passa a elaborar, também, a

estratégia de guerra francesa no decorrer da beligerância, assumindo plenos poderes de Estado

na condução da política externa. O Cardeal passa a manejar os elementos disponíveis para que

o Império Habsburgo fosse exaurido, subsidiando o protestantismo externamente, em

contrapartida com o tratamento que dava aos protestantes dentro da França – sem mencionar o

cálculo de poder executado para que fosse dada continuidade à guerra em 1635, a fim de

eliminar por completo quaisquer chances de nascer uma hegemonia nas fronteiras da França

(BELL, 2012).

Consequentemente, a luta por segurança e manutenção da condição soberana é

transferida para o único sujeito que parecia obter meios de garantir resultados positivos destas

demandas. Ou seja, o Estado francês, em termos de interesse, é personificado em um

indivíduo que se encontra mobilizando todos os componentes do sistema internacional em seu

favor, praticando o pragmatismo previsto nos princípios da razão de Estado. Daí a

caracterização de Richelieu como uma elite internacional. Uma elite em si, não composta por

indivíduos a priori, mas por Estados que têm suas vontades impostas àqueles mais débeis.

Em relação à elite clássica definida por Gaetano Mosca, esta é identificada em,

praticamente, todos os segmentos compreendidos por essa afirmativa. Porém, é assinalada a

existência de uma única classe dominante, legitimada através do Estado. Logo, nesse grupo

estão incluídos todos os indivíduos e grupos que atendem às características previstas na teoria

de Mosca, o que torna sua percepção limitada em determinados elementos quando comparada

à elite descrita nas obras de Vilfredo Pareto. Sendo assim, para melhor entendimento da

dinâmica que se estabelece entre elites internacionais, serão apropriadas, as diferenciações

elaboradas por Pareto entre classe dominante e elite dominante.

Como descrito anteriormente, a elite não se configura como um grupo homogêneo da

forma que é tratada na obra de Mosca, identificando os dois segmentos compreendidos por

Pareto como classe dominante. Sendo assim, a elite é classificada como aqueles que

desempenham o papel de liderança na condução da política de dominação; já a classe

the state. That person is not always the person who holds supreme power according to law. At times, alongside

of the hereditary king or emperor there is a prime minister or a major-domo who wields an actual power that is

greater than the sovereign's.” (MOSCA, 1939, p. 50, 51)

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compreende aqueles que têm importância política - especialmente na manutenção da

legitimidade do governo vigente - mas não se encontram no comando do aparelho Estatal.

Em relação ao sistema internacional, a preponderância de determinado grupo de

Estados é identificável da mesma forma que a elite no âmbito doméstico. Então, antes que

seja classificada a elite internacional nos moldes paretianos, é preciso compreender a visão

realista em termos básicos, quando se trata de dominação, tanto entre indivíduos, quanto entre

Estados. Nas palavras de Carr (2002, p. 58):

O realista, portanto, ao contrário do intuitivo, tem uma resposta perfeitamente

racional à questão de por que o indivíduo deve submeter-se. Ele deve submeter-se

porque, caso contrário, o mais forte o obrigará; e os resultados desta ação

compulsória são muito mais desagradáveis do que os da submissão voluntária. A

obrigação deriva, portanto, de um tipo de ética espúria, baseada na razoabilidade de

reconhecer que poder é direito.

A dominação do mais forte sobre o mais fraco, expressa por Edward Carr, é o

pressuposto básico elitista, porém, em outros termos. Essa condição é verificada em larga

medida no sistema internacional, haja vista a falta de autoridade que regule as relações entre

Estados70

. A lacuna de uma autoridade supra estatal pressupõe, então, a existência de uma

hierarquia entre os Estados, sendo os mais fortes, a classe dominante. Assim, a classe

dominante de Estados compreende todos aqueles que possuem determinado poder de

influência no sistema internacional e que, da mesma forma que a classe dominante doméstica,

amparam um segmento superior: a elite internacional.

Basicamente, a elite internacional é composta por um núcleo restrito de Estados que

impõem seus interesses no sistema internacional e o regula de acordo com sua vontade,

configurando o princípio de dominação. Os Estados que fazem parte da elite internacional,

possuem elementos que os diferenciam das outras potências, o que pode ser descrito como

qualquer elemento de poder que faça sobressair sua autoridade, seja em termos militares,

territoriais ou econômicos, por exemplo.

Na Guerra dos Trinta Anos, e elite em evidência é representada pelo Estado francês e

pelo Império Habsburgo, então em princípio de decadência. Já a classe dominante pode

70

Internamente, o próprio Estado é a autoridade responsável por regular os ímpetos primitivos do indivíduo, no

entanto, não há entidade que regule esses impulsos quando são transferidos para o sistema internacional.

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reconhecida nos países germânicos governados por príncipes que se renderam à Reforma e se

uniram à França em meados de 1620. Sua dissidência em relação ao catolicismo imposto pelo

Sacro Império Romano foi fator decisivo para que houvesse degeneração da elite

internacional representada pelos Habsburgos.

É interessante apontar que, enquanto a ameaça Habsburga era ainda incipiente, o

Estado francês não fez questão de se posicionar como elite no sistema internacional,

integrando a priori a classe dominante. Porém, a partir do momento em que é percebida a

ameaça, surge a necessidade de reação por parte do Estado francês, que o faz sobre comando

de uma entidade competente, representada por Richelieu. Assim, a entrada da França na

Guerra dos Trinta Anos acentua significativamente o processo de degeneração já iniciado pela

perda de legitimidade do Sacro Império, culminando – após o fim da guerra – na destituição

completa do Império Habsburgo como elite.

Dessa forma, a Paz de Westfália se torna um ponto de referência do processo histórico

cíclico apresentado por Mosca e Pareto, simbolizando a decadência de uma elite e a ascensão

de outra. Isto é, terminada a supremacia Habsburga, uma nova ordem internacional é

estabelecida e outra elite se faz presente no sistema internacional – neste caso, como indica

Carneiro (2006, p. 187), representada inicialmente por França e Holanda.

O ano de 1648 é um símbolo em termos de resultados obtidos por Richelieu em

benefício da França, mas, principalmente, da efemeridade inerente a qualquer elite. Sendo sua

existência uma condição imutável, como afirmado por Pareto e Mosca (1939, p. 66), assim o

será seu processo de ascensão e queda. A condição anárquica do sistema internacional,

prevista pelo paradigma realista, apenas perpetua tal assertiva, na medida em que supõe a

existência de um conflito latente, que só tende a resultar na supremacia de um Estado, ou

grupo destes, sobre outro.

Por fim, é necessário que se faça um questionamento pertinente em relação à elite

internacional representada por Richelieu. Tendo sido apresentadas ambas suas performances,

tanto como elite dominante nacional e internacional, cabe ponderar se, para que seja

caracterizado como elite internacional, o indivíduo, necessariamente, precisa fazer – ou já ter

feito – parte da elite ou da classe dominante nacionais.

Assim sendo, é preciso ressaltar que há diferenças entre atuar como plenipotenciário

do Estado ou assumir por completo as competências relativas ao mesmo. A começar pela

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primeira forma de exercício de autoridade, aquele que apenas representa o Estado como ator

internacional temporariamente, na maioria das vezes, obedece a ordens do chefe de Estado, o

que não necessariamente torna a participação em uma classe dominante nacional uma

condição sine qua non para que exerça tais funções. Isso porque tal indivíduo se encontra,

ainda, em condição instrumental dentro de seu segmento profissional, fazendo parte de um

contexto muito mais complexo, na qual não se situa em condição superior em relação àqueles

que lhe incumbiram de tal tarefa.

Porém, quando se trata do exemplo do Cardeal de Richelieu, a condição de classe ou

elite dominante é imperativa para que se estabeleça, mais tarde, como elite internacional. Isto

é, não há forma viável de estabelecimento como elite internacional se, dentro do aparato

burocrático do Estado, não possui autoridade nem legitimidade – que foram garantidas, a

princípio, pelo cargo de primeiro-ministro. Assim, mesmo atuando em termos de força

transnacional, Richelieu assume as funções de Estado71

para que manipule as forças adversas

que ameaçam a integridade estatal francesa. Tais funções compreendem desde a diplomacia

executada – com os príncipes protestantes – até termos de política externa, como a estratégia,

o cálculo de poder e a ação com fins de eliminar a ameaça Habsburga.

Finalmente, pode-se concluir que houve, de fato, relações características à dicotomia

dominantes versus dominados durante o período da Guerra dos Trinta Anos. A França, como

chefe entre os líderes, sai vitoriosa do conflito, não em termos de expansão territorial ou de

maximização de poder, mas sim pela manutenção de sua soberania. O interesse último do

Estado, definido pelo paradigma realista como a segurança nacional, é alcançado ao fim da

guerra, assegurando ainda, após a Paz de Westfália, que tal condição se mantenha por um

longo período de tempo, respaldada pelo equilíbrio de poder.

71

É importante destacar que, agindo apenas como força transnacional, Richelieu não necessariamente precisaria

manter vínculos com o Estado. Porém, como é um indivíduo, seu método de ação se dá da mesma forma. No

entanto, como parte da classe dominante, atuando como primeiro-ministro, Richelieu torna possível que assuma

a forma de Estado, haja vista o acesso irrestrito que possuía em todos os segmentos do mesmo.

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CONCLUSÃO

Desde os primórdios do Estado moderno, o sistema internacional contava com um

elemento ainda mais secular: a elite. A elite internacional era o fator primeiro resultante na

hierarquia característica das relações internacionais do século XVII. Esta, somada à condição

anárquica das relações entre Estados, pressupunha iminência ainda maior de conflito, haja

vista a falta de clareza dos limites territoriais e a lacuna deixada pela falta de autoridade ou

instituição reguladora das relações interestatais.

Sendo assim, tanto o anseio pela manutenção da segurança quanto da integridade

soberana estatal tornaram-se problemáticas que atingiam diretamente os Estados que não

faziam parte da elite dominante internacional. No caso dos países protestantes, foi-lhes

usurpado o direito de livre culto pelo Império Habsburgo e, no caso da França, o cerco

formado em torno de suas fronteiras ameaçava tanto sua condição soberana quanto sua

autonomia. Logo, a Guerra dos Trinta Anos, embora comumente referenciada para fins de

análise do conflito religioso, é um exemplo clássico da história das relações internacionais

quando se trata da garantia dos interesses de Estado. Ainda que o período compreendido

historicamente se estenda de 1618 a 1648, é seguro afirmar que, em última análise, a guerra

foi apenas o refluxo de uma atmosfera conflituosa que permeou o continente europeu por todo

o século XVI e XVII.

Dessa forma, o conflito que se inicia amparado na questão religiosa, passa a atingir

outros níveis de profundidade política a partir do século XVII. As intenções da constituição de

uma unidade católica baseada na Contrarreforma do Sacro Imperador Romano-Germânico

Fernando II de Habsburgo, acentuam significativamente a condição de risco em que se

encontrava o Estado francês. A ameaça constante trouxe à tona o impasse entre manter os

princípios católicos ou renunciá-los em favor da segurança.

Daí a importância da figura do Cardeal de Richelieu para a política francesa. O cálculo

de poder que precede sua política externa como primeiro-ministro é um ponto de ruptura dos

paradigmas estabelecidos até então. As duas facetas da política da França seguiam por

caminhos contrários quando analisados os âmbitos interno e o externo, atendendo apenas o

interesse do Estado. Ou seja, Richelieu não se trata de uma figura política comum, mas sim de

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um indivíduo mobilizador do sistema internacional, que assume novas formas quando no

controle da estratégia de guerra. Suas contribuições para a política mundial possuem valor

conceitual e prático até os dias atuais.

Muitos hoje podem descartar a marca de liderança de Richelieu classificando-a

como arcaica, algo com pouca relevância para o processo bem mais pesado da

política moderna, com seus exércitos de funcionários burocráticos que analisam

todas as opções políticas em detalhes entorpecentes. No entanto, desde Munique até

a crise dos mísseis em Cuba à proliferação nuclear, a história recente está repleta de

exemplos de política internacional que se assemelham a nada mais do que um jogo

de pôquer. E não foi a invasão do Iraque em 2003 muito mais um jogo, com a

administração Bush ter o seu próprio poder, não inteiramente diferente de Richelieu

por trás do trono, manipulando um jovem líder inexperiente lutando para sair da

sombra de seu pai poderoso? Neste sentido, as habilidades de sobrevivência que os

políticos desenvolvem em sua ascensão ao poder podem servir-lhes

surpreendentemente bem quando eles assumem a responsabilidade por assuntos

internacionais, e Richelieu pode oferecer um modelo de tipos. (BELL, 2012,

tradução nossa)72

Assim, quando integrada aos princípios básicos da Teoria das Elites, o desempenho

político de Richelieu configura uma nova dimensão à teoria. A existência de uma classe

dominante torna-se clara também no sistema internacional, porém não somente no que

concerne aos Estados, mas também ao indivíduo que opera seus mecanismos através da

política externa. Portanto, a fim de analisar o fenômeno da elite no sistema internacional, foi

preciso compreender individualmente os três elementos principais envolvidos na investigação:

o Cardeal de Richelieu, a Guerra dos Trinta Anos e a Teoria das Elites.

No primeiro capítulo foram apresentados os principais aspectos da biografia de

Richelieu. Nascido em 1585, sob o nome de Armand Jean du Plessis, o futuro cardeal viveu

em um modelo de sociedade onde a ascensão profissional e a linhagem familiar estavam

diretamente ligadas. Logo, muitas das oportunidades que se apresentaram ao longo de sua

formação, assim como a boa relação de sua família com a Corte, eram resultado de gerações

de serviços prestados e alianças formadas (BLUCHE, 2005).

72

“Many today might dismiss Richelieu’s brand of leadership as archaic, something with little relevance to the

far more ponderous process of modern statecraft, with its armies of bureaucratic functionaries analyzing all

policy options in mind-numbing detail. Yet from Munich to the Cuban missile crisis to nuclear proliferation,

recent history is replete with instances of international politics resembling nothing so much as a poker game.

And was not the 2003 invasion of Iraq very much a gamble, with the Bush administration having its own, not-

entirely-un-Richelieu-like power behind the throne, manipulating an inexperienced young leader struggling to

emerge from the shadow of his powerful parent? In this sense, the survival skills that politicians develop in their

rise to power at home may serve them surprisingly well when they take on responsibility for international affairs,

and Richelieu may offer a model of sorts.” (BELL, 2012)

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O princípio clássico de alianças, utilizado historicamente tanto pela família du Plessis

quanto pelo Império Habsburgo, teve continuidade ao longo da ascensão profissional do

cardeal e foi fator imperativo para que participasse do círculo de poder da Corte francesa. Da

mesma forma, a partir do momento em que se estabelece como ator influente na classe

dominante, Richelieu maneja inúmeros elementos complicadores que dificultavam seu

acúmulo de influência.

Sendo assim, a apresentação das trajetórias pessoal e profissional de Richelieu, tem

por objetivo demonstrar o amadurecimento de sua habilidade estratégica durante a ascensão à

elite. A escalada ao poder demandou que eliminasse ou, ao menos, competisse com o

favoritismo direcionado de Maria de Médicis a Concino Concini e Leonora Galigai, e do rei

Luís XIII ao Duque de Luynes (BELL, 2012). O sucesso em relação a estes obstáculos,

articulado pela instrumentalização da Rainha-Mãe a fim de garantir posição privilegiada e

confiança de Luís XIII, é o embrião das proporções que a habilidade de manipulação do

Cardeal tomaria durante a Guerra dos Trinta Anos.

O conflito que ocorre entre 1618 e 1648 é tratado no segundo capítulo, juntamente

com seus antecedentes, que datam do ano de 1519. É neste período que antecede a hostilidade

de fato, com a duração de quase dois séculos, que se delineia a estrutura belicosa que eclodiria

em um dos mais violentos conflitos da história das relações internacionais:

Durante séculos, a pior guerra da Europa sempre foi lembrada como tendo sido a

Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Alguns historiadores, como Franz Mehring,

chegavam a afirmar que “semelhante destruição nunca foi suportada por nenhum

grande povo civilizado. A Alemanha foi conduzida a um retrocesso de duzentos

anos em seu desenvolvimento”. O número de vítimas dessa catástrofe nunca pôde

ser calculado com precisão, mas as estimativas de perda foram desde metade da

população da Europa Central até as atuais, mais ponderadas, de uma quinta parte, ou

seja, quase 4 milhões de mortos (um retrocesso de 20 milhões para cerca de 16

milhões de habitantes), expressando um grau de morticínio e destruição que só viria

a ser superado com as duas guerras mundiais do século XX. (CARNEIRO, 2006, p.

163)

Além dos antecedentes da guerra, o capítulo divide a mesma em duas fases: a guerra

encoberta e a guerra aberta. A divisão clássica apresentada por Bluche (2012) e Carneiro

(2006) faz distinção entre as duas estratégias de política externa empregadas por Richelieu a

partir da década de 1620.

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A primeira fase dura até 1635 e não envolve participação da França nos combates

travados entre os Estados protestantes e Fernando II, além de se restringir apenas a subsidiar

os príncipes rebeldes para que sigam lutando até a exaustão do Império Habsburgo. Porém, o

apoio ao protestantismo era meramente um instrumento para que se materializasse a intenção

francesa de levar o Sacro Imperador à ruína, tendo em vista a supressão violenta do

movimento protestante dentro das fronteiras da França (KISSINGER, 2012). É, então,

nesses primeiros seis anos da participação francesa na Guerra que se torna visível a

prevalência do interesse nacional sobre o dogma religioso, configurando a forma mais

autêntica da raison d’État, simbolizada no massacre resultante do cerco de La Rochelle.

Já a segunda fase apresenta o momento decisivo em que Richelieu percebe o

enfraquecimento significativo do Império Habsburgo, porém, não suficiente para que cesse a

guerra e este não tenha mais capacidade de se reerguer. Uma estimativa de poder errada

poderia ter anulado todo o esforço empreendido na guerra encoberta, porém, não é o que se

verifica a partir de 1635:

A princípio, a jogada parecia ter dado terrivelmente errado. Forças espanholas

invadiram províncias do norte da França no verão de 1636, capturando várias

fortalezas estratégicas, vindo dentro de um dia de viagem da capital. Multidões em

pânico inundou as ruas de Paris chamada para a cabeça de Richelieu . O cardeal caiu

em um profundo desespero. No entanto, François -Joseph le Clerc du Tremblay, que

ficou ao lado de Richelieu durante a maior parte de sua carreira, conseguiu acordá-lo

e recuperar a calma , o ministro -chefe da França saiu para a Pont Neuf para a

mesma coisa local onde o seu antecessor, Concini , tinha sido massacrado duas

décadas antes . Admirando a coragem, a multidão aplaudiu o homem que tinha

acabado de xingar. Enquanto isso, os exércitos franceses mantiveram-se detidos e,

em seguida, ganharam uma trégua quando os espanhóis interromperam sua ofensiva

para repelir um ataque dos holandeses. Ao longo dos próximos seis anos - os últimos

seis da vida de Richelieu – a França apreendeu grandes novos territórios e se

estabeleceu como uma potência líder na Europa. (BELL, 2012, tradução nossa)73

73

“At first, the gambit seemed to go terribly wrong. Spanish forces invaded France’s northern provinces in the

summer of 1636, capturing several strategic fortresses and coming within a day’s ride of the capital. Panicky

crowds flooded the streets of Paris calling for Richelieu’s head. The cardinal fell into a deep despair. Yet

François-Joseph le Clerc du Tremblay, the so-called Gray Eminence, who stayed at Richelieu’s side throughout

much of his career, managed to rouse him, and recovering his nerve, France’s chief minister walked out onto the

Pont Neuf to much the same spot where his predecessor, Concini, had been butchered two decades earlier.

Admiring his nerve, the crowd cheered the man it had just been cursing. Meanwhile, the French armies held,

then gained a respite when the Spanish broke off their offensive to rebuff an attack from the Dutch. Over the

next six years -- the last six years of Richelieu’s life -- France seized large new territories and established itself

as a leading power in Europe.” (BELL, 2012)

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A partir de então, não houve mais nenhum contratempo em relação ao sucesso da

França. Este foi assegurado mesmo depois da morte de Richelieu, em 1642. A ordem por ele

estabelecida prosseguiu até que fossem fechados os acordos da Paz de Westfália, em 1648.

Portanto, finda a Guerra dos Trinta Anos, o que se verifica no sistema internacional é

uma nova ordem estabelecida e fundamentada através da garantia do interesse de Estado, seja

este relativo ao credo ou a sua soberania. A queda do Império Habsburgo foi resultado de uma

condição cíclica que tende ao equilíbrio de poder, configurando a destituição da antiga elite

dominante do sistema internacional e inaugurando a ascensão de outra.

Finalmente, o último capítulo tem como objetivo resolver o problema proposto na

introdução. Isto é, a partir da análise feita da biografia do Cardeal de Richelieu, bem como sua

atuação durante a Guerra dos Trinta Anos, concluir se é possível propor a existência de uma

elite internacional e, assim, classificá-lo como tal. Para tanto, o terceiro capítulo busca

apresentar rapidamente o surgimento da teoria e identificar os aspectos fundamentais da

mesma nas contribuições de seus principais autores: Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, a fim

de identificá-las em Richelieu e na política externa que executa enquanto primeiro-ministro.

Assim, para que se inicie a resolução da problemática proposta, deve-se estabelecer o

contexto do ambiente no qual a teoria será analisada. Para este fim, foram apropriados os

preceitos básicos da teoria realista de relações internacionais, como a anarquia, a hierarquia e

a iminência de conflito. Essa configuração, embora revisada na atualidade, pode ser aplicada

em sua forma original no sistema internacional dos séculos XVI e XVII, em virtude da forma

primitiva em que o mesmo se encontra durante o período analisado.

Prosseguindo, então, para a Teoria das Elites, devem ser contemplados os princípios

basilares desta, propostos por Mosca e Pareto. Ambos pressupõem a existência da dicotomia

entre dominantes e dominados - uma condição desigual -, visível na hierarquia entre os

agentes mais fortes – Império Habsburgo e França – e nos mais débeis – Estados protestantes.

Da mesma forma, a instrumentalização dos mais fracos pode ser identificada no subsídio

provido pela França aos príncipes que se rebelaram contra o Sacro Império, a fim de

mobilizá-los em favor de seu interesse.

No que tange a classe dominante, esta é composta pelos Estados que detém maior

poder no sistema internacional, porém, não é uma classe homogênea. Como mencionado

anteriormente, a classificação de Pareto é perfeitamente aplicável a essa questão. Isto é, à

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classe dominante de Estados pertencem aqueles que possuem posição de importância no

cenário internacional, todavia não desempenham uma política completamente autônoma,

encontrando-se à mercê de uma classe superior a qual sustentam. Esta é a elite internacional,

composta por um ou mais Estados que possuem monopólio da política internacional, regendo

a partir da garantia de seu próprio interesse.

Porém, o diferencial está no agente que executa as funções de elite nesse contexto. Na

maioria das vezes, o Estado conta com um conjunto de indivíduos para que se execute sua

política externa, no entanto, no caso da França, quem faz as vezes deste conjunto é Richelieu.

O Cardeal assume plenos poderes de Estado, direcionando a diplomacia, a política externa e a

estratégia militar por conta própria, resultando na derrota do Império Habsburgo.

Finalmente, após a vitória francesa na Guerra dos Trinta Anos e o sucesso da

campanha para impedir a violação de seu território, iniciam-se os Tratados de Westfália.

Muito mais do que o fim da dominação Habsburga, a Paz de Westfália significa o

estabelecimento de uma nova ordem internacional, fundada na segurança coletiva e no

equilíbrio de poder. Tal condição não se funda somente na balança do poder, mas na ascensão

de uma nova elite regente que mantenha a saúde do organismo internacional, da mesma forma

que mantém salutar o organismo social, como afirmado por Pareto.

Entretanto, mesmo que tenha sido concluída a possibilidade de aplicação empírica da

Teoria das Elites no sistema internacional, é importante destacar em que termos isso foi

executado. Em primeiro lugar, a análise teórica ficou limitada apenas aos aspectos mais

básicos da teoria, haja vista a extensão dos estudos elaborados pelos autores aqui

compreendidos. Nessa questão, também não se pode deixar de mencionar a barreira

linguística74

, em virtude de muitos dos textos terem sido publicados em italiano ou em

francês, e a dificuldade de acesso a muitas das obras mais antigas.

Em segundo lugar, ainda em relação à extensão da pesquisa de Mosca e Pareto, o

aspecto na qual se fundamenta a elite internacional proposta, baseia-se, em sua maioria senão

exclusivamente, no âmbito político, não mencionando questões econômicas ou sociais dos

agentes envolvidos. Para um panorama geral, da maneira que foi executado este trabalho, essa

limitação não se mostra prejudicial, mas certamente deixa algumas lacunas que exigiriam uma

74

Esse aspecto também prejudicou, em parte, o acesso a muitas obras clássicas sobre Richelieu e a Guerra dos

Trinta Anos, publicados, na maioria das vezes, em francês ou alemão.

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pesquisa muito mais extensa, tanto em relação às questões históricas quanto no que concerne

a Teoria das Elites.

Ainda assim, a despeito das limitações da pesquisa foi possível estabelecer duas

assertivas: a existência de uma elite internacional e a capacidade de um indivíduo de se

manifestar com plenos poderes de Estado e manipular outros em favor de assegurar seu

interesse.

Destarte, o Cardeal de Richelieu, durante toda sua existência, jamais correu riscos de

ser acometido pela mediocridade, o que sempre lhe rendeu lugar na elite dominante, seja esta

doméstica ou internacional. O seu desempenho como primeiro-ministro de Luís XIII tem

valor histórico e analítico não somente pela estratégia notável, mas sim pelas contribuições à

teoria política e a quebra de paradigmas nas relações internacionais através da raison d’État,

preconizando a existência de uma classe de indivíduos rara na realidade política: a elite

internacional.

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ANEXOS

ANEXO A – Personalidades históricas

Maria de Médicis por Peter von Rubens

Fonte: NNDB

Disponível em: http://www.nndb.com/people/178/000092899/

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Luís XIII

Fonte: NNDB

Disponível em: http://www.nndb.com/people/404/000086146/

Concino Concini por Denis Lecocq

Fonte: artchive.com

Disponível em: http://www.artchive.com/web_gallery/D/Denis-Lecocq/Concino-Concini-1569-1617-Marquis-

of-Ancre.html

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Leonora Galigai

Fonte: Academic Dictionaries and Encyclopedias

Disponpivel em http://de.academic.ru/dic.nsf/dewiki/841876

Ana da Áustria

Fonte: louvre.fr

Disponível em: http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=5653&langue=en

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Sacro Imperador Romano-Germânico Fernando II

Fonte: Kunst Historisches Museum Wien

Disponível em: http://bilddatenbank.khm.at/viewArtefact?id=2366

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Anexo B – Acontecimentos históricos

Casamento de Luís XIII com Ana da Áustria em 1612

Fonte: reprodart.com

Disponível em: http://www.reprodart.com/kunst/jean_chalette/marriage_louis_xiii_1601_63_k_hi.jpg

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O cerco de La Rochelle por Henri Motte

Fonte:Fine Art America

Disponível em: http://fineartamerica.com/featured/richelieu-henri-paul-motte.html