ricoeur foucault e os mestres da suspeita marcos von zuben.pdf

9
34 l Trilhas Filosóficas Ricoeur, Foucault e os mestres da suspeita: em torno da hermenêutica e do sujeito Marcos de Camargo von Zuben 1 Resumo Este texto analisa os comentários feitos nos anos sessenta por Michel Foucault e Paul Ricoeur sobre o significado das obras de Nietzsche, Freud e Marx no que se refere ao papel desempenhado por esses pensadores quanto aos problemas relativos à hermenêutica mo- derna. É sabido que entre esses dois pensadores franceses não se estabeleceu um diálogo e uma interlocução direta, porém verificam-se semelhanças em suas análises que podem contribuir para a compreensão das mudanças realizadas por Nietzsche, Freud e Marx no pensamento ocidental. Assim, pretende-se apresentar como os autores vêem o papel desses “mestres da suspeita” em relação à noção moderna de hermenêutica e seus desdobramentos sobre a questão do sujeito, principais temas abordados por ambos. Palavras-chave: Foucault, Ricoeur, hermenêutica, sujeito Abstract This text analyzes the comments made in the sixties by Michel Foucault and Paul Ricoeur on the role Nietzsche, Freud and Marx’s works played in the studies on modern hermeneutics. It is known that these two French thinkers didn’t establish a direct dialogue. however, similarities are found in their analyses that can contribute to the understanding of the changes in western thought brought about by Nietzsche, Freud and Marx’s ideas. Thus, it intends to present how the authors see the role the “masters of suspicion” played in the modern concept of hermeneutics and the development of their ideas on the subject “subject”, the main themes broached by both. Keywords: Foucault, Ricoeur, hermeneutics, subject. Introdução Em 1964, Foucault apresenta um colóquio com o título “Nietzsche, Freud, Marx” (Fou- cault, 2000), tratando ali das “técnicas de interpretação” nesses pensadores, ou seja, dos problemas relativos à hermenêutica moderna. Em 1969, Ricoeur publica um livro sobre Freud intitulado “Da Interpretação. Ensaio sobre Freud” (Ricoeur, 1977) onde também, de forma muito parecida com a de Foucault, irá se referir a Marx, Nietzsche e Freud como os mestres da suspeita. É sabido que entre esses dois pensadores franceses não se estabeleceu 1 Professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, mestre em história pela Universidade de Brasília – UnB e doutorando em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Upload: hudson-ralf-martins

Post on 16-Nov-2015

8 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

  • 34 l Trilhas Filosficas

    Ricoeur, Foucault e os mestres da suspeita: em torno da hermenutica e do sujeito

    Marcos de Camargo von Zuben1

    ResumoEste texto analisa os comentrios feitos nos anos sessenta por Michel Foucault e Paul

    Ricoeur sobre o significado das obras de Nietzsche, Freud e Marx no que se refere ao papel

    desempenhado por esses pensadores quanto aos problemas relativos hermenutica mo-

    derna. sabido que entre esses dois pensadores franceses no se estabeleceu um dilogo

    e uma interlocuo direta, porm verificam-se semelhanas em suas anlises que podem

    contribuir para a compreenso das mudanas realizadas por Nietzsche, Freud e Marx no

    pensamento ocidental. Assim, pretende-se apresentar como os autores vem o papel desses

    mestres da suspeita em relao noo moderna de hermenutica e seus desdobramentos

    sobre a questo do sujeito, principais temas abordados por ambos.Palavras-chave: Foucault, Ricoeur, hermenutica, sujeito

    AbstractThis text analyzes the comments made in the sixties by Michel Foucault and Paul

    Ricoeur on the role Nietzsche, Freud and Marxs works played in the studies on modern

    hermeneutics. It is known that these two French thinkers didnt establish a direct dialogue.

    however, similarities are found in their analyses that can contribute to the understanding

    of the changes in western thought brought about by Nietzsche, Freud and Marxs ideas.

    Thus, it intends to present how the authors see the role the masters of suspicion played

    in the modern concept of hermeneutics and the development of their ideas on the subject

    subject, the main themes broached by both.

    Keywords: Foucault, Ricoeur, hermeneutics, subject.

    Introduo

    Em 1964, Foucault apresenta um colquio com o ttulo Nietzsche, Freud, Marx (Fou-

    cault, 2000), tratando ali das tcnicas de interpretao nesses pensadores, ou seja, dos

    problemas relativos hermenutica moderna. Em 1969, Ricoeur publica um livro sobre

    Freud intitulado Da Interpretao. Ensaio sobre Freud (Ricoeur, 1977) onde tambm, de

    forma muito parecida com a de Foucault, ir se referir a Marx, Nietzsche e Freud como os

    mestres da suspeita. sabido que entre esses dois pensadores franceses no se estabeleceu

    1 Professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UERN, mestre em histria pela Universidade de Braslia UnB e doutorando em filosofia pela Universidade Estadual de

    Campinas Unicamp.

  • Ano 1 N 1 Jan/Jun 2008 l 35

    um dilogo e uma interlocuo direta, porm, referncias a Foucault foram feitas por

    Ricoeur em dois de seus ltimos livros e em uma entrevista. notrio, ao mesmo tempo,

    que Ricoeur considerado por muitos como o grande representante da hermenutica mo-

    derna francesa, ao passo que Foucault sempre procurou se distanciar de uma classificao estanque de seu pensamento, no obstante o seu reconhecimento das influncias recebidas

    por uma tradio filosfica diversa. Assim, torna-se instigante procurar compreender o tipo de aproximao que ambos

    realizaram com respeito ao papel desempenhado por esses trs pensadores na constituio

    de suas prprias perspectivas. Pretendemos, assim, apresentar como os autores vem o papel desses mestres da suspei-

    ta em relao noo moderna de hermenutica e seus desdobramentos sobre a questo do

    sujeito, principais temas abordados por ambos nos referidos textos.

    1. A conscincia como problema, os mestres da suspeita.

    Segundo Ricoeur, a partir de Nietzsche, Marx e Freud, a conscincia passa a ser conside-

    rada como conscincia falsa, isso querendo dizer que, a partir deles, estabeleceu-se a crtica

    idia cartesiana de que o sentido e a conscincia do sentido coincidem. Eles Instauraram a dvida sobre os poderes da conscincia em apreender o sentido do mundo e de si mesma de

    maneira evidente, de maneira clara e distinta. Segundo Ricoeur, o cogito cartesiano penso,

    logo existo, a auto-apreenso imediata do sujeito foi posta em questo pela descoberta do

    inconsciente em Freud, do ser social em Marx e da vontade de poder em Nietzsche.

    A certeza da conscincia imediata de si torna-se problemtica, tornando ela prpria o

    enigma a ser decifrado. A forma pela qual esse enigma se constitui assume formas variadas,

    correspondentes ao processo de formao dessa conscincia falsa: a ideologia em Marx,

    iluso em Freud, vontade de verdade em Nietzsche.

    Os mestres da suspeita no so mestres do ceticismo. Eles iro procurar outra via de

    acesso conscincia, um trabalho de interpretao mediado pelos signos e pelos smbolos a

    partir dos quais a prpria conscincia se manifesta. Assim, de maneiras diferentes entre si, os mestres da suspeita se colocaram a tarefa de estabelecer um mtodo de decifrao que tomou a forma de uma teoria das ideologias em Marx, uma teoria dos ideais e das iluses

    em Freud e uma genealogia da moral em Nietzsche.

    Segundo Ricoeur, a partir deles, a compreenso se torna uma hermenutica: doravante,

    procurar o sentido no significa mais soletrar a conscincia do sentido, mas decifrar suas

    expresses (Ricoeur, 1977, p.37/38) e ainda, segundo Foucault Marx, Nietzsche e Freud

    nos pe diante de uma nova possibilidade de interpretaes: eles fundaram novamente a possibilidade de uma hermenutica (Foucault, 2000, p. 42).

    Mas qual foi essa nova hermenutica que emergiu a partir desses mestres da suspeita?

    Podemos dizer que com eles e a partir deles, a hermenutica deixa de ser exclusivamente

    uma tcnica de interpretao nos termos de uma exegese bblica ou jurdica, ou mesmo

    uma metodologia das cincias humanas, nos termos pensados por Dilthey, ela passa a ser

  • 36 l Trilhas Filosficas

    muito mais, essas tcnicas de interpretao nos implicam, visto que ns mesmos, intrpre-

    tes, somos levados a nos interpretar por essas tcnicas (Foucault, 2000, p. 43). O cogito a

    partir deles est ferido, e a hermenutica assume, assim, um carter constitutivo desse ser

    do homem que existe como compreenso, como interpretao do mundo que , ao mesmo

    tempo, interpretao de si. A interpretao se torna, como nos diz Foucault, um eterno jogo

    de espelhos, e assume um carter existencial e ontolgico para o homem.

    No h, portanto, uma hermenutica geral, um cnon universal para a exegese, mas teo-

    rias opostas e especficas que possam dar conta de dimenses existenciais precisas. Segundo

    Ricoeur, a partir de Nietzsche o campo hermenutico est rompido (Ricoeur, 1977, p.32)

    Enquanto decifrao, a hermenutica moderna pe em questo o prprio estatuto da

    linguagem e dos signos lingsticos, que perdem seu valor de simples meio na relao do

    homem com as coisas e consigo mesmo, seu sentido referencial imediato, passando a ser

    ela prpria o enigma fundamental a ser decifrado por uma hermenutica da suspeita. A

    linguagem e os signos passam a ser os elementos constitutivos dessa mediao necessria

    prpria compreenso. Segundo Foucault, Marx, Nietzsche e Freud no deram um sentido

    novo a coisas que no tinham sentido... na realidade, eles mudaram a natureza do signo e

    modificaram a maneira pela qual o signo em geral podia ser interpretado (Foucault, 2000,

    p. 43). Os signos deixam de ser significantes que se referem a um significado, como uma

    visibilidade da superfcie que indica as coisas mesmas, a realidade das coisas, mas uma dobra constitutiva das prprias coisas.

    assim que o desejo em Freud s pode ser compreendido como um processo de inter-pretao, segundo Ricoeur, no o sonho sonhado que pode ser interpretado, mas o texto

    do relato do sonho... no o desejo enquanto tal que est no centro da anlise, mas sua

    linguagem (Ricoeur, 1977, p. 17) e tambm assim que devemos compreender a posio

    de Nietzsche sobre o carter tropolgico de toda linguagem, bem como a critica de Marx

    ao fetiche da moeda e da mercadoria na sociedade capitalista.

    Outra caracterstica importante da hermenutica moderna: dado esse carter interpretante

    de toda linguagem, a hermenutica torna-se tarefa infinita, no h ponto de partida nem ponto

    de chegada, mas um processo constante de interpretao, onde os signos remetem-se uns aos

    outros em uma abertura irredutvel, o inacabado da interpretao segundo Foucault que

    pode ser percebido, na psicanlise, no carter interminvel da anlise em funo do fenme-no da transferncia que torna sempre a retomar-se, e igualmente a noo de genealogia em

    Nietzsche, que no origem ou gnese, mas comeo representado por uma interpretao que

    se imps sobre as demais como expresso de uma vontade de poder, ou mesmo em Marx, onde podemos pensar esse aspecto atravs da noo de prxis como processo de compreenso imanente s prticas sociais transformadoras, elas mesmas interminveis.

    Assim, se a interpretao nunca acaba porque nada h a interpretar, nada h de ab-

    solutamente primeiro a interpretar, pois no fundo, tudo j interpretao; cada signo

    nele mesmo no a coisa que se oferece interpretao, mas interpretao de outros signos

    (Foucault, 2000, p.47). Como nos diz Ricoeur, o smbolo d a pensar, ou seja tudo j est

    dito em enigma (Ricoeur, 1960, p. 324). Do fato de que prevaleam determinadas inter-

  • Ano 1 N 1 Jan/Jun 2008 l 37

    pretaes historicamente, no significa que elas falem de algo diferente do que dos prprios

    signos, o que Freud revela so os fantasmas, com sua carga de angstia, ou seja, um ncleo

    que j ele prprio, em seu prprio ser, uma interpretao. A anorexia, por exemplo, no remete ao desmame, como o significante remeteria ao significado, mas a anorexia como

    signo, sintoma a interpretar, remete aos fantasmas do seio materno, que j em si mesmo

    uma interpretao, que j em si mesmo um corpo falante (Foucault, 2000, p. 47). Para

    Nietzsche, as palavras no indicam um significado, impe uma interpretao.

    Podemos ento dizer que h uma primazia da interpretao em relao ao signo como

    um aspecto decisivo da hermenutica moderna, na medida em que o signo j uma inter-

    pretao que no se d como tal, os signos so interpretaes que tentam se justificar, e no

    o contrrio (Foucault, 2000, p. 48). Assim funciona a moeda, para Marx, os sintomas, para

    Freud e as palavras para Nietzsche e por esse encobrimento fundamental que esses signos se

    do como iluso para a conscincia imediata que no se faz hermenutica. aqui que podemos

    compreender o problema semntico posto por toda hermenutica, que, segundo Ricoeur, o

    que se encontra em toda parte, da exegese psicanlise, certa arquitetura do sentido, que

    podemos chamar duplo sentido ou mltiplo sentido, cujo papel consiste, cada vez, embora

    de modo diferente, em mostrar ocultando (Ricoeur, 1979, p. 14). Para ele, pela semntica

    das expresses multvocas que deve realizar-se a anlise da linguagem, atravs de um trabalho

    do pensamento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os nveis de significao implicados na significao literal. Para os trs mestres da suspeita, a

    categoria fundamental da conscincia a relao oculto-mostrado ou simulado-mostrado.

    Um ltimo e decisivo aspecto em nossas consideraes sobre a hermenutica moderna.

    Tanto em Foucault quanto em Ricoeur, a interpretao sempre um ato que implica uma reflexo de si mesma, ou seja, a interpretao sempre se confronta com a obrigao constitutiva

    de interpretar a si mesma, infinitamente, de sempre se retomar, como nos diz Ricoeur, toda

    hermenutica explcita ou implicitamente, compreenso de si mesma mediante a compreen-

    so do outro (Ricoeur, 1979, p. 18). Ela estabelece um elo necessrio entre a compreenso dos

    signos e a compreenso de si. Isso significa dizer que retomamos aqui o ponto inicial da crtica

    dos mestres da suspeita, aquela em relao conscincia, na medida em que a conseqncia

    desse carter reflexivo da hermenutica retomar-se a si mesma atravs da pergunta quem?

    Segundo Foucault, no se interpreta o que h no significado, mas no fundo, quem colocou a

    interpretao (Foucault, 2000, p. 49). Isso significa que o problema do intrprete se recoloca,

    no mais em termos de uma conscincia falsa, mas como problema, no mais o problema do que a conscincia, de que coisa essa a conscincia, mas o problema do sujeito, do quem

    realizou a interpretao, no mais o problema de uma substncia, mas o problema de uma

    ao, uma ao interpretativa que infinitamente se recoloca como problema. Ricoeur nos diz, fazendo lembrar hegel, que a existncia no se torna um si... seno

    apropriando-se desse sentido que reside inicialmente fora, em obras, instituies, monu-

    mentos da cultura, onde a vida do esprito objetivada (Ricoeur, 1979, p. 23). Assim, refletir

    e interpretar os smbolos so um nico e mesmo movimento. Mas, na medida em que esse

    movimento da reflexo, intrnseco ao processo hermenutico, um movimento sem comeo

  • 38 l Trilhas Filosficas

    e sem fim, Ricoeur vai compreend-lo como a apropriao de nosso esforo por existir e de

    nosso desejo de ser atravs das obras que testemunham esse esforo e esse desejo (Ricoeur,

    1979, p. 19). Ricoeur substitui, assim, a problemtica da filosofia do sujeito como conscincia,

    por aquela do sujeito como esforo e como desejo, a partir da qual a origem do sentido e da

    existncia no mais a conscincia, mas o desejo e a vida. Ricoeur v assim o trabalho da filosofia da reflexo no como uma teoria, mas como

    uma tarefa, uma tarefa crtica de reapropriao de si mediada pelo sentido imediato dos smbolos e dos textos, assim como o fizeram os mestres da suspeita.

    Tambm Foucault compreendeu a filosofia como tarefa crtica do pensamento, como ontologia do presente, como ontologia histrica de ns mesmos, que buscasse responder a

    questo do sujeito: quem somos ns hoje? Uma filosofia como crtica da cultura. Foi o que

    buscou fazer atravs de uma arqueologia do saber e de uma genealogia do poder.

    2. O problema do sujeito

    A retomada da problemtica do sujeito em novas bases encaminhou as reflexes de

    ambos os filsofos por caminhos diferenciados, no obstante essas muitas aproximaes

    que procuramos fazer quanto compreenso da hermenutica moderna. A partir dos

    anos setenta, Ricoeur buscou abordar o problema do sujeito tomando como centro de suas anlises o aspecto narrativo da experincia temporal do homem, buscando aproximar

    as experincias das narrativas de fico com as narrativas histricas, que ele chamar de

    hermenutica do si. Foucault, a partir do mesmo perodo, aprofundar suas investigaes

    genealgicas associando-as compreenso do sujeito a partir da noo de cuidado-de-si,

    de uma hermenutica do sujeito. Pretendemos, a seguir, apresentar alguns traos gerais de

    como Ricoeur abordou essas questes.

    A identidade narrativa

    Em A metfora viva, de 1975 e Tempo e Narrativa, de 1983, Ricoeur procurou pensar

    a experincia temporal humana a partir dos elementos da linguagem que expressam, por sua

    prpria natureza, uma relao mediata que o homem tem com o mundo e consigo mesmo. Esses

    elementos so a metfora e a narrativa. Para ele, a metfora e a narrativa constituem a situao privilegiada para pensar o sujeito, no como conscincia imediata de si, mas a partir do desvio,

    do longo caminho que nos leva formao da subjetividade humana. Isso se deve ao fato de que

    ambas se referem ao fenmeno central de inovao semntica (Ricoeur, 1994, p. 9).

    Na metfora, a inovao semntica consiste em que ela produz uma nova pertinncia

    semntica, enquanto resistncia das palavras no seu emprego usual e sua incompatibilidade

    no nvel de uma interpretao literal da frase (Ricoeur, 1994, p. 9). Na narrativa, campo da

    enunciao discursiva, a inovao semntica consiste na inveno de um enredo enquanto uma obra de sntese. justamente esse poder de sntese do heterogneo que aproxima a metfora

    da narrativa, pois, segundo Ricoeur, nos dois casos, o novo, o ainda no dito, o indito, surge

  • Ano 1 N 1 Jan/Jun 2008 l 39

    na linguagem, seja por uma nova pertinncia na predicao, seja em um enredo fingido, isto

    , em uma nova congruncia no agenciamento dos incidentes (Ricoeur, 1994, p. 10).

    A tese fundamental de Ricoeur refere-se ao aspecto de que a funo potica da linguagem

    expressa na metfora e na narrativa no se limita considerao da linguagem em si mesma,

    ou seja, a um problema de estrutura tratado pela retrica, ou a um problema de sentido, abordado pela semntica, mas ao problema da referncia, sua pretenso de verdade. Segundo

    ele, h uma referncia metafrica e narrativa que consiste no poder do enunciado metafrico

    de redescrever uma realidade inacessvel descrio direta (Ricoeur, 1994, p. 12).

    Assim, para Ricoeur, tanto a metfora quanto a narrativa constituem os elementos pri-vilegiados da linguagem a partir dos quais podemos ter acesso ao problema do sujeito, que

    no se d a uma apreenso direta da conscincia. Para ele, a metfora se refere aos aspectos do homem relativos aos valores sensoriais (estticos) e prticos (axiolgicos), enquanto a

    narrativa se refere ao campo das aes e dos valores temporais que fazem do mundo, um

    mundo habitvel (Ricoeur, 1994, p. 12). Podemos dizer que a metfora cria ou reconfigura

    nossa sensibilidade e nossos valores, enquanto a narrativa cria ou reconfigura o nosso campo

    de ao e nossos valores temporais e histricos.

    a partir desses pressupostos que Ricoeur postula uma identidade estrutural entre histo-

    riografia e narrativa de fico, na medida em que h um parentesco profundo entre a exigncia

    da verdade entre os dois modos narrativos (Ricoeur, 1994, p. 15).

    A partir das anlises empreendidas nas duas obras referidas, Ricoeur abriu o caminho para

    pensar o problema do sujeito, o problema do si, atravs do que ele chamou de identidade

    narrativa. O problema da pessoa, o problema do quem, inevitvel em toda hermenutica do

    si est implicado na narrao da prpria vida, seja da vida do indivduo (identidade pessoal),

    seja na vida da coletividade (identidade coletiva), na medida em que ela indica o contexto das

    aes e situaes a partir das quais podemos identificar a pessoa ou o grupo social.

    Em 1988 Ricoeur publicou um artigo intitulado A identidade narrativa e outro, com

    o mesmo titulo, em 1991. Em 1990 publica o livro O si-mesmo como um outro onde os

    temas da identidade narrativa e da hermenutica do si sero desenvolvidos. Ele se defronta

    nesse momento de sua trajetria intelectual com duas vertentes da filosofia contempornea;

    de um lado a filosofia analtica, de origem anglo-sax, de outro a filosofia da desconstruo

    francesa de inspirao nietzscheana. Em dilogo permanente com as disciplinas histricas

    e lingsticas e com a pragmtica inglesa da teoria dos atos de fala de Austin e Searle, ele

    procurou estruturar sua prpria perspectiva.Ricoeur pensa a seguinte questo: como compreender a identidade sem se apoiar em uma

    filosofia da conscincia imediata de si? A partir dessa pergunta, uma outra vai emergir como

    hiptese: as vidas humanas no se tornam mais legveis na medida em que so interpretadas

    em funo de histrias que as pessoas contam a seus sujeitos? (Ricoeur, 1988, p. 295).

    Ricoeur procura inicialmente distinguir dois usos do conceito de identidade. A identidade

    como o mesmo ou mesmidade, relacionada s palavras idem, same, gleich, respectivamente

    do latim, ingls e do alemo, e a identidade como si, (soi), relacionada a ipse, self, selbst,

    do latim, ingls e alemo respectivamente.

  • 40 l Trilhas Filosficas

    No primeiro sentido, o da identidade idem, esta considerada pela tica da unicidade; da

    semelhana de caractersticas; da continuidade ininterrupta de um ser entre o primeiro e o

    ltimo estgio de sua evoluo e da permanncia de uma substncia no tempo. Em todas esses

    usos, h uma considerao da identidade que responde a pergunta o que a identidade?; a

    identidade aqui tratada como coisa. O segundo uso da identidade, como si (soi), o ponto de partida a natureza da questo

    que outra. Aqui no se pergunta pelo o que? da identidade, mas pelo quem? (qui). O

    carter reflexivo da identidade si no remete ao domnio da coisa ou da substncia, mas ao

    domnio da ao, cuja resposta demanda o agente ou o autor da ao. A resposta implica em

    imputao de uma ao a um agente, o que a reveste de uma significao moral e poltica.

    Conforme admite o prprio Ricoeur, a questo da ipseidade aparece na esfera dos problemas daquele que heidegger denominou Dasein, como a capacidade de se interrogar

    sobre seu prprio modo de ser no mundo, como um ser-com, como o cuidado. Vale destacar

    aqui que essa questo torna-se um ponto fundamental da reflexo de vrios filsofos que

    estiveram de alguma forma sob a influncia do pensamento de heidegger, como o caso,

    alm de Ricoeur, de Levinas, de hannah Arendt, e do prprio Foucault, como j havamos

    nos referido quando de suas reflexes sobre a hermenutica.

    O problema, para Ricoeur, est em pensar o si, no aspecto em que ele est em interseo

    com o mesmo, que diz respeito permanncia no tempo, ou seja, que tipo de permanncia esta,

    a do si, que se coloca como a relao de um agente com uma ao? ( Ricoeur, 1988, p. 298).

    No referido artigo, Ricoeur vai rejeitar a perspectiva da filosofia analtica na considerao

    da identidade pessoal, representado por Derek Parfit, que vai compreender a identidade

    pessoal no tempo somente a partir de certos fatos particulares, tais que eles possam ser descritos sem a necessidade de outras consideraes. Segundo Ricoeur, essa abordagem

    reducionista da pessoa desconsidera o fato de que a identidade pessoal, vista pela dimenso do si, no pertence somente categoria de acontecimentos e fatos, mas, principalmente

    aos aspectos da responsabilidade e do compromisso tico e poltico.Apoiando-se nas formas literrias de narrativa, Ricoeur afirma que a mediao lings-

    tica entre a identidade idem e a identidade ipse o discurso narrativo, na medida em que ele possibilita a coeso de uma vida, compatibilizando signos de mudana com signos de

    permanncia no tempo.Tomando como referncia a Potica de Aristteles, Ricoeur afirma que o elemento que

    opera essa mediao entre mudana e permanncia na narrativa o enredo, na medida em que ele possibilita articular a concordncia do agenciamento dos fatos com as discordn-

    cias dos desvios, dos perigos e das vicissitudes das aes. Mediao que Aristteles designa

    como mytos, o enredo que engendra a narrativa e que constitui os efeitos catrticos da

    tragdia. Ricoeur nomeia esse efeito de sntese operado pelo enredo nessa dialtica entre

    concordncia e discordncia como a configurao das aes.

    Dialogando com a narratologia contempornea de Propp, com a Morphologie du

    conte, de Claude Bremond, e com a Logique du Rcit de Greimas, Ricoeur postula que

    no somente a ao submetida ao ato configurante dos acontecimentos, mas tambm o

  • Ano 1 N 1 Jan/Jun 2008 l 41

    personagem, na medida em que tambm o personagem uma categoria narrativa, ou seja,

    a identidade pessoal do personagem correlativa da identidade da prpria histria.

    Assim, a identidade narrativa, possvel atravs do enredo, faz a mediao entre o modelo

    da identidade pessoal da mesmidade, o carter da pessoa, e a identidade pessoal da ipseidade como manuteno de si na promessa.

    Procurando exemplificar e ao mesmo tempo fortalecer seus argumentos, Ricoeur afirma

    que isso se evidencia em certos romances modernos, como o de Robert Musil, em O homem

    sem qualidades, onde a perda da identidade do personagem corresponde, por sua vez, uma

    perda de configurao de narrativa e sobretudo uma crise do ncleo da narrativa (Ricoeur,

    1991, p. 41). haveria, portanto uma repercusso do personagem sobre o enredo, levando,

    no exemplo citado de Robert Musil, a ultrapassar os limites da narrativa em direo ao en-saio. Ricoeur adverte, no entanto, que a perda de identidade do personagem no suprime a

    problemtica do personagem, pois um no-sujeito ainda uma figura do sujeito, mesmo se

    de forma negativa (Ricoeur, 1991, p. 42), ainda assim a pergunta se coloca: quem sou eu?

    E se responde: nada, ou um quase nada. Mesmo a se parte da questo quem?, mesmo que

    reduzida nudez da prpria questo.

    Aps a dialtica interna ao prprio enredo e a dialtica entre enredo e personagem, Ri-

    coeur chega problemtica propriamente filosfica atravs da questo: em que consiste a con-

    tribuio da potica da narrativa em relao ao problema do si, da identidade pessoal?

    Para o filsofo, a funo narrativa introduz um elemento na anlise do si que est ligado

    ao carter fictcio do personagem na narrativa literria que a mimesis da ao, a imitao

    da efetiva atividade humana, dando dela uma interpretao nova, uma descrio nova, ou

    ainda uma reconfigurao (Ricoeur, 1991, p. 44).

    Assim, o leitor das narrativas de fico apropria-se das significaes que ligam o heri

    fictcio a uma ao fictcia, refigurando sua prpria identidade por essa mediao figurada

    do personagem, de tal forma que se apropriar de uma figura de um personagem ao meio

    da identificao significa submeterse a si mesmo ao jogo das variaes imaginadas, as quais

    tornam-se variaes imaginadas de si (Ricoeur 1991, p. 45). Com isso o leitor levado ao

    distanciamento de sua identidade imediata, atravs da abertura propiciada pelo texto.Para Ricoeur, esse aspecto de alteridade constitutivo da identidade narrativa o que

    abre a perspectiva para o que ele denomina dialtica do si e do diverso de si, ou her-

    menutica do si. Na identidade idem, o outro oposio, na identidade ipse o outro constitutivo, o que

    abre toda a problemtica tica do agente que busca a manuteno de si na abertura para o

    outro, enquanto sujeito de responsabilidade e de promessa. A pergunta quem fala? quem

    age? quem descrito? e quem o sujeito de imputao? demandada pela identidade

    narrativa, combina o carter da pessoa com a necessria manuteno de si perante o outro que compe o campo das aes humanas.(Ricoeur, 1991-A, p. 28). Enquanto ao, a iden-

    tidade do si constante atualizao de si perante o outro, processo de identificao e

    no identidade acabada. O sujeito se torna tico como um modo de ser no mundo perante

    os outros e no como um dado.

  • 42 l Trilhas Filosficas

    Para Ricoeur, a identidade ipse a identidade de um testemunho de si perante o outro,

    que ele chama de atestao, que ele estabelece como uma crena, no um creio que, mas

    um creio em (Ricoeur, 1991-A, p. 34). Uma confiana no poder de dizer, no poder de

    fazer, no poder de se reconhecer personagem de narrativa (Ricoeur, 1991-A, p. 35).

    Uma passagem de Ricoeur, presente ao final de seu artigo sobre a identidade narrativa

    nos faz ouvir as ressonncias nietzscheanas de seu pensamento, ao mesmo tempo em que

    pode constar de epgrafe final da compreenso de sua hermenutca de si: construir a si -

    mesmo significa tornar-se aquilo que se .(Ricoeur, 1991-A, p46).

    Referncias bibliogrficas

    FOUCAULT, Michel (2000). Arqueologia das cincias e histria dos sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II). Rio de Janeiro : Forense Universitria.RICOEUR, Paul (1960). Finitude et culpabilit. Paris : Aubier. Editions Montaigne.___. (1977). Da Interpretao: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro : Imago Editora Ltda.___. (1979). Existncia e hermenutica, in O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica. Rio de Janeiro : Imago Editora Ltda.

    ___. (1988). L dentit narrative, in Esprit, juillet-aot, 1988, pg. 295-305.___. (1991). L identit narrative, in Revue ds sces humaines. Tome LXXXXV, n 221 janvier-mars, 1991, pg. 35 47.

    ___. (1991-A). O Si-Mesmo como um outro. Campinas/SP: Papirus Editora.___. (1994). Tempo e Narrativa I. Campinas/SP : Papirus Editora.___. (1995). Tempo e Narrativa II. Campinas/SP : Papirus Editora.___. (1997). Tempo e Narrativa III. Campinas : Papirus Editora.___. (2000). A metfora Viva. So Paulo : Edies Loyola.