rm arbitragem necessaria e constituicao

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1 Rui Medeiros ARBITRAGEM NECESSÁRIA E CONSTITUIÇÃO 1 O autor destas linhas teve o privilégio de conhecer pessoalmente o Conselheiro Artur Maurício e de apreciar as suas qualidades enquanto jurista insigne e juiz do Tribunal Constitucional. E, ao participar nos merecidos Estudos de Homenagem, entendeu que se justificava tomar como mote da reflexão a empreender uma questão jurídico-constitucional sobre a qual se tem ocupado a jurisprudência do Tribunal que o homenageado dignificou, primeiro, como conselheiro e, mais tarde, como presidente. A escolha recaiu sobre o problema da constitucionalidade da arbitragem necessária. Trata-se, na verdade, de um tema que propicia bem uma abordagem científica e um diálogo com a importante jurisprudência do Palácio Rattton. 1. Introdução a) Um problema atual I. A questão da relação entre arbitragem necessária e Constituição é um tema atual em Portugal. Fundamentalmente, a introdução por via legislativa da arbitragem necessária em matéria de medicamentos de referência e medicamentos genéricos pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, e, mais recentemente, o processo que culminou na criação do Tribunal Arbitral do Desporto, hoje regulado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, deram o mote à discussão sobre a admissibilidade 1 Este texto, elaborado para ser publicado nos Estudos em Homenagem ao Conselheiro Artur Maurício, serviu de base à intervenção oral sobre o tema no III Encontro Internacional de Arbitragem de Coimbra em 25 de Outubro 2013.

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RM Arbitragem Necessaria e Constituicao

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Page 1: RM Arbitragem Necessaria e Constituicao

1

Rui Medeiros

ARBITRAGEM NECESSÁRIA E CONSTITUIÇÃO1

O autor destas linhas teve o privilégio de conhecer pessoalmente o

Conselheiro Artur Maurício e de apreciar as suas qualidades enquanto jurista

insigne e juiz do Tribunal Constitucional. E, ao participar nos merecidos Estudos de

Homenagem, entendeu que se justificava tomar como mote da reflexão a empreender

uma questão jurídico-constitucional sobre a qual se tem ocupado a jurisprudência do

Tribunal que o homenageado dignificou, primeiro, como conselheiro e, mais tarde,

como presidente. A escolha recaiu sobre o problema da constitucionalidade da

arbitragem necessária. Trata-se, na verdade, de um tema que propicia bem uma

abordagem científica e um diálogo com a importante jurisprudência do Palácio

Rattton.

1. Introdução

a) Um problema atual

I. A questão da relação entre arbitragem necessária e Constituição é um tema

atual em Portugal. Fundamentalmente, a introdução por via legislativa da

arbitragem necessária em matéria de medicamentos de referência e medicamentos

genéricos pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, e, mais recentemente, o processo

que culminou na criação do Tribunal Arbitral do Desporto, hoje regulado pela Lei n.º

74/2013, de 6 de setembro, deram o mote à discussão sobre a admissibilidade

1 Este texto, elaborado para ser publicado nos Estudos em Homenagem ao Conselheiro Artur

Maurício, serviu de base à intervenção oral sobre o tema no III Encontro Internacional de Arbitragem de Coimbra em 25 de Outubro 2013.

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constitucional de tribunais arbitrais necessários.

a) Dois importantes constitucionalistas portugueses, intervindo na discussão

na qualidade de jurisconsultos2, vieram ambos defender – embora partindo de pré-

compreensões diferentes – a tese da inconstitucionalidade da imposição legal da

arbitragem em matéria de medicamentos de referência e medicamentos genéricos3.

Concretamente, GOMES CANOTILHO – assumindo expressamente que a sua

“pré-compreensão é marcada pela simpatia em torno da propriedade intelectual em

geral e da propriedade patentária em termos específicos”4 – sustenta que, “sob pena

de inconstitucionalidade material, resultante da violação dos princípios da aplicabilidade

direta dos direitos, liberdades e garantias e da vinculação das entidades públicas e privadas

(artigo 18.º, n.º 1, da Constituição), por um lado, bem como da violação do princípio da

reserva constitucional do juiz estadual, por outro, tais litígios emergentes de direito de

propriedade industrial respeitantes a «medicamentos de referência» devem ser dirimidos

perante tribunais estaduais, pois, em bom rigor, é a estes tribunais que, prima facie,

nos termos do n.º 1 do artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa está

cometido o «monopólio da jurisdictio». Prima facie, dissemos. Por acordo das Partes, a

arbitragem não repugna, hoje, como esquema de resolução de conflitos em sede de

propriedade industrial. Todavia”, no caso da arbitragem instituída pela Lei n.º

62/2011, “assiste-se a uma lesão flagrante do regime geral dos direitos fundamentais (…),

mais propriamente do princípio da igualdade e do princípio do acesso ao direito e à tutela

jurisdicional efetiva, contemplados, respetivamente, nos artigos 13.º e 20.º da

Constituição”5.

Da mesma forma, PAULO OTERO – embora privilegiando “uma postura

intervencionista do Estado, segundo os postulados decorrentes da cláusula de bem-estar

2 Cfr., sublinhando que, embora seja a reflexão intelectual que assuma relevância

fundamental numa sociedade aberta de intérpretes da Constituição, “il nostro mondo è sempre più ricco di consulenti e sempre meno di intellettuali”, GUSTAVO ZAGREBELSKY, I costituzionalisti, in Giurisprudenza Costituzionale, 2011, 4, pp. 3800 ss.

3 Cfr., em contrapartida, não entrando na discussão, embora o caso estivesse relacionado com a arbitragem necessária instituída pela Lei n.º 62/2011, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 2/2013.

4 Cfr. GOMES CANOTILHO, Parecer, 15 de Março de 2012 (polic.), p. 4. 5 Cfr. GOMES CANOTILHO, Parecer, cit., pp. 68-69.

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social”, e defendendo firmemente que “a tutela constitucional do direito de exclusivo de

exploração comercial resultante da patente sobre medicamentos de referência (…) tem de

conviver com a concorrência de outros direitos fundamentais acolhidos pela Constituição,

num quadro próprio de um Estado social ou de bem-estar que reconhece uma função social à

propriedade privada”6 – considera, igualmente, que a instituição de mecanismos de

arbitragem necessária, por via legislativa, se revela inconstitucional7, visto que “(a) o

Estado não pode renunciar ao exercício da função jurisdicional; (b) o Estado não

pode privatizar o exercício da justiça, enquanto função típica de soberania do

próprio Estado; (c) o Estado não pode desresponsabilizar-se da garantia dos direitos

fundamentais através dos seus tribunais; (d) o princípio da igualdade no acesso à

justiça e aos tribunais encontra-se lesado”8.

b) Por outro lado, é sabido que o longo processo que culminou na criação pela

Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, do Tribunal Arbitral do Desporto9, jurisdição

arbitral necessária, envolveu o próprio Tribunal Constitucional.

O Acórdão n.º 230/2013 considerou, por maioria (tendo votado vencida a

Conselheira Maria João Antunes), que as normas que atribuíam natureza definitiva às

decisões arbitrais - ao determinarem concretamente que, sem prejuízo da

possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão

arbitral com os fundamentos e nos termos previstos na LAV, as decisões proferidas,

em única ou última instância, pelo Tribunal Arbitral do Desporto eram insuscetíveis

de recurso – violavam o direito de acesso aos tribunais, na medida em que delas

resultava a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do Tribunal

Arbitral do Desporto proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária.

A questão não ficou, como é sabido, definitivamente resolvida. Na realidade,

a alteração ao texto da lei introduzida no seguimento da pronúncia de

6 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, 1 de Junho de 2012 (polic.), pp. 12 e 18. 7 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., pp. 63 e 84. 8 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., pp. 63 e 84. 9 Cfr., sobre o debate que antecedeu a aprovação da lei, RUI BOTICA SANTOS, Arbitragem no

Direito do Desporto, in V Congresso do Centro de Arbitragem Comercial, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 107 ss; ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem futuro? - anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, in Desporto & Direito, ano X, n.º 28 (2012), pp. 64 ss.

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constitucionalidade do Tribunal Constitucional foi novamente submetida ao

controlo da constitucionalidade, tendo o Presidente da República requerido a

fiscalização abstrata da constitucionalidade da normação em causa. Recorde-se que a

nova formulação do artigo 8.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto,

aprovada no seguimento do veto por inconstitucionalidade, passou a dispor que

“das decisões proferidas pela câmara de recurso pode haver recurso de revista para o Supremo

Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua

relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do

recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, aplicando -se, com

as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos

quanto ao recurso de revista”. Ora, no Acórdão n.º 230/2013, o Tribunal Constitucional

sustentara que o direito fundamental de acesso aos tribunais não podia conformar-se

com a simples previsão de um dos mecanismos pelos quais era possível, nos termos

gerais, impugnar jurisdicionalmente a decisão arbitral, impondo que as partes

pudessem também discutir o mérito da decisão, apontando assim para a necessidade

de previsão de mecanismos de reexame perante um tribunal estadual relativamente

às situações comuns em que o particular pretendia questionar a solução arbitral

sobre o fundo da causa ou a decisão que ponha termo ao processo. Aparentemente, o

legislador preferiu assim “insistir no erro”10. Por isso, sem surpresa, embora agora

com dois votos de vencido (Maria João Antunes e Maria de Fátima Mata-Mouros), o

Acórdão n.º 781/2013, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral,

da nova formulação do regime de recurso das decisões do Tribunal Arbitral do

Desporto

II. A atualidade do tema não se revela apenas nestes dois exemplos. Basta

lembrar que, recentemente, Isabel Celeste Fonseca, num artigo em que se interroga

sobre a questão de saber se a arbitragem administrativa tem futuro, veio criticar “as

normas de duvidosa constitucionalidade” que impõem (designadamente, nos decretos-

leis que aprovam as bases da concessão e nos decretos regulamentares que

10 Cfr. NUNO ALBUQUERQUE, Tribunal Arbitral do Desporto: o importante não era justificar o erro,

mas impedir que ele se repetisse, in Desporto & Direito, ano X, n.º 29 (2013), pp. 173 ss (em especial, 177).

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estabelecem o respetivo caderno de encargos tipo) a arbitragem obrigatória e

sobretudo a arbitragem definitiva (e, por isso, sem admissibilidade de interposição de

recurso da decisão arbitral) no domínio da contratação pública, especialmente no

domínio das concessões e das parcerias público-privadas11.

b) Delimitação do tema

Importa, antes de prosseguir, delimitar claramente o tema objeto deste texto.

A única questão que será objeto de reflexão é a de saber se a Constituição apenas

admite tribunais arbitrais voluntários ou se, pelo contrário, quando refere no n.º 2 do

artigo 209.º, a propósito das categorias de tribunais, que podem existir tribunais arbitrais,

também autoriza o legislador, e em caso afirmativo com que limites, a criar tribunais

arbitrais necessários.

Significa isto que, além de extravasar do âmbito desta investigação uma

análise histórica ou comparada da arbitragem necessária, não se vai discutir a natureza

desta “«figura híbrida» dos tribunais arbitrais necessários”, que, não se baseando na

autonomia privada, se afasta dos cânones da “teoria clássica sobre a arbitragem”12. É

sabido que há, mesmo entre nós, quem fale, a este propósito, de uma “arbitragem

aparente”13/14. Em qualquer caso, para efeitos do objeto deste contributo, a questão

não carece de ser respondida. Basta, por isso, reter que está em causa, na arbitragem

necessária, uma jurisdição não estadual.

11 Cfr. ISABEL CELESTE M. FONSECA, A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?, in A

arbitragem administrativa e tributária – problemas e desafios, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 159 ss (apresentando um conjunto vasto de exemplos – pp. 168 ss).

12 Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Arbitragem «necessária», «obrigatória», «forçada»: breve nótula sobre a interpretação do artigo 182.º do CPTA, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, II, Coimbra: Almedina, 2012, p. 257.

13 Cfr. ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem futuro? - anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, cit., p. 68.

14 Cfr., defendendo que, “no mínimo, a ideia de arbitragem reclama a composição do tribunal por árbitros, isto é, por «sujeitos designados pelas partes para resolver um conflito (…). Os tribunais ad hoc impostos às partes e compostos por pessoas por elas não designadas são tribunais estaduais especiais”, os quais podem ser admitidos “para certas categorias de conflitos, posto que, para tal, haja razões especiais”, PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, Coimbra: Almedina, 2005, pp. 570 ss.

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Por outro lado, embora o estudo que se vai levar a cabo seja realizado a partir

da análise de dois casos concretos e atuais – a arbitragem necessária em matéria de

medicamentos de referência e medicamentos genéricos e no domínio do desporto –,

o que interessa, no âmbito desta intervenção, é tão-somente a questão da

conformidade à Constituição da imposição por via legal da arbitragem necessária,

extravasando, em contrapartida, do âmbito da problematização subsequente a

apreciação da bondade jurídico-constitucional do modo como a lei, em concreto,

organiza as arbitragens em causa, define o estatuto dos árbitros e regula o processo

arbitral.

2. Os argumentos em defesa da inconstitucionalidade da arbitragem

necessária

I. São dois os principais argumentos em que se tem alicerçado a desconfiança

constitucional em relação à arbitragem necessária: direito fundamental de acesso aos

tribunais (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição) e,

complementarmente, princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1)15.

II. A ideia nuclear em que se apoia a leitura restritiva quanto à

admissibilidade constitucional da arbitragem necessária apoia-se no direito

fundamental de acesso aos tribunais. Segundo este entendimento, na arbitragem

necessária, o Estado abdica “de julgar, através da sua organização, certas categorias de

conflitos”, o que significa, pelo lado do Estado, “uma expressa renúncia ao exercício da

função (pública) jurisdicional”16. Este aspeto é determinante. Daí que o facto de a

Constituição “incluir os tribunais arbitrais nas categorias de tribunais não assegura a

constitucionalidade dos tribunais arbitrais necessários em todos os casos (…). O parâmetro

constitucional relevante nesta matéria não é a norma contida no artigo 202.º, n.º 1 – os

15 Cfr., sublinhando que os tribunais arbitrais necessários podem “pôr em causa não apenas o

direito de acesso aos tribunais (…), mas também o princípio da igualdade”, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, II, cit., p. 551.

16 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 572.

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tribunais arbitrais, mesmo os necessários, não infringem a reserva de jurisdição aí consagrada

–, mas a do artigo 20.º, n.º 1, na parte em que assegura o acesso aos tribunais: está em causa

um direito fundamental que opera no âmbito das relações entre cidadãos e Estado, de modo

que os tribunais a que a disposição se refere não podem deixar de ser apenas os que se

enquadram na organização do Estado”17. Numa palavra, a criação de tribunais arbitrais

necessários não pode ignorar que a garantia do direito de acesso aos tribunais

consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição “é a do direito de acesso a tribunais

estaduais, não tendo sentido dizer-se que ali se garante o acesso a tribunais a constituir por

iniciativa dos interessados”18.

III. A leitura constitucional de que se fez breve eco tem conduzido a duas

conceções distintas: de um lado, numa visão radical, defende-se, pura e

simplesmente, a tese da inconstitucionalidade da arbitragem necessária; do outro,

numa postura mais mitigada, admite-se tribunais arbitrais necessários, desde que

esteja garantido que a decisão arbitral não é definitiva, ou seja, contanto que esteja

salvaguardado o direito de recurso pleno para os tribunais estaduais.

a) A leitura mais radical sublinha enfaticamente que a proteção jurisdicional

traduz uma “das funções essenciais do Estado de Direito19. “O Estado não pode renunciar a

ser Estado em domínios que justificam a sua própria existência, sob pena de deixar de ter

razão de existir: a administração da justiça, enquanto função típica de soberania, integrante

do núcleo «sagrado» de funções exclusivas do Estado, não pode estar na disponibilidade do

legislador ordinário”20. Por isso, o Estado não pode renunciar ao exercício da função

jurisdicional, o Estado não pode privatizar o exercício da justiça, enquanto função

típica de soberania do próprio Estado, e o Estado não pode desresponsabilizar-se da

garantia dos direitos e interesses legalmente protegidos através dos seus tribunais,

constituindo antes uma incumbência fundamental do Estado assegurar a

administração da justiça, designadamente para garantir a defesa dos direitos e

17 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., pp. 572-573. 18 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 565, nota. 19 Cfr. GOMES CANOTILHO, Parecer, cit., p. 71. 20 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., p. 65.

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interesses legalmente protegidos dos particulares – o que postula a disponibilização

dos tribunais do Estado para assegurarem a defesa desses direitos e interesses21.

b) Numa versão mitigada, a Constituição não veda em absoluto a arbitragem

necessária imposta por lei. Todavia, “só é pensável admitir a imposição da composição

arbitral quando não se encontre vedado o acesso aos tribunais estaduais, hipótese que só se

verifica se não estiver excluída a possibilidade de recurso da decisão arbitral para aqueles

tribunais”. Com efeito, embora os tribunais arbitrais sejam verdadeiros tribunais e os

árbitros exerçam a função jurisdicional, “os tribunais arbitrais não são contudo tribunais

iguais aos do Estado, não estão integrados na organização estadual, o Estado não é

responsável pelo seu funcionamento, os seus juízes não são juízes de carreira (…), além de

não serem nomeados pelo Estado”. Ora, segundo esta perspetiva, o direito fundamental

de acesso aos tribunais opera apenas “no âmbito das relações entre cidadãos e Estado”

22/23.

IV. Complementarmente, a fundamentação da ideia da rejeição constitucional

da arbitragem necessária convoca igualmente o princípio da igualdade.

Esta via argumentativa – quando não se esgota numa simples afirmação de

princípio24 – surge, em qualquer caso, em articulação com o direito de acesso aos

21 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., pp. 63 ss. 22 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., pp. 563, 565, 568 e 572-

573. 23 Cfr., embora considerando a arbitragem como direito fundamental e “como um corolário

do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva” e que este direito não se esgota “na tutela judicial dispensada através dos tribunais comuns” (p. 172), LUÍS CABRAL DE MONCADA afirma expressamente que “os tribunais arbitrais necessários só serão possíveis sob reserva de recurso das respetivas sentenças para os tribunais comuns”, pois, “se assim não fosse, tudo se passaria como se o legislador estivesse a negar aos cidadãos o direito de acesso aos tribunais comuns, o que é claramente inconstitucional” (A arbitragem no Direito Administrativo: uma justiça alternativa, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano VII (2010), p. 183).

24 Cfr., afirmando – a propósito da arbitragem necessária em matéria de medicamentos de referência e medicamentos genéricos – que se está “diante de uma violação indiscutível do princípio fundamental da igualdade”, já que, “estando em causa uma necessidade de tutela de direitos fundamentais, como são os direitos de propriedade industrial”, impõe-se perguntar “pela razão de ser de tão evidente «discriminação» dos seus titulares em sede de proteção jurisdicional”, visto que “é por demais óbvio que a submissão dos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial sobre medicamentos de referência à arbitragem necessária por parte do legislador redunda numa violação grosseira do princípio da igualdade de tratamento e numa atitude discriminatória das pessoas perante a lei”, GOMES CANOTILHO, Parecer, cit., pp. 69-70.

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tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva. Como pano de fundo está a verificação

de que aqueles que têm de utilizar um mecanismo de arbitragem necessária se

encontram em desvantagem em face de todos os restantes que, por terem acesso aos

tribunais estaduais, têm, em alternativa, “o direito de escolher entre o acesso aos tribunais

do Estado ou a mecanismos de arbitragem voluntária. A criação pelo legislador de arbitragens

necessárias retira, visto deste último ângulo, esse direito de escolha do modo de acesso à

justiça que todos os restantes particulares têm em áreas ou matérias suscetíveis de

arbitragem”25.

Em qualquer caso, salvo para quem admita que a possibilidade em si mesma

de acesso a um tribunal estadual é só por si um bem a se constitucionalmente

tutelado (à semelhança, por exemplo, do direito de escolha da escola pública), o

problema da discriminação dos particulares que veem certas categorias de litígios

submetidos necessariamente aos tribunais arbitrais está associado ao regime de

arbitragem necessária consagrado. A questão pode pôr-se, designadamente, em face

de um regime menos garantístico consagrado numa lei que imponha a arbitragem

necessária. Uma das críticas em que assentou a contestação constitucional ao

Tribunal Arbitral do Desporto foi, justamente, a de que “a criação de uma arbitragem

no domínio desportivo sem possibilidade de revisão de mérito consubstancia um «retrocesso

garantístico»” por confronto com a atual regulamentação do processo administrativo

português26. A inconstitucionalidade da diferenciação de tratamento pode também

estar associada aos encargos da arbitragem. De facto, e partindo do pressuposto de

que a justiça arbitral, sendo em regra mais abreviada, é financeiramente mais

onerosa em função das custas processuais27, já se defendeu que a criação de um

“mecanismo de arbitragem necessária cria um desequilíbrio no acesso à justiça, pois os custos

do seu funcionamento são, por via de regra, muito superiores aos custos processuais nos

tribunais do Estado. Neste último entendimento, a imposição da arbitragem necessária

conduz, imediata e inevitavelmente, a um privilégio a favor dos intervenientes particulares

25 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., p. 67. 26 Cfr. ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem futuro?

- anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, cit., pp. 82 ss. 27 Cfr., descrevendo a argumentação utilizada pelo Presidente da República no requerimento

de fiscalização preventiva, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013.

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que possuem mais recursos financeiros, enquanto, em sentido contrário, uma solução

envolvendo a intervenção dos tribunais do Estado garante, à partida, uma justiça

economicamente mais acessível a todos”28.

V. O Tribunal Constitucional, quando se pronunciou sobre a

constitucionalidade da normação que criava o Tribunal Arbitral do Desporto, baseou

a sua argumentação no direito fundamental de acesso aos tribunais e não no

princípio da igualdade, aderindo ao entendimento (apesar de tudo na sua versão

mitigada) segundo o qual a arbitragem necessária, ainda que constitucionalmente

admissível, não pode ser definitiva.

Na realidade, o Acórdão n.º 230/2013 concluiu, por maioria29, que as normas

que impunham a irrecorribilidade para os tribunais estaduais das decisões

proferidas no âmbito desta jurisdição arbitral desportiva necessária violavam o

direito de acesso aos tribunais. Segundo o Acórdão n.º 230/2013, numa leitura

reafirmada no essencial no Acórdão n.º 781/2013, mas agora com um segundo voto

28 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., p. 67. 29 PEDRO MACHETE, embora votando favoravelmente a decisão, afirma na sua declaração de

voto que considera constitucionalmente admissível que na decisão de litígios por arbitragem voluntária – incluindo os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, em geral, e, em particular, daqueles litígios em que intervenham entidades privadas no exercício de poderes de autoridade pública – a última palavra não tenha de pertencer aos tribunais estaduais, pois, justamente porque os tribunais arbitrais exercem a função jurisdicional mencionada no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, a decisão de um tribunal arbitral voluntário pode ser final e definitiva. MARIA JOÃO ANTUNES, por seu turno, na sua declaração de voto de vencida, afirma expressamente que “o direito de acesso aos tribunais (…), direito fundamental correlacionado com a reserva da função jurisdicional, não é garantido apenas através do acesso aos tribunais do Estado. O artigo 209.º, n.º 2, prevê a existência de tribunais arbitrais como uma categoria de tribunais, que se constituem precisamente para exercer a função jurisdicional” e, por isso, “os tribunais a que se refere o artigo 20.º, n.º 1, da CRP não são apenas os tribunais estaduais (…). Ponto é que os tribunais sejam órgãos independentes e imparciais (…) e seja respeitada a reserva de tribunal judicial (por exemplo, a que decorre do artigo 27.º, n.º 2, da CRP)”. Acrescenta ainda que, “numa ordem constitucional onde não vale o princípio do monopólio estadual da função jurisdicional, a criação do TAD não tem o sentido de atribuir uma autonomia plena à jurisdição desportiva, porquanto se trata de uma «entidade jurisdicional independente» da denominada «justiça desportiva» (artigo 1.º, n.º 1, do Anexo), à qual o Estado, por lei da Assembleia da República, em matéria de organização e competência dos tribunais (artigo 165.º,n.º 1, alínea p), da CRP), atribuiu a função de controlo jurisdicional de mérito do exercício dos poderes de autoridade delegados nas federações, em outras entidades desportivas e ligas profissionais”, não havendo “uma qualquer demissão do dever estadual de controlo do exercício daqueles poderes. O que se torna particularmente evidente também por ficar salvaguardada, em todos os casos, a possibilidade de impugnação da decisão (junto de tribunais estaduais) com os fundamentos e nos termos previstos na Lei da Arbitragem Voluntária”.

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de vencido30, a obrigatoriedade da impugnação dos atos sem verdadeira natureza

jurisdicional proferidos no âmbito da justiça endofederativa (ao nível interno e

federativo)31 para uma verdadeira e própria jurisdição desportiva, onde se reconhece

o duplo grau de jurisdição32, não dispensa, em qualquer caso, a necessidade de

garantir que os tribunais estaduais tenham “o último ato validante do mérito do litígio

objeto de decisão”33.

A conclusão alcançada neste aresto pela maioria dos juízes do Palácio Ratton

tem consequências relevantes.

Desde logo, no que se refere ao Tribunal Arbitral do Desporto, pode dizer-se

que, no rescaldo do Acórdão n.º 230/2013, a arbitragem desportiva necessária em

Portugal converteu-se numa “realidade sem futuro”34, pois, como certeiramente refere

Miguel Galvão Teles, “um sistema que prevê três graus de recurso, para além dos

recursos no próprio seio das federações, é absurdo. Teremos decisões ao fim de cinco

anos?”35.

As consequências deste recente entendimento jurisprudencial não se esgotam,

porém, neste plano da jurisdição arbitral desportiva. É que, por um lado, caso se

30 MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, na declaração de voto anexa ao Acórdão do Tribunal

Constitucional n.º 781/2013, considera que, diferentemente do entendimento sufragado pela maioria, “permanecem «inteiramente válidos» os fundamentos que levaram o Tribunal a considerar verificada a restrição do direito fundamental de acesso aos tribunais em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, no Acórdão n.º 230/2013”, visto que com a nova redação do artigo 8.º, alarga-se o acesso ainda que limitadamente aos tribunais do Estado. “Ora, sendo assim, não é possível continuar a ver no regime instituído uma concessão (excessiva e desnecessária) de «autonomia plena à justiça desportiva, em termos de não ser possível, fora do âmbito de questões estritamente desportivas, qualquer interação com a organização judiciária estadual, com incidência sobre decisões de mérito» (…). O regime atual consagra uma via de acesso dos cidadãos à justiça estadual, pelo que existe uma diferença substancial face à realidade sujeita a análise no âmbito da fiscalização preventiva”. A Conselheira afirma ainda que “a tutela jurisdicional efetiva, assegurada na Constituição (artigos 20.º e 268.º, n.º 4) não se reconduz necessariamente a uma tutela assegurada por tribunais do Estado”.

31 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 863. 32 Cfr., sublinhando justamente que o TAD desempenha as suas funções através de duas

câmaras: uma câmara ordinária e uma câmara de recurso, RUI BOTICA SANTOS, Arbitragem no Direito do Desporto, pp. 126-127.

33 Cfr. ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem futuro? - anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, cit., pp. 83-84.

34 Cfr., embora o Autor adira ao sentido do Acórdão, incluindo quanto à necessidade por imperativo constitucional de admissibilidade de recurso em geral para a jurisdição estadual (pp. 73-74, 77 e 82-85), ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem futuro? - anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, cit., pp. 61 ss.

35 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, A independência e imparcialidade dos árbitros como imposição constitucional – Postscriptum (polic.), p. 496-A (esta parte do texto não se encontra reproduzida nas pp. 638-641 do Postscriptum publicado nos Escritos Jurídicos, I, Coimbra: Almedina, 2013).

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12

conclua que o direito de acesso aos tribunais tem em vista apenas os tribunais

estaduais, forçoso será reconhecer que a arbitragem, mesmo voluntária (sublinhe-se),

deixará de poder ser considerada como um meio da tutela jurisdicional prevista no

artigo 20.º da Constituição, pelo que não lhe será diretamente aplicável a exigência

de um processo equitativo plasmada nessa disposição constitucional36. Por outro

lado, ao insistir na ideia de que, “em tese geral, a exigência de previsão de um meio de

recurso para um tribunal estadual, no quadro da arbitragem necessária, torna-se mais

evidente, no plano jurídico-constitucional, quando não estão em causa meras relações de

direito privado, nem meras relações jurídicas administrativas em que as partes se encontrem

em situação de paridade, mas antes relações jurídicas que decorrem do exercício de poderes de

autoridade”, caso em que se justifica, especialmente, “que se invoque uma reserva

relativa de juiz que proporcione aos tribunais estaduais a última palavra”37, o Acórdão n.º

230/2013 abre a caixa de pandora, visto que, em rigor, uma tal linha de

argumentação pode, outrossim, estender-se a situações de arbitragem voluntária em

que esteja em causa a apreciação de atos de autoridade. O exemplo da arbitragem

em matéria tributária é sugestivo. Recorde-se que, nos termos dos artigos 25.º e

seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (constante do

Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro), sem prejuízo da suscetibilidade de

impugnação da decisão arbitral tributária, da decisão do tribunal arbitral sobre o

mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo apenas cabe recurso de

constitucionalidade para o Tribunal Constitucional ou recurso de uniformização de

jurisprudência para o Supremo Tribunal Administrativo (quando a decisão arbitral

esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão

proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal

Administrativo). Ora, se em matéria administrativa “o fundamento da necessidade

de recurso para o tribunal do Estado é o artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, então terá

de haver recurso aberto não apenas nos casos de arbitragem necessária, mas também

nos de arbitragem voluntária respeitantes a atos de autoridade. Isso significa que

36 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, A independência e imparcialidade dos árbitros como imposição

constitucional – Postscriptum, in Escritos Jurídicos, I, Coimbra: Almedina, 2013, p. 639. 37 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013.

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13

terá de se prever a possibilidade sistemática de recurso nas arbitragens

tributárias…”38. De resto, uma dúvida análoga, em face do entendimento que se

extrai da jurisprudência constitucional citada, pode, igualmente, colocar-se noutros

domínios relevantes39.

3. Rejeição da ideia de que, para efeitos de acesso à jurisdição em

condições de igualdade, todos os tribunais são iguais, mas alguns são

mais iguais que outros…ou, para usar as palavras do Tribunal

Constitucional, “não são tribunais como os outros”40

I. Importa, antes de mais, recusar firmemente a ideia de que a função

jurisdicional constitui “um exclusivo constitucional do Estado”41. Sem dúvida que a

expressa qualificação dos tribunais como órgãos de soberania aos quais é cometido o

exercício da função jurisdicional pode justificar que se coloque “o problema de saber se

esta função é monopólio dos tribunais do Estado”42. A Constituição não ignora, porém, o

fenómeno da erosão da estadualidade enquanto característica distintiva do poder judicial43.

Em concreto, independentemente dos tribunais internacionais e dos tribunais

eclesiásticos, “a afirmação, com o alcance explicitado, de que os tribunais são os

órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo

não faz esquecer que a letra do texto constitucional – artigo 209º - oferece cobertura,

38 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, A independência e imparcialidade dos árbitros como imposição

constitucional – Postscriptum (polic.), p. 496-A (esta parte do texto também não se encontra reproduzida nas pp. 638-641 do Postscriptum publicado nos Escritos Jurídicos, I).

39 Cfr., admitindo, justamente, a duvidosa constitucionalidade das normas que, no âmbito da contratação pública, impõem o afastamento do recurso jurisdicional para os tribunais do Estado, e considerando inclusivamente que as próprias entidades adjudicantes não podem nunca renunciar em convenção arbitral ao recurso jurisdicional, embora hesitando na fundamentação de uma tal conclusão, mormente à luz do direito de acesso aos tribunais, ISABEL CELESTE M. FONSECA, A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?, pp. 172 ss (em especial, pp. 176 ss).

40 Cfr., com a afirmação expressa de que, “em determinados aspetos, os tribunais arbitrais não são tribunais como os outros”, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86.

41 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., pp. 63-64. 42 Cfr. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, II,

Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 506-507. 43 Cfr. PAULO RANGEL, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos, Porto: UCP, 2001,

pp. 291-292.

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desde já 1982, à existência de tribunais arbitrais (de resto, também em face do texto

originário de 1976 era possível sustentar – e foi sustentado – que a Lei Fundamental

se cingia à enunciação dos tribunais integrantes da organização do Estado, destarte

não devendo da omissão constitucional extrair-se o significado de uma posição hostil

perante os tribunais arbitrais) (…). Ao admitir tribunais arbitrais, a Constituição

recusa a vigência de um princípio de monopólio estadual da função jurisdicional”.

O próprio Tribunal Constitucional, mais do que (apenas) declarar a arbitragem como

um modo legítimo de composição de conflitos, sublinha a natureza jurisdicional dos

tribunais arbitrais. Neste sentido, “o tribunal arbitral é um órgão que (...) se constitui

precisamente para exercer a função jurisdicional” (Acórdão n.º 230/86). Ou seja, mesmo

que se entenda que os tribunais arbitrais não se enquadram “na definição de tribunais

enquanto órgãos de soberania (…), nem por isso podem deixar de ser qualificados como

tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente previstos como

categoria autónoma de tribunais (...). Com efeito, o «juiz-árbitro» desenvolve uma função

jurídica pela qual declara o direito (jurisdictio) (...). As decisões do árbitro são verdadeiras e

próprias decisões jurisdicionais, dotadas de autoridade»” (Acórdão n.º 52/92). Daí que se

possa afirmar que, na nossa ordem constitucional, “não há apenas tribunais estatais”

(Acórdão n.º 506/96), não havendo uma imposição constitucional no sentido de a

jurisdictio dever ser necessariamente exercida pelos órgãos do Estado (Acórdão n.º

52/92)44.

Neste sentido, o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição – quando estabelece que

“os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome

do povo” – tem como “finalidade primeira (…) consagrar uma reserva de jurisdição no

âmbito das relações internas entre os vários poderes do Estado (…). Do artigo 202.º, n.º 1,

resulta, por conseguinte, que, na organização do Estado, só os tribunais podem exercer a

função jurisdicional estadual”. Isto significa que “o sentido da norma não é o de consagrar o

44 Cfr. RUI MEDEIROS / MARIA JOÃO FERNANDES, Anotação ao artigo 202.º, in Constituição

Portuguesa anotada (Jorge Miranda / Rui Medeiros), III, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 16 ss.

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«monopólio estadual da função jurisdicional» ou um sistema de «exclusividade da justiça

pública»”45.

II. Da Constituição não decorre, por outro lado, que a arbitragem só seja

admissível “sempre a título excecional”46. Obviamente, dada a reserva de lei em

matéria de competência dos tribunais, a permissão constitucional da arbitragem

dirige-se “ao legislador, que a usa na medida do seu critério”47. Todavia, da expressa

previsão da admissibilidade de tribunais arbitrais num preceito que descreve as

categorias de tribunais pode concluir-se que, “no plano constitucional, a regra é a da

admissibilidade do recurso à arbitragem como forma de resolver conflitos jurídicos”48.

A conclusão anterior não significa que não haja reservas especiais de

jurisdição para certas categorias de tribunais. O princípio da competência (artigos

110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 2, da Constituição) não toleraria, por exemplo, o recurso a

arbitragem em domínios que a Constituição submete à jurisdição específica do

Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas. Não se pode ignorar, por outro

lado, as reservas especiais de jurisdição em certos domínios. O exemplo do processo

criminal é sugestivo49.

Mas, fora desses âmbitos específicos, o legislador democrático dispõe de uma

ampla liberdade de conformação, podendo com grande amplitude prever o recurso à

arbitragem50. É certo que, em relação especificamente à jurisdição arbitral

45 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., pp. 561 ss – cfr., no

mesmo sentido, por último, PEDRO GONÇALVES, Administração Pública e arbitragem – em especial, o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais, in Estudos em Homenagem a António Barbosa de Melo, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 778 ss.

46 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., p. 65. 47 Cfr. SÉRVULO CORREIA, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in

Estudos em memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa: Lex, p. 259. 48 Cfr. SÉRVULO CORREIA, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, cit., p.

231. 49 Cfr, sublinhando precisamente que os tribunais arbitrais não podem invadir as reservas

específicas de jurisdição estadual, como “a que decorre do artigo 27.º, n.º 2, da CRP”, declaração de voto de MARIA JOÃO ANTUNES anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013.

50 Cfr., defendendo inclusivamente que “há no Direito português um direito fundamental à arbitragem como modalidade do direito à tutela jurisdicional efetiva, reconhecido pelo artigo 20.º da Constituição e depois concretizado na Lei de Arbitragem Voluntária”, FAUSTO DE QUADROS, Arbitragem «necessária», «obrigatória», «forçada»: breve nótula sobre a interpretação do artigo 182.º do CPTA, cit., p. 258 cfr. ainda, na mesma linha, LUÍS CABRAL DE MONCADA, A arbitragem no Direito Administrativo: uma justiça alternativa, p. 172.

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administrativa (em sentido amplo), é controverso em que medida pode o legislador

permitir ou impor que litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e

fiscais” (artigo 212.º, n.º 3, da Constituição) sejam dirimidos por tribunais arbitrais51.

E, de facto, tempos houve em que estava “fora de causa a arbitragem no domínio do

contencioso dos atos e normas”52. A verdade, porém, é que, como refere Mário Aroso

de Almeida, é duvidoso que vigore “em Portugal uma reserva de jurisdição estadual

no que concerne aos litígios que envolvam a Administração Pública. E nesse sentido

deve ser interpretado o artigo 212.º, n.º 3, da Constituição (…), quando determina

que «[c]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos

contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas

administrativas e fiscais». Com efeito, o artigo 209.º da Constituição, ao enunciar as

«categorias de tribunais» que são admitidas na ordem jurídica portuguesa, refere-se,

no seu n.º 2, aos tribunais arbitrais (…). Ora, como é evidente e tal como sucede,

desde logo, com o artigo 211.º da Constituição, que define o âmbito da jurisdição dos

51 Autores há que sustentam que, estando em causa uma relação jurídica administrativa, não

se pode assistir “a uma espécie de subtração ao âmbito material reservado à jurisdição administrativa – e, portanto, não apenas (…) à reserva de jurisdição dos tribunais estaduais – de um ato típico da função administrativa” (GOMES CANOTILHO, Parecer, cit., pp. 85 ss). Em particular, no campo do desporto, constituindo a federação desportiva “um dos exemplares mais relevantes do fenómeno do exercício de poderes públicos administrativos de autoridade por entidades privadas”, corolário natural “é a sujeição dos atos praticados no exercício desses poderes à jurisdição administrativa”. E, assim sendo, a criação de um tribunal arbitral necessário do desporto – que não se confunde com um tribunal administrativo de competência especializada em questões desportivas – pode colocar a dúvida específica da conformidade com a reserva constitucional da jurisdição administrativa, tanto mais que as federações desportivas atuam “perante «administrados» que nelas estão inscritos, mas que não são seus associados obrigatórios, nem participam em qualquer processo de legitimação dos seus dirigentes”. Ou seja, “para estes administrados, as federações afiguram-se autoridades tão estranhas – tão «hétero-administrações» - como qualquer instância burocrática da Administração Pública” (cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., pp. 835, 858 e 862 ss – cfr. ainda, sobre os Acórdãos da 1ª Secção do STA de 7 de junho de 2006 (processo n.º 262/06) e de 10 de setembro de 2008 (processo n.º 120/08), no qual se delimita restritivamente o conceito de matéria estritamente desportiva, defendendo-se que “todas as decisões que possam pôr em causa direitos fundamentais ou direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas não podem ficar subtraídas à jurisdição do Estado”, respetivamente, PEDRO GONÇALVES, A «soberania limitada» das federações desportivas, in CJA, n.º 59 (2006), pp. 41 ss, e PEDRO DELGADO

ALVES, Procurando o limite das quatro linhas, in CJA, n.º 83, 2010, pp. 12 ss (em especial, pp. 25-26)). O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 230/2013, justamente a propósito do Tribunal Arbitral do Desporto, considerou que “a especificidade do direito público e a vinculação da atuação administrativa ao princípio da juridicidade e à realização do interesse público torna (…) discutível que a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas fique sujeita a mecanismos de jurisdição arbitral por não estar aí em causa uma autonomia de vontade e um poder de disposição sobre o objeto do pleito”.

52 Cfr. ARTUR MAURÍCIO / DIMAS DE LACERDA / SIMÕES REDINHA, Contencioso Administrativo, Lisboa: Rei dos Livros, 1997, p. 63.

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tribunais judiciais, também o artigo 212.º, n.º 3, não pode deixar de ser lido de

harmonia com o artigo 209.º, n.º 2, para o efeito de se reconhecer que ele só confere

poderes de jurisdição aos tribunais (administrativos e fiscais) do Estado sob reserva

da existência de tribunais arbitrais e, portanto, da possibilidade da sua intervenção,

com a extensão que ao legislador cumpre delinear no exercício da sua natural

liberdade de conformação”53. Não significa isto que o legislador, na definição das

competências dos tribunais arbitrais em matéria administrativa, na organização do

respetivo processo e na regulamentação do regime de recursos, possa ignorar as

vinculações constitucionais que a própria proteção do interesse público impõe. Daí

que o ponto de equilíbrio que seja encontrado pelo legislador democrático deva

assegurar que não fique totalmente na simples disponibilidade das partes num

processo arbitral “o interesse na legalidade de um ato administrativo suscetível de

afetar interesses públicos ou difusos e produzir efeitos em relação a terceiros,

envolvendo questões de magna relevância social, cultural ou patrimonial”54.

Contudo, como o exemplo do regime jurídico da arbitragem institucionalizada em

matéria tributária evidencia, há um amplo espaço para a previsão por lei do recurso

à arbitragem mesmo quando estão em causa relações jurídicas administrativas (em

sentido amplo) que envolvam o exercício de poderes de autoridade. A própria

fungibilidade funcional entre contrato – domínio em que tradicionalmente se admite

53 Cfr., concluindo inclusivamente que, para efeitos do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da

Constituição, “os tribunais administrativos, em Portugal, não são apenas os tribunais permanentes do Estado, como tais previstos na lei, mas são também os tribunais (administrativos) arbitrais que venham a ser constituídos para dirimir litígios jurídico-administrativos”, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre o âmbito das matérias passíveis de arbitragem de direito administrativo em Portugal, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, II, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 7-8.

54 Cfr. SÉRVULO CORREIA, Direito do Contencioso Administrativo, I, Lisboa: Lex, 2005, p. 733 – cfr. ainda RUI MEDEIROS, A proteção processual do adjudicatário em face de uma recusa de visto no âmbito da fiscalização prévia de contratos pelo Tribunal de Contas, in Revista de Contratos Públicos, n.º 1 (2011), pp. 78 ss – cfr. ainda, lembrando, em qualquer caso, que nas soluções ponderadas a estabelecer pelo legislador nada impede que se estabeleça, como na atual LAV, um princípio geral de irrecorribilidade de sentenças arbitrais na arbitragem administrativa, PEDRO GONÇALVES, Administração Pública e arbitragem – em especial, o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais, pp. 783 ss (em especial, 793 ss).

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o recurso à arbitragem administrativa – e ato, crescentemente admitida, favorece o

alargamento do âmbito da arbitragem nestes domínios55.

III. Justifica-se abrir parênteses para referir que é, justamente, nesta sede – das

opções do legislador ordinário, legitimado democraticamente, em matéria de

arbitragem – que tem sentido convocar, à semelhança de outros princípios

constitucionais, o princípio da igualdade. Afigura-se importante, no entanto, não

obliterar que a Constituição não impõe, em matéria de organização judiciária e de

processo jurisdicional, um regime uniforme ou um tratamento igualitário.

Concretamente, no que se refere à questão objeto destas linhas – circunscrita à

problemática da conformidade à Constituição da imposição por via legal da

arbitragem necessária –, não estando em causa discriminações suspeitas, basta, para

que a criação de tribunais arbitrais necessários para certas categorias de litígios

resista ao crivo da igualdade, que haja razões atendíveis – e não uma opção

meramente arbitrária – para a solução gizada pelo legislador. E, já se vê, tais razões

tanto se podem prender, como sucede na arbitragem necessária em matéria de

medicamentos de referência e medicamentos genéricos, com a intenção de

estabelecer um mecanismo alternativo de composição dos litígios que permita

descongestionar os tribunais estaduais e assegurar, num curto espaço de tempo,

“uma decisão de mérito quanto à existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade

industrial”56, como com o reconhecimento, como sucede com a criação do Tribunal

Arbitral do Desporto, da autonomia do sistema desportivo57.

55 Cfr. RUI MACHETE, O alargamento do âmbito das matérias sujeitas à arbitragem administrativa no

direito português, in VII Congresso do Centro de Arbitragem Comercial, Coimbra: Almedina, pp. 174 e 182 ss..

56 Cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 13/XII. 57 Cfr., porém, se bem que noutro contexto, insistindo muito – mas, na perspetiva aqui

adotada, sem razão – na ideia de que não se podem aceitar as tentativas de fragmentação setorial do regime da arbitragem, chegando mesmo a afirmar que “a eventual opção do legislador por uma expansão do âmbito da arbitrabilidade dos litígios jus-administrativos, que implicasse o abandono do critério da disponibilidade do direito, teria necessariamente – sob pena de intolerável contradição sistemática e valorativa – de ser acompanhada pelo abandono desse critério também no Direito Privado”, ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, A arbitragem de litígios com entes públicos, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 72-74 e 82.

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O mesmo critério há-de valer, em qualquer caso, para a questão do regime de

recursos58 ou em relação aos encargos de arbitragem59, bem como, embora esta

dimensão extravase já do objeto do tema aqui em análise – o qual não inclui a

apreciação da bondade jurídico-constitucional do modo como a lei, em concreto,

organiza as arbitragens em causa, define o estatuto dos árbitros e regula o processo

arbitral –, para outros aspetos do regime aplicável em matéria de arbitragem

necessária.

IV. Fechados os parênteses, cumpre agora acrescentar que uma leitura

integrada da Constituição não favorece o entendimento segundo o qual o direito

de acesso aos tribunais tem em vista apenas os tribunais estaduais.

Para além do argumento literal, se a Constituição recusa expressamente um

monopólio estadual da função jurisdicional e inclui expressamente, na enumeração

das categorias de tribunais, os tribunais arbitrais, que são assim qualificados como

verdadeiros tribunais, a conclusão para que aponta uma interpretação

58 O problema colocou-se em relação ao Tribunal Arbitral do Desporto. Recorde-se que, na

argumentação utilizada pelo Presidente da República no requerimento de fiscalização preventiva (citada no texto do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013), se afirma expressamente que os particulares que são parte em determinados litígios em matéria desportiva e sujeitos, por esse facto, à jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto são tratados, no plano das suas garantias contenciosas, mais desfavoravelmente do que outros particulares, mesmo aqueles que são parte noutros litígios igualmente submetidos à arbitragem necessária, na medida em que os segundos têm tido, sempre, a faculdade de recorrer para os tribunais estaduais das decisões arbitrais, o mesmo não sucedendo com os primeiros. Ora, conclui o requerimento do Presidente da República, a discriminação negativa de que as partes das relações arbitrais necessárias julgadas pelo Tribunal Arbitral do Desporto são casuisticamente submetidas no plano das suas garantias contenciosas de acesso aos tribunais estaduais, em face dos demais cidadãos envolvidos em litígios julgados por instâncias arbitrais necessárias, pelo facto de não assentar num fundamento material razoável ou entendível, configura uma decisão arbitrária e viola, por isso mesmo, o principio da igualdade. Todavia, a segunda parte deste trabalho vai procurar evidenciar, em contrapartida, que, no caso em questão, há razões atendíveis que justificam um tratamento diferenciado em sede de regime de recursos.

59 Em matéria de encargos de uma arbitragem necessária – além de a justiça arbitral necessária não poder “ser denegada por insuficiência de meios económicos” (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição) – cfr., sobre a relevância desta dimensão na jurisdição arbitral, considerando que não estando prevista a atribuição de apoio judiciário nos tribunais arbitrais, o recurso à arbitragem pode colocar uma das partes numa situação de indefesa, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 311/2008 (bem como JOSÉ MIGUEL JÚDICE, Anotação ao Acórdão 311/08 do Tribunal Constitucional, in Arbitragem e Conciliação, n.º 2, 2009, pp. 161 ss (em especial, 179 ss)) –, é preciso assegurar que as custas, embora não tenham de ser de montante igual independentemente da natureza do processo, não são arbitrariamente mais elevadas (cfr. RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 20.º, in Constituição Portuguesa anotada (Jorge Miranda / Rui Medeiros), I, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 431-432).

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sistematicamente comprometida do preceito que consagra o direito fundamental de

acesso aos tribunais em geral vai justamente no sentido de que a tutela jurisdicional

efetiva pode exercer-se quer através dos tribunais estaduais quer por recurso aos

tribunais arbitrais – “uns e outros exercem, com igual dignidade, a função jurisdicional”60.

Pode falar-se, por isso, de uma “concorrência e equivalência funcionais” entre a

jurisdição estadual e a jurisdição arbitral61.

Por outro lado, como já foi assinalado, se o direito de acesso aos tribunais só

valesse para os tribunais estaduais, isso significaria que os tribunais arbitrais não

estariam constitucionalmente vinculados – mas apenas nos termos da Lei da

Arbitragem Voluntária – à observância dos princípios fundamentais que, segundo o

mesmo artigo 20.º, devem ser respeitados em qualquer processo jurisdicional, em

particular a sujeição ao princípio estruturante do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4,

da Constituição). Ora, pelo contrário, se a relevância crescente da arbitragem em

geral se harmoniza com as profundas mutações que a realidade normativa tem

conhecido na atual constelação pós-nacional, o desafio que se coloca por imposição

constitucional é, precisamente, o de “delimitar as garantias de um due process de que

sempre terá de estar imbuído um Estado de Direito”62.

E não se diga que o direito fundamental de acesso aos tribunais só opera no

âmbito das relações entre cidadãos e Estado. Com efeito, para quem recuse uma

perspetiva meramente conceptualista, essa afirmação está por demonstrar. Além

disso, ao contrário do que por vezes se afirma, a ideia de que a arbitragem constitui

“uma forma de privatização da função jurisdicional”, na qual “o Estado abandona, a favor

dos sujeitos privados que se encontram em litígio, num processo de verdadeira autorregulação

dos conflitos, o seu monopólio no âmbito da administração da justiça”63, suscita as maiores

reservas. Não se esqueça, com efeito, que, como já foi referido, a arbitragem não

60 Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Arbitragem «necessária», «obrigatória», «forçada»: breve nótula sobre a

interpretação do artigo 182.º do CPTA, cit., p. 258. 61 Cfr. PAULO RANGEL, Arbitragem e Constituição: um novo lugar e um novo fundamento, in

Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 647.

62 Cfr. PAULO RANGEL, Arbitragem e Constituição: um novo lugar e um novo fundamento, cit., p. 656. Cfr. ainda ISABEL CELESTE M. FONSECA, A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?, cit., p. 176.

63 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., pp. 63-64.

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pode deixar de ser enquadrada por ato legislativo64 e, nessa medida, não constitui

um espaço livre da lei65.

Numa palavra, não obstante o entendimento recentemente acolhido pelo

Tribunal Constitucional nos citados Acórdãos n.ºs 230/2013 e 781/2013, pode e deve

concluir-se, em linha com o afirmado no Acórdão n.º 250/96, que “o tribunal arbitral,

como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais”66.

V. A conclusão alcançada – ao assumir que o direito de acesso aos tribunais

não se circunscreve ao universo dos tribunais estaduais – significa que o problema

do direito ao recurso das decisões arbitrais se deve enquadrar no quadro mais

vasto do modo como, à luz do direito de acesso aos tribunais e a uma tutela

jurisdicional efetiva, a questão da recorribilidade das decisões jurisdicionais é

constitucionalmente enquadrada.

Como é sabido, “é jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que

o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos

interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses

legalmente protegidos (…). A existência de limitações à recorribilidade funciona como

mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja,

na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da

esmagadora maioria) das ações aos diversos «patamares» de recurso”67.

O próprio Tribunal Constitucional reconhece, no entanto, que a exigência de

um duplo grau de jurisdição está constitucionalmente consagrada em certos

domínios (v.g. no âmbito do processo penal e, porventura, das restrições de direitos,

64 Cfr., a propósito do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86, que considerou que a

reserva de competência legislativa parlamentar relativa à organização e competência dos tribunais abrangia diretamente os tribunais arbitrais, MIGUEL GALVÃO TELES, Recurso para Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais arbitrais, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 646-647.

65 Cfr., no sentido, justamente, de que o Tribunal Arbitral do Desporto “não é um tribunal estadual, mas porque surge em virtude de um ato legislativo e não como resultado de um negócio jurídico privado de direito privado, é irrecusável o seu carácter tipicamente publicístico (…) e a marca da criação estadual”, declaração de voto de MARIA JOÃO ANTUNES anexa ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013.

66 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 250/96. 67 Cfr. RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 20.º, in Constituição Portuguesa anotada (Jorge Miranda

/ Rui Medeiros), I, cit., p. 449.

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22

liberdades e garantias). E, mesmo fora desses domínios específicos, o legislador

ordinário não pode ignorar que esta matéria não é constitucionalmente neutra.

Concretamente, a Constituição pressupõe a recorribilidade das decisões dos

tribunais ao aludir a instâncias (artigos 210.º, n.ºs 1, 3, 4 e 5, e 211.º, n.º 2). E, num

Estado de Direito, a plenitude do acesso à jurisdição e os princípios da juridicidade e

da igualdade postulam um sistema que assegure a proteção dos interessados contra

os próprios atos jurisdicionais. É possível, por isso, fundar constitucionalmente um

genérico direito de recorrer das decisões jurisdicionais. E, se é certo que cabe ao

legislador ordinário concretizar, com maior ou menor amplitude, o seu âmbito de

aplicação e conteúdo, está-lhe vedado abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo

substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o

direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos

recursos68.

São estas coordenadas que devem ser tomadas em consideração quando se

discute a recorribilidade das decisões arbitrais. Nada impede, por isso, que, no

âmbito da arbitragem voluntária, estando em causa litígios que envolvam interesses

de natureza patrimonial de que as partes possam dispor, se estabeleça que, sem

prejuízo da possibilidade de impugnação da sentença arbitral ou de interposição de

recursos de constitucionalidade69/70, “a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa

68 Cfr. RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 20.º, in Constituição Portuguesa anotada (Jorge Miranda

/ Rui Medeiros), I, cit., pp. 449 ss – cfr., sobre o direito ao recurso em geral na jurisprudência constitucional portuguesa, por último, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 846/2013.

69 Cfr., sobre o recurso das decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional, MIGUEL GALVÃO

TELES, Recurso para Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais arbitrais, cit., pp. 642 ss (em especial, 644 ss); ANTÓNIO PEDRO PINTO MONTEIRO, Do recurso das decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional, in Themis, ano IX, n.º 16 (2009), pp. 185 ss. Cfr., porém, no que toca especificamente à renunciabilidade ou não do direito de recurso - questão abordada também por MIGUEL GALVÃO TELES (op.cit., pp. 652 ss) –, sublinhando que a natureza autónoma dos tribunais arbitrais sugere a aplicação de um regime distinto em matéria de recursos de constitucionalidade e que o núcleo primordial do artigo 73.º da Lei Orgânica sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, ao estabelecer a irrenunciabilidade do direito ao recurso, tem em vista processos jurisdicionais estritamente públicos, PAULO RANGEL, Arbitragem e Constituição: um novo lugar e um novo fundamento, cit., pp. 652 ss.

70 O recurso de constitucionalidade de uma decisão arbitral assumiu grande notoriedade, em virtude da polémica pública em torno dos chamados contentores de Alcântara, no chamado caso LISCONT, uma vez que da decisão do tribunal arbitral foi, justamente, interposto recurso para o Tribunal Constitucional e, entretanto, objeto do Acórdão n.º 202/2014 (cfr., sobre o problema, NUNO

PIÇARRA, Princípio da Separação de Poderes, Parlamentarismo e Governos Minoritários na Constituição de 76. A Perspetiva Jurisprudencial, in Themis, n.ºs 20/21, ano XI (2011), pp. 140 ss; MIGUEL GALVÃO TELES,

Page 23: RM Arbitragem Necessaria e Constituicao

23

ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o

tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal

possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo

a equidade ou mediante composição arbitral” (artigo 39.º, n.º 4, da LAV). Em

contrapartida, numa arbitragem necessária, como aquela que é imposta, por força da

Lei n.º 62/2011, em matéria de medicamentos de referência e medicamentos

genéricos, na qual se jogam direitos fundamentais, a Constituição dificilmente

toleraria uma solução legal que determinasse a irrecorribilidade em geral das

decisões arbitrais. Mas, como o exemplo do Tribunal Arbitral do Desporto, de que se

falará de seguida, ilustra, isto não significa que decorra da Constituição, sempre e

em qualquer caso, a recorribilidade das decisões proferidas por tribunais arbitrais

necessários.

4. A justificação constitucional da arbitragem, inclusivamente, necessária e

parcialmente definitiva, num Cosmopolitan State ou num offene

Verfassungsstaat71 – o exemplo da arbitragem no desporto

I. Aparentemente, em matéria de arbitragem necessária no desporto, a

garantia da plena recorribilidade das decisões arbitrais impor-se-ia por um

argumento de maioria de razão.

Lê-se, com efeito, no Acórdão n.º 230/2013 que, neste domínio, se está

“perante uma forma de arbitragem necessária e a autoridade administrativa implicada no

processo arbitral é uma entidade privada que apenas intervém na execução de uma tarefa de

interesse público por efeito da transferência do exercício de poderes pertencentes a uma

entidade pública e que, apesar da transferência, se mantêm na sua titularidade. Não é

Beyond the Debate between Jan Paulsson and Pierre Mayer on International Arbitral Tribunals and Hierarchy of Norms, in Escritos Jurídicos, I, Coimbra: Almedina, 2013, p. 649.

71 Para utilizar as fórmulas empregues, respetivamente, por H. PATRICK GLENN, The Cosmopolitan State, Oxford University Press, 2013, e por STEPHAN HOBE, na sua Habilitationsschrift, Der offene Verfassungsstaat zwischen Souveränität und Interdependenz, Berlin: Duncker & Humblot, 1998.

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24

aceitável, num primeiro relance, que o Estado delegue poderes de autoridade numa entidade

privada, operando por essa via uma privatização orgânica da Administração relativamente ao

exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer

controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões

administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências

(…). A circunstância de estarem aqui implicados poderes de autoridade que resultam de uma

transferência de responsabilidade no exercício de uma certa tarefa pública, de que o Estado é

ainda o titular e por cuja execução continua a ser o garante, justifica que se invoque uma

reserva relativa de juiz que proporcione aos tribunais estaduais a última palavra na resolução

de litígios que resultem dessa intervenção administrativa delegada. Ainda que os tribunais

arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional (…), o

direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso

a tribunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de

jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso

ao tribunal arbitral seja livre e voluntário. Ademais, a intervenção de órgãos judiciais do

Estado torna-se particularmente exigível quando se trate de assegurar, no quadro regulatório

da atuação de entidades privadas investidas em poderes públicos, a sua vinculação à lei e aos

princípios materiais de juridicidade administrativa, e, desse modo, também, a adequada

fiscalização do desempenho da tarefa pública que lhes incumbe. Neste contexto, a

irrecorribilidade das decisões arbitrais, tal como previsto na norma impugnada, representa

uma clara violação do direito de acesso aos tribunais, não apenas por se tratar de decisões

adotadas no âmbito de uma arbitragem necessária, mas também pela natureza dos direitos e

interesses em jogo e pelo facto de estar em causa o exercício de poderes de autoridade

delegados”72.

Não se contesta, em tese geral, que não é indiferente, quando o legislador

ordinário se confronta com a questão da arbitrabilidade ou não de questões de

legalidade relativas a atos administrativos, a solução que seja configurada quanto à

possibilidade de um controlo por parte dos tribunais estaduais sobre o mérito da

decisão arbitral. De facto, “a preocupação em garantir a boa aplicação da lei que está

subjacente à defesa, por razões de ordem pública, da impossibilidade de essa matéria poder ser

72 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013.

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apreciada por tribunal arbitral pode ser satisfatoriamente acautelada através do

reconhecimento da possibilidade de impugnação, por vício de fundo, da decisão que, sobre a

matéria, esse tribunal venha a proferir” (sublinhado nosso)73.

Todavia, no caso do Tribunal Arbitral do Desporto, um dos casos que serve

de mote à análise que se está a empreender, uma resposta cabal ao problema só pode

ser obtida se se recusar uma “statist approach” ao fenómeno da “liberal-

autonomous action and function systems of society”74. E, já se vê, nesta perspetiva, a

questão em discussão prende-se em larga medida com o papel do Estado neste

domínio75. É certo que alguns autores enquadram este problema sobretudo à luz de

“uma postura mais ou menos intervencionista ou, num outro sentido, mais ou menos

liberal”76. A verdade, porém, é que uma tal visão se afigura redutora, não conferindo

devida relevância à verificação de que o mundo jurídico de hoje “is an interlocking

web of jurisdictional assertions by state, international, and non-state normative

communities. An each type of overlapping jurisdictional assertion (state versus state; state

versus international body; state versus non-state entity) creates a potentially hybrid legal

space that is not easily eliminated”77, pelo que se torna fundamental, mesmo ao nível de

jurisdição, a construction of interface norms78.

II. Subjacente à leitura aqui preconizada está a ideia de que se assiste hoje, na

atual constelação pós-nacional, caraterizada pela “Öffnung der Grenzen des

73 Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre o âmbito das matérias passíveis de arbitragem de direito

administrativo em Portugal, cit., pp. 21-22 (por isso, em coerência, nada impede que a arbitragem de direito administrativo ganhe “as suas cartas de cidadania” – op. cit., p. 26) – cfr., em qualquer caso, admitindo um princípio geral de irrecorribilidade de sentenças arbitrais tal como está acolhido na nova LAV, PEDRO GONÇALVES, Administração Pública e arbitragem – em especial, o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais, pp. 783 ss (em especial, 793 ss).

74 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization, Oxford Constitutional Theory, 2012, p. 25.

75 Cfr., sublinhando a propósito da jurisdição desportiva, que “em causa está o papel do Estado no desporto”, JOÃO CORREIA, A nova lei de bases da actividade física e do desporto – justiça desportiva: que sentido e que limites?, in Desporto & Direito, ano IV, n.º 11 (2007), p. 222 (cfr. ainda, insistindo na mesma ideia, JOÃO CORREIA, Em defesa da justiça desportiva: uma vez mais, in Desporto & Direito, ano VII, n.º 19 (2009), p. 50.

76 Cfr. PAULO OTERO, Parecer, cit., p. 4. 77 Cfr. PAUL SCHIFF BERMAN, Global Legal Pluralism, in Southern California Law Review, Vol. 80,

2007, p. 1159. 78 Cfr. NICO KRISCH, Beyond Constitutionalism: The Pluralist Structure of Postnational Law,

Oxford University Press, 2012, pp. 285-296.

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26

Territorialstaates”79, à emergência de uma multiplicidade de sistemas normativos

autónomos80 ou, se se quiser, à “triunfante vitória da autonomia das diferentes sub-

racionalidades”81. Estes sistemas autónomos não surgem apenas no quadro das

instituições representativas da política internacional. O que se verifica é antes o

incremento de uma multiplicidade de sistemas autónomos na sociedade mundial.

Esta ideia tem subjacente a verificação da forma policêntrica da globalização e o seu

carácter fragmentado (fragmentação que Gunther Teubner carateriza inclusivamente

como uma “constitutional fragmentation”). Seja como for, neste sentido, cada um dos

diferentes sistemas – mercado económico, ciência, cultura, tecnologia, saúde,

transportes, turismo, desporto – opera autonomamente ao nível global82/83.

III. O exemplo da lex sportiva é justamente, uma boa ilustração do referido

fenómeno84.

a) É bem sabido que antes dos anos 40 do século XX, “e nalguns sistemas

jurídicos muito depois dele e até hoje, o desporto foi sempre organizado por entidades

privadas, as quais, sem qualquer relação especial com o Estado, fixavam as regras que o

enquadravam. Uma vez que uma certa regulação é inerente ao conceito de desporto, pode

dizer-se que as primeiras regras que lhe são dirigidas nascem espontaneamente no próprio

interior do mundo desportivo, com um total alheamento do direito estadual. Sem qualquer

interferência pública, pertencia a organismos privados de natureza associativa as tarefas de

definição das «regras dos jogos», do licenciamento de praticantes e de aplicação de sanções.

79 Cfr. STEPHAN HOBE, Der offene Verfassungsstaat zwischen Souveränität und Interdependenz, cit.,

p. 382. 80 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Societal Constitutionalism: Alternatives to State-Centred Constitutional

Theory, Storrs Lectures 2003-04 Yale Law School, p. 5. 81 Cfr. GUNTHER TEUBNER, A Constitutional Moment? The Logics of «Hitting the Bottom», in The

Financial Crisis in Constitutional Perspective - The Dark Side of Functional Differentiation (ed. POUL F KJAER / GUNTHER TEUBNER / ALBERTO FEBBRAJO), Hart Publishing, Oxford, 2011, p. 12.

82 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization, cit., pp. 51 ss e 329-330.

83 Cfr., sublinhando justamente a relevância das relações entre o Estado constitucional e os “Akteuren der «Gesellschaftswelt»”, num quadro marcado por uma “zunehmende Emanzipation gesellschaftlicher Akteure gegenüber den State”, STEPHAN HOBE, Der offene Verfassungsstaat zwischen Souveränität und Interdependenz, cit., pp. 27 e 309 ss.

84 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization, cit., pp. 54-59 e 73.

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27

Numa palavra, desde o início, o mundo desportivo dotou-se de um «direito próprio» (…)

erigido segundo um princípio de independência em relação ao direito estadual e aos atores

desse direito (legislador, administrador e juiz)”85. “Na prática, tratava-se de uma

autossuficiência que constituía, mais que uma autonomia privada, uma verdadeira

«soberania» desportiva, paralela à soberania do Estado, reforçada pelos laços internacionais de

organização da modalidade”86.

Por razões que são conhecidas e estão estudadas, não sofre contestação que a

tese da independência “da organização, da regulação e da administração desportivas em

relação ao direito do Estado”87 não é hoje aceitável, encontrando-se “totalmente

ultrapassada a conceção originária de uma independência do desporto federado,

fundada num ordenamento jurídico exterior ou estranho ao Estado”88. Pelo contrário

– numa conclusão reforçada numa ordem jurídica, como a portuguesa, em que se

verifica a “constitucionalização do desporto”89 –, “a crescente profissionalização e

comercialização do desporto obriga (…) a um reforço da jurisdicionalização assente num

tecido regulatório nacional e internacional onde as chamadas «questões desportivas» ou do

«foro interno do desporto» surgem cada vez mais imbricadas com questões económicas,

políticas e sociais”90. Em particular, no mundo desportivo, há “toda uma rede de relações

humanas e sociais, em que se confrontam, em variadas composições concretas, diversos

direitos fundamentais das pessoas e organizações, suscitando problemas aos quais a ordem

jurídico-constitucional não pode ser alheia”91. Não é, portanto, “admissível uma lei que

institua o desporto profissional como zona da vida social sujeita a um ordenamento próprio,

transnacional e independente do Estado, com privilégios de extraterritorialidade – um tal

entendimento ofenderia frontalmente a soberania nacional consagrada na Constituição,

85 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., pp. 838-839. 86 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, in II Congresso de

Direito do Desporto, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 33-34. 87 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 839. 88 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, cit., pp. 33-34. 89 Cfr. JOSÉ MANUEL MEIRIM, Desporto e Constituição, in Sub Judice, 8, 1994, pp. 37 ss (em

especial, 45 ss). 90 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito

do desporto profissional, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, I, Coimbra: Almedina, 2012, p. 360. Cfr., aderindo igualmente à ideia de que a “«judiciarização» é um dos factos marcantes no domínio do desporto da última década”, JOÃO CORREIA, A nova lei de bases da actividade física e do desporto – justiça desportiva: que sentido e que limites?, cit., p. 231.

91 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, cit., p. 30.

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constituindo um retrocesso feudal em face dos princípios fundamentais da civilização

moderna e da cultura europeia”92.

A conclusão nada tem, aliás, de anómalo. No quadro de uma visão jurídica

pluralista, os sistemas legais são simultaneamente autónomos e permeáveis: “outside

norms affect the systems, but do not dominate it fully”93. Por outras palavras, “the concept

of legal pluralism does not imply a strict separation between legal regimes. Rather, it

promotes the insight that there is an interaction among the different legal orders”94.

b) Afigura-se, porém, redutor qualquer ideia que assuma simplesmente a

sujeição do direito desportivo ao direito público estadual95. No fundo, um tal

entendimento – ou uma análise da problemática dos direitos fundamentais

perspetivada apenas a partir das tradicionais relações especiais de poder ou do regime

das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias96–, “parece continuar a trabalhar com o

postulado de uma ordem jurídica estadual hierárquica, conformada por uma constituição que

emprestaria a unidade de sentido jurídico-normativo”97. Sem dúvida que se pode dizer, e

já se afirmou, que “o argumento da internacionalização e da existência de um ordenamento

especial, fundado na comparação da FIFA à União Europeia, constitui um equívoco

lamentável e perigoso, porque ignora a legitimidade democrática dos poderes estaduais e as

92 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, cit., p. 36. 93 Cfr. PAUL SCHIFF BERMAN, Global Legal Pluralism, cit., p. 1176. 94 Cfr. ARMIN VON BOGDANDY, Pluralism, direct effect, and the ultimate say: On the relationship

between international and domestic constitutional law, in International Journal of Constitutional Law, VI, n.ºs ¾ (2008), p. 401.

95 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 862. O autor, porém, no rescaldo do Acórdão n.º 230/2013, corrigiu ou clarificou o seu entendimento, afirmando que alguns fatores específicos do caso concreto justificavam um juízo de não inconstitucionalidade (cfr. PEDRO GONÇALVES, Administração Pública e arbitragem – em especial, o princípio legal da irrecorribilidade de sentenças arbitrais, pp. 779-780, em nota).

96 Cfr., desenvolvendo toda uma argumentação no sentido de que “a atribuição de uma autonomia plena à justiça desportiva mediante a sujeição a arbitragem necessária dos litígios emergentes do exercício de poderes públicos, por parte das entidades desportivas, corresponderia a uma restrição de um direito fundamental em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade”, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013 – cfr. ainda, sobre as especificidades do estatuto jusfundamental do desportista e das federações desportivas, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos, liberdades e garantias na relação desportiva (polic.), cit., pp. 25 ss.

97 Cfr., no sentido de que “os regulamentos administrativos editados e os atos administrativos praticados pelos órgãos federativos estão, como quaisquer outros regulamentos ou atos da mesma natureza, sujeitos à fiscalização dos tribunais administrativos” (sublinhado nosso), GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito do desporto profissional, cit., p. 367.

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bases do direito internacional em que assenta a limitação dos poderes soberanos no contexto

da construção europeia”98. A verdade, porém, é que uma “statist answer”, com o seu

“state dirigisme”, ao assumir que “the state’s constitutional norms themselves

«organize» «liberal-autonomous action and function systems of society»”, revela

uma “typical over-estimation of the regulatory power of the state in relation to the

evolutionary dynamics of social differentiation”99.

Subjacente a este entendimento está o reconhecimento de que o sistema

desportivo se organiza “em pirâmide, em cuja base se encontra o cidadão que se inscreve

num pequeno clube membro de uma associação regional, a qual, por sua vez, está integrada

numa federação nacional, estando, por fim, esta integrada numa federação internacional. A

dimensão internacional da organização do desporto promove um complexo sistema de

hierarquias entre organizações privadas (locais, regionais e sobretudo nacionais e

internacionais) no qual nem sempre se apresenta fácil o enxerto de um «ator externo», como é

o caso do Estado”100. Concretamente, “à escala da lex sportiva (sobretudo no quadro

das relações entre a norma interna e a norma do ordenamento desportivo

transnacional), e não já da ordem jurídica portuguesa, as federações são estruturas

associativas agregadas a estruturas associativas mais amplas, por sua vez vinculadas

ao Comité Olímpico Internacional”101. É importante não esquecer que é, justamente,

neste quadro multilevel, apoiado nos próprios regulamentos internacionais (v.g.

Estatutos da UEFA ou Estatutos da FIFA), que se propugna frequentemente uma

autorregulação do setor desportivo, privilegiando ou exigindo – sob a ameaça da

imposição de sanções – “a recorribilidade dos atos praticados em procedimentos

disciplinares ou de natureza jurisdicional interna apenas para outras instâncias desportivas

98 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, cit., p. 38. 99 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization,

cit., p. 25. 100 Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, cit., p. 840. Cfr., falando em

“sobreposição de competências”, JOÃO CORREIA, Princípios para um novo contencioso desportivo, in I Congresso de Direito do Desporto, Coimbra: Almedina, 2005, p. 78.

101 Cfr. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos, liberdades e garantias na relação desportiva, 2008 (polic.), p. 8.

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30

no plano nacional ou para instâncias internacionais arbitrais (os órgãos disciplinares das

federações internacionais ou o Tribunal Arbitral Desportivo, sedeado em Lausanne)”102.

Ora, nesta “superconstelação normativa do direito do desporto”103, caraterizada por

uma “geografia desestadualizada” na qual a componente internacional da regulação do

desporto reforça a autonomia do ordenamento jurídico desportivo104, em que “muita

da regulação normativamente vinculante emana de entidades autónomas (comité olímpico,

uniões de federações, federações), invocando-se as exceções ao âmbito de aplicabilidade de

normas nacionais internas em nome da «reserva do desporto» ou da «especificidade do

desporto»”105, não pode fugir-se ao “problema básico quanto ao âmbito de aplicabilidade

das normas internas de um país aos problemas do desporto”106. A questão coloca-se

inclusivamente ao nível dos direitos fundamentais. Não se trata, sublinhe-se, de pôr

em causa a titularidade de direitos fundamentais nas relações jurídicas desportivas.

O problema que, em rigor, se coloca é antes “o de saber como se resolvem as colisões

jusfundamentais resultantes da aplicação a um pressuposto fáctico-desportivo dos

pressupostos normativos fixados por outras instâncias autónomas no contexto de uma rede

internormativa policêntrica”107, questão que obriga a deslocar a temática “da

compreensão individual da colisão de direitos para uma compreensão institucional”108/109.

102 Cfr., embora criticamente, “atenta em particular a necessidade de assegurar a plena tutela

jurisdicional efetiva dos particulares, através do recurso aos órgãos jurisdicionais do Estado”, PEDRO DELGADO ALVES, Procurando o limite das quatro linhas, cit., pp. 23 e 27-28.

103 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito do desporto profissional, cit., pp. 357 ss.

104 Cfr. PEDRO GONÇALVES, A «soberania limitada» das federações desportivas, cit., pp. 53 e 59. 105 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no

âmbito do desporto profissional, cit., p. 361. 106 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no

âmbito do desporto profissional, cit., p. 361. 107 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no

âmbito do desporto profissional, cit., p. 366. 108 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no

âmbito do desporto profissional, cit., p. 367. 109 Cfr., aceitando que se deve “continuar a aceitar uma autonomia normativa e até judicativa

do setor” e que “o tribunal deve usar de autocontenção no juízo, devendo respeitar a autonomia desportiva, em termos semelhantes àqueles em que respeita a discricionariedade administrativa ou a autonomia privada dos cidadãos – por exemplo, poderá anular uma sanção se for manifesta a violação do direito fundamental” –, VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais e o direito do desporto, cit., p. 35.

Page 31: RM Arbitragem Necessaria e Constituicao

31

Esta problemática das “colisões intersistémicas”110 – “saber como resolver as

controvérsias próprias da fragmentação do direito por diferentes racionalidades sociais”111 – é

hoje uma questão central do constitucionalismo. A relação entre as diferentes “aldeias

globais” não é necessariamente harmoniosa, sendo, por isso, absolutamente decisivo

encontrar formas para resolver as colisões entre os diferentes fragmentos

constitucionais112. E, numa ordem plural, marcada aparentemente por uma “Kafkian

complexity”, impõe-se a adoção de uma lógica de acomodação mútua113, com o

consequente “shift from rules of conflict to rules of engagement”114. De facto, “in a world

society with neither apex nor centre, there is just one way remaining to handle inter-

constitutional conflicts – a strictly heterarchical conflict resolution”115/116.

c) A linha de argumentação adotada não se esgota no plano do direito

substantivo, tendo evidentes refrações em sede de direito adjetivo. Da existência de

múltiplos polos normativos que reclamam aplicação advém inevitavelmente uma

certa relativização do papel da jurisdição estadual117. Tem sentido que o próprio

110 Cfr., analisando situações muito diversas em que se coloca justamente o problema de

“colisões duradouras entre racionalidades diferenciadas (direito de colisão intersistémico)” ou, se se quiser, “entre sistemas sociais”, GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito do desporto profissional, cit., pp. 368 ss.

111 Cfr. GOMES CANOTILHO / ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito do desporto profissional, cit., p. 372.

112 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization, cit., pp. 330 e 334.

113 Cfr. NICO KRISCH, Beyond Constitutionalism: The Pluralist Structure of Postnational Law, Oxford University Press, 2012, pp. 126-129, 133 e 143-152.

114 Cfr., sublinhando ainda que “these rules of engagement characteristically take the forms of a duty to engage, the duty to take into account as a consideration of some weight, or presumptions of some sort”, MATTIAS KUMM, The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: On the Relationship between Constitutionalism in and beyond the State, in Ruling the World? Constitutionalism, International Law and Global Governance (ed. Dunoff / Trachtman), Cambridge University Press, 2009, p. 289 – cfr. ainda MATTIAS KUMM, Constitutional Democracy Encounters International Law: Terms of Engagement, in New York University / School of Law - WP, 2006, p. 40). Este duty to engage não se limita a fazer apelo a uma ideia, dogmaticamente mais pobre, de diálogo entre tribunais (MATTIAS KUMM, Constitutional Democracy Encounters International Law: Terms of Engagement, pp. 40-41).

115 Cfr. GUNTHER TEUBNER, Fragmented Foundations: Societal Constitutionalism and Globalization, cit., p. 152.

116 Cfr., no sentido de que “Leitbild der neuen Epoche ist eine Wechselbezüglichkeit und Komplementarität zwischen offenem Staat und der (dichter und pluralistischer) gewordenen internationalen Ordnung“, RAINER WAHL, Der offene Staat und seine Rechtsgrundlagen, in Juristische Schulung, 43.º, n.º 12 (2003), p. 1151.

117 Cfr. PAULO RANGEL, Arbitragem e Constituição: um novo lugar e um novo fundamento, cit., p. 644.

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legislador, ao definir a arbitragem necessária no desporto, assuma uma perspetiva

pluralista.

Ora, como já se sublinhou, “pluralism offers possibilities for thinking about spaces

of resistance to state law. Indeed, by recognizing at least the semiautonomy of conflicting

legal orders, pluralism necessarily examines limits to the ideological power of state legal

pronouncements. Pluralists do not deny the significance of state law and coercive power, of

course, but they do try to identify places where state law does not penetrate or penetrates only

partially”118.

Perspetivada a questão a esta luz, assumindo que “institutional

cosmopolitanism requires adjustment of competing claims”119, pode agora concluir-se que

a solução consagrada no diploma considerado inconstitucional pelo Acórdão do

Tribunal Constitucional n.º 230/2013, na medida em que admitia expressamente,

não só a possibilidade de impugnação das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto

com os fundamentos e nos termos previstos na LAV, mas também a sujeição das

decisões arbitrais ao regime de recursos para o Tribunal Constitucional em sede de

fiscalização concreta da constitucionalidade, estava longe de configurar o desporto

como “uma área ou espaço «livre do direito», designadamente dos direitos fundamentais”120,

sendo, por isso, criticável a ideia de que “toda a construção legal do Tribunal Arbitral do

Desporto aponta para o satisfazer de um «anseio independentista» do associativismo

desportivo”121. O controlo da constitucionalidade – associada à força expansiva do

conceito de norma fiscalizável pelo Tribunal Constitucional – assegurava, por si só, a

sujeição da jurisdição arbitral desportiva ao bloco de constitucionalidade. E, num

Estado cosmopolita ou aberto, no qual a relação entre o direito desportivo e o direito

estadual não abdique de uma ideia de “Akzeptanz gegenseitiger Autonomie”122, a

solução assim gizada pelo legislador democrático constituía um equilíbrio razoável e

constitucionalmente legítimo.

118 Cfr. PAUL SCHIFF BERMAN, Global Legal Pluralism, cit., pp. 1176-1177. 119 Cfr. H. PATRICK GLENN, The Cosmopolitan State, cit., p. 290. 120 Cfr., embora a afirmação surja em contexto completamente diferente, GOMES CANOTILHO /

ALEXANDRA PESSANHA, Relações jurídicas jusfundamentais no âmbito do desporto profissional, cit., p. 362. 121 Cfr. ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA, A arbitragem desportiva em Portugal: uma realidade sem

futuro? - anotação ao Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, cit., p. 73. 122 Cfr. STEPHAN HOBE, Der offene Verfassungsstaat zwischen Souveränität und Interdependenz,

cit., p. 316.