repositorio.unb.br · rodolfo ilÁrio da silva povos indÍgenas em isolamento voluntÁrio na...
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
RODOLFO ILÁRIO DA SILVA
POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO NA AMAZÔNIA
BRASILEIRA: O SEXTO SÉCULO DE GENOCÍDIOS E DIÁSPORAS INDÍGENAS
BRASÍLIA
2017
RODOLFO ILÁRIO DA SILVA
POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO NA AMAZÔNIA
BRASILEIRA: O SEXTO SÉCULO DE GENOCÍDIOS E DIÁSPORAS INDÍGENAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais da Universidade de
Brasília como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Relações Internacionais.
Área de Concentração: Política Internacional e
Comparada
Orientador: Prof. Dr. Alcides Costa Vaz
BRASÍLIA
2017
RODOLFO ILÁRIO DA SILVA
POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO VOLUNTÁRIO NA AMAZÔNIA
BRASILEIRA: O SEXTO SÉCULO DE GENOCÍDIOS E DIÁSPORAS INDÍGENAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade
de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Relações
Internacionais.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Presidente - Prof. Dr. Alcides Costa Vaz (Orientador)
Universidade de Brasília (UnB)
__________________________________________________
Profª. Drª. Cristina Yumie Aoki Inoue (Examinadora)
Universidade de Brasília (UnB)
__________________________________________________
Prof. Dr. João Nackle Urt (Examinador)
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
__________________________________________________
Prof. Dr. Cristhian Teófilo da Silva (Examinador)
Universidade de Brasília (ELA-UnB)
__________________________________________________
Prof. Drª. Ana Flávia Granja e Barros (Suplente)
Universidade de Brasília (UnB)
Brasília – DF, 07 de Dezembro de 2017.
À minha família, com amor.
Aos povos indígenas e ancestrais, com respeito.
A Raimundo Irineu Serra, José Gabriel da Costa,
e Daniel Pereira de Matos, com gratidão.
AGRADECIMENTOS
De todo coração, agradeço primeiramente à minha mãe, Luciane, e ao meu pai, Carlos,
pelo amor que me deram, pelas oportunidades que me ofereceram e por todas as sementes que
plantaram em minha vida. Agradeço ao meu irmão Carlos pelo exemplo de seriedade, trabalho
e pela amizade que desenvolvemos. Agradeço à minha irmã Bárbara por tudo que eu pude
aprender sendo seu irmão e amigo. Eu amo vocês.
Aos muitos amigos com que a vida me presenteou eu também agradeço com alegria.
Irmãos que também foram e são fundamentais para mim. Um abraço a toda nossa turma de
Bebedouro-SP: Patrick, Carnero, Cássio, Fábio, Bim, Vitão, Guilherme, Thiago, meu primo
Paulão. Aos irmãos e companheiros na bela jornada por Marília-SP: Lucas, Matheus, Hermes,
Neto, Caio, Bebeto, Du, Léo Lessin, Carlitos Aurélio, Henricão e Léozito. Ao Alejandro, pela
amizade e parceria ao longo de todo o período do doutorado.
Agradeço especialmente ao amigo Antenor Vaz, pelo diálogo, pelos incentivos e pela
imensa contribuição que teve para esta pesquisa, renovando meu interesse pelo tema a cada
conversa que tivemos e oferecendo muito mais livros, artigos, documentos, dados e
conhecimentos do que eu pude analisar, por enquanto.
Agradeço ao meu orientador, Alcides Costa Vaz, pela confiança em meu trabalho, por
ouvir as minhas ideias e as minhas dificuldades ao longo dessa jornada de doutoramento
acadêmico, acompanhada de outras provas e mudanças da vida. Sua serenidade, orientação e
incentivo foram fundamentais, professor. Assim agradeço também aos demais professores,
funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade de Brasília, bem como a esta instituição que acolheu o presente trabalho.
Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pela bolsa recebida entre Março de 2014 e Setembro de 2015 para a realização desta pesquisa.
Um agradecimento especial também à Universidade Federal do Tocantins (UFT),
instituição na qual tive a felicidade de ingressar como professor efetivo do curso de Relações
Internacionais no ano de 2015, e que me concedeu afastamento para qualificação ao longo do
ano de 2017, tornando viável e muito mais produtiva a fase final de redação desta tese. Também
aos alunos, pela inspiração e pelos desafios que despertam.
Assim agradeço também a todos os amigos e amigas que tornaram minha chegada ao
Tocantins ainda mais alegre, especialmente a Emerson Jorge, Ângelo e Vaídes Borges, na
pessoa de quem agradeço a toda irmandade do Céu do Cerrado, que me acolheu, me alegrou, e
foi também fundamental para que eu conseguisse levar a cabo este trabalho.
Por fim, esta parte do trabalho também é dedicada a agradecer a todos e todas que
defenderam e que seguem defendendo a Floresta Amazônica e seus povos, principalmente
àqueles que o fazem a partir de dentro, lá, nas linhas de frente, enfrentando a violência covarde
dos invasores, antigos e contemporâneos. O primeiro agradecimento é devido, portanto, aos
povos indígenas, que resistiram e continuam resistindo bravamente à invasão e à destruição de
seus territórios, culturas, cosmologias, da natureza e de suas diversas formas de vida. Muitos
outros povos e pessoas se somam a essa luta, de distintas formas. E fazem isto mesmo sabendo
dos incontáveis e frequentes assassinatos, historicamente impunes e que continuam a ocorrer
com frequência e em quantidades inaceitáveis.
“Cipó Caboclo tá subindo na virola
Chegou a hora do Pinheiro balançar
Sentir o cheiro do mato, da Imburana
Descansar, morrer de sono na sombra da Barriguda
De nada vale tanto esforço do meu canto
Pra nosso espanto tanta mata haja vão matar
Tal Mata Atlântica e a próxima Amazônica
Arvoredos seculares impossível replantar
Que triste sina teve o Cedro, nosso primo
Desde de menino que eu nem gosto de falar
Depois de tanto sofrimento seu destino
Virou tamborete, mesa, cadeira, balcão de bar
Quem por acaso ouviu falar da Sucupira
Parece até mentira que o Jacarandá
Antes de virar poltrona, porta, armário
Mora no dicionário, vida eterna, milenar
Quem hoje é vivo corre perigo
E os inimigos do verde dá sombra ao ar
Que se respira e a clorofila
Das matas virgens destruídas vão lembrar
Que quando chegar a hora
É certo que não demora
Não chame Nossa Senhora
Só quem pode nos salvar é
Caviúna, Cerejeira, Baraúna
Imbuia, Pau-d'arco, Solva
Juazeiro e Jatobá
Gonçalo-Alves, Paraíba, Itaúba
Louro, Ipê, Paracaúba
Peroba, Massaranduba
Carvalho, Mogno, Canela, Imbuzeiro
Catuaba, Janaúba, Aroeira, Araribá
Pau-Ferro, Angico, Amargoso, Gameleira
Andiroba, Copaíba, Pau-Brasil, Jequitibá
Música: Matança, Letra: Jatobá
Ínterprete: Xangai Álbum: Cantoria 1
RESUMO
Esta pesquisa é dedicada ao estudo macro-histórico sobre os povos indígenas em isolamento e
recente contato (PIIRC) presentes na Amazônia brasileira. Segundo a Organização das Nações
Unidas e a Organização dos Estados Americanos, existem aproximadamente 200 grupos
indígenas vivendo em situações de isolamento na América do Sul. No Brasil, o Estado
reconhece a existência de 103 grupos em isolamento e 18 grupos de recente contato,
praticamente todos localizados na região amazônica. O objetivo geral da pesquisa é
compreender como a situação contemporânea destes povos está relacionada com as dinâmicas
de expansão política, territorial e econômica dos processos de colonização e de colonialismo
interno no país. A hipótese trabalhada é a de que esta situação pode ser descrita como o sexto
século de genocídios e de diásporas indígenas, verificada a continuidade das práticas de
violências, usurpações territoriais e violações de direitos dos povos indígenas, bem como os
processos de fuga sistemática a que estão submetidos os grupos que se recusam a manter
relações com a sociedade envolvente. Ambos os processos, de genocídios e diásporas, se
iniciaram com a colonização, prosseguiram através do colonialismo interno, e seguem em curso
atualmente por meio da apropriação dos recursos e dos territórios amazônicos para serem
incorporados aos mercados nacional/global. Logo, a dimensão cronológica desta caracterização
não pretende representar um processo absoluto e linear, mas dinâmicas que passaram por
momentos de maior e de menor intensidade, com mudanças dos agentes históricos envolvidos,
mas que, até esta segunda década do século XXI, ainda não foram abolidas. Tampouco se trata
de promover uma perspectiva de vitimização histórica dos povos indígenas, visto que as
diásporas e o isolamento voluntário são estratégias indígenas de resistência e de busca pela
autodeterminação.
Palavras-chave: Amazônia; Povos indígenas; Isolamento Voluntário.
ABSTRACT
According to the United Nations and the Organization of American States there are
approximately 200 indigenous groups living in isolation or recent contact (PIIRC) in South
America. In Brazil, the government recognizes 103 groups in isolation and 18 groups in recent
contact. From a macro-historical perspective, the main objective is to identify how the
contemporary situation of these peoples is related to the political, territorial and economic
expansion dynamics of the colonization and internal colonialism processes in Brazil. Our
hypothesis is that this situation can be described as the sixth century of indigenous genocides
and diasporas, due to the continuity of practices of violence, territorial usurpations and
violations of the rights of indigenous peoples, besides the processes of systematic run away
imposed to the groups that refuse to maintain relations with the surrounding society. Both
processes of genocide and diaspora began with colonization, were succeeded by internal
colonialism, and they currently persist through the appropriation of Amazonian resources and
territories to be incorporated into the national and global markets. Therefore, this chronological
dimension does not represent an absolute and linear process, but dynamics with varying
intensities over time, shifts of the historical agents involved, but which have not been abolished.
It is also not a way to promote a historical victimization of indigenous peoples, since diasporas
and voluntary isolation are indigenous strategies of resistance and pursuit for self-
determination.
Keywords: Amazon; Indigenous Peoples; Voluntary Isolation.
LISTA DE SIGLAS
ACNUDH – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
AIDESEP: Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana
AECA – Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica
BAPE – Base de Proteção Etnoambiental
BID: Banco Interamericano de Desarrollo
CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CGIIRC – Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
COIAB: Coordinación de Organizaciones Indígenas de la Amazonía Brasilera
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
CPI-AC – Comissão Pró-Índios do Acre
CIPIACI: Comité Indígena Internacional para la Protección de los Pueblos en Aislamiento y en
Contacto Inicial de la Amazonía, el Gran Chaco y la Región Oriental del Paraguay
EACNUDH – Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
EIA: Estudios de Impacto Ambiental
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FPE – Frente de Proteção Etnoambiental
III – Instituto Indigenista Interamericano
ISA – Instituto Socioambiental
ISA – International Studies Association
OEA – Organização dos Estados Americanos
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OIT/169 – Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho
ONU – Organização das Nações Unidas
OTCA – Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
PIACI – Pueblos indígenas en aislamiento y contacto inicial
PII – Povos indígenas em isolamento
PIIRC – Povos indígenas em isolamento e/ou recente contato
PIIV – Povos indígenas em isolamento voluntário
SESAI: Secretaría Especial de Salud Indígena
TCA: Tratado de Cooperacão Amazônica
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 - Registros de Povos Indígenas Isolados no Brasil ...................................................... 19
Mapa 2 - Áreas do Brasil povoadas por não-índios ao longo dos séculos XVI a XX .............. 36
Mapa 3 - Terras Indígenas no Brasil (2017) ............................................................................. 37
Mapa 4 - Áreas do Brasil povoadas por não-índios ao longo dos séculos XVI a XX ............ 200
Mapa 5 - Terras Indígenas no Brasil (2017) ........................................................................... 201
Mapa 6 - Terra Indígena Vale do Javari ................................................................................. 275
Mapa 7 - Região de fronteira Brasil-Peru - Contato do Xinane ............................................. 320
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Registros de PIIRC por Estados da Federação ........................................................ 38
Tabela 2 - Estimativas da população indígena na América em 1492 ..................................... 111
Tabela 3 - Reformas Constitucionais e Direitos Indígenas na América Latina ...................... 135
Tabela 4 - Grupos indígenas no Brasil entre 1900 e 1957...................................................... 194
Tabela 5 - Registros de PIIRC por Estados da Federação ...................................................... 202
Tabela 6 - Mortalidade que se seguiu ao contato em alguns grupos indígenas no Brasil, de 1912
a 1981 ..................................................................................................................................... 204
Tabela 7 - Referências Confirmadas de Povos Indígenas Isolados ........................................ 274
Tabela 8 - Referências em Estudo .......................................................................................... 275
Tabela 9 - Informações não verificadas de PII ....................................................................... 277
Tabela 10 - Povos Indígenas de Recente Contato atendidos pelas Frentes de Proteção
Etnoambiental (FPE) .............................................................................................................. 279
Tabela 11 - Povos indígenas de Recente Contato atendidos pelas Coordenações Regionais (CR)
................................................................................................................................................ 280
Tabela 12 - Dados Orçamentários da FUNAI de 1997 a 2017. .............................................. 306
Tabela 13 - Dados Orçamentários da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente
Contato (CGIIRC) de 1997 a 2016. ........................................................................................ 308
Tabela 14 - Frentes de Proteção Etnoambiental – Servidores (Ago./2017) ........................... 311
Tabela 15 - Registros de PIIRC por Frente de Proteção Etnoambiental ................................ 313
Tabela 16 - Bases de Proteção Etnoambiental Ativas e Desativadas (2017) ......................... 313
Tabela 17 - Situação da CGIIRC/ FUNAI para Localização e Proteção Territorial dos Povos
Indígenas Isolados no Brasil (2015) ....................................................................................... 314
Tabela 18 - Contatos estabelecidos após 1987 ....................................................................... 318
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 14
1.1 Características gerais sobre os povos indígenas em situações de isolamento; ............................ 21
1.2 A problemática subjacente ao tema dos PII na Amazônia; ......................................................... 27
1.3 Objetivos, Pergunta e Hipótese da Pesquisa; .............................................................................. 33
1.4 Apresentação dos capítulos; ........................................................................................................ 39
2 O ESTUDO DE ASSUNTOS INDÍGENAS NA ÁREA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
............................................................................................................................................................... 43
2.1 Perspectivas Epistemológicas ................................................................................................... 50
2.1.1 A Colonialidade do saber e os povos indígenas; .................................................................. 57
2.1.2 Pode o subalterno falar? A linguagem do Isolamento Voluntário; ...................................... 62
2.2 Referenciais e aportes teóricos; ................................................................................................ 68
2.2.1 Contribuições do Pós-colonialismo ao estudo da dimensão internacional/global dos assuntos
indígenas; ...................................................................................................................................... 78
2.2.2 A cosmologia excludente: soberanias estatais contra soberanias indígenas; ....................... 89
2.3 Perspectivas e Procedimentos Metodológicos; ........................................................................ 97
2.3.1 Interdisciplinaridade: Antropologia e Relações Internacionais; ......................................... 103
2.3.2 Análises Macro-Históricas: o Confronto de Narrativas sobre os Genocídios Indígenas; .. 109
2.4 Revisão de literatura e outras fontes de pesquisa sobre povos indígenas em isolamento; 114
3 POVOS INDÍGENAS, ESTADOS NACIONAIS E POLÍTICA GLOBAL .............................. 122
3.1 Os movimentos indígenas, a Constituição Federal de 1988 e os Direitos Indígenas no Brasil
contemporâneo; ............................................................................................................................... 124
3.2 Os Direitos Indígenas nas reformas constitucionais na América Latina e; ............................... 131
3.3 Os Assuntos Indígenas na Agenda da Política Global: Direitos Humanos, Autodeterminação dos
Povos e Direitos Indígenas; ............................................................................................................. 140
3.3.1 A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169) – 1989; ............ 147
3.3.2 Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas – 2007; ..................................... 158
3.3.3 As Diretrizes de Proteção do ACNUDH (2012) e as Recomendações da CIDH (2013) para a
proteção e o respeito dos Direitos dos PIACI; ............................................................................ 163
3.4 A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): Agenda Regional para Proteção
de PIIRC .......................................................................................................................................... 171
4 AS RELAÇÕES ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL E A
POLÍTICA PÚBLICA ESPECÍFICA PARA PIIRC ..................................................................... 175
4.1 Análise macro-histórica das relações entre Estado-Nação e povos indígenas no Brasil – séc.
XVI a XX ........................................................................................................................................ 176
4.1.1 Os contatos e os contágios: a depopulação indígena pelas epidemias; .............................. 202
4.2 As sagas e memórias sertanistas; ........................................................................................... 208
4.2.1 Relatos de sertanistas sobre genocídios e diásporas indígenas no século XX; .................. 214
4.2.2 O Encontro de Belém (1987) e o paradigma do não-contato; ............................................ 223
4.3 A política estatal brasileira específica para PIIRC; ............................................................. 234
4.3.1 Metodologia de Trabalho em Campo da GIIRC/FUNAI; .................................................. 242
4.3.2 Outros conceitos e princípios da política para isolados: Vulnerabilidades, Integridade
Territorial; Planos de Contingência; Autodeterminação; ............................................................ 249
4.3.3 A aplicação dos direitos de Consulta e Consentimento no caso dos PII; ........................... 253
5 POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: O SEXTO
SÉCULO DE GENOCÍDIOS E DIÁSPORAS INDÍGENAS ........................................................ 258
5.1 Povos Indígenas em situações de isolamento: denominações e características; ................ 259
5.1.1 O isolamento voluntário e a questão da intencionalidade do isolamento; .......................... 261
5.1.2 Povos de Recente Contato ou em Contato Inicial; ............................................................. 264
5.1.3 Outras denominações: não contatados? povos livres? povos hostis? povos de contato
seletivo/esporádico? .................................................................................................................... 267
5.2 Panorama atual dos povos indígenas em situações de isolamento e de recente contato
(PIIRC) no Brasil: Mapa, etnias e situação territorial; ............................................................. 271
5.3 Ameaças contemporâneas aos PIRC na Amazônia: a contínua apropriação de recursos e
territórios pelo capitalismo local/global; ..................................................................................... 283
5.3.1 As três Cartas-denúncia dos Coordenadores de FPE e sertanistas (2013,2015,2017); ...... 296
5.3.2 A Capacidade Institucional da CGIIRC/FUNAI; ............................................................... 305
5.4 O aumento dos casos recentes de contatos e de situações de risco: o caso do Xinane (2014) e
as suspeitas de massacres no Vale do Javari (2017); .................................................................. 317
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 326
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 334
14
1 INTRODUÇÃO
Let us never forget this: Australia's real test as far as the rest of the world,
and particularly our region, is concerned in the role we create for our own
aborigines. In this sense, and it is a very real sense, the aborigines are our
true link with our region. More than any foreign aid program, more than any
international obligation which we meet or forfeit, more than any part we may
play in any treaty or agreement or alliance, Australia’s treatment of her
aboriginal people will be the thing upon which the rest of the world will judge
Australia and Australians – not just now, but in the greater perspective of
history (WHITLAM, 1972, n.p.).
O discurso de Gough Withlam em 13 novembro de 1972, poucos dias antes de se eleger
Primeiro Ministro da Austrália, expressa a necessidade de uma tomada de consciência histórica.
Apesar de conter algumas noções já superadas, pelo menos no debato acadêmico – como a
perspectiva tutelar em relação aos povos indígenas – sua mensagem nos leva a questionar: Qual
é o nível de conhecimento e de debate acadêmico e público, na sociedade brasileira, sobre os
atos, consequências, e a apuração de responsabilidades nas relações históricas entre o Estado,
a sociedade nacional e os povos indígenas? Há no Brasil uma consciência, semelhante àquela
invocada por Whitlam, de que a responsabilidade histórica atribuída à Europa e aos europeus,
devido às atrocidades intrínsecas à colonização, recairá também sobre o Brasil e os brasileiros?
Um dos mais experientes sertanistas do indigenismo brasileiro, Odenir Pinto relata que:
Nós estamos no século XXI, nós temos quase trinta anos de democracia no
país. Não há nenhuma proposta para a questão indígena [...] Às vezes, nas
nossas conversas, entre indigenistas, falamos coisas como “Eu sonhava que,
um dia, um presidente da República dissesse assim: ‘Vamos respeitar o direito
dos índios’. Só isso”. Só de um presidente da República eleito, dizer uma coisa
dessas, seguramente muita coisa começa a mudar. Mas não vemos nenhuma
proposta (MILANEZ, 2015, p. 211).
Estas são algumas das questões gerais trabalhadas nesta pesquisa, dedicada ao estudo
macro-histórico1 interdisciplinar2 sobre os povos indígenas em situações de isolamento (PII)
presentes na Amazônia brasileira. Analisa-se a hipótese de que a situação contemporânea destes
povos pode ser caracterizada como o sexto século de genocídios e diásporas indígenas, pelo
menos até esta segunda década do século XXI.
1 A perspectiva macro-histórica consiste na observação de um período de longa duração, a fim de identificar e compreender como determinados fenômenos e/ou dinâmicas se processam no decorrer de tal período. Esta perspectiva será aprofundada no Capítulo 2. 2 A interdisciplinaridade se caracteriza pela integração de conhecimentos (temas, conceitos, teorias e/ou metodologias) oriundos de diferentes áreas para compreender um determinado fenômeno ou problemática. Deste modo, o próprio objeto de estudo e os objetivos da pesquisa indicam quais área do conhecimento precisam ser consultadas e como tais conhecimentos devem ser relacionados. Esta perspectiva será aprofundada também no decorrer do Capítulo 2.
15
Os argumentos centrais desta hipótese não se fundamentam na discussão conceitual
sobre genocídio e diáspora, ou em verificar se a aplicação destes conceitos é apropriada para a
interpretação da história indígena, muito menos em avaliar se houveram ou não genocídios e
diásporas indígenas. As questões de tipo “sim” ou “não” são consideradas como já superadas
nesta pesquisa. São inúmeras, diversificadas e crescentes as publicações acadêmicas e de
documentos históricos afirmando e demonstrando que as relações entre os Estados-Nação
(coloniais e pós-coloniais) e os povos indígenas ao redor do mundo constituem-se de numerosos
e amplos genocídios e movimentos diaspóricos. Neste sentido, a pesquisa dialoga com o debate
denominado na literatura internacional como “genocide debate”, mas não se limita a este. Nossa
contribuição central estará em indicar relações entre os fenômenos macro-históricos de
genocídios e diásporas indígenas e a situação contemporânea dos povos em situações de
isolamento na Amazônia brasileira.
Cabe indicar, apenas como parâmetro inicial, que a caracterização do termo genocídio
adotada pela comunidade internacional se refere a atos cometidos com a intenção de destruir,
no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Entre estes atos cita-se:
assassinato de membros do grupo, atentado à integridade física e mental de membros do grupo,
submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física,
total ou parcial. Apesar da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio
(1948) apontar a cumplicidade como passível de punição, ela menciona apenas os “governantes,
funcionários ou particulares” como sujeitos como passíveis de punição, excluindo, portanto,
possibilidades de responsabilização do Estado.
Já o conceito de diáspora, embora seja originário de outros contextos, mostra-se
compatível com o histórico dos povos nativos do continente americano. De acordo com HALL
(2009, p. 31) o conceito de diáspora trata de “processos de ‘zona de contato’, um termo que
invoca ‘a copresença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas
geográficas e históricas (...) cujas trajetórias agora se cruzam’” (PRATT, 1992 apud HALL,
2009, p. 31). Assim, a diáspora é um conceito relacional, “fundado sobre a construção de uma
fronteira de exclusão e depende da construção de um “Outro” e de uma oposição rígida entre o
dentro e o fora” (HALL, 2009, p. 32-33). Neste sentido, após reiteradas lutas de resistência à
dominação de seus territórios pelos invasores, e recusando submeterem-se à exploração e às
consequências do contato, muitos povos indígenas iniciam processos de fuga e deslocamentos
sistemáticos, tal qual será descrito mais adiante pelo conceito de isolamento voluntário.
16
Assim, identificamos três conjuntos de fatores e níveis co-constituídos, que perpassam
os âmbitos global, internacional e nacional, e apresentam relações3 com os fenômenos macro-
históricos dos genocídios e diásporas indígenas. No âmbito global, destaca-se os processos de
colonização e de expansão global do sistema europeu de Estados-Nação4, baseados em uma
cosmologia excludente que promoveu o confronto entre as soberanias estatais e as soberanias
indígenas. Mais precisamente, a negação da legitimidade e do reconhecimento das soberanias
indígenas pelos Estados, que persiste até os dias atuais. No âmbito nacional analisa-se
historicamente a atuação do Estado (colonial português, e, pós-colonial brasileiro), tanto pela
ação (promovendo direta e/ou indiretamente genocídios e diásporas indígenas), quanto pela
omissão (deixando de realizar, ou realizando de modo insuficiente, seu papel de garantidor de
direitos). E, no âmbito do território nacional, porém de modo indissociável das dinâmicas
internacionais e globais, destaca-se o avanço contínuo da apropriação dos recursos e territórios
amazônicos para serem incorporados aos mercados nacionais/globais, visto que a parte
brasileira da região amazônica já teve 19% de sua área florestal atingida pelo desflorestamento
(IMAZON, 2012, p. 16).
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas e a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, existem aproximadamente 200 grupos5 indígenas em situações de
isolamento na América do Sul, estimados em um total de 10.000 indivíduos (EACNUDH, 2012,
p. 5; CIDH, 2013, p. 7). De acordo com Amorim (2016, p. 21) o fenômeno do ‘isolamento’
ocorre principalmente na Amazônia, “em regiões de difícil acesso, em função de suas
características geopolíticas e ambientais, no entanto, registra-se a presença desses grupos
também nos biomas do Cerrado brasileiro e no Gran Chaco”. Além da América do Sul, Castillo
(2008, p. 07) afirma existirem povos em isolamento também na região do Oceano Índico, nas
ilhas Nicobar e Andaman, ao sul da Índia, na Malásia, e nos bosques da África Central.
3 Falamos em “relações” e não em “causas” pois, conforme será discutido no Capítulo 2, na seção sobre metodologia, esta pesquisa pretende desenvolver uma explicação constitutiva e não causal (WENDT, 2012). 4 De acordo com Urt (2015, p. 13), o sistema europeu de Estados é um “sistema de relações que teve início na Europa Ocidental, mas, à medida em que foi se expandindo, reproduziu-se por meio de sociedades colonas [...] e passou a incluir povos não europeus. As sociedades colonas [...] no momento em que formam Estados “independentes”, assumem para si a tarefa da colonização. Assim, mesmo quando são, p. ex., os australianos ou os indonésios que colonizam, eles o fazem como agentes de um sistema europeu de Estados que incorporaram. O sistema europeu de Estados é um elemento da cultura política da modernidade europeia”. 5 Os termos “povos” e “grupos” indígenas em situações de isolamento possuem conotações diferentes, que serão debatidas no Capítulo 5. Vale adiantar que quando se pretende fazer referência à categoria geral dos indígenas em isolamento e recente contato, é utilizado o termo “povos”, e, quando se faz referência a uma situação ou característica específica, é utilizado o termo “grupo”, pois verifica-se que um mesmo povo/etnia pode conter mais de um grupo em situações de isolamento, em regiões diferentes.
17
De acordo com Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2017)6 o Estado brasileiro
reconhece a existência de 103 registros de povos indígenas em isolamento, sendo 26 com
presença confirmada7, 26 registros em estudo8, e 51 registros de informações9 que ainda não
foram verificadas. Dentre os 103 registros, 29 estão localizados fora de terras indígenas
demarcadas, dos quais 1 registro é confirmado, 10 estão em estudo, e 17 informações não foram
verificadas. Além destes grupos em isolamento, a FUNAI (2017) também reconhece a
existência de 18 grupos indígenas considerados de recente contato10. Neste sentido, vale
destacar que no Brasil é utilizada a expressão povos indígenas em situações de isolamento e/ou
recente contato (PIIRC), enquanto nos demais países sul-americanos a expressão mais utilizada
é “pueblos indígenas en aislamiento voluntário y contacto inicial" (PIACI)11.
De acordo com Amorim (2016, p. 20) “há uma grande diversidade de contextos de
“isolamento” na América do Sul”, dentre os quais existem “desde pequenos grupos,
sobreviventes de sucessivos massacres e que por isso evitam a qualquer custo contatos com
outros agentes, até povos demograficamente consideráveis”. De acordo com a FUNAI (2017,
n.p.), “há casos de povos de tamanho considerável, tais como os isolados no Acre e na região
do Vale do Javari, que chegam certamente a centenas de pessoas”.
A partir do mapa disponibilizado pela FUNAI (2017) podemos considerar que pelo
menos 60 grupos estão localizados em regiões próximas às fronteiras nacionais. Há registros
nas zonas limítrofes do Brasil com a Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e
Guiana Francesa. Vale destacar que o Peru é o segundo país com maior número de povos
indígenas em isolamento na América do Sul. As informações disponíveis apontam a existência
de até 32 grupos naquele país (CIDH, 2013, p. 7). Portanto, dentre os 200 grupos apontados
6 Todas as informações cuja referência é a FUNAI (2017), foram obtidas através da Lei de Acesso à Informação. 7 “Trata-se de uma referência cuja existência foi confirmada pelas equipes da CGIIRC [Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato]. É considerada confirmada quando o trabalho de campo de equipe especializada da CGIIRC/FPEs [Frentes de Proteção Etnoambiental] comprova a existência de índio ou grupo indígena isolados e de sua localização geográfica, por meio da localização de indícios irrefutáveis de sua presença, tais como acampamentos, roças e moradias, entre outros” (FUNAI, 2017, n. p.). 8 Segundo a FUNAI (2017) uma referência em estudo se caracteriza por um “conjunto consistente de dados sobre índio ou grupo indígena isolado, devidamente qualificado pela CGIIRC. Por conjunto de dados compreende-se um acerco informacional [...] constituído por documentos administrativos, informações bibliográficas, informações cartográficas, relatos secundários (documentados) entre outros” (FUNAI, 2017, n. p.). 9 De acordo com a FUNAI (2017, n.p.) um registro de Informação é composto por “relatos previamente qualificados sobre a presença de povos indígenas isolados não dispondo, no entanto, de um acervo consistente de dados demandando, portanto, qualificações mais profundadas, inclusive em campo, através de coleta de dados secundários junto a informantes indígenas e não-indígenas moradores da região” (FUNAI, 2017, n. p.). 10 “Povos ou agrupamentos indígenas que mantêm relações de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural” (FUNAI, 2017, n.p.). 11 Os detalhes sobre as diferentes características e denominações serão analisados no Capítulo 5.
18
pelo EACHNUDH e pela CIDH, ao menos 135 grupos estão no Brasil ou no Peru, o equivalente
a quase 70% do total. Interessante notar que também no Peru grande parte dos grupos indígenas
em situações de isolamento localizam-se em regiões próximas às fronteiras do país.
Com base neste panorama, cabe dizer que o objetivo inicial desta pesquisa era estudar
os povos indígenas em isolamento presentes no Brasil e no Peru. Após o levantamento do
material de pesquisa sobre os dois países, entretanto, decidiu-se concentrar a análise apenas no
caso do Brasil. A quantidade surpreendente de informações, mapas e dados disponíveis, bem
como a profundidade da temática, indicaram que não seria viável realizar a pesquisa de modo
satisfatório e equilibrado sobre os dois países. Além disso, percebeu-se que a análise específica
dos PII presentes no Brasil nos possibilitaria elaborar uma hipótese mais coerente, e, assim,
contribuir para futuras pesquisas sobre os PII presentes no Brasil e nos demais países.
Dentre os materiais de pesquisa levantados, verificou-se que a Antropologia apresenta
significativas contribuições sobre o assunto, especialmente abordando o histórico dos primeiros
contatos de diversas etnias, as cosmologias indígenas sobre o contato e sobre o “homem
branco”, e muitos outros temas sob as perspectivas da etno-história e da etnologia do contato
interétnico. Encontramos também grande quantidade de documentos sobre o tema, elaborados
por organizações indígenas e indigenistas (estatais e não-governamentais), por organismos
internacionais, além de cartas-denúncia formuladas por pessoas que trabalham diretamente com
o assunto. Todos estes documentos contêm informações detalhadas sobre a problemática
analisada nesta pesquisa, a saber: as ameaças à sobrevivência e à autodeterminação dos povos
indígenas em isolamento e/ou recente contato na Amazônia brasileira.
Acrescenta-se que a política pública brasileira direcionada especificamente para PII
começou a ser concebida em 1987, portanto há 30 anos. Os princípios, conceitos e metodologias
desta política são considerados avançados e exemplares em relação aos demais países da região
amazônica. Porém, veremos que os recursos humanos, financeiros e institucionais
disponibilizados pelo poder público inviabilizam a execução desta e das demais políticas
indigenistas estatais. Assim, a primeira conclusão desta pesquisa é a de que a problemática dos
povos indígenas em isolamento encontra-se amplamente conhecida e mapeada, nacional e
internacionalmente, pelos órgãos dedicados ao tema. No entanto, as mesmas dinâmicas
político-econômicas identificadas como responsáveis pela degradação da Amazônia seguem
avançando sobre os territórios habitados por estes povos.
Vejamos a seguir o Mapa 1, disponibilizado pela FUNAI (2017), com os registros de
PII no Brasil em 2016.
19
Mapa 1 - Registros de Povos Indígenas Isolados no Brasil
Fonte: FUNAI (2017)
20
Feitos estes apontamentos iniciais, é preciso destacar que o assunto dos povos indígenas
em isolamento na Amazônia envolve conflitos de interesse12 – no campo empírico – e
confrontos entre distintas concepções de mundo – no campo da cosmologia13. Estas
divergências se refletem também no campo acadêmico, visto que pesquisar os modos pelos
quais os povos indígenas fizeram e fazem parte dos processos de formação do mundo
contemporâneo consiste em desvendar rasuras, isto é, identificar e dar visibilidade àquilo que
foi riscado da narrativa histórica.
A epistemologia e a historiografia hegemônicas nas ciências sociais, de matriz euro-
ocidental – dentre as quais está a área de Relações Internacionais – não apenas subsidiaram e
legitimaram a colonização e o colonialismo interno, como também ocultaram sistematicamente
as consequências destes processos para os povos indígenas. A presente pesquisa integra,
portanto, os debates em curso sobre a necessidade de ampliação e diversificação dos
fundamentos empíricos, epistemológicos e teóricos da área de Relações Internacionais14, a fim
de ampliar sua capacidade de compreensão e de explicação acerca dos variados e complexos
fenômenos contemporâneos.
Neste sentido, identifica-se uma relação direta entre a problemática contemporânea
envolvendo os povos em isolamento na Amazônia e a história da política global15,
especialmente no período pós-1492. Verificou-se que um elemento central de ambos os
processos é a disputa pelo controle político e pela exploração econômica de territórios. Mesmo
estando dividida entre Estados soberanos, com delimitações político-fronteiriças estáveis, a
análise do nível local torna evidente que a Amazônia continua sendo um território intensamente
12 Sobretudo, interesses econômicos pelos recursos amazônicos, de modo geral, em contraposição aos direitos territoriais de povos indígenas e de comunidades tradicionais, e aos interesses dos movimentos socioambientais. 13 Nesta pesquisa entende-se como cosmologia o conjunto de conhecimentos e práticas que explicam e dão sentido à vida de uma determinada comunidade humana. Em uma cosmologia encontram-se relacionadas ideias sobre o tempo, o espaço, a natureza, o aspecto sobrenatural, a organização social, as relações com outros povos/sociedades, entre outros elementos. Deste modo, a cosmologia orienta uma comunidade humana na explicação de suas origens (passado), na sua descrição do mundo (presente) e na determinação de como se portar neste mundo (futuro) (ALBERT, 2002; CUNHA, 2009). 14 Dentre os diferentes autores e publicações a este respeito destacamos a série intitulada “Worlding Beyond the West”, da editora Routledge sob a supervisão de Arlene Tickner, David Blaney e Inanna Hamati-Ataya; e a edição especial da Revista Brasiliera de Política Internacional (RBPI, 59(2), 2016), intitulada “Many Worlds, Many Theories?”, organizada por Cristina Inoue e Arlene Tickner. 15 Estas relações serão exploradas nos Capítulos 2 e 3. Entende-se como política global as relações entre diversificados tipos de agentes, tornadas possíveis e intensas graças ao processo macro-histórico denominado como globalização. Entre estes agentes estão os Estados, setores e organizações da sociedade civil, comunidades políticas não-estatais, comunidades epistêmicas, agentes econômicos, organismos internacionais, organizações não-governamentais, etc. Deve-se ressaltar, todavia, que os Estados ocuparam posição central na construção histórica da política global e continuam a ocupar, atualmente, em associação com os interesses econômicos, sobretudo das grandes corporação transnacionais.
21
disputado, devido a suas riquezas biológicas, hídricas e minerais. Neste contexto, veremos que
a sobrevivência e a autodeterminação dos PII demanda a proteção integral de territórios entre
os mais preservados, e cobiçados, da Amazônia. Logo, a problemática dos povos indígenas em
isolamento está intrinsecamente relacionada com as trajetórias políticas, econômicas e
ecológicas da Amazônia, e, portanto, globais.
Nota-se, ainda, que o estudo dos PII revela características e processos históricos tanto
dos grupos indígenas quanto da sociedade envolvente16. De acordo com Sousa Santos (2004, p.
8-9) “o caráter constitutivo do colonialismo na modernidade ocidental faz com que ele seja
importante para compreender, não só as sociedades não ocidentais que foram vítimas do
colonialismo, mas também as próprias sociedades ocidentais”. Neste sentido, a situação
contemporânea dos povos indígenas, de modo geral, e dos povos em isolamento, de modo
específico, é reveladora sobre as forças e práticas da política global, uma vez que “a partir das
margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber são mais visíveis” (SOUSA
SANTOS, 2004, p. 9).
Este é o cenário sobre o qual esta pesquisa foi elaborada. Antes de explicar a estrutura
e a organização da tese, considerou-se indispensável apresentar algumas das características
essenciais dos PII e as dinâmicas locais, regionais e globais que têm efeito sobre a Amazônia e
sobre a problemática contemporânea destes povos. Traçado este panorama, apresentaremos a
pergunta e a hipótese trabalhada no decorrer da pesquisa. E, por fim, faz-se uma descrição
sumária dos conteúdos abordados em cada capítulo.
1.1 Características gerais sobre os povos indígenas em situações de isolamento;
A expressão “povos indígenas” representa uma diversidade de etnias, culturas e
realidades locais distintas. Sem a pretensão de forjar homogeneidade, é possível identificar
algumas características comuns a estes povos. Neste sentido, considerou-se pertinente a
conceitualização seguinte:
Comunidades, povos e nações indígenas são aqueles que, tendo uma
continuidade histórica com sociedades pré-invasão e pré-coloniais que se
desenvolveram em seus territórios, consideram-se distintas de outros setores
16 Entende-se como sociedade envolvente o conjunto dinâmico e expansionista formado pelas sociedades e Estados nacionais, mas também pelos fluxos globais de comércio e de pessoas, pelos organismos internacionais e não-governamentais, atores transnacionais, enfim, todos agentes e elementos não-indígenas que compõem o sistema capitalista global. O termo “sociedade envolvente” não é o ideal para representar este fenômeno, mas foi considerado mais apropriado do que “sociedade nacional”, “sociedade colonial” e “sociedade colonizadora”.
22
das sociedades atualmente predominantes nesses territórios, ou em parte deles.
Eles compõem no momento setores não-dominantes da sociedade e estão
determinados a preservar, desenvolver e transmitir para futuras gerações seus
territórios ancestrais e sua identidade étnica, como a base de sua existência
contínua enquanto povos, de acordo com seus padrões culturais, instituições
sociais e sistemas legais próprios (ANAYA, 2006, p. 194-195).
Por sua vez, o termo “índios isolados” também faz referência a grupos étnicos variados,
com distintos históricos de contatos e conflitos, e vivendo em diferentes situações perante à
sociedade envolvente. É possível encontrar múltiplas denominações para estes povos, tais
como: povos “não contatados”; povos “livres”, “autônomos”, “independentes”; povos “hostis”,
“arredios”; “brabos”; “caceteiros”; povos “sem contato permanente”; “com contatos
esporádicos”; “de contato seletivo”; “em situação de quebra de isolamento”; “em situação de
isolamento e risco”; “em isolamento voluntário”; “recém-contatados”; e, povos “em contato
inicial”17.
Portanto, o conceito genérico de “índios isolados” não expressa a complexidade e a
diversidade de situações existentes, e não contempla a dimensão relacional que é intrínseca ao
isolamento. Afinal, não é possível estar isolado de tudo, ou de nada, o isolamento é sempre em
relação a alguém e/ou a alguma coisa. Entretanto, “diante da falta de consenso acadêmico, ou
mesmo de um termo que represente a diversidade de cada uma dessas categorias, o pragmatismo
do órgão indigenista oficial decide usar o termo índios isolados” (VAZ, 2011, p. 17, grifo do
autor). Assim, de acordo com a FUNAI (2016, n.p.), os povos isolados são “grupos indígenas
com ausência de relações permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca frequência
de interação, seja com não-índios, seja com outros povos indígenas”.
É impossível descartar a hipótese de existirem povos indígenas na Amazônia que nunca
vivenciaram experiências de contato direto com não-índios. Entretanto, identifica-se na
literatura um consenso de que “antes mesmo do contato em carne e osso com os brancos [...] os
sinais precursores [do contato] são objetos manufaturados e germes” (CUNHA, 2002, p. 7),
assim, "mesmo aqueles [grupos] ainda não alcançados pela sociedade nacional já sofreram sua
influência indireta, através de tribos desalojadas e lançadas sobre eles, e de bacilos, vírus ou
artefatos que, passando de tribo a tribo, alcançaram seus redutos” (RIBEIRO, 1986, p. 240).
Uma incursão ainda que superficial pelos registros históricos basta para
comprovar que os manufaturados europeus já se haviam infiltrado por essa
vasta rede de trocas intertribais muito antes da chegada dos próprios brancos.
Os diários de R. H. Schomburgk, geógrafo prussiano encarregado pela Grã-
Bretanha de explorar o sul da Guiana Inglesa nas décadas de 1830 e 1840,
estão repletos de referências a trocas intertribais, a trilhas constantemente
17 No Capítulo 5 abordaremos cada uma destas denominações e as situações e contextos que elas representam.
23
palmilhadas e à circulação de mercadorias europeias pelo interior.
Schomburgk conta, por exemplo, que viu numa aldeia Pianokoto de um
afluente do Trombetas: “oito ou dez terçados, vários machados novos, facas e
tesouras, todos de fabricação holandesa” (HOWARD, 2002, p. 32).
Assim, Cunha (2002, p. 07) afirma que “antes mesmo do contato em carne e osso com
os brancos, trava-se uma guerra biológica” e, portanto, “não é de espantar que [nas cosmologias
indígenas sobre o contato] brancos e doenças fiquem indissoluvelmente ligados”. Conforme
demonstra Albert (2002, p. 12-13) é extremamente comum entre as cosmologias indígenas a
concepção do branco como fantasmas ou espíritos-maléficos, com “poderes tecno-patogênicos
que trazem uma dimensão de diferença e de virulência até então inédita nas suas representações
do forasteiro”.
Neste sentido, desde os primeiros contatos – diretos e indiretos –, os processos de
colonização e de expansão da sociedade nacional resultaram, para os povos indígenas, em
epidemias, drásticas perdas populacionais, violências e extermínios, exploração e escravização,
esbulho territorial e transformações socioculturais com intensidades e sentidos variados, além
do desaparecimento de incontáveis etnias, línguas e cosmologias. Então, ao longo destes
processos, os povos indígenas elaboraram seus próprios conhecimentos e cosmologias sobre o
contato, compartilhando-os entre suas gerações e entre diferentes etnias, através de suas redes
interétnicas de relacionamentos e de trocas socioculturais18.
Cientes das consequências sistemáticas do contato, determinados grupos indígenas
adotaram comportamentos e estratégias para evitar o estabelecimento de relações com o
“homem branco”. Segundo Amorim (2016, p. 20) “trata-se de condição peculiar a uma grande
diversidade de povos indígenas: a decisão de manter alto grau de controle (e autonomia) sobre
as relações que estabelecem com outras pessoas (ou sociedades) exógenas às suas”. De acordo
com Vaz e Balthazar (2013, p. 85, grifo nosso):
A decisão de isolamento é manifestada por atos de resistência com armas, com
armadilhas, símbolos e sinais de advertência e de ameaça dirigidos a
invasores, mas principalmente, pela fuga sistemática em direção a
territórios cada vez mais distantes das frentes de expansão da “civilização
ocidental”, onde tentam manter suas formas tradicionais de reprodução social
e material. Territórios cada vez mais escassos e submetidos à avidez e à
velocidade com que nesse início de milênio cada centímetro de terra é
mapeado, “georreferenciado” e demarcado para a completa conversão da
“natureza” em “recursos naturais”. [...] Lugares onde eles resistem, e teimam
em existir.
18 Sobre este aspecto é indispensável a obra de Bruce Albert e Alcida Ramos (2002): Pacificando o branco:
cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado.
24
Portanto, o isolamento reflete uma estratégia destes grupos indígenas em defesa de sua
sobrevivência e de sua autodeterminação. Por estes motivos, de acordo com o ACNUDH (2012,
p. 05, grifos nossos), no documento intitulado “Directrices de Protección para los Pueblos
Indígenas en Aislamiento y en contacto inicial de la región Amazónica y el Gran Chaco”, estes
povos podem ser assim definidos:
Los pueblos en aislamiento son pueblos o segmentos de pueblos indígenas que
no mantienen contactos regulares con la población mayoritaria, y que además
suelen rehuir todo tipo de contacto con personas ajenas a su grupo. También
pueden ser grupos pertenecientes a diversos pueblos ya contactados que tras
una relación intermitente con las sociedades envolventes deciden volver a
una situación de aislamiento como estrategia de supervivencia y rompen
voluntariamente todas las relaciones que pudieran tener con dichas
sociedades. En su mayoría, los pueblos aislados viven en bosques tropicales
y/o zonas de difícil acceso no transitadas, lugares que muy a menudo cuentan
con grandes recursos naturales.
Na perspectiva adotada pelo ACNUDH no documento “Directrices de Protección para
los Pueblos Indígenas en Aislamiento y en contacto inicial de la región Amazónica y el Gran
Chaco”, destaca-se que:
Para estos pueblos el aislamiento no ha sido una opción voluntaria sino una
estrategia de supervivencia. Es preciso establecer una distinción entre ambos
grupos; el nivel de vulnerabilidad de los grupos que no han sido nunca
contactados es mayor al de aquéllos que si bien han desarrollado relaciones
sociales con la sociedad mayoritaria, han decidido volver a su situación de
aislamiento. Asimismo, y por dicha razón, la necesidad de protección es
mayor en el caso de los no contactados (ACNUDH, 2012, p. 05).
Sobre este assunto, o CIMI (2013, p. 115) afirma que:
Esta opção normalmente está associada a experiências traumáticas de encontros,
protagonizados ou não por eles, com os agentes das frentes econômicas das sociedades
nacionais. Encontros marcados pela violência dos massacres, das epidemias, da
invasão de seus territórios e da depredação de suas fontes de alimento e de seus
referenciais simbólicos. Revela, por outro lado, uma enorme capacidade de luta e
resistência desses povos, para manter, mesmo em situações muito adversas, a sua
autonomia e para suprir suas necessidades materiais, espirituais e de vida em
sociedade.
Entretanto, no documento de recomendações para o pleno respeito aos direitos humanos
dos povos indígenas em isolamento e contato inicial, a CIDH (2013, p. 04) adota o termo
“pueblos indígenas en situación de aislamiento voluntário”, acrescentando que:
La CIDH toma nota que el uso del término “voluntario” para calificar el
aislamiento de estos pueblos indígenas ha sido cuestionado con el argumento
de que minimiza el hecho de que la decisión de permanecer en o volver al
aislamiento en realidad obedece a las presiones de la sociedad envolvente
sobre sus territorios, y no un ejercicio libre de su voluntad. Este informe
utiliza el término “voluntario” para realzar la importancia del derecho a la
autodeterminación, ya que aun si la decisión de permanecer en aislamiento
25
es una estrategia de supervivencia resultado en parte de presiones externas,
ésta es una expresión de autonomía de estos pueblos en tanto sujetos de
derecho, y como tal debe ser respetada (CIDH, 2013, p. 4, grifo nosso).
Neste sentido, através do estudo da literatura específica e dos documentos institucionais
sobre o tema PII é possível identificar três estratégias de isolamento e/ou de controle de relações
adotadas por estes povos: 1) a fuga floresta adentro, deixando sinais de advertência aos
invasores, quando percebem alguma aproximação ou quando ocorrem encontros inesperados;
2) a reação violenta quando um contato indesejado ocorre de maneira forçada ou se torna
inevitável – o que explica as denominações dos isolados historicamente como índios agressivos
(“brabos”, “arredios”, etc.); e, 3) a camuflagem dentro de um determinado território, o que pode
ocorrer quando há a demarcação de uma terra indígena ou quando o território tradicional do
grupo se transformou em resquícios ou ilhas de floresta. De acordo com Amorim (2016, p. 21-
22):
Além da necessidade de garantir que seus territórios permaneçam intangíveis,
a decisão em si pelo “isolamento” é garantida por diversos instrumentos
legais, em especial pela Convenção n. 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT)19. Portanto, é violação de direitos humanos fundamentais20
ações que visem contatos forçados com esses povos e a destruição ambiental
de seus territórios. Aliás, é comprovada pela historiografia (ALBERT, 2002)
que os contatos realizados à força com os povos indígenas acarretam em
grandes perdas populacionais (RODRIGUES, 2014 apud AMORIM, 2016, p.
21-22).
Neste contexto, verifica-se que desde o início da colonização até o final da década de
1980, as políticas indigenistas estatais (portuguesas e brasileiras) sempre foram baseadas no
estabelecimento do contato como sua premissa de atuação. Ou seja, agentes estatais eram
enviados até os territórios dos indígenas (principalmente daqueles povos que estavam no
caminho das frentes de expansão econômica), realizava-se o contato “oficial”, estabeleciam-se
relações, e a partir de então se tomava as providências indicadas pela política de cada época,
geralmente com a finalidade de remover os povos indígenas daquelas regiões, seja para sua
escravização, evangelização ou para posse e exploração daqueles territórios sob interesse.
A partir do século XX, o desenvolvimento gradual e contraditório do paradigma de
proteção aos índios é incorporado pelos sertanistas. Estes agentes estatais, responsáveis por
chefiar “em campo os trabalhos de atração e pacificação de povos indígenas” (FREIRE, 2005,
p. 06) também conheciam muito bem as consequências inevitáveis ao se estabelecerem os
19 Incluído no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.051 de 19 de Abril de 2004. 20 “A exceção ocorre nos casos em que a intervenção em contato é a única solução para proteger a integridade desses povos, tal como em casos de surtos epidêmicos, por exemplo” (AMORIM, 2016, p. 21, Nota 7).
26
primeiros contatos diretos com os povos indígenas. Então, em junho de 1987, passados vinte
anos da criação da FUNAI e em um contexto nacional marcado pela redemocratização e pelo
fortalecimento dos debates de cunho civil, a FUNAI promoveu o I Encontro de Sertanistas, em
Belém-PA, com a participação de 15 sertanistas e 4 convidados: dois antropólogos, um linguista
e um técnico indigenista (VAZ, 2011, p. 12). Assim, a partir do debate e da troca de experiências
vividas em campo, afirmou-se no documento final do encontro: “é necessário e imediato
executar mudanças de estratégia para nosso trabalho, e, essencialmente, fazer uma revisão de
seus conceitos, causas e consequências” (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 12-13).
A partir de então começa a ser elaborada e implantada “a fundamentação que resultou
na mudança do paradigma do “contato” para o do “não contato”, enquanto premissa de ação
indigenista do Estado brasileiro para a proteção dos índios isolados” (VAZ, 2011, p. 12). As
novas diretrizes desta política indigenista seriam assim definidas: “garantir aos índios e grupos
isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu território, intervindo
apenas quando qualquer fator colocar em risco a sua sobrevivência e organização sociocultural”
(FUNAI, 1993 apud VAZ, 2011, p. 14). Deste modo, os conceitos e as ações de proteção do
órgão deveriam ocorrer à distância, a fim de proteger a integridade territorial das regiões
habitadas por isolados.
É preciso garantir-lhes espaço e tempo para que a opção do contato dependa
deles e não da decisão dos sertanistas do órgão indigenista oficial. Enquanto
não estiverem ameaçados diretamente, o Estado não promove o contato,
apenas protege, à distância, seu habitat. Esta nova política “para os isolados”,
implantada pelo Departamento de Índios Isolados da Funai, representa,
enquanto construção teórica, uma alternativa significativa à forma com que
esses grupos vinham sendo tratados nas últimas décadas (GALLOIS, 1992, p.
121).
Este novo posicionamento da FUNAI, mesmo sendo direcionado a uma categoria
específica de indígenas, os isolados, pode ser identificado como a mais significativa mudança
no paradigma de atuação da política indigenista brasileira. Definiu-se também que a formulação
e a execução das políticas específicas para estes grupos indígenas em situação de isolamento
são, no âmbito legal, de competência exclusiva do Estado21, através de seu órgão indigenista, a
FUNAI. Para tanto, foi criado o Departamento de Índios Isolados, atualmente designado como
21 Fez-se a ressalva “no âmbito legal” porque é possível verificar, já há alguns anos, a tendência à “terceirização” da política indigenista brasileira, de uma maneira geral, e inclusive nos trabalhos com PIIRC. Esta tendência se manifesta através da elaboração e execução de uma significativa quantidade de projetos de Organizações Não-Governamentais (ONGs) indigenistas em “parceria” com a FUNAI.
27
Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), a qual atua
principalmente através das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE).
A partir de então, o Brasil se tornou o primeiro país a criar uma política específica para
a proteção e promoção de direitos dos povos indígenas isolados. De acordo com Brackelaire
(2006, p. 04)
Utilizamos la situación de Brasil como principal referencia, no sólo por la
diversidad de pueblos aislados que tiene, sino por las características de su
política y de sus mecanismos de protección, constituyendo el principal punto
de referencia para entender mejor la situación de los pueblos aislados en la
región [América do Sul].
Por estes motivos, o estudo crítico da política indigenista estatal brasileira, e dos
posicionamentos ideológicos que nortearam sua trajetória de atuação especialmente nos casos
de índios isolados, são referências indispensáveis para esta pesquisa.
1.2 A problemática subjacente ao tema dos PII na Amazônia;
Feita esta breve apresentação do tema, realiza-se a seguir uma análise das dinâmicas
políticas, econômicas e territoriais que fazem parte da problemática contemporânea analisada
nesta tese, a saber, as ameaças à sobrevivência e ao direito de autodeterminação dos povos
indígenas em situações de isolamento na Amazônia.
A região amazônica transnacional abriga a maior floresta tropical e a maior bacia
hidrográfica do planeta, em uma área de aproximadamente sete milhões de km², composta por
territórios de oito países sul-americanos, uma colônia francesa, e territórios de centenas de
povos indígenas. Diferentes sujeitos históricos participam de alguma maneira das dinâmicas
regionais: Estados, organizações internacionais e não-governamentais, povos indígenas,
comunidades tradicionais, a sociedade civil em geral, e agentes econômicos. Logo, diferentes
concepções de mundo fundamentam interesses distintos sobre como devem ser os governos e a
governança da região. Neste cenário, verifica-se que os interesses dos agentes econômicos têm
prevalecido historicamente sobre as demandas e direitos dos demais atores citados.
O cenário analisado adiante não deixa dúvidas: a Amazônia continua sendo muito e mal
explorada. Muito explorada porque as taxas anuais de desflorestamento, mineração,
contaminação de rios e solos, perda de biodiversidade, entre outros fatores, são
persistentemente elevadas. E mal explorada porque as atividades econômicas predominantes
aproveitam uma porcentagem mínima das riquezas diversificadas de que a floresta dispõe.
28
Veremos com mais detalhes no Capítulo 5 que as mesmas dinâmicas que causam a
degradação da região amazônica são também responsáveis pelas principais ameaças à
sobrevivência e à autodeterminação dos povos indígenas em situações de isolamento: 1) o
desflorestamento, atividade que ainda ocorre pelo método da derrubada total de áreas
extensas22, e também através da extração seletiva23 das espécies mais valorizadas no mercado
nacional/global; 2) as grandes obras de infraestrutura, analisadas mais adiante; 3) a expansão
das fronteiras24 agrícolas e pecuárias25, atividade para a qual a derrubada abre caminho,
juntamente com a grilagem26 e venda de terras; 4) as atividades de mineração, legal e ilegal,
que ocorrem pelos métodos de garimpagem e de mineração industrial27; 5) a prospecção e a
exploração de hidrocarbonetos, que tem crescido na região amazônica nas últimas décadas; 6)
a exploração predatória de caça e pesca para comércio e biopirataria; 7) a atuação de
narcotraficantes fortemente armados; 8) o proselitismo religioso, que considera os povos
indígenas em isolamento e de recente contato como um público especial para a prática da
evangelização (VAZ, 2011, 2013, 2014; EACNUDH, 2012; CIDH, 2013).
22 De acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre 1989 e 2004 a média anual de área desmatada na Amazônia brasileira foi de aproximadamente 17.500km², com picos de 29 e 27 mil km² (1995 e 2004, respectivamente). A partir de 2005 inicia-se uma trajetória de redução que atinge um índice inferior a 10.000km² anuais pela primeira vez no ano de 2009, e chega a 4.571km² no ano de 2012. A partir do ano de 2013, após a reforma do Código Florestal Brasileiro, as taxas anuais de área desmatada voltam a crescer (+29%, -15%, +24% e +29%, de 2013 a 2016), tendo atingido 7.989km² em 2016. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/prodes/prodes_1988_2016n.htm. Acesso em 05/07/2017. 23 De acordo com Staedter (2005, n.p.) a atividade de “selective logging” causa entre 60 e 123% de danos adicionais ao desflorestamento tradicional, além de vários outros danos à estrutura florestal como: o aumento da radiação solar, do ressecamento do solo, da morte de raízes e das probabilidades de incêndio florestal. 24 No Brasil, a expansão das fronteiras agropecuárias avançou do sul-sudeste para a região central e norte do país, associada principalmente ao desflorestamento do Cerrado e da Amazônia para constituição de latifúndios monocultores. Destaca-se o chamado Arco do Desmatamento, região de aproximadamente 500 mil km² que registra os maiores índices de desmatamento na Amazônia. Atualmente, porém, o avanço agropecuário também ocorre de modo disperso por várias regiões, inclusive no interior da floresta e não mais apenas em suas margens. 25 De acordo com o BARRETO [et al.] (2017), atualmente a pecuária ocupa 65% da área desmatada na Amazônia. O rebanho bovino na região saltou de 37 milhões de cabeças em 1995 para 85 milhões em 2016 (40% do rebanho nacional). A sistemática do desmatamento segue etapas já amplamente conhecidas: “o invasor derruba a floresta em terra pública, vende madeira para se capitalizar, planta capim e coloca o gado. Mais tarde, as terras de interesse da agricultura dão lugar ao cultivo de soja, arroz e milho” (PONTES, 2017, n.p.). 26 De acordo com o IPAM (2006, p. 11), “A apropriação privada irregular ou ilegal de terras públicas tem sido uma regra na formação da propriedade privada rural no Brasil”. Também segundo o IPAM (2006, p. 16) “o total de terras no país sob suspeita de serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares” (quase 12% do território nacional). Além deste montante, no ano de 2000 houve o “cancelamento do cadastro de 1899 grandes propriedades rurais, com área total equivalente a 62,7 milhões de hectares”, sendo 33,5 milhões na Amazônia. 27 Segundo SALOMÃO e VEIGA (2016, p. 377) “a Amazônia é a última fronteira mineral importante da terra – especialmente a parcela contida no território brasileiro” e possui “grande potencial mineral, comparável ao das principais regiões produtoras do mundo”. Segundo CARDOSO (2017, p. 2), “vivenciamos nesse início de século XXI o maior boom mineral dos últimos 100 anos [...] Estiveram à frente dessa expansão extrativista grandes corporações de capital transnacional que comandam projetos de exploração em grande escala em todo mundo”.
29
A fiscalização estatal insuficiente, descontínua, ou inexistente em muitas regiões da
Amazônia, facilita a ocorrência destas atividades. É importante ressaltar também que, dada a
maior concentração de biodiversidade em unidades de conservação ambiental e nos territórios
indígenas28, estas áreas são alvos preferenciais das atividades madeireiras, de caça e pesca, e
também da mineração.
As grandes obras de infraestrutura são um fator que merece atenção específica dentre as
principais ameaças contemporâneas à região amazônica, aos povos indígenas de modo geral e
a seus territórios. São inúmeras as rodovias29, ferrovias, hidrovias e usinas hidrelétricas30
construídas, em construção e planejadas na Amazônia. Além de causar impactos ecológicos
diretos e indiretos em larga escala, os fluxos econômicos gerados por estas grandes obras
provocam ondas migratórias intensas. Assim, a falta de estrutura urbana para receber estes
contingentes populacionais resulta no desordenamento social e sanitário típico das cidades
amazônicas. Também em função destes empreendimentos, ocorre a valorização fundiária do
entorno, o que, por sua vez, estimula a grilagem de terras e o desflorestamento.
Todavia, são indispensáveis algumas ressalvas acerca do cenário exposto até o
momento. Não se trata de promover um conservacionismo radical, que refute toda e qualquer
atividade econômica na Amazônia. A região e suas populações necessitam de desenvolvimento
econômico e social, inclusive porque muitos dos trabalhadores envolvidos nas atividades ilegais
e predatórias descritas não encontram outros meios de subsistência digna e de ascensão social.
Porém, como demonstra uma vasta literatura em todas as áreas acadêmicas, o foco da discussão
é sobre quais modelos de desenvolvimento são viáveis e compatíveis com o aproveitamento
econômico da riqueza diversificada presente na região. Existem diversas possibilidades de
atividades econômicas na Amazônia, inclusive a extração de madeira, de outros recursos
28 Segundo o Instituto Socioambiental (ISA, 2017), nas Unidades de Conservação federais e estaduais existentes na Amazônia, o desmatamento acumulado é de 1,47% destas áreas, enquanto as áreas florestais fora de UC’s têm um desmatamento acumulado de 21%, ou seja, um índice 14 vezes maior. Nas Terras Indígenas a situação é semelhante, apenas 2% da área total das TI’s foi desmatada. 29 Segundo BARBER et al. (2014), as estradas são o principal indutor de desflorestamento na Amazônia. Para para cada 1km de estradas oficiais (73.553 km, no total) existe cerca de 3km de estradas clandestinas (190.506 km, no total). 94% do desflorestamento de toda a região amazônica se concentra em uma faixa de 5,5km de distâncias das estradas (oficiais e clandestinas). Considerando-se apenas as estradas oficiais, 73,9% do desmatamento da Amazônia está concentrado em uma faixa de 32km de distância destas vias. As áreas desprotegidas acessíveis por estradas encontram-se 43,6% devastadas, enquanto 10,9% das áreas protegidas acessíveis por estadas foram desmatadas. 30 De acordo com FEARNSIDE (2015, p. 14-15) existem ao todo 113 usinas hidrelétricas em operação, em construção, planejadas ou em planejamento na Amazônia brasileira. Destas, 13 estão em operação, 38 estão em construção ou constam no Plano Decenal de Expansão Energética (2012-2021), e outras 62 estão em planejamento. Segundo o autor, nos demais países amazônicos existem 48 usinas (26 no Peru, 16 no Equador, 6 na Bolívia) e outras 151 planejadas (79 no Peru, 60 no Equador, 10 na Bolívia e 2 na Colômbia).
30
florestais, atividades agrícolas e pecuárias, produção de energia hidrelétrica, e até mesmo
mineração. Mas já está suficientemente debatido e demonstrado que os modelos vigentes, de
larga escala e executados via supressão massiva da vegetação, são ineficientes e insustentáveis
– à medida que sua produtividade é menor do que com a adoção de medidas ecológicas, e visto
que seus impactos inviabilizam a própria atividade em poucos anos.
Entretanto, não é difícil compreender por que os megaprojetos de infraestrutura são
abundantes e seguem em ritmo acelerado, mesmo sendo amplamente conhecidos os seus
impactos. Basta observar a magnitude dos empreendimentos, a quantidade de recursos
investidos para viabilizá-los (predominantemente dinheiro público) e a quantidade de riqueza
gerada para as empresas responsáveis pela construção e gestão destes empreendimentos.
Grande parte destas obras não constitui necessidades ou demandas específicas das populações
locais. Têm como objetivo subsidiar e favorecer a continuidade da ocupação territorial da
Amazônia pelo modo de produção capitalista, através da integração definitiva da região às rotas
nacionais e globais de circulação de mercadorias, com destaque atual para as vias
interoceânicas.
Aprofundando-se esta análise, verifica-se ainda que as dinâmicas econômico-territoriais
predominantes na região são direcionadas para atender a mercados e a interesses que são
essencialmente externos à região, ou seja, não-amazônicos. O histórico da exploração
econômica da Amazônia comprova este cenário (borracha, madeira, minérios, hidrocarbonetos,
pecuária e grãos). Os destinos dos produtos extraídos e produzidos localmente foram e são, em
grande parte, os mercados estrangeiros. E, mesmo quando se trata de abastecer o mercado
nacional, os maiores consumidores – de madeira, por exemplo – concentram-se em outras
regiões. No caso do Brasil, regiões bastante distantes, como o Sul e Sudeste.
Assim, as especificidades regionais, as necessidades coletivas e as demandas próprias
das populações amazônicas, indígenas e não-indígenas, estão ausentes das prioridades público-
privadas. Como consequência lógica, os produtos, lucros e os benefícios são redirecionados
nacional e internacionalmente, enquanto os subempregos e os subprodutos ambientais ficam
para a região e para as populações locais. Estas populações, por sua vez, estão entre as mais
desassistidas pelos poderes públicos que legalizaram, viabilizaram e financiaram a exploração
predatória da região. Basta observar os dados socioeconômicos, as questões sanitárias e os
níveis educacionais das populações amazônicas31.
31 Segundo o Censo Demográfico do IBGE (2010), a população da região Amazônica é de 25,4 milhões de habitantes (13,4% da pop. do Brasil), sendo que 18 milhões (73,5%) habitam em áreas urbanas. Entre 2000 e 2010 a população amazônica cresceu 28%. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (IBGE, 2008),
31
Portanto, é preciso destacar que o Estado brasileiro tem participação e responsabilidade
direta no cenário descrito acima. A problemática observada não se deve apenas à ausência do
poder público na região amazônica, mas, sobretudo, ao favorecimento de interesses privados
através de políticas públicas. Dominado historicamente e atualmente pelos interesses de suas
elites, sobretudo do setor agrário-exportador, o Estado foi e continua sendo o principal indutor
e facilitador das dinâmicas econômicas que promoveram e promovem a exploração predatória
da Amazônia. Assim, os países da região permanecem deliberadamente na função de
fornecedores de produtos primários (a baixo custo econômico e alto custo socioambiental) e
consumidores dos produtos das cadeias globais de valor (nas quais têm participação
insignificante).
No contexto atual, o caráter capitalista e colonial do Estado brasileiro é exercido através
das seguintes medidas políticas, tomadas para viabilizar as dinâmicas econômicas citadas: 1)
alteração e fragilização de legislações, sobretudo do Código Florestal32 e dos processos de
licenciamento ambiental33; 2) estagnação na criação de novas áreas protegidas34; 3) decretos
executivos e projetos legislativos visando a extinção e/ou alteração do tamanho e do grau de
proteção ambiental das unidades de conservação existentes35; 4) “regularização” fundiária,
legalizando a apropriação das terras públicas que foram degradadas justamente em função da
expectativa de regularização36; 5) paralização/obstrução dos processos de demarcação de terras
indígenas37; 6) projetos legislativos visando a alteração dos procedimentos constitucionais de
apenas 3,8% dos domicílios na Amazônia são atendidos por uma rede geral de esgoto, 45,3% possuem abastecimento de água, sendo que 20,8% da água distribuída não recebe nenhum tratamento. Apenas 34,3% dos municípios possuem manejo de resíduos sólidos (lixo) e não existem sistemas municipais de coleta seletiva. 32 O Código Florestal Brasileiro foi alterado no ano de 2012, reduzindo de diferentes maneiras as exigências de proteção ambiental nas propriedades privadas. No mesmo sentido estão tramitando no Congresso Nacional projetos visando a fragilização das exigências para obtenção de Licenciamentos Ambientais. 33 Está em negociação no Congresso Nacional o Projeto de Lei (3.729/2004) que altera as exigências para obtenção de licenciamento ambiental – fragilizando-as em muitos aspectos – e acaba com a obrigatoriedade de licenciamento para alguns tipos de empreendimentos. Assim como ocorreu com o Código Florestal, a necessidade existente de atualização para o aprimoramento das leis é utilizada ao revés. 34 Existem 60 milhões de hectares de terras públicas sem destinação na Amazônia (quase duas vezes o território da Alemanha). Estas áreas são alvo preferencial de grileiros, posseiros e outros invasores (PONTES, 2017, n.p.). 35 Destaca-se o Decreto nº 9.142 de 22 de Agosto de 2017, através do qual “fica extinta a Reserva Nacional de Cobre e seus associados”, uma área de 46.450 km², localizada entre nove áreas protegidas na região entre os estados do Pará e Amapá. Outro caso emblemático é o da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, onde se propõe a redução do nível de proteção ambiental de 600 mil hectares da floresta Amazônica e a legalização de propriedades rurais invadidas e desmatadas na região. O caso abre precedente para outros projetos de lei do mesmo tipo, e, assim, cria a expectativa de que UCs invadidas sejam “regularizadas”, fomentando, assim, o desflorestamento na Amazônia. 36 Além do caso do Jamanxim, foi sancionada pelo Congresso Nacional a proposta do Executivo (MP 759/2016), denominada MP da grilagem, que permite a legalização massiva de propriedades em áreas públicas invadidas. 37 De acordo com o CIMI (2015, p. 49), existem atualmente 348 terras indígenas (TIs) com solicitação registrada no Ministério da Justiça, mas que se encontram sem providências dos órgãos responsáveis. Outras 175 TIs estão
32
demarcação das TI e, ainda, instituindo a possibilidade de revisão, alteração e extinção das
terras já demarcadas38; 7) projetos legislativos visando permitir obras de infraestrutura,
mineração, exploração de recursos naturais e agropecuária dentro de terras indígenas39; e, por
fim, 8) o corte sistemático de recursos humanos e financeiros visando exaurir a capacidade
institucional e a credibilidade das instituições estatais responsáveis pela proteção ambiental
(IBAMA), pela promoção dos direitos dos povos indígenas (FUNAI), e pelas políticas de
reforma agrária (INCRA).
Em compasso com estas medidas executivas e legislativas, verifica-se historicamente
uma espécie de segurança jurídica da impunidade quando se trata de violações da legislação
ambiental e dos direitos indígenas. Um estudo sobre crimes ambientais em áreas protegidas
federais na Amazônia aponta que: os processos duram em média 5,5 anos; 86% dos crimes
ficam impunes; 15% prescrevem; e apenas 14% dos processos resultam em algum tipo de
responsabilização. Por sua vez, esta responsabilização é geralmente convertida em penas sociais
dissociadas de fins ambientais (como a doação de cestas básicas), e menos de 5% do valor total
das multas aplicadas é pago (BARRETO, 2009, p. 25). Dado o histórico de impunidade, os
conflitos territoriais seguem acirrados, e a assimetria de forças resulta em números trágicos de
violência contra os povos indígenas, comunidades tradicionais, ativistas ambientais e
defensores dos direitos humanos40.
Em suma, a impunidade e a anistia, garantidos via regularização da posse de terras
públicas invadidas, flexibilização das leis ambientais e de licenciamento, e retirada de direitos
dos povos indígenas indicam que, no Brasil, os crimes ambientais e étnicos compensam, são
lucrativos, e incentivados pelo Estado.
classificadas no processo administrativo como “A identificar”. Estas duas categorias somam aproximadamente 50% do número total de TIs do país. Além destas, 6 TIs encontram-se “com portarias de restrição”, 47 “identificadas”, 63 “declaradas”, 61 “reservadas” e 15 “homologadas” – etapas do longo processo administrativo, ao fim do qual as TIs são “registradas”. Em suma, o cenário é de 398 TIs registradas, 192 em processamento administrativo, e 348 sem providências. Vale lembrar que o artigo 67 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o prazo de 5 anos para a conclusão das demarcações de Terras Indígenas no Brasil. 38 A PEC 215/2000 retira do Executivo e transfere para o Congresso Nacional a atribuição de demarcar as Terras Indígenas, permite a revisão e anulação das TIs já demarcadas, além de outras mudanças nos procedimentos demarcatórios, como a diminuição do peso da FUNAI e dos laudos antropológicos na decisão. 39 O PLP 227/2012 pretende legalizar atividades econômicas no interior de terras indígenas sob a identificação de “relevante interesse público da União”. Entre estas atividades estão a agropecuária, obras de infraestrutura, e mineração. De acordo com o ISA (2016, online), “de um total de 44.911 processos minerários [solicitações de pesquisa e de lavra] na Amazônia brasileira, 17.509 incidem, total ou parcialmente, sobre TIs ou UCs”. 40 Segundo relatório da Global Witness (GW, 2014), entre 2002 e 2013 foram registrados 908 assassinatos de “environmental and land defenders” em 35 países. Destes casos, 448 ocorreram no Brasil (49,3%). A organização afirma ainda que as informações sobre este tipo de crime são escassas, e provavelmente os dados apontados são apenas uma amostra da dimensão real do fenômeno. No ano de 2015, foram registrados 185 assassinatos deste tipo ao redor do mundo, sendo 50 no Brasil. Deste total, 40% eram indígenas (GW, 2016).
33
Se por um lado percebe-se uma mobilização da sociedade civil organizada [restrita
aos especialistas no tema] em defesa dos Povos Indígenas Isolados e de Recente
Contato, e algumas reações localizadas de setores governamentais a nível regional,
por outro lado as forças relacionadas ao agronegócio, empresas de energia e petróleo,
empreiteiras e mineradores, madeireiras, missionárias, ou seja, aqueles setores
interessados nos processos de integração da Amazônia aos mercados globalizados
encontram respaldo no legislativo, executivo e judiciário e promovem uma onda “anti-
indígena”, que resulta numa conjuntura adversa para os direitos conquistados por
esses povos (VAZ e BALTHAZAR, 2013, p. 96).
Neste contexto, um número crescente de grupos indígenas identificados em situações
de isolamento tem buscado estabelecer contatos com habitantes do entorno de seus territórios,
com outras etnias indígenas, e com postos de assistência de órgãos indigenistas. Veremos no
Capítulo 5 que entre os motivos destes contatos, apontados pelos órgãos indigenistas e em
alguns casos pelos próprios índios recém-contatados, estão as violências praticadas por
invasores, as pressões territoriais e a escassez de alimentos dada a degradação ambiental de
seus territórios e do entorno. Esta situação têm despertado a atenção de diversas organizações.
O que mais chama a atenção, contudo, é a publicação de três cartas-denúncia, elaboradas pelos
próprios Coordenadores de Frentes de Proteção Etnoambiental da FUNAI e por ex-sertanistas,
mostrando o desmantelamento da política indigenista estatal e os graves riscos a que estão
submetidos os povos indígenas em isolamento.
Assim, procuramos evidenciar ao longo desta pesquisa que a garantia do direito de
autodeterminação dos povos, reconhecido nacional e internacionalmente, significa, no caso dos
indígenas em isolamento, garantir condições para que estes grupos possam permanecer sem
contato com a sociedade envolvente, enquanto esta for sua opção. Várias ações são necessárias
para isto, tais como: fortalecimento político, institucional e financeiro dos órgãos indigenistas;
capacitação de profissionais; monitoramento dos registros existentes e verificação de
informações sobre novos grupos; conscientização das populações do entorno de regiões com
presença de PIIRC; elaboração e instrumentalização de planos de contingência para casos
emergenciais; produção e divulgação científica sobre estes povos; informação e
conscientização da sociedade civil; entre outros fatores.
1.3 Objetivos, Pergunta e Hipótese da Pesquisa;
Expostas algumas características dos PII e da problemática subjacente ao tema,
apresentamos a seguir os objetivos, a pergunta e a hipótese desta pesquisa.
O objetivo geral da pesquisa é compreender a situação contemporânea dos povos
indígenas em isolamento na Amazônia brasileira a partir de uma perspectiva macro-histórica
34
sobre a trajetória das relações entre o Estado-Nação (colonial português/pós-colonial brasileiro)
e os povos indígenas no Brasil. Os objetivos específicos da pesquisa são: analisar o estudo de
assuntos indígenas na área de conhecimento das Relações Internacionais, especialmente entre
a comunidade acadêmica brasileira desta área; analisar como os direitos indígenas, de modo
geral, e dos povos indígenas em isolamento, especificamente, foram e são tratados no âmbito
nacional e internacional; aprofundar e difundir o conhecimento sobre as características e a
situação contemporânea dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia
brasileira.
Assumimos também como um dos objetivos deste trabalho a identificação de questões
consideradas pertinentes sobre o tema, com o intuito de contribuir para a realização de futuras
pesquisas. Assim, diante da complexidade do tema e não tendo encontrado pesquisas com
abordagem semelhante à aqui proposta, escolhemos uma questão abrangente como pergunta
central que orientou a elaboração da tese, a saber: Como41 pode ser caracterizada a situação
contemporânea dos povos indígenas em isolamento voluntário na Amazônia brasileira? Assim,
de modo complementar, está em questão também como os conhecimentos sobre assuntos
indígenas e sobre a temática específica dos povos em isolamento, contribuem para a
compreensão de características e dinâmicas da política nacional e global.
A hipótese trabalhada nesta pesquisa é a de que a continuidade histórica das práticas de
violência, extermínio, usurpação territorial e de fugas sistemáticas, às quais os povos indígenas
foram submetidos, permite caracterizar a situação contemporânea dos povos em isolamento na
Amazônia como o sexto século de genocídios e de diásporas indígenas. Ambos os processos se
iniciaram com a colonização europeia, foram sucedidos pelo colonialismo interno42, e
prosseguem atualmente por meio da apropriação dos recursos e dos territórios amazônicos para
serem incorporados aos mercados nacionais/globais. Portanto, a dimensão cronológica desta
caracterização não pretende representar um processo linear, mas sim dinâmicas que passaram
por momentos de maior e de menor intensidade, por mudanças dos agentes históricos
41 As implicações da pergunta de pesquisa do tipo “como”, são assim analisadas por Finnemore e Sikkink (2001,
p. 394): "For constructivists, understanding how things are put together and how they occur is not mere description. Understanding the constitution of things is essential in explaining how they behave and what causes political outcomes. Just as understanding how the double-helix DNA molecule is constituted materially enables understandings of genetics and disease, so, too, an understanding of how sovereignty, human rights, laws of war, or bureaucracies are constituted socially allows us to hypothesize about their effects in world politics”. 42 A partir do trabalho de CASANOVA (2007), com algumas adaptações, entende-se como colonialismo interno o processo pelo qual os Estados-Nação sul-americanos formados após as independências políticas mantêm e renovam estruturas e dinâmicas econômicas, políticas, sociais e culturais típicas do colonialismo. Este conceito será debate no Capítulo 2.
35
envolvidos, mas que não foram abolidas. Tampouco se trata de promover uma perspectiva de
vitimização histórica dos povos indígenas, visto que as diásporas e o isolamento voluntário são
identificadas como parte das distintas estratégias indígenas de resistência, resiliência e de busca
pela autodeterminação.
A narrativa de Ailton Krenak (1999, n.p.), em seu texto chamado “O eterno retorno do
encontro”, exerceu influência decisiva na elaboração desta hipótese:
Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente e a cultura do
continente americano numa data e num tempo demarcado que pudéssemos chamar de
1500 ou de 1800. [...] Se pensarmos que há 500 anos algumas canoas aportaram
aqui na nossa praia, chegando com os primeiros viajantes, com os primeiros
colonizadores, esses mesmos viajantes, eles estão chegando hoje às cabeceiras dos
altos rios lá na Amazônia. De vez em quando a televisão ou o jornal mostram uma
frente de expedição entrando em contato com um povo que ninguém conhece [...]
Então eu queria partilhar com vocês essa noção de que o contato entre a cultura
ocidental e as diferentes culturas das nossas tribos acontece todo ano, acontece
todo dia, e em alguns casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui
no litoral, 200 anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só
encontraram os brancos de novo agora, nas décadas de 30, 40, 50 ou mesmo na
década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na geografia de nosso
território e de nosso povo expressa uma maneira própria das nossas tribos de estar
aqui neste lugar. (KRENAK, 1999, n.p., grifo nosso).
Segundo Oliveira e Freire (2006, p. 21), apesar de todas as divergências existentes, as
estimativas mais aceitas por arqueólogos e antropólogos indicam a existência de 1,5 a 5 milhões
de indígenas no Brasil em 1500. O etnólogo e sertanista Curt Nimuendaju (1981), que no início
do século XX dedicou-se a pesquisas de campo junto a vários povos indígenas do Brasil,
identificou a existência de 1400 povos indígenas no território que correspondia ao Brasil à
época do “descobrimento”. De acordo com Darcy Ribeiro, em 1957 a população indígena no
país foi reduzida a cerca de 70 a 100 mil indivíduos (RIBEIRO, 1996). Segundo Prezia e
Hoornaert (1992 apud Lopez e Miranda, 2011, p. 181) “só na Amazônia brasileira foram
extintos 925 povos”. Devemos destacar, ainda, que a caracterização de um genocídio não se dá
apenas pelo número de indivíduos mortos, mas, principalmente, pela intenção de erradicar
determinado grupo – no caso dos povos indígenas, com a finalidade de apropriar-se de seus
territórios. Analisaremos, então, como tanto a prática como a intencionalidade de genocídios
indígenas existiram ao longo da história do Brasil e continuam a existir, sobretudo no caso dos
povos em isolamento, com as peculiaridades do período contemporâneo.
O outro elemento que sustenta nossa hipótese é a distribuição espacial dos povos
indígenas no Brasil, que indica o movimento de diáspora destes povos. Curt Nimuendaju (1981)
registrou em seu mapa etno-histórico a grande dispersão geográfica existente entre os 1400
povos indígenas que habitavam o território correspondente ao Brasil atual. Entretanto, ao longo
36
dos processos de ocupação e de expansão territorial da sociedade nacional incontáveis etnias
indígenas foram extintas, alguns grupos conseguiram resistir e permanecer em parte de seus
territórios, outros encontraram refúgio em áreas que vieram a se tornar terras indígenas. Grande
parte, porém, foi pressionada sucessivamente a abandonar seus territórios tradicionais ou até
mesmo retiradas destes territórios pelo próprio Estado.
Mapa 2 - Áreas do Brasil povoadas por não-índios ao longo dos séculos XVI a XX
Fonte: (AZEVEDO, 1968, p. 107 apud URT, 2015, p. 168).
Assim, o movimento diaspórico dos povos indígenas no Brasil se constituiu no mesmo
sentido do processo de ocupação do território pela sociedade nacional, indicado pelo mapa
acima: do litoral para o interior, daí para a região central, e desta para a região norte – não
necessariamente de modo linear e absoluto.
37
Associado a este fenômeno, no mapa disponível na página seguinte podemos verificar
as discrepâncias no tamanho e na quantidade das terras indígenas ao compararmos as regiões
Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste, e Norte do Brasil. Elementos semelhantes podem ser
verificados pela comparação do tamanho das populações e da diversidade étnica dos povos
indígenas nas regiões do país. Segundo o Censo Demográfico de 2010, na região sul, existem
74.945 indígenas, na região sudeste, 97.960, na região Centro-Oeste, 130.494, na região
Nordeste, 208.961, e na região Norte 305.873.
Mapa 3 - Terras Indígenas no Brasil (2017)
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA, 2017, n.p.).
De modo complementar, verifica-se que mesmo no interior da floresta amazônica, o
avanço da exploração colonial/nacional pressionou e ainda pressiona os povos indígenas em
isolamento voluntário para regiões cada vez mais distantes, alcançando as fronteiras nacionais.
Neste sentido, a Tabela 1, disponível na página seguinte, demonstra que praticamente todos os
38
grupos indígenas em isolamento no Brasil encontram-se na região Norte, com apenas 8
exceções (7 registros no estado do Maranhão e 1 no Goiás).
Tabela 1 - Registros de PIIRC por Estados da Federação43
Estado INFORMAÇÃO REFERÊNCIA REFERÊNCIA
CONFIRMADA
RECENTE
CONTATO
TOTAL
GERAL
AC 1 1 4 - 6
AM 21 6 13 4 44
AM/PA 3 1 - - 1
AM/RO - 1 - - 1
AM/RR - - 1 2 3
MA 6 1 2 1 10
MT 6 3 1 1 11
PA 11 6 - 4 21
RO 6 1 4 4 15
RR 2 2 1 - 5
TOTAL
GERAL 56 22 26 16 120
Fonte: VAZ (2014, p. 29).
Portanto, o isolamento não pode ser explicado apenas com base na localização destes
povos, ou seja, não se justifica simplesmente pelo fato destes grupos indígenas viverem em
regiões distantes e de difícil acesso. O fenômeno a ser analisado é que a localização majoritária
nestes refúgios amazônicos (terras indígenas, áreas de proteção ambiental e fronteiras
nacionais) reflete sua opção pelo isolamento e suas trajetórias de fuga sistemática dos contatos
e relações com a sociedade colonial-nacional.
Conforme já foi mencionado, é importante também considerar que os PIIRC presentes
no Brasil cuja localização é distante das fronteiras nacionais, encontram-se quase todos no
interior de terras indígenas ou de áreas de proteção ambiental. À medida que estabelecem
limites formais ao avanço das atividades econômicas e da ocupação não-indígena, estas áreas
também podem ser concebidas como um tipo de região fronteiriça. Nestes refúgios amazônicos,
determinados grupos indígenas conseguiram manter-se em isolamento. Porém, a continuidade
da expansão capitalista, por meios cada vez mais difusos, tem alcançado também estas áreas.
Estima-se que estes processos de genocídios e diásporas indígenas possam ser
verificados em diferentes países. Os mapas publicados por Vaz (2011, p. 54-55) e por Loebens
e Neves (2011, Anexo 2) revelam que dos cerca de 140 registros de PIIRC identificados pelos
autores até então, pelo menos 100 grupos (71%) localizam-se em regiões de fronteiras
43 Nota-se que há divergências quanto ao número de PIIRC presentes no país. A FUNAI reconhece a existência de 111 registros. Já o consultor e ex-sertanista Antenor Vaz (2014, 2016) aponta a existência de 120 registros.
39
nacionais44. Há registros de PIIRC próximos aos limites do Brasil com a Bolívia, Peru,
Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, além de grupos nas regiões
limítrofes entre Peru e Equador, Peru e Bolívia, e, Bolívia e Paraguai.
Por fim, é preciso reconhecer que não se trata de uma originalidade deste trabalho
afirmar que o histórico das relações entre os Estados-Nação (coloniais e pós-coloniais) e os
povos indígenas (americanos, africanos e asiáticos) constituem-se de numerosos e amplos
genocídios e movimentos diaspóricos. As publicações acadêmicas sobre estes temas são
numerosas e diversificadas. São abundantes também as denúncias de organizações indígenas,
organismos internacionais e de organizações não-governamentais sobre as constantes e graves
violações dos direitos indígenas. Especificamente no Brasil, têm surgido número crescente de
documentos e de registros históricos comprovando a intencionalidade de agentes estatais e não-
estatais na promoção sistemática de violência, tortura, escravização e extermínio de povos
indígenas45. Deste modo, as contribuições que esta tese pretende elaborar estão na identificação
e na descrição das relações existentes entre estes processos macro-históricos, de genocídios e
diásporas, e a situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento na Amazônia
brasileira.
1.4 Apresentação dos capítulos;
A seguir pretendemos apresentar como os conhecimentos, argumentos e informações,
consultados e elaborados nesta pesquisa, foram organizados ao longo do texto.
No Capítulo 2 nos dedicamos a debater os fundamentos epistemológicos, teóricos,
conceituais e metodológicos da pesquisa. A pergunta que orienta as reflexões do capítulo é:
como os assuntos indígenas, de modo geral, e a problemática dos povos indígenas em
isolamento, especificamente, podem ser estudados com base nos conceitos e perspectivas da
área de conhecimento de Relações Internacionais? Neste sentido, identificamos convergências
importantes entre as propostas desta pesquisa e as perspectivas epistemológicas e teóricas
representadas pelo pós-colonialismo. Deste modo, buscamos identificar como a colonialidade
do saber contribuiu para legitimar os processos de colonização, ocultando e naturalizando as
44 Não há consenso sobre o perímetro que caracteriza uma região como faixa de fronteira nacional. De acordo com as especificidades do assunto, considerou-se como regiões de fronteira todas as áreas com presença de PIIRC nas quais o limite físico-político dos Estados é composto por terras indígenas ou parques nacionais de proteção ambiental. No caso dos registros de PIIRC citados, isto ocorre geralmente dos dois lados da fronteira. 45 Destaque para o Relatório Figueiredo, que aborda o período de 1910 a 1968. As práticas descritas no relatório, contudo, certamente se iniciaram muito antes e perduraram por algum tempo depois deste período.
40
suas consequências para os povos indígenas. Nos refúgios amazônicos remanescentes, como
vimos há pouco, determinados grupos indígenas demonstram seu interesse de permanecerem
em isolamento, à medida que recusam o estabelecimento de quaisquer relações com a sociedade
envolvente. Assim, nos cabe discutir, ainda que brevemente, como o isolamento voluntário
representa a linguagem com a qual estes povos falam e se posicionam no mundo. Após estas
reflexões epistemológicas, apresentamos e debatemos os conceitos e perspectivas teóricas que
influenciaram e orientaram a elaboração desta pesquisa, e, na seção seguinte, discute-se como
as perspectivas da interdisciplinaridade e das análises macro-históricas foram concebidas
enquanto procedimentos metodológicos desta pesquisa. Por fim, faz-se uma breve revisão da
literatura e dos materiais de pesquisa específicos sobre a temática dos povos indígenas em
situações de isolamento.
No Capítulo 3, analisamos alguns aspectos específicos das relações existentes entre os
povos indígenas, os Estados-Nação e a política internacional/global. Entre os objetivos deste
capítulo, pretende-se identificar o protagonismo dos povos indígenas no processo de inserção e
reconhecimento de seus direitos nas constituições nacionais latino-americanas e também por
algumas das principais instituições da política internacional. O contexto do final da década de
1980 e da década seguinte foi marcado por processos de redemocratização e de reformas
estruturais – promovidas pelo ideário neoliberal – nos Estados latino-americanos. Neste
cenário, o fortalecimento e a articulação internacional dos movimentos indígenas foram
fundamentais para lograr a inserção de alguns direitos destes povos nas reformas
constitucionais realizadas em vários nos países da região. Deste modo, a primeira seção do
capítulo identifica a participação dos movimentos indígenas no processo que resultou na
Constituição Federal brasileira de 1988, bem como analisa o conteúdo destes direitos. Em
seguida faz-se uma análise do processo de reformas constitucionais na América Latina,
indicando as semelhanças, diferenças e níveis de reconhecimento dos direitos indígenas na
região.
Tendo percorrido os níveis nacional e regional, na seção seguinte analisa-se o processo
pelo qual os povos indígenas obtiveram sucesso em inserir a temática sobre seus direitos
também na agenda da política global, de modo associado ao fortalecimento dos direitos
humanos a partir da segunda metade do século XX. Procede-se então à análise da Convenção
n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, da Declaração da ONU sobre
Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Tendo em vista que a proteção dos povos indígenas em
isolamento e de seus territórios também vem sendo incluída recentemente entre os assuntos
41
indígenas observados pelas instituições internacionais, analisaremos também as Diretrizes de
Proteção dos PIACI formuladas pelo ACNUDH, em 2012, e as Recomendações para a proteção
e o respeito dos Direitos Humanos dos PIACI, formuladas pela CIDH, em 2013. Por fim,
analisa-se brevemente a atuação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
(OTCA) em um projeto específico sobre o tema dos povos indígenas em isolamento, executado
entre 2012 e 2014.
No Capítulo 4, damos início, então, ao estudo macro-histórico sobre as relações entre o
Estado-Nação (colonial português/pós-colonial brasileiro) e os povos indígenas. A partir das
práticas predominantes na política indigenista estatal em cada período, procuramos evidenciar
que os séculos XVI a XVIII foram marcados pela prática de aprisionamentos, escravidão
indígena e pelas lutas de resistência destes povos; de meados do século XVIII ao fim do XIX,
destacou-se o interesse em promover a assimilação dos povos indígenas à sociedade colonial-
nacional; no século XX, a partir do ímpeto de Rondon, tem início o regime tutelar, concentrado
na atuação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e na sua sucessão pela FUNAI. Em seguida,
fazemos em seguida uma breve referência às consequências típicas dos contatos ao longo dos
processos anteriormente analisados e, através de literatura antropológica e de relatos de campo
feitos por sertanistas, reunimos alguns casos que indicam a ocorrência de genocídios e de
diásporas dos povos indígenas.
Assim, tendo estudado anteriormente os direitos indígenas na Constituição Federal de
1988, o ponto de chegada desta análise macro histórica é o processo de concepção e elaboração
da política pública específica para povos indígenas em isolamento, que começou a ser
desenvolvida a partir de 1987. A contribuição da vasta experiência de campo dos sertanistas foi
o fator decisivo para a mais significativa mudança de paradigma da história da política
indigenista estatal brasileira. O Encontro de Sertanistas de Belém de 1987 é o marco que
representa o estabelecimento do princípio do “não-contato”, seguido pela criação do
Departamento de Índios Isolados na FUNAI, atualmente designado como Coordenação Geral
de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). Após revermos esta trajetória, analisamos
a metodologia de proteção aos índios isolados, bem como os conceitos e princípios
fundamentais de sua atuação: vulnerabilidade, proteção territorial; ameaças; emergência
sanitária; consulta prévia; autodeterminação, entre outros.
Assim, no Capítulo 5 chegamos ao debate sobre a caracterização da situação
contemporânea dos PII como o sexto século de genocídios e diásporas indígenas. Inicialmente,
buscamos aprofundar o conhecimento específico sobre os povos indígenas em situações de
42
isolamento na Amazônia brasileira, com atenção às suas complexas características e processos
históricos. Em seguida, faz-se uma apresentação do panorama atual dos PIIRC presentes no
Brasil, a partir do mapa e da lista de registros fornecidos pela FUNAI (2017), com informações
oficiais e atualizadas sobre as etnias, línguas, localização e situação territorial. Este panorama
também foi elaborado com base em análises do cenário feitas por ex-sertanistas, coordenadores
de Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), e por artigos acadêmicos. Destaca-se deste
panorama que estes povos habitam majoritariamente em regiões que denominamos como
refúgios amazônicos, ou seja, estão majoritariamente em regiões de fronteira nacional ou nas
regiões de fronteira representadas pelas terras indígenas já demarcadas.
Em seguida, são analisados como componentes deste panorama: as principais ameaças
contemporâneas à sobrevivência e à autodeterminação destes povos; a capacidade institucional
da FUNAI/CGIIRC; e as Cartas-denúncia dos Coordenadores de FPE e sertanistas
(2013,2015,2017) sobre a situação político-orçamentária dos órgãos responsáveis pela política
específica para PII. Deste modo, encerramos o capítulo com a análise sobre o aumento de casos
recentes de contatos e de situações de risco envolvendo PII, o que demonstra a continuidade e
o possível aumento das pressões territoriais sobre os últimos refúgios amazônicos.
Assim, ao longo dos capítulos, terão sido analisados os três fatores que permitem
caracterizar a situação contemporânea dos PII como o sexto século de genocídios e de diásporas
indígenas, pelo menos até esta segunda década do século XXI: 1) a trajetória histórica da
colonização e do colonialismo interno, orientados pela cosmologia excludente que governou o
processo de expansão do sistema europeu de Estados-Nação por todo o planeta, por meio do
confronto entre as soberanias estatais e as soberanias indígenas; 2) as responsabilidades do
Estado-Nação (colonial português, e, pós-colonial brasileiro), tanto pela ação (promovendo
direta e/ou indiretamente genocídios e diásporas indígenas), quanto pela omissão (deixando de
realizar, ou realizando de modo insuficiente, seu papel de garantidor de direitos); e, 3) o avanço
contínuo da apropriação dos recursos e territórios amazônicos para serem incorporados aos
mercados nacionais/globais.
43
2 O ESTUDO DE ASSUNTOS INDÍGENAS NA ÁREA DE RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
“A história da América, dos Incas até aqui, tem que ser ensinada em detalhes,
embora não se ensine a dos arcontes da Grécia. Nossa Grécia é preferível à
Grécia que não é nossa. É mais necessária para nós” (MARTÍ, 2011, p. 20-
21).
O assunto dos povos em isolamento na Amazônia pode ser estudado em distintos níveis
de complexidade e através de múltiplas perspectivas: histórica, antropológica, política, global,
humanitária, filosófica, entre outras possíveis. Estão envolvidas também diferentes noções de
fronteira: étnica, cosmológica, nacional, civilizacional, ecológica, econômica, e, inclusive, as
próprias fronteiras do conhecimento científico. Neste capítulo almeja-se apresentar como a
complexidade inerente ao assunto estudado foi parcialmente apreendida e analisada na tese. A
pergunta que orienta as reflexões do capítulo foi feita por praticamente todos os meus
interlocutores no decorrer do processo de elaboração desta pesquisa: Como estudar assuntos
indígenas, de modo geral, e os povos em isolamento, especificamente, a partir da área de
conhecimento de Relações Internacionais? A fim de respondê-la de modo satisfatório,
discutiremos ao longo deste capítulo as perspectivas epistemológicas, conceituais, teóricas e
metodológicas que influenciaram e deram suporte à elaboração desta tese.
Nesta breve introdução do capítulo, entretanto, consideramos necessário desenvolver
duas reflexões: primeiramente, é fundamental compreender quais são os motivos que tornam a
pergunta acima mencionada tão recorrente. Ou seja, por que o estudo de assuntos indígenas a
partir de uma perspectiva internacional/global causa estranhamento em grande parte da
comunidade acadêmica da área de RI? Em seguida, enumera-se as principais relações existentes
entre povos indígenas e política internacional/global, indicando, dentre elas, quais serão
trabalhadas ao longo da pesquisa.
Deste modo, cabe aqui uma importante ressalva inicial. Nos propusemos a realizar um
estudo interdisciplinar, baseado essencialmente no diálogo com a Antropologia e com a História
Indígena. Entretanto, a formação acadêmica do autor, e a pesquisa, em si, se situam na área de
Relações Internacionais. A perspectiva, os conceitos e as abordagens teóricas trabalhadas têm
como referência principal esta área de conhecimento, e, portanto, não se propõe a alcançar a
transdisciplinaridade, que seria, sem dúvida, a abordagem mais adequada ao estudo do tema e
das problemáticas a ele relacionadas.
44
Neste sentido, argumentaremos que a episteme eurocêntrica46, predominante por muito
tempo nas ciências sociais – dentre as quais está a área de Relações Internacionais –, não apenas
forneceu subsídios e legitimidade ao colonialismo e ao capitalismo, como também naturalizou
e ocultou sistematicamente as consequências deste processo para os povos indígenas, e, ainda,
combateu as perspectivas e os conhecimentos contrários à sua perpetuação. Em perspectiva
teórica, nota-se que os povos indígenas não foram e ainda não são reconhecidos enquanto
comunidades políticas legítimas, autônomas e soberanas, que participaram e participam como
sujeitos dos processos históricos de conformação do mundo. Além disso, durante a trajetória de
surgimento da disciplina acadêmica de RI e de formulação de suas bases conceituais e teóricas
(século XX), o padrão colonial de poder dos Estados e sociedades nacionais em relação aos
povos indígenas já encontrava-se consolidado e em franca expansão. Estes são alguns dos
motivos, explorados ao longo deste capítulo, pelos quais os assuntos indígenas não fizeram
parte, até muito recentemente, dos debates da área de conhecimento das Relações
Internacionais. No Brasil, esta ausência é ainda mais flagrante e persistente.
Apesar de já existir vasta literatura internacional sobre assuntos indígenas e suas
relações com os âmbitos políticos local, nacional, internacional e/ou global, a comunidade
acadêmica brasileira de Relações Internacionais ainda não dedica parte significativa de seus
estudos a estes assuntos47. Podemos verificar também que nem mesmo a região amazônica
recebe a devida atenção enquanto tema indispensável para o próprio país, para a sua inserção
internacional, e para a política global contemporânea. É importante reiterar que estas
observações não têm o objetivo de fortalecer uma perspectiva estritamente disciplinar, geradora
de fronteiras e especializações, mas de analisar brevemente o ensino e a pesquisa de assuntos
amazônicos e indígenas nas estruturas acadêmicas da área de Relações Internacionais48. Neste
sentido, nota-se que tais assuntos estão praticamente ausentes das diretrizes curriculares dos
cursos de graduação, das linhas de pesquisas dos programas de pós-graduação, dos eventos
acadêmicos e, consequentemente, das publicações científicas da área.
46 Entendemos como eurocentrismo “tanto un proceso histórico como una forma de operar intelectualmente y de construir nuestra realidad social” (GARCÉS, 2007, p. 219-220) que “conferiu à ciência a exclusividade do conhecimento válido” e estruturou-se por meio de “vasto aparato institucional – universidades, centros de investigação, sistema de peritos, pareceres técnicos” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 11). 47 Conforme será analisado na seção de Revisão Bibliográfica. 48 Isto porque realizar tal análise em perspectiva transdisciplinar ultrapassa as possibilidades da reflexão aqui proposta.
45
O documento que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de
graduação em Relações Internacionais49 apresenta uma lista de conteúdos afeitos à realidade
nacional e internacional, os quais devem estar contemplados nos projetos pedagógicos e na
organização curricular. Indica ainda que cada curso pode seguir uma linha de formação
específica, com disciplinas de conteúdos complementares. Porém, consideramos significativos
os seguintes aspectos. Primeiramente, as palavras “Amazônia” ou “região amazônica”, sequer
constam no documento, o que, isoladamente, já seria passível de severas críticas. Quanto à
Antropologia, esta área é mencionada dentre os eixos temáticos que devem constar nos Projetos
Pedagógicos dos Cursos (PPC). Porém, quando cumprida, esta diretriz, reflete-se no máximo
em uma única disciplina de introdução ao pensamento antropológico, o que nos parece
meramente protocolar e insuficiente. Com os assuntos indígenas ocorre algo semelhante, sendo
apenas mencionado o objetivo de agregar ao curso os requisitos legais de ensino de história e
cultura afro-brasileira e indígena50. Neste cenário, apenas os cursos de graduação em Relações
Internacionais de Universidades localizadas na região amazônica dedicam algumas disciplinas
ao estudo das temáticas próprias da região51.
Uma breve análise da trajetória de criação e de expansão do ensino de graduação em RI
no Brasil52 pode nos auxiliar a compreender o cenário acima descrito. No início da década de
1990 a área dispunha de apenas dois cursos de graduação (UnB e PUC-RJ), no ano de 2008 já
haviam 85 cursos, e no início de 2014 estavam em funcionamento 140 cursos de graduação em
RI. De acordo com Vigevani, Thomaz e Leite (2016, p. 02):
Existem hipóteses que devemos considerar para tentar explicar a grande
expansão dos cursos de relações internacionais no Brasil: 1) expansão do
mercado de trabalho; 2) globalização e maior inserção internacional do Brasil;
3) expansão do comércio internacional do Brasil. Temos ainda a percepção,
que deveria ser mais comprovada, de que modismo e glamourização também
contribuíram para essa expansão.
49 Aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e publicado no Diário Oficial da União no dia 05de Outubro de 2017. Disponível em: http://www.abri.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=779. 50 Instituídos pela Lei 10.639/2003. 51 O curso da Universidade Federal de Roraima (UFRR) oferece as disciplinas “Amazônia e Relações Internacionais”, “História da América Andina e Pan-Amazônica” e “Antropologia e Relações Internacionais”; o curso da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) ministra as disciplinas de “Relações Internacionais e Amazônia” e de “Antropologia”; e o curso da Universidade Federal do Tocantins (UFT), oferece-se as disciplinas de “Geografia da Amazônia” e “História e Cultura Indígena”. 52 Dispõe-se de alguns artigos dedicados a este processo, entre os quais destacamos: Miyamoto (1999, 2003); Herz (2002); Lessa (2005); Cruz e Mendonça (2010); Vigevani, Thomaz e Leite (2016).
46
Devido a transformações ocorridas no âmbito interno brasileiro (como a participação
crescente no comércio internacional e a redemocratização) e no âmbito externo (como o fim da
Guerra Fria, a intensificação dos fluxos internacionais e do processo de globalização):
Foi necessário ampliar o número de profissionais capazes de trabalhar na
esfera pública e na privada, assim como em entidades e organizações não
governamentais (ONGs). Esses profissionais foram procurados pelas
empresas, pelos legislativos, por entidades empresariais e sindicais etc.
Serviriam de comprovação da busca, nas palavras de Miyamoto: “os
departamentos criados para tratar de assuntos internacionais nas inúmeras
federações e confederações de comércio e indústria, nas secretarias
municipais e estaduais, nas empresas estatais e nos demais órgãos da
administração federal direta e indireta, nas universidades, nos sindicatos e nas
associações de classes, nos partidos políticos e em outras organizações não
governamentais” (MIYAMOTO, 2003, p. 3 apud VIGEVANI; THOMAZ;
LEITE, 2016, p. 09).
Nota-se, assim, que o crescimento da graduação na área visou atender, principalmente,
à ampliação das demandas do mercado de trabalho. Como reflexo do aumento exponencial dos
cursos de graduação, o crescimento da pós-graduação em Relações Internacionais no Brasil
também é influenciado pelo viés mercadológico e instrumental que alcança a dimensão do
ensino:
A demanda por cursos de graduação gerou o fenômeno, também lógico e
previsível, de translação da demanda, visando à ampliação dos cursos de
mestrado e doutorado. Tornou-se necessário formar profissionais e docentes
capazes de suprir o crescente mercado (VIGEVANI; THOMAZ; LEITE,
2016, p. 19).
É nítida, portanto, a vinculação entre a expansão das instituições de educação superior
e as necessidades de transformação do capitalismo. “É nesse sentido que Lander (2005)
menciona a fundação de uma ciência neoliberal [...] gerando o ethos de um capitalismo
acadêmico, subsidiado por um contexto de economia do conhecimento” (MASO; YATIM,
2014, p. 35). A produção de conhecimento voltado à inserção econômica do país no mundo é
natural e necessária. Este não é o ponto central de nossa crítica. O que pretendemos apontar é
como o predomínio desta perspectiva pode ter influenciado na estruturação deste campo de
estudos no Brasil. Assim, nos associamos ao argumento de Spivak (2010, p. 20), de que “a
produção intelectual ocidental é, de muitas maneiras, cúmplice dos interesses econômicos
internacionais do Ocidente”.
Nestes parâmetros, a elaboração de pensamento crítico ou o “adensamento intelectual”
(LESSA, 2005) sobre as questões internacionais relevantes para o país (para além das dinâmicas
econômicas), são efeitos aparentemente secundários no processo de crescimento da área de RI
no Brasil. Torna-se compreensível, portanto, a ausência dos assuntos amazônicos e indígenas
47
entre os temas centrais desta área de conhecimento no Brasil. Não estamos aqui a afirmar que
a importância da região amazônica seja desconhecida no país, tal qual é negligenciada a
importância dos assuntos indígenas. Também não afirmamos que não haja pesquisadores da
área dedicados a tema amazônicos, alguns há bastante tempo53. O que estamos caracterizando
é simplesmente a ausência destes temas entre as prioridades estruturais da área, o que não se
restringe ao nível da graduação.
Considerando-se os oito programas de pós-graduação com titulação específica em
Relações Internacionais54 no país, não foram encontradas linhas de pesquisa sobre a Amazônia
e/ou sobre assuntos indígenas55. O Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI)
elaborou um Banco de Teses e Dissertações56 (BTD-IPRI) defendidas no Brasil nesta área e em
áreas correlatas, que se dediquem à análise do âmbito internacional, com vistas a fomentar a
pesquisa bibliográfica. Entre os 4093 trabalhos levantados pelo BTD-IPRI (750 teses, 2.387
dissertações, 237 trabalhos de mestrado profissional em Diplomacia do Instituto Rio Branco, e
719 trabalhos do Curso de Altos Estudos, da mesma instituição) encontramos apenas 81
trabalhos cujo tema central é a Amazônia ou assuntos indígenas57.
53 Entre os quais podemos destacar o pioneirismo de Euclides da Cunha e Rubens Ricupero, por exemplo. 54 Pela ordem cronológica de criação, são eles: Universidade de Brasília (UnB) em 1984; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em 1987; Santiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) em 2003; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) em 2007; Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em 2008; Universidade de São Paulo (USP) em 2009; Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2009; e, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2011. Vale lembrar que existe quantidade significativa de Programas dedicados a temas internacionais não menos relevantes, mas que não foram incluídos nesta breve análise. É o caso, por exemplo, dos programas de pós-graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP, em Estudos Estratégicos Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outros. 55 Cabe a ressalva de que, no Brasil, estes temas apresentam histórico e tendência de serem estudados por programas de pós-graduação temáticos, como é o caso do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará, e do Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA), antigo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC), da Universidade de Brasília (UnB). 56 Este levantamento foi construído a partir da unificação das listas de órgãos públicos (CAPES, IBICT) e instituições de ensino superior (públicas e privadas) com linhas de pesquisa em Relações Internacionais e áreas afins (História, Ciência Política, Economia, Sociologia, Administração e Antropologia, entre outros). Disponível em: http://www.funag.gov.br/ipri/btd/. Acesso em 12/09/2017. 57 Nossa análise do BTD-IPRI foi feita através da pesquisa de títulos que contivessem as palavras: “Amazônia”, “amazônica”, “indígena” e “índio”. As instituições que mais apresentaram trabalhos sobre estas temáticas foram: o Doutorado Interinstitucional em Relações Internacionais (UnB, UFRR e FLACSO-Brasil), com 9 teses; o Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC), com 4 teses e 4 dissertações; o Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), com 3 teses e 8 dissertações; o Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp e PUC-SP), com 4 dissertações; e, o Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com 3 dissertações; e o Curso de Altos Estudos (CAE), com 9 trabalhos, e o Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco (IRBr), com 3 trabalhos.
48
Dentre estes 81 trabalhos, os temas abordados podem ser agrupados da seguinte
maneira: a) assuntos indígenas: direitos, organizações indígenas, etnicidade e atuação política:
8 teses, 12 dissertações e 2 trabalhos do CAE; b) a trajetória histórica e a atuação Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): 6 dissertações e 3 trabalhos do CAE; c)
Segurança, defesa, soberania e política externa na Amazônia: 5 teses, 11 dissertações, 1
trabalho do CAE, e 3 trabalhos de Mestrado Profissional em Diplomacia (IRBr); d) Cooperação
internacional e meio ambiente: 2 teses, 5 dissertações e 3 trabalhos do CAE; e) Recursos
hídricos e hidropolítica: 2 teses e 1 dissertação; f) Integração econômica e regional da
Amazônia: 3 teses e 3 dissertações; e, g) outros temas: sendo 1 tese e 2 trabalhos do CAE sobre
ocupação populacional e migrações na Amazônia; 2 teses sobre paradiplomacia; 2 dissertações
sobre economia da droga e narcotráfico.
Neste sentido, verifica-se o que apontam autores estrangeiros como Andrew Hurrell e
Andrés Malamud, ao afirmar que “a matriz dos estudos brasileiros em relações internacionais
visa essencialmente à política externa do Brasil, menos às relações internacionais em sua
totalidade e complexidade” (VIGEVANI; THOMAZ; LEITE, 2016, p. 20)
Assim, tem sido objeto de análises sistemáticas as relações com os países
centrais (em especial Estados Unidos e Europa), a inserção hemisférica, a
transformação das relações com os vizinhos e com a Argentina (que oscilou
da rivalidade para a cooperação), a importância do multilateralismo, a atuação
dos atores sociais, a importância da alternância de regimes políticos e outros
tantos aspectos da Política Exterior (LESSA, 2005, p. 13).
Neste sentido, reforçamos e complementamos a questão lançada por Vigevani, Thomaz
e Leite (2016, p. 28): qual é a maneira pela qual deveríamos avaliar o nível de maturidade da
área de Relações Internacionais no Brasil? Seria apenas através dos números e do impacto da
produção científica voltada a subsidiar a inserção internacional do país ou deve-se dar mais
importância aos temas estudados e divulgados pela área?
Conforme mencionado na introdução deste trabalho, há numerosas e diversificadas
publicações sobre assuntos indígenas na literatura internacional. A razão, portanto, pela qual o
estudo desta temática causa espanto e até mesmo perplexidade na comunidade acadêmica
brasileira de RI é o fato de que a região amazônica e os assuntos indígenas ocupam posição
extremamente marginal nesta área de conhecimento, no Brasil.
Spivak (2010, p. 64), afirma que “no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno
não tem história e não pode falar”. Ao mesmo tempo em que se ensina detalhadamente a história
da construção e da expansão global das nações europeias e de seu modelo civilizacional, a
história dos povos indígenas das Américas é, ainda, profundamente ignorada. É neste sentido
49
que, novamente segundo Spivak (2010, p. 64), o trabalho do intelectual pós-colonial é
“historiográfico, crítico-disciplinar, e, necessariamente, intervencionista [...] é, de fato, uma
tarefa de medir silêncios”.
Neste sentido, considera-se urgente a institucionalização e a articulação de agendas de
pesquisa que promovam uma revisão crítica da participação dos povos indígenas nos processos
macro-históricos de formação do Brasil e da ordem mundial contemporânea. Para tanto, é
indispensável o reconhecimento da Antropologia como um campo de estudos imprescindível
para ampliar a capacidade de compreensão e de explicação da área de Relações Internacionais
acerca dos variados e complexos fenômenos contemporâneos. Com o intuito de contribuir com
este esforço, buscamos apontar, ao longo deste trabalho, algumas hipóteses e possibilidades de
pesquisa.
Dentre as relações identificadas entre a política internacional/global (em suas dimensões
históricas e contemporâneas) e os povos indígenas, destacamos as seguintes:
1. Com as transformações do conceito de povos indígenas, e a adoção deste termo como
componente identitário por povos nativos ao redor do mundo – como estratégia de
fortalecimento de suas demandas comuns – podemos afirmar que os povos indígenas
estiveram e estão presentes em todas as regiões do planeta. Ainda que esta abordagem
deva ser mais aprofundada, este primeiro elemento, por si só, já caracteriza os assuntos
indígenas como uma temática global;
2. Neste sentido, o estudo dos encontros e confrontos entre diversos povos e civilizações
ao redor do planeta são indispensáveis para a compreensão da realidade global
contemporânea;
3. Aprofundando-se no aspecto anterior, verifica-se que as relações entre as nações
colonizadoras (sobretudo europeias), os povos nativos das regiões colonizadas, e as
riquezas extraídas dos territórios colonizados – sempre com algum tipo de exploração
do trabalho e/ou de escravidão de indígenas (nativos e/ou africanos) – transformaram a
economia internacional, e, deste modo, constituem a base da ordem econômica global
contemporânea, e de suas profundas desigualdades estruturais;
4. Fenômenos globais contemporâneos, no sentido descrito pelas noções de Antropoceno
e Mudanças Climáticas, por exemplo, têm efeitos mais intensos sobre as regiões
naturais, como o Oceano e a Amazônia, e, consequentemente, afetam de modo
significativo, em um primeiro momento, os povos indígenas do que a civilização
urbano-industrial;
50
5. No aspecto supracitado, identificado por muitos autores das Ciências Humanas como
um desafio contemporâneo da humanidade, ressalta-se a necessidade de um aprendizado
inter-étnico/inter-civilizacional, no qual os povos indígenas, enquanto memória viva da
ancestralidade humana, detêm conhecimentos e cosmologias harmônicas e integrativas
com a natureza. Deste modo, podendo contribuir, desde aspectos simbólicos a atitudes
cotidianas, para a transformação dos padrões civilizatórios, de produção e de consumo
das sociedades;
6. Em termos cosmológicos e civilizacionais destaca-se ainda a compreensão, que já vem
sendo debatida na área de Relações Internacionais, sobre a existência de “múltiplos
mundos”. Ou seja, o entendimento de que as diferenças profundas e multifacetadas entre
realidades locais ao redor do planeta não configuram um mundo único no qual todos
convivem, mas sim múltiplos mundos que convivem em um único planeta. Neste
sentido, a expansão das fronteiras territoriais de um mesmo mundo, o ocidental-
capitalista, causou o desaparecimento de outros mundos e a continuidade de seu
expansionismo ainda ameaça a própria existência de outros mundos;
7. Por fim, entre os temas já inseridos em alguma medida na agenda política dos âmbitos
nacional, internacional e global, que possuem alguma relação com os povos indígenas
estão: os direitos humanos; os direitos indígenas; a temática ambiental; a democracia e
suas implicações termos de etnicidade, cidadania e participação política; resta ainda a
discutir a inserção em tal agenda sobre a consideração de determinadas situações
envolvendo povos indígenas como questão humanitária, não no sentido
intervencionistas, nem como a identificação destes povos como “patrimônio da
humanidade”, mas sim como reconhecimento do direito às condições de existência,
dignidade, reprodução física e cultural.
Vejamos então, a seguir, como o estudo de assuntos indígenas foi analisado e realizado
nesta pesquisa.
2.1 Perspectivas Epistemológicas
Meu interesse aqui é sugerir que o consenso liberal geral de que o ‘verdadeiro’
conhecimento é fundamentalmente apolítico (e, inversamente, que o
conhecimento manifestadamente político não é conhecimento ‘verdadeiro’)
confunde as circunstâncias políticas altamente organizadas, embora de forma
obscura, que prevalecem no momento em que o conhecimento é produzido
(SAID, 2007, p. 21)
51
O que é ciência? Como ela foi e é produzida? Onde, por quem e com quais propósitos?
No âmbito das ciências sociais, não são novas as questões sobre as características, os métodos,
a validade, os interesses e os limites do conhecimento científico, objetos da discussão
epistemológica. Nesta e nas duas próximas seções, buscou-se apresentar por que o debate sobre
epistemologia foi considerado indispensável nesta pesquisa e, assim, indicaremos que tipo de
conhecimento foi elaborado nesta tese, sob quais influências e com quais propósitos.
Primeiramente é preciso esclarecer, através da palavras de Santos e Meneses (2009, p.
11), que “a ciência moderna não foi, nos dois últimos séculos, nem um mal incondicional nem
um bem incondicional. Ela própria é diversa internamente, o que lhe permite intervenções
contraditórias na sociedade”. Todavia, é possível identificar no cerne na ciência moderna,
ocidental e eurocêntrica, globalmente difundida, a existência de uma “epistemologia
dominante” que “conferiu à ciência a exclusividade do conhecimento válido” e estruturou-se
por meio de um “vasto aparato institucional – universidades, centros de investigação, sistema
de peritos, pareceres técnicos” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 11).
Neste sentido, cientes de que “não há epistemologias neutras e as que reclama sê-lo são
as menos neutras”, Santos e Meneses (2009, p. 10), levantam algumas questões que estão entre
os objetivos da reflexão aqui proposta:
Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que
eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção
e reprodução do conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal
descontextualização?
Veremos, ao longo deste capítulo, que as perspectivas epistemológicas e teóricas do
pós-colonialismo, sem prejuízo da sua heterogeneidade de ideias, compartilham determinados
argumentos e conceitos que foram considerados imprescindíveis para a construção desta tese.
Entre eles, destaca-se que:
o colonialismo não é somente um fenômeno econômico e político, mas que
possui uma dimensão epistêmica vinculada ao nascimento das ciências
humanas, tanto no centro quanto na periferia. Quase todos os autores
mencionados [Aimé Césaire, Albert Memmi, Franz Fannon, Edward Said,
Dipesh Chakrabarty e Gayatri Spivak] argumentaram que as humanidades e
as ciências sociais modernas criaram um imaginário sobre o mundo social do
“subalterno” (o oriental, o negro, o índio, o camponês) que não somente serviu
para legitimar o poder imperial no nível econômico e político, mas também
contribuiu para criar os paradigmas epistemológicos dessas ciências e gerar as
identidades (pessoais e coletivas) dos colonizadores e colonizados (CASTRO-
GÓMEZ, 2005a, p. 20).
Neste sentido, não seria coerente, talvez nem mesmo possível, analisar a situação
contemporânea dos povos indígenas em isolamento na Amazônia sem questionar os efeitos do
52
colonialismo e do capitalismo – não apenas na sua dimensão empírica, mas também na
produção de conhecimento e de debate, ou na ausência destes, sobre o assunto. Nota-se que a
própria escassez de debate acadêmico, e a inexistência de debate público sobre assuntos como
o dos povos indígenas em isolamento, estão relacionadas com as estruturas vigentes de
produção e de reprodução de conhecimento.
(...) esta dupla intervenção [intervenção epistemológica e intervenção política,
econômica e militar do colonialismo e do capitalismo] foi de tal maneira
profunda que descredibilizou e, sempre que necessário, suprimiu as
práticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela
servia [...] Com isso, desperdiçou-se muita experiência social e reduziu-se a
diversidade epistemológica, cultural e política do mundo (SANTOS;
MENESES, 2009, p. 10).
Neste sentido, um argumento central do pós-colonialismo, do qual compartilhamos
nesta tese, é o de que a episteme eurocêntrica, não apenas forneceu subsídios e suposta
legitimidade ao colonialismo e ao capitalismo, como também ocultou sistematicamente as
consequências deste processo para os povos indígenas, e, ainda, combateu as perspectivas e os
conhecimentos contrários à sua perpetuação. Processos estes que, silenciosamente, seguem em
curso.
De acordo com Rampinelli (2013, p. 139, grifo nosso):
A conquista da América Latina no século XVI consistiu, não apenas na
tomada do território e na expropriação de suas riquezas, mas no extermínio de
determinados grupos, na destruição de culturas e na forçosa obrigação do
esquecimento de seu passado, imposto pelos europeus aos povos originários.
Por isso, três grandes crimes podem ser tipificados, sendo eles o de genocídio,
o de etnocídio e o de memoricídio [...] O memoricídio, por sua vez, consiste
na eliminação de todo o patrimônio, seja ele tangível ou intangível, que
simboliza resistência a partir do passado. Não apenas os deuses dos povos
originários foram mortos, como as pirâmides superpostas por igrejas católicas,
os templos pagãos trocados por mosteiros cristãos, os antigos palácios
substituídos por mansões coloniais e as chinampas que abasteciam o mercado
interno mudadas por grandes plantações voltadas para o externo [...]
Controlar o passado é a melhor forma de planejar o futuro.
No mesmo sentido, revisar o passado pode contribuir para a reinterpretação do presente
e para a elaboração de novas possibilidades para o futuro, visto que as interpretações, os
discursos, são processos de formação e de transformação. De acordo com Picq (2017, p. 344),
“a rememoração de estórias como formas de conhecimento permite que histórias alternativas
poderosas emerjam”.
Mais crucialmente, manter invisíveis as histórias indígenas permite que
omissões do passado se tornem as fundações de narrativas “científicas”
(TROUILLOT, 1995). Então a invenção do indígena como selvagem persiste
hoje em entendimentos implícitos que situam a indigenidade fora da “política
53
de verdade”. Pensar a partir de localizações tão marginais permite que tais
silêncios sejam rompidos (PICQ, 2017, p. 344).
Logo, a revisão crítica do legado científico eurocêntrico é indispensável para o estudo
das realidades contemporâneas dos povos indígenas, e, sobretudo, para a desconstrução da
historiografia hegemônica, que apresenta “sua própria narrativa histórica como conhecimento
objetivo, científico e universal e sua visão da sociedade moderna como a forma mais avançada
– e, no entanto, a mais normal – da experiência humana” (LANDER, 2005, p. 8). Sobre este
assunto, Spivak (2010, p. 48) assinala que “não se trata de uma descrição de “como as coisas
realmente eram” ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor
visão da história”. O que se identifica como indispensável é “oferecer um relato de como uma
explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas” (SPIVAK,
2010, p. 48).
Atento à exaustão do paradigma moderno, em sua sociologia das ausências,
Santos (2004) postula uma abordagem epistemológica capaz de estar sensível
a muitas experiências que tiveram seu atestado de óbito precoce fornecido pela
razão moderna arrogante e indolente. Trata-se, agora, de rever tudo que, nos
últimos 200 anos, foi descartado como objeto de estudo: vazios e lacunas que,
em verdade, expressavam obras humanas (e humanos) relegadas à
desumanização. Mais que retomá-las, pois, como objeto de investigação, há
se devolver a seus artífices a condição de sujeitos do conhecimento. O desafio
epistemológico – ético e político – completa-se por nossa capacidade de
interagir com mundos que tiveram negada secularmente sua existência real.
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 71).
Entretanto, nos colocamos de acordo com a ressalva feita por Quijano (1992, p. 447),
visto que identificar a instrumentalização da razão pelos padrões de poder e de saber do
colonialismo não implica negar o conhecimento científico como um todo:
La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es
indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino consista en
la negación simple de todas sus categorías; en la disolución de la realidad en
el discurso; en la pura negación de la idea y de la perspectiva de totalidad en
el conocimiento. Lejos de esto, es necesario desprenderse de las vinculaciones
de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en
definitivo con todo poder no constituido en la decisión libre de gentes libres.
Es la instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar,
lo que produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las
promesas liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es
clara: la destrucción de la colonialidad del poder mundial.
Para tanto, a alternativa identificada por Santos e Meneses (2009, p. 12) foi a
disseminação da diversidade epistemológica através das “epistemologias do sul”, concebidas
como “um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos
historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. Ainda de
54
acordo com estes autores “esta concepção do Sul sobrepõe-se em parte com o sul geográfico, o
conjunto de países e regiões do mundo que foram submetidos ao colonialismo europeu”.
as alternativas à epistemologia dominante partem, em geral, do princípio que
o mundo é epistemologicamente diverso e que essa diversidade, longe de ser
algo negativo, representa um enorme enriquecimento das capacidades
humanas para conferir inteligibilidade e intencionalidade às experiência
sociais. A pluralidade epistemológica do mundo e, com ela, o reconhecimento
de conhecimentos rivais dotados de critérios diferentes de validade tornam
visíveis e credíveis espectros muito mais amplos de acções e de agentes
sociais. Tal pluralidade não implica o relativismo epistemológico ou cultural
mas certamente obriga a análises e avaliações mais complexas dos diferentes
tipos de conhecimento (SANTOS; MENESES, 2009, p. 12).
Em busca desta diversidade epistêmica, de acordo com Ballestrin (2013, p. 109), vários
autores e autoras têm questionado o “universalismo etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o
nacionalismo metodológico, o positivismo epistemológico e o neoliberalismo cientifico
contidos no mainstream das ciências sociais”. Para esta mesma autora (2013, p. 90), “a
identificação e a superação da colonialidade do poder, do saber e do ser58, apresenta-se como
um problema desafiador a ser considerado pela ciência e teoria política estudada no Brasil”.
Em vista deste desafio, na seção seguinte buscaremos identificar os meios
epistemológicos pelos quais o colonialismo operou em relação aos povos indígenas, e como
podemos compreender e promover a descolonização do conhecimento através do estudo dos
povos indígenas em isolamento na Amazônia. Almeja-se, assim, realizar uma contribuição ao
movimento de resgate e ressignificação de historiografias subalternas, visando à difusão e
amplificação de vozes silenciadas pela colonialidade do poder, do saber e do ser.
Na seção posterior, fazemos inicialmente alguns apontamentos sobre o enunciador desta
pesquisa, de modo a deixar claro que não é objetivo deste autor colocar-se, de nenhuma
maneira, como representante ou porta-voz dos povos indígenas e/ou de suas demandas, muito
menos no caso dos povos indígenas isolados. Consideramos válido esclarecer que o autor desta
pesquisa não é indígena, nem antropólogo59, e sim um membro da sociedade colonizadora,
nascido, criado e formado intelectualmente no interior desta. Mas que, a partir de contatos
diretos e indiretos com as realidades indígenas, se propõe a contribuir para a compreensão e a
superação dos padrões coloniais que ainda governam as relações do Estado e da sociedade
nacional para com os povos indígenas.
58 Os conceitos de colonialidade do poder, do saber e do ser serão abordados na seções 2.1.1 e 2.2.1. 59 Esta consideração não pretende fortalecer a territorialização disciplinar dos assuntos indígenas, como sendo atributo exclusivo ou primordial da Antropologia, mas identificar que se trata de uma perspectiva diferente desta, e que, certamente, carece de parte dos seus conhecimentos específicos.
55
Neste sentido, nosso objetivo em relação aos povos indígenas em isolamento é o de
realizar um esforço de tradução, indireta e subjetiva, da linguagem do isolamento voluntário?
Ou seja, o que pode ser entendido através das manifestações evidentes destes povos de que
desejam se manter sem contato com a sociedade envolvente? E, a partir dos termos de Spivak
(2010), nos questionamos se os índios isolados, entendidos como sujeitos subalternos, podem
falar. Como o sujeito subalterno, de acordo com esta autora, é aquele que não pode ser ouvido,
nossa questão, ao final, é a seguinte: a linguagem do isolamento voluntário está sendo ouvida?
Tal questão será melhor debatida na seção 2.1.2, e a busca por suas respostas perpassa todo este
trabalho de pesquisa.
Feita esta apresentação, antes de passarmos ao tema específico da seção seguinte, resta-
nos fazer ainda alguns esclarecimentos gerais, também de natureza epistemológica,
considerados importantes. O primeiro elemento deles é que, conforme apontado na introdução
desta pesquisa, o assunto dos povos indígenas em isolamento na Amazônia envolve conflitos
de interesse e confrontos entre distintas concepções de mundo. Consequentemente, está em
questão também o interesse e a concepção de mundo do autor desta pesquisa. Neste sentido, a
hipótese sobre a existência de neutralidade axiológica60 – “um dos pilares das reflexões
epistemológicas nas ciências sociais contemporâneas” (WEISS, 2014, p. 13) – não se aplica ao
conhecimento produzido nesta tese.
Os fenômenos sociais não constituem realidades objetivas que possam ser descritas sem
a influência do tempo, do local, da perspectiva, das preferências políticas, teóricas e conceituais
do pesquisador. Assim, conforme o trecho de Said (2007, p. 21), citado no início desta seção,
entendemos que a produção de conhecimento é um ato político e não a representação de uma
realidade supostamente objetiva, sobretudo nas ciências humanas. O objetivo de intervir
politicamente na realidade, não retira o caráter científico do trabalho acadêmico. Do mesmo
modo, o respeito às regras de produção de conhecimento em parâmetros científicos – como a
indicação das fontes, dos métodos e a utilização de linguagem e argumentos coerentes –, que
procuramos seguir rigorosamente, não exclui o caráter de ato político desta tese.
su proyecto [de Spivak] está enmarcado de manera general en el análisis del
problema de la relación de la persona individual o sujeto, y la dominación,
especialmente en lo que tiene que ver con la conciencia, la subjetividad, la
intencionalidad y la identidad que emergen de esta relación […] Es por esta
60 Trata-se, então, de uma filosofia na qual o sujeito epistêmico não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe,
espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em nenhuma relação de poder, e produz a verdade desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si. [...] Será assumida pelas ciências humanas a partir do século XIX como a epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade empírica do sujeito que produz conhecimento cientifico (GROSFOGUEL, 2007, p. 64-65).
56
razón que la pregunta de Spivak en “¿Puede hablar el subalterno?” sigue
teniendo tanta vigencia hoy día como hace dieciséis años cuando fue
publicado por primera vez, en inglés ya que nos fuerza a repensar nuestras
presuposiciones analíticas y nuestra posición política como intelectuales y
académicos (GIRALDO, 2003, p. 299-300).
Assim, entendemos que a produção intelectual é o principal meio através do qual o
acadêmico realiza sua atuação política. Com esta atuação, pode ter ou não o objetivo de
participar direta ou indiretamente da formulação e/ou execução de políticas públicas ou de
outras atividades direcionadas ao assunto com o qual trabalha. No caso específico deste autor
existe o interesse de atuar no assunto, seja de modo indireto (através de possíveis influências
da produção acadêmica) ou direto (participando de negociações nacionais e internacionais e/ou
de trabalhos de campo visando o pleno respeito destes povos indígenas de manterem-se em
isolamento).
A partir do reconhecimento das relações entre conhecimento e poder, almeja-se,
portanto, com este trabalho, a construção de:
(...) um saber que seja consciente de sua função política, a qual seja opor-se
radicalmente à assimétrica distribuição global de poder e todas as injustiças
que acarreta. Nesse sentido, o pós-colonial deve trabalhar ativamente na
implosão dos discursos coloniais/ocidentais hegemônicos que, sobretudo,
através do discurso da modernidade, naturalizam as desigualdades entre os
países, classes, raças e povos (ELÍBIO JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 09).
Por estes motivos, considerou-se importante deixar claro o posicionamento deste autor
sobre a problemática identificada acerca dos povos indígenas em isolamento na Amazônia
brasileira. Meu posicionamento é pela defesa da proteção integral dos direitos já reconhecidos,
nacional e internacionalmente, aos povos indígenas em isolamento, o que significa o direito de
assim permanecerem, resguardada a intangibilidade dos seus territórios, em detrimento de
quaisquer interesses econômicos, políticos e/ou sociais.
No mesmo sentido, outro tema epistemológico indispensável nesta tese, é o debate sobre
a normatividade. Assim como ocorre em outros temas complexos, e cujo diagnóstico revela-se
potencial ou efetivamente desastroso, o assunto dos povos indígenas em isolamento, e a força
política e econômica das ameaças existentes à sobrevivência destes povos, parecem convocar
o pesquisador constantemente a propor ações com vistas a modificar tal estado de coisas. Como
veremos ao longo desta pesquisa, tal dimensão normativa está presente em praticamente todas
as publicações específicas sobre o assunto dos povos indígenas em isolamento, as quais
manifestam análises, sugestões e/ou propostas sobre o que deve ser feito para garantir a
sobrevivência e o direito de autodeterminação destes povos.
57
Portanto, consideramos que dedicar toda a tese ao assunto dos povos indígenas em
isolamento e não se posicionar neste debate normativo, seria ignorar questões essenciais,
urgentes, e indispensáveis ao pleno estudo do tema, visto que esta perspectiva está em constante
debate, tanto no âmbito acadêmico quanto entre as instituições envolvidas com a proteção
destes povos. Deste modo, nas conclusões desta pesquisa apresentaremos algumas propostas,
mas que não se limitam apenas à política pública do Estado brasileiro específica para PII
(relação vertical). Buscamos também direcionar propostas para um aspecto considerado mais
abrangente e potencialmente transformador, a saber, os padrões de relacionamento entre
Estados e povos indígenas (relação horizontal).
É necessário, por fim, fazer uma defesa da normatividade como sendo uma dimensão
analítica que não retira nem diminui o caráter científico de uma pesquisa. Ora, se a economia
não é questionada enquanto ciência ao elaborar conhecimentos visando subsidiar as
reestruturações econômicas, e a ampliação de seus domínios, por que motivos outras áreas
perderiam sua validade científica ao indicar necessidades e caminhos de transformação da
realidade? Na nossa perspectiva, ao contrário do que foi reiterado ao longo dos debates teóricos
de Relações Internacionais, a normatividade não é um critério que determina a validade
científica de uma pesquisa. Ao contrário, a perspectiva normativa é muito mais presente e
frequente nesta área de conhecimento do que se assume, sendo utilizada deliberadamente como
acusação para promover o descrédito de argumentos aos quais se deseja contrapor.
Por fim, é oportuno reconhecer que esta pesquisa apresentará contradições, equívocos e
insuficiências. Parte deles decorre do fato de que, apesar de termos encontrados abundantes
informações, documentos e literatura antropológica sobre o tema dos povos indígenas em
isolamento, a abordagem e a abrangência propostas por esta pesquisa nos parecem inéditas, ou
não foram encontrados estudos semelhantes, o que, por si só, resulta em uma série de
dificuldades. Além disso, encontramos dificuldades em reunir e comunicar de modo coerente e
articulado os múltiplos fatores envolvidos no assunto dos povos indígenas em isolamento –
desde o nível (micro)local, ao regional, nacional, internacional e global.
2.1.1 A Colonialidade do saber e os povos indígenas;
A busca de alternativas à conformação profundamente excludente e desigual
do mundo moderno exige um esforço de desconstrução do caráter universal e
natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer o questionamento das
pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de
naturalização e legitimação dessa ordem social: o conjunto de saberes que
conhecemos globalmente como ciências sociais. Esse trabalho de
58
desconstrução é um esforço extraordinariamente vigoroso e multifacetado que
vem sendo realizado nos últimos anos em todas as partes do mundo (LANDER
2005, p. 8).
Nesta seção buscaremos identificar como os fenômenos da colonialidade do poder e do
saber não apenas favoreceram e legitimaram os processos de colonização, como também
naturalizaram e ocultaram suas consequências para os povos indígenas. O predomínio quase
absoluto, pelo menos até o século XXI, da temporalidade eurocêntrica na descrição da trajetória
humana, sobretudo após 1492, se fez, entre outros mecanismos, em detrimento das histórias dos
e sobre os povos indígenas.
(…) se puede afirmar que con la noción de colonialidad del saber se pretende
resaltar la dimensión epistémica de la colonialidad del poder; se refiere al
efecto de subalternización, folclorización o invisibilización de una
multiplicidad de conocimientos [e de histórias] que no responden a las
modalidades de producción de ‘conocimiento occidental’ asociadas a la
ciencia convencional y al discurso experto (RESTREPO; ROJAS, 2010, p.
136).
Por sua vez, a colonialidade do poder e do saber se refletem sobre suas vítimas através
da colonialidade do ser.
(…) podemos afirmar que la colonialidad del ser refiere a la dimensión
ontológica de la colonialidad del poder, esto es, la experiencia vivida del
sistema mundo moderno/colonial en el que se inferioriza deshumanizando
total o parcialmente a determinadas poblaciones, apareciendo otras como la
expresión misma de la humanidad (RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 156).
De acordo com Castro-Gomez (2005, p. 84) “o aparelho conceitual com o qual nascem
as ciências sociais nos séculos XVII e XVIII se sustenta por um imaginário colonial”. É possível
identificar o consenso entre distintos autores da perspectiva pós-colonial de que os modelos
analíticos predominantes nas ciências sociais – de matriz europeia ocidental – são
fundamentados em oposições dualistas e excludentes, por meio das quais as ciências sociais
serviram como instrumento de hierarquização social e global. De acordo com Hall (2009, p.
77), trata-se de categorias discursivas em torno das quais se estruturou “um sistema de poder e
exclusão”. Alguns exemplos de conceitos binários que cumpriram papéis fundamentais neste
processo são: sociedade e natureza, civilização e barbárie, colonizador e colonizado, moderno
e arcaico, desenvolvimento e pobreza, entre tantos outros.
Miglievich-Ribeiro (2014, p. 69-70) expressa estes conceitos como “binômios
modernos” que contêm sempre “um polo dominante”, e se estabelecem como “suficientemente
explicativos de uma realidade que, contudo, não se esgotava no simplismo de tais dicotomias”.
Segundo Restrepo e Rojas (2010, p. 15), este processo produziu a “naturalización de jerarquias
59
territoriales, raciales, culturales y epistémicas, possibilitando la re-producción de relaciones
de dominación”, ou, nas palavras de Dussel (2000, p. 472, grifo nosso), a utilização da
“alteridade como práxis racional da violência”. Segundo Lander (2005, p. 13)
É este o contexto histórico-cultural do imaginário que impregna o ambiente
intelectual no qual se dá a constituição das disciplinas das ciências sociais.
Esta cosmovisão tem como eixo articulador central a ideia de modernidade,
noção que captura complexamente quatro dimensões básicas: 1) a visão
universal da história associada à ideia de progresso (a partir da qual se constrói
a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências
históricas); 2) a “naturalização” tanto das relações sociais como da “natureza
humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalização ou ontologização
das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e 4) a necessária
superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz (“ciência”) em
relação a todos os outros conhecimentos.
Este modelo de pensamento orientou e orienta a descrição da realidade e o ordenamento
do mundo segundo os padrões coloniais de poder e de saber, tendo, portanto, reflexos sobre os
povos indígenas. De acordo com Quijano (2005, p. 107) “um dos eixos fundamentais desse
padrão de poder [colonial/moderno] é a classificação social da população mundial de acordo
com a ideia de raça”, utilizada como instrumento de hierarquização e controle da vida social
durante os processos de colonização e de expansão do sistema europeu de Estados. Para o autor,
a ideia de raça é “uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação
colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial”.
A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da
América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas
entre conquistadores e conquistados, [...] A formação de relações sociais
fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente
novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com
espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas
procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também,
em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que
as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação,
tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de
dominação que se impunha” (QUIJANO, 2005, p. 107).
Nota-se, ainda de acordo com o autor, que a ideia de raça serviu para promover a
naturalização da superioridade do colonizador e da inferioridade dos colonizados, e, assim
“outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista” (QUIJANO, 2005,
p. 107).
A noção de diferença colonial, também cumpre um papel importante na explicação
destas relações de poder:
60
A diferença colonial é fácil de entender e fundamental para entender o básico
do projeto modernidade/colonialidade. Na “/” [barra] que une e separa
modernidade e colonialidade, cria-se e estabelece-se a diferença colonial. Não
a diferença cultural, mas a transformação da diferença cultural em valores e
hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, pelo outro.
Noções como “Novo Mundo”, “Terceiro Mundo”, “Países Emergentes” não
são distinções ontológicas, ou seja, provêm de regiões do mundo e de pessoas.
São classificações epistêmicas, e quem classifica controla o conhecimento. A
diferença colonial é uma estratégia fundamental, antes e agora, para rebaixar
populações e regiões do mundo. [...] A classificação e a hierarquização é um
assunto epistêmico na construção da colonialidade do poder (MIGNOLO,
2013, p. 24).
Segundo Castro-Gomez (2005, p. 84), este tipo de referencial serviu para atribuir às
sociedades indígenas americanas o estágio mais baixo na escala de desenvolvimento humano:
“a característica deste primeiro estágio é a selvageria, a barbárie, a ausência completa de arte,
ciência e escrita”.
“No princípio, tudo era América”, ou seja, tudo era superstição, primitivismo,
luta de todos contra todos, “estado de natureza”. O último estágio do progresso
humano, aquele alcançado pelas sociedades europeias, é construído, por sua
vez, como “o outro” absoluto do primeiro e à sua contraluz. Ali reina a
civilidade, o Estado de direito, o cultivo da ciência e das artes. O homem
chegou ali a um estado de “ilustração” em que, no dizer de Kant, pode
autolegislar-se e fazer uso autônomo de sua razão. A Europa demarcou o
caminho civilizatório pelo qual deverão transitar todas as nações do planeta”
(CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 84).
Assim, estabeleceu-se uma trajetória normal, que se constitui não apenas como um
caminho a ser percorrido, mas um caminho no qual todas as sociedades humanas já estariam
inseridas, inevitavelmente. Este caminho “leva a todas as culturas e a todos os povos do
primitivo e tradicional até o moderno”, que é representado pela sociedade industrial liberal,
“único futuro possível de todas as outras culturas e povos”. Neste processo, “aqueles que não
conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a desaparecer”
(LANDER, 2005, p. 13).
É partir deste tipo de concepção que a simples existência, no mundo atual, de povos
indígenas vivendo ainda sem contato com a sociedade moderna, ocidental, capitalista, causa
perplexidade, e, assim, o desaparecimento destes povos é visto como natural e inevitável. A
busca pela superação destas estruturas de pensamento é indispensável, portanto, para a
consecução do objetivo geral desta pesquisa, a saber, a revisão crítica da participação dos povos
indígenas no processo de formação do mundo contemporâneo.
Em segundo lugar, e precisamente pelo caráter universal da experiência
histórica europeia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a
compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas válidas,
objetivas e universais de conhecimento. As categorias, conceitos e
61
perspectivas (economia, Estado, sociedade civil, mercado, classes, etc.) se
convertem, assim, não apenas em categorias universais para a análise de
qualquer realidade, mas também em proposições normativas que definem o
dever ser para todos os povos do planeta. Estes conhecimentos convertem-se,
assim, nos padrões a partir dos quais se podem analisar e detectar as carências,
os atrasos, os freios e impactos perversos que se dão como produto do
primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades (LANDER 2005, p.
13).
A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para além do legado de
desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo,
já assinalados pela teoria da dependência e outras, há um legado
epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a
partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias
(PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 03, grifo do autor).
Cientes de como operaram tais estruturas coloniais de produção interessada de
conhecimento, atualmente está cada dia mais clara a impossibilidade, ou no mínimo a
incongruência, de se tentar explicar o mundo a partir de um ponto de vista exclusivamente
eurocêntrico. De acordo com Lander (2005, p. 08), a procura de perspectivas não eurocêntricas
de conhecimento possui longa tradição na América Latina, com autores e líderes políticos como
José Marti e José Carlos Mariátegui. Entre os autores com contribuições recentes, Lander
destaca Enrique Dussel, Arturo Escobar, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Fernando Coronil,
entre outros. Estes autores convergem em apontar que “a modernidade não é um período
histórico, mas a autonarração dos atores e instituições que, a partir do Renascimento,
conceberam-se a si mesmos como o centro do mundo”. Tendo percebido este processo
eurocentrado, “estamos hoje todos e todas nesse caminho, de reduzir a universalidade do relato
da modernidade à sua justa medida, reconhecer seus méritos e repudiar suas aberrações”
(MIGNOLO, 2013, p. 21, grifo nosso).
No âmbito dos estudos de Relações Internacionais, Picq (2017, p. 344) afirma que:
Pesquisadores começaram a examinar o impacto do racismo sobre assuntos
internacionais e denunciaram os pressupostos racistas que informam os
construtos teóricos atuais da maior parte das teorias de RI (HENDERSON,
2013; HOBSON, 2007). Estas abordagens explicam, por exemplo, como
incapacidades passadas de apreender a Revolução Haitiana (1791-1804),
mesmo por seus contemporâneos (BUCK-MORSS, 2009), conspiram com
silêncios atuais para manter a escravidão invisível – ou insignificante – nas
narrativas convencionais de RI (PICQ, 2017, p. 344).
Assim, o esforço necessário para se promover a descolonização do conhecimento,
especialmente para se tratar assunto indígenas, como no caso desta tese, já se encontra em curso
há algum tempo. Na perspectiva de Mignolo (2013, p. 24-25), “quem habita a fronteira do lado
da colonialidade “sente”, cedo ou tarde, a diferença colonial. A questão é o que fazemos uma
62
vez que estamos conscientes?” De acordo com o autor, existem três caminhos possíveis:
“tentamos nos assimilar, e boa sorte na assimilação; nos adaptamos o melhor que podemos,
pois temos que viver; ou, a terceira, nos adaptamos e começamos a construir projetos que
apontam para outras formas de vida”.
Alguns chamam isto de pensamento [ou posicionamento] crítico fronteiriço.
O “crítico” está sobrando porque o pensamento fronteiriço em ação é
necessariamente crítico e decolonial e distingue-se da teoria crítica da Escola
de Frankfurt. Distingue-se não porque seja melhor ou pior, mas porque aquela
experiência incrustada na história da Europa, na história dos judeus e judias
da Europa, é diferente da experiência incrustada nas histórias coloniais. Daí,
pois, a importância de distinguir entre a diferença colonial na própria história
europeia (os judeus como colonizados internos, ao menos até 1948) e os
indígenas americanos e africanos, sobre quem se construiu a diferença
colonial como sendo aqueles que povoavam e povoam histórias não europeias.
(MIGNOLO, 2013, p. 24-25).
A identificação da colonialidade do saber gera, portanto, implicações essenciais para a
construção de conhecimentos que, no mínimo, não reproduzam as ideias e as estruturas de poder
do colonialismo, e, que tenham como horizonte a descolonização das estruturas globais de saber
e de poder.
2.1.2 Pode o subalterno falar? A linguagem do Isolamento Voluntário;
É efetivamente sob a condição de medir a amplitude e a natureza da distância
entre a finalidade da pesquisa tal como é percebida e interpretada pelo
pesquisado, e a finalidade que o pesquisador tem em mente, que este pode
tentar reduzir as distorções que dela resultam, ou, pelo menos, de compreender
o que pode ser dito e o que não pode, as censuras que o impedem de dizer
certas coisas e as incitações que encorajam a acentuar outras (Bourdieu, 1997,
p. 695 apud FREIRE, 2005, p. 13).
Nesta seção buscamos dialogar com algumas das reflexões propostas por Spivak (2010),
em seu conhecido trabalho: “pode o subalterno falar?”. A partir da condição da mulher,
especialmente da mulher pobre e “de cor”, nos contextos cultural e colonial da Índia, a autora
analisa as características, condições e implicações da noção de subalternidade. Para tanto, com
base principalmente na crítica às ideias de Foucault e Deleuze, Spivak (2010) tece análises
profundas sobre as estruturas político-econômicas e culturais do capitalismo, as noções de
ideologia, relações sociais, luta de classes, entre outras.
Entretanto, nosso debate com as reflexões de Spivak (2010) se concentra na questão
central levantada pela autora, e na sua possível extensão para o tema estudado nesta tese.
63
Inclusive a forma como a autora elabora suas reflexões e sua pergunta central, sugere sua
aplicação em outros contextos. A questão é a seguinte: “no outro lado da divisão internacional
do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e
educação imperialistas, [...] pode o subalterno falar?” (SPIVAK, 2010, p. 54). A partir desta
questão, refletiremos sobre o isolamento voluntário enquanto linguagem através da qual
determinados povos indígenas se expressam e se posicionam enquanto sujeitos do mundo
contemporâneo.
“Contato” entre grupos humanos pressupõe, sempre, alguma troca, seja de
informações, de bens, de mulheres e homens ou de símbolos. Há uma
gradação e diversas modalidades de troca (a guerra é uma delas), de forma que
se pode classificar as sociedades como mais abertas ou mais fechadas a trocas
(gradação), porém estes graus de abertura dependem das estratégias
intencionais das sociedades. (OCTAVIO; AZANHA, 2009, p. 03)
Assim, de acordo com Yamada e Amorim (2016, p. 51), “para os povos indígenas,
inclusive os isolados, [...] as relações e trocas sociais que se estabelecem ao longo de suas
histórias são formadoras de identidades e fundamentam visões de mundo”. Podemos identificar,
portanto, que a recusa em estabelecer relações e a adoção de estratégias de isolamento
configuram uma “expressão de vontades desses povos”, expressão que “a metodologia de
trabalho desenvolvida pela FUNAI tem permitido identificar e qualificar” (YAMADA;
AMORIM, 2016, p. 41). Neste sentido “o que ocorre, não é simplesmente uma decisão de não
relação, mas estratégias conscientes, que se originam a partir de relações com o outro”
(YAMADA; AMORIM, 2016, p. 52).
Nesses casos, os “isolados” nos transmitem mensagens, que podemos
traduzir ou compreender - dentro das limitações colocadas pelos nossos
próprios códigos - como manifestações de autonomia no que diz respeito
a seus direitos territoriais e sobre os recursos naturais de que prescindem.
Conclui-se, assim, e a partir de observação de casos concretos, que as
estratégias de “isolamento” são melhor traduzidas como estratégias de
relação, do que como de não relação. (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 52).
Alguns esclarecimentos relacionados a esta abordagem foram considerados
indispensáveis. O primeiro deles diz respeito ao enunciador desta pesquisa e a seus objetivos
em relação aos sujeitos estudados. Ou seja, é necessário indicar a postura deste pesquisador não
apenas em relação ao assunto trabalhado, mas, principalmente, em relação aos próprios povos
indígenas em isolamento. Neste sentido, Spivak (2010, p. 33) aponta que, ao almejar representar
os sujeitos subalternos, “os intelectuais representam a si mesmos como sendo transparentes”,
ou seja, como sendo um agente individual que teria a capacidade e a legitimidade para conhecer
e para transmitir um agenciamento coletivo, fazendo-o parecer homogêneo quando, na
64
realidade, é algo bastante complexo. Ainda segundo Spivak (2010, p. 44), “a transparência
produzida marca o lugar do “interesse”. Em outras palavras, o intelectual que se coloca como
representante de outrem, ou que permite ser identificado como tal, tem algum interesse em sê-
lo.
Spivak refere-se ao fato de a fala do subalterno e do colonizado ser sempre
intermediada pela voz de outrem, que se coloca em posição de reivindicar algo
em nome de um(a) outro(a). Esse argumento destaca, acima de tudo, a ilusão
e a cumplicidade do intelectual que crê poder falar por esse outro(a)
(ALMEIDA, 2010, p. 14)
Neste sentido, com os termos mais diretos possíveis, este autor não se coloca, em
nenhum momento, como representante, como porta-voz ou como intermediário, de nenhuma
maneira, dos povos indígenas em isolamento, tampouco pretende ser interpretado ou
identificado como tal. No caso dos povos indígenas isolados, a pretensão de representar tal
agenciamento seria ainda mais complexa e criticável, dada a própria condição destes povos.
Nosso objetivo, então, enquanto enunciador e divulgador deste tema é de realizar uma
tradução da linguagem do isolamento voluntário. Assim, como toda tradução, o que fazemos é
uma interpretação, necessariamente subjetiva, marcada por insuficiências, equívocos,
aproximações, contradições, e, portanto, imperfeita.
Assim, quando tenta entender a fala alheia através da concepção de
interceptação, que sugere algo apropriado entre dois pontos, o entendimento
do outro deve invocar, necessariamente, um deslocamento que subverte uma
compreensão verdadeira [...] limitada epistemologicamente e incapaz de
representar adequadamente seu objeto (CARVALHO, 2011, p. 68).
Destaca-se, ainda, que esta tradução é realizada de modo indireto, ou seja, a partir da
literatura e dos documentos existentes sobre os povos em situações de isolamento, e não por
meio de qualquer tipo de pesquisa de campo ou de contato direto com os povos em isolamento.
Deste modo, as trajetórias históricas, as cosmologias, as estratégias de sobrevivência e de
autodeterminação aqui atribuídas aos povos indígenas em isolamento são fruto da perspectiva
deste autor e, principalmente, dos autores nos quais esta pesquisa se baseou. Então, ainda que
em muitos casos estas perspectivas sejam baseadas em consistentes estudos antropológicos,
experiências de campo de sertanistas e em evidências empíricas documentadas, não deixam de
ser fontes secundárias, ou seja, interpretações sobre a realidade dos povos indígenas em
isolamento.
Algumas das características deste esforço, e das dificuldades enfrentadas, estão
expressas no trecho seguinte:
65
(...) importa ainda destacar o delicado trabalho da tradução [...], sobretudo,
quando os universos culturais do pesquisador e do pesquisado parecem muito
distanciados. Há vários obstáculos neste empenho e um deles refere-se à
barreira linguística que, contudo, está longe de ser o mais difícil de ser
enfrentado. Há muitos silêncios intraduzíveis que jamais serão audíveis,
conforme dissera Spivak (2010), se não se abandonar a pretensão de porta-voz
do outro, mas se engajar efetivamente na subversão das estruturas de
subalternização que mantêm populações inteiras emudecidas. O êxito da
tradução requer a ampliação do número de falantes (ouvidos) a atuar
diretamente na produção do conhecimento. Falamos aqui de justiça cognitiva
na qual se sustenta a razão decolonial (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 72,
grifo da autora).
Deve-se observar ainda que, de acordo com Almeida (2010, p. 12), “nenhum ato de
resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que este ato esteja imbricado no discurso
hegemônico”. Esta constatação se torna ainda mais forte ao notarmos o seguinte. O autor deste
pesquisa é nascido, criado, e formado intelectualmente no interior e nos parâmetros da
sociedade colonizadora. Estas marcas identitárias e cognitivas estão inevitavelmente presentes
nas concepções desta pesquisa. Ou seja, é preciso reconhecer que neste esforço de tradução
estará inevitavelmente presente o problema da “apreensão do Outro a partir de referenciais
culturais distintos daquele a ser analisado (RIBEIRO, 2013, p. 292).
Logo, como poderia almejar falar por este “outro”, e, ainda, tentar construir um discurso
de resistência, sendo que, em última instância, a resistência dos povos indígenas isolados é
contra a sociedade da qual faço parte? Neste sentido:
Spivak desvela o lugar incômodo e a cumplicidade do intelectual que julga
poder falar pelo outro, e por meio dele, construir um discurso de resistência.
Agir dessa forma, Spivak argumenta, é reproduzir as estruturas de poder e
opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição,
um espaço onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido
(ALMEIDA, 2010, p. 12).
É necessário, portanto, ao intelectual que se dedica a estudar os sujeitos e temas
subalternos, levantar questionamentos sobre sua condição de enunciador, ou seja, sobre o lugar
de onde fala, sob quais influências e com quais objetivos. Para a autora indiana, “não se pode
falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a subalternidade”, e, este trabalho consiste
em “criar espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar” e, “quando ele o faça,
possa ser ouvido(a)” (ALMEIDA, 2010, p. 14).
Como seria possível, então, criar espaços por meio dos quais os povos indígenas em
isolamento possam “falar” e serem ouvidos? Entendo que o que há de mais essencial na “fala”
dos povos indígenas em isolamento voluntário já está dito. Trata-se, como vimos na introdução
e veremos mais detalhadamente ao longo da pesquisa, do desejo claramente manifestado de
66
permanecer sem contato com a sociedade envolvente. Resta, a este e a outros trabalhos, então,
apenas a tarefa de amplificar esta fala de modo a contribuir para que ela seja “ouvida”, ou seja,
que o direito ao isolamento seja garantido.
A partir destas reflexões, passemos para as seguintes questões: O que é o sujeito
subalterno? É possível considerar que os povos indígenas em isolamento voluntário constituem
um tipo de sujeito subalterno? E, sendo assim considerados, podem os povos indígenas em
isolamento voluntário falar e serem ouvidos?
O horizonte empírico considerado por Spivak (2010, p. 12) para elaborar as reflexões
neste caso refere-se às “camadas inferiores da sociedade constituídas pelos modos específicos
de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem
membros plenos do estratos social dominante”. No caso dos povos indígenas em isolamento,
este contexto não se aplica, o que, todavia, não nos impede de analisa-los como sujeitos
subalternos.
Isto porque, pela definição de Spivak (2010, p. 67), “no contexto da produção colonial,
o sujeito subalterno [é aquele que] não tem história e não pode falar”. De acordo com Almeida
(2010, p. 13), no prefácio da tradução ao português da obras de Spivak, “o processo de fala se
caracteriza por uma posição discursiva, uma transação entre falante e ouvinte”. Neste processo
de fala, o “espaço dialógico de interação não se concretiza jamais para o sujeito subalterno que,
desinvestido de qualquer forma de agenciamento, de fato, não pode falar” (idem). Novamente
de acordo com Almeida (2010, p. 12), “ao concluir que o subalterno não pode falar, Spivak vai
além da resposta objetiva a essa pergunta”. Ou seja, o sujeito subalterno pode falar e fala, o que
a autora está a ressaltar é a ausência do caráter dialógico na fala do subalterno, ou seja, “o ato
de ser ouvido não ocorre”.
La pregunta y su consiguiente respuesta no deben ser tomadas de manera
literal, ya que el argumento en general apunta al silenciamiento estructural
del subalterno dentro de la narrativa histórica capitalista. Es claro que el
subalterno “habla” físicamente; sin embargo, su “habla” no adquiere estatus
dialógico –en el sentido en que lo plantea Bakhtin–, esto es, el subalterno no
es un sujeto que ocupa una posición discursiva desde la que puede hablar o
responder (GIRALDO, 2003, p. 298).
No nosso entendimento, isto é precisamente o que ocorre com os povos indígenas em
isolamento: eles não têm história, já que, apesar da quantidade de informações disponíveis,
inclusive a nível internacional, sobre a existência destes povos, os processos históricos e a
situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento permanecem ocultados; e, sua voz
67
– aqui interpretada como o interesse de permanecer em isolamento – não é ouvida, dado o
contínuo avanço das fronteiras econômicas sobre seus territórios.
De modo mais abrangente, e em relação ao que pode ser denominado como
teoria póscolonialista, a originalidade da argumentação de Spivak em Pode o
Subalterno Falar? refere-se à crítica aos relatos de representação do oprimido
que, por trás de um verniz libertário, acabam por ajudar na manutenção de
práticas essencialistas e imperialistas que resultam em violência epistêmica
cotidiana (CARVALHO, 2011, p. 67).
Esta reflexões nos levaram a questionar intensamente o seguinte: a afirmação de que
estamos diante do sexto século de genocídios e diásporas indígenas não poderia servir,
paradoxalmente, ao reforço das estruturas de poder e de saber que pretendemos combater? Ou
seja, nossa tese poderia ser utilizada pela justificativa de que, mesmo mediante atrocidades, o
desaparecimento dos povos indígenas é algo natural e inevitável, sobretudo daqueles povos sem
contato com a sociedade envolvente. Conclui-se, entretanto, que esta possibilidade pode ser de
fato utilizada, mas não retira a veracidade do fato em si, nem reduz seu caráter de denúncia
necessária. Daí decorre a decisão de assumir os riscos desta afirmação, que, a fundo, tenta
interpretar e traduzir, subjetivamente, a linguagem dos isolamento voluntário, de recusa do
contato, e, obviamente, de recusa dos genocídios e dos necessários movimentos diaspóricos.
Até porque, na direção contrária, não comunicar tal percepção poderia servir para reforçar o
silêncio sobre o tema. Então, ainda que contenha erros, que possibilite interpretações
contraditórias e perigosas, considerou-se válido o esforço de elaborar, analisar e divulgar esta
tese.
É neste sentido que pretende-se apresentar um ponto de vista subalterno, decolonial e
propositivo sobre o assunto dos povos indígenas em isolamento na Amazônia brasileira. Trata-
se de um ponto de vista subalterno em relação aos temas, narrativas e conceitos predominantes
na área de conhecimento de relações internacionais, sobretudo na comunidade acadêmica
brasileira desta área61. Uma perspectiva decolonial à medida que a pesquisa identifica a
persistência da colonialidade nas dinâmicas políticas e econômicas sobre os territórios
amazônicos e se contrapõe à continuidade destas dinâmicas. E propositiva na medida em que
apresentamos, na conclusão, algumas propostas sobre o tema, com enfoque nas relações entre
Estado, sociedades nacionais e povos indígenas.
61 Conforme analisado nas seções de revisão bibliográfica.
68
2.2 Referenciais e aportes teóricos;
Historicamente, a teoria e a filosofia política foram predominantemente
pensadas no Norte e para o Norte. Por um lado, ela serviu como pilar
fundamental para a arquitetura da exploração, dominação e colonização dos
povos não situados no Ocidente exemplar. Por outro, o Ocidente foi capaz de
reagir desde dentro, improvisando teorias outras, críticas e contra-
hegemônicas. Essa marginalidade teórica dialoga com as versões periféricas e
subalternas produzidas fora do Norte. Dessa perspectiva, decolonizar a teoria,
em especial a teoria política, é um dos passos para decolonização do próprio
poder (BALLESTRIN, 2013, p. 109).
Nesta seção aprofundamos o debate sobre as perspectivas teóricas que influenciaram e
orientaram a elaboração desta pesquisa. Com isto, nosso objetivo é analisar as relações entre os
assuntos indígenas, o campo temático e a trajetória dos debates teóricos da área de Relações
Internacionais (RI). As perguntas que orientam as reflexões desta e das próximas duas seções
são as seguintes: Como e por que os povos indígenas constituem um tema pertinente à área de
Relações Internacionais? Estes assuntos tiveram e/ou têm alguma relação com as teorias desta
área de conhecimento? O estudo dos assuntos indígenas a partir do prisma teórico das RI pode
gerar contribuições para esta área de conhecimento, em termos de reformulação teórica e de
análise da política global contemporânea?
Partimos da tese de que a temática indígena constitui “assuntos inacabados” na área de
conhecimento de relações internacionais (URT, 2015). Nota-se principalmente que as
consequências políticas, econômicas e sociais dos processos de colonização e de colonialismo
interno – para os povos indígenas e para a própria formação do mundo contemporâneo –
continuam sendo subestimadas, ocultadas e marginalizadas, ou simplesmente excluídas, dos
debates da área de conhecimento de RI.
Isto não significa dizer que os assuntos indígenas sejam desconhecidos no âmbito da
política internacional. Como veremos no capítulo seguinte, os povos indígenas obtiveram
sucesso em inserir o reconhecimento de seus direitos nas constituições nacionais e nos
ambientes institucionalizados da política internacional. Além disso, estes povos têm ampliado
e diversificado as formas através das quais reivindicam reparações históricas e a própria
reconfiguração da política global. Todavia, o que argumentaremos a seguir é que, embora
apresentem relações intrínsecas com o elemento central das Relações Interacionais, o Estado,
os assuntos indígenas não fizeram parte das trajetórias temática e teórica desta área de
conhecimento, pelo menos até fins do século XX e início do XXI62.
62 Entre as primeiras referências dedicadas ao estudo da dimensão internacional/global dos assuntos indígenas, mas que não necessariamente se situam na área de conhecimento de Relações Internacionais, destacamos:
69
Na nossa perspectiva, este cenário se deve a dois fatores principais: 1) a negação do
reconhecimento e/ou do respeito à soberania político-territorial dos povos indígenas, desde o
início do colonialismo até a sua atualidade; e, 2) a exclusão, o ocultamento e a marginalização
dos assuntos indígenas na área de conhecimento de RI. Vale apontar que atualmente os assuntos
indígenas constituem uma temática em expansão na literatura internacional63, articulada em
torno da noção de indigenous politics64. Porém, a ausência destes assuntos ao longo do processo
de consolidação temática, conceitual e teórica da área de RI produziu efeitos, alguns dos quais
serão analisados a seguir. Passemos, então, ao debate sobre os dois fatores citados.
O primeiro elemento desta discussão, que possui efeitos sobre o processo histórico
posterior, é o seguinte: desde o início dos processos de colonização europeia ao redor do mundo
até a atualidade, os Estados-Nação coloniais e pós-coloniais – orientados por uma cosmologia65
excludente66 – não reconheceram e/ou não respeitaram a soberania político-territorial dos povos
indígenas. Deste modo, foi e continua sendo negada a legitimidade – e, muitas vezes, o próprio
direito de existência – dos povos indígenas enquanto comunidades humanas. Sendo assim, estes
povos foram considerados e/ou tratados como sociedades apolíticas, sem direito ao exercício
de autoridade interna, externa e territorial67. Há abundante literatura indicando que este padrão
colonial de poder resultou no desaparecimento de diversos povos indígenas, e de suas múltiplas
formas de organização social, política e cosmológica. Nesta pesquisa indicamos que a
persistência deste padrão colonial de poder no Brasil é também responsável pelas ameaças
contemporâneas à sobrevivência e à autodeterminação dos povos indígenas em isolamento na
Amazônia.
Chatterjee (1993), Assies e Hoekema (1994, 2000), Smith e Varese (1996), Shaw (1999), Brysk (2000), Chowdry e Nair (2002), Maybury-Lewis (2002, Niezen (2003), Coates (2004), Beier (2005), Anaya (2006), 63 Conforme veremos na seções de revisão bibliográfico. Porém, este crescimento da temática no âmbito internacional ainda não se refletiu de modo significativo entre a comunidade acadêmica brasileira de RI. 64 Trata-se basicamente do estudo de assuntos indígenas a partir de um enfoque político, ou seja, observando-se a atuação, as reivindicações e a participação dos povos indígenas nas arenas públicas e nos ambientes institucionalizados da política nacional, internacional e global. Na língua portuguesa, entretanto, a expressão “políticas indígenas” é muito pouco utilizada e tende a ser interpretada equivocadamente como sinônimo de “política indigenista”. 65 Reiteramos aqui a noção de cosmologia como sendo o conjunto de conhecimentos e práticas que explicam e dão sentido à vida de uma determinada comunidade humana. Em uma cosmologia encontram-se relacionadas ideias sobre o tempo, o espaço, a natureza, o aspecto sobrenatural, a organização social, a relação com outros povos/sociedades, entre outros elementos. Deste modo, a cosmologia orienta uma comunidade humana na explicação de suas origens (passado), na sua descrição do mundo (presente) e na determinação de como se portar neste mundo (futuro) (ALBERT, 2002; CUNHA, 2009). 66 Este conceito e o processo histórico de que trata são analisados na seção 2.2.2. 67 Cabe aqui apenas indicar a existência de alguns casos, bastante recentes, de países que têm buscado novos padrões de relacionamento e de reconhecimento da autonomia política dos povos indígenas, embora não ainda de sua soberania. Casos deste tipo podem ser encontrados principalmente no Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália.
70
Sobre este assunto, destacamos a seguinte análise de Picq (2017, p. 347-348, grifos
nossos):
A invenção de povos indígenas como selvagens a serem civilizados levou a
políticas coloniais de expropriação apoiadas pela doutrina do descobrimento.
A indigenidade era a antítese imaginada da modernidade europeia, atemporal
e apolítica, resumindo uma ausência inventada do contrato social que
ostensivamente precedeu o estado (europeu). [...] A imaginação espacial dos
estados como sendo modernos e globais, em contraste com indigenidades,
imaginadas como não-políticas e isoladas, não deixa de ver apenas o
impacto da política indígena, mas também a essência do estado. [...] O
estado moderno emerge como fundamentalmente inadequado para
reconhecer a amplitude de projetos políticos alternativos
De acordo com Urt (2015, p. 52),
“uma vez “indigenizadas”, as sociedades políticas nativas foram confinadas,
desestruturadas, enfraquecidas, parcialmente cooptadas, ludibriadas,
coagidas, punidas, vencidas em batalha, subordinadas, ignoradas e, sobretudo,
territorialmente esbulhadas”
Entretanto, ainda segundo este autor, “essas sociedades políticas não foram destruídas.
Logo, preservam uma soberania de direito. Esse é o sentido de empregar a palavra
“ocultamento” das soberanias indígenas” (idem):
O que chamo aqui de ocultamento da soberanias indígenas equivale ao que
Bodley (1988) chamou de "perda da autonomia". Na prática, a autonomia é
perdida quando (a) um povo indígena é privado de suas forças armadas, isto
é, quando não é mais capaz de expulsar invasores externos, nem manter o
monopólio do uso legítimo da força para regular seus assuntos internos, mas
também (b) quando o povo é submetido à escolarização, à imposição do
sistema judiciário nacional, do serviço militar nacional obrigatório e do
pagamento de impostos ou (c) quando políticos ou burocratas estatais são
designados para administrar e exercer autoridade sobre os territórios
indígenas, bem como por meio da imposição (BODLEY, 1988, p. 31 apud
URT, 2015, p. 52).
Retomaremos este debate sobre a negação do reconhecimento e do respeito à soberania
político-territorial dos povos indígenas posteriormente, quando formos nos aprofundar na
análise da cosmologia excludente que orientou o colonialismo.
A seguir, veremos que o segundo motivo pelo qual a temática indígena permanece sendo
um assunto inacabado na área de RI. Destaca-se que à época de surgimento e de consolidação
das RI enquanto área específica de conhecimento (início e meados do século XX,
respectivamente), o fenômeno do colonialismo já se encontrava consolidado e em franca
expansão global, neste momento, em direção à África e à Ásia. Portanto, neste contexto, uma
das funções cumpridas pela teorização da área de Relações Internacionais, centrada nos
conceitos de Estado e de soberania nacional una e indivisível, foi a de reproduzir, renovar e
71
reforçar a exclusão dos povos indígenas e de outros povos em relação aos debates, aos
ambientes e à institucionalidade da política global. Cabe-nos ressaltar aqui a afirmação de
Spivak (2010, p. 20), de que “a produção intelectual ocidental é, de muitas maneiras, cúmplice
dos interesses econômicos internacionais do Ocidente”.
Sobre este aspecto, é interessante notar o seguinte: o colonialismo foi uma causa central
para a ocorrência da Primeira Guerra Mundial (IGM). O discurso tradicionalista sobre a origem
das RI identifica o surgimento desta área específica do conhecimento como uma resposta às
consequências catastróficas deste conflito, tendo o objetivo de estudar o fenômeno da guerra a
fim de evitar sua recorrência em grandes proporções. Em síntese, e de acordo com Julião (2008,
p. 21):
As Relações Internacionais enquanto disciplina autônoma adquiriram status
acadêmico somente no século XX, datando sua institucionalização de 1919
com a criação da cátedra Woodrow Wilson na Universidade do País de Gales,
em Aberyswyth, Grã-Bretanha. Suas origens institucionais estão relacionadas
com o término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e os impactos desta
no mundo, pois a dimensão do conflito impulsionou a consideração da guerra
como um problema social. Assim, firmou-se a convicção da necessidade de
um campo de estudo voltado especificamente à análise dessa problemática.
Portanto, se o objeto de estudo fundacional das RI foi a IGM, e a causa deste fenômeno
foi o colonialismo, logo, o colonialismo é um objeto de estudo das RI desde suas origens.
Entretanto, o modo como o colonialismo foi estudado e divulgado por esta disciplina acadêmica
deu destaque, sempre, à identificação de interesses nacionais, políticos e econômicos, sem
qualquer questão sobre sua legitimidade. A desvinculação entre ação política e questões morais,
pregada por Morgenthau (1948), é estratégica neste sentido. Um dos alicerces do edifício
conceitual e teórico da área de Relações Internacionais, Morgenthau (2003, p. 20) enumera 6
princípios do que chamou de realismo político. O quarto destes princípios advoga, entre
ressalvas meramente eufemistas, que: “o realismo sustenta que os princípios morais universais
não podem ser aplicados às ações dos Estados [...] mas que devem ser filtrados por meio das
circunstâncias concretas de tempo e lugar”.
Deste modo, as características do próprio colonialismo, suas relações e consequências
para com os povos e territórios colonizados, não estiveram em questão. Assim, a área de RI foi
construída predominantemente com base nos seguintes elementos: guerra, poder, Estado,
soberania, anarquia, ordem, bipolaridade, política externa, atores e instituições internacionais,
economia política e comércio internacional, cooperação, integração regional. Questionamos,
então: em quais destes temas foi dedicada alguma reflexão sobre os assuntos indígenas?
72
Nota-se através do estudo de sua trajetória que, de fato, os assuntos indígenas não
fizeram parte da estruturação epistemológica, teórica, conceitual e nem mesmo temática da área
de Relações Internacionais. Afinal: Por que estudar a dimensão política de grupos (indígenas)
considerados apolíticos? E, ainda, por que estudar a dimensão internacional de povos/assuntos
que são considerados como pertencentes à competência interna, exclusiva, soberana-colonial
de cada Estado-Nação? A estes respeito, Picq (2017, p. 347, grifo nosso) observa que:
O imperativo histórico de trazer a indigenidade para as RI vem de seu papel
em tantos processos de formação de estados. [...] a indigenidade espelha a
modernidade como o seu Outro “cultural” contra o qual a história da nação
europeia se desenrola. É intrinsecamente relacional ao estado, e portanto, vital
para uma disciplina dedicada ao estudo das relações entre estados. Dispensar
a política indígena com base no seu status de minorias é um engano, pois
a indigenidade se refere, antes de tudo, ao estado. Esta interligação
conceitual é crucial. A relação co-constitutiva entre indigenidade e estado
explica a proliferação mundial de reivindicações indígenas diversas.
Portanto, as relações entre Estado-Nação e povos indígenas são co-constitutivas. E,
considerando que o elemento central das relações internacionais foi, e continua sendo, o Estado-
Nação, não é factível afirmar que os povos indígenas não constituem um assunto internacional.
Neste sentido, é relevante lembrar que a área de RI se constituiu como uma ciência social e
política não apenas estadocêntrica, mas também fundamentada na perspectiva eurocêntrica
sobre o mundo, na epistemologia positivista de conhecimento, e com predomínio, por muito
tempo, senão até a atualidade, de acadêmicos dos Estados Unidos ou sediados em universidades
daquele país68.
Segundo Hoffman (2005, p. 134) as RI começaram a adquirir autonomia enquanto área
específica do conhecimento científico apenas a partir das décadas de 1950, 60 e 70. O foco dos
acadêmicos considerados fundadores da área, e de seus seguidos, manteve-se nas questões
bélicas e de disputa pelo poder, influenciados pelos contextos da primeira e segunda guerras
mundiais, seguidas pela guerra fria e o ordenamento bipolar da política mundial. Cenários nos
quais os Estados Unidos despontaram como potência mundial e, também, como produtores e
indutores de conhecimentos na área de RI.
Como afirma Hoffmann (1997), o estudo moderno das relações internacionais
nos Estados Unidos, ligou-se profundamente à preocupação, tanto política
68 País, inclusive, no qual o histórico de extermínios das populações indígenas – sistemática e diretamente promovidos pelo Estado-Nação, com participação ativa da sociedade nacional – está certamente entre os fenômenos mais brutais da história global. Neste sentido, seria um tema de pesquisa interessante investigar como a produção acadêmica norte-americana da área de Relações Internacionais contribuiu para o ocultar os assuntos indígenas desta área de conhecimento. Por outro lado, pela análise da literatura internacional, verifica-se que no âmbito de reconhecimento de direitos político-territoriais aos povos indígenas na atualidade, este país encontra-se em posição mais avançada do que a grande maioria dos países do continente.
73
quanto acadêmica de como o país deveria conduzir sua hegemonia
internacional em oposição à constante ameaça soviética, de modo que os
acadêmicos das Relações Internacionais forneceram as bases teórico-
científicas para uma “nova diplomacia norte-americana”, de tendências
imperialistas, instalaram os estudos estratégico-militares no centro das
preocupações analíticas do campo. Desde então, a conceitualização da força,
do poder, e suas dinâmicas, preocupações tipicamente norte-americanas,
tornaram-se fundamentais da Teoria das Relações Internacionais, então
praticamente reduzida a uma monocultura Realista que, desde então, e durante
um longo tempo, passou a deter monopólio do discurso na área [...] E dessa
forma, o campo de estudos fundou-se em relação ou em contraposição ao
Realismo, e continua em certa medida a fazê-lo [...] Slater (1998, p. 28) aponta
que embora teóricos do Norte possam dar-se ao luxo de desconhecer ou
ignorar as teorias do Sul global, o mesmo não acontece com suas contra-partes
do Sul, cuja teorização estaria sempre ligada, por concordância, rejeição ou
oposição à teoria social do Norte (ELÍBIO JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 07-
08).
No Brasil, guardadas as devidas proporções, também se verifica a instrumentalização
do conhecimento produzido na área de Relações Internacionais, o que se verifica pela “narrativa
enraizada de vincular o próprio fundamento da política externa ao interesse do desenvolvimento
nacional”, buscando “fundamentar ações e interesses relacionados com o posicionamento do
país” (VIGEVANI; THOMAZ; LEITE, 2016, p. 03). Tal utilização da prerrogativa científica
das teorias de RI para oferecer fundamentos à política externa, principalmente norte-americana,
levou Robert Cox (1986) a denominá-las como problem-solving theories.
Devido à predominância anglo-americana, a disciplina se construiu ao redor
de muitos conceitos, pressupostos e preocupações tipicamente ocidentais e
que fazem muito pouco sentido em outros contextos, países e regiões que
agora se inscrevem ativamente no âmbito político e analítico das relações
internacionais (HOFFMAN, 2005, p. 136). É nesse contexto que o Pós-
Colonialismo se torna um instrumento essencial, teórica e politicamente, para
identificar e teorizar a grande quantidade de atores, dinâmicas e urgências que
tem estado fora das concepções hegemônicas de hoje e de outrora. (ELÍBIO
JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 08).
A partir dos anos 1970, todavia, o espectro da política internacional começa a ser
ampliado, paulatinamente, com a inclusão de novos temas na agenda política global, sobretudo
os direitos humanos e o meio ambiente, e de novos atores, principalmente as organizações
internacionais e não governamentais (ALVES, 2001). Alguns processos em curso no cenário
internacional, também merecem ser apontados como fatores que contribuíram para a inserção
dos assuntos indígenas na agenda política global, e, em consequência disto, o assunto também
começa a ganhar espaço, lentamente, na área de estudos das RI.
Visto que serão analisados ao longo de toda a pesquisa, cabe aqui apenas enumerar estes
fatores: 1) o de emergência, fortalecimento político e aprofundamento dos direitos humanos; 2)
74
o processo de descolonização dos países africanos e asiáticos a partir da década de 1960, e o
desenvolvimento do princípio de autodeterminação dos povos; 3) o surgimento e fortalecimento
de novos temas e novos atores na política internacional dentre os quais destacam-se as
organizações internacionais e não-governamentais, bem como a ascensão política da temática
ambiental; 4) o fim da guerra fria, e as decorrentes transformações na política internacional; e,
5) o fenômeno da globalização, devido à expansão econômica, territorial, de transportes e
informacional, fatores que inevitavelmente geram efeitos – impactos e oportunidades – para os
povos indígenas.
No debate acadêmico, foi a partir das décadas de 1980 e 1990, que alguns autores
começaram a promover a ampliação e diversificação do debate teórico em Relações
Internacionais. Na perspectiva de Elíbio Júnior e Almeida (2013, p. 08)
desde o fim da década de 80 e, sobretudo, com as questões levantadas pelo
“Terceiro Debate” das Relações Internacionais, que introduziu na área os
Estudos Críticos, o Construtivismo, o Pós-Modernismo e o Feminismo, temos
assistido à emergência de uma série de preocupações, contestações e
(des)construções que até então tinham sido excluídos do campo teórico da
disciplina.
Neste contexto, tiveram destaque os trabalhos publicados por Lapid (1989), Onuf
(1989), Kratochwil (1997) e Wendt (1999), através dos quais promoveu-se um debate
ontológico e epistemológico sobre o campo das Relações Internacionais. Os debate levantados
por estes autores desafiaram as perspectivas hegemônicas neste campo de estudo, ao propor a
revisão das premissas e categorias fundamentais da área, ou seja, refletir sobre a composição e
a configuração da política internacional. Assim, passaram a ser questionados os fundamentos
desta área de conhecimento: o que é estudado, a partir de quais premissas, conceitos e
perspectivas. Dentre estas premissas questionou-se a exclusividade dos Estados como atores
políticos e o caráter imutável atribuído à política internacional, caracterizada, até então, como
a luta pelo poder entre atores unitários em um ambiente anárquico. Com isto, abala-se o caráter
objetivo que era projetado sobre a política internacional e sobre a razão de Estado, consideradas
esferas blindadas de influências sociais, culturais ou domésticas de qualquer natureza.
A partir de então, esta área de conhecimento começa a dar alguma relevância a fatores
sociais e normativos – como a cultura, os valores e as regras – para a compreensão de
fenômenos globais. Segundo Julião (2008, p. 21), “as relações internacionais como objeto de
estudo passam por um processo de complexificação”, no qual “as transformações sistêmicas e
seu impacto à teoria foram responsáveis, em grande medida, pela valorização de temas ligados
à cultura e à identidade”.
75
De acordo com Elíbio Júnior e Almeida (2013, p. 08) “essa abertura do campo teórico,
intensificada na década de 80, cedeu espaço para o reconhecimento de questões que antes
haviam sido marginalizadas”. A partir de então, “após uma fase “protecionista”, recentemente
as Relações Internacionais estão se abrindo à contribuição de outros campos de saber que não
estiveram tradicionalmente ligados à sua órbita teórica” (HALLIDAY, 1994, p. 130 apud
ELÍBIO JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 08).
Neste sentido, visto que a perspectiva pós-colonial já vinha sendo debatida em diferentes
áreas das ciências humanas, vale destacar a pertinente observação feita por Fernandes (2007, p.
75), de que
Este processo, também caracterizado como uma “viragem pós-moderna” nas
teorias de relações internacionais, “é essencialmente uma réplica, como é
típico das áreas pluridisciplinares, de idênticos desenvolvimentos noutras
disciplinas, neste caso da antropologia cultural, da sociologia do
desenvolvimento e da transformação social, dos estudos pós-coloniais e dos
estudos culturais [...] quer dizer, as Relações Internacionais passaram de um
processo de imitatio scientia para um processo de imitatio post-modernum,
replicando na disciplina as tendências estéticas, intelectuais e ideológicas das
artes e humanidades” (FERNANDES, 2007, p. 75).
As bases conceituais e teóricas da disciplina, entretanto, não sofrem alterações
significativas num primeiro momento. De acordo com Elíbio Júnior e Alemida (2013, p. 06) é
possível identificar
a recusa por parte do establishment das TRI, de postura eminentemente
protecionista e conservadora, em reconhecer uma abordagem que, epistêmica
e politicamente, subverte a maior parte - ou por que não dizer a totalidade - de
seus pressupostos centrais.
Neste sentido, vale destacar que realismo, liberalismo, suas atualizações, a teoria crítica,
e nem mesmo o construtivismo tiveram o objetivo ou a capacidade de incluir os assuntos
indígenas na análise dos processos de formação da ordem internacional e do mundo
contemporâneo.
Although the existence of “one world” and “many (or rival) theories” is a
fairly well-known claim in the field of International Relations (Walt, 1998,
Snyder, 2004), few alternative approaches have actually been recognized as
constituting competing but equally authoritative (meaning scientific) reading
of world politics. At IR’s core, the view that there are three main “families”
of theories (realism, liberalism and constructivism), and that the discipline has
evolved along two sets of debates between neorealism and neoliberalism, and
rationalism and reflexivism, continues to prevail. And yet, the idea of a “one
world” world at the root of the positivist mainstream is under increasing
challenge (INOUE & TICKNER, 2016, p. 1).
76
Somente a partir da última década do século XX e início do século XXI, principalmente
com base na epistemologia crítica proposta pelo pós-colonialismo, os assuntos indígenas
começam a ser considerados em sua dimensão global. Deve-se ressaltar as contribuições
geradas na América Latina no contexto de 1992, ano que marcou a soma de cinco séculos do
colonialismo no continente. Duas obras de destaque sobre estas reflexões foram organizadas
por Heraclio Bonilla69 (1992) e por Edgardo Lander70 (2000), com base em debates de eventos
acadêmicos sobre a temática do colonialismo e da influência do eurocentrismo nas ciências
sociais.
É partir deste cenário que destacamos as contribuições – já realizadas e potenciais – das
perspectivas pós-colonial e decolonial, à medida em que não apenas questionam e subvertem
os pressupostos centrais do mainstream das RI, como, principalmente, demandam uma
reconfiguração da própria política global. Um dos aportes teóricos possibilitados por estas
perspectivas é a identificação de que a colonização e o colonialismo são elementos
indispensáveis para a compreensão das relações internacionais e da política global, em suas
dimensões macro-histórica e contemporânea.
(...) este diálogo demanda uma reconfiguração radical do corpo teórico e da
prática política das Relações Internacionais, sustentada em três orientações
principais: a revisão da história das Relações Internacionais, a subversão de
conceitos centrais como poder e Estado- Nação e, por fim, o giro
epistemológico na “geopolítica do conhecimento”. (ELÍBIO JÚNIOR;
ALMEIDA, 2013, p. 06).
Associado a esta perspectiva está o desenvolvimento do campo de estudos denominado
na literatura internacional como indigenous politics, cujos conhecimentos apenas recentemente
começaram a ser incorporados aos debates teóricos das RI e da política global. Assim, uma das
contribuições específicas desta pesquisa é a de promover a inserção, neste campo, da temática
dos povos indígenas em isolamento voluntário na Amazônia. Defendemos que o conhecimento
sobre estes povos contribui para identificar a continuidade dos efeitos do colonialismo, que
opera atualmente sob formas novas, múltiplas e difusas, especialmente na Amazônia, que
continua a ser considerada e tratada como fronteira de expansão pelo capitalismo global, com
participação direta e indireta dos Estados-Nação.
Deste modo, a presente pesquisa integra os debates em curso sobre a necessidade de
descolonização da área de RI por meio da ampliação e diversificação de seus fundamentos
69 BONILLA, Heraclio (Ed.). Los conquistados: 1492 y la población indígena de las América. Quito: Tercer Mundo-Libri Mundi Editors, 1992. 70 LANDER, Edgardo (Ed.). La colonialidade del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, Colección Sur Sur, 2000.
77
epistemológicos, bases teóricas e conceituais, e de seus horizontes empíricos71. Dentre as
publicações mais recentes neste sentido, podemos destacar a série de livros intitulada “Worlding
Beyond the West”, da editora Routledge sob a supervisão de Arlene Tickner, David Blaney e
Inanna Hamati-Ataya. Outra publicação relevante neste é a edição especial da Revista Brasiliera
de Política Internacional (RBPI) do ano de 2016, intitulada “Many Worlds, Many Theories?”,
organizada por Cristina Inoue e Arlene Tickner.
Posed initially by R.B.J. Walker in his seminal book, One World, Many
Worlds: Struggles for a Just World Peace (1988), the possibility that
international relations understood as both theory and practice, contributes to
the making of multiple worlds (or a pluriverse) has been brought to the
forefront more recently by concerns with “worlding” (Tickner and Waever,
2009; Tickner and Blaney, 2012; 2013). “Worlding” entails not only
processes by which the world is made intelligible and by which “we”
determine who we are in relation to “others”, within and beyond fields of
study, but also, how such sense-making exercises – that are always socially
situated and power saturated – actually constitute the world that we inhabit
[…] Indeed, many voices have been calling for a recasting of the field’s
mainstream epistemology, ontology, theories and methodologies (INOUE &
TICKNER, 2016, p. 1-2).
Especificamente, os assuntos indígenas problematizam a necessidade de superação da
perspectiva estadocêntrica de compreensão e de ordenamento político-territorial do mundo
contemporâneo. Veremos nas duas próximas seções, que as reivindicações indígenas de seu
direito à autodeterminação dos povos não se fundamentam essencialmente no separatismo e no
conflito com as soberanias estatais, mas sim na busca pela elaboração de modelos de autoridade
político-territoriais compartilhadas e cooperativas. Deste modo, reiteramos a ideia de que
“decolonizar a teoria, em especial a teoria política, é um dos passos para decolonização do
próprio poder” (BALLESTRIN, 2013, p. 109). Neste campo, dentre as teses produzidas no
Brasil, destacamos o trabalho de João Urt (2015), intitulado “Assuntos inacabados: relações
internacionais e a colonização dos povos Guarani e Kaiowá no brasil contemporâneo”.
Vejamos, a seguir, a trajetória, as principais características e argumentos da perspectiva
pós-colonial, e como estas podem contribuir para o estudo das dimensões internacional e global
dos assuntos indígenas em geral, e do tema dos povos indígenas em isolamento,
especificamente.
71 Dentre as publicações mais recentes neste sentido, destacamos a série de livros intitulada “Worlding Beyond the West”, da editora Routledge sob a supervisão de Arlene Tickner, David Blaney e Inanna Hamati-Ataya. Dentre os periódicos destaca-se a edição especial da Revista Brasiliera de Política Internacional (RBPI, 59(2), 2016), intitulada “Many Worlds, Many Theories?”, organizada por Cristina Inoue e Arlene Tickner. Dentre as teses produzidas no Brasil, destacamos o trabalho de João Urt (2015), intitulada “Assuntos inacabados: relações internacionais e a colonização dos povos Guarani e Kaiowá no brasil contemporâneo”.
78
2.2.1 Contribuições do Pós-colonialismo ao estudo da dimensão internacional/global dos
assuntos indígenas;
Uma das contribuições mais importantes das teorias pós-coloniais à atual
reestruturação das ciências sociais é haver sinalizado que o surgimento dos
Estados nacionais na Europa e na América durante os séculos XVII a XIX não
é um processo autônomo, mas possui uma contrapartida estrutural: a
consolidação do colonialismo europeu no além-mar. [...] As teorias pós-
coloniais demonstraram, no entanto, que qualquer narrativa da modernidade
que não leve em conta o impacto da experiência colonial na formação das
relações propriamente modernas de poder é não apenas incompleto, mas
também ideológico. [...] De acordo com teóricos como Mignolo, Dussel e
Wallerstein, o Estado moderno não deve ser visto como uma unidade abstrata,
separada do sistema de relações mundiais que se configuram a partir de 1492,
e sim como uma função no interior desse sistema internacional de poder
(CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 83 grifos do autor).
A partir do panorama temático e teórico da área de Relações Internacionais, analisado
na seção anterior, faremos a seguir uma breve apresentação e discussão sobre as perspectivas
pós-coloniais da teoria e da política internacional/global. Com isto, nosso objetivo central é
apontar algumas das contribuições, críticas e possibilidades que tais perspectivais oferecem, a
partir da última década do século XX e início do século XXI, para o estudo da dimensão
internacional/global dos assuntos indígenas.
Uma das questões que assumimos, neste sentido, foi levantada por Shaw (2002), acerca
de como a área de conhecimento de RI pode contribuir não apenas para a compreensão do
colonialismo, de seus efeitos contemporâneos, mas, sobretudo, para oferecer espaços relevantes
para os assuntos indígenas e para as reivindicações destes povos por uma reconfiguração da
política global.
what are the conditions under which international relations might become a
meaningful political site for indigenous people in their struggles to create
futures for themselves and their communities, which are also, simultaneously
and necessarily, struggles against colonialism, neo-colonialism, and post-
colonialism? […] It is necessary a shift if the discipline is to play an enabling
role in indigenous peoples against colonization (SHAW, 2002, p. 55).
Entre estas mudanças necessárias, apontamos que os assuntos indígenas estiveram de
tal maneira ausentes dos debates temáticos e teóricos da áreas de RI que, acordo com Picq
(2017, p. 343), “a indigenidade continua a resumir o não-científico e não-europeu,
marginalizada como não confiável e sistematicamente excluída de processos legítimos de
produção de conhecimento”. A autora ressalta que “imaginários persistentes deste tipo destoam
79
da sofisticação das práxis políticas indígenas, indicando a dose de colonialismo ainda embutida
na disciplina” (SHAW, 2008 apud Picq (2017, p. 343).
Assim, ainda de acordo com Picq (2017, p. 343) “parte da inabilidade [das RI] em
explicar dinâmicas indígenas na política global advém de sua alteridade”, ou seja, “como Seth
coloca, ‘é difícil falar a língua da alteridade quando o outro é virtualmente ausente do discurso
do eu’” (SETH, 2010, p. apud PICQ, 2017, p. 343).
Mais crucialmente, manter invisíveis as histórias indígenas permite que
omissões do passado se tornem as fundações de narrativas “científicas”
(TROUILLOT, 1995). Então a invenção do indígena como selvagem persiste
hoje em entendimentos implícitos que situam a indigenidade fora da “política
de verdade” [...] Pensar a partir de localizações tão marginais [como é o
caso do assunto dos povos indígenas em isolamento] permite que tais
silêncios sejam rompidos (PICQ, 2017, p. 343-344, grifos nossos).
Neste sentido, de acordo com Elíbio Júnior e Almeida (2013, p. 06), esta primeira
década do século XXI é marcada pela “difusão do Pós-Colonialismo nas ciências sociais, assim
como o esforço de teóricos provenientes das mais diversas áreas do conhecimento”. Segundo
estes autores, promoveu-se “um amadurecimento do argumento, articulado nas diversas áreas
do conhecimento, sendo possível perceber esse esforço nas Relações Internacionais”. Deste
modo, “começa a despontar um conjunto de acadêmicos críticos que possuem linhas de
pesquisa e publicações que situam o Pós-Colonialismo e as questões que este levanta no seio
da disciplina” (ELÍBIO JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 06-07).
Faremos a seguir, então, uma apresentação dos conceitos centrais da perspectiva teórica
do pós-colonialismo, tal qual entendida e utilizada nesta pesquisa, bem como uma breve revisão
da trajetória da perspectiva pós-colonial. Assim, identificamos que a compreensão dos
fenômenos do colonialismo do poder, do saber e do ser tem importância central para os
objetivos desta pesquisa, bem como os processos de expansão do sistema europeu de Estados e
do colonialismo interno. Veremos a seguir que todos estes elementos estão intrinsecamente
ligados a fenômenos internacionais, aos processos de construção e expansão dos Estados-
Nação, à trajetória histórica dos povos indígenas, e, no caso aqui estudado, também possuem
efeitos diretos sobre a situação dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia
brasileira.
Importa identificar desde já que os conceitos e perspectivas defendidos através da
perspectiva pós-colonial operam em um espaço de contestação, no qual apontam, em primeiro
lugar, que a descolonização é um processo inacabado. Spivak (2010), utiliza o termo “suposta
80
descolonização”, Hall (2009, p. 99) fala da “luta inconclusa pela descolonização”. Nas palavras
de Grosfoguel (2007, p. 73):
Em oposição ao projeto de Habermas, que propõe como tarefa central a
necessidade de terminar o projeto inacabado e incompleto da modernidade, a
transmodernidade de Dussel é o projeto para terminar, através de um largo
processo, o inacabado e incompleto projeto da decolonização.
É necessário observar que a perspectiva pós-colonial não constitui uma matriz teórica
unitária. “Trata-se de uma variedade de contribuições com orientações distintas unidas, porém,
pela crítica à modernidade como imposição de um modo de vida que se avaliou como superior
às demais experiências de associação humana” (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2011, p. 44). Pode-
se identificar que “as primeiras utilizações do termo pós-colonial, nos anos 70, pertencem ao
domínio da crítica literária” de onde “provêm os seus pais fundadores: Edward Said, Homi
Bhabha e Gayatri Spivak” (NEVES, 2009, p. 236), e “expressa-se, hoje, contudo, nas produções
teóricas de diversos outros autores, dentro e fora da Europa” (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2011,
p. 44).
Segundo Castro-Gomez (2005, p. 11), podemos situar os seguintes autores latino-
americanos entre os principais componentes daqueles que ficou conhecido como grupo
modernidade/colonialidade: Mignolo, Quijano, Dussel, Coronil e Grosfoguel, Ballestrin
identifica que “suas maiores contribuições são a identificação, a interpretação e a teorização
dos processos de modernidade/colonialidade/decolonialidade” (BALLESTRIN, 2013, p. 109-
110). Na visão de Miglievich-Ribeiro (2011, p. 44)
O empreendimento contemporâneo, sob a rubrica de pensamento pós-
colonial, parte do entendimento de que o conhecimento está organizado em
regiões/redes de poder e regiões/redes subalternizadas. De seus três eixos
principais – a orientação sistêmica/construtivista; os estudos culturais; o
paradigma da modernidade/colonialidade – a última traz mais fortemente a
marca latino-americana (MIGLIEVICH-RIBEIRO et al., 2009). Tais estudos
também se empenham em participar da redefinição do universal e do
humanismo.
Assim, o surgimento do pós-colonialismo possibilitou uma renovação analítica e crítica
nas ciências sociais latino-americanas (BALLESTRIN, 2013, p. 110). Este reconhecimento não
implica negligenciar as críticas que podem ser atribuídas a tal perspectiva. Entre elas, Ballestrin
(2013, p. 111) observa que “alguns textos esbarram na romantização dos oprimidos e
explorados, apologia do sujeito autóctone/original, desconstrutivismo paralisante e saída do
próprio campo cientifico que está em disputa”.
81
Neste sentido, algumas perguntas fundamentais são levantadas por Hall (2009, p. 95):
“Quando foi o pós-colonial? O que deveria ser incluído e excluído de seus limites?”. De acordo
com o autor:
o “pós-colonial” não sinaliza uma simples sucessão cronológica do tipo
antes/depois. O movimento que vai da colonização aos tempos pós-coloniais
não implica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos
por uma época livre de conflitos. Ao contrário, o “pós-colonial” marca a
passagem de uma configuração ou conjuntura histórica de poder para outra
(HALL, 1996a). Problemas de dependência, subdesenvolvimento e
marginalização, típicos do “alto” período colonial, persistem no pós-colonial.
Contudo, essas relações estão resumidas em uma nova configuração. No
passado, eram articuladas como relações desiguais de poder e exploração
entre as sociedades colonizadoras e colonizadas. Atualmente, essas
relações são deslocadas e reencenadas como lutas entre forças sociais
nativas, como contradições internas e fontes de desestabilização no
interior da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema global como
um todo (HALL, 2009, p. 54, grifo nosso).
Verifica-se desde já que o “pós” é um elemento epistêmico e cronológico, visto que “é
tanto o paradigma quanto o momento cronológico do “colonial” que o “pós-colonial” pretende
superar” (HALL, 2009, p. 111). Assim, o ponto de partida básico e fundamental para
compreendermos as perspectivas pós-coloniais é a constatação de que “o fim do colonialismo
enquanto relação política não acarretou o fim do colonialismo enquanto relação social,
enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória” (SANTOS, 2001,
p. 38). As relações extremamente desiguais geradas, institucionalizadas e consolidadas pelo
colonialismo, “tanto relações entre Estados como relações entre classes e grupos sociais no
interior do mesmo Estado” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 12) continuaram a existir por meio
dos fenômenos da colonialidade do poder, do saber e do ser, que veremos logo a seguir.
Neste sentido, o conceito de colonialidade do poder, bastante difundido e aplicado na
atualidade, tem como precursor o trabalho de Quijano (1992, 2000). De acordo com este autor:
La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón
mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación
racial/étnica de la problación del mundo como piedra angular de dicho
patrón de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones,
materiales y subjetivas, de la existencia social cotidiana y a escala societal.
Se origina y mundializa a partir de América (QUIJANO, 2000: 342).
Em trabalho posterior, Quijano (2002, p. 04) complementa este entendimento ao afirmar
que o padrão colonial de poder articula:
1) (...) a idéia de ‘raça’ como fundamento do padrão universal de classificação
social básica e de dominação social; 2) o capitalismo, como padrão universal
de exploração social; 3) o Estado como forma central universal de controle da
autoridade coletiva e o moderno Estado-nação como sua variante hegemônica;
82
4) o eurocentrismo como forma hegemônica de controle da
subjetividade/intersubjetividade, em particular no modo de produzir
conhecimento (Quijano 2002, p. 04).
Quijano e Wallerstein (1992, p. 549), enfatizam, assim, a importância constitutiva da
colonização das Américas para a formação deste padrão de poder, que viria a ser traduzido pela
“ideia de um sistema-mundo moderno-colonial, mais completa e mais complexa” (PORTO-
GONÇALVES, 2005, p. 3).
The modern world-system was born in the long sixteenth century. The Americas
as a geo-social construct were born in the long sixteenth century. The creation of
this geosocial entity, the Americas, was the constitutive act of the modern
world system. The Americas were not incorporated into an already existing
capitalist world-economy. There could not have been a capitalist world-
economy without the Americas […] Americanity has always been, and
remains to this day, an essential element in what we mean by ‘modernity’ (QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p. 549),
Os autores das perspectivas pós-coloniais, e dos movimentos intelectuais posteriores
associados a estas, convergem, portanto, em identificar uma relação co-constitutiva entre
capitalismo, colonialismo e a expansão global do sistema europeu de Estados, fenômenos
impulsionados de modo decisivo a partir do ano de 1492. Logo, como temos procurado
evidenciar, a história dos povos indígenas das Américas, e do Brasil especificamente, após
1492, não pode ser analisada de modo isolado da história global. E, de acordo com Hall (2009,
p. 106), “na narrativa reencenada do pós-colonial, a colonização assume o lugar e a importância
de um amplo evento de ruptura histórico-mundial”. Para Grosfoguel (2016, p. 35):
Sin la conquista de África, Asia y América no habría capitalismo mundial. De manera
que estamos hablando de un sistema que es capitalista y colonialista desde su
nacimiento. Sin colonialismo y dominación colonial, no habría mercado capitalista
global. El colonialismo es constitutivo del capitalismo. Uno es inherente al otro. De
manera que no habitamos en un sistema puramente capitalista. Habitamos en un
capitalismo histórico que es inherentemente colonial y, por tanto, racial
(GROSFOGUEL, 2016, p. 35).
A Europa ocidental se torna o centro político e econômico do mundo a partir de 1492,
através dos processos de colonização e dos benefícios advindos destes processos. Assim, a
intensificação do comércio intra-europeu possibilita o compartilhamento destes ganhos
materiais entre os países da região. Daí decorre o fato da colonização ser um fenômeno europeu,
apesar destes processos coloniais terem sido conduzidos predominantemente por apenas
algumas nações.
Assim, a perspectiva afirmada por Quijano e Wallerstein (1992, p. 449), referida há
pouco, é reforçada por uma série de outros autores. De acordo com Mignolo (2005, p. 34-35, a
Europa não era o centro do mundo antes do colonialismo.
83
Antes, porém, recordemos que a emergência do circuito comercial do
Atlântico teve a particularidade (e este aspecto é importante para a ideia de
“hemisfério ocidental”) de conectar os circuitos comerciais já existentes na
Ásia, na África e na Europa (rede comercial na qual a Europa era o lugar mais
marginal do centro de atração, que era a China, e que ia desde a Europa até as
“Índias Orientais”) (Abu-Lughod, 1989; Wolff, 1982), com Anáhuac e
Tauantinsuiu, os dois grandes circuitos até então sem conexão com os
anteriores; separados tanto pelo Pacífico como pelo Atlântico (MIGNOLO
2005, p. 34-35).
Porto-Gonçalves (2005, p. 03-04) também reforça este argumento.
a Europa só se coloca como centro do Mundo a partir da descoberta da
América posto que, até ali, só uma parte marginal da atual Europa, Norte da
Itália e seus financistas, se integravam no centro dinâmico comercial do
mundo que os turcos, em 1453, haviam politicamente controlado. Até ali, ir
no caminho certo era se orientar! No Oriente, se encontravam as chamadas
grandes civilizações [...] É essa visão eurocêntrica que nos impedirá de ver
que não há um lugar ativo, a Europa, e lugares passivos, a América, por
exemplo. Desde o início da primeira modernidade, sob hegemonia ibérica, que
a colonialidade lhe é constitutiva. A América teve um papel protagônico,
subalternizado é certo, sem o qual a Europa não teria acumulado toda a riqueza
e poder que concentrou. Sublinhemos que a teoria da modernocolonialidade
ao ressaltar o papel protagônico subalternizado indica não um lugar menor da
América e maior da Europa, como se poderia pensar nos marcos
dicotomizantes do pensamento hegemônico. Ao contrário, assinala que há
uma ordem geopolítica mundial que é conformada por uma clivagem
estruturante modernocolonial e que só pode ser compreendida a partir dessa
tensão que a habita (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 3-4).
Então, conforme abordado anteriormente, a combinação destes fatores levou à
hierarquização racial e social que resultou na organização colonial do mundo. Processos nos
quais os povos nativos das regiões a serem dominadas (Américas, África e Ásia) ocuparam
sempre a posição hierarquicamente mais inferior, subalterna e explorada. Ao longo dos séculos,
mediante o aprimoramento dos aparatos coloniais, estes processos assumiram uma dinâmica de
expansão territorial constante que resultou na configuração política atual, na qual todos os
territórios do globo encontram-se divididos entre diferentes unidades de um mesmo modelo de
organização e de autoridade política.
Desde o final do século XV, esse sistema forma-se, amadurece e consolida-se.
Inicialmente, regulava apenas as relações entre as dinastias dominantes na Europa
Ocidental. O colonialismo e o imperialismo permitiram ao sistema formular novas
instituições, tais como a soberania, destinadas a gerir as relações entre o mundo
europeu e os mundos não-europeus. Por meio do colonialismo e do imperialismo o
sistema expandiu-se, num movimento que dura até os dias de hoje, no sentido de
alcançar todos os espaços do globo” (URT, 2015, p. 11-12).
Assim, a continuidade e a disseminação destas relações e padrões coloniais de poder, de
saber e de ser, foram constituídas e promovidas através da expansão global do sistema Europeu
84
de Estados. De acordo com Urt (2015, p. 13), o sistema europeu de Estados pode ser definido
como:
sistema de relações que teve início na Europa Ocidental, mas, à medida em que foi se
expandindo, reproduziu-se por meio de sociedades colonas [...] e passou a incluir
povos não europeus. As sociedades colonas [...] no momento em que formam
Estados “independentes”, assumem para si a tarefa da colonização. Assim,
mesmo quando são, p. ex., os australianos ou os indonésios que colonizam, eles o
fazem como agentes de um sistema europeu de Estados que incorporaram. O
sistema europeu de Estados é um elemento da cultura política da modernidade
europeia (URT, 2015, p. 13, grifo nosso).
A perspectiva de Hall (2009, p. 103) reitera estas características, ao observar que:
[...] a “colonização” sinaliza a ocupação e o controle colonial direto. Já a
transição para o “pós-colonial” é caracterizada pela independência do controle
colonial direto, pela formação de novos Estados-nação, por formas de
desenvolvimento econômico dominadas pelo crescimento do capital local e
suas relações de dependência neocolonial com o mundo desenvolvido
capitalista, bem como pela política que advém da emergência de poderosas
elites locais que administram os efeitos contraditórios do
subdesenvolvimento. É igualmente significativo o fato de ser caracterizado
pela persistência dos muitos efeitos da colonização e, ao mesmo tempo,
por seu deslocamento do eixo colonizador/colonizado ao ponto de sua
internalização na própria sociedade descolonizada (HALL, 2009, p. 103).
Neste sentido, se torna indispensável compreender também a noção de colonialismo
interno. A partir de Casanova (2007, p. 409), a elaboração de uma definição para a categoria de
colonialismo interno requer a identificação de três elementos: primeiro, que o colonialismo
interno se dá nos terrenos econômico, político, social e cultural; segundo, é preciso identificar
como este colonialismo se desenvolve e se reproduz ao longo da história do Estado-Nação e do
capitalismo; e, o terceiro elemento a identificar é como o colonialismo se relaciona com
movimentos e forças de resistências e de construção de autonomias dentro do Estado-Nação, e
a criação de vínculos com movimentos e forças internacionais e globais.
Assim, ainda partindo das ideias de Casanova (2007, p. 410), podemos identificar que
o colonialismo interno está ligado a sucessivos fenômenos de conquista: primeiro do Estado
colonizador, e, depois, do Estado que adquire independência formal mas que mantêm e renova
muitas das estruturas coloniais internas que prevaleciam durante o domínio colonial precedente.
Deste modo:
Los pueblos, minorías o naciones colonizados por el Estado-nación sufren
condiciones semejantes a las que los caracterizan en el colonialismo y el
neocolonialismo a nivel internacional: habitan en un territorio sin gobierno
propio; se encuentran en situación de desigualdad frente a las elites de las
etnias dominantes y de las clases que las integran; su administración y
responsabilidad jurídico-política conciernen a las etnias dominantes, a las
burguesías y oligarquías del gobierno central o a los aliados y subordinados
del mismo; sus habitantes no participan en los más altos cargos políticos y
85
militares del gobierno central, salvo en condición de “asimilados”; los
derechos de sus habitantes y su situación económica, política, social y
cultural son regulados e impuestos por el gobierno central; en general, los
colonizados en el interior de un Estado-nación pertenecen a una “raza”
distinta a la que domina en el gobierno nacional, que es considerada
“inferior” o, a lo sumo, es convertida en un símbolo “liberador” que forma
parte de la demagogia estatal; la mayoría de los colonizados pertenece a una
cultura distinta y habla una lengua distinta de la “nacional” (CASANOVA,
2007, p. 410).
Assim, no interior destas estruturas coloniais de poder, arraigadas na cultura e no culto
à modernidade europeia ocidental, torna-se indispensável compreender os as noções de
colonialidade do saber e do ser, e dos papeis que estes fenômenos desempenham. De acordo
com os autores Restrepo e Rojas (2010, p. 136) a noção de colonialidade do saber “pretende
resaltar la dimensión epistémica de la colonialidad del poder”, e, deste modo, “se refiere al
efecto de subalternización, folclorización o invisibilización de una multiplicidad de
conocimientos que no responden a las modalidades de producción de ‘conocimiento
occidental’ asociadas a la ciencia convencional y al discurso experto”. Neste sentido, de
acordo com Quijano (1992, p. 447):
es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-
modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitivo con todo
poder no constituido en la decisión libre de gentes libres. Es la
instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que
produjo paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas
liberadoras de la modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la
destrucción de la colonialidad del poder mundial.
Por sua vez, a colonialidade do ser, de acordo com Restrepo e Rojas (2010, p. 156)
“refiere a la dimensión ontológica de la colonialidad del poder, esto es, la experiencia vivida
del sistema mundo moderno/colonial en el que se inferioriza deshumanizando total o
parcialmente a determinadas poblaciones”. Esta noção também pode ser complementada pelas
ideias de Quijano (1992, p. 448, grifos nossos):
La liberación de las relaciones interculturales de la prisión de la
colonialidad, estraña también la libertad de todas las gentes, de optar
individual o colectivamente en tales relaciones; una libertad de opción entre
las diversas orientaciones culturales [dentre as quais podemos situar o
próprio isolamento voluntário de determinados povos indígenas da
Amazônia]. Y, sobre todo la libertad para producir, criticar y cambiar o
intercambiar cultura y sociedad [ou, também em relação aos PII, a liberdade
de não se relacionar com a sociedade envolvente]. Es parte, en fin, del proceso
de liberación social de todo poder organizado como desigualdad, como
discriminación, como explotación, como dominación.
86
Podemos ver, portanto, que os conceitos de colonização, sistema-mundo moderno-
colonial, colonialidade do poder, do saber e do ser e colonialismo interno, bem como os
fenômenos históricos que estes conceitos procuram captar, têm grande relevância para o estudo
do tema desta pesquisa. Em outras palavras, não obstante sua obviedade, o fenômeno da
colonização e os processos daí decorrentes possuem efeitos diretos e indiretos sobre a situação
contemporânea dos povos indígenas em isolamento na Amazônia brasileira, conforme veremos
no decorrer desta pesquisa.
Na seção seguinte veremos que a cosmologia excludente que regeu estes processos foi
capaz de disseminar globalmente uma forma hegemônica de organização das comunidades
humanas, os Estados-Nação, fundados mediante a invasão de territórios e a negação da
soberania dos povos dali nativos. Assim, o fenômeno designado pelo termo polissêmico de
“globalização”, por sua vez, deu continuidade ao processo de aprimoramento e ressignificação
do colonialismo e da divisão global do trabalho, do território e da natureza.
Cabe dizer que os discursos da globalização são múltiplos e estão muito longe de
serem homogêneos. Os relatos mais matizados desautorizam a imagem estereotipada
da emergência de uma aldeia global, popularizada pelas corporações, pelos Estados
metropolitanos e pelos meios de comunicação. Essas versões alternativas sugerem que
a globalização não é um fenômeno novo, mas sim a manifestação intensificada de um
antigo processo de intensificação do comércio transcontinental, de expansão
capitalista, colonização, migrações mundiais e intercâmbios transculturais. Do mesmo
modo, sugerem que sua atual modalidade neoliberal polariza, exclui e diferencia,
mesmo quando gera algumas configurações de interação translocal e de
homogenização cultural. [...] Seu modo de integração é fragmentário ao invés de total.
Constrói semelhanças sobre uma base de assimetrias. Em suma, unifica dividindo. Em
vez da reconfortante imagem da aldeia global, oferece, de diferentes perspectivas e
com diferentes ênfases, uma visão inquietante de um mundo fraturado e dividido por
novas formas de dominação (CORONIL, 2005, p. 50).
Segundo o autor Boaventura de Souza Santos (2005, 2006) a complexidade, as múltiplas
dimensões e vetores dos processos globais permitem afirmar que existe não apenas uma, mas
várias globalizações. Ainda segundo o autor, o encontro destas forças se faz por meio de
múltiplas arenas de interação transnacional, como as redes difusas de comunicação, os
organismos internacionais e as organizações não governamentais. Processos através dos quais
uma determinada entidade ou condição local amplia sua influência de modo a alcançar várias
regiões do planeta, por meio de diversos conjuntos de relações sociais, políticas, econômicas e
culturais. Projetadas à dimensão global, estas forças e dinâmicas fazem com que outras
condições locais sejam modificadas.
Neste ponto reside um elemento central das reflexões teóricas desta pesquisa: as
influências do processo de globalização sobre os povos indígenas e, em contrapartida, a
capacidade de resistência e de resposta dos povos indígenas às forças e pressões advindas deste
87
processo. É justamente nesta relação de forças, entre o global e o local, que está inserida a
problemática dos povos indígenas isolados.
Essa renarração desloca a “estória” da modernidade capitalista de seu
centramento europeu para suas “periferias” dispensas em todo o globo; a
evolução pacífica para a violência imposta; a transição do feudalismo para o
capitalismo para a formação do mercado mundial, usando termos simplistas
por um momento; ou desloca essa “estória” para novas formas de conceituar
o relacionamento entre esses distintos “eventos” – as fronteiras permeáveis do
tipo dentro/fora da emergente modernidade capitalista “global” (HALL, 2009,
p. 106).
Daí a pertinência de uma das perguntas de pesquisa mencionadas: Como o estudo sobre
os povos indígenas em isolamento pode contribuir para a compreensão e transformação da
política global contemporânea?
É por estes motivos que consideramos a perspectiva teórica pós-colonial como aquela
que oferece os elementos mais coerentes para analisar estas relações de influência entre os
processos globais, os Estados-Nação e os povos indígenas. No entendimento de Souza Santos
(2004), o pós-colonialismo é “um conjunto de correntes teóricas e analíticas [...] que têm em
comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na
explicação ou na compreensão do mundo contemporâneo”.
Além disso, de acordo com Karena SHAW (2002) e Souza Santos (2004), a partir da
análise das margens ou das periferias do sistema internacional, as estruturas de poder, as
condições, forças e práticas da política mundial contemporânea se tornam mais visíveis.
I find their situation [of the indigenous people] to be especially revealing about
contemporary politics […] because they exist in ‘our’ spatially defined political
spaces/states, and because our own identities are constituted partly in relation to
them, they reveal most profundly the violences inflicted by our own modes of life and
undestanding (SHAW, 2002).
No mesmo sentido, Souza Santos (2004) afirma que:
o caráter constitutivo do colonialismo na modernidade ocidental faz com que ele seja
importante para compreender, não só as sociedades não ocidentais que foram vítimas
do colonialismo, mas também as próprias sociedades ocidentais, sobretudo os padrões
de discriminação social que nelas vigoram. A perspectiva pós-colonial parte da ideia
de que, a partir das margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber são
mais visíveis.
Trata-se claramente de uma postura intelectual engajada em criticar as concepções
epistemológicas vigentes e as estruturas políticas estabelecidas, derivadas das relações de
dominação típicas do colonialismo. Os debates mais pertinentes que surgem neste sentido
levantam, justamente, a questão de como promover esta emancipação epistemológica e política.
Na nossa perspectiva, é necessário aprofundar os conhecimentos principalmente sobre a
dimensão local dos povos e organizações indígenas para podermos compreender o que
88
condiciona, por um lado, a busca dos povos indígenas por participação política nas arenas
globais, e, por outro, a resistência de alguns povos a qualquer tipo de contato ou relação com a
sociedade envolvente.
Assim, a escolha dos povos indígenas em situações de isolamento como tema de
pesquisa surge também da compreensão de que é através do estudo das realidades locais que
poderemos compreender qual é sua relação com o âmbito global. Somente partindo da dimensão
local é que faz sentido verificar como e qual (re)configuração da política global pode contribuir
para a proteção, garantia de direitos e emancipação dos diversos povos indígenas ao redor do
mundo.
Hoje em dia, o “meramente” local e o global estão atados um ao outro, não
porque este último seja o manejo local dos efeitos essencialmente globais,
mas porque cada um é a condição de existência do outro. [...] O destino e
a sorte do mais simples e pobre agricultor no mais remoto canto do
mundo depende dos deslocamentos não regulados do mercado global – e,
por essa razão, ele (ou ela) é hoje um elemento essencial de cada cálculo
global (HALL, 2009, p. 44-45).
Assim, a perspectiva pós-colonial nos auxilia a compreender a situação contemporânea
dos povos indígenas em isolamento na Amazônia a partir das explicações que oferece para o
processo de constituição política e econômica do mundo, as quais têm efeito direto sobre estes
povos e seus territórios. Na nossa perspectiva os povos indígenas em situações de isolamento
podem ser considerados como parte do exterior constitutivo do fenômeno de expansão global
do capitalismo. Nas palavras de Hall (2009, p. 44-45, grifo nosso):
É precisamente essa “dupla inscrição” – que rompe com as demarcações claras
que separam o dentro/fora do sistema colonial, sobre as quais as histórias do
imperialismo floresceram por tanto tempo – que o conceito de “pós-colonial”
traz à tona. Consequentemente, o termo “pós-colonial” não se restringe a
descrever uma determinada sociedade ou época. Ele relê a “colonização”
como parte de um processo global essencialmente transnacional e
transcultural – e produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou “global” das
grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação. Seu valor
teórico, portanto, recai precisamente sobre sua recusa de uma perspectiva do
“aqui” e “lá”, de um “então” e “agora”, de um “em casa” e “no estrangeiro”
[...] “Global” neste sentido não significa universal, nem tampouco é algo
específico a alguma nação ou sociedade. Trata-se de como as relações
transversais e laterais que Gilroy denomina “diaspóricas” (GILROY, 1993)
complementam e ao mesmo tempo des-locam as noções de centro e periferia,
e de como o global e o local reorganizam e moldam um ao outro. Como Mani
e Frankenberg afirmam, o “colonialismo”, como o “pós-colonial”, diz
respeito às formas distintas de “encenar os encontros” entre as sociedades
colonizadoras e seus “outros” – “embora nem sempre da mesma forma
ou no mesmo grau” (Mani e Frankenberg, 1993, p. 301 apud (HALL, 2009,
p. 102-103).
89
Vejamos então, na seção seguinte, detalhes mais específicos sobre este processo
histórico-relacional entre Estados-Nação e povos indígenas, marcado pelas dinâmicas da
colonização e do colonialismo orientados pelo que denominados de cosmologia excludente.
2.2.2 A cosmologia excludente: soberanias estatais contra soberanias indígenas;
O mundo hoje é dominado pelo sistema de estados soberanos. Um grupo de
193 unidades políticas homogêneas do ponto de vista institucional – os estados
– exerce seu poder político sobre os recursos econômicos, sociais e culturais
de toda a humanidade. O planeta inteiro foi recoberto com esse sistema, que
reclama para suas unidades políticas uma exclusividade territorial, isto é:
nenhuma outra unidade política pode disputar o exercício da autoridade. Esse
é um dos principais significados que o mainstream conservador e
estadocêntrico da disciplina Relações Internacionais atribui à expressão
‘relações internacionais’: um sistema de relações entre Estados soberanos
(URT, 2015, p. 11).
Tendo visto as contribuições que a perspectiva pós-colonial trouxe para o estudo da
dimensão internacional/global dos assuntos indígenas, nesta seção pretendemos analisar
brevemente o debate já em curso sobre como “a reprodução do modelo europeu de soberania
contribuiu para ocultar as soberanias indígenas” (URT, 2015, p. 40). Com isto, nosso objetivo
não é o de nos aprofundarmos no debate sobre as características das soberanias indígenas e as
possíveis implicações de seu reconhecimento em âmbito nacional e/ou internacional. Este
frutífero debate, que já se encontra em estágio bastante avançado na literatura internacional,
adquire contornos ainda mais complexos quando pensado em relação aos povos indígenas em
situações de isolamento. Ou seja, se já é desafiador pensar as características e propriedades da
soberania no caso de grupos indígenas organizados e articulados politicamente, com atuação
nos âmbitos nacional e internacional, aplicar estas reflexões ao caso dos PII ultrapassa as
possibilidades desta seção e, embora seja um tema relevante, não constitui os objetivos desta
pesquisa.
Nosso intuito aqui, portanto, é analisar como o processo de construção das soberanias
estatais, associado à negação das soberanias indígenas, constitui um dos elementos que
influenciaram na trajetória macro-histórica e na situação contemporânea dos povos indígenas
em situações de isolamento na Amazônia brasileira.
Assim, devemos iniciar ressaltando que desde o início dos processos de colonização
europeia ao redor do mundo até a atualidade, os Estados-Nação coloniais e pós-coloniais –
90
orientados por uma cosmologia72 excludente – não reconheceram e/ou não respeitaram a
soberania político-territorial dos povos indígenas. Associado aos fenômenos já identificados
como colonialidade do poder, do saber e do ser, e colonialismo interno, destaca-se ainda que
um mecanismo fundamental por meio do qual se deu este processo de múltiplas exclusões foi
o próprio confronto direto entre as soberanias estatais e as soberanias indígenas. Nota-se, assim
que os processos de colonização e de expansão global do sistema europeu de Estados se
fundaram através da invasão e incorporação de territórios indígenas, promovendo a espoliação
de seus recursos mediante a exploração e a escravização de populações nativas.
No decorrer destes processos, verifica-se que “a imposição da ordem europeia trouxe
completa desordem aos povos colonizados, desconectando-os de suas histórias, de suas
paisagens, de suas relações sociais, de seus modos próprios de pensar, sentir e interagir com o
mundo” (FANON, 1968, p. 30; SMITH, 1999, p. 28 apud URT, 2015, p. 12). Assim, o sistema
europeu de Estados, contemporâneo e caudatário do absolutismo monárquico e do direito divino
dos reis, fundamentou-se em uma cosmologia excludente, que identifica, subjuga e destrói
modos de vida distintos. Conforme observou Picq (2017, p. 348) “o estado moderno emerge
como fundamentalmente inadequado para reconhecer a amplitude de projetos políticos
alternativos”.
Esta cosmologia excludente baseou-se em um conjunto de princípios político-
filosóficos, os quais estipularam que a autoridade política e territorial são atributos exclusivos
do soberano (homem, branco, e europeu) – conforme preconizado pelas escrituras de “O
Príncipe”, “Leviatã”, “Seis Livros da República”, entre outras.
No século XVII, a instituição da soberania estatal tornou-se amplamente reconhecida
como fundamento da política doméstica e da internacional (JACKSON, 2007). O
governante era soberano, não devendo fidelidade a ninguém, e todos os seus súditos
lhe deviam lealdade pessoal e obediência (WATSON, 2004). Nesse contexto surge,
ainda, uma nova instituição: "O século XVII concebeu um novo conceito de direito
internacional, como um conjunto de regras concebidas por e para príncipes soberanos
para regular seus negócios uns com os outros." (WATSON, 2004, p. 266). Logo, a
comunidade europeia do século XVIII era um clube de soberanos, em que o direito
internacional era o livro de regras referente a esses Estados membros independentes
e juridicamente iguais (WATSON, 2004). (MENEZES, 2017, p. 37-38).
72 Reiteramos aqui a noção de cosmologia como sendo o conjunto de conhecimentos e práticas que explicam e dão sentido à vida de uma determinada comunidade humana. Em uma cosmologia encontram-se relacionadas ideias sobre o tempo, o espaço, a natureza, o aspecto sobrenatural, a organização social, a relação com outros povos/sociedades, entre outros elementos. Deste modo, a cosmologia orienta uma comunidade humana na explicação de suas origens (passado), na sua descrição do mundo (presente) e na determinação de como se portar neste mundo (futuro) (ALBERT, 2002; CUNHA, 2009).
91
Com o desenvolvimento destas premissas, a soberania foi instituída internacionalmente
como atributo exclusivo do Estado, e, assim, “nenhuma outra unidade política pode disputar o
exercício da autoridade” (URT, 2015, p. 11).
Uma constituição de sociedade internacional é um conjunto de normas,
mutuamente acordadas pelas entidades políticas que são membros da
sociedade, as quais definem os titulares da autoridade e suas prerrogativas,
especificamente em resposta a três questões: Quem são as entidades políticas
legítimas? Quais são as regras para se tornar uma dessas entidades políticas?
E quais são as prerrogativas básicas dessas entidades? (PHILPOTT, 2001
apud MENEZES, 2017, p. 36, nota 32).
Por meio destes mecanismos, identificados como “condições de estatalidade”, os
Estados criaram barreiras ao reconhecimento da autoridade de entidades políticas organizadas
em torno de modelos distintos daqueles que conformam os Estados europeus ocidentais,
participantes do acordo fundacional da própria soberania.
Philpott (2001) provê uma discussão ainda mais aprofundada sobre o conceito
de soberania. Esse autor nota que [...] a soberania envolve três componentes
básicos: 1) a autoridade — direito de comandar e, correlativamente, de ser
obedecido (hoje o direito é a base universal da soberania); 2) a supremacia —
o titular da supremacia é aquele que se encontra no lugar mais alto da
hierarquia organizadora da autoridade; e 3) a territorialidade — que define o
conjunto de pessoas sobre as quais o titular da soberania regula. Essa
autoridade, organizada sob a ideia de soberania, possui três faces: 1)
refere-se a quem são as entidades políticas; 2) diz respeito a quem pode
obter o status de entidade política legítima; 3) concerne a quais são as
prerrogativas básicas como membros. (MENEZES, 2017, p. 53-54).
Tendo como base estes princípios de identificação, alteridade, inclusão e exclusão, nota-
se que a expansão global do sistema europeu de Estados “se fez às custas de outras
cosmologias” (URT, 2015, p. 11-12). Para Picq (2017, p. 350) “a evicção europeia de terras
nativas para a formação do estado moderno dependeu da invalidação de sistemas de autoridade
[indígenas] existentes”. Deve-se ressaltar que esta base excludente não foi simplesmente o
resultado do ordenamento do mundo em torno da soberania estatal. Esta concentração de
autoridade política foi pensada como um fundamento de legitimidade para a expansão do
controle territorial. Cabe lembrar, neste sentido, que a constituição e o aprimoramento da noção
de soberania são posteriores ao início dos processos de colonização europeia das Américas.
Quando os europeus começaram a penetrar, de forma sistemática, continentes
e oceanos não europeus, a soberania estava convenientemente disponível
como uma instituição que fundamentaria a tomada legal do território
estrangeiro (JACKSON, 200773). Por meio do imperialismo europeu, a
soberania não apenas se tornou uma instituição global, mas também foi
reforçada em seus fundamentos: os imperialistas europeus preferiam um
73 JACKSON, Robert. Sovereignty: evolution of an idea. Cambridge: Polity Press, 2007.
92
domínio legal do território à incerteza de mantê-lo à força por meio da
competição com outros. Estavam, pois, inclinados a reconhecer os impérios
dos outros europeus, enquanto não reconheciam a maioria das autoridades
políticas não europeias (JACKSON, 2007) — que não eram organizadas
segundo seu imperativo de organização política em Estados soberanos. Logo,
o colonialismo, além de ter sido um fenômeno socioeconômico, foi um
regime internacional fundado na soberania (JACKSON, 198774). A
determinação da soberania no mundo era, então, derivada de um conceito
ocidental e especificamente liberal de Estado civil, que postulava certos
critérios antes que a personalidade internacional pudesse ser reconhecida, os
quais incluíam o (que era considerado pelos europeus como) padrão de
civilização, assim como um governo efetivo (JACKSON, 2007) (MENEZES,
2017, p. 39, grifos nossos).
Deste modo, postulou-se “que as autoridades não europeias não tinham reivindicações
válidas de soberania” e, assim, “naquele momento, sob o manto da soberania, replicava-se o
ímpeto de dominação europeia sobre povos de diferente civilização” (MENEZES, 2017, p. 40).
Though European colonialism, notably in the Americas, had existed for
a century and a half before Westphalia, that treaty codified the
principle that territories belonged to states, and that only states, thus,
had an unquestioned right to possess territories. Given that 'states'
encompassed only those entities which were admitted by tacit consent
to the international state system, and that these in turn were
overwhelmingly European, Westphalian sovereignty provided the
formula under which territories which did not 'count' as states
according to the criteria adopted by the European state system could
be freely appropriated […] by those which did count (CLAPHAM75,
1999, p. 522 apud MENEZES, 2017, p. 40).
A partir destes elementos, a literatura acadêmica dedicada ao tema denominado de
indigenous politics enfatiza que os povos indígenas detinham a soberania político-territorial
antes dos processos de colonização, e a exerciam mediante modelos próprios de organização
social, autoridade política e de relações interétnicas. Entretanto, nota-se que “uma vez
“indigenizadas”, as sociedades políticas nativas foram confinadas, desestruturadas,
enfraquecidas, parcialmente cooptadas, ludibriadas, coagidas, punidas, vencidas em batalha,
subordinadas, ignoradas e, sobretudo, territorialmente esbulhadas” (URT, 2015, p. 52). A partir
desta perspectiva, devemos ressaltar que a reconfiguração da teoria e da política
internacional/global não requer a atribuição de soberania aos povos indígenas, e sim o
74 JACKSON, Robert H. Quasi-states, dual regimes, and neoclassical theory: international jurisprudence and the
Third World. International Organization, v. 41, n. 4, p. 519-549, 1987. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2706757 . Acesso em: 05 fev. 2017. 75 CLAPHAM, Christopher. Sovereignty and the Third World State. Political Studies, v. 47, n. 3, p. 522-537. 1999.
Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9248.00215/pdf. Acesso em: 05 fev. 2017. 13 nov. 2014.
93
reconhecimento de que estes povos sempre foram detentores deste atributo, embora este ainda
lhes seja negado em seus múltiplos os âmbitos.
Ao questionar “por que então se afirmar que os povos indígenas possuem soberanias?”,
Urt (2015, p. 15-16), observa vários motivos:
O primeiro deles é que a essência da soberania é o exercício do autogoverno.
Esse é seu conteúdo, que na história humana manifestou-se de inúmeras
formas. A soberania territorialista e estatal, criada na Europa moderna é
somente um tipo, entre centenas de arranjos inventados pela mente humana.
Recusar que os povos indígenas tenham suas formas próprias de autogoverno,
isto é, meios de decidir coletivamente os rumos de suas vidas, só pode derivar
de premissas racistas, pois o autogoverno é um atributo das coletividades
humanas [...] O segundo motivo é que mesmo quando uma soberania deixou
de ser exercida de fato, isso não significa que ela cessou de existir de direito.
Enquanto houver povos indígenas protestando pela garantia de seu
autogoverno - fato que ocorre desde o século XVI - pode-se dizer que existem
soberanias indígenas. A recusa das soberanias indígenas pode ser considerada
uma forma de "violência jurídica" (PICQ, 2013, p. 127) tão antiga quanto o
estabelecimento de Estados autoidentificados como soberanos sobre os
territórios indígenas. [...] Além disso, a existência dos povos indígenas
enquanto unidades políticas é anterior à existência dos Estados que se
estabeleceram sobre seus territórios. Não importa que suas soberanias tenham
sido diminuídas; elas não foram destruídas (KALT; SINGER, 2004, p. 7)
(URT, 2015, p. 15-16).
Portanto, “essas sociedades políticas não foram destruídas. Logo, preservam uma
soberania de direito. Esse é o sentido de empregar a palavra “ocultamento” das soberanias
indígenas” (URT, 2015, p. 52, grifo nosso):
O que chamo aqui de ocultamento da soberanias indígenas equivale ao que
Bodley (1988) chamou de "perda da autonomia". Na prática, a autonomia é
perdida quando (a) um povo indígena é privado de suas forças armadas, isto
é, quando não é mais capaz de expulsar invasores externos, nem manter o
monopólio do uso legítimo da força para regular seus assuntos internos, mas
também (b) quando o povo é submetido à escolarização, à imposição do
sistema judiciário nacional, do serviço militar nacional obrigatório e do
pagamento de impostos ou (c) quando políticos ou burocratas estatais são
designados para administrar e exercer autoridade sobre os territórios
indígenas, bem como por meio da imposição (BODLEY, 1988, p. 31 apud
URT, 2015, p. 52).
Neste sentido, veremos mais adiante nesta pesquisa que os avanços políticos e institucionais no
reconhecimento legal e formal de direitos aos povos indígenas, nos âmbitos nacional e
internacional, são ainda deliberadamente limitados de modo a não conceder plena autonomia
política e territorial a estes povos. Não obstante o fato de que “o acesso à autonomia,
autodeterminação ou autogoverno, o que no meu entendimento, pode ser traduzido como
soberania, é uma importante pauta do movimento indígena transnacional” (URT, 2015, p. 16),
o modo como o direto à autodeterminação está institucionalizado no regime internacional de
94
direitos dos povos indígenas ainda exclui a possibilidade de reconhecimento pleno das
soberanias indígenas76. Veremos que a cosmologia excludente foi ratificada por todos os
documentos internacionais sobre direitos dos povos indígenas, que, não obstante sua grande
importância no reconhecimento de direitos, mantêm a autodeterminação e as autonomias
indígenas como subordinadas às soberanias estatais. Este aspecto será analisado
detalhadamente no próximo capítulo.
Isto se verifica devido à grande resistência dos Estados – autoproclamados detentores
exclusivos da autoridade política – em levar adiante o processo de descolonização. Os
argumentos estatais concentram-se na hipótese de que a concessão de soberania ou mesmo de
status político aos povos indígenas geraria uma onda de movimentos separatistas. Na nossa
perspectiva, é preciso reconhecer, mas também questionar e problematizar tal hipótese,
fundamentada nas premissas da teoria realista das Relações Internacionais.
É preciso reconhecer esta hipótese porque, de fato, certamente haverá reivindicações
separatistas de determinados povos indígenas em relação aos Estados nacionais nos quais estão
contidos. Entretanto, a maior parte dos casos em que os povos indígenas têm o interesse de se
separarem dos Estados-Nação onde estão localizados, já é conhecida, pois, estes povos já o
declaram abertamente este interesse, alguns há bastante tempo. Ou seja, não é o reconhecimento
da soberania dos povos indígenas que motiva o interesse separatista.
Mesmo assim, ainda é preciso questionar se este ímpeto separatista é ou seria um
fenômeno generalizado ou mesmo de proporções significativas, caso os Estados reconhecessem
o direito dos povos indígenas à plena autodeterminação, ou seja, a se separarem dos Estados
nacionais, caso assim desejem. Aí se encontra um tema de pesquisa interessante: mapear os
povos indígenas que declaram o interesse de se tornarem independentes dos Estados-Nação, e
constituírem formas próprias de governo e de autoridade político-territorial.
No mesmo sentido, outra questão indispensável é se há um conflito obrigatório entre o
reconhecimento de soberanias indígenas e a manutenção das soberanias estatais. Ou seria
possível a construção de soberanias compartilhadas e cooperativas entre Estados e povos
indígenas? Há exemplos de Estados que reconhecem a autoridade, a autonomia ou a soberania
de comunidades indígenas? Quais foram os termos destas negociações e que resultados estes
processos geraram?
76 Este tema será verificado e discutido no decorrer do Capítulo 3, especialmente nas análises sobre a Convenção n.º 169 da OIT e sobre a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas.
95
Várias outras questões decorrem desta tese. Muitas destas questões tratam de quais
seriam as características das soberanias indígenas e como estas se relacionariam com as
soberanias estatais, por exemplo: Quais benefícios e responsabilidades o reconhecimento de
soberanias indígenas traria para os Estados? E para os próprios povos indígenas? Um ponto
específico é: se reconhecidas as soberanias indígenas, a proteção destes territórios continuaria
sob responsabilidade dos Estados? Ou seja, o Estado deveria evitar que seus cidadãos e os
interesses econômicos (que compõem o próprio Estado) violem a soberania político-territorial
dos povos indígenas? Daí certamente surgiria a questão: Por que os Estados deveriam dispor
de seus recursos para proteger os territórios indígenas? Estas questões se tornam mais difíceis
ainda nos casos em que os povos indígenas desejem a total independência dos Estados-Nação.
Territorialidades indígenas desafiam não apenas a autoridade individual dos
estados dentro das fronteiras nacionais, mas a organização da política global
em torno da soberania. De fato, demandas indígenas buscam tanto a
redistribuição de direitos quanto o desarraigamento da concentração de poder
no estado (PICQ, 2017, p. 347).
Enfim, são múltiplas as possibilidades teóricas e políticas provocadas pela inserção dos
assuntos indígenas na análise da política desde o âmbito local, ao nacional e global. Como dito
anteriormente, não é nosso objetivo, nem temos a possibilidade de analisar profundamente estas
questões, tendo em vista que no caso dos povos indígenas em situações de isolamento tais
discussões, embora façam todo sentido, se torna ainda mais complexas, e certamente constituem
interesse de pesquisa futura.
Os desafios teóricos e políticos impostos pelo reconhecimento das soberanias indígenas
em âmbito global, entretanto, não podem continuar ocultando o fato de que, a “soberania
política pode exprimir-se de formas diferentes nos diferentes mundos culturais. Descolonizar
o pensamento social [...] implica levar a sério outras concepções de política” (URT, 2015,
p. 16, grifo nosso).
Para Picq (2017, p. 361) “de fato, a política indígena na América Latina apoia noções
de que a soberania não é inerentemente territorial ou invariavelmente baseada no estado”. Para
esta autora, “é precisamente devido à ameaça que ela [a política indígena] representa para a
soberania, que os estados resistem intensamente à autodeterminação nas negociações globais”.
É necessário reconhecer que:
Outros tipos de sociedades políticas (polities) exercem poder em determinados
espaços do planeta. Os povos indígenas compõem alguns desses grupos étnicos cujas
cosmologias orientam os processos de tomada de decisão, não apenas sobre o uso e a
gestão do território, mas sobre a vida em geral. Assim, são de fato atores da política
global. As lutas indígenas pelo mundo, muitas das quais têm desafiado com sucesso
96
as soberanias estatais, impactam a política global de maneira significativa e sugerem
caminhos para um mundo pós-nacional (PICQ, 2014, p. 125 apud URT, 2015, p. 12).
Assim, reitera-se o consenso evidente na literatura internacional sobre políticas
indígenas: é preciso expandir a linguagem da política global para além do Estado, inclusive
contra os interesses de autopreservação do Estado como única fonte de autoridade política e
territorial. Pudemos notar também – com as reflexões de cunho teórico elaboradas nas últimas
seções – que os processos de colonização, formação dos Estados nacionais, desenvolvimento
do capitalismo e os processos de dominação, usurpação territorial, e de violência sistêmica
contra os povos indígenas são estreitamente relacionados, e, assim, têm reflexos sobre a
configuração atual das relações mundiais de poder. De acordo com Fernandes (2007, p. 77), o
Estado-Nação e a soberania, e os movimentos nacionalistas que estes geraram são as
construções sociais que fundamentaram os maiores dramas da humanidade.
Daí decorre uma das principais razões para a busca pela superação do paradigma
estadocêntrico de compreensão e ordenamento do mundo. A soberania é, portanto, o princípio
organizador das sociedades humanas, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Deste
modo, a soberania é o motor da sociedade, e não a economia, ou o mercado, pois a soberania
está por detrás destes. Neste sentido, estrutura global de poder, baseada na soberania, tem
reflexos diretos e indiretos sobre os PII à medida em que, como vimos na introdução desta
pesquisa, as principais ameaças à sobrevivência e à autodeterminação destes povos estão
ligadas às dinâmicas de expansão do capitalismo global, que, por sua vez, é fruto de dinâmicas
macro-históricas globais que procuramos evidenciar neste capítulo.
A atenção à indigenidade é valiosa para as RI porque empodera novas formas
de pesquisa crítica. São pelo menos duas as contribuições das formas
indígenas de vivenciar. Primeiro, envolver perspectivas etnográficas visibiliza
formas de fazer RI para além de Vestfália que tendem a ser invisibilizadas.
Em segundo lugar, experiências indígenas desestabilizam pressupostos sobre
o que constitui o internacional. A indigenidade é uma categoria chave de
análise para romper o estadocentrismo. Em particular, é um local estratégico
para o desenvolvimento de contra-narrativas que transgridam as fronteiras
disciplinares (PICQ, 2017, p. 364).
Ainda de acordo com esta autora:
A indigenidade, como uma categoria colonial central para a construção do estado,
fornece ferramentas para historicizar o estado e a soberania. Além disso, se
epistemologias de-coloniais são um ponto de partida indispensável para ir além do
estadocentrismo europeu, experiências indígenas complementam a teoria com a práxis
(PICQ, 2017, p. 348).
97
Passemos, então à apresentação das perspectivas e procedimentos metodológicos que
foram adotados nesta pesquisa, a fim de contribuir com este debate a partir dos conhecimento
sobre a temática dos povos indígenas em isolamento.
2.3 Perspectivas e Procedimentos Metodológicos;
Embora não possuindo uma metodologia rigorosamente unificada, os estudos
pós-coloniais têm um objeto de investigação bem claro: querem estudar os
confrontos entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja,
estudar a marginalidade colonial, considerada segundo uma perspectiva
espacial, política e cultural [...] Os esquecidos levantam a cabeça e começam
a falar, contando suas histórias de marginalidade e de esquecimento. A cultura
vira-se para as margens e transforma-se numa praxe de sobrevivência.”
(NEVES, 2009, p. 235-236).
Esta pesquisa tem como objetivo central promover uma revisão macro-histórica e
interdisciplinar sobre a situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento na
Amazônia brasileira. Se tornam indispensáveis, portanto, as seguintes questões: O que é uma
análise macro-histórica? Como esta perspectiva foi aplicada na pesquisa? O que é a
interdisciplinaridade? E, como o diálogo interdisciplinar foi realizado nesta pesquisa?
Conforme apontado na introdução, consideramos que a perspectiva macro-histórica
consiste na observação de um período de longa duração, a fim de identificar e compreender
como determinados fenômenos e dinâmicas se processam no decorrer de tal período. Neste
sentido, verificamos que os objetivos, a pergunta e a hipótese trabalhadas nesta pesquisa se
inserem em um debate já existente sobre o confronto de narrativas acerca dos genocídios
indígenas nas Américas, tendo como marco temporal inicial o ano de 1492.
A interdisciplinaridade, por sua vez, é entendida aqui como a busca pela integração de
conhecimentos (temas, conceitos, teorias e/ou metodologias) oriundos de diferentes áreas a fim
de compreender um determinado assunto, fenômeno ou problemática. Neste sentido, não há
restrições temáticas ou metodológicas à prática da interdisciplinaridade, à medida que as
próprias perguntas e objetivos de cada pesquisa indicam quais áreas de conhecimento devem
ser consultadas e como tais conhecimentos se relacionam. No caso deste estudo, nossa
perspectiva interdisciplinar consistiu basicamente no diálogo com a Antropologia e com a
História Indígena, a fim de apontar a necessidade e as possibilidades decorrentes da inserção
destas áreas e de seus horizontes empíricos na área de conhecimento de Relações Internacionais.
Nas duas seções seguintes, então, nos dedicaremos a aprofundar o estudo da perspectiva
macro-histórica e da interdisciplinaridade, bem como seus desenvolvimentos na presente
98
pesquisa. Neste momento, porém, consideramos necessários realizar alguns apontamentos e
esclarecimentos. Primeiramente, discorreremos sobre quais são os objetivos da abordagem
metodológica escolhida, ou seja, o que pretendemos compreender e explicar através da
interdisciplinaridade e da perspectiva macro histórica. Em seguida faremos breve
esclarecimentos sobre aspectos formais da tese.
A explicação constitutiva e a explicação causal
O primeiro assunto considerado indispensável no âmbito da abordagem metodológica,
diretamente relacionado também a questões epistemológicas, é o debate entre positivismo e
pós-positivismo. Dada a recorrência deste debate, e a vasta literatura existente sobre o mesmo,
nos concentraremos na perspectiva exposta por Wendt (2012) acerca das diferenças entre a
escolha de uma explicação causal e de uma explicação constitutiva acerca do fenômeno que
pretendemos estudar: a situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento na
Amazônia brasileira.
De acordo com Wendt (2012, p. 103-104) a perspectiva causal é identificada através de
uma pergunta de pesquisa do tipo “por quê?”, enquanto na perspectiva constitutiva questiona-
se “como?” e “o quê?”. Ainda de acordo com este autor, as explicações causais, de natureza
positivista, se caracterizam por “dizer que “x causa y””, e, para que esta afirmação seja possível,
pressupõe-se que “(1) x e y existem independentemente um do outro, que (2) x precede y
temporalmente e que, (3) se não fosse por x, y não teria ocorrido”. Para os adeptos desta
perspectiva positivista causal, “há uma distinção entre sujeito e objeto” e “a ontologia da vida
social é coerente com o realismo científico”, ou seja, as “formas sociais são um fenômeno
materialmente fundamentado, auto-organizável, com poderes e arranjos intrínsecos que existem
de forma independente das mentes e/ou discursos daqueles que as conhecem” (WENDT, 2012,
p. 102). Neste sentido, “Para os positivistas, a única pergunta legítima que os cientistas podem
fazer é “por quê?” (WENDT, 2012, p. 110).
Por outro lado, na perspectiva pós-positivista e constitutiva, assumida nesta pesquisa,
“as ideias desempenham um papel na constituição das formas sociais” e, assim, os objetos de
estudo das ciências sociais “ontologicamente, não existem independentemente de práticas
instruídas” por “elementos descritivos e relacionais”. Em outras palavras, concordamos com
Wendt (2012, p. 103) que as estruturas ideacionais influenciam na caracterização da realidade,
que, deste modo, é construída socialmente. Entretanto, o caráter intersubjetivo da realidade
social não pressupõe a inexistência da base empírica dos fenômenos estudados. Segundo Wendt
99
(2012, p. 111) as explicações “constitutivas devem ser avaliadas com base em evidências
empíricas, do mesmo modo que as causais” posto que “nem todas as interpretações são
igualmente válidas, e, assim, no final das contas, a investigação constitutiva enfrenta o mesmo
problema epistemológico que a investigação causal”, a saber, a verificação da validade do
conhecimento produzido.
Portanto, não estamos aqui a adotar uma postura que Wendt (2012, p. 102) chama de
“antirrealista”, ou seja, que “os cientistas sociais não podem explicar como a sociedade
funciona”. Na nossa perspectiva, a intersubjetividade não impossibilita a elaboração de
explicações causais, mas, por sua vez, as explicações causais também não retiram o caráter
intersubjetivo da realidade.
Tendo em vista o assunto e a proposta desta pesquisa, poderíamos propor uma
explicação causal para a situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento na
Amazônia brasileira. Inclusive, se bem elaborada, esta abordagem não apresentaria dificuldades
em ser demonstrada. Nestes parâmetros, o estabelecimento e a expansão territorial do Estado-
Nação (colonial português/pós-colonial brasileiro) (x) causou genocídios e movimentos
diaspóricos dos povos indígenas (y). Pelas regras da causalidade, o Estado brasileiro e os povos
indígenas existem, independentemente um do outro, ainda que possuam relações históricas. O
estabelecimento e a expansão do Estado precedem, ao longo do tempo, a ocorrência dos
genocídios e movimentos diaspóricos. E, na análise contrafatual, sem a existência do Estado
não ocorreriam os genocídios e movimentos diaspóricos dos povos indígenas, certamente não
desta maneira.
Porém, no que esta abordagem poderia resultar, senão na indicação de vítimas e
culpados, em uma relação composta por sujeitos (os não índios) e objetos, passivos, (os
indígenas). Conforme já discutimos, o objetivo desta pesquisa não é fazer acusações, nem
avaliar responsabilidades, tarefa sobre a qual a literatura existente já é abundante. Nosso
objetivo é reinterpretar este processo, de modo a avaliar suas consequências especificamente
para os povos indígenas em situações de isolamento.
Logo, consideramos mais adequada a abordagem segundo a qual “as ideias constituem
situações sociais e o significado das forças materiais” (WENDT, 2012, p. 103). Observemos o
seguinte trecho elaborado por este mesmo autor:
Na medida em que as perguntas “como?” e “o quê?” são utilizadas para
responder a uma pergunta “por quê?”, fazem parte de uma explicação causal,
mas responde-las também pode ser um fim em si. Algumas perguntas
“como?” são diretamente causais, por exemplo, “como a Segunda Guerra
Mundial teve início?”. [...] No entanto, outras perguntas “como?” tomam a
100
forma de “como foi possível?” – por exemplo, “como a Segunda Guerra
Mundial foi possível?”, o que não é um pedido de explicação causal, da
mesma forma que perguntas “o quê?”, como “o que é soberania?”. Em vez de
perguntar “como” ou “por que” um elemento x temporalmente anterior
produziu um elemento y que existia independentemente, as perguntas “como
foi possível?” e “por quê?” são exigências para a explicação das estruturas que
constituem x ou y em primeiro lugar (WENDT, 2012, p. 108).
Com base nesta abordagem, nosso estudo pretende compreender o que Wendt (2012, p.
109) chamou de “estruturas internas” (constitutivas) e “estruturas externas” (discursivas) dos
processos históricos que conformam a situação contemporânea dos povos indígenas em
isolamento na Amazônia brasileira.
No entanto, do mesmo que a realidade não é passível de representações objetivas,
absolutas, também não é possível realizar um isolamento das causas associadas às “estruturas
internas” e “estruturas externas” de um processo histórico. Ou seja, no decorrer da pesquisa,
estarão presentes as relações causais deste processo. No entanto, não é nosso objetivo,
demonstrar quais são estas relações causais e por meio de quais mecanismos elas atuam. Deve-
se ressaltar, então, a observação de que
grande parte do trabalho realizado nas ciências sociais por interpretativistas,
teóricos críticos e pós-modernos lida primeiramente com perguntas
constitutivas, o que gera equívocos quando são julgadas por padrões de
perguntas causais (WENDT, 2012, p. 110).
Aspectos formais – A Estrutura da tese
Conforme mencionamos anteriormente, de acordo com Ballestrin (2013, p. 90), “a
identificação e a superação da colonialidade do poder, do saber e do ser, apresenta-se como um
problema desafiador a ser considerado pela ciência e teoria política estudada no Brasil”, sendo
necessário, neste sentido, superar o “universalismo etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o
nacionalismo metodológico, o positivismo epistemológico e o neoliberalismo cientifico
contidos no mainstream das ciências sociais” (idem, p. 109),
Estando de acordo com estas considerações, é preciso reconhecer e problematizar o fato
de que esta pesquisa não logrou alcançar todos estes desafios, o que se torna evidente pela
própria estruturação da tese. Muito embora tenhamos enfrentado o que a autora chama de
universalismo etnocêntrico, eurocentrismo teórico e neoliberalismo científico, consideramos
que não fomos capazes de superar o positivismo epistemológico e não encontramos alternativas
ao nacionalismo metodológico. As razões destas observações são as seguintes.
Há nesta pesquisa pelo menos algumas contradições. Uma delas se deve ao fato de que
estamos identificando a violência epistêmica do colonialismo, especificamente da colonialidade
101
do saber, entretanto, estamos reproduzindo o formato mais tradicional e conservador de
produção do conhecimento que é típico desta colonialidade. Isto se refere especificamente a
este primeiro capítulo da tese. Todavia, está em nossa defesa o fato, já citado, de que o tema
dos povos indígenas em isolamento é pouco ou nada explorado para além da área de
Antropologia, o que nos trouxe reais dificuldades para a concepção e a estruturação desta tese.
Assim, foi o nosso objetivo de contribuir para uma inserção consistente dos assuntos
indígenas, em geral, e da temática dos povos em isolamento, especificamente, na área de RI,
que nos levou a optar por este tipo de estrutura da tese. Não porque quiséssemos reproduzir o
formato tradicional, nem pela suposta segurança acadêmica que isto poderia oferecer, mas sim
porque foi considerado necessário apontar como os assuntos indígenas, embora silenciados,
estão intrinsecamente presentes na epistemologia, na teoria, na metodologia, e na literatura da
área de Relações Internacionais. Deste modo, muito embora não estejamos praticando
radicalmente a desobediência epistêmica, definida por Mignolo (2008)77, talvez estejamos
contribuindo para que esta tarefa seja mais viável para aqueles que futuramente vierem a se
dedicar ao mesmo assunto.
Por fim, entendemos como nacionalismo metodológico, apontado por Ballestrin (2013,
p. 109), a perspectiva que toma como referência sempre o Estado nacional, sua
institucionalidade, sua trajetória histórica, e suas implicações. De fato, este fenômenos é
presente, não só nas ciências sociais, mas, com ênfase ainda maior, na área de Relações
Internacionais. Daí surge outra contradição desta pesquisa. O tema dos povos indígenas em
isolamento sugere, ou melhor, demanda, uma perspectiva diferente deste nacionalismo
metodológico. Afinal, estes povos não reconhecem fronteiras, muito menos baseiam suas vidas
nesta institucionalidade. Há recorrência de deslocamentos transfronteiriços destes povos,
sobretudo nas regiões de fronteira entre Brasil e Peru. Além disso, diversos problemas que
transcendem as fronteiras nacionais, como a expansão territorial da exploração capitalista sobre
a Amazônia, e as mudanças climáticas, por simples exemplo, afetam estes povos,
independentemente do Estado no qual se localizem. Logo, o paradigma estadocêntrico é
insuficiente para se compreender a problemática dos povos indígenas em isolamento, e incapaz,
enquanto aparato político-administrativo, de produzir unilateralmente as ações necessárias para
a proteção dos direitos humanos destes povos e para o respeito à sua autodeterminação.
77 Mignolo (2008, p. 288) aponta como definição de desobediência epistêmica o seguinte trecho, contido no trabalho de Quijano (1992, p. 447), intitulado “Colonialidad e Modernidad/Racionalidad”: “desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitivo con todo poder no constituido en la decisión libre de gentes libres”.
102
Todavia, nossa justificativa é a de que a abordagem e a abrangência propostas nesta
pesquisa não nos possibilitaram ir além da perspectiva nacional, seja ultrapassando os limites
do Brasil, seja analisando o tema a partir de outras categorias, que não fossem o Estado
brasileiro, a política indigenista estatal e sua trajetória. Além disso, consideramos que não há
como transcender um paradigma sem compreendê-lo. A partir da compreensão deste, pode se
tornar possível transformá-lo, de modo a considerar justamente os elementos que foram
excluídos. Trata-se, portanto, de compreender o exterior constitutivo do Estado-Nação (os
povos indígenas, em geral, e os povos em isolamento, especificamente), a fim de transformar
os padrões de constituição e de funcionamento do próprio Estado-Nação e da política global.
É nestes sentido que afirmamos o seguinte: os povos indígenas em isolamento na região
amazônica constituem um assunto fronteiriço, por essência, não apenas porque envolve
diferentes noções de fronteira (estatais, étnicas, civilizacionais, ecológicas, fronteiras da
expansão capitalista), mas, principalmente porque a problemática em questão desafia e
pressiona todas estas fronteiras. Inclusive, e sobremaneira, as fronteiras do conhecimento
científico.
Citações
Outra observação considerada relevante diz respeito ao estilo de escrita, tendo em vista
as regras científicas e as preferências do autor. Trata-se, mais precisamente, do modo como
utilizamos as citações bibliográficas.
Optamos pelo uso praticamente exclusivo de citações diretas, de preferência trechos ou
parágrafos nos quais possamos identificar o contexto abordado pelo autor ou pela autora, e o
raciocínio ou argumento ali exposto. O motivo desta escolha é a recusa de nos apropriarmos de
ideias ou mesmo de simples expressões, utilizadas fora de contexto apenas para sustentar um
argumento ou ponto de vista. Salvo possíveis equívocos de interpretação, tal estratégia foi
sistematicamente evitada nesta tese. Deste modo, mesmo as citações indiretas, ainda que
consideradas um método legítimo, restringiram-se a pouquíssimos casos, nos quais foi
necessário fazer um resumos de ideias gerais ou identificar a convergência de autores sobre
determinado assunto ou argumento. As razões desta postura são, basicamente, a tentativa de
elaboração de pensamentos e argumentos próprios deste autor, ainda que mediante o diálogo
constante e direto com os autores consultados.
No mesmo sentido, deve-se destacar também a escolha de iniciar as sessões quase
sempre por uma citação bibliográfica. Este recurso tem por objetivo apresentar tacitamente
103
quais temas serão abordados naquela seção, e, principalmente, qual é a perspectiva do autor
sobre estes temas. Além disso, visto que o conhecimento é aqui entendido como um processo
dialógico contínuo, o fato de iniciarmos as sessões pelas palavras de outros autores também
pretende representar que esta pesquisa, por mais que tenha perspectivas e abordagens próprias,
dá continuidade a reflexões precedentes, sem as quais nem mesmo as contribuições originais
seriam possíveis.
Feitas estas considerações, passemos, então, à discussão sobre como a
interdisciplinaridade foi concebida e promovida nesta pesquisa.
2.3.1 Interdisciplinaridade: Antropologia e Relações Internacionais;
Percebida como um particularismo local desconectado do internacional, ou
muito vernacular para ser digna de categorizações universais, a indigenidade
continua a ser majoritariamente negligenciada pelos pesquisadores de RI.
Povos indígenas parecem ser “relíquias”, mais relevantes para antropólogos
que estudiosos da política global. Depois de serem deixados de fora da história
por processos seletivos de construção de memória (O’BRIEN, 201078), os
povos indígenas foram silenciados na modernidade política (BEIER, 200979
apud PICQ, 2017, p. 342).
(...) devemos acolher também toda recuperação de informação em áreas
silenciadas, como está ocorrendo na antropologia, na ciência política, na
história e na sociologia (SPIVAK, 2010, p. 86).
Conforme apontamos na introdução desta tese, entendemos a interdisciplinaridade como
a busca pela integração de conhecimentos (temas, conceitos, teorias e/ou metodologias)
oriundos de diferentes áreas a fim de compreender um determinado assunto, fenômeno ou
problemática. Neste sentido, não há restrições temáticas ou metodológicas à prática da
interdisciplinaridade, à medida que as próprias perguntas e objetivos de cada pesquisa indicam
quais áreas de conhecimento devem ser consultadas e como tais conhecimentos se relacionam.
Entretanto, não deixa de ser necessária a indicação sobre quais temas, conceitos, teorias e/ou
metodologias de quais áreas do conhecimento foram utilizadas e de que modo foram
articuladas.
No caso desta pesquisa, a interdisciplinaridade consistiu basicamente no diálogo com a
Antropologia e com a História Indígena, a fim de apontar a necessidade e as possibilidades
decorrentes da inserção destas áreas e de seus horizontes empíricos na área de conhecimento de
78 O’BRIEN, Jean M. Firsting and Lasting: Writing Indians Out of Existence in New England. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2010. 79 BEIER, J. Marshall (Ed.). Indigenous Diplomacies. New York: Palgrave Macmillan, 2009.
104
Relações Internacionais. Especificamente, buscamos analisar como a problemática dos povos
indígenas em situações de isolamento na Amazônia vem sendo tratada no âmbito acadêmico e
no âmbito político nacional, regional, internacional/global, e quais desafios esta temática
específica apresenta para estes dois campos (acadêmico e político). Com isto, concordamos
que:
a rememoração de estórias como formas de conhecimento, por exemplo,
permite que histórias alternativas poderosas emerjam (MALLON, 2011). Se
o nascimento das RI é uma história sobre império na qual fronteiras raciais
importavam mais do que as territoriais, como alega Robert Vitalis (2010, p.
910), então é mais urgente ainda aplicar categorias como indigenidade para
revisitar conceitos fundacionais com outros olhos (PICQ, 2017, p. 344).
Neste sentido, há um conjunto de observações importantes a serem feitas sobre o estudo
de povos indígenas em isolamento, principalmente considerando a abordagem proposta nesta
pesquisa. O primeiro aspecto a destacar é que se trata de um assunto, senão inédito, pouquíssimo
estudado a partir das perspectivas teóricas, conceituais e temáticas da área de conhecimento de
Relações Internacionais. Este fato, por si só, gerou uma série de dificuldades em aprofundar as
análises e as reflexões sobre o assunto. Isto porque, antes de fazê-lo, se torna necessário,
frequentemente, apresentar determinados conceitos, características ou contextos próprios do
assunto. Além disso, conforme mencionado na introdução, o tema suscita grande quantidade de
questões ainda inexploradas, as quais nos sentimos convocados a apontar, muito embora não
seja possível dedicar-se à maioria delas. Deste modo, consideramos que uma das principais
contribuições desta pesquisa, inclusive em termos metodológicos, é o trabalho de identificar e
tentar mapear os múltiplos elementos que compõem o assunto dos povos indígenas em
isolamento, indicando assim, possíveis hipóteses e possibilidades de novas pesquisas.
Por que estudar especificamente os povos indígenas isolados?
Verificou-se que o estudo dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia
revela aspectos fundamentais da política global. Nota-se que o assunto é representativo, em
certa medida, do histórico das relações entre Estados-Nação e povos indígenas, de como estas
relações se configuram atualmente, e de quais são os desafios para o futuro. Isto porque todas
as etnias indígenas que mantêm contato permanente ou esporádico com as sociedades nacionais
já passaram, de alguma maneira, pela fase dos primeiros contatos, e cultivam memórias tanto
do período anterior, quanto dos processos de contato, de suas consequências, e sabem quais são
suas condições atuais perante a sociedade envolvente. Logo, estudar o assunto dos PIIRC é
significativo para se compreender as relações dos Estados-Nação e da civilização capitalista
105
globalizada para com os povos indígenas de modo geral. Além disso, entre as perguntas
trabalhadas no decorrer da pesquisa, deve-se destacar como o estudo da situação contemporânea
dos PII pode contribuir para a revisão de conceitos e de perspectivas teóricas das Relações
Internacionais e da própria política internacional/global. De acordo com Coronil (2005, p. 59)
O processo de globalização está desestabilizando não só as fronteiras geográficas e
políticas, mas também os protocolos disciplinares e seus paradigmas teoréticos. A
globalização evidencia os limites da divisão entre a modernidade e a pós-
modernidade, bem como as oposições entre o material e o discursivo, o econômico e
o cultural, a determinação e a contingência, o todo e os fragmentos que continuam
influenciando nossas práticas disciplinares. Mais que nunca, assim como os
fenômenos locais não podem ser compreendidos fora das condições globais em que
se desenvolvem, os fenômenos globais não podem ser compreendidos sem explicar as
forças locais que os sustentam. Com sorte, o esforço de dar sentido à relação entre o
que, por falta de melhor expressão, chamamos de a dialética entre localização e
globalização no contexto de condições de conhecimento e produção globalizadas, ao
descentralizar as epistemologias do Ocidente e ao reconhecer outras alternativas de
vida, produzirá não só imagens mais complexas do mundo, mas também modos de
conhecimento que permitam uma melhor compreensão e representação da própria
vida.
Como estudar os povos indígenas isolados?
Outro aspecto que merece atenção é a dificuldade e os problemas de se elaborar
conhecimento sobre povos com pouco ou nenhum contato com a sociedade envolvente,
produtora de ciência. São recorrentes as perguntas: Se estes povos estão isolados, então como
produzir conhecimento sobre eles? Quais são os fundamentos e qual é a validade deste
conhecimento? Questões ainda mais profundas e difíceis podem ser levantadas, por exemplo:
Quais conhecimentos estes povos têm sobre o mundo que os cerca? Qual é a importância destes
povos e de seus conhecimentos para a humanidade? Ou seja, por que defender a sua proteção?
Praticamente todas estas questões têm sido objetos de reflexão quase exclusivamente da
Antropologia, mesmo tendo implicações não só para outras áreas de conhecimento, como para
a humanidade de uma maneira geral.
Quanto às duas primeiras questões, conforme já apontamos brevemente na introdução,
não é plausível, a partir das teorias antropológicas, conceber a existência de sociedades
absolutamente isoladas, sem qualquer tipo de contatos ou de influências advindas de outras
sociedades. Neste sentido, todas as sociedades são frutos de “histórias cumulativas” (LÉVI-
STRAUSS, 1978) ou de “trocas socioculturais” (MAUS, 2003) sendo que as próprias
alteridades/identidades são construídas através de dinâmicas de absorção e rejeição de
elementos exógenos. De acordo com Gallois (1992, p. 122),
É difícil sustentar, em termos etno-históricos ou etnológicos, que os índios isolados
se mantiveram isolados da sociedade nacional desde a época do descobrimento até os
106
nossos dias e que representam as últimas sociedades humanas que ficaram à margem
de todas as transformações ocorridas na face da terra.
Por estes motivos, de acordo com Vaz (2011, p. 17) “a discussão sobre o uso do termo
isolado engloba questões relativas à impossibilidade de existir sociedades humanas que nunca
estabeleceram relações com outra”, daí, a necessidade de se agregar à discussão outros
parâmetros que possam explicar, historicizar e qualificar as características relacionais do
isolamento.
A discussão acerca do termo “isolados” pode ser considerada uma tradução por
comparação visto que se refere a uma série de contextos ou situações sociais
diferenciadas de povos indígenas. Sendo uma “tradução”, existe uma presunção de
diferenças ou equívocos inerentes à nossa relação e à relação de Estado com as
sociedades indígenas (Viveiros de Castro 2004), fundadas também num Direito
colonizador. Ou seja, ao definirmos e utilizarmos essa identidade ou categoria de
identidade de “isolados” como uma ferramenta analítica, simplificamos mundos
a partir do nosso entendimento de práticas e conceitos. No entanto, mesmo diante
dessas limitações, a possibilidade de refletir sobre povos indígenas “isolados” tem
permitido inovar conceitos, inclusive jurídicos, e compreender cosmologias sobre
os quais temos poucas referências cartesianas de conhecimento. No caso dos
“isolados” é evidente que a maior parte das, senão todas, comparações e conceituações
são feitas a partir daquilo que nos é “deixado” pelos indígenas, somado ao que nos
define enquanto sociedades externas devastadoras. (YAMADA; AMORIM, 2016, p.
43, grifo nosso).
Portanto, não podemos deixar de citar a obra de Albert e Ramos (2002), “Pacificando o
branco: cosmologias do contato no norte-amazônico”. Através dos conhecimento contidos nesta
obra, começamos a compreender que “o contato entre grupos humanos pressupõe, sempre,
alguma troca, seja de informações, de bens, de mulheres e homens ou de símbolos”
(OCTAVIO; AZANHA, 2009, p. 03).
um número significativo de antropólogos trabalhando com sociedades das
terras baixas sul-americanas tem-se voltado para o estudo dos fenômenos do
contato, a partir de diversas orientações metodológicas e teóricas que
configuram um vasto campo de investigação [...] Essas abordagens têm em
comum priorizar não apenas a descrição de aspectos tradicionais do campo
social e cultural, mas também o estudo das reações e adaptações que surgem
no contato interétnico e que se fazem acompanhar de transformações na
consciência histórica e política dos grupos estudados. Entre os temas que
permitem relacionar, de maneira inovadora, essas duas tarefas da pesquisa
etnológica, as representações sobre o contato são particularmente
significativas para a análise dos processos de construção político-simbólica
das identidades étnicas. Tal abordagem não se limita, portanto, ao resgate da
história do contato, mas se propõe a analisar o encontro intercultural
propriamente dito, dentro de contextos sociológicos, históricos e políticos
definidos (GALLOIS, 2002, p. 205).
Deste modo, a partir do conhecimento sobre as cosmologias do contato pudemos
compreender que “antes mesmo do contato em carne e osso com os brancos [...] os sinais
precursores [do contato] são objetos manufaturados e germes” (CUNHA, 2002, p. 7), tendo em
107
vista que "mesmo aqueles [grupos] ainda não alcançados pela sociedade nacional já sofreram
sua influência indireta, através de tribos desalojadas e lançadas sobre eles, e de bacilos, vírus
ou artefatos que, passando de tribo a tribo, alcançaram seus redutos” (RIBEIRO, 1986, p. 240).
Logo, os conhecimentos existentes sobre os povos indígenas em isolamento são fruto
de experiências passadas de contato, seja com as frentes de expansão da sociedade nacional,
seja com outras etnias indígenas, as quais atualmente são contatadas, e compartilham seus
conhecimentos sobre os povos indígenas em isolamento.
Observa-se, por exemplo, que muitos povos ou grupos isolados dominam a
técnica do uso de instrumentos de corte metálicos (machado e terçado) para a
derrubada de roçados, dentre outros usos. A apropriação dessa tecnologia não
é recente e demonstra que existiram (e existem) momentos de “relações” que
propiciaram e propiciam a obtenção dessas ferramentas e a apropriação do uso
dessa tecnologia pelos chamados “saques furtivos”. Contudo, apesar do desejo
ao acesso dessas ferramentas, esses povos parecem rechaçar qualquer
tentativa de contato físico e direto com a nossa sociedade. Tal postura ajuda a
traduzir suas expressões de autonomia e tomada de decisões (YAMADA;
AMORIM, 2016, p. 51).
As áreas da antropologia denominadas como etno-história e etnologia do contato
interétnico, são, inclusive, características distintivas da comunidade acadêmica brasileira desta
área de conhecimento, apesar de contarem também com severas críticas (VIVEIROS DE
CASTRO, 1999, p. 112).
um número significativo de antropólogos trabalhando com sociedades das terras
baixas sul-americanas tem-se voltado para o estudo dos fenômenos do contato, a partir
de diversas orientações metodológicas e teóricas que configuram um vasto campo de
investigação [...] Essas abordagens têm em comum priorizar não apenas a descrição
de aspectos tradicionais do campo social e cultural, mas também o estudo das reações
e adaptações que surgem no contato interétnico e que se fazem acompanhar de
transformações na consciência histórica e política dos grupos estudados. Entre os
temas que permitem relacionar, de maneira inovadora, essas duas tarefas da pesquisa
etnológica, as representações sobre o contato são particularmente significativas para
a análise dos processos de construção político-simbólica das identidades étnicas. Tal
abordagem não se limita, portanto, ao resgate da história do contato, mas se propõe a
analisar o encontro intercultural propriamente dito, dentro de contextos sociológicos,
históricos e políticos definidos (GALLOIS, 2002, p. 205).
Portanto, o fato do isolamento não impede, por si só, a existência de conhecimentos
sobre estes povos, ainda que tais conhecimentos sejam obrigatoriamente interpretativos e
incompletos. Assim, adentrando a temática específica dos PII, outra dimensão fundamental da
pesquisa é constituída pelos conhecimentos sobre a história e atuação dos sertanistas. Neste
campo, duas referências tiveram enorme contribuição para esta pesquisa: a tese de doutorado
intitulada “Sagas Sertanistas: práticas e representações do campo indigenista”, de Carlos
Augusto da Rocha Freire (2005), e o livro de Felipe Milanez (2015), “Memórias sertanistas:
cem anos de indigenismo no Brasil”.
108
Segundo Freire (2005, p. 10) os discursos dos sertanistas sobre as histórias e suas
experiências com os povos indígenas “preenchem o vazio da falta de documentação de setores
desprivilegiados da população e retratam uma época e as relações de poder nas quais os
sertanistas estavam envolvidos”. De acordo com o autor, este enfoque permite: a revelação de
conflitos não encontrados em documentos; a avaliação de momentos de mudança; a
interpretação das ações da FUNAI enquanto organização; a captação de visões de mundo e suas
formas de transmissão numa “categoria ocupacional” e na sociedade em geral; descoberta de
fatos graves, escondidos sob pressão de traumas que levam o indivíduo ao silêncio; e, o
questionamento da memória oficial dos órgãos governamentais, que fazem desaparecer
divergências de concepções (FREIRE, 2005, p. 10-11). Deste modo, de acordo com Milanez
(2015, p. 25):
Conhecer a atuação dos sertanistas [responsáveis pelo trabalho de atração e
pacificação dos povos indígenas] é parte fundamental para compreender a luta
dos povos indígenas por sobrevivência, e descobrir a violência com que agiu
o Estado brasileiro e todos aqueles que veem nos indígenas um obstáculo aos
seus interesses.
Ainda neste campo, e sobre suas relações com o processo de elaboração, implantação e
desenvolvimento da política pública específica para PIIRC, pudemos contar com os trabalhos
publicados por de Antenor Vaz (2011, 2013, 2014, 2016, 2017), que refletem seu conhecimento
e experiências vividas como sertanista e atualmente como consultor nacional e internacional de
políticas para PIIRC. Em conjunto, estas obras fornecem elementos textuais, documentais,
empíricos, informações, análises e interpretações que deram suporte fundamental a esta
pesquisa.
No mesmo sentido devemos ressaltar as publicações de Amorim (2016, 2017), que
como servidor da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da FUNAI,
oferece conhecimentos aprofundados não apenas sobre estes povos, e sobre as características
da política pública para os mesmo, mas, principalmente, sobre as condições das quais o órgão
estatal dispõe para cumprir suas funções. E, por fim, devemos ressaltar também o estudo da
própria institucionalidade desta política pública: o processo de concepção, elaboração, as leis,
a estrutura institucional, os princípios de atuação, além dos dados e informações oficiais que
foram de grande utilidade para esta pesquisa.
Por fim, apresentamos brevemente a seguir uma síntese das fontes através das quais
realizamos o diálogo interdisciplinar com área de antropologia. Estão estes materiais: 1)
Bibliografia acadêmica específica ou relacionada ao assunto dos povos indígenas em
isolamento, principalmente da área de Antropologia, sobre os seguintes temas: a) Etnologia do
109
contato interétnico e etno-história; b) Política indigenista brasileira e a política específica para
PIIRC; c) Características, casos e situações envolvendo PIIRC; 2) Artigos publicados por
(ex)sertanistas e por outras pessoas que trabalharam ou trabalham diretamente com a temática
dos índios isolados. Neste conjunto destacam-se três cartas-denúncia (2013, 2015, 2017)
publicadas por servidores da FUNAI/CGIIRC sobre a situação política, financeira e
administrativa do órgão; 3) Documentos institucionais e boletins periódicos de informações
sobre PII produzidos por organizações indígenas e indigenistas, brasileiras e internacionais; 4)
Documentos de organizações intergovernamentais, principalmente o ACNUDH, a CIDH e a
OTCA. Estas fontes de pesquisa foram apresentadas em maiores detalhes na seção sobre revisão
bibliográfica.
Cabe destacar, por fim, entre os documentos de organizações intergovernamentais que
tratam especificamente da temática dos povos indígenas em situações de isolamento: as
Diretrices de protección para los pueblos indígenas em aislamiento y em contacto inicial de la
región Amazónica, el Gran Chaco, y la región oriental de Paraguay, elaboradas pelo
ACNUDH (2012); As recomendações elaboradas pela CIDH (2013), com o título “Pueblos
indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial en las Américas: Recomendaciones para
el pleno respeto a sus derechos humanos”; e, os documentos elaborados a partir do Projeto da
OTCA de “Elaboração de uma Agenda Regional Comum para a Proteção dos Povos Indígenas
em Isolamento Voluntário e Contato Inicial”.
2.3.2 Análises Macro-Históricas: o Confronto de Narrativas sobre os Genocídios Indígenas;
Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência
do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, ‘o encontro’ de
sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto
de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-organismos,
mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição,
formas culturais da expansão do que se convencionou chamar o capitalismo
mercantil (CUNHA, 2012, p. 14).
Conforme apontado na introdução, consideramos que a perspectiva macro-histórica
consiste na observação de um período de longa duração, a fim de identificar e compreender
como determinados fenômenos e dinâmicas se processam no decorrer de tal período. Segundo
Steele (2004, p. 01-02):
A macrohistory takes a long view of history, looking at multiple societies and
nations over the course of centuries to reach broad-ranging conclusions about
the march of history. Using vast amounts of data – some verified but much of
it estimated – the macrohistorian makes conjectures based on averages. This
110
approach might appear to have the most interest on a general level, but often
loses sight of local and individual differences […] To do this, the
macrohistorians must look at averages. Whether using verified or estimated
data, they make general statements about a region, a state, even about a
continent.
Assim, um dos objetivos das análises macro-históricas, de acordo com Revel (2010, p.
435) é o de “apreender as realidades sócio-históricas dentro de quadros analíticos que as
ultrapassam amplamente e dos quais se esperava que fossem capazes de restituir a mais justa
perspectiva”. É precisamente por este motivo que, tendo o objetivo inicial de compreender a
situação contemporânea dos povos indígenas em situações de isolamento, nos deparamos com
a necessidade de abordar esta contemporaneidade como produto do que chamamos de sexto
século de genocídios e diásporas indígenas. Neste sentido, verificamos que os objetivos, a
pergunta e a hipótese trabalhadas nesta pesquisa se inserem em um debate já existente sobre o
confronto de narrativas macro-históricas acerca dos genocídios indígenas nas Américas.
De acordo com Revel (2010, p. 434):
Desde os anos de 1980, levar em consideração as escalas de observação
assumiu um lugar importante no debate dos historiadores. [...] No decorrer dos
anos de 1990, como que num efeito de balanço, a área de história global
pareceu voltar ao primeiro plano, com uma diversidade de proposições cujos
títulos podiam ser diferentes (World History, Global History, Connected
Histories, histoires croisées, até uma Big History), cujos pressupostos
metodológicos e programas não correspondiam exatamente entre si, mas que
tinham em comum o fato de reivindicar a necessidade de levar em conta os
fenômenos maciços, as longas durações, os espaços vastos. É oportuno
lembrar que o XIX Congresso de Ciências Históricas, realizado em Oslo em
2000, proclamava como seu primeiro tema de reflexão: “Perspectives on
Global History: Concepts and Methodology” (Perspectivas sobre a História
Global: Conceitos e Metodologia).
Inúmeras referências podem ser atribuídas como pertencentes ou subsidiárias a este
debate. Uma delas, de grande importância, é a obra seminal de Todorov (1983) “A conquista
da América: a questão do outro”. O trabalho de Brown (1976), “Enterrem meu coração na curva
do rio”, é também uma referência comumente citada sobre o tema. Neste campo macro-
histórico, podemos notar que o passado não é pacífico, as interpretações sobre este passado não
são pacíficas, como também não tem sido pacífica a transição para o presente desta história.
O genocídio foi cometido contra certos grupos étnicos, quer eliminando-os pelo
trabalho escravo ou compulsório, quer assassinando-os por sua resistência armada aos
dominadores. Tzvetan Todorov, se contrapondo a maioria dos historiadores, afirma
que esta invasão foi um verdadeiro genocídio, chegando a dizer que nenhuma das
grandes matanças do século XX pode ser comparada à hecatombe do XVI
(RAMPINELLI, 2013, p. 139).
111
Madley (2015, p. 98), em seu artigo intitulado “Reexamining the American Genocide
Debate”, embora esteja focalizando o caso específico dos povos indígenas nos Estados Unidos
da América, é um dos autores que afirmam que o cataclismo pelo qual passaram os povos
indígenas nas Américas está entre os maiores desastres de longa duração da história mundial.
Entre os termos utilizados no debate sobre o assunto nos Estados Unidos são: genocide debate,
colonial and murder states, e American holocaust. De acordo com este autor:
Native Americans suffered a catastrophic demographic decline following
sustained contact with Europeans. From a pre-contact population of perhaps
5,000,000 or more, the number of American Indians within the continental
United States and its colonial antecedents fell to some 240,000 individuals by
1880–1900. The cataclysm thus ranks among the major long-term population
disasters of world history. Some scholars assert that introduced diseases were
the primary cause of this catastrophe, while others argue that colonialism,
war, and diseases combined to wreak demographic devastation (MADLEY,
2015, p. 98).
Um dos elementos centrais deste debate é constituído pelas estimativas sobre as
populações indígenas antes, durante e depois dos processos de colonização europeia e de
colonialismo interno. O etnólogo e sertanista Curt Nimuendaju (1981), que no início do século
XX dedicou muitos anos ao estudo e a pesquisas de campo junto a povos indígenas do Brasil,
registrou, em seu famoso mapa Etno-Histórico, a existência de 1400 povos indígenas no
território que corresponde ao Brasil, dentre os quais havia grande dispersão geográfica e
diversas formas de organização social. Segundo Cunha (2012, p. 16) “as estimativas de
população aborígine em 1492 ainda são assunto de grande controvérsia”, e, “[...] variam de 1 a
8,5 milhões de habitantes para as terras baixas da América do Sul”.
Tabela 2 - Estimativas da população indígena na América em 1492
NÚMERO PARA
(EM MILHÕES)
TERRAS BAIXAS
DA AMÉRICA DO SUL
TOTAL AMÉRICA
Sapper (1924) 3 a 5 37 a 48,5
Kroeber (1939:166) 1 8,4
Rosenblat (1954:102) 2,03 13,38
Steward (1949:666) 2,90 (1,1 no Brasil) 15,49
Borah (1964) 100
Dobyns (1966:415) 9 a 11,25 90,04 a 112,55
Chaunu (1969:382) 80 a 100
Denevan (1976:230, 291) 8,5 (5,1 na Amazônia) 57,300
112
Fonte: CUNHA (2012, p. 16)80.
Cunha (2012, p. 17) complementa da seguinte maneira as informações da tabela:
Quanto às regiões que nos ocupam mais de perto, Rosenblat (1954: 316) dá 1
milhão para o Brasil como um todo, Moran (1974: 137) dá uns modestos 500
mil para a Amazônia, ao passo que Denevan (1976: 230) avalia em 6,8 mi-
lhões a população aborígine da Amazônia, Brasil central e costa nordeste, com
a altíssima densidade de 14,6 habitantes/km2 na área da várzea amazônica e
apenas 0,2 habitante/km2 para o interflúvio. Como cifra de comparação, a pe-
nínsula ibérica pela mesma época teria uma densidade de 17 habitantes/km2
(Braudel 1979: 42).
Segundo Prezia e Hoornaert (1992 apud Lopez e Miranda, 2011, p. 181) “só na
Amazônia brasileira foram extintos 925 povos”. De acordo com Cunha (2012, p. 17), os estudos
sobre a demografia histórica dos povos indígenas não foram escassos:
Diga-se de passagem, sabe-se ainda menos da população da Europa ou da Ásia
na mesma época: a América é até bem servida desde os trabalhos de
demografia histórica da chamada escola de Berkeley, cujos expoentes
principais foram Cook e Borah. Imagina-se, só como base de comparação, que
a Europa teria, do Atlântico aos Urais, de 60 a 80 milhões de habitantes em
1500 (Borah apud Denevan 1976: 5). Se assim tiver sido realmente, então um
continente teria logrado a triste façanha de, com punhados de colonos,
despovoar um continente muito mais habitado (CUNHA, 2012, p. 17).
Logo, podemos supor que as divergências existentes se justifiquem não apenas pelas
diferentes metodologias de cálculo, mas também pelas perspectiva de cada um dos autores em
relação ao que chamamos de confronto de narrativas sobre os genocídios indígenas. Segundo
Cunha (2012, p. 17-18):
Essas estimativas díspares resultam sobretudo de uma avaliação diferente do
impacto da população indígena. Os historiadores parecem concordar com um
mínimo de população indígena para o continente situado por volta de 1650:
diferem quanto à magnitude da catástrofe. Alguns, como Rosenblat, avaliam
que de 1492 a esse nadir (1650), a América perdeu um quarto de sua
população; outros, como Dobyns, acham que a depopulação foi da ordem de
95% a 96% (Sánchez-Albornoz 1973). Seja como for, as estimativas da
população aborígine e da magnitude do genocídio tendem portanto, e com
poucas exceções, a ser mais altas desde os anos 1960. Um dos resultados
laterais dessa tendência é o crédito crescente de que passam a gozar os
testemunhos dos cronistas. Ora, para a várzea amazônica e para a costa
brasileira, os cronistas são com efeito unânimes em falar de densas populações
e de indescritíveis mortandades (ver Porro e Fausto in Carneiro da Cunha
[org.] 1992). Se a população aborígine tinha, realmente, a densidade que hoje
se lhe atribui, esvai-se a imagem tradicional (aparentemente consolidada no
século xix), de um continente pouco habitado a ser ocupado pelos europeus.
80 De acordo com Cunha (2012, p. 16), esta tabela foi adaptada a partir de Denevan (1976: 3), o qual, por sua vez, a adaptou e completou Steward (1949:656).
113
Como foi dito com força por Jennings (1975), a América não foi descoberta,
foi invadida.
Assim, na nossa perspectiva, apesar destas estimativas populacionais terem significativa
importância, elas não constituem o centro do debate. Ou seja, o ponto central, pelo menos desta
pesquisa, não é estabelecer se houveram ou se não houveram genocídios indígenas e qual foi a
proporção deste fenômenos.
Conforme já afirmamos anteriormente, são inúmeras as publicações acadêmicas
afirmando e demonstrando que o histórico das relações entre os Estados-Nação (coloniais e
pós-coloniais) e os povos indígenas constitui-se de numerosos e amplos genocídios e
movimentos diaspóricos. A questão de tipo “sim” ou “não” é considerada como já superada
nesta pesquisa. As fontes a este respeito são diversificadas, como veremos ao longo desta
pesquisa. Especificamente no Brasil, têm surgido número crescente de documentos e de
registros históricos comprovando a intencionalidade de agentes estatais e não-estatais na
promoção sistemática de violência, tortura, escravização e extermínio de povos indígenas. São
abundantes, inclusive, as denúncias de organizações indígenas, organismos internacionais e de
organizações não-governamentais sobre a continuidade destes processos na atualidade.
Por estes motivos, entendemos que o aspecto mais interessante e intrigante neste campo
de debates é o que analisamos anteriormente como sendo a busca por uma “explicação
constitutiva”. Neste sentido, Gallois (1992, p. 123) e Cunha (2012, p. 12) nos indicam as
relações existentes entre os processos macro-históricos de genocídios indígenas e os
movimentos diaspóricos destes povos:
Sabemos também que a história de contatos interétnicos remotos é necessária
para entender a atual conformação étnica e a posição geográfica de muitos
grupos arredios. A maior parte desses grupos descende de segmentos
indígenas que recusaram a situação colonial, ou recompostos por foragidos
que se reagruparam em zonas de refúgio. A história dos contatos intertribais,
igualmente influenciada pela pressão colonial, também é fundamental para
compreender a posição dos isolados contemporâneos (GALLOIS, 1992, p.
123).
Está presente a história ainda na medida em que muitas das sociedades
indígenas ditas “isoladas” são descendentes de “refratários”, foragidos de
missões ou do serviço de colonos que se “retribalizaram” ou aderiram a grupos
independentes, como os Mura. Os Mura, aliás, provavelmente se
“agigantaram” na Amazônia (Amoroso in Carneiro da Cunha [org.] 1992)
porque reuniam trânsfugas de outras etnias. Os Xavante também foram mais
de uma vez contactados e mais de uma vez fugiram (Lopes da Silva in
Carneiro da Cunha [org.] 1992). (CUNHA, 2012, p. 12).
114
Portanto, as contribuições da análise macro-histórica sobre o assunto em questão
consistem em identificar como tais processos históricos se relacionam com a situação
contemporânea dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia brasileira.
2.4 Revisão de literatura e outras fontes de pesquisa sobre povos indígenas em isolamento;
Nesta seção apresentamos as referências e as fontes de pesquisa encontradas sobre o
tema específico dos povos indígenas em isolamento. Com isto, nosso objetivo não é apenas
fundamentar o presente trabalho, mas, principalmente, contribuir com futuras pesquisas. Uma
parte das publicações sobre o tema apresenta uma lista das legislações nacionais e dos tratados
internacionais que estabelecem os direitos dos povos indígenas em isolamento, ou que podem
ser a eles relacionados. Entretanto, não foi encontrada nenhuma publicação que realize um
levantamento geral das referências e fontes de pesquisa sobre o assunto. Estão estes materiais:
1) Bibliografia acadêmica específica ou relacionada ao assunto dos povos indígenas em
isolamento, principalmente da área de Antropologia;
2) Artigos publicados por (ex)sertanistas e por outras pessoas que trabalharam ou
trabalham diretamente com a temática dos índios isolados. Neste conjunto destacam-se
três cartas-denúncia (2013, 2015, 2017) publicadas por servidores da FUNAI/CGIIRC
sobre a situação política, financeira e administrativa do órgão;
3) Documentos institucionais e boletins periódicos de informações sobre PII produzidos
por organizações indígenas e indigenistas, brasileiras e internacionais;
4) Documentos de organizações intergovernamentais, principalmente o ACNUDH, a
CIDH e a OTCA;
Atualmente no Brasil, com base na Lei de Acesso à Informação81, é possível também
solicitar dados e informações diretamente para a FUNAI/CGIIRC. Este recurso foi importante
para esta pesquisa, pois através dele conseguimos um mapa de qualidade gráfica, informacional,
e atualizado com a localização dos PII no Brasil (FUNAI, 2017a), e também uma lista com
algumas das informações existentes sobre estes povos82. Entretanto, como estas informações
81 Lei 12.527 de 18 de Novembro de 2011. 82 Vale destacar que a lista fornecida pela FUNAI (2017a) dispõe das seguintes informações: etnia e tronco linguístico, quando identificados, e terra indígena onde se encontram, quando demarcada). Entretanto, uma informação relevante, que deixamos como sugestão para futuras pesquisa, é identificar quais são as situações de risco e as ameaças existentes aos povos indígenas em isolamento nas regiões que se encontram, por exemplo: alto nível de desflorestamento no entorno da terra indígena; registros de invasão da terra indígena para extração ilegal de madeira, minérios e/ou de caça e pesca; presença de grupos missionários com intenção de fazer o
115
não estão disponibilizadas de modo público e permanente, não constituem propriamente uma
fonte de pesquisa que deva ser analisada a seguir. Passemos então ao estudos das fontes.
Vale ressaltar desde já que não é nosso objetivo esgotar as referências existentes sobre
os assuntos estudados destacados a seguir. Principalmente no vasto campo da antropologia
brasileira, certamente há vários outros autores e autoras, brasileiros e estrangeiros, não citados
aqui, mas cujos trabalhos podem contribuir direta ou indiretamente para o estudo dos povos
indígenas em isolamento. Todavia, um aprofundamento maior ultrapassaria os limites desta
seção e não constitui um objetivo desta pesquisa, principalmente considerando que há vasta
literatura sobre a trajetória do pensamento antropológico no Brasil, certamente mais
especializada e aprofundada do que podemos oferecer aqui. Ainda entre as limitações deste
panorama bibliográfico oferecido a seguir, devemos destacar que nosso foco aqui também foi
restringido aos povos indígenas em situações de isolamento presentes no Brasil, muito embora
tenhamos encontra quantidade significativa de bibliografia sobre os PIACI83 presentes na
América do Sul, de uma maneira geral84.
1) Bibliografia acadêmica específica ou relacionada ao assunto dos povos indígenas em
isolamento;
Esta literatura é composta por livros, teses, dissertações e artigos de periódicos do
acadêmicos, sendo quase todos estes trabalhos oriundos da área de Antropologia. Dividimos a
apresentação deste material de acordo com as seguintes abordagens:
a) Etnologia do contato interétnico e etno-história;
b) Política indigenista brasileira e a política específica para PIIRC;
c) Características, casos e situações envolvendo PIIRC;
A seguir daremos algumas referências importantes nestes campos.
a) Etnologia do contato interétnico e etno-história;
contato com os índios isolados; obra de infraestrutura em construção ou planejada para a região (rodovia, ferrovia, usina hidrelétrica), etc. 83 Vale lembrar que os demais países latino-americanos utilizam a denominação pueblos indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial (PIACI), enquanto no Brasil a denominação mais utilizada, e adotada oficialmente pela FUNAI, é a de povos indígenas isolados e de recente contato (PIIRC). As diferenças de concepção que esta nomenclaturas podem refletir foram analisadas no Capítulo 4. 84 Neste campo, merece destaque o caso da extensa região de fronteira entre Brasil e Peru, onde as dinâmicas transfronteiriças são intensas tanto por parte das variadas atividades extrativistas e exploratórias, como em termos de deslocamentos de grupos indígenas em isolamento cruzando as fronteiras nacionais – muitas vezes em fuga de ataques e das pressões existentes sobre seus territórios.
116
Uma das características distintivas da produção acadêmica brasileira na área de
Antropologia é sua contribuição para os campos da etnologia do contato interétnico e da etno-
história. Uma referência interessante para iniciarmos este panorama é a do mapa etno-histórico
de Curt Nimuendaju (1944). Com contribuições significativas para o estudo dos primeiros
contatos de diversos povos indígenas no Brasil podemos citar as obras de Darcy Ribeiro (1977),
Roberto Cardoso de Oliveira (1972), e Alcida Rita Ramos (1990).
Ainda no âmbito da Etno-história podemos destacar as obras organizadas por Júlio
Cesar Melatti (1986), Manuela Carneiro da Cunha (1992) e Luis Donisete Benzi Grupioni
(1994), com artigos de diversos autores, incluindo estudos etnográficos, linguísticos, análises
de política indigenista, e de variados outros temas.
Já entre os estudos mais aprofundados sobre a etno-história de etnias específicas é válido
fazer referência às contribuições de Stephen Graint Baines (1991), sobre os primeiros contatos
dos Waimiri Atroari, e de Bruce Albert (1989), sobre as histórias e representações do contato
entre os Yanomami. Os trabalhos de Bárbara Arisi (2007, 2017) também contribuíram para esta
pesquisa.
b) Política indigenista brasileira e a política específica para PIIRC;
No âmbito das características e da história das relações entre o Estado e os povos
indígenas no Brasil, e da política indigenista de modo geral, são inúmeros os autores e
publicações. Freire (2005, p. 04) destaca que entre os “trabalhos realizados por antropólogos
sobre a política indigenista brasileira” [...] os principais são os de Darcy Ribeiro (1962, 1979a)
– caracterizado pela apologia do SPI –, e Roberto Cardoso de Oliveira (1972a, 1988)”. Dentre
os mais recentes o autor cita “Antonio Carlos de Souza Lima (1985, 1987, 1995, 2002a); Alcida
Ramos (1998), João Pacheco de Oliveira (1988, 1998b), Mércio Gomes (1998) e Baines (1990).
Dentre eles, merece especial atenção o trabalho excepcional do antropólogo Antônio
Carlos de Souza Lima (1995), intitulado “Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade
e formação do Estado no Brasil”. Uma das referências indispensáveis aos interessados em
compreender a história das políticas indigenistas brasileiras, esta obra demonstra as
contradições e problemas inerentes ao que se chamou de política de “pacificação” de índios. O
trabalhos de João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire (2006) foi a nossa
referência central para elaborarmos uma revisão macro-histórica da política indigenista no
Brasil.
117
Especificamente acerca da atividade sertanista, duas referências foram consideradas
indispensáveis: a tese de doutorado intitulada “Sagas Sertanistas: práticas e representações do
campo indigenista”, de Carlos Augusto da Rocha Freire (2005), e o livro de Felipe Milanez
(2015), “Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil”.
Já sobre o processo de concepção, elaboração e as características da política indigenista
brasileira específica para PIIRC a obra de maior destaque e contribuição para esta pesquisa foi
a de Antenor Vaz (2011). O livro intitulado “Isolados no Brasil – Política de Estado: da tutela
para a política de direitos: uma questão resolvida?”, Vaz (2011) explora a fundo a política
indigenista do Estado brasileiro, com foco sobre a mudança de paradigma da promoção do
contato e da tutela para o paradigma do não-contato e da proteção do direito ao isolamentos dos
povos indígenas.
Sobre este assunto, em junho de 2015 dois antropólogos dos Estados Unidos levantaram
um debate sobre a efetividade do paradigma do não-contato, enquanto orientação da política
estatal para povos em isolamento.
Em Junho de 2015, no volume 348 da Revista Science, Walker e Hill (2015) publicaram
um breve texto, na seção editorial, que adquiriu intensa repercussão devido aos argumentos e
às propostas destes autores acerca da política pública para índios em isolamento. Os autores
norte-americanos debateram especificamente o princípio do não contato, e defendem a ideia de
se estabelecer “contatos controlados” como melhor forma de proteger aos povos indígenas
isolados. As ideias destes antropólogos foram repudiadas pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), pela organização não-governamental Survival International, entre outras
instituições. Além deste texto que provocou maior repercussão, Walker e Hill abordam o
assunto dos povos indígenas isolados em outros artigos mais extensos. São eles: Walker, Kesler
e Hill (2016), Walker, Hamilton e Groth (2014), Walker, Sattenspiel e Hill (2015)
c) Características, casos e situações envolvendo PIIRC;
O livro de Loebens e Neves (2011), intitulado “Povos indígenas isolados na Amazônia”,
foi uma das referências iniciais desta pesquisa e ofereceu contribuições importantes. Estes
autores oferecem uma coletânea repleta de material de pesquisa empírica, incluindo mapas e
tabelas com as referências de PIIRC já confirmadas no Brasil (onde detalhada a situação dos
PII em cada estado da federação) e na América do Sul. Além disso, aborda as características e
as variadas denominações atribuídas aos povos indígenas em isolamento.
118
O artigo de Dominique Gallois (1992) dedica especial atenção à complexa e
problemática passagem dos grupos indígenas da condição de isolados à de recém-contatados.
Em “De arredio a isolado: perspectivas de autonomia para os povos indígenas recém-
contactados”, a autora apresenta inúmeras reflexões que colocam o texto entre os mais
profundos e bem escritos no tema. Por sua vez, Peter Gow (2011) faz um relato etnográfico rico
em detalhes sobre a condição de isolamento voluntário dos Mascho. Através da pesquisa de
campo relatada no texto “Me deixa em paz!”, o autor demonstra quão evidente é o desejo de
certos povos indígenas em permanecerem sem contato com a sociedade envolvente.
Sobre a problemática situação dos Awá, a contribuição de Varga (2017) é
intitulada: “De remover a “deslocar” os Awá: mimetismos discursivos da tutela e do
patrimonialismo a serviço das frentes de expansão no Maranhão, na atual gestão da
FUNAI/CGIIRC”. Vale também ressaltar, os trabalho publicados pelo Centro de Trabalho
Indigenista (CTI), dos autores Hilton Nascimento (2006), intitulado “A Terra Indígena Vale do
Javari e a Fronteira Peruana”, e de Gilberto Azanha e Conrado Octávio (2009), intitulado
“Isolados – algumas questões para reflexão”. Destacamos também a “Submissão conjunta para
o terceiro ciclo de avaliação do Brasil no Mecanismo de Revisão Periódica Universal do
Conselho de Direitos Humanos da ONU. 2016”, de autoria do CPI-AC85 (2016) sobre a situação
dos direitos humanos dos povos indígenas na fronteira Acre-Peru.
Merece atenção também a Revista Índios Isolados no Acre, organizada por Iglesias et
al. (2010), com textos do próprio Marcelo Piedrafita Iglesias, de José Carlos dos Reis Meirelles,
de Txai Terri Valle de Aquino e de Vássia Silveira. Destaca-se também o trabalho de López e
Miranda (2013), intitulado “Povos indígenas isolados na América Latina: vítimas da violência
e testemunhas de resistência!”, elaborado a partir do trabalho da chamada “equipe itinerante”
do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), formada por 10 instituições diferentes.
2) Artigos publicados por (ex)sertanistas e por pessoas que trabalharam ou trabalham
diretamente com a temática dos índios isolados, seja no órgão indigenista estatal ou em
organizações da sociedade civil.
As primeiras referências específica sobre PII que foram consultadas nesta pesquisa são
de Antenor Vaz (2011, 2013a, 2013b, 2013c, 2014, 2016). Além disso, este ex-sertanista e
atualmente consultor internacional de políticas para PIIRC foi o mais importante interlocutor
85 CPI-AC, Comissão Pró-Índio do Acre. A situação dos direitos humanos dos povos indígenas na fronteira Acre-Peru. Submissão conjunta para o terceiro ciclo de avaliação do Brasil no Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU. 2016.
119
ao longo do processo de elaboração desta pesquisa. Entre suas publicação, no livro intitulado
“Povos indígenas isolados e de Recente Contato no Brasil – Políticas, direitos e problemáticas”,
Vaz (2013a) faz uma análise detalhada das ameaças e dos desafios existentes à sobrevivência e
autodeterminação dos PIIRC. Destaca-se, ainda, a publicação de Antenor Vaz em conjunto com
Paulo Balthazar (2013), onde os autores abordam de forma bastante crítica a situação dos povos
indígenas isolados, avaliando perspectivas de autonomia, o pluralismo jurídico existente entre
os países amazônicos, e a questão dos direitos da natureza como reivindicação atrelada à
proteção dos povos indígenas.
Outro autor que trabalha diretamente com as políticas para povos indígenas em
isolamento do Brasil, Frabrício Amorim (2016) publicou o importante artigo: “Povos indígenas
isolados no Brasil e a política indigenista voltada para a efetivação de seus direitos: avanços,
caminhos e ameaças”. Yamada e Amorim (2016) publicaram também artigo abordando o tema
da autonomia e a aplicação do direito de consulta no caso dos povos indígenas em isolamento.
Por fim, devemos destacar três Cartas-denúncia assinadas por Coordenadores de Frentes
de Proteção Etnoambiental da CGIIR/FUNAI e por ex-sertanistas (2013, 2015, 2017), sobre a
situação política, financeira e administrativa do órgão. Em todas estas ocasiões foram atestadas
as debilidades e dificuldades político-institucionais, orçamentárias e de recursos humanos para
que o órgão possa cumprir as suas funções constitucionais. Em muitos casos, não são possíveis
nem mesmo as condições mínimas, de presença do Estado em várias regiões com presença de
isolados, sendo que 51 informações sobre a existência de povos indígenas em isolamento ainda
não foram sequer estudadas.
A primeira destas cartas foi elaborada e assinada por 9 Coordenadores de Frentes de
Proteção Etnoambiental86 (2013) e endereçada para a “Diretoria Colegiada da FUNAI”. A
segunda destas cartas (2015) foi assinada por 5 coordenadores de FPE e também por 3 ex-
sertanistas87, tendo sido endereçada ao Presidente da FUNAI. Este segundo documento não
apenas reitera o cenário de 2013, como indica um agudo agravamento das condições políticas
e de operacionalidade do órgão. A terceira e mais recentes destas cartas foi publicada por
Ribeiro e Amorim (2017), e demonstra a persistência do cenário adverso: “Carta-denúncia: O
desmantelamento da política pública indigenista e o risco de genocídio de povos isolados e de
recente contato no Brasil”.
86 Altair José Algayer, Elias Bígio, Fábio Augusto Ribeiro, Fabrício Amorim, Guilherme Siviero, Jair Candor, Luciano Pohl, Manoel Edson da Silva, Rieli Franciscato e Rogério Vargas Motta. 87 Antenor Vaz, José Carlos dos Reis Meirelles e Marcelo dos Santos.
120
3) Documentos institucionais e boletins periódicos de informações sobre PII produzidos por
organizações indígenas e indigenistas, brasileiras e internacionais;
Centro de Trabalho Indigenista (CTI)
Boletim Povos Indígenas Isolados na Fronteira Brasil-Peru88;
Este Boletim começou a ser publicado em setembro de 2008, tendo produzidos 79 volumes,
nos quais eram reunidos diferentes tipos de notícias relacionadas ao assunto, como a ocorrência
de avistamentos, contatos, conflitos e ameaças no entorno de territórios com presença de povos
em situações de isolamento, além de encontros indígenas, eventos e políticas nacionais,
regionais e internacionais sobre o assunto;
Boletim Povos Indígenas Isolados na Amazônia;
Esta publicação substituiu o Boletim anterior, e atualmente está em seu oitavo volume.
Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC)
Observatório de Dinâmicas Transfronteiriças Brasil-Peru89;
Este Observatório surgiu da formação de um Grupo de Trabalho Transfronteiriço, em 2005,
fomentado pela Comissão Pró-Índio do Acre. Conta, desde então, com ampla participação de
organizações indígenas, instituições indigenistas, ambientalistas, de pesquisa, órgãos
governamentais brasileiros e peruanos, e organizações internacionais; Seu objetivo é
disponibilizar informações, estudos, pesquisas, agendas, documentos, relatórios, notícias,
artigos, depoimentos, imagens e mapas sobre a região de fronteira Acre-Brasil/Peru.
Destaca-se também a participação do CPI-AC na proposta da Plataforma de
Organizaciones Indígenas del Perú para a criação do Corredor Territorial para Pueblos
Indígenas en Aislamiento Voluntário y Contact Inicial Pano, Aruak y otros.
International Work Group for Indigenous Affais (IWGIA)
Relatório Indigenous People in Voluntary Isolation and Initial Contact (IWGIA, 2013).
Além destas instituições, vale citar também que algumas organizações dedicadas às
questões socioambientais e de direitos humanos dedicam atenção à temática específica dos
88 O Boletim pode ser acessado em: http://www.trabalhoindigenista.org.br/newsletter/boletim-cti-povos-isolados-na-fronteira-brasil-peru. 89 O site do Observatório pode ser acessado em: http://www.observatoriodafronteira.org.br/index.php.
121
povos indígenas em isolamento. Entre elas estão o Instituto Socioambiental (ISA), o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a Survival International, entre outras.
Vale destacar ainda a Declaração de Belém (2005) por ocasião do Primeiro Encontro
Internacional sobre Povos Indígenas Isolados da Amazônia e do Gran Chano, evento no qual
foi constituída a Aliança Internacional para a Proteção dos Povos Indígenas Isolados, composta
por uma extensa lista de especialistas no tema, sobretudo membros de organizações indígenas
e indigenistas.
4) Documentos de organizações intergovernamentais, principalmente o ACNUDH, a CIDH e a
OTCA;
Neste campo, visto que este documentos serão analisados mais adiante nesta pesquisa,
cabe-nos apenas citar:
As Diretrizes de Proteção elaboradas pelo ACNUDH (2012): Diretrices de protección
para los pueblos indígenas em aislamiento y em contacto inicial de la región
Amazónica, el Gran Chaco, y la región oriental de Paraguay
As recomendações da CIDH (2013): Pueblos indígenas en aislamiento voluntario y
contacto inicial en las Américas: Recomendaciones para el pleno respeto a sus
derechos humanos.
Os documentos elaborados a partir do Projeto da OTCA de “Elaboração de uma Agenda
Regional Comum para a Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário e
Contato Inicial”.
Neste âmbito regional amazônico devemos mencionar o trabalho de Carlos Soria
Dall’Orso (2015), no qual o autor apresenta uma “Análisis de la legislación amazónica de
protección de los pueblos indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial”.
E, no âmbito sul-americano, para além de perspectivas brasileiras e sobre PIIRC
presentes no Brasil, superando inclusive a perspectica estadocêntrica, é preciso ressaltar a
proposta de um “Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial
Pano, Arawak y otros. Diagnóstico y fundamentos antropológicos”, de natureza transfronteiriça
na região entre Brasil e Peru (Acre-Madre de Diós). Esta proposta é apresentada pela
Plataforma de Organizaciones Indígenas del Peru, e o texto é de autoria de Beatriz Huertas
Castillo (2015).
122
Por fim, cabe fazer uma breve referência às legislações, declarações e relatórios
internacionais que possuem efeito sobre o tema dos PIIRC. São eles, por ordem cronológica:
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989;
Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007;
Directrices de Protección para los Pueblos Indígenas em Aislamiento y en Contacto
Inicial de la Región Amazónica, el Gran Chaco y la Región Oriental del Paraguay, de 2012,
do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH);
Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (CIDH-OEA): Pueblos Indígenas em Aislamiento Voluntario y Contacto
Inicial em las Américas: Recomendaciones para el Pleno Respeto a sus Derechos Humanos,
de 2013;
Relatório do International Work Group for Indigenous Affairs, de 2013: Indigenous
Peoples in Voluntary Isolation and Initial Contact.
Outros documentos internacionais podem ser citados pelo fato de seus conteúdos
poderem ser relacionados ao tema dos povos indígenas em isolamento e de recente contato.
Porém, não se tratam de documentos formulados com tal propósito específico, tais como: a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção sobre Prevenção e Sanção do
Genocídio, ambas de 1948; a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, da UNESCO,
de 2001; e a Convenção de Paris sobre Proteção do Patrimônio Intangível, da UNESCO, de
2003.
3 POVOS INDÍGENAS, ESTADOS NACIONAIS E POLÍTICA GLOBAL
No presente capítulo, analisamos principalmente dois aspectos específicos das relações
existentes entre os povos indígenas, os Estados-Nação e a política internacional/global. O
primeiro aspecto é o movimento de articulação e fortalecimento político dos povos indígenas,
verificado no Brasil e em distintos países latino-americanos, principalmente a partir da década
de 1970. Com base nas ideias de Silva (2015), entendemos este processo como resultado de um
compartilhamento da experiência histórica da colonialismo, a partir do qual:
as mobilizações políticas de indígenas, em diferentes momentos, regiões e
países, assumiram um caráter anticolonialista e autonomista [...] uma vez que
123
se originam de povos secularmente submetidos ao padrão de poder colonial e
colonialista na região e que ainda hoje são impedidos de decidir
autonomamente sobre seus destinos coletivos subsumidos que estão a Estados
nacionais (SILVA, 2015, p. 168).
O segundo aspecto a observar é constituído pelas respostas políticas do Brasil, de outros
países latino-americanos, e de algumas importantes instituições internacionais (OIT,
ACNUDH/ONU, CIDH/OEA) a estes processos de articulação e reivindicação dos povos
indígenas pela inserção de seus direitos no âmbito das Constituições Nacionais e também da
política internacional.
A fim de compreender estes fenômenos e também os modos como os direitos indígenas
foram abordados e estabelecidos nos âmbitos nacional e internacional, nas seções seguintes
analisaremos: os movimentos indígenas e a inserção de seus direitos nas reformas
constitucionais do Brasil e de outros países latino-americanas; a Convenção n.º 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989; e, a Declaração da ONU sobre Direitos
dos Povos Indígenas, de 2007. Tendo em vista que a proteção dos povos indígenas em
isolamento e de seus territórios também foi incluída recentemente entre os assuntos indígenas
observados pelas instituições internacionais, analisaremos as Diretrizes de Proteção dos PIACI
formuladas pelo EACNUDH, em 2012, e as Recomendações para a proteção e o respeito dos
Direitos Humanos dos PIACI, formuladas pela CIDH, em 2013. Por fim, estudamos
brevemente a atuação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em um
projeto específico sobre o tema dos povos indígenas em isolamento, executado entre 2012 e
2014.
Assim, espera-se que estas análises contribuam para o objetivo geral da tese
demonstrando que: 1) os direitos indígenas, no âmbito dos processos inconclusos de
descolonização, são uma conquista histórica dos próprios povos indígenas e não concessões
feitas pelos Estados-Nação; e, 2) estes direitos indígenas, reconhecidos legalmente ou
declarados pelos Estados, foram deliberadamente limitados, de modo a garantir a manutenção
da exclusividade das soberanias estatais enquanto autoridade político-territorial; e, 3) os direitos
indígenas reconhecidos legalmente no âmbito nacional brasileiro e declarados no âmbito
internacional contemplam as condições necessárias para a sobrevivência e a autodeterminação
dos povos indígenas em situações de isolamento.
Com isto, pretendemos complementar o cenário exposto na introdução desta pesquisa,
apontando que as ameaças existentes aos PII encontra-se amplamente mapeadas. Acrescenta-
se, então, que os direitos destes povos, bem como as ações necessárias para sua efetiva garantia,
124
já são também conhecidas pelo Estado brasileiro e pela comunidade internacional, através das
recentes publicações do ACNUDH (2012) e da CIDH (2013). Portanto, a situação
contemporânea dos PII na Amazônia brasileira, aqui caracterizada como o sexto século de
genocídios e diásporas indígenas, não pode ser atribuída à falta de conhecimento empírico sobre
estes povos nem à falta de instrumentos legais e de recomendações institucionais sobre o tema.
3.1 Os movimentos indígenas, a Constituição Federal de 1988 e os Direitos Indígenas no Brasil
contemporâneo;
O estudo dos movimentos indígenas contemporâneos não pode abrir mão de
uma perspectiva histórica que os contextualize em escala temporalmente mais
ampla. Isso ocorre porque tais movimentos não são recentes e muito menos
ocasionais. Tal escala vem a ser precisamente a duração longa de mais de
“quinhentos anos de colonização” dos territórios indígenas deflagrados com o
eurocolonialismo e a expansão do capitalismo na região (SILVA, 2015, p.
167-168).
Verifica-se que desde o início dos processos históricos de contato e de estabelecimento
de relações com os Estados e com as sociedades nacionais, os povos indígenas criaram e
fortaleceram diversas estratégias próprias de resistência, de aliança e de reivindicação de
direitos. De acordo com
[...] os povos indígenas sempre reagiram à violação e à conquista de seus
territórios tradicionais; e estas respostas variavam de acordo com o desafio
imposto pelos distintos momentos da expansão capitalista, inicialmente
europeia e, mais tarde, condicionada à formação econômica brasileira. Os
confrontos com as frentes civilizatórias se davam ora através da guerra cruenta
e aberta, ora através de guerra de guerrilhas, ou mesmo recorrendo à miserável
subserviência calculada ao suicídio coletivo. A resistência destes grupos era
determinada tanto pela especificidade da frente de expansão quanto pela
lógica cultural do povo que a sustentava (BORGES, 2005, p. 43 apud SOUZA,
2015, p. 30).
Assim, cabe fazer uma breve referência, assim como o faz Souza (2015, p. 30-31, grifo
nosso), ao fato de que o movimento indígena, entendido enquanto ações de resistência à
dominação, existe há séculos:
A história registra enfrentamentos entre indígenas e não indígenas desde
meados de 1500 por todo território brasileiro, como a Guerra dos Aimorés na
Bahia (1555-1673), a Confederação dos Tamoios no Rio de Janeiro (1556-
1567), a Guerra dos Potiguares na Paraíba e no Rio Grande do Norte (1586-
1599) e o Levante dos Tupinambás no Espírito Santo e Bahia (1617-1621).
Nos séculos XVI e XVII destacam-se as entradas e as bandeiras, além da
atuação de bugreiros e as expedições civis militares de exploração e captura
125
de indígenas pelo interior do país. Todos estes embates foram marcados por
lutas sangrentas entre indígenas e luso-brasileiros. No sul do país ainda
podemos citar a Guerra Guaranítica (1751-1757), na qual Espanha e Portugal
empreenderam sua força militar contra os jesuítas e os Guarani catequizados
[...] Enfim, poder-se-ia citar inúmeros outros episódios de enfrentamentos
entre indígenas e não indígenas e descrevê-los minuciosamente, no
entanto, cabe aqui apenas relembrar estes acontecimentos no sentido de
refletir e problematizar o MI [movimento indígena] enquanto um
movimento de resistência que existe há séculos.
Nesta seção, entretanto, nosso objetivo é analisar a atuação dos movimentos indígenas
no contexto da Constituição Federal (CF), bem como as características e o alcance dos direitos
indígenas contidos na mesma. O reconhecimento formal de direitos indígenas realizado por
meio da CF de 1988 é frequentemente apontado como um divisor de águas no processo macro-
histórico marcado por invasões territoriais, contatos forçados, expulsão e remoção de povos
indígenas, extermínios, escravidão e exploração de trabalho indígena, além de diferentes
estratégias visando a suposta assimilação destes povos à sociedade nacional90.
Segundo Cunha (2012, p. 22), “no fim da década de 1970 multiplicam-se as organiza-
ções não governamentais de apoio aos índios, e no início da década de 1980, pela primeira vez,
se organiza um movimento indígena de âmbito nacional”. De acordo com Oliveira e Freire
(2006, p. 193), “até o início dos anos 70, as reivindicações indígenas eram isoladas, tampouco
adotando críticas gerais que envolvessem a situação de todos os povos indígenas no Brasil”.
Ainda segundo estes autores, “o aparato tutelar era empregado pela FUNAI para impedir
qualquer mobilização dos índios em face do Estado”. Assim, naquele período
a crença fundamental [dos movimentos indígenas] é de que, ao invés de
aguardarem ou solicitarem a intervenção protetora de um “patrono” para
terem seus direitos reconhecidos pelo Estado, os índios precisam realizar uma
mobilização política própria – construindo mecanismos de representação,
estabelecendo alianças e levando seus pleitos à opinião pública. Somente a
partir da constituição de um sistema de reivindicações e de pressões é que o
Estado viria a agir, procedendo então à identificação e à demarcação das terras
indígenas, melhorando os serviços de assistência (de saúde e educação) ou
resolvendo problemas administrativos diversos deixados no limbo por muitos
anos. As décadas de 70 e 80 foram os momentos de maior visibilidade dessa
modalidade de ação política, que se constituía à margem da política
indigenista oficial, opondo Estado e sociedade civil (OLIVEIRA; FREIRE,
2006, p. 187).
Segundo Baniwa (2012, p. 211) uma contribuição decisiva para o fortalecimento dos
movimentos indígenas foi a realização de diversas assembleias nacionais de líderes indígenas.
90 Este processo macro-histórico constitui o objeto de análise da seção 4.1, do próximo Capítulo.
126
Estas assembleias, articuladas inicialmente pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
através do fornecimento de infraestrutura e de deslocamento para os povos indígenas,
favoreceram o “surgimento de lideranças indígenas carismáticas com projeção regional,
nacional e internacional que impulsionaram o surgimento das primeiras organizações indígenas
regionais e nacionais” (idem). Oliveira e Freire (2006, p. 188) relatam que a 1ª Assembleia
Nacional de Líderes Indígenas foi realizada no ano de 1974, seguida de outras 16 assembleias
nacionais entre os anos de 1974 e 1983.
Assim, “à medida que aumentavam os contatos e as articulações entre os inúmeros
povos indígenas que participavam das assembleias, os índios assumiram essa organização e
esboçaram a instituição das primeira entidades [indígenas] em âmbito nacional” (idem, p. 189).
As assembleias indígenas permitiram o conhecimento da diversidade de povos
e culturas indígenas existentes no Brasil. Enquanto aprendiam sobre os
diferentes modos de viver – as línguas, as culturas, as crenças – também
instrumentalizavam a categoria “índio” para unificar reivindicações e
lutas por direitos. Tratava-se de canalizar distintos movimentos e
experiências para uma causa comum (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 193,
grifo nosso).
Souza (2015, p. 33) afirma que, “apesar das interferências da FUNAI para que os
encontros não se realizassem, e da negação de legitimidade do movimento, este foi mais forte
e conseguiu aos poucos romper com a tutela da Ditadura Civil Militar”. De acordo com este
autor, “as assembleias eram alicerçadas em três eixos temáticos: 1) rompimento do isolamento
das comunidades; 2) questão fundiária; e 3) questões de educação, saúde, patrimônio indígena,
emancipação, diversidade e etnia” (SOUZA, 2015, p. 33).
Na perspectiva de Baniwa (2012, p. 211):
O amadurecimento do movimento indígena leva a formação de uma frente
indígena em defesa dos direitos coletivos (lideranças e organizações locais,
regionais, nacional e internacional), ao mesmo tempo que são identificadas
necessidades e estratégias de cada povo, que formam a base concreta do
movimento e da luta indígena.
Além disso, o fortalecimento dos movimentos indígenas e sua articulação política
também se deram também em resposta ao processo de expansão das fronteiras nacionais,
promovido pela ditadura militar no país a partir de meados da década de 1960. Neste período,
o ímpeto desenvolvimentista do governo provocou a intensificação das práticas de espoliação,
desapropriação, remoção e expulsão de povos indígenas de seus territórios toma enormes
proporções. Assim, em reação a esta ofensiva estatal, os povos indígenas e organizações
indigenistas presentes no país começam a se articular em vista de fortalecer a defesa de seus
direitos.
127
Este processo de mobilização dos movimentos indígenas e sua articulação com setores
da sociedade civil pode ser verificado no relatório elaborado em 1997 pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os direitos humanos dos povos indígenas
do Brasil:
Nos últimos 30 anos, os povos indígenas brasileiros intensificaram sua
participação na vida política, aumentando, em consequência, o
reconhecimento geral dos seus direitos. Um fator essencial para tal foi,
paradoxalmente, a expansão da infra-estrutura econômica moderna para o
interior do Brasil, iniciada a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e
acelerada nas décadas de 60 e 70, sob os regimes militares. Em resposta a essa
expansão, que avançava para o interior das suas áreas ancestrais, iniciaram-se
grandes mobilizações de indígenas e de organizações que defendiam e
promoviam seus direitos humanos [...] Em face dessa situação, numerosos
setores brasileiros e internacionais apoiaram as reivindicações indígenas, tal
como manifestado na Assembleia Constituinte de 1988, na qual a discussão
passou dos foros estaduais, em que prevaleciam interesses locais geralmente
contrários às reivindicações indígenas, para o nível nacional, em que a defesa
dos direitos indígenas foi apoiada por outros grandes setores sociais (CIDH,
1997, cap. VI)91.
Segundo Oliveira e Freire (2006, p. 193), neste contexto “vários líderes [indígenas]
tinham projeção nacional”, destacando-se principalmente “os índios que dominavam o
português”, como: “Daniel Matenho, Álvaro Tukano, Mário Juruna, Ângelo Kretan, Marçal de
Souza. Outros surgiam: Domingos Veríssimo Terena, primeiro presidente da UNIND; Marcos
Terena, Ailton Krenak”. Então, no ano de 1980 é criada a primeira organização indígena de
nível nacional, a UNIND (União das Nações Indígenas).
No primeiro grande encontro de lideranças, ocorrido em São Paulo em 1981,
com a presença de 73 líderes e 32 entidades de apoio aos índios, a UNIND
mudou de sigla – agora UNI – e consolidou-se como organização indígena
nacional. [...] Enquanto tal, o movimento foi direcionado para confrontar as
políticas oficiais e seus representantes: a FUNAI, o Ministério do Interior
(depois Ministério da Justiça) e a Presidência da República. Em 1982 foi
realizado o 1º Encontro Nacional de Povos Indígenas, com a presença de 200
índios (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 193-194).
Diante do processo de redemocratização em curso no país, “a partir de 1986, a UNI
reuniu seus coordenadores regionais para discutir a proposta indígena para a Assembleia
Nacional Constituinte”. Apesar de oito índios haverem se candidatado para compor esta
Assembleia, nenhum deles foi eleito. Ainda assim, através da mobilização permanente nas
audiências públicas da Constituinte, “os líderes indígenas denunciaram as situações enfrentadas
91 Disponível em: http://www.cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Cap%206.htm. Como o documento não apresenta numeração de página, indicamos que a citação refere-se ao Capítulo VI, intitulado “Os Direitos Humanos dos Povos Indígenas do Brasil”.
128
por diversos povos e prepararam a coleta de assinaturas para uma emenda popular contendo
uma proposta de capítulo sobre as populações indígenas” (CEDI, 1991, p. 20 apud OLIVEIRA;
FREIRE, 2006, p. 194).
As emendas populares da UNI foram defendidas no plenário do Congresso
Nacional pelo líder indígena Ailton Krenak. Dezenas de índios,
principalmente Kayapó, passaram a frequentar o Congresso Nacional,
pressionando os congressistas a reconhecerem suas reivindicações. Em maio
de 1988, 70 lideranças de 27 povos contestaram a diferença entre índios
aculturados e não-aculturados presentes no projeto de Constituição em
votação. Através de vigília permanente no Congresso Nacional, mais de uma
centena de índios representando dezenas de povos indígenas acompanhou as
negociações para a votação do capítulo “Dos Índios”, até a vitória final na
promulgação da nova Constituição a 5 de outubro de 1988 (OLIVEIRA;
FREIRE, 2006, p. 194-195).
Asim, a Constituição Federal foi promulgada em 5 de outubro de 1988, tendo inserido
no seu Título VIII (Da Ordem Social), um capítulo exclusivo sobre os direitos dos povos
indígenas, o Capítulo VIII (Dos Índios). De acordo com o relatório da CIDH, citado
anteriormente:
A Constituição de 1988, no seu Capítulo VIII, consagra uma das posições
normativas mais avançadas da legislação comparada. Suas disposições
diretamente relacionadas aos direitos dos indígenas superam a doutrina de
"assimilação natural" previamente aceita. Por outro lado, são reconhecidos
como permanentes os direitos originais inerentes aos povos indígenas por sua
condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras [...] Ao
considerar os direitos indígenas como direitos "originais", a Assembleia
Constituinte aceita o princípio de que os indígenas eram os proprietários
originais das terras e, portanto, que seus direitos antecedem todo ato
administrativo do governo (CIDH, 1997, n.p., cap. VI).
Deste modo, a CF de 1988 instituiu nova base jurídica para os direitos indígenas no
Brasil ao reconhecer sua identidade cultural diferenciada, organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, o direito originário ao usufruto das terras tradicionalmente
ocupadas pelos povos indígenas, cabendo ao Estado promover e proteger a garantia destes
direitos.
Consideramos pertinente transcrever a seguir os principais destes direitos, que constam
nos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las92, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
92 O Decreto 1775/1996, do Ministério da Justiça, estabelece que o processo de demarcação de Terras Indígenas deve ser conduzido pelo Poder Executivo, no âmbito do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Esse processo é constituído por diversas fases: 1) Estudos de identificação; 2) Aprovação da Funai; 3) Contestações; 4) Declaração dos limites da Terra Indígena; 5) Demarcação física; 6) Homologação; e, 7) Registro.
129
§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios
e dos lagos nelas existentes.
§ 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só
podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da
lavra, na forma da lei.
§ 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad
referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham
por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este
artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que
dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo.
É válido destacar também o Artigo 67, o qual estabeleceu que: “A União concluirá a
demarcação93 das Terras Indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da
Constituição”. Portanto, ao final de 1993 encerrou-se o prazo dado pela lei máxima do país para
que o Estado tivesse demarcado todos os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos
indígenas no Brasil94.
Para Baniwa (2012, p. 207), as principais mudanças trazidas pela Constituição Federal
de 1988 são:
a) superação da tutela, reconhecendo a capacidade civil dos índios; b)
abandono do pressuposto integracionista, em favor do reconhecimento à
diferença sociocultural dos povos indígenas, na linha do multiculturalismo
contemporâneo; c) reconhecimento da autonomia societária dos povos
indígenas, garantindo para isso o direito ao território, à cultura, à educação, à
93 O Decreto 1775/1996, do Ministério da Justiça, estabelece que o processo de demarcação de Terras Indígenas deve ser conduzido pelo Poder Executivo, no âmbito do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Esse processo é constituído por diversas fases: 1) Estudos de identificação; 2) Aprovação da Funai; 3) Contestações; 4) Declaração dos limites da Terra Indígena; 5) Demarcação física; 6) Homologação; e, 7) Registro. 94 Dada a sua importância para discutir o cenário atual dos direitos indígenas no Brasil, o assunto específico das demarcações das Terras Indígenas (TI) será debatido mais a fundo no Capítulo 6, na seção 6.2
130
saúde, ao desenvolvimento econômico, de acordo com os seus projetos
coletivos presentes e futuros; d) reconhecimento do direito à cidadania
híbrida: étnica, nacional e global (BANIWA, 2012, p. 207).
Este autor enfatiza ainda a importância da “superação do princípio da relativa
capacidade civil dos indígenas, que justificava a prática da tutela por parte do Estado”. De
acordo com o autor, “o reconhecimento da capacidade civil dos indígenas acelerou
sobremaneira o protagonismo dos povos indígenas em todas as frentes, inclusive, junto ao poder
Judiciário” (idem, p. 211). Além disso,
No campo concreto da vida cotidiana, a recuperação da autoestima em função
das possibilidades de continuidade étnica e de acesso aos benefícios materiais
e tecnológicos do mundo moderna está possibilitando a reafirmação das
identidades reprimidas e a (re)elaboração/(re)construção de novos projetos
societários para o futuro (BANIWA, 2012, p. 207).
Todavia, para este autor (2012, p. 207) os avanços são “ainda insuficientes para garantir
uma vida digna aos povos indígenas”, tendo em vista principalmente o esvaziamento político-
orçamentário da FUNAI e da política indigenista de modo geral, o que resulta na obstrução das
questões territoriais e, também, nas debilidades persistentes das políticas de educação e saúde
indígenas. Por estes e outros motivos, Baniwa (2012, p. 206) ressalta que o movimento indígena
mantêm-se ativo, dada a “necessidade de um aperfeiçoamento nas estratégias desenhadas no
âmbito do dos planos de médio e longo prazo do movimento indígena brasileiro para a
manutenção e garantia dos direitos”. Para este autor (2012, p. 215), “o desafio central
enfrentado pelos povos indígenas do Brasil no tocante a seus direitos é a garantia e as
efetividades destes”, visto que:
entre a letra das leis e a prática há uma enorme distância, ou lacunas
institucionais e conceituais intransponíveis que dificultam ou anulam as
possibilidades de maior efetividade desses direitos, conquistados com muita
luta, sofrimento, dor, sangue e morte de lideranças e povos indígenas inteiros.
Por que os direitos coletivos, os sistemas jurídicos, socioculturais, econômicos
e políticos dos povos indígenas continuam sendo desconsiderados, ignorados
e negados? Por que as organizações sociais tradicionais continuam sendo
desqualificadas no âmbito das relações políticas, jurídicas e administrativas
com o Estado? Afinal de contas, não foram os índios que aprovaram e
adotaram essas leis, mas os próprios agentes e operadores do Estado brasileiro
(BANIWA, 2012, p. 216).
De acordo com Silva (2015, p. 189, grifo nosso):
(...) as lutas indígenas assumiram o caráter de lutas por reconhecimento em
que os Estados nacionais se viram constrangidos a aceitar a diversidade étnica
e cultural dos povos indígenas e a repensar os limites e a legitimidade de suas
formas de organizar jurídica e politicamente a sociedade nacional e seus
processos de desenvolvimento. Este constrangimento, entretanto, não
significou uma aceitação condescendente dos direitos dos povos indígenas.
131
No atual contexto pós-constitucional, no qual estes direitos coletivos são
reconhecidos, em particular o direito territorial, o desafio passou a ser
como se reorganizar politicamente para implementar estes direitos face
às pressões contrárias de colonos, empresas e setores responsáveis pela
exploração/expropriação de seus territórios e superexploração de sua
força de trabalho, combinados que estão às políticas
colonizadoras/desenvolvimentistas dos governos, seus programas e ações. Esta nova conjuntura significa para os povos indígenas transpor um novo
degrau de representação e participação política em suas aldeias e
comunidades, bem como na sociedade mais ampla, em particular no que tange
a decisões que envolvem a definição e o uso de suas terras e recursos e que
afetarão diretamente seus modos e condições de vida e seus projetos coletivos
(SILVA, 2015, p. 189, grifo nosso).
A partir dos elementos analisados, podemos verificar o protagonismo dos povos
indígenas no processo de inserção e ampliação dos direitos indígenas na Constituição Federal
de 1988. Na seção seguinte poderemos avaliar melhor o alcance dos direitos indígenas
estabelecidos no Brasil em comparação aos demais países latino-americanos que promoveram
reformas constitucionais no mesmo período. Entretanto, mesmo com o reconhecimento de tais
direitos na CF de 1988, devemos ressaltar o limitado alcance deste fenômeno em termos de
promover uma mudança das relações entre Estado e povos indígenas no Brasil.
3.2 Os Direitos Indígenas nas reformas constitucionais na América Latina e;
É preciso gerar condições que possibilitem um verdadeiro pacto entre os
diferentes povos (ou nações) que conformam um Estado plurinacional [...] Os
movimentos sociais gestados na última década [aqui a autora faz referência à
Bolívia e ao Equador, nos anos 2000], que nos permitem falar de um
“constitucionalismo indigenista”, abrem as portas para que pensemos em
Estados diferentes, capazes de transformar estruturas coloniais herdadas e
ainda não removidas. [...] Qualquer reforma que queira obter sucesso deve ser
capaz de atravessar a rigidez das travas impostas pela ordem reinante... O certo
é que habitualmente ignoramos essa realidade oculta e agimos como se a
reforma estivesse ao alcance de nossa mão... as reformas ficam, assim, como
enxertos mal feitos sobre um corpo sólido e bem-constituído. (RAMÍREZ,
2009, p. 230-232, grifo nosso).
O contexto do final da década de 1980 e da década seguinte foi marcado por processos
de redemocratização e de reformas estruturais – promovidas pelo ideário neoliberal – nos
Estados latino-americanos. Neste cenário, o fortalecimento e a articulação internacional dos
movimentos indígenas foram fundamentais para a inserção de direitos destes povos nas
reformas constitucionais realizadas em vários países da região.
132
De acordo com Alcida Ramos (2012, p. 07), “em sua maioria, essas novas cartas magnas
trouxeram uma inovação [...] ao admitir explicitamente a presença de povos indígenas nos
respectivos territórios nacionais”. Além disso, “ao se declararem, implícita ou explicitamente,
como nações pluriétnicas, não só legitimavam suas diferenças internas, como garantiam direitos
territoriais e culturais às suas minorias”. Veremos que tal nível de reconhecimento dos direitos
dos povos indígenas realmente constituiu um ato sem precedentes por parte dos Estados latino-
americanos. Entretanto, é necessário problematizar a seguinte afirmação da mesma autora,
segundo a qual “selava-se, assim, uma nova era na concepção do que é um Estado-Nação”
(idem).
Nota-se que a mudança do caráter colonial e excludente dos Estados latino-americanos
em relação aos povos indígenas, apesar de ter avançado nas últimas três décadas, ainda é um
processo limitado, em curso, e que enfrenta fortes resistências e ameaças de retrocesso. Segundo
Ramos (2012, p. 09), para compreender este processo é importante identificar as diferenças
entre dois tipos de países: “aqueles tipicamente indígenas e aqueles majoritariamente não
indígenas”. De acordo com a autora, Argentina, Brasil, Colômbia, Chile95 e Venezuela,
constituem “realidades nacionais nas quais os povos indígenas são indiscutível minoria
demográfica e política”, enquanto na Bolívia, no Equador e no Peru as populações indígenas
são maioria ou significativamente numerosas. Deste modo, “nos países onde a presença
indígena é maciça, os índios podem ser minoria política, mas sempre têm o potencial de se
transformar em maioria, no sentido de assegurar posições de poder efetivo em nível nacional”.
O volume demográfico pode não ser a condição suficiente, mas, certamente,
é a condição necessária para que uma mobilização pelo acesso ao poder
nacional seja bem-sucedida. É preciso haver uma substancial massa crítica
no país para que o poder de barganha política dos indígenas possa
realizar-se. Por mais que uma minoria demográfica se organize e reivindique
poder político, a mera desproporção entre indígenas e nacionais tolhe as
possibilidades de sucesso no campo da política nacional. Há representantes
indígenas em diversos parlamentos do continente [o que não inclui o Brasil],
mas, onde os constituintes não passam de uma pequena fração da sociedade
dominante, as chances de mudanças substanciais no equilíbrio de forças
interétnicas são ínfimas (RAMOS, 2012, p. 09, grifo nosso).
Além do aspecto demográfico, Urquidi, Teixeira e Lana (2008, p. 211) destacam que o
quadro geral da organização coletiva indígena na América Latina constituído por um cenário
de demandas heterogêneas, com “graus distintos de luta pela sobrevivência, ora por interesses
95 “o Chile não se autodefine, nem implícita nem explicitamente, como um país pluriétnico. Ainda regido pela Constituição de 1980, ele é um dos Estados mais resistentes às normas internacionais sobre direitos indígenas”, tendo ratificado a Convenção n.º 169 da OIT apenas no ano de 2008. “A modernidade do Estado chileno contrasta dolorosamente com a sua retrógrada política indigenista” (RAMOS, 2012, p. 15).
133
imediatos, como acesso à terra, ora por aspectos mais amplos do âmbito da sobrevivência
cultural, ora confrontos no plano nacional que envolvem interesses econômicos globalizados”.
Verificadas estas especificidades, os casos da Bolívia e do Equador merecem destaque à medida
em que constituem as experiências mais avançadas do que Garcés (2009) chamou de construção
descolonizada de um Estado plurinacional.
Ainda de acordo com Urquidi, Teixeira e Lana (2008, p. 218), a partir da articulação
entre povos e movimentos indígenas em diferentes países da América Latina, a temática passa
a ser “um problema de ordem política, e não mais apenas uma questão étnica, antropológica ou
social, a ser considerada pelos Estados dentro da formulação e implementação de políticas
públicas”. Segundo Urt (2012, p. 19) enquanto permaneceram atuando no âmbito político
nacional, os direitos e as demandas indígenas foram sistematicamente ocultados e limitados,
visto que “a negociação das relações entre os Estados e os povos indígenas era feita a partir de
uma posição de poder dos Estados” (URT, 2012, p. 19).
Verifica-se, então, que após estes povos alcançarem certo nível de articulação regional
e de participação nas arenas políticas internacionais, houve uma mudança nas relações de força
entre o Estado e os povos indígenas. Para este autor:
Em momentos de negociação política (ou falta dela), quando fica clara a
posição colonialista dos Estados nacionais na relação com os povos indígenas,
a tendência natural é que estes venham a encontrar no movimento indígena
transnacional alternativas externas mais vantajosas (URT, 2012, p. 19).
Neste sentido, “o direito dos povos indígenas não se restringe [mais] à política interna
de cada país, mas vem se transformando em normas de ordem pública internacional que cada
país deve aplicar em escala local” (URQUIDI, TEIXEIRA e LANA, 2008, p. 200).
A teoria sócio-política observou que a politização recente das questões étnicas
resulta de uma confluência de no mínimo três aspectos que atuam de modo
interligado: (a) o desenvolvimento do Direito Internacional, caracterizando os
direitos indígenas como parte específica dos Direitos Humanos; (b) a
emergência de movimentos indígenas que atuam, nacional e
internacionalmente, cada vez mais como grupos de interesse dentro da
sociedade civil e nos espaços públicos democráticos, pressionando por uma
nova leva de direitos coletivos; e (c) os processos recentes de reformas
constitucionais em vários países, reconhecendo – pelo menos em princípio –
o caráter multiétnico de suas sociedades (SIEDER, 2002 apud URQUIDI,
TEIXEIRA e LANA, 2008, p. 201).
Fajardo (2009, p. 25-27), analisou este processo de reformas constitucionais na América
Latina a partir da identificação de três ciclos. De acordo com a autora, o primeiro ciclo teve
início nos anos 1980, “e caracteriza-se pela introdução do direito – individual e coletivo – à
identidade cultural, junto com a inclusão de direitos indígenas específicos”. A autora ressalta
134
que o primeiro país a realizar este tipo de reforma constitucional foi o Canadá, em 1982, seguido
de dois países centro-americanos, a Guatemala em 1985 e a Nicarágua em 1987. Estes últimos,
buscando “sair de processos bélicos e reconciliar as suas sociedades, incluindo o
reconhecimento de direitos indígenas e, no caso da Nicarágua, um sistema de autonomias”. Para
a autora, a nova constituição do Brasil, de 1988, “está no limiar do segundo ciclo” e destaca-
se, entre outros motivos, porque “já reconhece algumas das concepções debatidas na revisão do
Convênio 107” da OIT e que viriam a ser adotados na Convenção n.º 169, um ano depois, em
1989 (FAJARDO, 2009, p. 25-26).
Na avaliação da autora, o segundo ciclo de reformas ocorre durante os anos 1990, e tem
como principal característica a incorporação, em diferentes níveis, dos direitos indígenas
contidos na Convenção n.º 169 da OIT. Fajardo (2009, p. 26) identifica que “este ciclo afirma
o direito (individual e coletivo) à identidade e diversidade cultural, já introduzido no primeiro
ciclo, mas desenvolve mais o conceito de “nação multiétnica” e “estado pluricultural””,
avançando, também em diferentes níveis, rumo à modificação do caráter do Estado. Este
segundo ciclo “se expande nas Américas Central e do sul (Colômbia 1991, México 1992,
Paraguai 1992, Peru 1993, Bolívia 1994, argentina 1994, Equador 1996 e 1998, Venezuela
1999)” (FAJARDO, 2009, p. 26). Neste contexto, a autora ressalta que:
A adoção do multiculturalismo nos anos noventa se deu paralelamente às
reformas de Estado, no contexto da globalização. Tais reformas implicaram,
por um lado, em políticas de ajuste e na retração de direitos sociais, e por
outro, na flexibilização de mercado e abertura às transnacionais. Um grande
número de corporações transnacionais se instalou em territórios dos povos
indígenas com efeitos contraproducentes com relação aos seus novos direitos
conquistados. O segundo ciclo, portanto, é de marcados contrastes e de
algum modo, inconsistente, pelo reconhecimento simultâneo de direitos
indígenas de um lado, e, de outro, políticas que permitem novas formas
de desapropriação territorial indígena como não havia ocorrido desde o
século XIX (FAJARDO, 2009, p. 26, grifo nosso).
De acordo com Santamaria (2006, p. 100):
los Estados utilizan estratégicamente el discurso del multiculturalismo para
apaciguar las tensiones locales y responder a la presión internacional de las
organizaciones sociales, en el marco de las denuncias por la implementación
de los megaproyectos económicos y la violación de los derechos de los
pueblos indígenas.
Já o terceiro ciclo identificado por Fajardo (2009, p. 27) ocorre durante a primeira
década do séc. XXI, e traz para o cenário das reformas constitucionais o importante debate
sobre “o “Estado plurinacional” e um modelo de pluralismo legal igualitário, baseado no
diálogo intercultural”. Verificada “a crise do modelo de ajuste estrutural e políticas neoliberais,
135
e a mudança política na maioria dos países latino-americanos” a autora ressalta que a partir de
então “os povos indígenas demandam que sejam reconhecidos não apenas como “culturas
diversas”, mas como nações originárias ou sujeitos políticos coletivos com direito a participar
nos novos pactos do Estado, que se configurariam, assim, como Estados plurinacionais”.
Além disso, dado que nestes dois países (Bolívia e Equador), as populações indígenas
não apenas são majoritárias, como também conquistaram força política no cenário nacional, os
povos indígenas se opuseram ao desmonte das funções sociais do Estado que vinha sendo
realizado, e à abertura da economia do países para as empresas transnacionais. Deste modo, “o
encerramento do processo boliviano – que acabou com um novo texto constitucional pactuado
fora da assembleia – reflete as resistências teóricas e políticas” dos povos indígenas
(FAJARDO, 2009, p. 27).
Assim, Fajardo (2009, p. 28-29) oferece uma tabela sintetizando sua classificação das
reformas constitucionais latino-americanas de acordo com três ciclos, a partir da qual pequenas
alterações:
Tabela 3 - Reformas Constitucionais e Direitos Indígenas na América Latina
Primeiro Ciclo Segundo Ciclo Terceiro Ciclo
Período 1982-1988 1989-2005 2006-?
Países Canadá – 1982
Guatemala – 1985
Nicarágua – 1987
Brasil - 1988
Colômbia – 1991
México – 1992
Peru – 1993
Bolívia – 1994, 2004
Argentina – 1994
Equador – 1998
Venezuela – 1999
Bolívia – 2007-8
Equador – 2008
Contextos
Nacionais
- Países com alta
diversidade
cultural/étnica;
- Presença indígena em
contextos bélicos ou
pós-bélicos (Nicarágua,
Guatemala)
- Articulação de movimentos
indígenas;
- Políticas neoliberais:
Reformas estruturais dos
Estados, redução de direitos
sociais, abertura a
transnacionais
- Fracasso de políticas neoliberais
- Forte presença indígena em
constituintes;
- Pressão para que o Estado
retome responsabilidade social
Motivações
e/ou Contexto
Internacional
- Atuação dos
Movimentos indígenas;
- Emergência do
Multiculturalismo e
direito à diversidade
- Convenção n.º 169 da OIT;
- Multiculturalismo;
- Pluralismo jurídico;
- Fim da Guerra Fria
- Demanda pelo reconhecimento
do caráter Plurinacional dos
Estados
Quadro
normativo
internacional
1982 – Grupo de
Trabalho da ONU
sobre povos indígenas;
1989 – Adoção da Convenção
169 da OIT
Aprovação da Declaração das
Nações Unidas sobre Direitos dos
Povos Indígenas, em 2006 pelo
136
1987 – Revisão da
Convenção 107 da OIT
1991 – Ratificação da
OIT/169 pelo México e todos
países andinos
Conselho de Direitos Humanos, e
em 2007 pela Assembleia Geral
Sujeitos de
direitos
- Comunidades
(Nicarágua)
- Grupos étnicos
(Guatemala)
- Povos aborígenes
(Canadá)
- Comunidades
- Povos Indígenas
- Povos Originários (Peru)
- Comunidades
- Povos Indígenas
- Nações Indígenas (Bolívia)
- Nacionalidades Indígenas
(Equador)
Elementos
incluídos nas
Constituições
- Multiculturalismo
(Canadá)
- Direito à identidade
cultural (Guatemala,
Nicarágua)
- Multietnicidade e
Autonomias
(Nicarágua)
- Direitos Indígenas
(Brasil)
- Direito à identidade e
diversidade cultural
- Definição da Nação /
República / Estado
multicultural
- Direitos coletivos indígenas
- Reconhecimento do
pluralismo jurídico:
autoridades próprias,
justiça/jurisdição e direito
consuetudinário
- Direitos de consulta e
participação;
- Responsabilidade social do
Estado
- Novos direitos sociais: à água,
ao bem-estar
- Direitos da Natureza (Equador)
- Direitos de indivíduos,
comunidades, povos, nações,
nacionalidades indígenas
- Autonomias indígenas (Bolívia)
- Jurisdição indígena
- Direitos das mulheres indígenas;
- Direito de defesa e garantias;
Limites - Reconhecimento da
diversidade não
modifica o caráter do
Estado
- Não se reconhece
pluralismo jurídico
nem jurisdição própria
- Falta de novas formas de
participação e de consulta com
estruturas institucionais
- Redução das
responsabilidades sociais do
Estado
- Desregulamentação abre
novas formas de penetração
das transnacionais em
territórios indígenas
- Bolívia: novo texto reduz alguns
avanços do texto inicial (restringe
a justiça indígena e elimina
instâncias mistas de controle
constitucional)
- Bolívia: discutiu-se mas não
constou no texto final o controle
misto intercultural de conflitos de
competência que reflitam
pluralismo jurídico igualitário
Fonte: adaptado de FAJARDO (2009, p. 28-29)96.
Complementando este cenário, Barié (2003, p. 87 apud URQUIDI, TEIXEIRA e
LANA, 2008, p. 212-213) identifica “três grupos de Estados e níveis de envolvimento deles
com os direitos indígenas”:
(a) Estados que não se preocupam em incorporar nas suas leis fundamentais
direitos para as minorias étnicas, nem possuem o conceito de indígenas nas
suas constituições (Belize, Chile, Guiana Francesa, Suriname e Uruguai). São
países ou com tradição legal de influência anglo-saxônica, que desconsidera a
heterogeneidade social da sua comunidade nacional, ou que não renovaram
96 As alterações realizadas na tabela original de Fajardo (2009, p. 28-29) se resumiram basicamente à disposição das linhas da tabela. A ordem apresentada pela autora era a seguinte: Motivações e/ou contexto internacional, Período, Países, Quadro normativo internacional, Contexto nacional, Sujeitos de direitos, Elementos incluídos nas Constituições, e, Limites.
137
suas constituições, inspirados ainda no liberalismo individualista e
universalista do século XIX;
(b) Estados que constitucionalmente outorgam algum tipo de proteção pontual
a seus grupos étnicos, mas dentro de um marco legal incompleto ou pouco
articulado, e que geralmente têm um enfoque evolucionista e assimilacionista
(Costa Rica, El Salvador, Guiana e Honduras);
(c) Estados que incorporaram uma extensa legislação indigenista nas
Constituições, embora com profundidade e abrangência diversas. Eles
assumem responsabilidades em relação a suas comunidades e fixam certas
regras para permitir a sobrevivência cultural e a proteção dos territórios
indígenas. São países que recentemente incorporaram as demandas de
cidadania étnica: a Guatemala (1986), a Nicarágua (1987 e 1995) e o Brasil
(1988). Além destes países, compõem este grupo a Argentina e o Panamá
(1994), a Bolívia (1995), a Colômbia (1991), o Equador (1998), o México
(1992 e 2001), o Paraguai (1992), o Peru (1993) e a Venezuela (1999)”.
Feito este extenso levantamento sobre as características das reformas constitucionais e
dos direitos reconhecidos aos povos indígenas na América Latina, resta-nos analisar, ainda que
brevemente, a efetividade destes direitos e se, de fato, tal reconhecimento levou a mudanças de
concepção destes Estados e de suas relações com os povos indígenas. Segundo Ramírez (2009,
p. 216) um dos principais desafios identificados é o de “operacionalizar os direitos que
contemplam, traduzindo-os em práticas coerentes com a letra da lei”. Para esta autora, “a
construção do já tão discutido Estado intercultural e multinacional segue sendo uma tarefa
inconclusa e um desafio”.
a necessidade de operacionalizar os dispositivos constitucionais e a falta de
desenvolvimento normativo infraconstitucional absorveram parte do impulso
inicial consagrado normativamente pelas Cartas Fundamentais dos Estados. É
por isso que, quando tudo apontava para um inevitável e iminente processo de
transformação das “práticas”, o certo é que com quase duas décadas desse
movimento, não foram produzidas mudanças perceptíveis e capazes de
traduzir as inovações constitucionais em ações concretas. Seja por
interpretações ambíguas que exigem uma legislação secundária, seja por não
existir o compromisso ou a vontade política para a implementação do
conteúdo das normas constitucionais, esse reconhecimento não tem se
mostrado efetivo a ponto de garantir os direitos dos povos indígenas [...] “a
pergunta central é, definitivamente, se as mudanças nas constituições
nacionais (que seguem mantendo o mesmo modelo constitucional
herdado na conformação dos Estados), podem, à sua vez, produzir
transformações genuínas na distribuição dos poderes dentro do mesmo
Estado (RAMÍREZ, 2009, p. 217-218, grifos nossos).
Na nossa perspectiva, tendo como referência central o caso do Brasil, há numerosos
elementos demonstrando que a reforma constitucional não tem se mostrado suficiente para
barrar, superar, muito menos para reverter, as condições históricas de usurpação territorial,
exploração, violência, negação identitária e cultural, e marginalização dos povos indígenas no
interior do Estado-Nação. Mesmo com o estabelecimento de um rol inédito de direitos nas
138
constituições nacionais, é possível verificar, conforme aponta Fajardo (2009, p. 51), que os
principais problemas enfrentados contemporaneamente pelos povos indígenas coincidem com
a falta de garantia destes direitos já estabelecidos:
Entre os principais problemas apresentados aos povos indígenas estão os
seguintes: falta de autonomia para definir seu modelo de desenvolvimento.
Exclusão de uma efetiva participação no desenho, implementação e avaliação
de políticas públicas, programas e ações estatais. Não se realiza a consulta
prévia; Desapropriação territorial. Apropriação, saque e destruição dos
territórios, recursos naturais e biodiversidade dos povos indígenas por
empresas transnacionais, com o aval do Estado, sem respeitar a vida humana
e o meio ambiente. Aprofundamento da pobreza, e consequente mortalidade,
derivada da vulnerabilidade social, econômica e ambiental; falta de
oportunidades de desenvolvimento econômico compatível com a cultura e
respeito ao ambiente e em um esquema de mercado justo; não se dá um
suficiente reconhecimento aos povos indígenas. Não se respeita suas
instituições, autonomia e autogoverno; as ações coletivas de reivindicação
social dos povos indígenas são objeto de criminalização e penalização.
Também se reprime o exercício da própria justiça e direito indígena; os
serviços de educação bilíngue intercultural são insuficientes e de baixa
qualidade; há pouco acesso aos serviços públicos; mantêm-se formas de
exploração trabalhista e trabalho forçado; não se respeitam os lugares
sagrados nem a espiritualidade; há discriminação (FAJARDO, 2009, p. 51).
Com relação aos sistemas judiciais, Fajardo (2009, p. 57) aponta que “ainda há uma
grande debilidade dos Estados para proteger os indígenas quando seus direitos têm sido
violados”, sendo que, em muitos casos, é o próprio Estado que viola os direitos indígenas ou
que permite a terceiros tais violações. Para Ramírez (2009, p. 224), “há certo consenso em
afirmar que a justiça entrou em colapso, o que se traduz na sua lentidão em dar respostas” e,
“diante desse diagnóstico, é pelo menos otimista pensar que esse mesmo sistema judiciário será
capaz de “velar” por uma constituição tão abrangente na proteção de direitos”. Além disso, a
autora destaca que:
No afã de ampliar as categorias de direitos protegidos, as constituições mais
recentes têm incorporado não apenas os tratados internacionais – em sua
maioria, com hierarquia constitucional – nos seus textos, mas também uma
miríade de temas que geram um tipo de “retórica constitucional”, trazendo
assim o desafio da sua materialização em práticas concretas (RAMÍREZ,
2009, p. 224).
Assim, as principais alternativas de reivindicação dos povos indígenas pela garantia de
seus direitos continuam sendo a busca por instrumentos externos ao Estado, com destaque para
o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (a Comissão e a Corte).
Ramírez (2009, p. 225) identifica também o desafio diante dos países latino-americanos
de se elaborar “uma engenharia constitucional diferente, que se aparte da tradição constitucional
latinoamericana baseada na representatividade de um só povo, para gerar um paradigma que
139
estabeleça a participação não apenas da cidadania (como indivíduos isolados), mas também a
dos povos indígenas”. Neste sentido, outro problema identificado é o fato das instituições não
indígenas serem dominantes no desenho constitucional, inclusive aquelas que tratam
especificamente de assuntos indígenas, vide o caso da própria Fundação Nacional do Índio, no
Brasil, cuja representatividade indígena em seus quadros sequer é prevista e regulamentada.
Assim, as estruturas judiciais e administrativas do Estado, permanecem sendo “monoculturais,
monolinguísticas e monoétnicas” (LINERA, 2002 apud RAMÍREZ, 2009, p. 231).
As mudanças introduzidas na Constituição são muitas e variadas, mas não são
suficientes para remover as estruturas pré-existentes. São privilegiadas as
instituições não-indígenas, mas, ainda que se incorpore a presença indígena
em cada uma delas, segue predominando uma visão que é alheia às formas
locais e tradicionais de organização do poder. Definitivamente, as formas de
organização próprias de cada um dos povos indígenas (deve-se destacar que
não existe uma só forma de organização indígena, mas sim tantas quanto os
povos existentes) não são refletidas pelo modelo constitucional. Dessa forma,
as instituições clássicas se tornam “mais indigenistas”, mas não existe a
construção real de um pacto que resulte no respeito irrestrito de instituições
indígenas (como formas de administrar a justiça, tomar decisões, organizar as
comunidades, etc.) (RAMÍREZ, 2009, p. 228).
Por fim, o último e mais abrangente desafio analisado por Ramírez (2009, p. 228) é o
fato de que, “com uma nova ideia de Constituição, renova-se [ou deveria renovar-se] também
a concepção do Estado de Direito”. Para a autora, “é necessário redefinir o marco normativo e
político no qual são gestadas essas novas constituições”. Apenas assim pode-se vislumbrar a
possibilidade de que o Estado de Direito não seja apenas inclusivo mas também representativo
em relação aos povos indígenas, ou seja, que contemple seus direitos, interesses, participação
política e direito à autodeterminação. Neste sentido:
Os textos constitucionais da Bolívia e do Equador apresentam-se como pontos
genuínos de inflexão na atual cena política, com um relevante potencial
transformador para reorganizarem o poder e construírem fortes democracias
inclusivas. Uma Constituição renovada deve descentralizar efetivamente o
poder, possibilitando a “intervenção com eficácia” nos distintos níveis de
governo e evitando, assim, que no âmbito nacional se definam os assuntos
mais relevantes, com os parâmetros de um único povo (RAMÍREZ, 2009, p.
231).
Segundo Ramírez (2009, p. 231-232), “as constituições [latino-americanas] sempre
mostraram sua face mais amável, aceitando cada vez mais direitos. Porém, na prática, elas
desconheceram amplos setores de nossas populações”. Esta retórica não foi acompanhada da
construção das “ferramentas que possibilitassem a participação ativa na conformação de um
Estado do qual fazem parte os diferentes povos indígenas”. Ainda de acordo com esta autora, a
construção de um “constitucionalismo indigenista latino-americano” exige “um olhar
140
radicalmente diferente daquele sustentado até o presente quanto à concepção do Estado, ao
alcance das normas constitucionais e a novos modos de gerar consenso entre povos com
histórias, tradições e interesses muitas vezes conflitantes”.
Analisado este processo de reformas constitucionais nos países latino-americanos,
passemos então ao estudo da dimensão internacional dos assuntos e direitos indígenas, tendo
como referência inicial a Convenção nº 169 da OIT.
3.3 Os Assuntos Indígenas na Agenda da Política Global: Direitos Humanos, Autodeterminação
dos Povos e Direitos Indígenas;
A emergência de normas internacionais protegendo os direitos indígenas
[também] não foi uma concessão de estados-membros bem intencionados na
ONU, mas sim fruto de um poderoso movimento indígena global. [...] Lutas
contemporâneas pela autodeterminação indígena impactam os contornos do
Estado mais frequentemente e mais profundamente do que usualmente se quer
reconhecer (PICQ, 2017, p. 352).
Nesta seção abordamos as transformações em curso no cenário internacional a partir da
segunda metade do século XX que contribuíram para o processo de inserção dos assuntos
indígenas na agenda política global e para o fortalecimento dos direitos e demandas destes
povos. Nota-se que, assim como ocorreu nos níveis nacional e regional, o protagonismo
indígena também foi decisivo no âmbito da política internacional. Além deste protagonismo,
destacamos os seguintes elementos do contexto histórico internacional: 1) o processo de
emergência, fortalecimento político e aprofundamento dos direitos humanos; 2) o processo de
descolonização dos países africanos e asiáticos a partir da década de 1960, e o desenvolvimento
do princípio de autodeterminação dos povos; 3) o surgimento e fortalecimento de novos temas
e novos atores na política internacional dentre os quais destacam-se as organizações
internacionais e não-governamentais, bem como a ascensão política da temática ambiental; 4)
o fim da guerra fria, e as decorrentes transformações na política internacional; e, 5) o fenômeno
141
da globalização, devido à expansão econômica, territorial, de transportes e informacional,
fatores que inevitavelmente geram efeitos – impactos e possibilidades – para os povos
indígenas.
A conjugação destes fatores contribuiu para que os povos e organizações indígenas e
indigenistas conquistassem espaço e voz no âmbito da política internacional/global,
conseguindo, assim, expor a situação destes povos e defender o reconhecimento de seus direitos
tanto no âmbito nacional quanto no internacional. De acordo com Elíbio Júnior e Almeida
(2013, p. 06).
(...) é preciso reconhecer a importância da descolonização da África e da Ásia
como sendo um momento marcante do ponto de vista geopolítico, pois
assinala uma drástica mudança no cenário internacional. A libertação de mais
da metade da população mundial do domínio direto dos países europeus e a
diáspora dos povos dessas localidades em fluxos migratórios que
reproduziram as rotas coloniais demandou uma reflexão crescente acerca dos
regimes coloniais [...] A partir de então, uma série de análises e estudos
voltados a este novo cenário mundial surgido dos escombros do colonialismo
começaram a tomar corpo (ELÍBIO JÚNIOR; ALMEIDA, 2013, p. 06).
Entre os reflexos deste processo, é realizada em 1977 a primeira conferência
internacional de Organizações Não-Governamentais na ONU sobre a discriminação contra
populações indígenas das Américas. De acordo com Somoni (2009, p. 38-39), “essa conferência
constitui um importante marco na medida em que, pela primeira vez, os grupos indígenas
reivindicaram a designação de povos, e não mais de minoria étnica”. No centro desta
reivindicação está o princípio da autodeterminação dos povos, presente na Carta das Nações
Unidas, e as implicações que o reconhecimento deste princípio aos povos indígenas poderia
acarretar para os Estados nacionais.
O conceito de Autodeterminação dos Povos surgiu na política internacional no decorrer
das negociações de paz posteriores à I e, principalmente, à II Guerra Mundial, quando se
discutia o assunto da descolonização de regiões da África, da Ásia e da Oceania. Durante os
processos de negociação política pós-guerra houve clara oposição entre as potências coloniais
e os países periféricos, os quais clamavam por autonomia, pelo fim da exploração estrangeira e
da influência das metrópoles sobre os governos locais.
Assim, o conceito de autodeterminação representava os anseios de muitas nações, e foi
estabelecido como sendo o direito de se autogovernar sem interferências externas em suas
escolhas políticas, econômicas, culturais, religiosas, etc. Seu reconhecimento pelo Direito
Internacional não foi imediato, visto que o registro do direito à autodeterminação na Carta das
142
Nações Unidas data de 1960, com as Resoluções da Assembleia Geral n° 1514, 1541 e 1542,
todas de dezembro daquele ano.
Portanto, à época de seu surgimento, a noção de autodeterminação esteve pautada no
anseio de comunidades políticas que desejavam se constituir enquanto Estados e alcançarem
sua independência nacional. Com a evolução internacional dos debates sobre Direitos
Humanos, houve um alargamento na aplicação do conceito de autodeterminação dos povos, que
passou a atender situações de povos sujeitos a uma dominação não necessariamente estrangeira,
como nos casos do apartheid na África do Sul.
Então, a evolução desta postura de defesa da autodeterminação pelas Nações Unidas
tornou mais elaborada a concessão de tal direito a povos que vivem oprimidos por regimes
políticos e sociais distintos dos seus próprios, como é o caso dos povos indígenas em relação
aos Estados e sociedades nacionais. Com isso, o direito a autodeterminação foi estendido,
teoricamente, a qualquer povo que contenha relações “capazes de demonstrar sua unidade e que
seja visível a capacidade do grupo de manter a coesão social e a observância pelos membros do
grupo das regras de convivência” (BARBOSA, 2012, p. 18). Logo, não é necessária a existência
de um governo determinado pelos padrões do Estado-Nação para que um povo seja digno do
direito à autodeterminação.
desde 1989, povos indígenas têm feito uso vigoroso da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) para defender seus direitos em
cortes internacionais. Em 2007, a Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP) - o tratado mais importante para os
direitos indígenas no mundo desde 1985 - confirmou a legitimidade global das
reivindicações em prol da autodeterminação (PICQ, 2017, p. 351).
Entretanto, como veremos nas seções seguintes, as negociações sobre a extensão do
direito de autodeterminação aos povos indígenas se deram mediante forte oposição dos Estados
nacionais, principalmente de parte de Estados que foram colônias e que possuem significativa
parcela indígena em sua população. Assim, importa ressaltar a observação feita por Barbosa
(2012, p. 17):
O paradoxal nesta situação é que aqueles Estados que se beneficiaram do
direito de autodeterminação dos povos contra os Estados coloniais, serão os
mesmos a negar tal direito a outros povos, que se viram apenas transferidos
da opressão estrangeira para a opressão interna.
Veremos nas próximas seções que este assunto foi motivo de intensos debates durante
a preparação e as negociações tanto da Convenção n.º 169 da OIT, de 1989, quanto da
Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Por fim,
prevaleceu a perspectiva soberanista dos Estados Nacionais. Em ambos documentos, tal posição
143
fica clara desde seus preâmbulos, nos quais se lê, entre diferentes expressões, que a
autodeterminação dos povos indígenas está limitada e subordinada à indivisibilidade das
soberanias estatais, e à exclusividade dos Estados enquanto autoridade política-territorial
legítima em todo o planeta.
Por ora, o importante é destacar que o Direito Internacional dos Povos Indígenas passou,
então, a ser reconhecido como uma forma de reparação dos danos sofridos por estes povos
devido aos processos históricos de dominação, colonização, escravização, exploração, esbulho
territorial, etc.. Para Carpenter e Riley (2014, p. 173-174), a convergência entre a ascensão
internacional dos direitos humanos e as mudanças de paradigma apontadas pelos processos de
descolonização e pela teoria pós-colonial desencadearam um momento “jurisgenerative”
(gerador de direitos), no qual os povos indígenas obtiveram sucesso em inserir suas
reivindicações e, de fato, influenciar no aprofundamento e na diversificação da noção de
direitos humanos.
As indigenous peoples have become actively engaged in the human rights
movement around the world, the sphere of international law, once deployed
as a tool of imperial power and conquest, has begun to change shape.
International human rights law now serves as a basis for indigenous peoples'
claims against states and even influences indigenous groups' internal
processes of revitalization. Empowered by a growing body of human rights
instruments, some as embryonic as the 2007 United Nations Declaration on
the Rights of Indigenous Peoples (UNDRIP), indigenous peoples are
increasingly recognized in international human rights law as possessing the
"right to have rights”. From a historic rights vacuum, indigenous peoples
have emerged to embrace the evolution of a global "human rights culture"
and to articulate rights ranging from individual freedom and equality to
collective selfdetermination, property, and culture (CARPENTER; RILEY,
2014, p. 175).
Entre estes direitos destacam-se: o reconhecimento da identidade e das culturas
indígenas como características permanentes, ao invés de uma condição transitória fadada à
assimilação pelas sociedades nacionais; o direito à autodeterminação dos seus modos de vida,
organização social, econômica, religiosa e política (neste último aspecto, com ressalvas); o
direito à posse de seus territórios tradicionais, cabendo aos Estados a proteção destes; e, a
necessidade (formal) de consulta e consentimento prévio, livre e informado para a realização
de atividades econômicas e/ou exploração de recursos naturais em terras indígenas, bem como
o direito de participação destes povos nos ganhos econômicas decorrentes de tais atividades.
Dedicada à análise da institucionalização da questão indígena na ONU a partir da década
de 1990, que culminou na criação do Fórum Permanente de Questões Indígenas (UNPFII, sigla
em inglês), no ano de 2000, Santamaria (2006, p. 93-97) afirma que
144
“a principios de los años ochenta, la categoría de “pueblo indígena” no hacía
parte del lenguaje de la ONU y las organizaciones indígenas no tenían
derecho a sesionar entre los Estados miembros” […] “los Estados querían
impedir el acceso de los representantes indígenas a la sociedad de Naciones”
[visto que o “problema indígena” trazia dificuldades econômicas e políticas
fundamentais, sobretudo com relação à] “explotación de los recursos
naturales en los territorios indígenas y la definición jurídica de los pueblos
indígenas como sujetos del derecho internacional”.
Assim, a partir de um estudo detalhado, Santamaria (2009, p. 93) identificou que o início
da institucionalização da “questão indígena” na ONU se deu através do Conselho Econômico e
Social (ECOSOC), quando da elaboração de relatórios sobre a discriminação racial nos anos
1960. Segundo a autora, em 1971, o ECOSOC, emitiu parecer favorável à realização de um
estudo específico sobre a “discriminación de los pueblos indígenas y la adopción de medidas
nacionales e internacionales para la eliminación de la discriminación racial”, trabalho para o
qual foi designado o diplomata equatoriano José Martinez Cobo, que viria a se tornar um ator
importante na temática indígena em nível internacional. Tal relatório97 foi apresentado no ano
de 1983.
Alguns anos mais tarde, a II Conferência Mundial para os Direitos Humano promovida
pela ONU em Viena, no ano de 1993, evento de grande importância no contexto internacional
pós-Guerra Fria, também deu sua contribuição ao fortalecimento dos direitos indígenas à
medida em que aprovou uma “recomendación a la Asamblea General de Naciones Unidas para
la creación de un foro permanente para las cuestiones indígenas”, o qual viria a ser de fato
instituído apenas no ano de 2000 (SANTAMARIA, 2006, p. 99). Desde então, “a proliferação
de órgãos da ONU se expandiu significativamente [...] criando mecanismos de expertise e de
monitoramento, além de consolidar normas”, e, deste modo, “as reivindicações indígenas
ganharam ímpeto à medida que o sistema internacional de direitos humanos se consolidou”
(NIEZEN, 2003 apud PICQ, 2017, p. 351).
Neste contexto, é criado o Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas (GTPI), que
passa a se reunir anualmente durante duas semanas no mês de junho. Assim, foi estabelecido
que o GTPI ficaria formalmente aberto à participação de Organizações Indígenas, e, neste
97 “El relator especial estudia una gama importante de problemas de derechos humanos, el rol de las
organizaciones intergubernamentales, la eliminación de la discriminación, los problemas fundamentales relativos a los derechos humanos, al igual que acciones precisas frente a la salud, la vivienda, la educación, la lengua, la cultura, las instituciones del orden social y jurídico, el empleo, la tierra, los derechos políticos, las prácticas religiosas y la igualdad en materia de administración de justicia. Sus conclusiones, proposiciones y recomendaciones marcan una etapa importante en el exámen de los problemas de los derechos humanos de los pueblos indígenas por parte de la Organización de las Naciones Unidas. Un número importante de estos problemas son examinados y otros hacen parte de la resolución de la Subcomisión” (SANTAMARIA, 2006, p. 94, nota 3).
145
sentido, “se convertió en un catalizador de múltiples iniciativas de los pueblos indígenas”
(SANTAMARIA, 2006, p. 94-95). Sobre este período, Picq (2017, p. 351) ressalta que “a
participação de representantes de organizações indígenas no Grupo de Trabalho sobre as
Populações Indígenas (WGIP) pulou de 48 a 500 entre 1983 e 2005”.
El primer grupo de dirigentes indígenas internacionales participó por
primera vez en las sesiones de Naciones Unidas en 1982 en el marco del
GTPI. A partir de ese momento, toda persona indígena o representante de una
organización indígena puede participar formalmente en dicho grupo. […] En
1995 había trece ONG indígenas que contaban con el estatuto consultivo
ECOSOC, que participaban activamente en las actividades del GTPI […]
Según Irène Bellier, el Movimiento Indígena Internacional de los años
noventa, usuario del sistema de Naciones Unidas […] está compuesto por
organizaciones indígenas de 77 países aproximadamente. No obstante, las
organizaciones indígenas norteamericanas han tenido una participación muy
importante en el marco de las negociaciones internacionales
(SANTAMARIA, 2006, p. 95-97).
Entretanto, a participação dos povos indígenas neste ambiente político altamente formal
e burocratizado não se deu sem desafios. Ao analisar o conceito de “diplomacia indígena”, Taís
Julião (2012) ressalta que
a natureza e o alcance da participação indígena estiveram – e ainda estão –
condicionados, em grande medida, à adequação a linguagem-padrão da
participação política nos espaços institucionalizados globais. Seria, portanto,
dessa disciplina imposta aos povos indígenas para participar das discussões,
das negociações e dos processos decisórios que envolvem o reconhecimento
de seus direitos em âmbito global que nasce a diplomacia indígena. Em outras
palavras, a diplomacia indígena representa, em última instância, o esforço
necessário dos povos indígenas para que o diálogo aconteça; porém, no idioma
político “do branco” (JULIAO, 2012, n. p.).
Em contrapartida, a atuação dos povos indígenas nestas dinâmicas da política global
demonstra a capacidade de organização e atuação política destes povos, à medida que buscaram
interiorizar práticas políticas exógenas para poder exteriorizar suas demandas internas.
As últimas décadas do século passado [1980-1990] foram palco de
acontecimentos importantes para a articulação dos direitos indígenas, entre
eles o surgimento de grande número de organizações indígenas. [...] Essas
novas formas de representação política simbolizam a incorporação, por alguns
povos indígenas, de mecanismos que possibilitam lidar com o mundo
institucional da sociedade nacional e internacional. (GALLOIS, 2000, p. 5-10
apud VAZ, 2011, p. 9).
Com isto, e desde então, os povos e organizações indígenas têm conseguido inserir suas
demandas nos principais ambientes institucionalizados da política global. Dentre estas
demandas, tem ganhado destaque crescente as reivindicações pela proteção, demarcação
territorial e garantia dos direitos dos povos indígenas em situações de isolamento, sobretudo na
146
região amazônica. Atualmente, a proteção dos PII é uma reivindicação de grande parte dos
atores que compõem as redes transnacionais de defesa dos direitos indígenas, formadas por
organizações indígenas, indigenistas, movimentos sociais, organizações internacionais,
organizações não-governamentais, enfim, uma série de atores que se articulam em defesa de
direitos e causas relativas aos povos originários.
A edição das “Diretrizes de Proteção para os Povos Indígenas em Isolamento
e em Contato Inicial da Região Amazônica, do Grande Chaco y da Região
Oriental do Paraguai” por parte do “Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos”, lançado em junho de 2012 em Quito (Peru)
representa uma referência para os diferentes atores que trabalham com povos
indígenas em isolamento e em contato inicial na América do Sul. Diante da
pressão exercida por denúncias da sociedade civil organizada ou mesmo por
organismos internacionais, bem como da necessidade de criar mecanismos
para implementar obras de infraestrutura, os governos do Peru, Equador e
Colômbia, nesta última década, constituíram iniciativas com vistas a criar
estruturas para dar respostas à questão dos índios isolados em seus países
(VAZ e BALTHAZAR, 2013, p.96).
Portanto, mesmo sem estabelecer contato com as sociedades e instituições políticas
nacionais e internacionais, os povos indígenas isolados estão representados nas demandas
requeridas pelas redes transnacionais que atuam em defesa dos direitos dos povos originários.
Por fim, é importante ressaltar que o movimento indígena não se limitou aos canais
abertos, por seus próprios esforços, no âmbito do sistema ONU. Nas palavras de Santamaria
(2006, p. 100), “el movimiento indígena se desplega a escala global al final del período 1990-
2000”, processo que resultará no estabelecimento e fortalecimento das redes transnacionais de
defesa dos direitos indígenas. Atualmente, conforme ressaltado por Manuela Picq (2017, p. 352,
nota 4) o “ativismo global indígena é dinâmico para além dos corredores formais das
organizações intergovernamentais, como mostra a globalização da mídia indígena, a Rede
Mundial de Radiodifusores de Televisão Indígena e a proliferação de encontros hemisféricos”.
De acordo com a autora, eventos como as Cúpulas Continentais dos Povos e Nacionalidades
Indígenas de AbyaYala e a Cúpula Continental de Comunicação Indígena nas Américas
“testemunham a influência indígena na formulação de políticas públicas através das fronteiras”.
Assim, recuperada esta breve trajetória da institucionalização dos assuntos e direitos
indígenas em nível internacional, passemos, então, ao estudo dos principais instrumentos
internacionais sobre o tema: a Convenção nº 169 da OIT, de 1989; a Declaração das ONU sobre
Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
147
3.3.1 A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169) – 1989;
A Convenção nº 169 da OIT (adiante OIT-169) ainda é considerada o instrumento
jurídico internacional mais avançado no reconhecimento de direitos dos povos indígenas98,
mesmo tendo sido o primeiro documento de relevância no assunto. De acordo com Fajardo
(2009, p. 25), a OIT/169, “como único tratado em matéria de povos indígenas, segue
constituindo o “núcleo duro” dos direitos indígenas, graças à sua exigibilidade para os países
que o ratificaram”. Assim, a OIT-169 “serviu de fundamento para reformas institucionais e
legais internas, políticas públicas e desenvolvimento jurisprudencial” (idem).
Nesta seção, concordamos com o argumento central da literatura acadêmica de que esta
Convenção trouxe importantes contribuições para os direitos indígenas a nível internacional.
Para além do texto em si, uma das principais contribuições geradas por este instrumento resulta
da apropriação de seu conteúdo pelos próprios povos indígenas e organizações indigenistas,
fortalecendo a busca pela garantia de seus direitos e reivindicações em variados âmbitos
políticos.
Entretanto, consideramos necessário destacar que a proliferação de interpretações e
avaliações invariavelmente positivas sobre a OIT-169 resulta em uma relativa sobrevalorização
da mesma. Isto porque, como veremos a seguir, o texto da Convenção reconhece direitos,
realmente de modo inédito, mas também impõe limites, principalmente ao elemento central dos
direitos indígenas: a autodeterminação dos povos. Assim, se faz necessário lembrar da
habilidade negociadora e da visão estratégica que caracterizam a atividade diplomática,
representante dos interesses dos Estados. Neste sentido, em uma negociação relevante não se
faz concessões (no caso, os direitos indígenas) sem o estabelecimento de garantias (a
manutenção da exclusividade estatal enquanto autoridade política legítima). Assim, veremos
que através da OIT-169 ficou institucionalizada, pela primeira em nível internacional, a
subordinação da autodeterminação dos povos indígenas às soberanias estatais, e este
posicionamento é reproduzido até os dias de hoje, em todos os instrumentos jurídicos
internacionais sobre o tema.
Neste sentido, tendo em vista os objetivos da pesquisa, após abordarmos brevemente o
contexto histórico de adoção da OIT-169, faremos um estudo apenas dos aspectos principais
seu conteúdo, analisando suas contribuições e também suas insuficiências e limitações. São
98 Veremos na seção seguinte que a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas possui maior profundidade do que a OIT/169 em uma série de assuntos. Porém, a natureza jurídica deste dois documentos, teoricamente, confere maior efetividade à OIT/169 do que à referida Declaração.
148
eles: a questão autoidentificação étnica; o reconhecimento dos indígenas como povos e suas
implicações em termos de autodeterminação; as questões decorrentes do direito à consulta
prévia; e, uma breve análise da apropriação social, aplicação e efetividade da OIT/169 no Brasil.
Deste modo, temas também importantes tratados pela OIT-169, como saúde, educação escolar
indígena, igualdade formal de direitos, aspectos socioeconômicos, condições de trabalho, entre
outros, não serão analisados, devido aos limites desta seção.
Criada em 1919, a OIT deu início a uma série de estudos sobre as condições de trabalho
das populações indígenas em 1921, tendo instituído uma Comissão de Peritos em Trabalho
Indígena no ano de 1926, a fim de “emitir recomendações com vistas à adoção de normas
internacionais sobre a matéria”. Assim, desde a época de seu surgimento a instituição “tem
considerado, entre suas principais preocupações, a situação das chamadas “populações
indígenas” que representavam parte da força de trabalho99 nos domínios coloniais” (RAMOS;
ABRAMO, 2011, p. 05).
Assim, o primeiro documento de destaque da OIT sobre os povos indígenas foi a
Convenção 107, do ano de 1957, que tratava especialmente do direito à terra e das condições
de trabalho, saúde e educação destes povos. Fajardo (2009, p. 19) é mais específica quanto ao
contexto e objetivos deste primeiro documento da OIT:
O contexto da elaboração do Convênio 107 da OIT está dado pelo Programa
Indigenista Andino (ou missão andina) que a OIT dirigiu durante os anos
cinquenta, com a colaboração de outras agências das Nações Unidas. Tal
programa revelou que os problemas que sofriam os indígenas no mundo do
trabalho (trabalho forçado, abuso nos sistemas de contratação – recrutamento,
etc.) provinham da desapropriação territorial indígena ao que os haviam
levado as políticas precedentes. Portanto, este Convênio incorpora uma série
de direitos que vai muito mais além do tema laboral, como os direitos à terra,
o direito consuetudinário, entre outros (FAJARDO, 2009, p. 19).
Contudo, segundo Ramos e Abramos (2011, p. 05), a Convenção n.º 107 da OIT não
surtiu o efeito esperado pela instituição, visto que “graves problemas persistiram [...]
principalmente em decorrência do tratamento diferente que recebiam [os povos indígenas] em
relação ao dispensado aos demais segmentos da população nacional”.
Entre os efeitos do fortalecimento dos movimentos indígenas a partir das décadas de
1960 e 1970, fortes críticas foram direcionadas à Convenção 107, devido a suas “tendências
integracionistas e paternalistas, fato admitido pelo próprio Comitê de Peritos que, em 1986,
considerou-a obsoleta” (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 07). Neste cenário a OIT reconheceu a
99 É interessante notar, que, como veremos no Capítulo 4, a associação entre povos indígenas e “trabalho” também ocorreu no Brasil, no processo de criação do primeiro órgão indigenista estatal, em 1910: o então denominado Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN).
149
necessidade de rever a Convenção 107 “com vistas a corrigir a orientação assimilacionista das
normas anteriores” (OIT-169, 1989, Preâmbulo). Assim, a Organização “incluiu uma proposta
de revisão da Convenção nº 107 na pauta das Conferências Internacionais do Trabalho de 1988
e 1989” (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 07). Vale acrescentar a este contexto a importância dos
processos de descolonização dos países da África e da Ásia, sobretudo nos anos 1960 e 1970,
que certamente tiveram alguma influência no processo de elaboração e adoção da OIT/169,
apesar de não termos encontrados referências a respeito. Outros elementos deste contexto são
apontados por Fajardo (2009, p. 20):
o Convênio 169 foi adotado em 1989, à luz do questionamento ao quinto
centenário da penetração europeia nas américas por um movimento indígena
emergente. Nesse contexto também se produz uma onda de reformas
constitucionais na América Latina que se dão à par dos processos de
ratificação do Convênio núm. 169. Tais reformas estão enquadradas, de um
lado, nos programas de reforma do Estado e ajuste estrutural e, de outro, no
conjunto de demandas democratizantes dos novos movimentos sociais e
indígenas e o discurso do multiculturalismo.
Assim, a Convenção nº 169 foi adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho,
em Genebra, no ano de 1989, e entrou em vigor internacional em 1991, constituindo “o primeiro
instrumento internacional vinculante que trata especificamente dos direitos dos povos
indígenas e tribais” (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 07, grifo nosso). Entretanto, apesar de seu
caráter jurídico, a OIT-169 não prevê nem gera punições aos seus signatários.
Ao ratificarem a Convenção, os Estados membros comprometem-se a adequar
sua legislação e práticas nacionais a seus termos e disposições e a desenvolver
ações com vistas à sua aplicação integral. Assumem também o compromisso
de informar periodicamente a OIT sobre a aplicação da Convenção e de
acolher observações e recomendações dos órgãos de supervisão da
Organização (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 10).
De acordo com Fajardo (2009, p. 21) a OIT-169 foi ratificada por 13 países da América
Latina e um do Caribe. Nesta última região, dois países, “Panamá e El salvador, ainda não
substituíram o Convênio 107 pelo 169, razão pela qual o primeiro segue vigente. E
adicionalmente, cinco países da região ainda não ratificaram o 169, nem tampouco o anterior”.
São eles: Belize, Guiana, Nicarágua, Suriname e Uruguai. O Chile foi o último país a ratificar
a OIT/169, “com um processo de ratificação que começou em 1993 e foi concluído em 2008”.
Ainda segundo esta autora, merece atenção o fato de que na África e na Ásia, apenas dois países
(Nepal e Fiji) ratificaram a OIT/169.
No Brasil, o Congresso Nacional aprovou a Convenção nº 169 da OIT por meio do
Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e o governo brasileiro depositou o
instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho do mesmo ano.
150
Assim, a Convenção entrou em vigor no país exatamente um ano depois desta data, mas foi
promulgada apenas pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.
Passemos então à análise dos principais elementos presentes na Convenção 169 da OIT.
Povos indígenas e tribais;
O primeiro artigo da Convenção apresenta um parâmetro sobre a distinção dos povos
indígenas e tribais em relação a “outros seguimentos da comunidade nacional”. No caso dos
povos indígenas, esta distinção se baseia no “fato de descenderem de populações que viviam
no país ou região geográfica” antes do “momento de sua conquista ou colonização ou do
estabelecimento de suas fronteiras atuais” (Artigo 1º). Assim, vale ressaltar a menção, ainda
que superficial, ao fato de que os povos indígenas antecedem à constituição dos Estados
nacionais. Todavia, ao longo do documento, não se faz referência ao caráter originário dos
direitos indígenas, mesmo verificando-se que este princípio já constava em outros instrumento
jurídicos sobre o tema, como a Constituição Federal do Brasil, de 1988.
Autoidentificação;
Apesar de indicar os parâmetros acima mencionados, a OIT/169 estabelece a
autoidentificação como “critério fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam
as disposições” da Convenção (Artigo 1º). Este elemento possui importância central entre as
inovações trazidas por este documento. De acordo com Ramos e Abramo (2011, p. 08), o
critério de autoidentificação assegura que “nenhum Estado ou grupo social tem o direito de
negar a identidade a um povo indígena ou tribal que como tal ele próprio se reconheça”. Para
Mendes, Costa Filho e Santos (2014, p. 242), a partir do estabelecimento do critério da
autoidentificação “ficam resguardados, portanto, [também] a sua autorrepresentação e
autodeterminação”.
Duprat (2014, p. 59) aprofunda-se na análise do elemento da autoidentificação. Para a
autora, “há aqui um efeito real e simbólico de dimensões impressionantes: devolvem-se aos
diversos grupos as expressões com que foram cunhados [indígenas] pelo Estado
nacional/colonial, para que delas se apropriem e as ressignifiquem”.
De fato, anteriormente anotou-se que os sistemas classificatórios foram
fundamentais para assegurar ao Estado o domínio das designações e dos
direitos a elas equivalentes. Esse fenômeno corresponde a um período
histórico do Estado-nação que se pretende superado, no plano dos fatos e dos
direitos. Se a situação presente é de pluralismo do corpo social, se não mais
subsiste [ou não mais deveria subsistir] o poder de um grupo sobre os demais,
não há solução possível senão que cada qual assuma para si as suas definições
151
identitárias. A insistência nas classificações externas é a persistência de uma
luta por restauração de poder e dominação (DUPRAT, 2014, p. 60).
Entretanto, como veremos a seguir, através da OIT/169 os signatários concederam
autonomia identitária aos povos indígenas e tribais, mas limitaram os efeitos decorrentes deste
reconhecimento.
O reconhecimento, limitado, do termo “povos”;
O tema do item 3 do Artigo 1º constitui-se até os dias de hoje como elemento central do
debate, e da disputa, entre autonomia/soberania indígena e soberania estatal. Uma das principais
críticas feitas pelos movimentos indígenas à Convenção anterior da OIT, a de nº 107 de 1957,
foi a rejeição de serem chamados de populações, termo que “denota transitoriedade e
contingencialidade”, reivindicando o seu reconhecimento enquanto “povos”, que caracteriza
segmentos com identidade e organização próprias, cosmovisão específica e relação especial
com a terra que habitam (RAMOS; ABRAMO, 2011, p. 08).
Entretanto, a Convenção nº 169 tratou desta reivindicação dos povos indígenas nos
seguintes termos: “A utilização do termo povos na presente Convenção não deverá ser
interpretada no sentido de acarretar qualquer implicação no que se refere a direitos que possam
ser conferidos ao termo no âmbito do Direito Internacional” (Artigo 1º). Logo, segundo Ramos
e Abramo (2011, p. 09), “na interpretação das disposições do instrumento, o emprego do termo
“povos”, nessa acepção, limita-se exclusivamente ao âmbito das competências da OIT”.
Portanto, o reconhecimento dos indígenas enquanto “povos”, veio acompanhado da
subordinação das soberanias indígenas às soberanias estatais. Então, por meio OIT/169, este
posicionamento foi institucionalizado em nível internacional. Consequentemente, os efeitos do
direito à autodeterminação, que seriam decorrentes do reconhecimento dos indígenas como
“povos”, foram limitados ao princípio das soberanias estatais.
É neste ponto que reside nossa crítica, não encontrada na literatura sobre a Convenção:
do mesmo modo que o reconhecimento de direitos indígenas feito pela OIT/169 ofereceu
fundamento para os documentos internacionais subsequentes sobre o tema, tal subordinação da
autodeterminação dos povos indígenas à indivisibilidade das soberanias estatais também será
acompanhada por todos os instrumentos internacionais posteriores sobre assuntos indígenas.
Em outras palavras, a OIT/169 contribuiu de forma inédita para o avanço no reconhecimento
de direitos indígenas, mas também foi utilizada para institucionalizar a negação de soberania
aos povos indígenas.
152
Tais garantias parecem introduzir o princípio de autodeterminação de uma
forma específica no sentido do rumo da vida das comunidades; entretanto, não
aceitam o direito à autodeterminação dos povos no sentido do direito
internacional [...] isto é, na possibilidade de buscar uma soberania dentro da
forma política de Estado-Nação (URQUIDI, TEIXEIRA e LANA, 2008, p.
204).
Vale retomar, a este respeito, o trecho do preâmbulo que reconhece a aspiração destes
povos em “assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e de seu
desenvolvimento econômico e de manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, no
âmbito dos Estados nos quais vivem” (OIT/169, 1989, Preâmbulo, grifo nosso). O trecho
destacado, se repetirá algumas vezes ao longo do texto da Convenção, e dos demais
instrumentos internacionais sobre o tema, reforçando o posicionamento estatal acima
mencionado.
Entretanto, há que se relativizar esta crítica em alguma medida, visto que, à época, e no
contexto político das negociações da Convenção, talvez ainda não houvesse sobre a mesa ideias
e propostas avançadas em termos de autonomia e de soberania indígena, de modo
compartilhado com a soberania estatal. Todavia, o mesmo não se aplica quando da adoção da
Declaração da ONU (2007) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, tendo sido reiterado, neste
dois caso, o exclusivismo estatal enquanto autoridade política legítima sobre as comunidades
humanas ao redor de todo o planeta.
De acordo com Cunha (1994, p. 129-130)
Seja como for, as declarações e instrumentos internacionais falam
crescentemente, desde o fim dos anos 70, de povos indígenas. O receio de
alguns Estados, e do Brasil em primeira linha, é de que o termo povos possa
implicar o status de sujeito de Direito Internacional e, de acordo com a Carta
das Nações Unidas (art. 1.2) que reconhece o princípio da autodeterminação
dos povos, pôr em risco a integridade do território. No entanto,
tanto povos como autodeterminação podem ter entendimentos variados.
O fato é que o termo povos se generalizou sem implicar em ameaças
separatistas [...] A vulgarização do termo povos nos textos internacionais está
indo pari passu com a exclusão explícita de direitos à soberania. Por sua parte,
autodeterminação está sendo interpretada nos mesmos textos como vigência
do direito costumeiro interno e participação política dos povos indígenas nas
decisões que os afetam, não como reivindicação de soberania. (CUNHA,
1994, p. 129-130, grifo nosso).
O dever e o direito da Consulta prévia, livre e informada, e a polêmica do Consentimento;
Segundo Baldi e Ribeiro (2013, p. 244, “apesar de assegurar diversos direitos aos povos
indígenas e tribais, a consulta prévia, livre e informada é o maior destaque” da OIT/169. De
acordo com o texto da Convenção, a consulta é instituída como um dever dos Estados.
153
Obviamente, neste caso, o dever dos Estados implica em um direito da população, ou dos povos
em questão. Porém é válido retomar o texto da Convenção, onde se lê que: “os governos deverão
consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados [...] sempre que sejam
previstas medidas legislativas ou administrativas sujeitas de afetá-los diretamente100” (Art. 6º).
De acordo com Duprat (2014, p. 59), as principais questões relativas à Consulta são:
“quem consultar, como consultar, e os efeitos da consulta”.
A consulta é prévia exatamente porque é de boa-fé e tendente a chegar a um
acordo. Isso significa que, antes de iniciado o processo decisório, as partes se
colocam em um diálogo que permita, por meio de revisão de suas posições
iniciais, se chegar à melhor decisão. Desse modo, a consulta traz em si,
ontologicamente, a possibilidade de revisão do projeto inicial ou mesmo
de sua não realização. Aquilo que se apresenta como já decidido não
enseja, logicamente, consulta, pela sua impossibilidade de gerar qualquer
reflexo na decisão (DUPRAT, 2014, p. 64, grifo nosso).
Assim, o texto da Convenção cita como “procedimentos adequados”, que os “os
governos deverão”: consultar as “instituições representativas” destes povos; “criar meios pelos
quais estes povos possam participar livremente [...] em todos os níveis decisórios”; e, que as
consultas “deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no
sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser
alcançado” (Artigo 6º, grifo nosso).
Assim, nota-se pelo trecho destacado que o consentimento é referido na OIT-169 apenas
como hipotético e não como obrigatório. Neste ponto, mais uma vez parece que as
interpretações dadas à OIT/169 comumente sobrevalorizam o que o documento institui.
Sobretudo no caso do Brasil, pode-se afirmar que nem a consulta, muito menos o
consentimento, têm sido efetivamente aplicados quando da previsão e realização de ações que
afetem direta e/ou indiretamente os povos indígenas. Segundo Duprat (2014, p. 52-53),
“persiste, ainda que não declaradamente, a ideologia anterior de que numa “sociedade de
iguais”, o Estado está habilitado, por si só, a dizer o que é o “interesse comum” e por ele
orientar-se”. De acordo com esta autora:
Há aqueles que defendem ser a consulta mera formalidade, sem aptidão para
interferir no processo decisório do Estado, e há outros que advogam a
possibilidade incondicional de veto ao projeto. Ambas as posições, contudo,
parecem equivocadas. A primeira, por ignorar os próprios pressupostos e
requisitos que a Convenção 169 estabelece para a consulta, acima enunciados.
E a segunda, por desconsiderar que, numa sociedade plural, nenhum grupo
pode ter o domínio absoluto das decisões que escapam ao seu exclusivo
100 Vale ressaltar, desde já, que a Convenção não faz referência a impactos indiretos sobre os povos e/ou territórios indígenas. Portanto, o dever de consulta-los, nestes casos, não está previsto pela OIT/169. Voltaremos a este tema mais adiante.
154
interesse. Há, contudo, no intervalo entre esses dois polos, muito a ser
considerado. Primeiro, e por óbvio, a decisão do grupo é definitiva quanto às
medidas que lhes digam respeito com exclusividade. Assim, a implementação
de uma determinada política pública ou de uma obra dentro de seu território
depende de sua anuência. O veto, aqui, é de natureza absoluta e decorre da
autodeterminação do grupo, da autonomia na estipulação e gerência de seus
projetos de desenvolvimento (DUPRAT, 2014, p. 67).
Contudo, resta esclarecer a questão quanto ao consentimento em casos que “escapam ao
exclusivo interesse” dos povos indígenas. Provavelmente a autora esteja fazendo referência a
situações de impactos indiretos a estes povos, ou seja, de obras ou outras ações realizadas fora
de seus territórios mas que possam causar efeitos secundários para os mesmos. Como
mencionado anteriormente, o texto da OIT/169 não faz referência explícita a casos de impactos
indiretos. Todavia, segundo Duprat (2014, p. 67)
a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu, a partir do caso
Saramaka, uma distinção entre consulta e consentimento, exigindo esse último
nas hipóteses de grandes projetos de empreendimento que provoquem perda
de território ou seu grave comprometimento no que diz respeito ao acesso, uso
e gozo dos recursos fundamentais à existência física e cultural do grupo. Afora
essas situações, em que o consentimento é essencial, a consulta deve ser
vinculante. Significa dizer que eventuais objeções oferecidas pelo grupo
devem ser levadas a sério e superadas com razões melhores. Se estas não se
apresentarem, as objeções têm que ser incorporadas ao processo decisório,
com alteração, no todo ou em parte, do projeto. Não é possível o descarte ou
a desqualificação de ideias contrárias sob argumentos “de autoridade”. A
consulta da Convenção 169 foi concebida como importante instrumento de
correção de assimetrias verificadas na sociedade nacional. Não mais se
concebe, tal como se deu em passado bastante recente, que os benefícios do
chamado “desenvolvimento” sejam auferidos por alguns grupos privilegiados,
e os seus efeitos perversos, suportados pelos demais. Daí por que a consulta é
um processo ético, de natureza argumentativa, em que as partes se relacionam
com igual respeito e consideração (DUPRAT, 2014, p. 67-68).
Baldi e Ribeiro (2013, p. 244) destacam que no Brasil, o processo de consulta ainda não
foi regulamentado, o que gera discussões sobre seu modo de aplicação. De acordo com estes
autores, ocorreu em janeiro de 2005 um Seminário Internacional, em Nova York, “com a
participação de representantes do sistema das Nações Unidas e de outras organizações
internacionais, bem como representantes indígenas onde se discutiu sobre as metodologias
relativas ao consentimento prévio, livre e informado”. Neste evento, foram estipulados os
seguintes parâmetros para cada um destes três termos que são associados ao dever do Estado
de consultar e ao direito dos povos de conceder, ou não, o seu consentimento.
Assim, ficaram designados os seguintes sentidos:
• Livre: sem qualquer tipo de coerção, intimidação ou manipulação.
155
• Prévio: deveria implicar na obtenção de consentimento antes de qualquer
autorização ou início das atividades e que os requisitos de tempo suficiente
para uma consulta / consenso com os povos.
• Informado: deve implicar que a informação deve abarcar pelo menos
situações como: a) natureza, tamanho, a duração, a reversibilidade e o alcance
da qualquer projeto ou atividade proposta; b) A razão ou o propósito ou
propósitos do projeto e / ou atividade; c) A localidade de áreas que serão
afetadas; e) uma avaliação preliminar do impacto econômico, social, cultural
e ambiental, incluindo riscos potenciais e distribuição justa e equitativa dos
benefícios em um contexto que respeite o princípio da precaução; f) clareza
quanto àqueles que possam estar envolvidos na implementação de projeto;
(HOME PAGE CONVENTION ON BIOLOGICAL DIVERSITY, 2005, p.
13 apud BALDI; RIBEIRO, 2013, p. 244).
Análise da apropriação social, aplicação e efetividade da OIT/169 no Brasil;
De acordo com Stavenhagen (2008 apud Urquidi, Teixeira e Lana, 2008, p. 215):
“observa-se a brecha entre as normas e princípios internacionais e a legislação nacional”. O
autor afirma que embora a ratificação da OIT-169 seja quase generalizada na América Latina,
“há inconsistência legal, ausência de leis secundárias ou regulamentos e falta capacitação
especializada de pessoal, por carência de recursos ou de vontade política, o que deixa a
administração pública sem meios jurídicos e práticos para cumprir com os acordos
internacionais”.
O relatório de Stavenhagen (2008) sintetiza, assim, a diversidade de casos de
flagrante violação dos direitos indígenas e de exemplos que retratam o claro
descompasso entre os níveis da legislação internacional sobre direitos
indígenas, o constitucionalismo latino-americano e legislação ordinária.
Conclui-se que há grave inconsistência legal e, muitas vezes, inexiste a
legislação regulatória e secundária necessária. Também, há uma brecha de
implementação entre a legislação existente e a prática administrativa, jurídica
e política, cujas raízes são diversas: há pouca participação indígena na
definição e realização das leis, falta acompanhamento na aplicação das leis e
das políticas públicas, e principalmente, há um aparato burocrático estatal
inadequado, lento, de funcionamento não ajustado às demandas multiculturais
e que carrega ainda o ranço assimilacionista e preconceituoso para tratar de
direitos de minorias étnicas (URQUIDI, TEIXEIRA e LANA, 2008, p. 215).
De acordo com Fajardo (2009, p. 21, grifo nosso):
A aplicação efetiva do convênio [OIT/169] deixa muito a desejar e os estados
seguem funcionando, em grande parte, pela inércia burocrática de modelos
integracionistas e autoritários em matéria indígena. E, além disso, nas
últimas duas décadas, os povos indígenas têm se encontrado diante de
novas formas de agressão e desapropriação no contexto da abertura, por
parte dos estados, de novas formas de penetração de corporações
extrativas em territórios indígenas, sem cumprir os direitos de consulta e
participação. Neste sentido, trata-se de um Convênio com grandes desafios
de implementação.
156
Tendo em vista o compromisso de enviar informes periódicos sobre a aplicação da
OIT/169, o Brasil enviou a primeira Memória oficial do Estado em 2008. Todavia, Mendes
(2009, p. 182) destaca que, independente do posicionamento oficial, “diversos grupos sociais
enviaram à OIT denúncias ou reclamações de que as normas da OIT não estavam sendo
cumpridas, escrevendo, literalmente, uma história diferente da oficial”. Entre estas ações, a
referida autora menciona uma carta enviada por diversas associações indígenas brasileiras101:
com o intuito de “realizar uma avaliação independente do Estado brasileiro
com relação à aplicação das normas da OIT em relação aos povos indígenas”.
Essa carta adotou a estratégia de tomar cinco casos paradigmáticos que
refletem o desrespeito às normas acordadas pela Convenção, que são os
seguintes: Hidrelétrica de Belo Monte; Terra Indígena dos Guaraní-Kaiowá;
Terra Indígena Raposa Serra do Sol; Mineração na Terra Indígena dos Cinta
Larga e Transposição do Rio São Francisco (MENDES, 2009, p. 183).
A autora aponta ainda que:
Diversas outras iniciativas poderiam ser mencionadas e endossariam o fato de
que a ratificação da Convenção 169 da OIT, apesar de formalmente
incorporada à legislação brasileira, tem sido muito mais fonte de legitimidade
para a mobilização em busca de respeito aos direitos dos povos indígenas e
tribais, do que medida efetivamente adotada pelo Estado para o cumprimento
de seus deveres (MENDES, 2009, p. 183).
Assim, a negligência do Estado brasileiro não nos impede de reconhecer os avanços
conceituais e jurídicos promovidos pela Convenção. Para Duprat (2014, p. 71),
A Convenção 169 da OIT é seguramente o documento internacional que mais
e melhor traduziu a passagem do Estado nacional de matiz hegemônico para
a sua vertente de pluralismo cultural e étnico. Se, por um lado, tornou visíveis
grupos historicamente deslocados para as margens da sociedade, por outro,
tratou dos mecanismos necessários para lhes garantir domínio de suas próprias
vidas e espaço no cenário público. O reforço de suas liberdades expressivas é
o principal deles.
No mesmo sentido, Mendes (2009, p. 187) afirma que:
A ratificação de tal Convenção pelo Brasil não deve ser entendida apenas
como um acordo formal. Trata-se de um ato voluntário, da manifestação de
um estado soberano, que aceita e se propõe a cumprir as obrigações
estipuladas no documento ratificado, conforme ressaltado por Cíntia Muller
(no prelo102). Após sua ratificação, o país deve garantir o cumprimento das
disposições da Convenção e promover os direitos por ela assegurados. Como
101 “São elas: a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); o Conselho Indígena de Roraima (CIR); a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e o Warã Instituto Indígena Brasileiro” (MENDES, 2009, p. 183, nota 145). 102 Verificamos, em publicação posterior de Mendes, Costa Filho e Santos (2014), sobre o mesmo tema, que o texto de Müller, referenciado como “no prelo”, trata-se da seguinte publicação: MÜLLER, Cíntia Beatriz. 2008. A Convenção 169 da OIT e a garantia dos povos quilombolas ao Direito Humano Fundamental ao território. O caso das comunidades dos quilombos no Brasil. Porto Alegre: Monografia de Especialização em Direitos Humanos da Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU/UFRGS.
157
mencionado anteriormente, diversos grupos tradicionais se mobilizaram para
denunciar o descumprimento, por parte do Estado brasileiro, dessas funções,
o que nos permite dizer que se o Estado não se apropriou completamente
do proposto na Convenção, a sociedade civil o fez. O Estado, com a
ratificação da Convenção 169 da OIT, concretizou a positivação de (mais)
uma série de fundamentos jurídicos que embasam as mobilizações políticas já
operadas pelas populações tradicionais em busca da garantia de direitos
específicos (MENDES, 2009, p. 187).
Neste sentido, a OIT/169 passaria a adquirir importância, sobretudo para os países
latino-americanos.
O pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires, Christian
Courtis, realizou um estudo de alguns casos emblemáticos de aplicação da
Convenção 169 da OIT, em Países Independentes, por tribunais da América
Latina e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo Courtis
(2009, p. 2), a região da América Latina e do Caribe foi onde se registrou
a maior quantidade de ratificações da Convenção 169, isso se deve ao fato
de que em muitos desses países as populações indígenas e negras
constituem uma porcentagem significativa. Além disso, grande parte dos
países da região passou por uma transição de regimes autoritários para a
vigência de instituições democráticas, no período que vai de meados dos anos
80 ao início da década de 2000. Com isso, um número significativo desses
países incorporou em suas constituições disposições sobre direitos dos povos
e comunidades indígenas (BALDI; RIBEIRO, 2013, p. 246, grifo nosso).
Segundo Baldi e Ribeiro (2015, p. 249), “a ratificação da Convenção 169 da OIT, sem
dúvidas, gerou enormes expectativas nos povos abrangidos pela mesma. Essas expectativas
passam pelo direito à terra, à autodefinição étnica” e, por meio da consulta livre, prévia e
informada, “à participação nas decisões do governo em assuntos que possam modificar a
realidade das suas tradições”. Duprat (2014, p. 71) ressalta também que, “sua abertura [da OIT-
169] para a diferença e para as margens, e o descentramento da narrativa que ela possibilita,
gera uma resistência, às vezes até agressiva, ao que ali se contém”. Um exemplo claro destas
reações mencionadas por Duprat, foi a proposta levantada em junho de 2014 na Comissão de
Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, de
que o Brasil revogasse sua subscrição à Convenção nº 169 da OIT (BALDI; RIBEIRO, 2015,
p. 243).
Assim, tendo analisado os aspectos centrais desta Convenção, passemos ao estudo das
características, inovações, contribuições e limitações da Declaração das Nações Unidas sobre
Direitos dos Povos Indígenas, adota em 2007.
158
3.3.2 Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas – 2007;
Nesta seção analisamos brevemente o contexto das negociações, as características,
contribuições e limitações da Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos
indígenas (DNUDPI), realizando uma abordagem semelhante à que fizemos em relação à
Convenção n.º 169 da OIT. Ou seja, a despeito das muitas avaliações positivas conferidas à
UNDRIP pela literatura acadêmica, consideramos que este documento, bem como as
negociações para sua adoção, também constituem provas contemporâneas da resistência
histórica dos Estados-nação em fazer avançar o processo de descolonização em relação aos
povos indígenas. Reitera-se que não estamos a negar que tais documentos reconhecem
importantes direitos dos povos indígenas. O que buscamos analisar é o que pode ser
compreendido para além do conteúdo destes documentos e das interpretações elogiosas que
frequentemente recebem.
A recente obra de Lightfoot (2016) traz contribuições importantes para o estudo da
dimensão global dos assuntos indígenas. Entretanto, assim como grande parte dos autores que
se dedica ao estudo da UNDRIP, Lightfoot (2016, n.p. 103) elabora um cenário bastante otimista,
inclusive com traços românticos e épicos sobre a Declaração:
The morning of September 13, 2007 was clear and sunny, a beautiful day in
New York. At the United Nations, diplomats and representatives from UN
member states, dressed in suits and carrying briefcases, looking very serious
and businesslike, took their places in the General Assembly behind the
nameplates which identified them by country. That morning, dozens of
Indigenous delegates also arrived at the UN General Assembly Hall. The
Indigenous delegates, however, while also businesslike and carrying large
briefcases, were joyful. […] Hugs were freely shared among the Indigenous
delegates as they took their places in the back and in the side galleries of the
UN General Assembly Hall […] The Indigenous delegates looked truly happy;
some had personally labored for more than thirty years to reach this day
(Lightfoot (2016, n.p.).
Logo em seguida, porém, Lightfoot (2016, n.p., grifo nosso) nos lembra que:
the indigenous delegates [...] through whose efforts this day had been made
possible, did not have vote. They could only sit and watch the screen on the
wall: a scoreboard of UN member states votes on the Declaration.
Deste modo, e tendo em vista o que já foi analisado até aqui nesta tese, devemos nos
questionar o seguinte: a UNDRIP realiza, promove ou contribui para uma mudança deste
cenário, no qual os povos indígenas conquistaram o direito à voz, o reconhecimento formal de
103 Livro não paginado, disponível na plataforma Kindle.
159
direitos, porém, dada a configuração da política internacional, ainda resta-lhes apenas assistir e
esperar o resultado das ações dos Estados?
A DNUDPII – ou UNDRIP, na sigla em inglês – foi aprovada pela 107ª Sessão Plenária
da Assembleia Geral em 13 de setembro de 2007. De acordo com Picq (2017, p. 351), “adotada
por 144 países, a Declaração foi o primeiro documento legal dedicado a direitos indígenas no
sistema ONU”. Para isto, entretanto, foram necessárias mais de duas décadas de negociações e
“mais de 11 sessões anuais para atingir um consenso”, constituindo, assim, “o instrumento de
direitos humanos que teve o mais longo debate na história da ONU” (idem).
A longa trajetória de elaboração e negociação da UNDRIP tem início com o estudo
realizado pelo relator especial José Martínez Cobo, referido na seção anterior, sobre o problema
da discriminação indígena, em 1982 – ocasião na qual o ECOSOC autorizou a construção do
Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas (GTPI) no âmbito da subcomissão para a
Prevenção da Discriminação e a Proteção de minorias. Assim, “a partir de 1985, o Grupo
recebeu o encargo de redigir um rascunho da Declaração, redação que contou com a
participação de organizações de povos indígenas” (FAJARDO, 2009, p. 23).
Neste sentido, consideramos que não há motivo para reverências diante de uma
declaração internacional, duramente negociada por mais de 20 anos, para tornar possível o
simples reconhecimento dos direitos indígenas que serão analisados a seguir. Na perspectiva de
Yamada e Amorim (2016, p. 46):
Com a adoção da Declaração, a mais importante instituição de sociedade
organizada do mundo – as Nações Unidas – proclamou o que deveria ter sido
afirmado há muito tempo, mas não era amplamente aceito: que os povos e
indivíduos indígenas, suas culturas e modos de vida, estão à altura de todos os
outros em dignidade e valor.
Ou seja, as afirmações contidas na DNUDPI atestam que, até então, tais direitos eram
formalmente negados aos povos indígenas, por mais incontestáveis que pareçam. Assim,
devemos ressaltar o que se revela pela necessidade de afirmar, por exemplo, que os povos
indígenas “têm direito à vida” (art. 7)? Que “são livres e iguais a todos os demais povos e
indivíduos” (art. 2)? Que “têm o direito coletivo de viver em liberdade, paz e segurança, como
povos distintos, e não serão submetidos a qualquer ato de genocídio ou a qualquer outro ato de
violência” (art. 7)? Que “têm o direito de praticar e revitalizar suas tradições e costumes
culturais” (art. 11) e de “manifestar, praticar, desenvolver e ensinar suas tradições, costumes e
cerimônias espirituais e religiosas” (art. 12)? Que “os povos indígenas têm direito a que a
dignidade e a diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações sejam devidamente
refletidas na educação pública e nos meios de informação públicos” (art.15)? Que “têm o direito
160
de ter acesso aos meios de informação não indígenas” (art. 16)? A Declaração versa sobre
muitos outros temas, reconhecendo com certa profundidade importantes direitos. Estes citados
acima são apenas aqueles cuja necessidade de serem afirmados é mais significativa.
Além disso, outro aspecto a ser destacado é que as declarações não constituem um
instrumento jurídico sujeito à ratificação, e, portanto, não têm capacidade de gerar qualquer
tipo de sanção ou punição aos países que não a cumprirem. Vale ressaltar a expressão, presente
em quase todos os artigos da DNUDPI, de que “os Estados adotarão medidas eficazes para
garantir a proteção desse direito”. Porém, mesmo possuindo ainda um artigo específico que
convoca os Estados a aplicar suas disposições104, a Declaração não gera qualquer
obrigatoriedade legal de que os Estados de fato garantam os direitos nela afirmados.
No sistema jurídico brasileiro, por exemplo, as Declarações “servem como ‘princípios
jurídicos’ que apenas orientam instrumentos e ações”, sendo diferentes, portanto, das
Convenções e Tratados, “que geram obrigações e vinculam os países na ordem internacional,
sendo que o descumprimento das normas acordadas pode gerar sanções” (SHIRAISI NETO,
2007, p. 36 apud MENDES; COSTA FILHO; SANTOS, 2014, p. 238).
Assim, enquanto o 169 [Convênio nº 169 da OIT] é o instrumento de caráter
obrigatório mais avançado, a Declaração será o documento de princípios mais
ousado a respeito dos direitos indígenas e a sínteses dos debates, conceitos e
princípios sobre o assunto, reunindo o âmago das demandas das comunidades.
Entretanto, por ser documentos de princípios, as Declarações
representam apenas obrigação moral, ou no máximo política, aos Estados
conveniados (BOBBIO, 2004). Consequentemente, os povos indígenas se
veem permanentemente forçados a se mobilizar para ter incorporados seus
direitos na legislação interna de cada país (URQUIDI, TEIXEIRA e LANA,
2008, p. 205, grifo nosso).
Neste sentido, “o consenso dos 143 Estados que ratificaram a Declaração indica que
esta constitui um documento-base a partir do qual os movimentos indígenas em cada país
poderão negociar com o Estado as condições de realização das suas demandas” (URQUIDI,
TEIXEIRA e LANA, 2008, p. 204-205).
Tendo feito estas observações consideradas indispensáveis, passemos então à análise
dos aspectos centrais, das contribuições e das contradições presentes na DNUDPI. Fajardo
(2009, p. 15) resume suas características da seguinte maneira:
a Declaração reconhece a igual dignidade de todos os povos e o direito dos povos
indígenas a definir livremente sua condição política e seu modelo de
desenvolvimento, assim como a participar da tomada de decisões com o Estado, se
104 Art. 42: “as nações unidas, seus órgãos, incluindo o foro Permanente para as questões Indígenas, e os
organismos especializados, em particular a nível local, assim como os Estados, promoverão o respeito e a plena aplicação das disposições da presente Declaração e zelarão pela eficácia da presente Declaração” (UNDRIP, 2007).
161
assim desejarem. O desafio atual é a implementação do marco de direitos existente e
o desenvolvimento de políticas públicas, coordenadas, sistemáticas e participativas,
baseadas em tais direitos, que permitam aos povos retomar as rédeas do seu destino e
participar com os outros povos na construção de estados democráticos e pluralistas
(FAJARDO, 2009, p. 15).
Ainda de acordo com esta autora (2009, p. 25), a Declaração “reforça e amplia o
horizonte dos direitos dos povos indígenas, fundando-os na igual dignidade dos povos e seu
direito de determinar livremente seu destino”:
a Declaração, por seu conteúdo, constitui um novo parâmetro internacional
em direitos dos povos indígenas. De certa forma, a Declaração é um ponto de
chegada, porque sintetiza os avanços realizados no direito internacional dos
direitos dos povos indígenas, aprofunda e amplia direitos que estão no
Convênio 169 da OIT, recolhe os princípios desenvolvidos na jurisprudência
da Corte Interamericana, e incorpora demandas indígenas (FAJARDO, 2009,
p. 23).
Entre os direitos indígenas afirmados na DNUNPI destacam-se ainda a não-
discriminação; a integridade cultural; o direito à propriedade intelectual; a propriedade, uso,
controle e acesso às terras, territórios e recursos; o direito ao desenvolvimento e bem-estar
social; e o direito à participação política e ao consentimento livre, prévio e informado sobre
ações que possam afetar estes povos ou seus territórios.
Entre os principais temas abordados pela declaração, ressurge o debate sobre o
significado, o alcance e as implicações do direito de autodeterminação dos povos. Ao analisar
a participação de lideranças indígenas nos encontros de elaboração e negociação da DNUDPI,
Brito (2004) aponta que:
os povos indígenas insistem em reafirmar o direito de serem reconhecidos como povo.
[...] Explicaram que seguirão sendo povos com identidades históricas, políticas e
culturais diferentes e que os povos indígenas e os Estados Nacionais estão unidos por
um processo histórico, mas como sociedades diferentes, com idiomas, leis e tradições
diferentes. Denunciaram nesse encontro ser discriminatório, ilógico, antidemocrático
e nada científico as Nações Unidas não reconhecerem os povos indígenas como povos.
Enfim, sustentaram ainda as delegações indígenas, que a condição de povo é
fundamental para o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos
indígenas, em seus efeitos políticos, espirituais, culturais e econômicos (BRITO,
2004, p. 39).
Para Picq (2017, p. 361) “é precisamente devido à ameaça que ela [a política indígena]
representa para a soberania, que os estados resistem intensamente à autodeterminação nas
negociações globais”. Assim, ainda de acordo com esta autora, “de fato, a Década Internacional
dos Povos Indígenas do Mundo (1995-2004 e 2005-2015) não logrou chegar a um consenso
para produzir um tratado internacional precisamente devido a esta razão”.
Neste sentido, merece destaque o posicionamento dos quatro países que se opuseram à
Declaração: Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Trata-se de países que foram
162
colônias e cujas populações indígenas, mesmo não sendo majoritárias, destacam-se pelo seu
alto nível de atuação e de organização política em relação a populações indígenas de todo o
mundo. Vale notar ainda que estes são os países nos quais os assuntos indígenas, de modo geral,
são mais estudados pela comunidade científica e também são países nos quais os direitos e
autonomias políticas indígenas encontram-se em condições avançadas, comparativamente a
todos os outros países.
As representações diplomáticas dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia
levantaram a questão, já abordada durante as negociações da Convenção nº 169 da OIT, de que
a utilização do termo “povos” e o reconhecimento de seu direito à “autodeterminação”
poderiam ser utilizados como base jurídica para o surgimento de movimentos separatistas em
relação aos estados nacionais, gerando, assim, uma prerrogativa ameaçadora à soberania estatal.
As feições gerais dos argumentos apresentados por esses quatro países são: (1) a falta
de uma definição clara do termo “indígena”; (2) as referências e construções
potencialmente impróprias quanto ao direito de autodeterminação; (3) as
discordâncias referentes aos direitos a terra, aos territórios e aos recursos naturais; e
(4) o entendimento de que as leis comunitárias infringem a universalidade
constitucional (SOMONI, 2009, p. 39).
Finalizadas as negociações, percebe-se que o texto final da referida Declaração
reconheceu o direito que os povos indígenas têm à autodeterminação. A saída encontrada pelos
Estados, entretanto, foi a de limitar este direito à autodeterminação dos povos indígenas em
relação às soberanias estatais, tal qual o fez a Convenção nº 169 da OIT:
A solução para as negociações contenciosas sobre territórios foi um artigo
final especificando que nenhuma parte da Declaração pode ser entendida
como minando de nenhuma forma a soberania e a integridade territorial dos
estados-membros (Artigo 47). Tomando a forma clássica de direitos
humanos internacionais, a Declaração permaneceu ambígua e, no
entanto, a autodeterminação indígena ganhou reconhecimento global
(PICQ, 2017, p. 352).
Assim, outro exemplo do que consideramos uma indevida reverência à DNUDPI pode
ser notado nas palavras de Cowan (2013). Segundo esta autora:
The adoption of the United Nations Declaration on the Rights of Indigenous
Peoples (“UNDRIP”) by the General Assembly in 2007 was a landmark
achievement in the development of indigenous rights under international law,
particularly through its unequivocal recognition of indigenous peoples’
right to self-determination. […] This article explores the meaning of self-
determination under international law, now that the long debate over
whether indigenous peoples are “peoples” has finally been resolved (COWAN, 2013, p. 247, grifo nosso).
Ora, pelo que temos visto, apesar dos povos indígenas de fato terem conquistado
seu reconhecimento enquanto “povos”, não é possível afirmar que o reconhecimento do direito
163
à autodeterminação dos povos indígenas tenha sido inequívoco. Logo, tanto no debate
acadêmico quanto no âmbito da política internacional está ainda por definir-se o que é o direito
à autodeterminação dos povos indígenas. Ou seja, qual é o significado deste direito, qual é seu
alcance, e quais implicações este direito pode ou poderia trazer para a política internacional.
Portanto, o debate sobre o direito à autodeterminação dos povos indígenas também constitui
um assunto inacabado da política internacional.
3.3.3 As Diretrizes de Proteção do ACNUDH (2012) e as Recomendações da CIDH (2013)
para a proteção e o respeito dos Direitos dos PIACI;
Analisaremos a seguir os dois documentos internacionais mais relevantes acerca do
tema dos povos indígenas em situações de isolamento. O primeiro, intitulado “Directrices de
Protección para los Pueblos Indígenas en Aislamiento y en contacto inicial de la región
Amazónica y el Gran Chaco” foi elaborado no ámbito do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos (ACNUDH). O segundo documento, intitulado “Pueblos indígenas
en aislamiento voluntario y contact inicial en las Américas: recomendaciones para el pleno
respeto a sus derechos humanos” (CIDH, 2013) foi elaborado no âmbito da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), instância da Organização dos Estados
Americanos (OEA).
Os dois documentos possuem semelhanças bastante significativas em sua estrutura.
Apresentam incialmente suas definições sobre os PIACI105 e um breve panorama sobre a
situação destes povos no continente sul-americano. Enumeram, em seguida, as principais fontes
de direitos destes povos e analisam as políticas específicas dos países sul-americanos com
presença reconhecida de PIACI. Por fim, expõem recomendações e propostas de atuação para
os Estados, a fim de que sejam respeitado os direitos humanos e, sobretudo, territoriais, dos
PIACI.
O documento da CIDH se diferencia, entretanto, por apresentar, antes das
recomendações, uma lista de informações detalhadas sobre as “principais ameaças ao pleno
gozo dos direitos humanos dos PIACI”. São elas: o contato, pressões externas sobre suas terras
e territórios, extração de recursos naturais, contágios e enfermidades, agressões diretas, projetos
105 O termo adotado por ambos os documentos aqui analisados foi o de Pueblos indígenas en Aislamiento voluntário y Contacto Inicial (PIACI), termo utilizado nos países de se língua hispânica, e não o termo utilizado oficialmente no Brasil, povos indígenas em isolamento e recente contato (PIIRC).
164
turísticos e narcotráfico. Além disto, fica nítido que as Diretrizes do ACNUDH são
apresentadas de modo mais diplomático e conservador, restringindo-se a traçar um panorama
qualificado do tema. Já as Recomendações da CIDH são significativamente mais críticas e
incisivas quanto à situação dos PIACI e à responsabilidade histórica dos Estados e sociedades
nacionais.
A fim de verificar estas e outras semelhanças e diferenças entre as contribuições trazidas
por ambos os documentos, passemos à análise de seus elementos centrais, iniciando pela
trajetória de elaboração e adoção dos mesmos.
O marco inicial apresentado pelo ACNUDH (2012, p. 05) para a elaboração de suas
diretrizes para os PIACI é a aprovação pela Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 2005,
do Programa de Ação para o Segundo Decênio Internacional dos Povos Indígenas do Mundo,
no qual constava duas recomendações específicas sobre PIACI:
A nivel internacional se recomienda ‘el establecimiento de un mecanismo
mundial encargado de supervisar la situación de los pueblos indígenas que
viven aislados voluntariamente y corren peligro de extinción’ . Y a nivel
nacional se recomienda la adopción ‘de un marco de protección especial para
los pueblos indígenas que viven aislados voluntariamente y que los gobiernos
establezcan políticas especiales para asegurar la protección y los derechos de
los pueblos indígenas que tienen pequeñas poblaciones y corren riesgo de
extinción’ (ACNUDH, 2012, p. 05).
A partir disto, tem início uma série de reuniões, seminários e encontros nacionais e
regionais. O Foro Permanente da ONU para Questões Indígenas participou deste processo, e
recomendou a realização de consultas a organizações indígenas, ONGs, especialistas no
assunto, Estados e organismos bilaterais e multilaterais, sobre o tema dos PIACI nos sete países
amazônicos, a fim de subsidiar a elaboração de tais Diretrizes. A partir das respostas a tais
consultas, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(EACNUDH) começou a trabalhar no documento (ACNUDH, 2012, p. 05-06).
Assim, no dia 30 de junho de 2009 a Assembleia Geral da ONU aprovou o Proyecto de
Directrices de Protección para los Pueblos Indígenas em Aislamiento y en contacto inicial de
la región Amazónica y el Gran Chaco. Este projeto e uma primeira versão do documento foram
submetidos a várias consultas e revisões, sendo apontado, portanto, como resultado de um
trabalho conjunto entre diferentes atores com o objetivo de servir como guia de referência para
os trabalhos com PIACI na América do Sul. Deste modo, o documento afirma-se enquanto
instrumento para a contextualização do direito internacional dos direitos humanos,
caracterizando-se como “ejemplo de aplicación de la Declaración de las Naciones Unidas
sobre los derechos de los pueblos indígenas” (ACNUDH, 2012, p. 06-07).
165
Já as Recomendações elaboradas pela CIDH (2013), declaram e reforçam o
compromisso histórico deste órgão com a temática indígena106. As etapas preparatória do
documento são assim descritas:
El presente informe fue elaborado con insumos obtenidos de varias fuentes,
incluyendo Estados, organizaciones indígenas y de sociedad civil, y expertos.
Efectivamente, la CIDH circuló el 24 abril de 2013 dos “Cuestionarios de
Consulta sobre Pueblos Indígenas en Aislamiento Voluntario y Contacto
Inicial”, uno dirigido a miembros de la sociedad civil, incluidas
organizaciones indígenas de base, y otro a Estados. Las respuestas recibidas
tanto de los Estados como de organizaciones indígenas y de la sociedad civil
han sido un valioso componente para este informe, por lo que la CIDH
agradece todas las contribuciones hechas. También se realizó un taller de
expertos en la sede de la Comisión el 6 de mayo de 2013, el cual contó con la
participación de antropólogos con amplia experiencia en el tema. Asimismo,
se realizaron audiencias temáticas sobre el tema en los 141º y 146º períodos
de sesiones, en 2011 y 2012, respectivamente, y una audiencia sobre la
situación de derechos humanos de los pueblos indígenas en aislamiento
voluntario en Perú, el 1º de noviembre de 2013 durante el 149º período
ordinario de sesiones de la CIDH (CIDH, 2013, p. 03).
Passemos então ao estudo dos principais elementos contidos em ambos os documentos.
Um primeiro aspecto a se destacar é relativo ao reconhecimento da quantidade significativa de
povos indígenas em situações de isolamento na América do Sul. Ambos os documentos
afirmam que embora as estimativas possam variar, existem em torno de 200 povos indígenas
em isolamento e/ou contato inicial na América do Sul, estimados em um total de 10.000
indivíduos (ACNUDH, 2012, p. 08; CIDH, 2013, p. 6-7). A absoluta maioria destes povos
encontra-se na Amazônia, e cerca de uma dezena se localiza na região do Gran Chaco.
Atualmente se tem conhecimento da existência destes povos na Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Paraguai, Peru e Venezuela.
Neste assunto, é digno de destaque o primeiro item do documento da CIDH (2013, p. 1,
grifo nosso), ao reconhecer que:
En el continente americano habita el mayor número de pueblos indígenas en
aislamiento voluntario y contacto inicial en el mundo. Son los últimos pueblos
que no fueron colonizados y que no tienen relaciones permanentes con las
sociedades nacionales prevalecientes en la actualidad. Estos pueblos y sus
antepassados han habitado el continente americano desde mucho antes de la
106 “La Comisión Interamericana de Derechos Humanos en el año 1972 sostuvo que por razones históricas, principios morales y humanitarios, era un compromiso sagrado de los Estados proteger especialmente a los pueblos indígenas. Desde la década de los ochenta la Comisión Interamericana se ha pronunciado en forma sistemática sobre los derechos de los pueblos indígenas en sus informes especiales y a través del sistema casos, en informes de admisibilidad, informes de fondo, informes de solución amistosa, el mecanismo de medidas cautelares, como también a través de demandas y solicitudes de medidas provisionales interpuestas ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Asimismo, la Comisión Interamericana ha abordado la situación de algunos pueblos indígenas en aislamiento a través de medidas cautelares, el sistema de peticiones y casos, y audiencias temáticas”. (CIDH, 2013, p. 1-2).
166
existencia de los Estados actuales. De los que alguna vez fueron, hoy
sobreviven muy pocos, y muchos corren el riesgo de desaparecer por
completo.
Por estes motivos, destaca ainda que estes povos são titulares de direitos humanos em
uma situação única de vulnerabilidade. Além disso, dada sua situação de isolamento, estes
povos não podem reivindicar e defender seus próprios direitos, motivo pelo qual os Estados,
organismos internacionais, integrantes da sociedade civil e outros atores dedicados à defesa dos
direitos humanos devem assegurar que os direitos dos PIACI sejam respeitados (CIDH, 2013,
p. 1). Neste contexto, vale destacar novamente as palavras contidas no documento:
Si se observa la demanda nacional e internacional de los recursos naturales
que se encuentran en los territorios con presencia de pueblos indígenas en
aislamiento voluntario – maderas, hidrocarburos, combustibles fósiles,
minerales y recursos hídricos – se percibe la vulnerabilidad a la que están
expuestos. En este contexto, el reto para los Estados, organismos de derechos
humanos y defensores es lograr la protección de los derechos de los pueblos
indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial, o ser testigos de su
desaparición (CIDH, 2013, p. 1, negrito do autor).
Aqui podemos estabelecer um diálogo com a questão levantada na introdução desta
pesquisa. A noção da responsabilidade histórica dos Estados e sociedades nacionais acerca de
suas relações com as sociedades indígenas não constitui uma novidade, sendo que o tema
específico dos povos indígenas em situações de isolamento é bastante representativo dos
desafios contemporâneos neste sentido.
Definições – Pueblos indígenas en aislamiento (voluntario)
As definições de “povos indígenas em isolamento” apresentadas por ambos documentos
são muito semelhantes. Verifica-se que o documento posterior (CIDH, 2013) baseou-se na
definição apresentada pelo ACNUDH (2012), e procurou aprimorá-la. Além disso, enquanto o
documento do ACNUDH adota o termo mais geral, “pueblos indígenas en aislamiento”, o
documento da CIDH toma como referência o termo “pueblos indígenas en aislamiento
voluntario”. Ambos, fazem referência às características que indicam a voluntariedade do
isolamento, ou seja, o desejo destes povos de permanecerem sem contato com a sociedade
envolvente. Além disso, tanto o ACNUDH (2012) quanto a CIDH (2013) indicam que para
muitos povos o isolamento configura uma estratégia de sobrevivência, por vezes a única
estratégia possível, e, assim, não representa o exercício livre de sua vontade. Entretanto, mesmo
sendo condicionada por ameaças, a busca pelo isolamento permanece sendo considerada uma
escolha, uma estratégia dos próprios indígenas, que reforça a defesa de seu direito à
167
autodeterminação. Por este motivo, a CIDH (2013) optou por ressaltar o caráter voluntário do
isolamento. Vejamos a seguir, então, as definições apresentadas pelos dois documento.
De acordo com as Diretrizes do ACNUDH:
8. Los pueblos en aislamiento son pueblos o segmentos de pueblos indígenas
que no mantienen contactos regulares con la población mayoritaria, y que
además suelen rehuir todo tipo de contacto con personas ajenas a su grupo.
También pueden ser grupos pertenecientes a diversos pueblos ya contactados
que tras una relación intermitente con las sociedades envolventes deciden
volver a una situación de aislamiento como estrategia de supervivencia y
rompen voluntariamente todas las relaciones que pudieran tener con dichas
sociedades. En su mayoría, los pueblos aislados viven en bosques tropicales
y/o zonas de difícil acceso no transitadas, lugares que muy a menudo cuentan
con grandes recursos naturales. Para estos pueblos el aislamiento no ha sido
una opción voluntaria sino una estrategia de supervivencia. Es preciso
establecer una distinción entre ambos grupos; el nivel de vulnerabilidad de
los grupos que no han sido nunca contactados es mayor al de aquéllos que
si bien han desarrollado relaciones sociales con la sociedad mayoritaria,
han decidido volver a su situación de aislamiento. Asimismo, y por dicha
razón, la necesidad de protección es mayor en el caso de los no contactados
(ACNUDH, 2012, p. 05, negritos nossos).
Nas Diretrizes formuladas pela CIDH considera-se que:
11. Los pueblos indígenas en situación de aislamiento voluntario son pueblos
o segmentos de pueblos indígenas que no mantienen contactos sostenidos con
la población mayoritaria no indígena, y que suelen rehuir todo tipo de
contacto con personas ajenas a su pueblo. También pueden ser pueblos o
segmentos de pueblos previamente contactados y que, tras un contacto
intermitente con las sociedades no indígenas han vuelto a una situación de
aislamiento, y rompen las relaciones de contacto que pudieran tener con
dichas sociedades.
12. La CIDH toma nota que el uso del término “voluntario” para calificar
el aislamiento de estos pueblos indígenas ha sido cuestionado con el
argumento de que minimiza el hecho de que la decisión de permanecer en
o volver al aislamiento en realidad obedece a las presiones de la sociedad
envolvente sobre sus territorios, y no un ejercicio libre de su voluntad. Este
informe utiliza el término “voluntario” para realzar la importancia del
derecho a la autodeterminación, ya que aun si la decisión de permanecer en
aislamiento es una estrategia de supervivencia resultado en parte de
presiones externas, ésta es una expresión de autonomía de estos pueblos en
tanto sujetos de derecho, y como tal debe ser respetada (CIDH, 2013, p. 4).
A CIDH (2013, p 05) ressalta ainda outro aspecto importante, já indicado anteriormente
nesta pesquisa. Trata-se do fato de que na grande maioria dos casos, os povos indígenas
atualmente em situações de isolamento, ou suas gerações anteriores, já tiveram experiências de
contato com pessoas e/ou elementos da sociedade envolvente. Experiências que são, via de
regra, violentas e produzem graves consequências para estes povos, motivos pelos quais eles
168
atualmente recusam o estabelecimento de contatos, buscando manter e/ou aumentar seu nível
de isolamento em relação à sociedade envolvente.
Pueblos indígenas en contacto inicial
A definição apresentada pelo ACNUDH (2012) apresenta elementos fundamentais para
compreendermos o que é a situação de contato inicial ou de recente contato. Estes elementos
vão muito além da questão cronológica, ou seja, do tempo desde que ocorreu o primeiro contato.
Los pueblos en contacto inicial son pueblos que mantienen un contacto
reciente con la población mayoritaria; pueden ser también pueblos que a
pesar de mantener contacto desde tiempo atrás, nunca han llegado a
conocer con exactitud los patrones y códigos de relación de la población
mayoritaria. Esto puede deberse a que estos pueblos mantienen una situación
de semi aislamiento, o a que las relaciones con la población mayoritaria no
son permanentes, sino intermitentes. Los pueblos "en contacto inicial" son
pueblos que previamente permanecían "en aislamiento" y que bien forzados
por agentes externos, bien por decisión del grupo, o por factores de otro tipo
entran en contacto con la población mayoritaria. . De esta manera
podríamos hablar bajo la categorización de pueblos en contacto inicial de
pueblos en contacto intermitente, en contacto permanente, en peligro de
extinción y pueblos extinguidos. Dado que no existe un consenso a nivel
internacional sobre cuestiones tales como cuáles son los criterios para dar
por terminada una situación de aislamiento y cuándo comienza la de
contacto inicial o cuándo se da por terminada la situación de contacto
inicial, es necesario dar mayor peso a criterios adicionales relacionados con
la situación de alta vulnerabilidad (enfermedades, reducción territorial,
etc.), en que se encuentran los indígenas en mención. Esa situación puede
persistir aún después de muchos años de contactos sostenidos con miembros
de la sociedad mayoritaria y mientras persista el riesgo de extinción debido
a los problemas generados por dicha sociedad y las consecuencias generadas
desde el momento del contacto. (OACNUDH, 2012, p. 10, grifos nossos).
Após apresentar esta definição, o documento do ACNUDH destaca a importância
central que a ocorrência dos “primeiros contatos” possui e como estes eventos podem
determinar o futuro de muitos povos indígenas em situações de isolamento.
El primer contacto es un momento de especial relevancia para estos pueblos,
puesto que de ello dependerá en gran medida su interacción posterior con la
población mayoritaria. De este primer contacto dependerán también las
posibilidades de supervivencia del pueblo recién contactado, ya que los
niveles de mortalidad y enfermedades en los primeros contactos suelen ser
muy elevados si no se adoptan medidas especiales de protección previas y
durante el contacto (ACNUDH, 2012, p. 10).
Por sua vez, a definição apresentada pela CIDH é menos detalhada do que aquela
apresentada pelo ACNUDH. Ainda assim, contém os elementos considerados fundamentais.
Los pueblos indígenas en situación de contacto inicial son pueblos o
segmentos de pueblos indígenas que mantienen un contacto intermitente o
169
esporádico con la población mayoritaria no indígena16, por lo general
referido a aquellos que han iniciado un proceso de contacto recientemente.
No obstante, se advierte que “inicial” no debe entenderse necesariamente
como un término temporal, sino como uma referencia al poco grado de
contacto e interacción con la sociedad mayoritaria no indígena. Los pueblos
indígenas en contacto inicial anteriormente fueron pueblos em aislamiento
voluntario, que por alguna razón, voluntaria o no, entraron en contacto com
miembros de la población envolvente, y aunque mantienen un cierto nivel de
contacto, no conocen plenamente ni comparten los patrones y códigos de
interrelación social de la población mayoritaria (CIDH, 2013, p. 5).
Em complemento a estas definições, o documento de Diretrizes elaborado pelo
ACNUDH apresenta ainda as seguintes características destes povos:
14. A pesar de la gran diversidad y heterogeneidad que presentan estos pueblos, se pueden identificar algunas características generales comunes a todos ellos: a) Son pueblos altamente integrados en los ecosistemas en los que habitan y de los cuales forman parte, manteniendo una estrecha relación de interdependencia con el medio ambiente en el que desarrollan sus vidas y su cultura. Poseen un profundo conocimiento de su medio ambiente lo que les permite vivir de manera autosuficiente generación tras generación, razón por la cual el mantenimiento de sus territorios es de vital importancia para todos ellos. b) Son pueblos que no conocen el funcionamiento de la sociedad mayoritaria, y que por lo tanto se encuentran en una situación de indefensión y extrema vulnerabilidad ante los diversos actores que tratan de acercarse a ellos, o que tratan de acompañar su proceso de relación con el resto de la sociedad, como en el caso de los pueblos en contacto inicial. c) Son pueblos altamente vulnerables, que en la mayoría de los casos se
encuentran en grave peligro de extinción. Su extremada vulnerabilidad se
agrava ante las amenazas y agresiones que sufren sus territorios que ponen
en peligro directamente el mantenimiento de sus culturas y de sus formas de
vida, debido a que generalmente, los procesos de contacto vienen
acompañados de impactos drásticos en sus territorios que alteran
irremediablemente sus relaciones con su medio ambiente y modifican, a
menudo radicalmente, las formas de vida y las prácticas culturales de estos
pueblos. La vulnerabilidad se agrava, aún más, ante las violaciones de
derechos humanos que sufren habitualmente por actores que buscan
explotar los recursos naturales presentes en sus territorios y ante la
impunidad que generalmente rodea a las agresiones que sufren estos
pueblos y sus ecosistemas (ACNUDH, 2012, p. 10-11, grifos nossos).
Apresentadas estas definições, os documentos passam a analisar os marcos jurídicos
envolvidos no tema dos PIACI. Neste sentido, o ACNUDH (2012) aborda as seguintes
questões: a) quais direitos humanos devem ser levados em conta para a proteção destes povos
(parágrafos. 18-22); b) quais marcos normativos gerais de direito internacional reconhecem os
direitos dos PIACI (par. 23-26); c) quais marcos específicos de direitos internacional devem ser
considerados para estabelecer os direitos dos PIACI (par. 27-30); d) quais as disposições do
170
sistema regional (interamericano) de proteção dos direitos humanos têm relação com os PIACI
(par. 31-35); e) quais outras disciplinas jurídicas devem ser observadas no assunto (par. 36-38).
Por sua vez, a CIDH (2013) faz referência à Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Projeto de Declaração
Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas, o Convênio n.º 169 da OIT, e outros
instrumentos internacionais cujos direitos que têm efeitos sobre os PII, tais como: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e na Convenção sobre Prevenção e Sanção do Genocídio,
ambas de 1948; a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, da UNESCO, de 2001; a
Convenção de Paris sobre Proteção do Patrimônio Intangível, da UNESCO, de 2003; a
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, e as próprias
Diretrizes para proteção dos PIACI, do ACNUDH, de 2012.
As Diretrizes do ACNUDH (2012) apresentam ainda uma série de critérios para a
definição de políticas e programas de ação direcionados aos povos indígenas em isolamento.
Entre estes critérios, estipulam-se medidas a serem observadas para promover: o respeito e
garantia do direito de autodeterminação (par. 46-50); o respeito e garantia do direito a suas
terras, territórios e recursos (par. 51-59); o respeito e garantia do direito à saúde (par. 60-63); e
o direito à participação, consulta e consentimento livre, prévio e informado (par. 64-67). Por
fim, o documento apresenta suas propostas de atuação para as políticas públicas direcionadas
aos PIACI. Estas propostas estão dividas da seguinte maneira: a) marco legal e sistema de
justiça (par. 71); b) terras, territórios e planos de contingências (par. 72); c) rol de instituições
públicas e outros atores (par. 73-79); d) sensibilização, monitoramento e capacitação (par. 80-
88); e) participação e diálogo permanente (par. 89-90); f) desenvolvimento de protocolos de
proteção e protocolos de contato (par.91-93).
Assim, após a apresentação das definições e do marco normativo, ambos os documentos
passam a se aprofundar em questões específicas sobre os PIACI. Algumas destas questões
ultrapassam o foco desta pesquisa, e, portanto, não poderão ser aqui abordadas. São elas: o
panorama dos PIACI nos demais países da América do Sul e as políticas públicas destes países,
especificamente para PIACI.
Já outras questões abordadas na sequência destes documentos (ACNUDH, 2012 e
CIDH, 2013) serão discutidas ao longo desta pesquisa, e, deste modo, consideramos mais
apropriado apresentá-las no momento oportuno. São elas: a política pública brasileira específica
para estes povos e o princípio do não-contato (analisados no Capítulo 5); questões sobre a
autodeterminação e o princípio de consulta prévia, livre e informada (abordadas no Capítulo 5);
171
características mais detalhadas e específicas dos povos indígenas em situações de isolamento e
de contato inicial (tratadas no Capítulo 6); e, as ameaças existentes a estes povos e a seus
territórios (analisadas também no Capítulo 6).
3.4 A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): Agenda Regional para
Proteção de PIIRC
Nesta seção analisamos o projeto chamado “Marco Estratégico para a Elaboração de
uma Agenda Regional de Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário e Contato
Inicial”, aprovado pelo países membros da OTCA em 15 de Fevereiro de 2011 e executado
entre 2012 e 2014. Um dos principais resultados deste projeto foi a publicação do documento
intitulado: “Lineamientos regionales amazónicos de protección de pueblos indígenas en
aislamiento y contacto inicial”107. A iniciativa marca a adesão da instituição
intergovernamental de cooperação amazônica ao processo de inclusão do tema dos PIACI na
agenda política internacional/global, desencadeado em Junho de 2009, como vimos, com a
aprovação do Projeto da ONU de Diretrizes de Proteção aos PIACI. Antes de apresentar as
características e contribuições da iniciativa promovida pela OTCA, considerou-se necessário
fazer uma breve introdução sobre o processo de cooperação entre os países amazônicos.
O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi assinado no ano de 1978, em um
contexto regional influenciado pela presença de governos militares em vários países da América
do Sul. No âmbito internacional, a ascensão política da temática ecológica, a partir da
Conferência de Estocolmo, em 1972, e principalmente o surgimento de debates e propostas de
gestão internacional da Amazônia, levaram os países da região “a buscar instrumentos para
assegurar sua soberania e competência exclusiva sobre a conservação e utilização dos recursos
naturais de seus territórios”. Deste modo, verificou-se que o principal fator responsável pelo
início da coordenação política regional “foi a necessidade de reafirmação das soberanias
nacionais, realizada por meio de um instrumento diplomático e jurídico, o Tratado” (SILVA,
2013, p. 535).
Prestes a completar 40 anos, pode-se considerar que o processo de cooperação regional
amazônica “foi eficiente na consecução de seus objetivos geopolíticos iniciais, à medida que
contribuiu para afastar a possibilidade de intervenção externa direta na governança da região
107 LINEAMIENTOS, 2014. Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/uploads/documento/cc1fc-588d95cdaa1c8a58595b8da18725bb40.pdf. Acesso em 25/09/2017.
172
amazônica”. Além disso, “se há continuidade no diálogo e no esforço de coordenação regional
desde 1978 [...], este é um indicador de que houve sucesso na consolidação de um canal de
diálogo política institucionalizado” (SILVA, 2013, p. 554).
Entretanto, a trajetória do processo de cooperação amazônica revela um “contraste entre
a visão estratégica apurada de seus idealizadores e a baixa efetividade na execução e
desenvolvimento de projetos com resultados sensíveis para suas populações” (SILVA, 2013, p.
535).
(...) o período que se estende da assinatura do TCA até os dias atuais caracteriza-se
pela alternância de períodos de inatividade com fases de declarada renovação do
compromisso político. Antonio Aníbal Quiroga e Jacques Marcovitch (2003), na
função de consultores externos contratados pela própria OTCA, realizaram uma
análise da evolução histórico-institucional do Tratado, a qual foi dividia em três fases:
de 1978 a 1989, fase defensivo-protecionista; de 1989 a 1994, fase de incentivo e
fortalecimento político; e, de 1995 a 2002, amadurecimento institucional [que resultou
na criação da OTCA]. Na análise do período mais recente, Simões (2011) afirma que
é possível identificar mais duas fases distintas no processo: de 2002 a 2009, na qual
houve notável intensificação dos contatos entre os países amazônicos, porém, seguida
de dificuldades institucionais no estabelecimento do sucessor de Rosalia Arteaga para
o cargo de Secretário-Geral da Organização; e de 2009 a 2014, fase denominada como
relançamento da OTCA, e pautada nas diretrizes estabelecidas pela Agenda
Estratégica de Cooperação Amazônica (SILVA, 2013, p. 537).
A referida Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica (AECA) foi aprovada na X
Reunião de Ministros das Relações Exteriores do TCA, realizada em Lima, em novembro de
2010, e estabeleceu planos de ação para os anos de 2010 a 2020. Entre os eixos temáticos
abordados pelo documento estão: florestas; recursos hídricos; gestão, monitoramento e controle
de espécies de fauna e flora ameaçadas; áreas protegidas; uso sustentável da biodiversidade e
promoção de biocomércio; gestão do conhecimento e intercâmbio de informações; gestão
regional de saúde; infraestrutura e transporte; navegação comercial; turismo; desenvolvimento
regional, mudanças climáticas e energia; e, assuntos indígenas. Dentre os assuntos indígenas, a
Agenda Estratégica elencou três subtemas: povos indígenas em isolamento voluntário e em
contato inicial; proteção dos conhecimentos tradicionais dos Povos Indígenas e outras
comunidades tribais; e, terras e territórios indígenas e outras comunidades tribais (AECA,
2010).
Um fato interessante de se destacar é a relação entre as discussões sobre o tema dos
PIACI na Organização das Nações Unidas e a inclusão do tema no processo de cooperação
regional amazônica. Isto porque, o projeto de diretrizes de proteção para PIACI da ONU foi
aprovado pela Assembleia Geral em Junho de 2009, e em Novembro de 2010 o tema passou a
compor a agenda estratégica de cooperação amazônica. De acordo com Dall’Orso (2013, p. 05),
“entre las actividades previstas [nos assuntos indígenas da Agenda Estratégica de Cooperação
173
Amazônica], fue priorizada a corto plazo la seguiente: “Implementación de un programa
regional de protección de los pueblos indígenas en aislamiento voluntario y em contacto
inicial”.
Neste contexto, o projeto de elaboração de uma Agenda Regional de Proteção dos
PIACI, com duração prevista de três anos, realizou um levantamento das condições e das
legislações nacionais sobre povos indígenas em isolamento e contato inicial presentes nos
países da região amazônica. A iniciativa foi financiada pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento - BID108, com aporte de U$952.000, tendo como órgão executor a Secretaria
Permanente da OTCA.
A partir de pesquisa no endereço eletrônico do projeto109, verifica-se que seu objetivo
geral é contribuir para a proteção dos PIACI através da definição de política efetivas e ações
consensuadas entre os governos, povos e organizações indígenas, e organizações não
governamentais com experiência no assunto. Assim, o Programa foi estruturado em torno de 5
componentes:
1) Mecanismo regional de coordenación interinstitucional: este componente visa criar
um grupo de trabalho dedica ao tema institucional, com vistas a apoiar o desenvolvimento de
instâncias intergovernamentais para a proteção dos PIACI. Para isto, promoveu a geração de
insumos e informações através da contratação de consultores nacionais, responsável pela
elaboração de “diagnósticos institucionais” sobre o tema dos PIACI em cada país. Estes
diagnósticos deveriam conter a identificação de atores relevantes em todos os setores (governo,
organizações indígenas, sociedade civil e setor privado) e das iniciativas de proteção já
existentes em âmbito local, nacional e regional; (OTCA, 2017)110.
2) Lineamientos regionales para un marco estratégico consensuado: o segundo
componente visa produzir: i) a identificação de um conjunto de princípios considerados
tecnicamente essenciais; ii) uma análise dos potenciais e fragilidades das legislações nacionais,
em comparação com os princípios considerados tecnicamente essenciais; e, iii) compromissos
de cada país sobre as ações necessárias para fortalecer seus sistemas normativos de proteção
aos PIACI. Para estes trabalhos o programa contratou um jurista de cada país para revisar a
legislação existente sobre povos indígenas e propor ajustes e mecanismos correspondentes111;
108 É necessário discutir e problematizar este financiamento, visto que este mesmo banco financia boa parte das obras de infraestrutura regional que cruzam territórios indígenas e ameaçam inclusive grupos indígenas em isolamento. Este assunto será tratado entre as ameaças contemporâneas aos PIIRC, no Capítulo 6. 109 http://www.otca.org.br/piaci/. Acesso em 25/09/2017. 110 Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/componentes/comp01. Acesso em 25/09/2017. 111 Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/componentes/comp02. Acesso em 25/09/2017.
174
3) Plan de acción regional: através deste componente o projeto buscou gerar um plano
consensual de ação regional através do apoio a eventos nacionais e regionais sobre o tema com
vistas a compartilhar metodologias e definir metas específicas de proteção territorial e de
monitoramento dos PIACI. Nestes encontros, buscou-se fomentar a participação efetiva de
representantes das organizações indígenas das regiões habitadas por índios em isolamento112;
4) Estrategia regional de atención a la salud: através deste componente buscou-se
produzir uma nota técnica de proteção à saúde dos PIACI, incluindo: planos de contingência
para situações emergenciais; mapeamento das instâncias existentes de prestação de serviços de
saúde a nível local, nacional e regional; registro da situação de cada povo isolado com relação
a vetores sanitários da região e das comunidades vizinhas; levantamento e sistematização de
experiências de primeiro contato e estratégias de proteção à saúde; e, desenvolvimento de
equipes especializadas. Todas estas ações visando a consolidação de um programa de saúde
para PIACI em cada país e de uma proposta de ação regional113.
5) Herramientas de sustentabilidad del marco estratégico regional: este componente
visa fortalecer e apoiar a continuidade em longo prazo das ações dos países membros e dos
demais organismos envolvidos. Para isto, buscou realizar ações de capacitação, aprofundar,
sistematizar e compartilhar dados e conhecimentos, apoiando a criação de um Observatório
regional sobre o tema, além de promover a sensibilização e conscientização das sociedades do
entorno e de empresas que tenham atividades com potencial de afetar os PIACI114.
Entre os principais resultados dos trabalhos desenvolvidos no âmbito destes cinco
componentes, podemos apontar dois fatores relevantes: a) a promoção de vários eventos e
reuniões, nacionais e regionais, possibilitando o estabelecimento e a intensificação de contatos
e de trocas de experiências entre instituições nacionais, não-governamentais e
consultores/especialistas que lidam com o tema dos PIACI nos oito países amazônicos; b) a
produção de quantidade significativa de documentos analisando a situação contemporânea, os
elementos jurídicos e políticos da temática dos PIACI.
Nota-se que ainda é preciso se aprofundar o estudo sobre quais foram as contribuições
do referido programa da OTCA para a proteção dos povos indígenas em isolamento e contato
inicial. Ainda não foram encontrados quaisquer trabalhos ou artigos acadêmicos sobre o
mesmo, de modo que, as informações disponíveis são apenas aquelas oferecidas pela própria
OTCA. Tendo resultado sobretudo em contatos interinstitucionais e na produção de
112 Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/componentes/comp03. Acesso em 25/09/2017. 113 Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/componentes/comp04. Acesso em 25/09/2017. 114 Disponível em: http://www.otca.org.br/piaci/componentes/comp05. Acesso em 25/09/2017.
175
documentos, há indícios de que este projeto se limitou ao âmbito político-institucional. O que
não pode ser considerado um aspecto negativo, mas, indica uma efetividade possivelmente
baixa, em termos de ações concretas de proteção aos PIACI.
Tratando-se, ainda, de um assunto de pouco interesse político-econômico, ou até mesmo
que contraria estes interesses, as políticas bi-nacionais, regionais e internacionais para povos
indígenas em isolamento tendem a enfrentar dificuldades para ultrapassar o âmbito das
declarações de princípios e de intenções, produzindo, no máximo as referidas reuniões de
especialistas e de órgãos governamentais e não-governamentais para o compartilhamento de
metodologias, informações e opiniões.
O diálogo e coordenação política neste assunto tende a facilitar o intercâmbio regional
de experiências acumuladas e de metodologias de trabalho. Estas iniciativas de cooperação são
indispensáveis para a proteção e garantia dos direitos territoriais e de autodeterminação dos
índios isolados, altamente vulneráveis devido ao avanço contínuo das fronteiras de exploração
e à falta de vigilância nas regiões de fronteira onde se localizam a maior parte dos povos
indígenas isolados remanescentes.
4 AS RELAÇÕES ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E OS POVOS INDÍGENAS NO
BRASIL E A POLÍTICA PÚBLICA ESPECÍFICA PARA PIIRC
Como herança colonial e, em seguida, republicana, os povos originários sofrem
problemas afins vinculados à desapropriação territorial, à subordinação política, à
debilitação cultural e à discriminação. Cabe anotar que ao acontecimento colonial
seguiram-se as políticas de extermínio e assimilação do século XIX, o
integracionismo forçado de meados do séc. XX e, finalmente, as políticas de ajuste
estrutural de fins do séc. XX e início do séc. XXI, as quais têm significado novas
formas de exclusão para os povos indígenas e, inclusive, têm posto em questão sua
própria existência como povos. O impacto tem sido diverso e não sem resistência
indígena (FAJARDO, 2009, p. 12-13).
Neste capítulo realizamos uma análise macro-histórica sobre as relações entre o Estado-
Nação (colonial português/pós-colonial brasileiro) e os povos indígenas. O ponto de chegada
desta análise macro-histórica é o processo de concepção da atual política indigenista específica
para povos indígenas em isolamento, iniciada em 1987. A contribuição da vasta experiência de
campo dos sertanistas foi o fator decisivo para a mais significativa mudança de paradigma da
história da política indigenista estatal brasileira. O Encontro de Sertanistas de Belém, de 1987,
é o marco que representa o estabelecimento do princípio do “não-contato”, seguido pela criação
do Departamento de Índios Isolados na FUNAI, atualmente designado como Coordenação
Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). Analisaremos, então, o sistema de
176
proteção aos índios isolados, a metodologia de trabalho da CGIIRC, bem como outros conceitos
e princípios fundamentais que devem ser levados em conta na sua atuação, especialmente:
vulnerabilidade, integridade territorial, consulta prévia e autodeterminação.
Ao longo do processo macro-histórico analisado, estaremos buscando fundamentos para
analisar a hipótese de que a situação contemporânea dos povos indígenas em isolamento na
Amazônia brasileira pode ser descrita, até o presente momento, como o sexto século de
genocídios e diásporas indígenas. Um dos fatores que indicam a validade desta caracterização,
além da trajetória macro-histórica, é o fato de que, apesar dos avanços recentes em termos de
direitos indígenas, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, e do estabelecimento de
uma política indigenista específica para PIIRC, o Brasil permanece sendo um Estado excludente
e colonialista em relação a estes povos e a seus territórios. Mantendo-se inserido de modo
primário-exportador e subalterno no sistema-mundo moderno-colonial, e governado
historicamente pelas elites que representam tais interesses agropecuários e extrativistas, o país
continua expandindo as fronteiras da espoliação por sobre os territórios indígenas.
4.1 Análise macro-histórica das relações entre Estado-Nação e povos indígenas no Brasil
– séc. XVI a XX
A chegada dos portugueses ao território que hoje se denomina Brasil foi uma
verdadeira catástrofe para os índios. Em diferentes momentos de contato,
epidemias tiveram efeito devastador para as populações indígenas. A
construção do mundo colonial representou uma das formas de dominação
mais perversas de que se tem notícias, e divide o mundo até hoje. A escravidão
se fez presente mesmo quando proibida: na primeira lei de 1570 sobre o tema,
os Aimoré foram excluídos da proteção – a própria proibição da escravatura
nasceu com exceções para poder ser praticada. Se as ordens religiosas tinham
o mérito de proteger os índios da escravidão imposta pelos colonos, por outro
lado elas não respeitavam a cultura indígena e impunham sua conversão a
ferro e fogo (MILANEZ, 2015, p. 39).
De acordo com Mindlin (2015, p. 11) “a nossa história é uma história de massacres,
preconceitos, domínio dos mais fortes e do poder econômico, de um Estado voltado para um
conceito de desenvolvimento não humanitário, empresarial”. Esta é apenas uma dentre centenas
de citações que poderiam ser feitas, reafirmando o caráter e as consequências das relações
históricas entre Estado-Nação e povos indígenas. Nesta seção faremos um estudo macro-
histórico sobre estas relações.
Cientes de que inúmeros trabalhos já foram realizados a respeito desta trajetória, com
fartas pesquisas de campo, levantamentos históricos e documentais, não pretendemos esgotar o
177
assunto. Não nos aprofundaremos nas características e dispositivos da política indigenista,
trabalho já realizado extensamente na área de Antropologia. Adotamos um sentido semelhante
àquele sugerido por Lima (1995, p. 12), segundo o qual “o objetivo não foi realizar uma
reconstituição histórica stricto sensu, ao molde de uma história narrativa, muito menos do tipo
de pesquisa usualmente feita sobre a administração pública”. Este autor, entretanto, adentra
especificações conceituais, teóricas e metodológicas da Antropologia, sobre o indigenismo e a
política indigenista, que não poderíamos nem pretendemos discutir.
Nosso foco estará em identificar principalmente a forma como o Estado-Nação
concebeu e promoveu os primeiros contatos com as populações indígenas existentes no Brasil.
Com isto, nosso objetivo é identificar quais políticas e práticas estatais levaram, direta e/ou
indiretamente, à ocorrência de epidemias, depopulação indígena, violência sistêmica,
extermínio, escravidão e usurpação territorial destes povos, fatores que caracterizam os
fenômenos de genocídios e de diásporas indígenas. Em contrapartida, daremos ênfase às
reações indígenas a estes processos.
Assim, vale lembrar também que não pretendemos demonstrar ou comprovar a
existência destes fenômenos, mas sim reinterpretar esta trajetória histórica a fim de
compreender suas influências sobre a situação contemporânea dos povos indígenas em
isolamento na Amazônia brasileira. Tampouco se trata de promover uma perspectiva de
vitimização histórica dos povos indígenas, visto que as diásporas e o isolamento voluntário
estão entre as estratégias indígenas de resistência e de busca pela autodeterminação. Neste
sentido, devemos lembrar que:
[...] os povos indígenas sempre reagiram à violação e à conquista de seus
territórios tradicionais; e estas respostas variavam de acordo com o desafio
imposto pelos distintos momentos da expansão capitalista, inicialmente
europeia e, mais tarde, condicionada à formação econômica brasileira. Os
confrontos com as frentes civilizatórias se davam ora através da guerra cruenta
e aberta, ora através de guerra de guerrilhas, ou mesmo recorrendo à miserável
subserviência calculada ao suicídio coletivo. A resistência destes grupos era
determinada tanto pela especificidade da frente de expansão quanto pela
lógica cultural do povo que a sustentava (BORGES, 2005, p. 43 apud SOUZA,
2015, p. 30).
Neste sentido, e tendo como fundamento a obra de Oliveira e Freire (2006), a partir das
práticas predominantes na política indigenista estatal podemos identificar que os séculos XVI
a XVIII foram marcados pelas ações de aprisionamento, escravidão indígena e pelas lutas de
resistência destes povos; de meados do século XVIII ao fim do XIX, destacou-se o esforço para
promover a assimilação dos povos indígenas à sociedade colonial-nacional; no século XX, a
partir do ímpeto de Rondon, tem início o regime tutelar, concentrado na atuação do SPI e na
178
sua sucessão pela FUNAI. Este último período, ainda que tenha representado um significativo
avanço das políticas estatais, foi “calcado no paradigma do contato como premissa de
proteção”, e, assim, “o SPI e a FUNAI definiram políticas cuja estratégia foi o estabelecimento
de ações de ‘atração’”, visando a integração do indígena à comunidade nacional” (VAZ, 2011,
p. 09). De acordo com Lima (1995, p. 125) “os índios selvagens eram os alvos principais da
ação do Serviço (SPI) não só por obstaculizarem o avanço sobre o interior ou se acharem em
guerra, mas também por oferecerem as melhores oportunidades para o trabalho de civilização”.
Deste modo, tendo analisado anteriormente os direitos indígenas na Constituição
Federal de 1988, o ponto de chegada desta análise macro histórica é o processo de concepção e
elaboração da política pública específica para povos indígenas em isolamento, que começou a
ser desenvolvida a partir de 1987. Com a contribuição decisiva da vasta experiência de campo
dos sertanistas, foi promovida a mais significativa mudança de paradigma da política
indigenista estatal, representada pelo estabelecimento do princípio do “não-contato”.
Iniciamos, então, por um breve recurso à arqueologia. Segundo Oliveira e Freire (2006,
p. 21), “inúmeras pesquisas assinalam a ocupação do território brasileiro por populações
paleoíndias há mais de 12 mil anos”. Essa estimativa é oriunda da teoria arqueológica apelidada
de Clovis First, a qual afirma que a ocupação humana no continente americano provém da Ásia,
pela travessia do Estreito de Bering no último período glacial (Pleistoceno). A partir daquela
região, a ocupação do continente teria ocorrido primeiro na América do Norte, e seguido
paulatinamente em direção à América do Sul. Segundo Cunha (2012, p. 09-10):
Sabe-se que entre aproximadamente 35 mil e 12 mil anos atrás, uma glaciação
teria, por intervalos, feito o mar descer a uns 50 m abaixo do nível atual. A
faixa de terra chamada Beríngia teria assim aflorado em vários momentos
desse período e permitido a passagem a pé da Ásia para a América. Em outros
momentos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil anos atrás, o excesso de
frio teria provocado a coalescência de geleiras ao norte da América do Norte,
impedindo a passagem de homens. Sobre o período anterior a 35 mil anos,
nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma temperatura mais amena teria
interposto o mar entre os dois continentes. Em vista disso, é tradicionalmente
aceita a hipótese de uma migração terrestre vinda do nordeste da Ásia e se
espraiando de norte a sul pelo continente americano, que poderia ter ocorrido
entre 14 mil e 12 mil anos atrás.
Ainda de acordo com Cunha (2012, p. 10-11), “há considerável controvérsia sobre as
datas dessa migração e sobre ser ela ou não a única fonte de povoamento das Américas”, e,
deste modo, “a possibilidade de outras fontes populacionais e de rotas alternativas se somando
à do interior da Beríngia não está portanto descartada”. A partir das pesquisas iniciadas na
década de 1970 pela arqueóloga franco-brasileira Niede Guidon (1992), foram encontradas
179
várias evidências de que a ocupação humana na América do Sul é muito mais antiga do que
pressupõem as teorias relacionadas ao estreito do Bering. Ao longo das pesquisas feitas pelos
grupos científicos liderados por Guidon (1992) – através da análise de datação de carbono 14
encontrados em sítios arqueológicos – as estimativas sobre a ocupação humana nas Américas
passaram de 31.500 anos, em 1983, para 58.000 anos, com indícios descobertos em 1986. No
ano de 1991, então, a partir de novas técnicas de termoluminescência, foi analisado o carvão
retirado de pinturas rupestres em paredes de pedra, chegando ao resultado de que tais pinturas
possuem em torno de 100 mil anos (BEDINELLI, 2014 n.p.).
Independente da exata antiguidade da ocupação humana no continente americano, este
breve recurso à arqueologia tem o objetivo de destacar que quando os europeus chegaram às
Américas eles encontraram sociedades indígenas com populações numerosas, dotadas de
complexas formas de organização social, política, econômica, cultural, religiosa, cosmológica.
De acordo com Oliveira e Freire (2006, p. 21),
Pesquisas dirigidas pela arqueóloga norte-americana Ana Roosevelt (1992) na
Amazônia apontam registros de sociedades complexas, sofisticadas no
desenvolvimento tecnológico (cerâmicas) e na organização social (cacicados).
As investigações posteriores, se não mantêm um acordo completo, questionam
as antigas hipóteses de povoamento, baseadas na pressuposição de existência
de sociedades pequenas e simples, de caçadores e coletores, caracterizadas por
uma alta mobilidade e o uso de materiais perecíveis, como cestarias.
No mesmo sentido, Cunha (2012, p. 13-14) afirma que:
a pesquisa arqueológica (Roosevelt in Carneiro da Cunha [org.] 1992) veio no
entanto corroborar o que os cronistas contavam (Porro in Carneiro da Cunha
[org.] 1992): a Amazônia, não só na sua várzea mas em várias áreas de terra
firme, foi povoada durante longo tempo por populosas sociedades, sedentárias
e possivelmente estratificadas, e essas sociedades são autóctones, ou seja, não
se explicam como o resultado da difusão de culturas andinas mais ‘avançadas’.
Portanto, ao contrário do que as ciências sociais pregaram por muitos anos, os diferentes
povos indígenas das Américas constituíam “sociedades de abundância”115. O etnólogo e
sertanista Curt Nimuendaju (1981), que no início do século XX dedicou-se por muitos anos ao
estudo e a pesquisas de campo junto a povos indígenas do Brasil, registrou em seu famoso mapa
etno-histórico a existência de 1400 povos indígenas no território que corresponde ao Brasil,
115 A teorização sobre as sociedades arcaicas como sociedades da abundância tem de certa forma seu ponto de partida no Essai sur le don (1923-1924), de Marcel Mauss. A obra que, de forma específica, desenvolve o assunto é, porém, Stone age economics de Marshall Sahlins (1972). [Nestes trabalhos] Há uma crítica e uma recusa da visão tradicional (historicista, evolucionista, economicista e marxista, segundo os autores) relativa às sociedades arcaicas (VANZULLI, 2006, p. 125).
180
dentre os quais havia grande dispersão geográfica e diversas formas de organização social,
econômica, cultural e linguística. De acordo com Cunha (2012, p. 13).
É provável assim que as unidades sociais que conhecemos hoje sejam o
resultado de um processo de atomização [...] e de reagrupamentos de grupos
linguisticamente diversos em unidades ao mesmo tempo culturalmente
semelhantes e etnicamente diversas, cujos exemplos mais notórios são o do
alto Xingu e o do alto rio Negro (Franchetto e Wright in Carneiro da Cunha
[org.] 1992). [...]. Em suma, o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de
um tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria
provavelmente o território como um todo (CUNHA, 2012, p. 13).
Assim, como vimos anteriormente, “as estimativas de população aborígine em 1492
ainda são assunto de grande controvérsia”, e, “[...] variam de 1 a 8,5 milhões de habitantes para
as terras baixas da América do Sul”, devendo-se levar em consideração que não foram poucos
os estudos sobre a demografia histórica dos povos indígenas nas Américas (CUNHA, 2012, p.
16-17).
Diga-se de passagem, sabe-se ainda menos da população da Europa ou da Ásia
na mesma época: a América é até bem servida desde os trabalhos de
demografia histórica da chamada escola de Berkeley, cujos expoentes
principais foram Cook e Borah. Imagina-se, só como base de comparação, que
a Europa teria, do Atlântico aos Urais, de 60 a 80 milhões de habitantes em
1500 (Borah apud Denevan 1976: 5). Se assim tiver sido realmente, então um
continente teria logrado a triste façanha de, com punhados de colonos,
despovoar um continente muito mais habitado (CUNHA, 2012, p. 17).
Portanto, “povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência
do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de sociedades do Antigo e
do Novo Mundo” (CUNHA, 2012, p. 14). Segundo a autora, “esse morticínio nunca visto foi
fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-organismos, mas cujos
motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição” (idem).
Entretanto, apesar de suas muitas contribuições, deve ser destacada também a
contradição presente nas seguintes afirmações de Cunha (2012, p. 14), ao dizer que “motivos
mesquinhos e não uma deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado espantoso
de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos pouco mais de 800 mil
índios que hoje habitam o Brasil”. É hoje certamente impossível comprovar que as tragédias
indígenas nas Américas tenham sido concebidas e articuladas por um ou por alguns
determinados grupos de pessoas. Entretanto, a sucessão dos eventos e do morticínio indígena
ao longo de tanto tempo e por todo o continente não deixam dúvidas de que, se não foram
totalmente planejadas, tais consequências foram amplamente conhecidas, aceitas e reiteradas,
como as palavras da própria autora nos mostram:
181
No entanto, é importante enfatizar que a falta de imunidade, devido ao seu
isolamento, da população aborígine não basta para explicar a mortandade,
mesmo quando ela foi de origem patogênica. [...] Particularmente nefasta foi
a política de concentração da população praticada por missionários e pelos
órgãos oficiais, pois a alta densidade dos aldeamentos favoreceu as epidemias,
sem no entanto garantir o aprovisionamento [...] Os aldeamentos religiosos ou
civis jamais conseguiram se autorreproduzir biologicamente. Reproduziam-
se, isso sim, predatoriamente, na medida em que índios das aldeias eram
compulsoriamente alistados nas tropas de resgates para descer dos sertões
novas levas de índios, que continuamente vinham preencher as lacunas
deixadas por seus predecessores (CUNHA, 2012, p. 14-15).
Sobre a reiteração dos processos que levavam a mortes massivas de índios, Monteiro
(1994, p. 118) observa que:
Os frequentes surtos de doenças contagiosas prejudicavam mais ainda o bem-
estar do índio colonial. Criava-se o ciclo vicioso comum a toda América
Portuguesa ao longo do período colonial: a alta mortalidade suscitava
repetidas investidas ao sertão em busca de novos cativos que, sem qualquer
resistência biológica agravavam as mesmas crises epidemiológicas
(MONTEIRO, 1994, p. 118).
Portanto, como Cunha (2012, p. 14) afirma, “não foram só os micro-organismos os
responsáveis pela catástrofe demográfica da América”:
o exacerbamento da guerra indígena, provocado pela sede de escravos, as
guerras de conquista e de apresamento em que os índios de aldeia eram
alistados contra os índios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente
acompanhavam as guerras, a desestruturação social, a fuga para novas regiões
das quais se desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes
(ver, por exemplo, Franchetto e Wright in Carneiro da Cunha [org.] 1992), a
exploração do trabalho indígena, tudo isso pesou decisivamente na dizimação
dos índios (idem).
Por estes motivos, Oliveira e Freire (2006, p. 17-18), questionam “o complacente
silêncio” e a “explícita atribuição de irrelevância que é destinada aos indígenas nos compêndios
usuais de história do Brasil”. Os autores ressaltam que “pouco a pouco esse artifício narrativo
cedeu lugar a uma retórica, a mobilização do trabalho indígena foi transformada em uma
pedagogia moral e religiosa”. Do mesmo modo, “a entrada sertões adentro, atravessando terras
habitadas pelos índios, virou uma epopeia, por meio da qual os colonizadores iriam semeando
a civilização”.
Assim, visando “estimular a revisão do que está inadequadamente descrito ou
deformado por visões preconceituosas”, Oliveira e Freire (2006, p. 18) identificam quatro
períodos, nos quais buscam recuperar a presença e a participação dos indígenas como parte
essencial do processo de formação do Brasil: o período de 1549 a 1755, caracteriza-se o
“Regime dos Aldeamentos Missionários (1549-1755)”, no qual os autores analisam o sistema
182
colonial, a ação missionária, e a resistência indígena a estas iniciativas; o período de 1755 a
1910, é denominado como de “Assimilação e Fragmentação”, marcando a transição do sistema
colonial português para a construção do império brasileiro, bem como os reflexos deste
processo para as populações indígenas; o “Regime Tutelar” corresponde ao período de 1910 a
1988”, sendo abordado desde a Comissão Rondon, precursora do indigenismo estatal brasileiro,
ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e sua substituição pela Fundação Nacional do Índio
(FUNAI); o período iniciado em 1988 é caracterizado pelos autores como “Ensaios de
Cidadania Indígena”, tendo como referência central os direitos estabelecidos na Constituição
Federal de 1988.
Assim, uma referência constante nos estudos sobre os períodos iniciais da colonização
do Brasil são as palavras de um “velho índio tupinambá do Maranhão que, por volta de 1610,
teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaiavam o estabelecimento de uma colônia”
(CUNHA, 2012, p. 18):
Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram
eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão
traficar sem pretenderem fixar residência […] Mais tarde, disseram que nos
devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se
defenderem, e cidades, para morarem conosco […] Mais tarde afirmaram que
nem eles nem os paí [padres] podiam viver sem escravos para os servirem e
por eles trabalharem. Mas não satisfeitos com os escravos capturados na
guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda
a nação [...] Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes
aqui, vós o fizeste somente para traficar […] Nessa época não faláveis em aqui
vos fixar; apenas vos contentáveis com visitar-nos uma vez por ano […]
Regressáveis então a vosso país, levando nossos gêneros para trocá-los com
aquilo de que carecíamos. Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, de
construirdes fortalezas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso,
trouxestes um Morubixaba e vários Paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas
os peró fizeram o mesmo […] Como estes, vós não queríeis escravos, a
princípio; agora os pedis e os quereis como eles no fim […] (d’Abbeville, trad.
Sérgio Milliet, [1614] 1975: 115-6 apud CUNHA, 2012, p. 19).
Deste modo, o discurso transcrito acima apresenta um resumo de como os colonizadores
concebiam o projeto colonial e de quais eram as funções por eles atribuídas aos povos indígenas
dentro deste projeto. Como vimos anteriormente (no Capítulo 2), os subsídios e justificativas
para estas ações vieram da atribuição de categorizações hierarquicamente inferiores aos
indígenas. Em um primeiro momento os índios eram relatados como inocentes, puros e belos.
Porém, ao mostrarem suas primeiras resistências à invasão de seu território e à escravização de
seu povo, os povos indígenas passaram a ser designados como: selvagens, gentis, pagãos, sem
almas, canibais, negros da terra, brabos, arredios, entre tantos outros adjetivos interessados.
183
durante o primeiro meio século, os índios foram sobretudo parceiros
comerciais dos europeus, trocando por foices, machados e facas o pau-brasil
para tintura de tecidos e curiosidades exóticas como papagaios e macacos, em
feitorias costeiras (Marchant, 1980). Com o primeiro governo geral do Brasil,
a Colônia se instalou como tal e as relações alteraram-se, tensionadas pelos
interesses em jogo que, do lado europeu, envolviam colonos, governo e
missionários, mantendo entre si, como assinala Taylor, uma complexa relação
feita de conflito e de simbiose. Não eram mais parceiros para escambo que
desejavam os colonos, mas mão de obra para as empresas coloniais que in-
cluíam a própria reprodução da mão de obra, na forma de canoeiros e soldados
para o apresamento de mais índios (CUNHA, 2012, p. 18).
São abundantes, neste sentido, as análises demonstrando que tais “representações dos
índios no período colonial derivavam de visões de mundo que davam um sentido humanitário
e religioso ao empreendimento colonial” (OLIVEIRA; FREIRE, 2016, p. 28). Assim, “tal
imaginário era sempre acionado em defesa dos interesses econômicos dos colonos”, e,
“dispondo de justificativas para a conquista e para a integração dos nativos ao trabalho colonial,
iniciaram-se inclusive as disputas sobre a posse do trabalho indígena entre os projetos coloniais
dos missionários e os dos colonos” (idem).
Em todas as ocasiões, o pomo da discórdia sempre foi o controle do trabalho
indígena nos aldeamentos, e as disputas centravam-se tanto na legislação
como nos postos-chave cobiçados: a direção das aldeias e a autoridade para
repartir os índios para o trabalho fora dos aldeamentos (CUNHA, 2012, p. 20).
É neste contexto que são iniciadas as guerras de aprisionamento. De acordo com
Monteiro (1994, p. 105) “diante da dificuldade em transformar o cativo de guerra em escravo
através do escambo com os índios, os portugueses começaram a lançar mão de outros métodos
de captação de mão-de-obra”, dando início à “apropriação direta de cativos, através de
expedições de apresamento”. Deste modo, “os elaborados esquemas de apresamento
desenvolvidos pelos colonos no sul e no norte da América Portuguesa determinavam, em larga
medida, os contornos demográficos da escravidão indígena” (MONTEIRO, 1994, p. 115)
De fato, apesar de pouco abordada na historiografia, a escravidão indígena
desempenhou um papel de grande impacto não apenas sobre as populações
nativas como também na constituição da sociedades e economia coloniais. Em
sua dimensão mais negativa, aliando-se às doenças contagiosas, a
escravização dos índios concorreu para o despovoamento de vastas
regiões do litoral e dos sertões mais acessíveis aos europeus. [...] À primeira
vista restritivo, o recurso da Guerra Justa na verdade tornou-se um importante
mecanismo para a ampliação do número de escravos. Pouco satisfeitos com a
experiência dos aldeamentos jesuíticos, que não forneciam trabalhadores à altura das
expectativas, tanto os colonos particulares quanto alguns administradores
coloniais – tais como Mem de Sá e Jerônimo Leitão – passaram a organizar
poderosas expedições militares que, por um lado, buscavam derrotar os focos de
resistência Tupi ao longo do litoral de são Vicente a Paraíba e, por outro, visavam
produzir vultuosos números de escravos, destinados a trabalhar na economia
açucareira. Não se pode subestimar a importância desse processo articulado de
184
conquista, escravização e desenvolvimento dos engenhos, uma vez que foi justamente
neste período – fase ainda incipiente do tráfico de escravos africanos – que houve a
mais acentuada ascensão açucareira (MONTEIRO, 1994, p. 105-106, grifos nossos).
Sobre este assunto, Monteiro (1994, p. 105) faz referência a vários episódios em que os
grupos indígenas “resistentes às pretensões dos europeus eram sujeitos a guerras movidas pelos
portugueses e seus aliados indígenas e os prisioneiros eram distribuídos ou vendidos como
escravos”. Souza (2015, p. 30-31) apresenta alguns destes acontecimentos da seguinte maneira:
A história registra enfrentamentos entre indígenas e não indígenas desde
meados de 1500 por todo território brasileiro, como a Guerra dos Aimorés na
Bahia (1555-1673), a Confederação dos Tamoios no Rio de Janeiro (1556-
1567), a Guerra dos Potiguares na Paraíba e no Rio Grande do Norte (1586-
1599) e o Levante dos Tupinambás no Espírito Santo e Bahia (1617-1621).
Nos séculos XVI e XVII destacam-se as entradas e as bandeiras, além da
atuação de bugreiros e as expedições civis militares de exploração e captura
de indígenas pelo interior do país. Todos estes embates foram marcados por
lutas sangrentas entre indígenas e luso-brasileiros. No sul do país ainda
podemos citar a Guerra Guaranítica (1751-1757), na qual Espanha e Portugal
empreenderam sua força militar contra os jesuítas e os Guarani catequizados
[...] Enfim, poder-se-ia citar inúmeros outros episódios de enfrentamentos
entre indígenas e não indígenas e descrevê-los minuciosamente, no entanto,
cabe aqui apenas relembrar estes acontecimentos no sentido de refletir e
problematizar o MI [movimento indígena] enquanto um movimento de
resistência que existe há séculos. (SOUZA, 2015, p. 30-31).
Assim, as expedições europeias, a partir de 1500, “mudaram radicalmente a ocupação
original do território brasileiro, afetando não apenas a distribuição demográfica da população
nativa como também o seu quantitativo” (VAZ, 2013, p. 7). Assim, novamente de acordo com
Monteiro (1994, p. 108-109), entre os séculos XVI e XVIII o “apresamento representava a
principal forma de criar, manter e até aumentar a população cativa, esboçando-se um forte
paralelo com o papel exercido pelo tráfico de escravos africanos no mesmo período” resultando
“num considerável fluxo de índios para a economia colonial”.
Quanto ao final do séc. XVIII, os mecanismos de captura aí empregados por
sertanistas em guerras justas e resgates foram descritos por Farage (1991)116 e
Domingues (2000)117. As práticas desses sertanistas desde o séc. XVI criaram
uma força de trabalho indígena e liberaram as terras dos índios para os
colonos, tendo seu impacto na Amazônia possibilitado a reconfiguração de
povos, provocando etnogênese (Monteiro, 1999b). No séc. XIX, inúmeras
“bandeiras” continuavam suas atividades de “descimento” (Moreira Neto,
1971) no Pará, e na Amazônia em geral (FREIRE, 2005, p. 27-28).
116 FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: povos indígenas no Rio Branco e a colonização. São Paulo: ANPOCS:
Paz e Terra, 1991. 117 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
185
Sobre estas práticas, Monteiro (2004, p. 112-114) narra vários acontecimentos que sem
dúvida podem ser associados ao processo de diáspora forçada dos povos indígenas, como por
exemplo:
Não existem muitos registros destas primeiras expedições, contudo, deixavam
sua indelével marca no despovoamento do Baixo Amazonas. Quando chegou
em São Luís, na década de 1650, o padre Antônio Vieira denunciou a
magnitude do movimento, declarando que, nos 40 anos anteriores, cerca de
dois milhões de índios teriam sido extinguidos pelos colonos do Estado do
Maranhão [...] De acordo com o padre Bettendorf, uma única entrada 1655
teria descido 2.000 nativos do Rio Amazonas [...] Conforme a política
prevalecente, cada ano era organizada uma expedição que contava com a
participação do Estado e da iniciativa privada, além dos missionários. De
caráter misto, portanto, estes empreendimentos serviam tanto para “descer”
índios considerados mansos para os aldeamentos, quanto para “resgatar”
escravos. Em diversas ocasiões, as tropas assumiram a característica de
expedições punitivas, as vezes atingindo proporções semelhantes às grandes
bandeiras paulistas (MONTEIRO, 1994, p. 112-114).
Sobre estes fenômenos, Cunha (1994, p. 125) observa ainda que:
Os grupos da várzea amazônica foram dizimados a partir do século XVII pelas
tropas que saíam em busca de escravos. Incentivou-se a guerra entre grupos
indígenas para obtê-los e procedeu-se a maciços descimentos de índios
destinados a alimentar Belém em mão-de-obra. No século XVIII, como
escrevia em 1757 o jesuíta João Daniel, encontravam-se nas missões do baixo
Amazonas índios de "trinta a quarenta nações diversas".
Segundo Monteiro (1994, p. 116), a intensidade da escravidão indígena fez com que se
alcançasse a proporção de “40 índios para cada proprietário”, e, assim, “contando com uma
esmagadora vantagem numérica, os índios colocaram em dúvida, de maneira frontal, a
dominação absoluta exercida pelos colonos”. Neste sentido, o autor narra vários episódios de
aprisionamentos, resistências indígenas, e “diversos outros levantes que chegaram a balançar
as bases da escravidão indígena” (MONTEIRO, 1994, p. 116).
Assim, apesar das mudanças de métodos e de objetivos, a invasão de territórios e a
violência contra os povos indígenas continuaram a ocorrer nos séculos posteriores. Segundo
Freire (2005, p. 28) “os soldados dos destacamentos militares e os capitães-do-mato seguiram
“a tradição sangrenta dos antigos sertanistas, cujo principal objetivo consistia em dizimar e
escravizar índios” (Monteiro, s.d., p. 11 apud FREIRE, 2005, p. 28).
A partir da expulsão dos jesuítas por Pombal, em 1759, e sobretudo a partir da
chegada de D. João VI ao Brasil, em 1808, a política indigenista viu sua arena
reduzida e sua natureza modificada: não havia mais vozes dissonantes quando
se tratava de escravizar índios e de ocupar suas terras. A partir de meados do
século XIX, como enfatizou J. Oscar Beozzo, a cobiça se desloca do trabalho
para as terras indígenas (Farage e Santilli in Carneiro da Cunha [org.] 1992)
(CUNHA, 2012, p. 21).
186
De acordo com Cunha (1992, p. 133), a partir do fim do século XVIII e até meados do
século XIX, “a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra
para se tornar uma questão de terras”. Assim, a partir de então, o debate acerca do “que fazer
com os índios”, passa a ser polarizado entre a necessidade de exterminar os índios “bravos”,
desinfestando os sertões, ou civilizá-los e incluí-los na sociedade política (idem):
Porque é fundamentalmente um problema de terras e porque os índios são cada vez
menos essenciais como mão-de-obra, a questão indígena passa a ser discutida em
termos que, embora não sejam inéditos, nunca haviam no entanto sido colocados
como uma política geral a ser adotada. Debate-se a partir do fim do século XVIII e
até meados do século XIX, se se devem exterminar os índios "bravos",
"desinfestando" os sertões — solução em geral propícia aos colonos — ou se cumpre
civilizá-los e incluí-los na sociedade política — solução em geral propugnada por
estadistas e que supunha sua possível incorporação como mão-de-obra. Ou seja, nos
termos da época, se se deve usar de brandura ou de violência. Este debate, cujas
consequências práticas não deixam dúvidas, trava-se frequentemente de forma toda
teórica, em termos da humanidade ou animalidade dos índios (CUNHA, 1992, p. 134).
De acordo com Vaz (2013, p. 08) “para efeito prático/administrativo, no século XIX os
índios se subdividiam em “bravos” e “domésticos ou mansos”. Domesticar continuava a
significar a sedentarização dos índios em aldeamentos. Como resultado desta “domesticação”
cria-se a figura do caboclo, que supostamente deixa de ser índio e incorpora-se pacificamente
à imaginada comunhão nacional. Nas palavras de Cunha (1992, p. 136), “é o índio que aparece
como emblema da nova nação em todos os monumentos, alegorias e caricaturas. É o caboclo
nacionalista da Bahia, é o índio do romantismo na literatura. É o índio bom e,
convenientemente, é o índio morto”.
Já Aqueles índios considerados bravos, “por não se submeterem às políticas de
aldeamentos, eram encontrados e guerreados nas fronteiras do império” (VAZ, 2013, p. 8).
Novamente de acordo com Cunha (1992, p. 136) “esse não só é um índio vivo, mas é aquele
contra quem se guerreia por excelência”. Deste modo, estas duas concepções “inundaram o
linguajar e pensamentos de grande parte do imaginário da população brasileira” (VAZ, 2013,
p. 8).
Este imaginário teve papel importante no período de fins do século XIX e início do
século XX, marcado pelos incentivos governamentais para a exploração econômica e o
povoamento da região amazônica. Especial atenção deve ser dedicada a este período visto que
seu ímpeto expansionista resultou no aumento exponencial de casos de primeiros contatos e de
conflitos entre a sociedade nacional e diversos povos indígenas em isolamento no Brasil.
Estimulada pelo seu alto valor no mercado internacional, a produção de borracha
provocou intensas ondas migratórias para a Amazônia, especialmente para a região do Acre.
187
Deve-se mencionar também que o avanço da extração do caucho pelos peruanos diversificava
os vetores de pressão territorial e de violências contra os povos indígenas.
A abertura dos seringais e a extração do caucho representaram para os povos indígenas
a invasão de seus territórios e o início de um longo período de violência. Por quase
meio século, as correrias118
, expedições armadas organizadas por patrões e
caucheiros, foram usadas para matar, perseguir, capturar e afastar grupos indígenas.
A violência foi tão grande que muitos povos foram dizimados [...] Mesmo com a
definitiva instalação dos seringais, correrias continuaram a ser realizadas em certas
regiões para manter os índios “brabos” afastados das colocações, segundo os patrões,
para “dar segurança” aos seringueiros e garantir a produção da borracha. (IGLESIAS,
2010, p. 10-11).
De acordo com Milanez (2015, p. 37):
Pontas de lança da expansão territorial até meados do século passado, os
seringueiros provocaram sangrentos entreveros mata adentro com as
populações indígenas pelo controle das zonas produtoras de látex. Raros são
os velhos seringueiros que não se lembrem de um desses episódios, ao passo
que os mais jovens citam com facilidade a memória de um parente ou vizinho,
pacífico e benquisto entre os seus, porém afamado matador de índios. E havia
quem defendesse publicamente o extermínio como uma política de Estado
(MILANEZ, 2015, p. 37)
Neste contexto, os argumentos em defesa do extermínio deliberado dos povos indígenas
podiam ser encontrados em diversas regiões do Brasil, e também em outros países sul-
americanos. Sobre este tema, costumam ter destaque as palavras do então diretor do Museu
Paulista, Hermann von Ihering:
Os atuais índios do Estado de São Paulo não representam um elemento de
trabalho e de progresso. Como também nos outros estados do Brasil, não se
pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados, e como os
Kaingang selvagens são um empecilho para a colonização das regiões do
sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão,
senão o seu extermínio (IHERING, 1907119 apud MILANEZ, 2015, p. 37).
De acordo com Milanez (2015, p. 38), “Von Ihering fazia eco a um debate presente no
contexto regional, com propostas igualmente violentas contra os índios”. Não era, portanto,
uma voz isolada a defender o extermínio dos povos indígenas, que “foi uma política deliberada
de ‘civilização’”. A violência característica do período da borracha foi registrada por Euclides
de Cunha120, em “À margem da história”, livro escrito em 1908 mas publicado apenas
postumamente. Nesta obra o autor descreve as inúmeras “correrias”121, modo como eram
118 “Reúnem-se de 30 a 50 homens, armados de carabinas de repetição e munidos cada um com uma centena de balas, e, à noite, cerca-se a maloca aonde todo o clã dorme. No nascer do sol, um grito convencionado dá o sinal, e os assaltantes abrem fogo todos juntos e à vontade” (IGLESIAS et al, 2010, p. 12). 119 IHERING, Hermann von. A anthropologia do Estado de São Paulo. Revista do Museu Paulista, n. VII, 1907. 120 CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 121 Sobre as correrias, Milanez (2015, p. 38) destaca a importância da seguinte referência: IGLESIAS, Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no alto Juruá. Brasília: Paralelo 15, 2010.
188
chamados os massacres de povos indígenas inteiros, a fim de abrir caminho para a exploração
da seringa. Assim, é importante frisar que este imaginário e estas práticas de combate aos índios
brabos e de conquista dos seus territórios perduraram ao longo dos séculos XIX, XX e podem
ser identificadas com facilidade ainda hoje.
Deste modo, segundo Milanez (2015, p. 38), naquele período “de fato, havia o temor do
extermínio étnico, por um processo de racialização, tornar-se política oficial de Estado”. Ainda
mais considerando-se que havia um vácuo legal “logo após a Proclamação da República,
período em que não havia normas de proteção aos índios”.
Outro aspecto importante a se observar é que, durante o surto da borracha a exploração
da seringa era relativamente limitada às extensões de terra mais próximas às margens dos rios.
Com o declínio econômico desta atividade após 1910, devido ao surgimento de forte
concorrência no Oriente, o complexo extrativista fluvial e a mão-de-obra da borracha foram
gradativamente direcionados para a exploração madeireira, intensificada a partir de 1945.
Diferentemente da exploração da borracha, a exploração madeireira avançava
progressivamente mata adentro, em busca das madeiras mais nobres. Com isto, aumentaram
novamente as ocorrências de contato e conflito com povos indígenas, muitos dos quais já
vinham fugindo do contato com as frentes de exploração da borracha.
De acordo com Milanez (2015, p. 38), é neste contexto de violência extrema e
sistemática contra os povos indígenas que surge o Serviço de Proteção aos Índios e Localização
de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), no ano de 1910:
Em meio à crise internacional após o Relatório Casement122, que iria agravar
ainda mais a crise da borracha após o início da produção no sudeste asiático,
o Brasil apresentou a experiência do SPI, então recém-criado, como a saída
encontrada para o controle dessas regiões violentas e como um paradigma da
relação com povos indígenas. Em campo, no entanto, o órgão nasciturno
apenas começava a enfrentar suas primeiras dificuldades para cumprir o que
propunha.
Segundo o próprio Rondon (1958, p. 597 apud MILANEZ, 2015, p. 45) a proposta do
SPILTN foi inspirada nos “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do
Brasil”, de José Bonifácio, obra na qual defendia a abolição e a liberdade dos índios e dos
negros logo após a independência.
122 De acordo com Milanez (2015, p. 38), o Relatório Casement foi produzido pelo diplomata britânico Roger Casement para investigar “denúncias de escravização e exterminío de indígenas no sistema de produção de borracha, após a empresa Peruvian Rubber Company [...] abrir ações na bolsa de Londres”.
189
A ideia de construir uma agência de proteção é materializada em uma proposta
para Rodolpho Miranda, então ministro dos Negócios da Agricultura,
Indústria e Comércio, a pedido do presidente da República Nilo Peçanha. Em
junho de 1910, na exposição de motivos, o ministro confirmava as denúncias
de violência e massacres que ocorriam, e que era imperioso criar o SPILTN
para a defesa dos índios: ‘Não pode, porém, a República permanecer na
imobilidade com que tem assistido, em muitos casos, ao massacre de índios e
sua sujeição a um regime de trabalho, semelhante ao cativeiro (MILANEZ,
2015, p. 45).
Segundo Vaz (2013, p. 10), neste contexto de criação do Serviço de Proteção aos Índios
e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) “a proposta de política indigenista,
defendida por Rondon, vitoriosa nos primeiros anos republicanos, não era única”.
dentro do grupo daqueles que defendiam proteção aos indígenas, havia duas
posições conflitantes: a dos positivistas, que viam no Estado republicano a
competência privativa para promover essa “integração”; e a dos religiosos,
através da Igreja, que pregavam o trabalho de missionários católicos como
mais adequado ao processo “civilizatório”. Essas diferentes visões sobre o
espaço dedicado aos povos indígenas na República em construção e o papel
dessa população no Brasil constituem uma breve noção do contexto político
da criação do SPI em 1910. É nesse momento histórico que ocorre a
“formulação de uma política indigenista de inspiração humanitária”
(MOREIRA NETO, 2005, p. 84 apud MILANEZ, 2015, p. 38-39).
Porém, deve-se ressaltar, como veremos a seguir, que esta inspiração humanitária do política
indigenista viria acompanhada da crença na inexorabilidade do “progresso” e na transitoriedade das
sociedades indígenas. Nesta perspectiva, ser indígena era considerado uma condição atrasada da
humanidade, e, portanto, transitória, que deveria ser superada através da incorporação dos índios à
sociedade, à economia e aos padrões culturais nacionais.
O principal articulador desse projeto, durante os primeiros anos republicanos,
foi Candido Mariano Rondon, militar do exército brasileiro que, durante a
Primeira República, chefiou os principais projetos, cujos objetivos eram
realizar o desenvolvimento da região amazônica e efetivar a construção de
aparatos militares que garantissem a integridade territorial do Brasil.
Positivista convicto e defensor das ideias de Augusto Comte, acreditava que a
sociedade humana estivesse dividida em três estados evolutivos: o estado
teológico ou fetichista, o metafísico ou abstrato e o científico ou positivo. Os
povos indígenas do Brasil, segundo essa classificação, encontravam-se no
estágio teológico-fetichista e poderiam tornar-se, de maneira mais efetiva, o
novo homem positivo, através da educação e de novas formas de produção
(VAZ, 2013, p. 10).
Segundo Gagliardi (1989 apud VAZ, 2013, p. 11), o projeto para a criacao do SPILTN
enviado pelo Ministro da Agricultura, Rodolfo de Miranda ao Presidente da Republica, Nilo
Pecanha “era fundamentado no argumento de que cabia a Republica resgatar as populacoes
indigenas do exterminio a que estavam submetidas desde os tempos coloniais”. Importa
190
destacar deste processo que, “o simbolo da nova orientacao foi a substituicao da palavra
“catequese” pela palavra “protecao”” (VAZ, 2013, p. 11, grifo nosso).
Mas nao se tratava simplesmente de mudança de palavra, e sim do novo
conteúdo político que predominava nas instituições após o advento da
Republica. Do mesmo modo que o Estado, a educação e o casamento foram
laicizados, deveria perecer também a presença da religião junto as populacoes
indígenas. Esse era o fundamento político da ordem burguesa que
peculiarmente ia se estabelecendo no Brasil (BIGIO, 2003, p. 161-162 apud
VAZ, 2013, p. 12).
SPI – FUNAI: “atração”, “pacificação” e contato enquanto premissa de proteção
De acordo com VAZ (2013, p. 9) “a partir do século XX, o Estado brasileiro assume a
formulação e a execução da política indigenista e, consequentemente, a responsabilidade pelo
trabalho de atração, pacificação e proteção dos povos indígenas”. Assim “a política indigenista
do Estado e sua implementação, no período do SPILTN/SPI, referente aos grupos indígenas
aldeados e isolados resumia-se da seguinte maneira”: 1) Política de atração/pacificação como
premissa de proteção; 2) Prática indigenista pautada na integração a sociedade nacional; 3)
Postos de Proteção e Postos de Pacificação. Dentre estas fases, a atividade de pacificação era
acompanhada pela de atração, “termo que remetia à tática de deslocamento das populações para
as proximidades dos postos de pacificação e incentivo ao abandono das práticas indígenas, o
que vinha acompanhado da criação de dependência em relação aos postos” (VAZ, 2013, p. 12-
13).
Referência indispensável sobre esta atividade, Lima (1995) descreve as fases, o
funcionamento, as estratégias e as perspectivas que orientavam esta política, denominada como
sendo “um grande cerco de paz”. Lima (1995, p. 160) aponta que “todo o trabalho SPILTN, em
uma região/local, iniciava-se por um expedição. O termo designava um modo militar de intervir
no espaço de clara matriz militar”. Deste modo, “no tangente ao trabalho de pacificação, note-
se que seu começo está sempre em avaliar as vantagens obtidas com a liberação da área”. Assim,
“a proteção fraternal deve ser situada na encruzilhada em que os interesses militares se uniriam
aos diplomáticos, aos fundiário, etc.” (LIMA, 1995, p. 130). Nas palavras do autor:
A imagem do grande cerco de paz revela-se em toda a sua complexidade nas
palavras do militar, sumarizando numerosos mecanismos ainda hoje em ação:
técnica militar de pressionamento e forma de manter vigilância, ao mesmo
tempo assédio de um inimigo visando cortar-lhe a liberdade de circulação, os
meios de suprimento e a reprodução social independente (sem implicar no
ataque dos sitiantes), além de defesa contra os de fora do cerco, como num
cercado para as crianças, estabelecendo limites e constrições aos por ele
incluídos/excluídos (LIMA, 1995, p. 131).
191
Vaz (2013, p. 13) descreve estas práticas em campo da seguinte maneira:
As ações se desencadeavam a partir de “Postos de Pacificação”, instalados na
mata, na região aonde o grupo a ser contatado habitava. A estratégia, definida
a partir de procedimentos de segurança rigorosos, consistia em realizar
incursões na mata com o objetivo de localizar vestígios e caminhos utilizados
pelo grupo indígena isolado a ser “atraído”. No caminho usado pelos
indígenas deixavam-se “brindes” pendurados. Daí até o Posto de Pacificação
abria-se um “varadouro”. De tempos em tempos deslocavam-se até o local
para observar se os indígenas encontraram e/ou levaram os brindes. Em caso
afirmativo deixava-se mais brindes, desta feita não mais no ponto de encontro
dos caminhos, colocava-se em um ponto mais a dentro do varadouro em
direção ao Posto de Pacificação. A reação dos indígenas frente aos brindes
(de aceitação ou hostilidade) dava sinal sobre a possibilidade de o contato
se efetivar. Se além de pegarem os brindes, os indígenas deixassem outros,
essa atitude era entendida como positiva rumo ao contato. Essa fase do
trabalho denominava-se “namoro” (VAZ, 2013, p. 13, grifo nosso).
O esquema seguinte nos dá uma boa noção de como funcionavam as denominadas
“frentes de contato”:
Fonte: FREIRE (2005, p. 121).
Este autor nos oferece ainda um maior detalhamento sobre as fases denominadas de
“namoro” e “contato” que tem como referência uma “Frente de Contato clássica, nos moldes
de Rondon” (FREIRE, 2005, p. 120). O namoro:
‘(...) inicia-se com a descoberta pelo índio da Frente de Contato, que passa a vigiar
todo o movimento ali efetuado. Está em andamento um processo de estudo de ambas
as partes, principalmente dos índios que não sabem por que ali estamos, e culminará
na confraternização ou conflito, dependendo em sua maior parte das experiências
passadas do grupo indígena com os segmentos da sociedade nacional e nas condições
atuais a que estejam submetidos. Todavia é de grande importância a habilidade do
Chefe da Frente, no sentido de analisar os sinais de aceitação ou hostilidade
externados pelos índios, e aproveitar, na medida do possível, as agressões sofridas
para reforçar demonstrações de paz e amizade, inspirando aos índios, condições de
192
segurança para que dêem contato. Nas duas hipóteses abaixo apresentadas, permeiam
inúmeras variáveis com progressos e retrocessos no relacionamento: 1ª HIPÓTESE
(desejável): índios vigiam e rondam a Frente sem manifestar hostilidade; índios
pegam brindes efetuando ou não troca no tapiri; índios dão contato. 2ª HIPÓTESE
(não desejável): índios vigiam e rondam a Frente; índios obstruem os caminhos,
destroem os brindes e hostilizam a Frente; índios atacam diretamente a Frente ou
alguns de seus componentes; retrocessos nos trabalhos. As hipóteses formuladas não
obedecem a seqüência linear aqui apresentada e nem sempre o nosso raciocínio lógico
pode deduzir com segurança o comportamento futuro. A lógica é a do índio. Pode
acontecer que após sinais de aceitação da nossa presença, sobrevenha um inesperado
ataque. Características: Etapa de tempo indefinido. Aumento de tensão e ansiedade
pela possibilidade de ataques. Alto risco para os componentes da Frente. Os cuidados
de comportamento e as medidas de segurança devem ser rígidos’ (Normas do Sistema
de Proteção, p. 72-73 apud FREIRE, 2005, p. 122).
O contato:
‘é caracterizado pela aproximação física e pacífica entre os índios e os integrantes da
Frente, a ponto de permitir a troca de brindes mão-a-mão. O primeiro contato marca
o término do namoro para a etapa atual. Convém esclarecer que o contato não significa
necessariamente que as relações da Frente com os índios serão, daquele momento em
diante, tranqüilas e pacíficas. Pode haver retrocessos nas relações. A troca de
presentes de hoje, o surgimento de mulheres e crianças tidos sempre como bom sinal,
pode significar uma estratégia dos índios, para um ataque amanhã. Características:
Etapa de duração indeterminada, podendo haver retrocesso nos trabalhos. As medidas
de segurança e comportamento continuam em vigor. Permanecendo a desconfiança
recíproca e alto risco para os integrantes da Frente. São efetuadas as primeiras
contagens e registros da população recém-contatada. O tapiri de brindes perde a sua
finalidade com as trocas sendo efetuadas na própria Frente. Os brindes são exigidos
pelos índios em grande quantidade. Inicia-se uma etapa de alto risco para os índios
contatados, face a aproximação física com os integrantes da Frente e a possibilidade
de serem contaminados por doenças infecto-contagiosas” (Normas do Sistema de
Proteção, p. 74 apud FREIRE, 2005, p. 122-123).
Entretanto, as consequências dos contatos desencadeados por esta metodologia
demonstraram que a “atracao”, a “pacificacao” e a “protecao” empregadas pelo governo
republicano tambem levaram ao processo de exterminio fisico ou a aniquilacao cultural de parte
dessas sociedades (BIGIO, 2003, p. 259).
Antes de avançarmos às questões sobre o fim do SPI e a criação da FUNAI, outro
registro importante de ser resgatado é aquele estudado por Ribeiro (1977), na obra “Os índios
e a civilização”, referente ao período entre 1900 e 1957. Segundo Milanez (2015, p. 48), “Darcy
Ribeiro foi incumbido pela Unesco de realizar uma investigação sobre a incorporação dos
índios na sociedade brasileira”. Tal período e a confiabilidade da obra de Darcy Ribeiro são
aqui resgatados por vários motivos. O primeiro deles é o fato de que as primeiras décadas do
século XX, ainda na fase inicial da República, são de grande importância. Neste período deve-
se ressaltar o fenômeno de grande impacto que foi o surto da borracha, o qual desencadeou o
primeiro contato de muitas populações indígenas com a sociedade nacional, e ainda intensificou
este processo no caso de populações já contatadas. Vale acrescentar também que nos anos 1940
193
com o segundo ciclo da borracha, incentivado pela demanda gerada com a Segunda Guerra
Mundial, reaparecem os conflitos territoriais entre comunidade indígenas e seringueiros. Esta
década também é marcada pela Marcha para o Oeste, decretada por Getúlio Vargas. Neste
contexto, foi criada a Fundação Brasil Central (FBC), “que agia em paralelo ao SPI para a
organização do território e o contato com os povos indígenas” (MILANEZ, 2015, p. 47).
Assim, estamos cientes de que a perspectiva antropológica subjacente às classificações
feitas por Darcy Ribeiro já está superada, especialmente quanto às ideias de “transfiguração
étnica” e da impossível existência de “índios integrados”. Porém, consideramos que não se pode
deixar de reconhecer e utilizar as informações obtidas por Darcy, que atuou diretamente no
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), e buscou oferecer uma “comparação sistemática da
situação em que se encontravam os grupos indígenas brasileiros na passagem do século [...]
distribuídos por categorias referentes ao grau de integração em que cada um deles se encontrava
em 1900 e 1957” (RIBEIRO, 1996, p. 229).
Deste modo, segundo Ribeiro (1996), no ano de 1900 as estimativas sobre a população
indígena total no Brasil eram de cerca de 1 milhão de índios, o que correspondia a 5,76% da
população nacional da época. Dentre esta população, o autor identificou 105 grupos isolados,
com uma população em torno de 50 mil índios. No intervalo de pouco mais de meio século,
Ribeiro (1977) contabilizou a população de índios no Brasil entre 68 e 99 mil indivíduos, cerca
de 0,1% da população nacional. A depopulação, portanto, foi da ordem de mais de 90%, de
acordo com este autor. Dentre aqueles 105 grupos isolados em 1900, restavam apenas 33 em
1957, com uma redução populacional estimada em 75%. “As mortes ocorriam por conflitos e
por doenças. As grandes causas de conflitos eram as ‘frentes de expansão’, extrativas, agrícolas
ou pastoris” (MILANEZ, 2015, p. 48).
Em uma análise ainda bastante atual, Darcy Ribeiro registra que as ‘frentes de
expansão’ agrícolas eram (e continuam) violentas com os indígenas: ‘A
economia agrícola não se interessa pelo índios como mão de obra e como
produtor, mas simplesmente disputa as terras que ele ocupa para estender as
lavouras’, enquanto a frente pastoril desejava ‘limpar os campos de seus
ocupantes humanos para entregá-los ao gado’, sendo estas ‘particularmente
agressivas, levando-as a promover chacinas tão devastadoras quanto as das
frentes extrativistas’ – tal qual o conflito entre os povos indígenas e os
ruralistas que persiste no Brasil (MILANEZ, 2015, p. 48).
Assim, analisando as populações indígenas com foco na sua relação com a sociedade
nacional da época, Ribeiro (1977) divide os grupos indígenas nas categorias de “Isolados,
194
Contato Intermitente, Contato Permanente, Integrados, e Extintos”123. Apesar das controvérsias
destas categorias, elas nos ajudam a compreender os impactos do processo de expansão da
sociedade nacional sobre os povos indígenas. Nestes parâmetros, a população indígena
observada entre 1900 e 1957 era composta de 230 grupos indígenas, os quais foram listados na
tabela abaixo.
Tabela 4 - Grupos indígenas no Brasil entre 1900 e 1957
Isolados Contato
Intermitente
Contato
Permanente
Integrados Extintos
N° (%) N° (%) N° (%) N° (%) N° (%)
1900 105 45,6% 57 24,7% 39 16,9% 29 12,6% - -
1957 33 23% 27 18,8% 45 31,4% 38 26,5% 87 37,8%
Fonte: Elaboração própria com base nas informações disponíveis em RIBEIRO (1996).
Em sua análise, o autor destaca que “entre elas [“tribos integradas”] e seus ancestrais
isolados – em alguns casos, a geração anterior – ia uma enorme distância”, além do que trinta
e três grupos passaram diretamente da condição de isolados à de extintos. A identificação de
que oitenta e sete grupos foram extintos no período de 57 anos aponta que, “quase metade das
[235] tribos que defrontaram com a civilização desapareceram menos de cinquenta anos depois
e às vezes muito mais depressa”. Já entre os trinta e nove grupos que foram classificados como
em contato permanente em 1900, “vinte e oito, ou seja, 71,7%, desapareceram” (RIBEIRO,
1996, p. 235-236, 241). Ainda de acordo com Ribeiro (1996, p. 238):
enquanto a maior porcentagem era, em 1900, de tribos isoladas (45,6%) e a
menor, a de integradas (12,6%), em nossos dias [1957] os números quase se
inverteram, sendo maior a proporção das integradas (26,5%) que a de isoladas
(23%) (RIBEIRO, 1996, p. 238).
123 Fazendo uma breve descrição de cada uma das categorias, conforme utilizadas por Ribeiro (1957), entre os
isolados agrupou-se aqueles indígenas que “só tinham experimentado contatos acidentais e raros com civilizados”. Entre os grupos de contato intermitente, o autor incluiu aqueles indígenas que “viviam em regiões que começavam a ser ocupadas pelas frentes de expansão da sociedade brasileira” [...] considerando-se que “seu montante populacional devia estar reduzido a menos da metade do que constituíra quando isolados, por efeitos das epidemias”. Entre os grupos considerados de contato permanente “foram relacionadas as tribos que mantinham, em 1900, comunicação direta e permanente com grupos mais numerosos e mais diferenciados de representantes da civilização”. Como Integrados foram considerados aqueles índios que “tendo experimentado todas as compulsões referidas e conseguido sobreviver, chegaram ao século XX ilhados em meio à população nacional”. E, por fim, foram considerados Extintos aqueles grupos que “desapareceram nesse meio século como grupos tribais diferenciados da população brasileira” (RIBEIRO, 1996, p. 231-234).
195
Milanez (2015, p. 48) observa que “alguns grupos considerados por ele [Ribeiro]
extintos foram, mais tarde, reencontrados, o que leva a uma imprecisão desse total”. Entretanto,
ainda que estes números sejam imprecisos, não deixam dúvidas quanto à velocidade e à
violência da expansão do Estado nacional, principalmente na primeira metade do século XX, e
quais são os resultados do contato, para os povos indígenas.
Todas as ‘frentes de expansão’ – fossem elas ligadas à economia ou à
colonização – que chegavam a ficar face a face com os povos indígenas eram
extremamente violentas. [...] Na análise de Darcy Ribeiro, nenhuma
‘intervenção protecionista’, seja pelo SPI, seja por missões religiosas, havia
funcionado para proteger os índios: qualquer tentativa se revelou frustrada. O
SPI era efetivo apenas quando ‘dava solução aos problemas da expansão da
sociedade nacional e não aos problemas indígenas que lhe competia amparar’.
No entanto, a proteção efetivamente funcionou quando a posse de um
território pôde ser garantir aos indígenas. Nos locais onde as terras não foram
demarcadas, ou em que o SPI foi deficiente, não pôde operar, ou esteve
ausente, os dados de Ribeiro apontam para uma maior proporção de grupos
desaparecidos. Isto é: sem o SPI, o risco era ainda maior (MILANEZ, 2015,
p. 49).
Foi neste contexto que, por volta dos anos 1960, começa a se proliferar uma série de
graves de denúncias de corrupção no SPI.
Em 1963, José Maria da Gama Malcher, ex-diretor do SPI entre 1951 e 1955
e membro do CNPI, elaborou um dossiê intitulado ‘Por que fracassa a
proteção aos índios?’. Malcher considerava que o quadro de servidores do SPI
estava corrompido por interesses político-partidários e que a contratação de
determinadas pessoas para que ocupassem cargos-chave facilitaria o esbulho
das terras e do patrimônio indígena. De acordo com Elias Bigio, a ideia de
Malcher era recuperar a imagem do órgão, após uma Comissão Parlamentar
de Inquérito, em 1963, e ‘recobrar o controle do SPI para os ‘herdeiros’ de
Rondon’ (MILANEZ, 2015, p. 59).
Posteriormente, de acordo com Milanez (2015, p.59), “as graves denúncias de Malcher,
vieram a ser investigadas pelo Relatório do procurador do Estado, Jader de Figueiredo Correia”.
Este relatório surge a mando do Ministro do Interior, Albuquerque Lima, com o intuito de
instaurar uma Comissão de Inquérito no SPI. Atualmente denominado como Relatório
Figueiredo124, as conclusões deste inquérito foram reunidas em 20 volumes que escancararam
as inúmeras atividades criminosas e corruptas de servidores do SPI contra índios e contra o
patrimônio indígena. Neste relatório foi determinada a demissão de 33 servidores e a suspensão
para outros 17, entre outras conclusões (VAZ, 2013, p. 14).
124 O “Relatório Figueiredo” foi considerado destruído ou desaparecido por mais de 40 anos. Recentemente foi localizado nos
arquivos do Museu do Índio no Rio de Janeiro. O relatório denuncia não só os casos de corrupção do SPI, mas também todo o
processo de repressão e barbárie exercido pelo governo contra os indígenas. http://janetecapiberibe.com.br/33-relatorio-figueiredo/20-
relat%C3%B3rio-figueiredo.html. Acesso em: 13/09/2013
196
o Relatório Figueiredo chegou a apontar extermínio de grupos indígenas,
envenenamentos e torturas dentro das instalações dos postos do SPI. Foi
recomendada a suspensão de 17 e a demissão de 33 funcionários do Serviço
de Proteção ao Índio. O Relatório havia constatado a ‘geral corrupção e
anarquia total imperantes no SPI’, escreveu o procurador em documento que,
julgado perdido em um incêndio, apenas recentemente foi reencontrado na
sede do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em meio aos trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade (MILANEZ, 2015, p. 59).
No Relatório, dada a disseminação generalizada da corrupção, as precárias condições
de atuação do SPI e as barbaridades cometidas contra os indígenas, Figueiredo afirma que “o
índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um
regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a
dignidade da pessoa humana” (FIGUEIREDO, 1968, p. 02 apud MILANEZ, 2015, p. 60).
A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificação, os castigos
físicos eram considerados fato natural nos Postos Indígenas. [...] Sem ironia
pode-se afirmar que os castigos de trabalho forçado e de prisão em cárcere
privado representavam a humanização das relações índio-SPI
(FIGUEIREDO, 1968, p. 03 apud MILANEZ, 2015, p. 60).
Segundo Milanez (2015, p. 60), “dos crimes que aparecem no relatório, poucos foram
punidos”. É necessário lembrar, entretanto, que:
Na opinião do antropólogo Cardoso de Oliveira, essas denúncias não
poderiam ser generalizadas a ponto de obscurecer a importância estratégica
do SPI na defesa dos territórios indígenas, pois ‘sem sua atuação, ainda que
precária, os territórios indígenas de há muito teriam sido alienados em sua
totalidade’ (OLIVEIRA apud MILANEZ, 2015, p. 60).
Assim, a situação do SPI tornou-se insustentável e o órgão foi extinto. Foi criada, então,
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o que, todavia, não resultou em alterações
significativas nos paradigmas de atuação da política indigenista estatal. De acordo com Souza
(2015, p. 33) “o SPI deu lugar à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, para continuar a tarefa
de agente tutelar empregando violência e seguindo os interesses da ditadura brasileira que
vigorava”.
A ação da FUNAI durante a ditadura foi fortemente marcada pela perspectiva
assimilacionista. O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001) aprovado em 1973, e ainda
vigente, reafirmou as premissas de integração que permearam a história do
SPI. Por um lado, pretendia-se agregar os índios em torno de postos de atração,
como batalhões de fronteira, aeroportos, colônias, postos indígenas e missões
religiosas. Por outro, o foco era isolá-los e afastá-los das áreas de interesse
estratégico. Para realizar este projeto, os militares aprofundaram o monopólio
tutelar, centralizaram os projetos de assistência, saúde, educação, alimentação
e habitação, cooptaram lideranças e facções indígenas para obter
consentimento e limitaram o acesso de pesquisadores, organizações de apoio
197
e setores da Igreja às áreas indígenas (SANTILLI125, 1991 apud VAZ, 2013,
p. 15)
Esta perspectiva fica comprovada pelo modo como a política indigenista foi enquadrada
institucionalmente, no âmbito do Ministério do Interior126:
Embora projetada pelos intelectuais do Conselho Nacional de Política
Indigenista (CNPI) para superar os antigos impasses do SPI, a FUNAI acabou
por reproduzi-los. Sua criação foi inserida no plano mais abrangente da
ditadura militar (1964-1985), que pretendia reformar a estrutura
administrativa do Estado e promover a expansão político-econômica para o
interior do País, sobretudo para a região amazônica. As políticas
indigenistas foram integralmente subordinadas aos planos de defesa
nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e
extração de minérios. Sua atuação foi mantida em plena afinidade com os
aparelhos responsáveis pela implementação dessas políticas, como:
Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional
(PIN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) (SANTILLI, 1991
apud VAZ, 2013, p. 15, grifo nosso).
De acordo com Vaz (2013, p. 15, grifo nosso), no que se refere às ações voltadas aos
índios isolados, a FUNAI “manteve inalterados os princípios da política do contato/atração
enquanto pressuposto norteador da proteção dos povos indígenas isolados”, visto que,
“entre os sertanistas que sucederam Rondon, o “princípio” do contato enquanto paradigma de
proteção era unanimidade”. Além disso, verifica-se que durante o período militar a razão central
que levava ao estabelecimento dos contatos, intensificou-se, a saber, a existência de “grandes
empreendimentos em regiões que coincidem com territórios indígenas” (VAZ, 2013, p. 15).
Os anos 1970 são os do “milagre”, dos investimentos em infraestrutura e em
prospecção mineral — é a época da Transamazônica, da barragem de Tucuruí e da de
Balbina, do Projeto Carajás. Tudo cedia ante a hegemonia do “progresso”, diante do
qual os índios eram empecilhos: forçava-se o contato com grupos isolados para que
os tratores pudessem abrir estradas e realocavam-se os índios mais de uma vez,
primeiro para afastá-los da estrada, depois para afastá-los do lago da barragem que
inundava suas terras. É o caso, paradigmático, dos Parakanã, do Pará. Esse período,
crucial, [...] desembocou na militarização da questão indígena, a partir do início dos
anos 1980: de empecilhos, os índios passaram a ser riscos à segurança nacional
(CUNHA, 2012, p. 21).
Entretanto, as principais referências encontrados sobre os sertanistas, como Freire
(2005) e Milanez (2015) destacam que as gerações de sertanistas posteriores a Rondon, cujos
primeiros a obter grande destaque foram os irmãos Vilas Bôas, Francisco Meireles, e outros
contemporâneos, começam a adotar práticas diferenciadas de “atração” e de “pacificação” dos
125 Disponível no site: http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/orgao-indigenista-oficial/funai. Acesso em 17 de julho de 2013. 126 Lei nº 5.371/1967, que determina a criação da FUNAI
198
povos indígenas isolados. De acordo com Vaz (2013, p. 15), tem início estratégias mais
“protecionistas” em relação aos indígenas. Os detalhes da atuação dos sertanistas serão
estudados mais adiante, ainda neste capítulo127.
Assim, conforme afirmamos no início da seção, esta análise macro-histórica não
pretende esgotar assunto tão vasto. Nosso o objetivo foi o de contribuir para a avaliação da
hipótese trabalhada nesta pesquisa. Tendo visto a continuidade histórica das práticas de
violência, extermínio e usurpação territorial, e de fugas sistemáticas, às quais os povos
indígenas foram submetidos, consideramos pertinente caracterizar a situação contemporânea
dos povos em isolamento na Amazônia como o sexto século de genocídios e de diásporas
indígenas.
Na nossa perspectiva, os elementos identificados contribuem para identificar que ambos
os processos – de genocídios e de diásporas – se iniciaram com a colonização europeia, foram
sucedidos pelo colonialismo interno, e prosseguem atualmente por meio da apropriação dos
recursos e dos territórios amazônicos para serem incorporados aos mercados nacionais/globais.
Portanto, a dimensão cronológica desta caracterização não pretende representar um processo
linear, mas sim dinâmicas que passaram por momentos de maior e de menor intensidade, por
mudanças dos agentes históricos envolvidos, mas que não foram abolidas.
Diante de novos contextos de relações interétnicas e intertribais, perturbado
por guerras e epidemias e por uma nova situação de distribuição de poder,
políticas de colonização constituíram o golpe derradeiro sobre a autonomia
indígena em diferentes momentos e lugares, acompanhando as sucessivas
frentes de expansão das economias nacionais periféricas. Neste périplo, as
fazendas, garimpos, companhias, barracões, missões, presídios e fortes
alteraram muito pouco seu papel de entrepostos de fronteira da administração
colonial em seus propósitos de assegurar o desenvolvimento econômico das
nações latino-americanas em construção (SILVA, 2015, p. 179-180).
A narrativa de Ailton Krenak (1999, n.p.), em seu texto chamado “O eterno retorno do
encontro”, exerceu influência decisiva na elaboração desta hipótese:
Não houve um encontro entre as culturas dos povos do Ocidente e a cultura do
continente americano numa data e num tempo demarcado que pudéssemos chamar de
1500 ou de 1800. [...] Se pensarmos que há 500 anos algumas canoas aportaram
aqui na nossa praia, chegando com os primeiros viajantes, com os primeiros
colonizadores, esses mesmos viajantes, eles estão chegando hoje às cabeceiras dos
altos rios lá na Amazônia. De vez em quando a televisão ou o jornal mostram uma
frente de expedição entrando em contato com um povo que ninguém conhece [...]
Então eu queria partilhar com vocês essa noção de que o contato entre a cultura
ocidental e as diferentes culturas das nossas tribos acontece todo ano, acontece
todo dia, e em alguns casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui
no litoral, 200 anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só
encontraram os brancos de novo agora, nas décadas de 30, 40, 50 ou mesmo na
127 Seção 4.3 As sagas e memórias sertanistas.
199
década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na geografia de nosso
território e de nosso povo expressa uma maneira própria das nossas tribos de estar
aqui neste lugar. (KRENAK, 1999, n.p., grifo nosso).
Segundo Oliveira e Freire (2006, p. 21), apesar de todas as divergências existentes, as
estimativas mais aceitas por arqueólogos e antropólogos indicam a existência de 1,5 a 5 milhões
de indígenas no Brasil em 1500. O etnólogo Curt Nimuendaju (1981), que no início do século
XX dedicou-se a pesquisas de campo junto a vários povos indígenas do Brasil, registrou em seu
mapa etno-histórico a existência de 1400 povos indígenas no território que correspondia ao
Brasil à época do “descobrimento”. De acordo com Darcy Ribeiro, em 1957 a população
indígena no país foi reduzida a cerca de 70 a 100 mil indivíduos (RIBEIRO, 1957a).
Atualmente, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, existem aproximadamente
897 mil indígenas do Brasil, em um total de 305 etnias e 274 idiomas. Nota-se que o
crescimento demográfico dos povos indígenas verificado principalmente a partir da década de
1990, não anula os genocídios sofridos por estes povos ao longo dos últimos séculos. Isto
porque o que caracteriza um genocídio não é apenas o número de indivíduos mortos, mas,
principalmente, a intenção de erradicar determinado grupo – no caso dos povos indígenas, com
a finalidade de apropriar-se de seus territórios. Nesta seção pudemos identificar a ocorrência e
a intencionalidade dos genocídios contra povos indígenas.
O outro elemento que sustenta nossa hipótese é a distribuição espacial dos povos
indígenas no Brasil, e especificamente dos PIIRC, as quais indicam o movimento de diáspora
destes povos. Vimos que, ao longo dos séculos, os processos de ocupação e de expansão
territorial da sociedade nacional pressionou sucessivamente muitos grupos indígenas a
abandonarem seus territórios tradicionais. O mapa a seguir é indicativo neste sentido.
200
Mapa 4 - Áreas do Brasil povoadas por não-índios ao longo dos séculos XVI a XX
Fonte: (AZEVEDO, 1968, p. 107 apud URT, 2015, p. 168).
No decorrer deste processo histórico, incontáveis etnias indígenas foram extintas, alguns
grupos conseguiram resistir e permanecer em parte de seus territórios, outros encontraram
refúgio em áreas que vieram a se tornar terras indígenas. A maior parte, porém, teve de se
adaptar a diferentes tipos e níveis de interação com a sociedade colonial-nacional. Este cenário
indica, entre outras coisas, o movimento diaspórico dos povos indígenas no Brasil: do litoral
para o interior, daí para a região central, e desta para a região norte – não necessariamente de
modo linear e absoluto. No mapa seguinte podemos observar as discrepâncias no tamanho e na
quantidade das TI ao compararmos as regiões Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste, e Norte do
Brasil.
201
Mapa 5 - Terras Indígenas no Brasil (2017)
Fonte: Instituto Socioambiental (ISA, 2015, n.p.).
Elementos semelhantes podem ser verificados pela comparação do tamanho das
populações e da diversidade étnica dos povos indígenas nas regiões do país128. De modo
complementar, verifica-se que mesmo no interior da floresta amazônica, o avanço da
exploração colonial/nacional pressionou e ainda pressiona os povos indígenas em isolamento
voluntário para regiões cada vez mais distantes, alcançando as fronteiras nacionais. Neste
sentido, a Tabela 1 demonstra que praticamente todos os grupos indígenas em isolamento no
Brasil encontram-se na região Norte.
.
128 Segundo o Censo Demográfico de 2010, na região sul, existem 74.945 indígenas, na região sudeste, 97.960, na região Centro-Oeste, 130.494, na região Nordeste, 208.961, e na região Norte 305.873.
202
Tabela 5 - Registros de PIIRC por Estados da Federação129
Estado INFORMAÇÃO REFERÊNCIA REFERÊNCIA
CONFIRMADA
RECENTE
CONTATO
TOTAL
GERAL
AC 1 1 4 - 6
AM 21 6 13 4 44
AM/PA 3 1 - - 1
AM/RO - 1 - - 1
AM/RR - - 1 2 3
MA 6 1 2 1 10
MT 6 3 1 1 11
PA 11 6 - 4 21
RO 6 1 4 4 15
RR 2 2 1 - 5
TOTAL
GERAL 56 22 26 16 120
Fonte: VAZ (2014, p. 29).
Portanto, o isolamento não pode ser explicado apenas com base na localização destes
povos, ou seja, não se justifica simplesmente pelo fato destes grupos indígenas viverem em
regiões distantes e de difícil acesso. O fenômeno a ser analisado é que a localização majoritária
nestes refúgios amazônicos (terras indígenas, áreas de proteção ambiental e fronteiras
nacionais) reflete sua opção pelo isolamento e suas trajetórias de fuga sistemática dos contatos
e relações com a sociedade colonial-nacional.
Conforme já foi mencionado, é importante também considerar que os PIIRC presentes
no Brasil cuja localização é distante das fronteiras nacionais, encontram-se quase todos no
interior de terras indígenas ou de áreas de proteção ambiental. À medida que estabelecem
limites formais ao avanço das atividades econômicas e da ocupação não-indígena, estas áreas
também podem ser concebidas como um tipo de região fronteiriça. Nestes refúgios amazônicos,
determinados grupos indígenas conseguiram manter-se em isolamento. Porém, a continuidade
da expansão capitalista, por meios cada vez mais difusos, tem alcançado também estas áreas.
4.1.1 Os contatos e os contágios: a depopulação indígena pelas epidemias;
As epidemias assumiram um papel determinante na conquista e colonização
do Novo Mundo. Historiadores, antropólogos, demógrafo-historiadores e
médicos já demonstraram o impacto que elas tiveram sobre as populações
indígenas das Américas não apenas em sua constituição demográfica, mas
também em termos de desestruturação sociocultural e econômica.
Evidenciaram igualmente a estreita ligação entre as epidemias e a penetração
e expansão dos europeus, bem como os benefícios políticos e econômicos que
129 Nota-se que há divergências quanto ao número de PIIRC presentes no país. A FUNAI reconhece a existência de 111 registros. Já o consultor e ex-sertanista Antenor Vaz (2014, 2016) aponta a existência de 120 registros.
203
estes auferiram com a ocupação de territórios esvaziados. Além disso,
deixaram patente que as epidemias foram utilizada ideologicamente na
conquista espiritual dos índios (ver Reff, 1991; Seed, 1992 e 1993). Alguns
pesquisadores não hesitaram em afirmar que os europeus conseguiram
conquistar as Américas não por sua supremacia militar, mas graças a
uma “guerra biológica” não premeditada (Ashburn, 1947; Crosby, 1972;
Dobyns, 1983). (BUCHILLET, 2002, p. 113).
De acordo com Cunha (2012, p. 14) “as epidemias são normalmente tidas como o
principal agente da depopulação indígena”. Os agentes patogênicos principalmente da varíola,
sarampo, gripe e malária, “provocaram no Novo Mundo o que Dobyns chamou de “um dos
maiores cataclismos biológicos do mundo”. No documento que expressa as conclusões do I
Encontro de Sertanistas, ocorrido em 1987, analisado mais adiante, lê-se que:
Os efeitos posteriores [aos contatos], ensinam a história e nossa experiência,
são sempre frustrantes para estes índios: adoecem das moléstias para nós mais
simples e, por não terem anticorpos, morrem facilmente. Temos milhares de
exemplos de grupos inteiros mortos, em passado recente por gripes,
sarampo, coqueluche, etc. (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 12-13, grifo
nosso).
Assim, o objetivo desta seção é apresentar e discutir mais detalhadamente os efeitos
devastadores que as epidemias tiveram sobre os povos indígenas e os riscos que elas ainda
representam para os povos indígenas em situações de isolamento e de recente contato. Por este
motivo, a vulnerabilidade imunológica é, ainda, uma preocupação central na elaboração de
políticas de proteção e de promoção dos direitos dos PIIRC.
Castillo (2015, p. 19) destaca que as vulnerabilidades a que os povos indígenas em
situações de isolamento e de recente contato estão sujeitos são diversas e se relacionam entre
si. De acordo com esta autora, estas vulnerabilidades podem ser entendidas a partir de quatro
dimensões: imunológica, sociocultural, territorial e política. A vulnerabilidade imunológica se
caracteriza pela carência ou inexistência de agentes de defesa biológica (anticorpos) contra
agentes infecciosos exógenos (disseminados por não-indígenas ou por indígenas que já
contraíram estes agentes infecciosos). Assim, os contatos com pessoas, tecidos, ou outros
artefatos podem ocasionar o contágio e a disseminação destas doenças pelo grupo, causando,
geralmente, números significativos de mortes. De acordo com a autora:
Tal como ha sucedido históricamente, y continúa sucediendo, el contagio y
expansión de enfermedades les puede causar muertes masivas que en
poblaciones ya diezmadas podría significar riesgo de extinción. En efecto,
enfermedades infecciosas externas y comunes como la influenza A y B,
parainfluenza 2 y 3, rotavirus, tos convulsiva y sarampión causan graves
estragos a su salud ante la ausencia de defensas inmunológicas (Neptalí
Cueva, comunicación personal, 2013). La vulnerabilidad inmunológica
depende, por un lado, de la virulencia del agente agresor (bacteria, virus,
204
parásito), y por otro, de la capacidad del organismo agredido para elaborar
una respuesta inmunológica efectiva; es decir, oportuna y de acuerdo al nivel
y tipo de agente agresor (CASTILLO, 2015, p. 19, grifo nosso).
A tabela a seguir, elaborada por Rodrigues (2014), nos dá uma boa dimensão do
problema epidemiológico e, consequentemente, demográfico e social que sucede ao fenômeno
dos primeiros contatos.
Tabela 6 - Mortalidade que se seguiu ao contato em alguns grupos indígenas no Brasil, de
1912 a 1981
Nome Família
linguísitica
Contato/período
de tempo
População
inicial
População
final
Depopul
ação (%)
Principais
Causas de morte
Aikeawara Tupi-
Guarani
1960 - 1965 126 34 33 Gripe e varíola
Asurini
Tocantins
Tupi-
Guarani
1953 - 1962 190 35 81,5 Gripe, Sarampo,
Varicela
Gavião
Parkatêjê
Jê 1956 - 1966 580 176 70 Gripe, Malária
Awá-Guajá
do Alto
Turiaçu
Tupi-
Guarani
1976 - 1981 91 25 72,5 Gripe, Malária,
Calazar (L.
visceral)
Kaingang
de SP
Jê 1912 - 1956 1200 87 92,7 Gripe, sarampo,
blenorragia,
varíola
Grupos do
Alto Xingu
Aruak,
Karib, Tupi
1954 - 1955 650 536 18 Sarampo
Urubu
Kaapor
Tupi-
Guarani
1950 - 1951 750 590 21 Sarampo
Xokleng
Santa
Catarina
Jê 1941 - 1943 400 a 600 106 73,5 a
82,3
Sarampo, Gripe,
Coqueluche,
gonorréia
Munduruku
Munduruku 1875 - 1956 18.910 1200 93 Sem informação
Nambikwar
a
Nambikwara 1948 - 1956 10000 1000 90 Gripe, malária,
sarampo,
tuberculose
Karajá Karajá 1940 - 1956 4000 1000 75 Gripe, sarampo,
malária,
tuberculose
Suruí Paiter Mondé 1980 - 1986 800 200 75 Sarampo,
Tuberculose
Fontes: RODRIGUES (2014, p. 14)130.
De acordo com Amorim (2016), entre os povos indígenas em situações de isolamento
na atualidade, a vulnerabilidade imunológica relaciona-se também com as vulnerabilidades
socioculturais e demográficas, dado o contingente populacional geralmente baixo destes povos.
130 O autor cita as seguintes fontes utilizadas para elaboração da tabela: Povos indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental; Gonçalves Tocantins (1877); Ehrenreich (1940); Levy-Strauss (1948), Robert e Yolanda Murphy (1954); Darcy Ribeiro (1956); Francis Black (1994).
205
Ou seja, considerando que grande parte destes povos já teve perdas populacionais decorrentes
de experiências prévias de contato, conflitos e possíveis contágios, qualquer nova epidemia
pode resultar na extinção de grupos inteiros, ou na sua redução a pouquíssimos sobreviventes.
Na perspectiva de Castillo (2015, p. 19), esta vulnerabilidade está relacionada também com a
hecatombe demográfica dos povos indígenas da América desde a chegada dos europeus a partir
do século XVI trazendo consigo diversas doenças como a gripe, o sarampo, a varíola, entre
outras.
O conhecimento sobre a existência de situações anteriores de contato nos leva a
questionar se estes povos não possam já ter desenvolvido defesas imunológicas para tais agentes
infecciosas. Entretanto, além de ser impossível de se verificar esta hipótese, de acordo com
Castillo (2015, p. 19, grifo nosso):
Diversos especialistas señalan que cualquiera sea la causa de la
susceptibilidad a determinadas enfermedades, poblaciones indígenas que en
el pasado han sido vulnerables a las enfermedades virales exógenas
requerirían de tres a cinco generaciones (entre 90 a 150 años) para
estabilizar su respuesta a determinado agente infeccioso (MINSA-OGE,
2003: 37 apud CASTILLO, 2015, p. 19).
Outro fator interessante a se observar, descrito pela mesma autora, é o seguinte.
Conforme vimos anteriormente, em geral os PII têm conhecimento de quais são as principais
consequências do contato. Estes conhecimentos, denominados como as cosmologias do contato,
e trocados ao longo das redes interétnicas dos povos indígenas, constituem um dos motivos
pelos quais muitos povos adotam diversas estratégias para se manterem em isolamento. Como
nos lembra Cunha (2002, p. 07) “antes mesmo do contato em carne e osso com os brancos,
trava-se uma guerra biológica: não é de espantar que brancos e doenças fiquem
indissoluvelmente ligados”
Deste modo, ainda que tenham diferentes interpretações sobre as causas das doenças, os
PII sabem que, após o contato, grande parte do grupo pode adoecer e morrer. Neste sentido,
Castillo (2015, p. 20) destaca também os efeitos psicológicos que podem resultar das
experiências de contato com PII:
la imposición del contacto por agentes externos puede generar un impacto
altamente negativo en términos psicológicos y emocionales, llegando a
sumirlos en el estrés, depresión y desmoralización ante la incertidumbre de su
situación y la de su grupo en el presente y futuro. Estas condiciones
disminuyen las capacidades de respuesta inmunológica, exponiéndolos a
complicaciones de infecciones y muerte.
Conforme demonstra Albert (2002, p. 12-13) é extremamente comum entre as
cosmologias indígenas a concepção do branco como fantasmas ou espíritos-maléficos, com
206
“poderes tecno-patogênicos que trazem uma dimensão de diferença e de virulência até então
inédita nas suas representações do forasteiro”.
Outro fator importante é que, como vimos na seção anterior, as doenças decorrentes dos
primeiros contatos não causam apenas a morte de grande parte das populações indígenas, ou
até de grupos inteiros, mas também resultam na desestruturação do complexo social e
econômico destes povos, ameaçando a satisfação de necessidades básicas, e, assim, a própria
sobrevivência dos grupos.
Estudos de caso recentes mostraram que, nessas epidemias, os índios morrem
sobretudo de fome e até de sede: como toda a população é acometida pela
doença ao mesmo tempo, não há quem socorra e alimente os doentes. Foi o
que aconteceu entre 1562 e 1564 quando ficaram dizimadas as aldeias jesuítas
da Bahia, onde se haviam reunido milhares de índios, o que facilitou o
contágio. (CUNHA, 1994, p. 123).
Segundo Cunha (2012, p. 15) o caos entre os grupos vítimas de epidemias chegava “a
tal ponto que os sobreviventes preferiam vender-se como escravos a morrer à míngua”
(CUNHA, 2012, p. 15). Segundo Oliveira e Freire (2006, p. 24):
O poder desarticulador das doenças pode ser exemplificado com a epidemia
de varíola que entre 1562-1565, em poucos meses, matou mais de 30.000
índios na Bahia (Hemming, 1978:144). O padre José de Anchieta descreveu o
que ocorreu: No mesmo ano de 1562, por justos juízos de Deus, sobreveio
uma grande doença aos índios e escravos dos portugueses, e com isto grande
fome, em que morreu muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam
e se iam meter por casa dos portugueses a se fazer escravos, vendendo-se por
um prato de farinha, e outros diziam, que lhes pusessem ferretes, que queriam
ser escravos: foi tão grande a morte que deu neste gentio, que se dizia, que
entre escravos e índios forros morreriam 30.000 no espaço de 2 ou 3 meses
(Anchieta, 1933:356 apud OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 24).
Assim, ainda sobre este fenômeno da desestruturação social causada pelas epidemias,
Vaz (2016, p. 07) observa que:
Outra explicação que não a imunidade ou a vulnerabilidade biológica e cabível
para a alta letalidade das epidemias em grupos tribais. Pelo menos larga
margem de mortalidade (...) se deve a abrupta paralisação das atividades
produtivas pelo acometimento quase simultâneo de toda a comunidade, o que,
numa tribo indígena, representa verdadeira condenação, uma vez que ela não
conta com um sistema de estocagem de alimentos que permita fazer face a tais
eventualidades (Ribeiro 1970 apud VAZ, 2016, p. 07).
Tais fenômenos se repetiram ao longo da trajetória macro-histórica analisada na seção
anterior, de modo que, de acordo com Cunha (1994, p. 124) “cada avanço da fronteira
econômica no país dá origem a um ciclo semelhante”. Em outra publicação, esta mesma autora
reforça que “é um remake permanente. Alguns grupos viveram o roteiro há séculos, outros estão
só nas primeiras cenas” (CUNHA, 2002, p. 7).
207
Segundo Amorim (2016, p. 25):
Nas décadas de 1970 e 1980 a implementação dos grandes projetos de
colonização, infraestrutura e de expansão econômica na região amazônica
acarretou aos diversos povos indígenas, até então oficialmente “isolados”, o
contato forçado com as frentes de desenvolvimento, provocando grandes
perdas populacionais e, às vezes, até o extermínio de grupos inteiros em
decorrência, sobretudo, de surtos epidêmicos contraídos após os primeiros
contatos (AMORIM, 2016, p. 25).
O caso dos Panará, narrado pelo sertanista Odenir Pinto, também nos forcnece uma boa
noção do flagelo dos povos indígenas frente às epidemias, e, principalmente, frente ao descaso
do poder público, mesmo tendo conhecimento da situação de vulnerabilidade imunológica
característica destes povos.
Na região, passava a BR-163, a Cuiabá-Santarém, que era uma estrada que
cortaria o território dos Kren-Akarore. Chamavam esse povo de Kren-
Akarore, mas descobriu-se depois que eles se autodenominam Panará. A
estrada estava cortando aquele território e os militares queriam que se fizesse
o contato. Eu escutava que os Villas Bôas queriam uma coisa muito mais fácil,
que era mudar o trajeto, desviar um pouco a estrada. Não havia necessidade
de ter aquele traçado exatamente. Mas havia muitos interesses junto. Havia
sido uma situação bastante conflituosa, já com a chegada de garimpeiros e
posseiros. E os Villas Bôas foram fazer os primeiros contatos. Eu fui depois
que os Villas Bôas saíram da área. Eu tinha pouco mais de 20 anos de idade.
E fiquei lá, com os Panará, até eles serem transferidos para o Xingu, no
começo de 1974. Talvez essa tenha sido a experiência mais grave que se possa
imaginar sobre o que representa um processo de contato. Os Panará, na
época do contato, eles eram mais menos, dizem – provavelmente não
havia como conta-los, com precisão –, eram cerca de 630 a 650 índios
Panará. Depois de pouco mais de dois anos e meio restavam 78 índios. Estamos resgatando essa história, e algum registro eventual de saúde, de
atendimento. Somente duas vezes, enquanto estive lá, houve agentes de saúde
para vaciná-los. Além disso, não houve mais nenhum trabalho de assistência,
de meu conhecimento. [...] Ficamos com eles por um bom tempo, no rio
Peixoto de Azevedo, no Posto em que se deu o contato inicial. E a situação
era assim: trágica. Eles morreram de gripe. Parece incrível falar que tanta
gente morreu de gripe, agravada para pneumonia. Mas foi isso que aconteceu.
Em menos de três anos, morreu quase todo o povo Panará (MILANEZ, 2015,
p. 208).
Assim, tendo verificado historicamente o altíssimo nível de mortalidade que se segue
aos primeiros contatos dos povos indígenas com não-indígenas, ou simplesmente com agentes
infecciosos (roupas, entre outros), veremos mais adiante que a política pública específica para
PII tem, entre seus princípios fundamentais, as noções de emergências sanitária e de plano de
contingência. Uma situação de emergência sanitária pode ser caracterizado, de acordo com Vaz
(2016, p. 10), da seguinte forma:
evento extraordinário de uma doença ou uma ocorrência que cria um potencial
para doença e que requer uma resposta coordenada e eficaz. Para os PII, um
208
contato é considerado uma emergência em saúde pública de importância
nacional assim como os surtos ou epidemias de doenças infecto-contagiosas
em povos de recente contato (Decreto 7616 de 17/11/2011), pois estão
associados a uma alta taxa de mortalidade que compromete seriamente a saúde
e vida destes povos.
Também de acordo com Vaz (2016, p. 10) um plano de contingência pode ser entendido
como um “Conjunto de medidas e procedimentos planejados a fim de mitigar os efeitos
negativos de um evento, como a alta mortalidade decorrente de surtos ou epidemias em um
povo de recente contato ou de uma situação de contato com indígenas em isolamento”.
Feito este aprofundamento sobre o caráter central da questão epidemiológica, passemos
então ao estudo sobre a atuação e as contribuições dos sertanistas para o processo de elaboração
da política pública específica para PII.
4.2 As sagas e memórias sertanistas;
Em diferentes passagens da história recente do Brasil, nos momentos em que
índios foram especialmente ‘atacados’ por projetos de desenvolvimento do
Estado, ou mesmo pela violência das ‘frentes de expansão’, eram os
sertanistas que apareciam na opinião pública, na imprensa, em debates
políticos e sobretudo em campo, atuando em defesa dos povos indígenas [...]
Os sertanistas sempre viveram conflitos de todos os matizes – conflitos
políticos na formulação de diretrizes, conflitos com a população das cidades e
com as elites regionais no entorno de territórios indígenas, conflitos internos
do meio sertanista, conflitos pessoais e psicológicos, conflitos com o Estado
ao qual pertencem, conflitos com os indígenas que se dedicam a defender.
Conflito é uma característica perene do trabalho sertanista (MILANEZ, 2015,
p. 42).
Nesta seção, nosso objetivo é analisar brevemente quem foram os sertanistas e no que
consistia a sua atuação e a sua mediação nas relações entre o Estado-Nação e os povos indígenas
ao longo do século XX. Contudo, vale dizer que não pretendemos promover a figura dos
sertanistas como heróis nem como vilões dos processos históricos dos quais participaram. O
estudo sobre sua atuação se deve ao fato destes terem sido os principais responsáveis pela
elaboração da política pública especifica para os povos indígenas em situações de isolamento e
de recente contato. Segundo Freire (2015, p. 08) os sertanistas detinham um capital simbólico131
acumulado "a partir de práticas bem-sucedidas de atração e pacificação de índios isolados”, o
131 “Em síntese, capital simbólico ou distinção é o reconhecimento, institucionalizado ou não, recebido de
um grupo social” (Bourdieu, 1998b, p. 59-60; 1989, p. 144-145 apud FREIRE, 2005, p. 09).
209
que “lhes dava peso diferencial nas lutas do campo indigenista, determinando rumos para a
política indigenista brasileira”.
Essa experiência inicial dá aos sertanistas um capital social (Bourdieu, 1989,
p. 28-29) que determina a priori sua posição no campo indigenista, espaço do
campo político, onde há luta pelo poder “de arbitrar sobre os destinos dos
povos indígenas no Brasil” (Lima, 1987, p. 153). Neste subcampo há disputa
e concorrência pelo monopólio da tutela dos índios isolados, onde agentes que
possuem maior capital simbólico impõem aos demais seus interesses. Entre os
sertanistas, tais capitais são acumulados a partir de práticas bem-sucedidas de
atração e pacificação de índios isolados, além do estabelecimento de redes de
relações sociais (FREIRE, 2005, p. 08).
Assim, a partir das ideias debatidas no I Encontro de Sertanistas, ocorrido em Belém-
PA no ano de 1987, identificou-se que o paradigma de atuação vigente na política indigenista
deveria ser modificado, visto que resultou sistematicamente em epidemias, extermínios ou
drástica redução populacional, usurpação territorial e violências de diversos tipos e intensidades
aos sobreviventes. Deste modo, durante o Encontro de Belém de 1987 “constituiu-se toda
fundamentação que resultou na mudança do paradigma do “contato” para o do “não contato”,
enquanto premissa de ação indigenista do Estado brasileiro para a proteção dos índios isolados”
(VAZ, 2011, p. 12). Este processo será abordado mais adiante. Antes, porém, precisamos
conhecer um pouco sobre quem foram os sertanistas e quais são as ideias e experiências que os
levaram a elaborar e implementar a política estatal específica para PIIRC.
A tese de doutorado de Freire (2005), intitulada “Sagas sertanistas: práticas e
representações do campo indigenista no século XX”, e o livro de Milanez (2015), “Memórias
sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil”, são referências indispensáveis neste tema.
Freire (2005, p. 06) realiza “uma etnografia histórica das práticas e representações
desenvolvidas por sertanistas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da Fundação Nacional
do Índio (FUNAI)”. De acordo com este autor, o sertanista é “o servidor do Estado brasileiro
que, ao longo do séc. XX, chefiou em campo trabalhos de atração e pacificação de povos
indígenas”. Assim, no âmbito geral da política indigenista brasileira Freire (2005, p. 06) define
o indigenista como “o agente do Estado que em várias funções desenvolve as atividades de
assistência e proteção aos índios”. Deste modo, considera os sertanistas como uma
“especialização do trabalho indigenista”, sendo “responsáveis pelo trabalho de atração e
pacificação de povos indígenas”.
Segundo Freire (2005, p. 10) o estudo da atuação e dos discursos dos sertanistas sobre
suas experiências com os povos indígenas “preenchem o vazio da falta de documentação de
setores desprivilegiados da população e retratam uma época e as relações de poder nas quais os
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sertanistas estavam envolvidos”. De acordo com o autor, analisar os discursos e a atuação dos
sertanistas permite: a revelação de conflitos não encontrados em documentos; a avaliação de
momentos de mudança; a interpretação das ações da FUNAI enquanto organização; a captação
de visões de mundo e suas formas de transmissão numa “categoria ocupacional” e na sociedade
em geral; descoberta de fatos graves, escondidos sob pressão de traumas que levam o indivíduo
ao silêncio; e, o questionamento da memória oficial dos órgãos governamentais, que fazem
desaparecer divergências de concepções (FREIRE, 2005, p. 10-11).
Neste sentido, conhecer a atuação dos sertanistas, de acordo Milanez (2015, p. 25), “é
parte fundamental para compreender a luta dos povos indígenas por sobrevivência, e descobrir
a violência com que agiu o Estado brasileiro e todos aqueles que veem nos indígenas um
obstáculo aos seus interesses”. Assim, com o objetivo de registrar as memórias destes agentes
históricos que estiveram à frente das iniciativas de expansão nacional, “procurando mitigar o
impacto, tentando proteger e defender os povos indígenas do avanço do Estado-nação brasileiro
e do capitalismo”, Milanez (2015, p. 29) reúne depoimentos de dez sertanistas que estão entre
as figuras mais importantes da história da atividade indigenista no Brasil. São eles: Afonso
Alves da Cruz, Altair Algayer, Fiorello Parise, Jair Candor, José Meirelles, José Porfírio
Fontenele de Carvalho, Marcelo dos Santos, Odenir Pinto, Sydney Possuelo e Wellington
Gomes Figueiredo.
O engajamento à causa indígena é uma opção política, e cada um desses
sertanistas dedicou sua vida a defender os direitos dos povos indígenas e,
sobretudo, tentar salvá-los da sua destruição física e cultural [...] Essas
decisões individuais integram uma consciência de classe e uma vontade de
mudar a realidade de opressão dos povos indígenas (MILANEZ, 2015, p. 29).
Segundo este autor (2015, p. 39) a figura do sertanista surgiu pela primeira vez durante
o período colonial, sendo identificada com “aqueles que se embrenhavam nos “sertões”,
partindo para a exploração do interior por um projeto colonial que surgia na costa”. Assim, “por
muitos anos, os sertanista eram os próprios matadores”, visto que este nome era atribuído
também aos bandeirantes, “que invadiam o sertão atrás de riquezas minerais, de indígenas para
escravizar e vender, de quilombos rebeldes para massacrar”. Nas palavras do sertanista Odenir
Pinto:
A atividade de sertanista vem de muito tempo. Há registros desde o comecinho
do ano de 1600, dentro dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e
Bahia, principalmente. Evidente que eram pessoas irrequietas, querendo
expandir as fronteiras da exploração, em busca de riquezas minerais, e ficaram
conhecidas e reconhecidas oficialmente como sertanistas (MILANEZ, 2015,
p. 210).
211
De acordo com Freire (2005, p. 27) “alguns estudos de historiadores sobre os índios no
Brasil Colonial abordam o cotidiano dos sertanistas, agentes sociais envolvidos desde o séc.
XVII em expedições de apresamento de índios”.
Os paulistas ficaram conhecidos na América e na Europa como grandes
sertanistas, sem iguais no seu conhecimento dos dilatados sertões, na sua
perseverança e coragem. Posteriormente, alguns historiadores ergueram estes
sertanistas – batizando-os de bandeirantes – a proporções épicas,
reconhecendo particularmente seu papel na expansão geográfica da América
portuguesa” (Monteiro, 1994b, p. 8 apud FREIRE, 2005, p. 27).
Deste modo, ficaram conhecidos como sertanistas muitos dos grandes escravizadores
de índios, tais como Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Manuel Borba Gato, Henrique da Cunha
Gago, Bartolomeu Bueno da Silva – o “Anhanguera” – e Manuel Preto [...] assim como
Domingos Jorge Velho, responsável por massacrar o Quilombo de Palmares.
Milanez (2015, p. 40) afirma que “a palavra sertanista muda de sentido a partir das
referências feitas ao trabalho de Rondon” à frente da Comissão Construtora da Linha
Telegráfica de Cuiabá ao Araguaia. O autor recorda que “Rondon aprendeu com o Major
Gomes Carneiro, mentor da expedição, uma regra que adotou como essencial ao trabalho:
ordenava aos funcionários que não reagissem caso fossem atacados por índios”. Isto porque,
como a linha telegráfica cruzava territórios indígenas, os índios naturalmente atacavam os
trabalhadores que estavam a invadir seus territórios. Assim surgiu o lema que se tornou
sinônimo da perspectiva rondoniana: “Morrer, se necessário, matar, nunca!”. Assim, retomando
novamente as palavras de Odenir Pinto, nota-se que:
(...) somente com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em pleno
funcionamento, o trabalho do sertanista passa a fazer parte de uma atividade
de um órgão de proteção aos índios. Estes, bem mais idealistas e humanistas
dão um sentido nobre a essa atividade porque, para exercê-la, é preciso apego
à causa, renúncia a qualquer tipo de conforto, ser obstinado para não desistir
diante do inesperado e dispor de meios, recursos, para sustentar as expedições
até o momento do contato pacífico. Convenhamos que não era fácil, por isso
precisava ter uma última coisa: articulação para convencer todo mundo de que
o trabalho de proteção aos povos indígenas era uma coisa que o Brasil
precisava fazer (MILANEZ, 2015, p. 210).
Neste sentido, apesar das ambiguidades decorrentes de sua orientação positivista132, os
valores humanitários defendidos, praticados e difundidos por Rondon, contribuíram para que a
132 Uma característica central de Rondon foi a orientação positivista que guiava sua vida e atuação. De acordo com Milanez (2015, p. 44), Rondon “frequentou a Igreja Positivista, acreditando na doutrina humanitária da “evolução da sociedade” em três fases, experiência que trouxe para o indigenismo: teológica, metafísica e científica”. Assim, em sua autobiografia intitulada “Rondon conta sua vida”, ele afirma o seguinte: “Creio nas leis da sociologia, fundada por Augusto Comte, e por isso na incorporação do proletariado e das nações consideradas sem civilização à sociedade moderna – para que possam todos fruir dos benefícios da ciência, da arte, da
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palavra sertanista passasse a designar “os defensores dos índios que se embrenhavam pelo
sertão” (idem).
Milanez (2015, p. 42) destaca, entretanto, que “assim como o prestígio de Rondon se
estende aos sertanistas de hoje, também estendem-se a eles muitas das críticas que a Rondon se
dirigem”. De acordo com o autor, o prestígio de Rondon como defensor dos índios não é
unanimidade no ambiente acadêmico, “onde há intenso conflito em torno do seu legado e da
atuação dos sertanistas”, de uma maneira geral. Devido às contradições inerentes aos processos
de atração e “pacificação” dos índios, o sertanista é analisado por duas perspectivas opostas:
“para uns é o defensor dos índios e fundador de programas de proteção, enquanto para outros é
o estrategista da colonização do interior do país, que propunha a integração e a conquista do
índio” (idem). Isto porque:
Estender a linha telegráfica era uma forma de expandir a autoridade central,
lembra o historiador americano Todd Diacon. Esse processo atendia a dois
interesses majoritários: as preocupações militares com a segurança do
território, logo após a guerra do Paraguai (1864-1870), e os interesses de
mercado, com ênfase na borracha amazônica. De acordo com Diacon, as
autoridades centrais baseadas no Rio de Janeiro queriam garantir o controle
dos recursos naturais com o desenvolvimento de infraestrutura, expansão da
presença militar e esquemas de colonização. Esses interesses estavam
sobrepostos aos interesses dos indigenistas, que formularam políticas de
defesa dos índios como forma de reação a essa expansão, que se impunha
como inevitável (DIACON133, 2004 apud MILANEZ, 2015, p. 41).
Sobre o cargo formal de sertanista, Freire (2005, p. 28-29) afirma que:
a categoria sertanista não designava nenhum cargo quando o SPI foi criado.
[...] mesmo que a institucionalização de uma política protecionista indicasse a
intenção de formação e manutenção de quadros indigenistas, a carreira ou
função de sertanista nunca existiu no âmbito do SPI, ao contrário do que supõe
Hemming (2003, p. 24). Só a partir dos anos 60, já na FUNAI, seria criado o
cargo de sertanista reunindo os servidores que realizavam atrações de povos
indígenas e tinham diversas origens funcionais. No SPI, as tarefas tidas como
do sertanista – atração e pacificação de índios – foram de responsabilidade dos
Inspetores e dos auxiliares de sertão.
Segundo Milanez (2015, p. 42), o estabelecimento institucional da função de sertanista,
entretanto ocorreu apenas nos anos 1940, “para designar os trabalhadores da Fundação Brasil
Central (FBC) – no caso, os irmãos Villas Bôas”. A função foi regulamentada e redefinida a
partir de 1987, com a criação do Departamento de Índios Isolados. Atualmente, a palavra
indústria” (RONDON, 1968, p. 612 apud MILANEZ, 2015, p. 44). Tal perspectiva evolucionista dá o tom das ambiguidades atribuídas ao Marechal, muito embora esta perspectiva não retire o caráter humanista de sua atuação em defesa da vida dos índios. 133 DIACON, Todd. Stringing together a nation: Cândido Mariano da Silva Rondon and the construction of a modern Brazil, 1906-1930. Durham/Londres: Duke University Press, 2004, p. 3.
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sertanista desapareceu do regimento interno da FUNAI, com as reformas administrativas de
2009 e 2012, e “função semelhante passou a ser exercida por funcionários das Frentes de
Proteção Etnoambiental” (MILANEZ, 2015, p. 42-43).
Em depoimento a Milanez (2015, p. 231), Sydney Possuelo conta qual era o
procedimento para se tornar formalmente um sertanista da FUNAI:
anteriormente, chegava-se a sertanista quando dois sertanistas, mais antigos,
a classe de letras, acho que a última letra era J, faziam a indicação. Era
necessário dois sertanistas, na última letra da carreira, fazerem uma carta
indicando uma determinada pessoa que, por seus dotes, qualidades,
experiência e conhecimento, poderia ascender aos quadros de sertanistas. Essa
pessoa, se aceita pelo presidente da Funai, era reclassificada como sertanista.
Em função das contradições inerentes à atividade dos sertanistas, Freire (2005, p. 343,
grifo nosso) confere destaque entre as conclusões de sua pesquisa ao fato de que “os sertanistas
incorporavam as contradições do indigenismo brasileiro, assumindo uma consciência culpada
dos efeitos desastrosos de inúmeras pacificações”.
os fracassos sanitários no pós-contato – os indigenistas e sertanistas do SPI
tinham em meados do século XX total consciência de que doenças
como gripes ocasionavam grandes mortandades entre os índios (v. Convívio
e Contaminação, Darcy Ribeiro, 1956) – podem ser qualificados de
criminosos diante da omissão e incompetência do SPI. Colocando a questão
sempre nos mesmos termos – melhor salvar alguns para não morrerem todos
nas mãos de seringueiros, fazendeiros, etc. – mesmo com esforços localizados
de sanitaristas como Noel Nutels para
estabelecer controles sanitários, as décadas de 60 e 70 ainda viram centenas
de índios morrerem após o contato. Grupos como os Panará, os Parakanã e os
Arara conseguiram reverter as consequências do pós-contato e hoje
apresentam incremento demográfico. Mas os índios mortos sempre
assombraram a consciência de sertanistas que não construíram alternativas à
omissão oficial (FREIRE, 2005, p. 343-344).
Entre os exemplos citados por Freire (2005, p. 344) destaca-se o seguinte:
Antes de morrer, o sertanista Eduardo Lima e Silva Hoerham defendeu o
isolamento dos índios – “Civilizar os índios é o mesmo que aniquilá-los” (JB,
26/01/1976) e assumiu a consciência culpada: ‘Pequei ao pacificar os índios
do Vale do Itajaí. Contribuí para a sua extinção. E o pior é que todos ainda
cometem este pecado, inclusive a FUNAI que teima em civilizá-los quando
deveria dar-lhes o direito de viver de acordo com a sua propensão natural. Mas
se eu não os pacificasse os imigrantes se encarregariam de exterminá-los’
(idem).
Este sentimento de culpa em relação aos sucessivos desastres que os contatos causavam
aos povos indígenas é um elemento central para compreendermos as mudanças defendidas e
promovidas pelos sertanistas no paradigma de atuação da política indigenista brasileira, que
resultaram na elaboração da política específica para PIIRC.
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Algo que sempre nos chamava atenção em velhos indigenistas era o discurso
amargo que acionavam ao relembrar suas experiências. Apesar de uma vida
de lutas, sentiam-se desiludidos, frustrados. Estes sentimentos podiam ser
observados em documentos pessoais ou oficiais, e em declarações à imprensa.
[...] [os sertanistas] Sabiam o que iam ocasionar aos índios. o fotógrafo Pedro
Martinelli, integrante da FA Panará (Kreen- Akarore), relata que foi ‘o
ouvidor do Cláudio, de seus desabafos. Ele tinha noção total de que éramos os
veículos da desgraça. Mas achava que deveria fazer da melhor forma possível
para não acabar tão rapidamente’ (Caros Amigos, nº 83, 2004, p. 23 apud
FREIRE, 2005, p. 343).
Esta noção pode ser encontrada também no trabalho de Milanez (2015, p. 52-53). Ao
discorrer sobre os métodos de Francisco Meireles, muito criticados por outros sertanistas por
“acelerar a integração” dos índios, o autor afirma que “para ele [Meireles], a ‘integração’ era
apresentada como uma necessidade para que não fossem ‘exterminados’”. Ainda de acordo com
o autor, “era a emergência em razão do clima de guerra e dos massacres decorrentes das
expedições de extermínio organizadas pelos seringalistas, razão que empurraria Meireles a
posicionar-se ‘à frente das frentes’”.
Assim, outra razão importante para este sentimento de culpa era o conhecimento de que,
aos realizarem os primeiros contatos, “os sertanistas também eram os primeiros agentes a
contaminar os índios” (FREIRE, 2005, p. 05).
Portanto, tendo visto algumas das principais referências históricas e características da
função dos sertanistas, passemos ao estudo de alguns de seus relatos, compilados por Milanez
(2015), a fim de identificarmos testemunhos da ocorrência de genocídios e movimentos
diaspóricos dos povos indígenas. Então, após este resgate, passaremos ao estudo da política
pública específica para PIIRC, desenvolvida a partir do I Encontro de Sertanista de Belém, em
1987.
4.2.1 Relatos de sertanistas sobre genocídios e diásporas indígenas no século XX;
Em todas as experiências que tive com povos indígenas, em algum momento
surgia na conversa uma história de violência sofrida por eles. É inevitável, tal
é a marca que a formação colonial do Brasil produziu e continua a produzir.
O Brasil foi construído a partir de relações sociais marcadas pelo uso
sistemático da violência contra populações indígenas e afrodescendentes.
Violência colonial que opera não apenas na alma, como escreveu Frantz
Fanon134, mas no sangue e nos músculos. E também na memória: a história
não acontece no passado, mas da maneira como a contamos. Violência é um
tema presente na realidade indígena (MILANEZ, 2015, p. 34).
134 FANON, Frantz. “Les damnés de la terre”. Oeuvres, Paris: La Découverte, 2011. Edição brasileira: Os condenados da terra, Minas Gerais: Editora UFJF, 2006.
215
Tendo analisado o processo macro-histórico das relações entre Estado-Nação e povos
indígenas, e conhecido algumas das principais características da atividade de atração e
“pacificação” dos índios realizadas pelos sertanistas, nesta seção fazemos uma coletânea de
relatos de sertanistas sobre alguns dos genocídios e processos diaspóricos a que estes povos
foram submetidos. De acordo com Freire (2005, p. 12): “a concepção dos fatos passados pelos
sertanistas, sua memória, é uma forma de ação presente envolvendo a disputa de significados
desse passado”.
As relações entre memória e história – esta como conhecimento racional,
‘exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado’ (Ferreira, 1994, p.
8) – e aquela como ‘construção do passado mas pautada em emoções e
vivências [...] reequaciona as relações entre passado e presente ao reconhecer
claramente que o passado é construído segundo as necessidades do presente’
(idem) (FREIRE, 2005, p. 12).
Assim, espera-se que os relatos aqui reunidos contribuam para compreendermos melhor
a complexidade da situação contemporânea dos povos indígenas em situações de isolamento,
e, do mesmo modo, que auxilie também na análise da hipótese desta pesquisa.
A diáspora Xavante segundo o indígena Paulo Supretaprã Xavante
O primeiro relato, a seguir é uma exceção à proposta desta parte do trabalho, visto que
foi feito por um indígena Xavante, da aldeia Etenhiritipá, na TI Pimentel Barbosa, e não por
um sertanista.
Entre os sertanistas, no caso do meu povo, os Xavante, como falam os não
indígenas A’uwê uptabi, como nós nos chamamos, cabe falar do sertanista
Francisco Meireles, o Chico Meireles. Foi ele quem fez o contato com o meu
povo. Mas antes dos sertanistas, antes da chegada do Chico Meireles, houve
muita história. [...] No mundo dos warazu [não-índios] os Xavante eram vistos
como o empecilho para entrarem no interior do Brasil. Até nós chegarmos
nesse território onde estamos hoje, viemos caminhando de longe, e
encontramos muitos warazu nesse nosso caminho. No passado, a gente foi
estrangeiro onde hoje é o nosso território, que era território dos Karajá, era
território dos Bororo, era território onde viviam outros povos. A gente, A’uwê
Uptabi, era nômade. Os antepassados não tinham isso de ficar fixo, de ficar
parado. [...] E vieram andando, saindo de perto do warazu, e viemos parar
aqui, no Estado de Mato Grosso. Eu ouvi muitas histórias dos anciões do nosso
povo. [...] O nosso povo, à vista dos warazu, primeiro fugia. Fugiam. Fugiam
para evitar esse contato. Não queriam esse contato. E os warazu tinham esse
pensamento de poder nos “atrair”. Mas eram muito violnentos. Esse era o
pensamento dos antigos. Os warazu eram vistos como um povo muito
violento. Por isso, meus antepassados fugiam dos brancos. E começaram a
atravessar os rios, e vinham se afastando do Cerrado, que é onde o povo gosta
de viver. Fugindo.[...] Nosso povo tinha os fiscalizadores do território, que
andavam longe e viam os warazu se aproximando, cada vez mais. Esses
fiscalizadores do território, os wazuri’wá, davam notícias na aldeia quando os
216
inimigos de aproximavam. Quando viam os warazu chegando, se afastavam.
[...] A gente vinha assim, andando, fugindo, e até que os antepassados pararam
e fizeram uma aldeia no öwawe, que o rio das Mortes. [...] Até que veio um
tempo e então os “brancos” começaram a chegar lá também. (MILANEZ,
2015, p. 101-102).
Para nós, A’uwê Uptabi, não foi bom o contato. Antes, não havia tantos
problemas quando a gente vivia só entre nós mesmos. Eu não fui rapaz naquele
tempo, não vivi aquele tempo, mas eu imagino, do jeito que eles contam a
história [...] A gente tem que se preocupar muito, se preocupar em não ser
passado para trás através dos nosso inimigos. Não foi esse contato com o
mundo dos brancos. Eu vejo isso. Eu vejo assim (MILANEZ, 2015, p. 107).
O massacre dos Irantxe, contado por Rondon
Em uma da série de conferências proferidas no Rio de Janeiro e em São Paulo, no início
do século XX, período de expansão das linhas telegráficas, Rondon narra o seguinte massacre
dos índios Irantxe, comandado pelo seringalista Domingos Antonio Pinto:
Nada se deve temer da índole pacífica e até mesmo tímida dos Irantxe. Mas,
apesar disso, o truculento seringueiro [Domingos Antonio Pinto] entendeu que
era necessário expeli-los das proximidades do ponto em que se estabelecera;
e como por ali existisse uma aldeia, assentou dar-lhe cerco, com o auxílio dos
camaradas, todos armados de carabinas. Pela madrugada, ao recomeçar a
cotidiana labuta daquela misérrima população, a celerada emboscada rompeu
fogo, abatendo os que primeiro saíram das casas para o terreiro. Os que não
morreram logo, encerraram-se nas palhaças, na vã esperança de encontrarem
aí abrigo contra a sanha de seus bárbaros e gratuitos inimigos. Estes, porém,
já estavam exaltados pela vista do sangue das primeiras vítimas e nada os
impedia de darem largas à sua fome de carnagem. Então, um deles, para
melhor trucidar os misérrimos foragidos, resolveu trepar à coberta de um dos
ranchos, praticar nela uma abertura e, por esta, metendo o cano da carabina,
foi visando e abatendo uma após a outra as pessoas que lá estavam, sem
distinguir sexo nem idade. Acuados assim com tão execrável impiedade, os
índios acabaram tirando do próprio excesso do seu desespero a inspiração de
um movimento de revolta: uma flecha partiu, a primeira e única desferida em
todo este sanguinoso drama, mas essa embebeu-se na glote do crudelíssimo
atirador, que tombou sem vida. A só lembrança do que se seguiu faz tremer
de indignação e vergonha. Onde haverá alma de brasileiro que não vibre
uníssona com a nossa, ao saber que toda aquela população, de homens,
mulheres e crianças, morreu queimada, dentro de sua palhoças incendiadas?!
(RONDON, 1910 apud MILANEZ, 2015, p. 35-36).
Os Kayapó, os seringais e os massacres segundo Afonso Alves da Cruz
Os Kayapó Kubenkrankren
Após o contato com os Kayapó Kubenkrakren, 1953, por aí, feito pelo
Cavalcanti, ele me chamou para ir trabalhar lá [...] Os Kubenkrankren eram
índios muito brabos. Recém tinham sido contatados quando eu cheguei. Eram
brabos. Eles mataram muita gente no Xingu, eram índios violentos. A aldeia
era grande, tinha mais de seiscentas pessoas [...] Quem mais massacrou
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seringueiros naquela região, de todos awueles povos, devem ter sido os
Kubenkrankren. Eram muito temidos. Eles também eram muito atacados [...]
Não sei o ano, mas eles pegaram o caminho dos índios e foram atrás até a
aldeia. Naquele tempo tinha gente que rastejava os índios, ia atrás pelo rastro,
pelas pisadas. Os Kubenkrankren tinham atacado o Seringal Porto Seguro. E
o patrão mandou o pessoal atrás, 25 homens, seringueiros. Os seringueiros
atacaram de dia, umas dez horas da manhã. A aldeia era grande demais, eles
saíram do seringal e contaram oitocentas pessoas. Nunca disseram quantas
pessoas eles mataram. Não falaram. Isso ficou impune também (MILANEZ,
2015, p. 119-120).
Os Kayapó Kararô
O pior tempo de massacres dos índios era na época da borracha. Um dos piores
que eu ouvi falar foi quando massacraram os Kayapó do Kararaô. E eu conheci
o patrão que ordenou esse ataque. Foi o Frizan, o patrão. O seringal se
chamava Praia do Frizan, ou só Praia. Eles foram lá na aldeia dos índios e
atacaram lá. Eu conheci índio que sobreviveu ao massacre, que tinha bala no
couro. O massacre aconteceu no Riozinho do Anfrísio, mas eu não sei o ano.
Conheci duas seringueiras que os índios tinham raptado. Uma de Porto de Moz
e a outra eu não sei. Uma se chama Raimunda. A outra não sei o nome, mas
os índios botaram o nome dela de Notu. As duas escaparam do massacre. Eu
conversei muitas vezes com elas lá no posto. Elas contaram que só ouviram o
barulho dos tiros. Quando voltaram viram um horror de gente morta. Esse
que eu conheci que escapou, escaparam nove, entre o Tronto, que era um
cacique da aldeia. Ele falou que não conseguiram enterrar todos os
corpos. Ficaram dois dias enterrando os corpos, começaram a apodrecer,
a feder, e teve que deixar a aldeia. Conheci um homem que participou e me
contou que mataram noventa e poucos índios nesse ataque Eram também 25
homens, mesma quantidade do ataque nos Kubenkrankren [...] Os patrões,
financiados pelo Banco da Borracha, compravam muita munição, muita arma
de fogo. Nessa guerra, os seringueiros levavam vantagem, porque atacavam
com mais arma de fogo. Os índios só tinham as que levavam depois de matar
os seringueiros. Era mais usado a borduna (tacape) e flecha (MILANEZ, 2015,
p. 120-121).
A guerra do Estado contra os Waimiri Atroari, segundo José Porfírio de Carvalho
Autor do livro “Waimiti Atroari: a história que ainda não foi contada”, Carvalho
denunciou e apresentou documento que comprovava o uso de arma de fogo pelo Exército contra
os índios. Em função disto foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional (MILANEZ, 2015, p.
141). Os relatos de José Porfírio estão entre os mais detalhados que coletamos. O conhecimento
demonstrado pelo sertanista sobre a região, sobre os índios e sobre os acontecimentos narrados,
não levantam dúvidas sobre sua veracidade.
A exploração dos recursos do território Waimiri Atroari
Acontece que o local onde eles vivem é muito rico em produtos naturais e de
grande interesse ao extrativismo econômico. Desde o século passado ocorre
exploração dessa riqueza, as “drogas do sertão”, como eram chamadas a
218
castanha, a balata, o buriti, o pau-rosa, além de ser um local muito rico em
animais silvestres. A fauna é muito diversa e abundante. Até a década de 1970,
o Brasil exportava peles de animais silvestres. Esse era um dos principais
produtos na pauta de exportações brasileiras. E a maioria desses produtos era
tirada do território dos Waimiri Atroari, que era a área mais próxima de
Manaus. Para garantir essa exploração, eram organizadas empresas para
invadir a terra indígena e, de lá, matar animais para a pele, tirar a castanha,
tirar a balata, tirar a borracha. Era um local muito próspero e muito rico. Os
seringueiros e os castanheiros faziam de tudo para ir lá e tirar esses produtos.
E sempre enfrentavam a resistência dos índios. Daí a grande ação
criminosa perpetrada contra os Waimiri Atroari. Na história do
Amazonas, os índios Waimiri Atroari ganharam destaque pela grande
quantidade de índios mortos dentro de suas próprias aldeias. Expedições
militares, expedições de comerciantes, expedições de aventureiros, todos
retornavam trazendo orelhas, escalpo – o cabelo dos índios -, como prova
de que teriam matado o maior número de índios. Essas pessoas criavam
uma fama muito grande, como heróis locais. Ao longo dessa história, os
índios, por outro lado, foram criando uma resistência tremenda à presença de
não índios na região deles, por mais que alguns desses não índios fossem lá
com a intenção de ter contato amistoso com eles e tentar defende-los. Como
ocorreu, muitas vezes, no caso do SPI e da Funai. Era impossível para eles
fazer diferença entre quem ia lá para mata-los e quem ia lá para defende-los
[...] O SPI tentava estabelecer esses contatos pacíficos e, infelizmente, as
equipes do grupo do SPI também tomavam sem vida. Os índios reagiam,
pensando que eles faziam parte de alguma estratégia para dos não índios para
atacá-los. Então, os postos indígenas de atração, como eram chamados na
época, foram atacados sistematicamente pelos índios. Entre funcionários do
SPI e da sua sucesso, a Funai, até 1974, os índios mataram 64 pessoas. Foi
muito difícil o relacionamento dos índios com o SPI e a Funai (MILANEZ,
2015, p. 143-144, grifo nosso).
O massacre de 1926
Em um desses massacres, em 1926, depois de atacarem uma aldeia, matando
praticamente todos os que lá estavam, foram trazidos presos vinte índios para
a cidade de Manaus. Ficaram presos na praça da Política Militar, praça
Heliodro Balbi, expostos à visitação pública para sua humilhação. As pessoas
faziam filas para ver os famigerados, os grandes criminosos, assassinos, como
eram considerados os Waimiri Atroari. Desses vinte que foram levados
presos, voltaram apenas cinco – 15 índios morreram em Manaus. Até que um
tenente se apiedou deles e levou esses cinco de volta para a mata e lá os soltou.
Não há dúvida de que esses cinco sobreviventes devem ter contado o que
aconteceu com eles para o resto do povo, quando se encontraram. E os índios
Waimiri Atroari eram tidos como os índios mais violentos da história da nação
brasileira. Quando, na realidade, eles é que eram as vítimas, eles é que haviam
sido os mais violentados da história do Amazonas. Sofriam os ataques, mas
quando podiam eles se defendiam (MILANEZ, 2015, p. 144).
O genocídio Waimiri Atroari
Os Waimiri Atroari sofreram um genocídio. [...] O que aconteceu lá:
aldeias inteiras foram bombardeadas e sumiram do mapa. Simplesmente
assim: sumiram. Bombardeados por caças. Eu conheci os índios. E não
219
existem mais esses índios que eu conheci. E é muito simples provar isso. Basta
levantar a árvore genealógica, que você vai encontrar a falta deles, desses que
foram mortos. Você vai ver: Cadê fulano? Acabou. É assim quando pergunto
a eles por parentes. É uma situação muito complicada. Houve um genocídio.
E eles temem que se repita. Não é medo só traumático, eles temem mesmo
que isso volte de novo, quando há uma ameaça do Exército contra eles. Fatos
que até hoje ocorrem. [...] Em 1971 eu fiz um censo da população Waimiri
Atroari. Eu contei 15 aldeias e fiz a estimativa de viverem cem índios em cada
aldeia, uma média que já havíamos calculado. Cheguei ao número de
aproximadamente 1.500 pessoas Isso foi em Novembro de 1971. [...] Daqueles
1500 que eu havia contado, quando a estrada foi concluída, e ela só foi
concluída em 1977 restaram somente 374 pessoas, em 1986. Quando eles
viram que não tinham mais chances de sobreviver, e eles usam essa expressão,
que é: ‘se entregarem aos brancos’. Se entregaram para tentar escapar. E
escaparam, Hoje, esses 374 somam 1.659, em 11 de setembro de 2013. De
pelo menos 1.500 que eram em 1971, restaram 74 em 1986. Houve um
genocídio. Hoje, felizmente, se recuperaram em termos populacionais, e já são
1659 pessoas. [...] Nesse período que estive afastado da área [pelo regime
militar], publiquei um livro que se chama Waimiri Atroari: a história que
ainda não foi contada. Esse livro deu alguns problemas pessoais para
mim, como o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Neles, expus
um documento onde o Exército dizia que era para atacar os índios, se
fosse necessário. Entre as ações do Exército que denunciei, jogar bombas
nas aldeias e dar tiros de metralhadoras contra os índios (MILANEZ,
2015, p. 154-156, grifos nossos).
A Comissão da Verdade e os crimes contra os Waimiri Atroari
Não vejo condição nenhuma para a Comissão da Verdade apurar mais do que
já foi apurado. Esse papo de indenização, eu não falo com essa linguagem. Eu
vejo o seguinte: Será que as pessoas seriam punidas? Isso é o que eu vejo –
não, não serão. Então, os índios não querem discutir o assunto. Tem gente que
deve ser punida, sim. Os generais que comandaram os ataques, que deram a
ordem e que comandaram as ações. Soldado não tem que ser punido, pois eram
pessoas que faziam as ações por ordem. Mas os generais têm que ser punidos
pelos crimes que praticaram (MILANEZ, 2015, p. 168).
A Diáspora forçada dos Panará, segundo Fiorello Parise
[1975] Não demorou e veio outro grupo Panará, também para a Base, pedindo
socorro. Estavam todos doentes, muito fracos. Eles passavam pela estrada que
ia para Alta Floresta, e se contaminavam de gripe e outras doenças. Morreram
quase todos. Eu tentei salvar muitos, um bocado, mas foi muito difícil. Junto
deles, comecei a fazer uma aldeia no braço norte do rio Peixoto de Azevedo,
próximo da base militar do Cachimbo. Fomos plantando roça, montando uma
aldeia e o posto da Funai, e começamos um programa de vacinação, e o povo
começou a se refazer, depois de todo esse sofrimento pelo qual tinha passado.
Mas quando as coisas estavam começando a se equilibrar, veio a ordem
para levar os índios embora dali, de se fazer a transferência da terra onde
estavam para dentro do Parque Indígena do Xingu. Eu considero que a
situação já estava começando a se equilibrar, que já estava equilibrada. A
enfermeira tinha ido lá, todos os índios já estavam vacinados. E também já
estava se falando em fazer uma expedição, para esse lugar mítico denominado
220
Tugrenten, e para onde os espíritos deles vão quando morrem, em um afluente
do Teles Pires, também chamado rio São Manuel. [...] Quando consegui
equilibrar as coisas, veio a ordem de transferência, de cima. O Cláudio Villas
Bôas era uma pessoa muito bacana. Ele dizia para mim: ‘Se não quiser ir, não
vai, mas, se quiser ir, tem esse lugar onde os índios podem se estabelecer’.
Deixava aberto para a escolha dos índios e de quem estava lá trabalhando com
os índios. [...] Eu levei dois índios Panará comigo, uma vez, para conhecerem
o local. E, depois, o Orlando Villas Bôas decidiu levar os índios, fazer a
transferência. A razão dessa transferência não é muito clara, mas eu acho que
é porque isso teria um efeito jornalístico, midiático, uma repercussão. [...] Na
Funai eu tinha falado que diria para os índios ficarem lá onde estavam, que
era para os Panará ficarem na terra deles. Mas tinha uma pressão muito grande
da imprensa, havia muitos jornalistas e muita gente interessada nas terras onde
eles estavam. Um jornalista me falou que o Villas Bôas estava cotado para
ganhar o Prêmio Nobel da Paz, e, se conseguisse fazer a transferência, isso ia
ter um grande efeito na imprensa, poderia ajudar ele. [...] Não era preciso ter
feito essa transferência dos índios, eu estava lá e sei disso. [...] Foi muito
triste. Eles sofreram muito. Foram colocados ao lado de grupos rivais.
Eram humilhados, ouvi histórias terríveis do que eles passaram (MILANEZ, 2015, p. 178-179).
A diáspora forçada dos Panará, na perspectiva de Odenir Pinto
Mas parece que o destino dos Panará já estava definido pelos militares. E eles,
então, são transferidos para o Xingu. Essa foi uma experiência muito
traumatizante, para todos que estavam ali. A estrada [BR-163, Cuiabá-
Santarém] passou sobre uma das aldeias, cortou o território. E era a ditadura
militar. Uma situação bastante séria, grave. [...] Os Villas Bôas foram
pressionandos para o contato, mas mesmo assim eles resistiam muito. Eu ouvi
e li muito a respeito, antes de ir para o Peixoto Azevedo. Em raros momentos
que conversei com o Cláudio, ele sempre dizia: ‘Não sei por que é que o
governo não muda o trajeto dessa estrada’. E eles ficaram lutando para mudar.
Quando a estrada chegou mais ou menos onde hoje é a cidade de Sinop, na
época era um postinho de gasolina. Quando chegou ali, segundo ele, era
possível mudar o trajeto da estrada. E o Orlando, com o Cláudio, queriam isso.
Propunham um trajeto que pegava um chapadão muito mais firme, para sair
na região da serra do Cachimbo. Foi teimosia dos militares. Eu acho que havia
uma pressão muito forte para a exploração daquela área. Porque havia muito
minério. A gente lavava prato, prato de comida, usando areia da margem, e
saíam fagulhas de ouro (MILANEZ, 2015, p. 208-209).
A diáspora forçada dos Panará na perspectiva de Sydney Possuelo
Quando estava lá, os Panará estavam íntegros, sadios. Eles não eram tanto
gente como alguns falam por aí. Recentemente, vi um documentário em que
diziam que eles seriam entre seiscentos e oitocentos índios. Não era esse
número tão grande de pessoas. Eu estava no rádio quando escutei o Cláudio
Villas Bôas fazer a contagem de todos os índios que estavam no posto quando
reuniram as duas aldeias que moravam no braço norte. Eram duzentos e
poucos índios. Foi uma tragédia o que aconteceu com eles, mas não devemos
exagerar em números, pois a verdade em si é catastrófica. Não presenciei as
mortes ocorridas na frente, eu já não estava mais lá. Quando vieram para o
Xingu, já tinha passado por surtos terríveis. Houve uma grande redução
221
populacional, e chegaram cerca de oitenta índios no Xingu. Quase dois terços
já tinham morrido. É um drama terrível. [...] Eu nunca gostei dessa ideia de
tirar povos de suas terras. O Cláudio em contestou: ‘Você não tem experiência
suficiente para dizer uma coisa dessas, porque nós transferimos vários índios
para salvá-los”. Ele falou: ‘Se não trouxer para cá, matam os índios. Morrem
os índios, não respeitam as terras indígenas, com exceção do Xingu’. E eu
acho que eles, o Cláudio e o Orlando, não estavam errados, porque isso era o
que acontecia pelo país afora [...] Fizeram uma festa com os outros índios do
alto Xingu, reunidos para receber os Kreen-Akarore. Organizaram uma
recepção para eles, dançaram, deram comida. Mas daí em diante começa um
período muito dramático e difícil para os Kreen-Akarore. Primeiro eles
vão para o Posto Diauarum. Depois, uma parte é levada para aldeia do
Prepori, um índio Kayabi. Mais tarde, eles vão para o Posto Kretire, junto
aos Kayapó. Em todos os lugares por onde eles passaram a situação foi
dramática e morreu mais gente. Várias famílias foram separadas,
mulheres tomadas pelos outros grupos, um drama terrível (MILANEZ,
2015, p. 224).
A “limpeza” dos seringais, segundo Sydney Possuelo
Comecei no Posto Indígena Guaporé [1973-Rondônia], na fronteira do Brasil
com a Bolívia. Foi o primeiro lugar para onde eu fui designado oficialmente.
Um lugar de antigas histórias do indigenismo, da época do marechal Rondon.
Também um lugar onde aparecem os problemas de algumas ideias do Rondon,
principalmente a de levar índios de diversas etnias para viverem em um só
lugar, distante de suas terras tradicionais. [...] O posto foi o lugar onde foram
reunidas várias etnias. Isso era uma pressão que o SPI recebia, para tirar os
índios do alto dos igarapés, baixar os índios, concentrar em um lugar só para
liberar as estradas de seringas. [...] E a região era cheia de grupos indígenas
isolados. Muitos contatos foram feitos com esses povos, na época, financiados
pelos seringalistas. Os seringalistas conheciam os inspetores do SPI, e
financiavam as expedições para o SPI pacificar os índios. Era uma forma de
“limpar” as estradas de seringa. Falavam em “limpar”, e juntavam as etnias
em um posto que parecia a sede de uma fazenda (MILANEZ, 2015, p. 219).
O resgate de indígenas escravizados, segundo Sydney Possuelo
Enquanto eu estava lá [Guaporé-Rondônia], fui para uma missão de retirar
índios que estaria escravizados em um seringal no Rio branco, acima do Forte
Príncipe da Beira. [...] O dono do barracão não aceitou liberar os índios. Eram
índios das etnias Makurap e Jabuti, e havia mais alguma outra que não me
lembro. Na saída, já na boca do rio Branco, ficava o barracão, local que
concentra a administração do seringal. Os homens do barracão vieram
armados e foi muita tensão. Sob ameaça, tive que assinar documentos para o
dono do barracão dizendo que eu me responsabilizava por todas as dívidas dos
índios, e que a Funai iria pagá-las. A situação era a seguinte: os índios deviam
a vida inteira deles, como era de praxe nos seringais. [...] Na baixada, para sair
de lá, eu prometi tudo o que me pediam. Não havia outra coisa a fazer para
poder sair do seringal levando os 45 índios que ali estavam escravizados
(MILANEZ, 2015, p. 220).
Os “restos de povos massacrados” segundo Sydney Possuelo
222
Vamos chamar de restos, e me desculpem por usar a palavra “restos”, que não
quero dizer com uma conotação pejorativa, e sim trágica. Mas são resquícios,
aquilo que sobrou, quem sobreviveu. Sem conotação de ser impróprio ou
inservível, mas no sentido de ser pouco, o que sobrou. Estou falando dos
Akuntsu e dos Kanoê de Rondônia, do ‘Índio do Buraco’, do Karapiru Awá-
Guajá, e vários outros encontrados por nossas equipes, que fizeram o
impossível para protege-los. Essas situações foram levantadas pelo
Departamento de Índios Isolados através de vários funcionários, como por
exemplo Marco dos Santos. O departamento não só fez a localização dos
grupos maiores, em que se vai de avião e localiza, em seguida com expedições
e, depois, confirma, como também houve o levantamento de casos de povos
massacrados. Como os Juma, no sul do Amazonas, os Kawahiva, no norte de
Mato Grosso, e outros casos. São povos que foram massacrados. E quem
matou? Coisa mais simples é investigar, difícil mesmo é punir [...] São vários
casos de restos de povos, onde se encontra um só sobrevivente, como o ‘Índio
do Buraco’, ou o Karapiru, sozinho, tentando sobreviver, desprotegido no
meio da selva. Falo sempre do isolamento da selva, que sempre é um
facilitador dessas atrocidades (MILANEZ, 2015, p. 239-240).
Os envenenamentos, massacres e a impunidade, segundo Sydeney Possuelo
Esses massacres ocorreram em situações, por exemplo, quando um grupo
enviado por fazendeiros vai de avião até a aldeia, sobrevoa, abaixa e vai até
as malocas. Distribui algo de comer e, no dia seguinte, com caganeira
generalizada, um dos indígenas aparece morto. Um dos casos em Rondônia
foi de suspeita de envenenamento, outro no Javari, mataram três Korubos em
emboscadas a tiros. Os corpos foram resgatados do fundo do rio pela Funai e
a Polícia Federal. Até hoje ninguém foi julgado e punido, um escárnio contra
os povos indígenas. Coisas dramáticas. O sertão é grande e distante e, no seu
isolamento, encobre todos os dramas. Tudo se passa nas regiões mais
longínquas, onde não há comunicação e justiça. Tudo é difícil, e a própria
selva, com suas distâncias e dificuldades, acaba abafando os acontecimentos.
A impunidade é grande e permanente. Ninguém se sente culpado por nada,
nem é julgado. O cara comete as atrocidades sem medo e de cara limpa, não
se esconde. E acha que é assim mesmo, que está certo. E saber que não vai dar
nada para ele. No Maranhão, com os Awá-Guajá, também houve uma suspeita
de envenenamento. Estávamos eu e o Wellington Gomes Figueiredo. Os
índios descreviam para nós que eles haviam ganho uma farinha que tinha umas
coisinhas pretas no meio. Eles comeram e passaram mal. Eu encontrei
esqueletos de Awá-Guajá. Eles falaram de alguma coisa que parecia fumo de
rolo picado, misturado à farinha. Eu não sei o que poderia ser aquele veneno
(MILANEZ, 2015, p. 239-240).
Assim, a partir destes depoimentos dos sertanistas narrando suas experiências ao longo
dos processos de atração e contato com os povos indígenas até então em isolamento, passemos
ao estudo do processo de elaboração da política pública específica para estes povos, voltada
para evitar, controlar ou pelo menos diminuir, as trágicas consequências dos primeiros contatos.
223
4.2.2 O Encontro de Belém (1987) e o paradigma do não-contato;
A atual política de proteção aos direitos dos povos indígenas isolados foi
construída com base nessas práticas e (trágicas) experiências indigenistas
anteriores à Constituição de 1988. Da prática do contato como medida de
proteção, a política pública passou, em 1987, a ser norteada pelo
reconhecimento das estratégias de “isolamento”, considerando-as expressão
máxima de vontade dos povos indígenas isolados. A Funai institucionalizou
no final da década de 1980, a partir de uma grande reunião ocorrida em 1987
entre sertanistas, antropólogos e especialistas, a atual política de proteção e
promoção dos direitos dos povos indígenas isolados, sem a obrigatoriedade de
contatá-los (Vaz 2011). [...] A partir de então, o paradigma de ação indigenista
vigente - que tinha a atração e contato como medida de proteção, foi
substituído pelo respeito à autodeterminação dos povos em decidirem seus
próprios rumos (AMORIM, 2016, p. 25).
Nesta e nas próximas seções apresentaremos o processo de concepção da política
indigenista estatal específica para PIIRC. Vale lembrar que nosso objetivo ao analisar tal
política é o de subsidiar a avaliação da hipótese desta pesquisa, visto que mesmo dispondo de
uma política indigenista específica para PIIRC, a mais antiga e considerada a mais avançada do
mundo no assunto, o Brasil permanece sendo um Estado excludente e colonialista em relação a
estes povos e a seus territórios.
Identifica-se pela análise da literatura sobre o tema que o I Encontro de Sertanistas
ocorrido em Belém, em junho de 1987 é considerado o marco inicial do processo de elaboração
e implantação da política brasileira para PIIRC. Segundo Vaz (2013, p. 55), por exemplo, este
evento foi “um divisor de águas que rompe paradigmas acerca da postura do Estado com relação
aos grupos indígenas não contatados”. O contexto da época reúne elementos históricos
importantes, como o processo de redemocratização do país, a mobilização dos setores
organizados da sociedade civil em torno de vários temas sociais, e a Assembleia Constituinte,
que já havia sido instalada pelo Congresso Nacional em fevereiro daquele ano. Além disso,
estavam sendo completados também vinte anos da criação da FUNAI. Somam-se a este
contexto a trajetória histórica da política indigenista brasileira, cuja análise realizamos
anteriormente.
Segundo Freire (2005, p. 98):
A realização do I Encontro de Sertanistas da FUNAI e a institucionalização
de um sistema de proteção aos índios isolados têm como antecedentes os
224
processos de profissionalização dos servidores de campo do órgão. Os cursos
de auxiliar técnico indigenista possibilitaram, a médio prazo, a renovação
(limitada) do quadro de sertanistas e o estabelecimento de disputas pela
autoridade indigenista no campo político.
De acordo com Freire (2005, p. 108), no ano de 1987, foi aprovado um novo Regimento
Interno da FUNAI135, o qual, entre outras providências, criou a Coordenadoria de Índios
Arredios, subordinada à Superintendência Geral da FUNAI, com a função de “coordenar as
ações relativas à atração e contato com grupos indígenas arredios, a serem desenvolvidas pelas
Superintendências Executivas Regionais”136. Segundo Freire (2005, p. 108) “naquele momento,
o Coordenador de Índios Arredios, sertanista Sydney Possuelo, propôs à Presidência da FUNAI
a organização de um Encontro de Sertanistas, afinal realizado no período de 22 a 27 de junho
de 1987”. De acordo com o depoimento de Possuelo a Milanez (2015, p. 228):
Um departamento para índios isolados era uma ideia que estava na minha
cabeça há muito tempo. Por muitos anos eu vinha falando com os presidentes
da Funai. [...] Havia duas vertentes de pensamento, ou de possibilidades de
ação, a partir da análise do passado, desde a época do marechal Rondon. Há o
caso dos índios isolados que estão em determinado lugar. Se nada for feito,
anos depois ele não estarão mais lá. Virou uma fazenda, uma hidroelétrica,
alguma coisa fizeram e os índios desapareceram. A outra vertente é fazer o
contato com eles. Faz o contato, morrem 80%, morrem 50% da população. A
perda é terrível, uma desgraça, quase destrói o povo inteiro. Há casos de etnias
que desapareceram completamente. Todos morreram. O que fazer? Se chegar,
eles morrem. Se não chegar, eles morrem. Foi a partir dessa dicotomia a ideia
do departamento [de índios isolados] [...] Para mim era óbvia a conclusão: não
devemos promover o contato. Essa é a primeira coisa, pois resolve uma parte
da equação. Mas tem a outra parte: se não fizermos o contato, e não fizer nada,
eles vão desaparecer pelas frentes pioneiras. Estabelecemos que com os índios
isolados não se faz contato, mas demarca-se sua terra. [...] Essa era a
possibilidade de manter vivos os grupos que ainda estivessem isolados. Dali
para a frente, esses grupos não mais seriam contatados e seus territórios,
protegidos.
É possível encontrar na literatura sobre este processo algumas referências ao papel de
liderança exercido pelo sertanista Sydney Possuelo, tanto na realização do Encontro, quanto na
proposição e execução das ideias nele debatida137. Poucos anos depois, Possuelo viria a ocupar
135 Portaria N.º 99 de 31 de Março de 1987 apud Freire (2005, p. 108). 136 Artigo 11˚ da Portaria N˚ 99, de 31 de março de 1987 (Diário Oficial, 06/04/1987, p. 4920) apud Vaz (2013, p. 16). 137 Segundo Freire (2005, p. 111), em correspondência com Marcus Maia, um dos convidados ao Encontro de Belém, este lhe afirma o seguinte: O Encontro de Sertanistas foi organizado pelo Sydney Possuelo para discutir a implantação de uma nova política para os índios isolados. A impressão que se tinha, se bem me recordo, era a de que Sydney pretendia consolidar sua ascendência não só no âmbito da FUNAI, mas até no âmbito do Ministério do Interior, à qual a FUNAI era então subordinada, na definição e na prática de políticas para os índios isolados. A ideia central, sempre repetida pelo Sydney em suas muitas falas no auditório, era a de não mais se fazer contatos com isolados, a menos que fosse absolutamente necessário para a própria segurança deles. [...]
225
o cargo de presidente da FUNAI (1991-1993), em um momento de grande importância,
sobretudo para a demarcação de Terras Indígenas138. De acordo com Freire (2005, p. 98):
As articulações que ao longo dos anos 70 e 80 o sertanista Sydney Possuelo
estabeleceu com diversas chefias da FUNAI, reveladas na documentação
depositada na CGDOC/Brasília, o distinguem dos demais sertanistas,
independentemente do capital simbólico acumulado com a atração dos índios
Arara (PA). Nos anos 80, através da imprensa, o sertanista foi o porta-voz das
críticas e reivindicações dos trabalhadores das FAs [Frentes de Atração].
Assim, reconhecemos aqui as muitas contribuições de Possuelo, entretanto, não é nosso
objetivo conferir importância pessoal nem superioridade hierárquica a nenhum dos sertanistas,
visto que todos eles tiveram suas contribuições neste processo. Além disso, as ideias que
Sydney relata terem passado por sua cabeça, certamente também passaram pelas mentes de
outros sertanistas, que vivenciaram experiências semelhantes.
Outro aspecto importante de ser registrado é a participação de outros atores do
indigenismo brasileiro no processo de concepção da política para PIIRC. Neste sentido, antes
de abordar o Encontro de Belém, consideramos necessário destacar a discussão sobre o tema
dos povos indígenas em isolamento que ocorreu no âmbito da sociedade civil. No ano de 1986
o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Operação Anchieta (OPAN) organizaram um
“Encontro sobre Índios Isolados e de Recente contato” na cidade de Cuiabá-MT. De acordo
com Vaz (2011, p. 09) várias organizações não governamentais participaram dessa reunião,
entre as quais: “União das Nações Indígenas (UNI), Centro Ecumênico de Documentação
Indígena (CEDI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Comissão Pró-Índio de São Paulo
(CPI-SP), bem como funcionários da FUNAI”.
O Encontro de Cuiabá resultou na elaboração de um comunicado final no qual os
participantes estabeleceram uma pauta com as conclusões do Encontro para serem veiculada
entre as entidades indigenistas e deram início também ao mapeamento dos grupos isolados no
Brasil (VAZ, 2011, p. 9-10). O documento manifesta a preocupação com as condições de
sobrevivência física e cultural dos povos indígenas em isolamento devido ao avanço das frentes
de expansão econômica nacionais desde a década de 1970, com a multiplicação da abertura de
estradas, sobretudo na região Norte, a expansão agropecuária, dos projetos de infraestrutura e
da mineração. Deste modo, podemos identificar, inclusive pela participação de funcionário da
De modo geral, as sessões eram conduzidas por Sydney em longas exposições no auditório a uma plateia que concordava efusivamente com suas propostas”. 138 Possuelo relatou, em seu depoimento a Milanez (2015, p. 238) que: “O Collor, na época, disse: ‘A Constituição determina a demarcação de todas as terras indígenas no prazo de cinco anos. Não é portanto uma questão de querer ou não demarcar, mas um dever constitucional’. Isso foi algo forte do Collor em favor dos povos indígenas”.
226
FUNAI, que o Encontro de Cuiabá (1986) certamente influenciou e contribuiu para a realização
do Encontro de Sertanista de Belém (1987). Aponta, no mínimo, que o tema e as iniciativas a
respeito destes povos não eram tratados exclusivamente pela FUNAI ou pelos sertanistas.
Entretanto, independente dos méritos de quaisquer sujeitos, vimos anteriormente que não
faltavam razões e problemas para serem discutidos acerca das relações entre o Estado-Nação e
os povos indígenas em isolamento.
Foi neste contexto que a FUNAI promoveu o I Encontro de Sertanistas na cidade de
Belém-PA, com a participação de “15 sertanistas139 e como convidados dois antropólogos140,
um linguista141 e um técnico indigenista142” (FREIRE, 2005, p. 111). Ressalta-se, como vimos
anteriormente, que a experiência e o capital simbólico acumulados pelos sertanistas, lhes dava
peso diferencial nas lutas do campo indigenista, determinando rumos para a política indigenista
brasileira (FREIRE, 2005).
Neste sentido, o I Encontro de Sertanistas foi realizado com a finalidade de analisar a
“política de atração dos grupos indígenas arredios, objetivando reunir subsídios baseados na
experiência dos servidores especialistas no assunto, visando definir uma nova postura da
FUNAI no tocante a sua própria conduta neste setor143” (FUNAI, programa do Encontro, 1987
apud FREIRE, 2005, p. 108). Os temas propostos para discussão foram os seguintes:
a) histórico das frentes de atração; b) análise crítica da política de atração; c)
aspectos ecológicos; d) defesa do território; e) saúde dos grupos arredios e
recém-contatados; f) segurança; g) aspectos administrativos; h) preservação
cultural; i) do pessoal; j) equipamentos; k) localização dos grupos arredios; l)
estrutura operacional das frentes de atração; m) comportamento ético; n)
outras questões (FREIRE, 2005, p. 108, nota 54).
139 De acordo com Freire (2005, p. 111) os sertanistas participantes foram: Afonso Alves da Cruz, Benamour Brandão Fontes, Cícero Cavalcanti de Albuquerque, Cornélio Vieira de Oliveira, Estevão Rodrigues da Silva, Fiorello Parise, Francisco de Assis da Silva, Francisco Bezerra de Lima, Frederich Paul Tolksdorf, João Evangelista de Carvalho, Júlio Reinaldo de Moraes, Raimundo Gomes do Nascimento, Raimundo Nonato Nunes Correia, Sebastião Amâncio da Costa e Sydney Ferreira Possuelo. 140 Sheila Maria Guimarães de Sá e Antônio Pereira Neto, de acordo com Freire (2005, p. 111). 141 Marcus Antônio Resende Maia, de acordo com Freire (2005, p. 111). 142 José Carlos dos Reis Meirelles Júnior, de acordo com Freire (2005, p. 111). 143 Segundo Freire (2005, p. 108) “Durante o Encontro, foram distribuídos os seguintes documentos para
auxiliar a discussão dos temas: 1. a novo Regimento Interno da FUNAI, publicado no D.O. em 06/04/1987; 2. a Lei 6.001/73 – o Estatuto do Índio –, principalmente os artigos referentes aos índios isolados; 3. as normas para atração e pacificação dos índios, sistematizadas pelo inspetor Dorval de Magalhães para a 1ª Inspetoria Regional do SPI, em 05/02/1943; 4. instruções do chefe da 2ª Inspetoria Regional do SPI, José Maria da Gama Malcher, aos funcionários em exercício, em 30/12/1942; 5. exposição sobre o SPILTN que consta do Relatório anual do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio relativo ao ano de 1911; 6. trabalho sobre as Frentes de Atração (FAs) e o pós-contato elaborado pelo sertanista Cícero Cavalcanti de Albuquerque, em 23/06/1987. Distribuído por iniciativa pessoal do autor”.
227
A partir dos debates e da troca de experiências sobre estes assuntos, os participantes
expressaram suas conclusões em um documento final. Segundo Freire (2005, p. 114) este
documento tinha três partes, fazendo inicialmente “uma interpretação da profissão de sertanista
no século XX” destacando a “intenção verdadeira de proteger as comunidades indígenas” e
valorizando Rondon como “‘patrono’ do indigenismo e da FUNAI, além do ‘mito’ que
estabelecia ‘conceitos’ e procedimentos para com os índios”. De acordo com o autor:
“após relacionar inúmeros sertanistas ‘exemplos de dedicação e
profissionalismo, romantismo e senso de dever’, inclusive os mortos ‘no
estrito cumprimento do dever’, o documento abordava a situação dos índios
isolados e os “fatores” que definiam as “atrações” (idem). Os sertanistas
seriam “cumpridores de ordens” que interferiam no contato para dar alguma
“chance de sobrevivência física” (idem) aos índios (FREIRE, 2005, p. 114).
Entre os diagnósticos presentes no documento final sobre o histórico das frentes de
atração e sobre a política indigenista, destacou-se que:
Aprendemos, nestes anos todos de história do indigenismo oficial no Brasil,
que a atração de índios isolados ocorre normalmente por dois fatores:
primeiro, quando estes índios estão em territórios objeto da cobiça de algum
empreendimento econômico privado, obstaculizando o seu pleno
desenvolvimento e; segundo, quando ocupam áreas de interesse de
empreendimentos governamentais. Tanto num caso como no outro, o SPI, e
depois a FUNAI, envidaram esforços para alocar seus sertanistas com a
finalidade de contatar estes índios tanto para livrá-los das ameaças das frentes
de expansão, como para dar condições de desenvolvimento a projetos
governamentais e privados (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 12).
A partir da constatação dos motivos dos contatos e das consequências sistemáticas
destes contatos para os povos indígenas, muitas vezes presenciadas pelos próprios sertanistas,
registrou-se no documento final do encontro “a certeza de que é necessário e imediato executar
mudanças de estratégia para nosso trabalho, e, essencialmente, fazer uma revisão de seus
conceitos, causas e consequências” (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 12). Nota-se que os
sertanistas revelam seu sentimento de responsabilidade por estas consequências, o que Freire
(2005, p. 343) chamou de “consciência culpada dos efeitos desastrosos de inúmeras
pacificações”.
Embora tenhamos consciência do heroísmo e do sacrifício de inúmeros
companheiros144, nunca poderemos nos esquecer de que quando estamos em
processo de atração, estamos na verdade sendo pontas de lança de uma
sociedade complexa [...] Estamos invadindo terras por eles habitadas, sem seu
convite, sua anuência. Estamos incutindo-lhes necessidades que jamais
tiveram. Estamos desordenando organizações sociais extremamente ricas.
144 De acordo com Freire (2005, p. 98) “No início dos anos 70, em campo, morriam muitos servidores nas Frentes
de Atração. Só em 1974 foram 11 mortos (O Globo, 20/04/1975). Eram técnicos em indigenismo, sertanistas, auxiliares diversos”.
228
Estamos tirando-lhes o sossego. Estamos lançando-os num mundo diferente
cruel e duro. Estamos, muitas vezes, levando-os à morte. [...] A experiência
de contato, para o índio é prejudicial. Toda sua estrutura social, cultural e
econômica é alterada em função da nova realidade. [...] Os efeitos posteriores,
ensinam a história e nossa experiência, são sempre frustrantes para estes
índios: adoecem das moléstias para nós mais simples e, por não terem
anticorpos, morrem facilmente. Temos milhares de exemplos de grupos
inteiros mortos, em passado recente por gripes, sarampo, coqueluche, etc.
(FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 12-13).
Neste sentido, vimos que além dos inúmeros grupos extintos por epidemias, ou mesmo
por massacres, são variados também os exemplos de territórios indígenas cortados por estradas
ou totalmente tomados para diferentes iniciativas públicas e privadas, ou mesmo sem qualquer
razão duradoura. Muitos destes povos passaram ainda por experiências diaspóricas traumáticas,
ao serem removidos de seus territórios tradicionais e levados para outros lugares e regiões.
Neste sentido, de acordo com Lino João Neves (2011, p. 63), “há algum tempo já está claro
que, enquanto sociedade, o mundo moderno não tem alternativas a oferecer aos índios. No caso
dos ‘índios isolados’ essa falta de alternativa é ainda mais gritante”.
A partir desta troca de experiências, foi constituída “toda a fundamentação que resultou
na mudança do paradigma do "contato" para o "não contato", enquanto premissa de ação
indigenista do Estado brasileiro para a proteção dos índios isolados” (VAZ, 2013, p. 17). Como
vimos na seção anterior, “antes disso, acreditava-se que a única forma de proteger esses povos
e garantir seus direitos era através do contato” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 45). Nas
palavras de Vaz (2011, p. 14), o Estado brasileiro “concebia o contato como premissa de
proteção”. Já no modelo que surgirá a partir do Encontro de Belém, “o Estado tem a obrigação
de garantir a opção dos grupos isolados de assim permanecerem, em cumprimento ao que
determina a Constituição Brasileira em seu artigo 231” (idem).
Deste modo, segundo Vaz (2013, p. 13) o I Encontro dos Sertanistas apresenta bases
conceituais para as condições em que o contato possa ser estabelecido:
O ato de contato, só deverá ocorrer quando comprovadamente, aquele grupo
isolado não tiver mais condições de suportar o cerco de fazendas, invasões de
seu território, etc. Quando compulsões incontroláveis ocorrerem, aí então, o
ato de se manter contato, seria uma medida essencial de proteção. Entendemos
que não há por que se fazer contatos com grupos isolados, apenas por fazer
[...] se o contato for inevitável, apesar de todas as dificuldades, este ato em si
ocorrerá naturalmente (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 13).
Se ficar comprovado que a ação de contato é a única medida possível para
resgatar um grupo isolado, enquanto sociedade, a FUNAI deverá fazer este
trabalho com total e absoluta prioridade. Afinal, trata-se de um povo
ameaçado de extinção que temos a obrigação legal e moral de resgatar e
manter intacto [...] Havendo o contato, nosso trabalho deverá ser
229
essencialmente educativo no sentido de tornar aquele índio desde o princípio
do contato auto-suficiente e independente de um paternalismo que se
introduzido sem critérios, pode levá-los à decadência, à degradação e à
completa desestruturação (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 18).
Assim, consideramos interessante ressaltar que o estabelecimento desta política é outro
elemento a revelar as contradições inescapáveis, inerentes à atividade dos sertanistas. Nota-se
que estes sujeitos são, sempre e ao mesmo tempo, agentes do risco e da proteção, portadores de
doenças e de remédios, responsáveis por intermediar, de várias maneiras, a conflituosa história
das relações entre o Estado-Nação e os povos indígenas. Esta característica paradoxal se reforça
quando, sendo eles os próprios realizadores do contato, linha de frente – ainda que amortizadora
– da expansão da sociedade nacional sobre os territórios indígenas, os sertanistas foram também
aqueles que estabeleceram a política do não-contato, que criaram e instituíram politicamente a
ideia de uma fronteira a esta expansão da sociedade envolvente que, como vimos, é nacional
mas também é indissociável das dinâmicas macro-históricas internacionais/globais.
Ainda no documento do Encontro de Belém, os sertanista revelam sua compreensão
sobre o significado e a importância que os povos indígenas em isolamento têm para a
humanidade – mesmo que este significado e esta importância permaneçam ainda desconhecidos
e/ou negligenciados.
Entendemos que os grupos isolados são hoje patrimônios [sic] cultural,
humano e histórico, não apenas do Brasil, mas de toda a humanidade [...]
Entendemos também que os índios, isolados ou não, são, em sua essência,
guardiões para o país de imensas riquezas florestais, hídricas, da fauna, da
flora. Ainda chegará o dia em que se lamentarão os males que foram feitos por
um progresso no qual não se prioriza o humano (FUNAI, 1987 apud VAZ,
2011, p. 13).
Entretanto, consideramos importante destacar o relato de Possuelo, ao afirmar que o
estabelecimento desta política não foi unanimidade entre os sertanistas:
Uma grande parte – principalmente os mais antigos, mais velhos – era
absolutamente contrária à ideia. Poucos foram favoráveis. Basicamente, o que
eu propunha era o não contato, a proteção da ecologia, e a vigilância
permanente da terra. Eram esses os fundamentos. Os sertanistas não
argumentavam claramente, mas deixavam implícito que a ‘glória do
sertanista’ era sempre a de divulgar que ele era quem havia contatado
determinado grupo, quem o trouxe à luz da existência, eles eram chamados
“papais do grupo”. Eu propunha o contrário: não vai ser papai de nada, não
vai contatar ninguém. A glória será que permaneçam isolados. Se fizer isso,
estará preservando e protegendo o isolado (MILANEZ, 2015, p. 231).
Além desta resistência de alguns sertanistas, Freire (2005, p. 123) destaca que:
Na época do estabelecimento dessa política, antropólogos e ONGs
questionaram a ideia de isolamento de povos indígenas e as iniciativas
230
previstas para a defesa desse isolamento. Argumentava-se que não existia
vigilância eficaz nas áreas indígenas, e que seringueiros, madeireiros e
garimpeiros acabariam contatando os índios antes da FUNAI, ocasionando
grande mortandade, senão o extermínio de povos inteiros (CEDI, 1991). A
maior crítica foi dirigida às ideias em que se baseava toda concepção de índios
isolados. Assinalava-se aí a presença de uma série de estereótipos, oscilando
entre o bom selvagem e o índio hostil e marginal. Segundo Dominique Gallois
(1992), a ideia de marginalidade era oriunda da noção de fragilidade desses
grupos, daí a necessidade de intervenção do Estado.
De todo modo, a partir de 1987, em conformidade com o princípio da autodeterminação
dos povos que nos anos seguintes ganharia reconhecimento na Constituição Federal de 1988 e
na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, as novas
diretrizes desta política indigenista foram definidas da seguinte maneira pelo Regimento da
FUNAI de 1993: “garantir aos índios e grupos isolados o direito de assim permanecerem,
mantendo a integridade de seu território, intervindo apenas quando qualquer fator colocar em
risco a sua sobrevivência e organização sociocultural” (FUNAI, 1993 apud VAZ, 2011, p. 14).
Deste modo, as ações de proteção do órgão deveriam ocorrer à distância, a fim de
garantir a integridade territorial das regiões habitadas por povos indígenas isolados. Assim, o
sucesso da política do não-contato depende da proteção integral dos territórios destes povos
contra os diferentes tipos de invasão possíveis. De acordo com Vaz (2013, p. 17), os sertanistas
enfatizaram a necessidade de “priorização das ações de proteção dos territórios destes grupos”
(VAZ, 2013, p. 17). Assim, “com a perspectiva de qualificar a ação e definir prioridades no
campo da proteção territorial”, decidiu-se por realizar um “imediato mapeamento145 sobre a
existência de grupos indígenas isolados em todo o território nacional” (VAZ, 2013, p. 18). No
documento final do Encontro de Belém, lê-se que:
É necessário um imediato mapeamento de todos os grupos isolados no Brasil.
A partir do mapeamento dos índios isolados, a FUNAI deverá interditar
imediatamente os territórios onde vivem, para poder exercer um sistema de
vigilância e proteção em torno dos mesmos, no sentido estrito de preservar o
grupo isolado que se encontra ali incluso (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p.
13).
Estas medidas de proteção [territorial], prioritárias a qualquer outra medida,
visando a que o índio possa se manter em sua plenitude, invocarão a postura
da FUNAI na relação com os índios isolados e, temos certeza, contarão com
o total apoio da opinião pública esclarecida e da academia (VAZ, 2013, p. 17).
145 “O mapeamento realizado resultou em 115 Referências de Índios Isolados, classificadas como confirmadas ou não-
confirmadas” (VAZ, 2013, p. 18).
231
Ou seja, não basta a FUNAI, na figura do Estado, não promover ela própria o contato
se os territórios indígenas não estiverem demarcados e fiscalizados. As frentes de expansão da
sociedade nacional avançam constantemente de diversas formas. Portanto a proteção do direito
à autodeterminação dos povos indígenas em isolamento voluntário depende, na maioria dos
casos, da proteção por parte do Estado, tanto do aspecto territorial quanto da proteção política
e jurídica contra os grandes empreendimentos planejados e em construção que cruzam seus
territórios.
Por fim, este novo posicionamento da FUNAI, sintetizado como paradigma do não-
contato, mesmo sendo inicialmente direcionado a uma categoria específica de indígenas, os
isolados, pode ser identificado como uma mudança no paradigma de atuação da política
indigenista brasileira. De acordo com Gallois (1992, p. 121):
É preciso garantir-lhes espaço e tempo para que a opção do contato dependa
deles e não da decisão dos sertanistas do órgão indigenista oficial. Enquanto
não estiverem ameaçados diretamente, o Estado não promove o contato,
apenas protege, à distância, seu habitat. Esta nova política “para os isolados”,
implantada pelo Departamento de Índios Isolados da Funai, representa,
enquanto construção teórica, uma alternativa significativa à forma com que
esses grupos vinham sendo tratados nas últimas décadas.
Vale destacar também que a partir desta mudança iniciada o Brasil se tornaria o primeiro
país a criar uma política específica para a proteção e promoção de direitos dos povos indígenas
isolados. Com o desenvolvimento gradual desta política ao longos dos últimos 30 anos, os
conceitos e as metodologias de trabalho existentes no Brasil são considerados os mais
avançados da América do Sul, e, provavelmente do mundo. Por estes motivos, o estudo crítico
da política indigenista estatal brasileira, e dos posicionamentos ideológicos que nortearam sua
trajetória de atuação especialmente nos casos de índios isolados, são referências indispensáveis:
Utilizamos la situación de Brasil como principal referencia, no sólo por la
diversidad de pueblos aislados que tiene, sino por las características de su
política y de sus mecanismos de protección, constituyendo el principal punto
de referencia para entender mejor la situación de los pueblos aislados en la
región (BRACKLAIRE, 2006, p. 04).
Veremos no próximo capítulo, contudo, que a existência destes conceitos e
metodologias, não garante a eficiência da política, principalmente devido ao gigantesco déficit
humano e orçamentário por que passa o órgão há muitos anos, situação acentuadamente
agravada na último década. Neste sentido, nota-se também pelo documento final do Encontro
de Belém que as reivindicações de fortalecimento político-orçamentário da FUNAI ocorrem
desde o momento inicial da política para isolados:
232
Entendemos também que a FUNAI, como órgão responsável pela proteção de
todos os índios, isolados ou não, deve ter toda a forca e o poder necessário ao
bom desenvolvimento de seus trabalhos; força esta de ordem política e
financeira. Devido à especificidade do trabalho que desenvolve, ao imenso
patrimônio fundiário que tem sob sua responsabilidade e, devido à imensa
riqueza pela qual é responsável, a FUNAI deveria ter seu reconhecimento
público e oficial mais acentuado. Este é o empenho de cada um de nós. [...]
Como o trabalho de proteção, vigilância, localização e contato com os índios
isolados, e um trabalho da mais alta responsabilidade e requer um
conhecimento especializado, o mesmo só poderá ser executado por servidores
devidamente preparados com equipes adequadas e com todo o equipamento
necessário à segurança da equipe e dos índios isolados. Este não é um trabalho
para amadores. A FUNAI deve ir pensando na renovação de seus quadros de
sertanistas. (FUNAI, 1987 apud VAZ, 2011, p. 13).
Assim, no capítulo seguinte apresentaremos uma análise da crítica situação institucional
da FUNAI frente ao ambiente político brasileiro146 e da CGIIRC, especialmente, para cumprir
todos os papeis que a política atual exige. Neste sentido, vale destacar que entre os dispositivos
da política pública específica para PIIRC foi estabelecido que a execução de ações para estes
povos são, no âmbito legal, de competência exclusiva do Estado147, através de seu órgão
indigenista, a FUNAI.
Segundo Vaz (2013, p. 19), o documento resultante do encontro ainda estabelece as
bases para a formulação do Sistema de Proteção ao Índio Isolado (SPII), “bem como a
atribuição exclusiva da FUNAI enquanto implementadora”:
- (...) o trabalho de proteção, vigilância, localização e contato com os índios isolados, é
um trabalho da mais alta responsabilidade e requer um conhecimento especializado, o
mesmo só poderá ser executado por servidores devidamente preparados com equipes
adequadas e com todo o equipamento necessário à segurança da equipe e dos índios
isolados. Este não é um trabalho para amadores. A FUNAI deve ir pensando na
renovação de seus quadros de sertanistas.
[...]
- Como a proteção dos Índios isolados, proteção esta de que forma se der, é do interesse
de toda a sociedade brasileira e não apenas da FUNAI; entendemos estar sempre
dispostos a ouvir, receber colaborações e ensinamentos desde que a nossa autoridade
de decisão não seja maculada. E devemos envolver o mundo acadêmico em nosso
trabalho (VAZ, 2013, p. 19)
146 O momento atual é caracterizado pelo movimento indigenista como o de maior ataque aos direitos indígenas desde a redemocratização e a Constituição de 1988. No Congresso Nacional a Frente Parlamentar Agropecuária, ou bancada ruralista, setor historicamente dominante da sociedade brasileira, alcançou nas eleiçoes de 2014 o número de 257 dos 513 deputados. As principais ações em curso deste grupo de interesses contra os direitos indígenas são a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 e o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227. 147 Fez-se a ressalva “no âmbito legal” porque é possível verificar, já há alguns anos, a tendência à “terceirização” da política indigenista brasileira, de uma maneira geral, e inclusive nos trabalhos com PIIRC. Esta tendência se manifesta através da elaboração e execução de uma significativa quantidade de projetos de Organizações Não-Governamentais (ONGs) indigenistas em “parceria” com a FUNAI.
233
Cientes da trajetória de sua concepção, vejamos a seguir as principais características e
mecanismos institucionais da política estatal brasileira específica para PIIRC.
234
4.3 A política estatal brasileira específica para PIIRC;
O Brasil é o país onde se registra o maior número de povos indígenas isolados
na América do Sul. O Estado brasileiro reconhece a existência de 1033
registros, sendo 26 desses com presença confirmada. Além de reconhecer um
maior número de registros de povos isolados, o Brasil também possui a
política pública mais antiga no que diz respeito à garantia dos direitos desses
povos à se autodeterminarem. [...] Nos últimos, anos a gradual precarização
da atuação da FUNAI em campo tem colocado em risco os avanços alcançados
ao longo de 30 anos de implementação da atual política indigenista
direcionada aos povos isolados (AMORIM, 2016, p. 19).
A partir do I Encontro de Sertanistas de Belém têm início os processos de elaboração,
execução, reelaboração, dificuldades de diversos tipos e dimensões, emergências, enfim, as
dinâmicas complexas de uma política indigenista, no Brasil, específica para PIIRC. Veremos a
seguir os elementos principais deste processo. Vale adiantar, porém, que atualmente o órgão
“responsável no nível do Executivo por planejar e executar ações para proteção e promoção dos
direitos dos povos indígenas isolados” é a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente
Contato (CGIRRC), a qual atua por meio das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), e é
ligada institucionalmente ao Departamento de Proteção Territorial (DPT) (AMORIM, 2016, p.
28).
De 1987 em diante, então, a política indigenista do Estado brasileiro para povos
indígenas em isolamento passaria a ter como objetivo central garantir “aos índios e grupos
isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu território, intervindo
apenas quando qualquer fator coloque em risco a sua sobrevivência e organização
sociocultural”, e, deste modo, “os trabalhos na perspectiva de proteção deveriam ocorrer à
distância, identificando fatos que colocariam a vida dos indígenas em risco, bem como o seu
território” (VAZ, 2011, p. 14). Portanto, o paradigma de atuação da política indigenistas para
estes povos passa “do contato à autodeterminação, da integração à proteção do não contato”
(VAZ, 2013, p. 55, grifos do autor).
Assim, em julho daquele ano, mês seguinte ao Encontro e de Sertanistas, foram
publicadas duas Portarias da Presidência da FUNAI instituindo um setor para atuar
exclusivamente na temática, a Coordenadoria de Índios Isolados148 (CII), e estabelecendo
diretrizes de trabalho149. Assim, a CII tinha “a finalidade de planejar, supervisionar e normatizar
as atividades relacionadas a localização, a proteção e ao contato com os índios isolados [apenas
148 Portaria 1901/87 de 06 de julho de 1987. 149 Portaria 1900/87 de 06 de julho de 1987.
235
quando indispensável]” (VAZ, 2011, p. 14). Em agosto do ano seguinte, uma terceira Portaria
regulamentou o Sistema de Proteção ao Índio Isolado150 (SPII) (AMORIM, 2016, p. 25). Assim,
podemos notar entre os primeiros reflexos do Encontro de Belém, que houveram alterações
conceituais sobre os povos indígenas em isolamento, visto que a denominação destes índios
passa “de arredios a isolados” (GALLOIS, 1992), e, neste sentido, a Portaria nº 1.901/FUNAI,
06/07/1987) extingue a Coordenadoria De Índios Arredios e cria a Coordenadoria de Índios
Isolados.
O Sistema de Proteção ao Índio Isolado então instituído dividia-se em três Subsistemas:
Localização, Proteção e Contato, sendo que cada subsistema era dotado de suas respectivas
Equipes. De acordo com Freire (2005, p. 116) os subsistemas de proteção e contato “eram
compostos por postos indígenas, equipe móvel e núcleo de apoio, enquanto no subsistema de
localização existia apenas a equipe de localização”. De acordo com Freire (2005, p. 116, grifo
nosso), as normas da Portaria 1.047 de 1988:
definiam os objetivos das equipes de localização como centralizados no
levantamento sistemático de informações fundiárias, econômicas e ambientais
de grupos isolados, plotando-as cartograficamente, de forma a fornecer
subsídios à instalação de subsistemas de vigilância ou contato. Essas equipes
deviam ser compostas por indigenistas experientes, pois casualmente
poderiam estabelecer contato com índios isolados151.
Assim, novamente segundo Freire (2005, p. 117), as equipes de vigilância e os postos
de fiscalização eram “instalados em regiões onde se evitasse o contato mas se permitisse a
fiscalização da situação dos isolados”. Um exemplo de locais estratégicos para a instalação
destes postos são os cursos e confluências de rios e igarapés em regiões limítrofes das terras
150 Portaria 1047/88 de 29 de Agosto de 1988. 151 Freire (2005, p. 119), citando as “Normas do Sistema de Proteção”, afirmar que este perfil era baseado nos seguintes atributos: “Os integrantes das categorias básicas deverão possuir experiência em sobrevivência na selva, bem como, orientação e leitura de cartas geográficas. É também fundamental que sejam experientes na identificação de sinais e vestígios de índios isolados, na caça e pesca; no tocante à flora amazônica, seu aproveitamento e utilização, na construção de abrigos ligeiros e de casas típicas do sertão. É preciso que saibam nadar, remar, conduzir embarcações, utilizar, com perícia, facão e machado, operar aparelhos de radiocomunicação, ter noções de mecânica e de consertos de motores estacionários e fluviais. É, outrossim, importante que possuam conhecimentos de higiene e de profilaxia de moléstias contagiosas, que sejam aptos para administrar medicamentos de rotina no caso de doenças endêmicas, quando da ausência de médico, e tenham ainda, noções de preservação do meio ambiente. É mister que os integrantes mencionados gozem boa saúde e estejam aptos para esforços físicos e para longas caminhadas bem como para a execução de tarefas pesadas. Devem, também, ter intimidade com as lides do sertão e serem experientes em matéria de contato com índios isolados, estando, ainda, psicologicamente preparados para prolongados afastamentos da família e longos períodos de isolamento. A disciplina emocional, a calma e a tranqüilidade são, finalmente, de grande valia nas situações extraordinárias que podem envolver os membros da equipe. As qualidades acima descritas devem assentar sobre conhecimentos e dedicação à causa indígena”.
236
indígenas onde foi identificada a presença de povos isolados, sejam estas terras demarcadas ou
não, permitindo o controle do acesso de terceiros a estes territórios.
Para realizar a proteção dos territórios com presença de PIIRC, ficou determinado pelo
Decreto N.º 1.775, de 1996, que “o órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício
do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967,
disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios
isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios” (VAZ, 2011, p.
14).
No ano de 2000, as diretrizes elaboradas até então no âmbito da política pública para os
PIIRC foram reafirmadas e aprimoradas, tendo assumido o formato que consta na Portaria nº
281 da Presidência da FUNAI:
1 Garantir aos índios isolados o pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades
tradicionais; 2 A constatação da existência de índios isolados não determina,
necessariamente, a obrigatoriedade de contatá-los; 3 Promover ações sistemáticas
de campo destinadas a localizar geograficamente e obter informações sobre índios
isolados; 4 As terras habitadas por índios isolados serão garantidas, asseguradas
e protegidas em seus limites físicos, riquezas naturais, na fauna, flora e
mananciais; 5 A saúde dos índios isolados, considerada prioritária, será objeto de
especial atenção, decorrente de sua especificidade; 6 A cultura dos índios isolados,
em suas diversas formas de manifestação, será protegida e preservada; 7 Proibir no
interior da área habitada por índios isolados, toda e qualquer atividade
econômica e comercial; 8 Determinar que a formulação da política pública específica
para índios isolados e a sua execução, independente da sua fonte de recursos, será
desenvolvida e regulamentada pela FUNAI (Portaria N.º 281 da Presidência da
FUNAI apud VAZ, 2011, p. 14-15, grifos nossos).
Também no ano de 2000 a FUNAI estabeleceu, através da Portaria Nº 290, Art. 2º, que:
“a execução da política de localização e proteção de índios isolados seja efetuada por equipes
de campo denominadas Frentes de Proteção Etnoambiental” (FPE). De acordo com Amorim
(2016, p. 29):
As FPE são unidades descentralizadas da FUNAI que atuam em campo na
implementação da política indigenista direcionada aos povos indígenas
isolados e de recente contato. As Frentes atuam por meio das Bases de
Proteção Etnombiental, estruturas físicas localizadas no interior das terras
indígenas, com o objetivo de realizar o controle de ingresso, a vigilância
permanente, ações de fiscalização em conjunto com outros órgãos, realizar
ações de localização e monitoramento de povos isolados, diálogo com o
entorno indígena e não indígena, e ações de promoção dos direitos dos povos
recém contatados. (AMORIM, 2016, p. 29).
Segundo Vaz (2013, p. 56) cabe à Presidência da FUNAI definir as áreas e terras
indígenas que ficam sob a jurisdição de cada FPE. As FPE, por sua vez, são vinculadas às
237
Coordenações Regionais (CR), às quais compete apoiar a implementação das políticas para
PIIRC (VAZ, 2013, p. 56).
Uma FPE é criada com o objetivo de implementar um conjunto de ações que
contribuam com a promoção da missão152 da CGIIRC. Constituindo-se na
unidade que executa as ações locais de proteção e promoção dos direitos dos
povos indígenas isolados e/ou de recente contato, cabendo ao Coordenador de
cada FPE, sob orientação da CGIIRC, a supervisão e coordenação das
atividades relacionadas às áreas de atuação dessa frente, que correspondem a
um conjunto de referências (VAZ, 2013, p. 57).
De acordo com Vaz (2013, p. 27), “a relação do Estado junto aos grupos pós-contato
ainda carecia de um sistema de ‘proteção’ específico para grupos de ‘recente contato’”. O autor
ressalta que
o “contato com os Zo`é (1982), Korubo (1996), Akuntsu (1995), Kanoé
(1995) e Piripikura (1995), bem como a existência de outros grupos indígenas
contatados (muitos deles há mais de uma década) altamente vulneráveis diante
da sociedade envolvente, exigia da FUNAI a definição de uma política
específica para estes grupos. Em 2003, com a edição do Decreto 4.654 da
presidência da república, que definiu um novo estatuto para a FUNAI, criou-
se a Coordenação Geral de Povos Indígenas Recém-Contatados.153 No
entanto, esta coordenação nunca produziu sequer seus objetivos muito menos
alguma iniciativa relativa aos propósitos inerentes à sua designação. O tema
relacionado aos grupos de recente contato só voltou à discussão em 2007 e se
consolidou institucionalmente com a edição do Decreto presidencial que
deflagrou a reestruturação da FUNAI em 2009 (VAZ, 2013, p. 27).
Assim, no processo de reestruturação da FUNAI154 iniciado em 2009 a CGII passou a
ser denominada Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC)
“ficando, então, responsável também pela implementação da política de proteção e promoção
dos direitos dos povos recém-contatados” (VAZ, 2011, p. 15). Além da criação da CGIIRC,
esta reestruturação também dobrou o número de Frentes de Proteção Etnoambiental, passando
de 6 para 12 unidades. Entretanto, de acordo com Amorim (2016, p. 29) “atualmente são onze
FPE’s em operação, distribuídas conforme abaixo”:
Tabela X – Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE) em operação em 2016.
Frente de Proteção
Etnoambiental (FPE)
Localização Algumas Terras Indígenas
Jurisdicionadas
FPE Cuminapanema Norte do Pará Zo’é
152 “Missão da CGIIRC: Assegurar a proteção física e cultural dos índios isolados e recém-contatados por meio de ações de
localização, monitoramento, fiscalização, processo educativo no entorno, educação ambiental, saúde e contato, respeitando a autodeterminação destes povos” (VAZ, 2013, p. 57). 153 O Decreto Presidencial n˚ 4.654 de 25 de março de 2003, ao aprovar o novo Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos
em Comissao e das Funções Gratificadas da FUNAI, cria a Coordenação de Índios Recém-contatados.
154 Decreto n˚ 7.056 de 28 de 12 de 2009 apud Vaz (2011, p. 15).
238
FPE Envira Acre Kampa e isolados do Rio Envira
FPE Vale do Javari Oeste do Amazonas Vale do Javari
FPE Guaporé Rondônia Massaco
FPE Uru Eu Wau Wau Rondônia Uru Eu Wau Wau
FPE Madeira-Purus Sul do Amazonas Himerimã
FPE Madeirinha-Juruena Mato Grosso Kawahiva do Rio Pardo
FPE Awá-Guajá Oeste do Maranhão Awá
FPE Médio Xingu Centro-Sul do Pará Araweté do Ipixuna
FPE Yanomami / Yekuana Roraima/Amazonas Yanomami
FPE Waimiri Atroari Roraima/Amazonas Waimiri Atroari
Fonte: (AMORIM, 2016, p. 29).
Vejamos, então, um mapa com as Frentes de Proteção Etnoambiental existentes:
Mapa x – Frentes de Proteção Etnoambientais (FPEs)155
Fonte: VAZ (2011, p. 48-49).
155 São elas: Acre – FPE Envira; Amazonas – FPE Vale do Javari, FPE Purus, FPE Yanomami, FPE Madeira, Rondônia – FPE Uru Eu Wau Wau, FPE Guaporé; Mato Grosso – FPE Madeirinha, FPE Juruena; Pará – FPE Médio Xingu, FPE Cuminapanema; Maranhão – FPE Guajá.
239
Tendo em vista que as FPE são responsáveis por um conjunto de registros, é
indispensável sabermos como a CGIIRC identifica e classifica estes povos indígenas em
situações de isolamento e/ou de recente contato. De acordo com a FUNAI (2017a), “o
“Registro” é a unidade base no processo de sistematização de dados sobre o reconhecimento
institucional da existência de povos/grupos indígenas isolados”. Estes registros são
classificados conforme a sua situação:
Informação – Relatos previamente qualificados sobre a presença de povos
indígenas isolados não dispondo, no entanto, de um acervo consistente de
dados demandando, portanto, qualificações mais profundadas, inclusive em
campo, através de coleta de dados secundários junto a informantes indígenas
e não-indígenas moradores da região.
Referência em estudo - Conjunto consistente de dados sobre índio ou grupo
indígena isolado, devidamente qualificado pela CGIIRC. Por conjunto de
dados compreende-se um acervo informacional, cujos dados apontam a
presença de indígenas isolados em determinada região e tempo. O acervo pode
ser constituído por documentos administrativos, informações bibliográficas,
informações cartográficas, relatos secundários (documentados) entre outros.
Somente o trabalho realizado nas áreas provavelmente ocupadas povos
isolados, por equipe técnica da CGIIRC, poderá comprovar ou descartar a
existência de índio ou grupo indígena isolado em determinada região.
Referência confirmada - Trata-se de uma referência cuja existência foi
confirmada pelas equipes da CGIIRC. É considerada confirmada quando o
trabalho de campo de equipe especializada da CGIIRC/FPEs comprova a
existência de índio ou grupo indígena isolado e de sua localização geográfica,
por meio da localização de indícios irrefutáveis de sua presença, tais como
acampamentos, roças e moradias, entre outros. A comprovação da existência
de índio ou grupo indígena isolado e de sua localização geográfica deve ser
registrada com o propósito de fundamentar as ações de proteção, inclusive no
que diz respeito à regularização fundiária de seus territórios (FUNAI, 2017,
n.p.).
Segundo Amorim (2016, p. 28), “em termos gerais, o ‘registro’ vincula-se à região, ou
referências geográficas, onde possivelmente ou comprovadamente há a presença de povos ou
grupos indígenas isolados, sendo atribuído ao registro um número identificador”. Para
exemplificar este método, o autor cita o registro n. 76 – Serra da Estrutura, que faz referência
“a um povo indígena isolado que vive nas imediações da Serra da Estrutura, no interior da TI
Yanomami” (AMORIM, 2016, p. 28). Nota-se, pelo estudo dos registros disponibilizados pela
FUNAI (2017) que, quando não se tem informações ou estimativas sobre a possível etnia de
determinado grupo em isolamento, o aspecto geográfico/regional é adotado na nomenclatura
daquele registro de PII. Segundo Amorim (2016, p. 28).
Os registros são classificados conforme a disponibilidade e estágios de
sistematização de dados sobre sua presença: i) Registro de Informação quando
240
se dispõe de dados provenientes de terceiros, sistematizados ainda de forma
incipiente e/ou com um acervo pequeno de dados; ii) Registro de Referência
em Estudo quando se dispõe de um acervo contundente de dados qualificados
e sistematizados, necessitando a realização de expedições em campo para o
aprofundamento das informações, investigação de vestígios e constatação de
sua presença; e iii) Referência Confirmada quando o Registro de Referência
em Estudo foi verificado e a presença dos isolados comprovada em campo,
através da localização de indícios irrefutáveis, por meio de expedições e
sobrevoos realizados pelas equipes da Funai capacitadas para tal.
Por fim, de acordo com Vaz (2013, p. 67) a FUNAI instituiu também uma Comitê de
Gestão no âmbito do SPIIRC: “‘com a finalidade de apoiar, coordenar e assessorar as
atividades, em nível nacional, pertinentes à localização e proteção dos grupos indígenas
isolados e de recente contato’”. Assim, o Subsistema de Gestão foi acrescentado aos três
Subsistemas já existentes anteriormente: Localização, Proteção e Contato. Deste modo, Vaz
(2013, 68) realizou a contribuição de sistematizar os componentes do atual Sistema de Proteção
aos Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC) no quadro seguinte:
241
Fonte: VAZ (2013, p. 68)
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TATO
SUB SITEMA DE
GESTÃO
Administrativo Iniciativas de cunho administrativo que possibilitem a realização da implementação do SPIIRC
Institucional Ações desencadeadas pela CGIIRC e Frentes, junto a outras instituições, tendo em vista a promoção da missão da CGIIRC.
Pessoal Ações desencadeadas pela CGIIRC e Frentes, junto aos integrantes da equipe tendo em vista a ,melhoria da qualidades do trabalho e
o bem estar do grupo.
Planejamento Em sintonia com a Política para Índios Isolados e de Recente Contato , cada Frente de Proteção deve promover o planejamento anual
de forma participativa, contribuindo para o fortalecimento do espírito colaborativo e propositivo.
Infraestrutura Propor aquisição de novos equipamentos; bem como a guarda e zelo de todo equipamento e infraestrutura pertencentes ao
patrimônio da FPE.
Orçamento Cada FPE encaminha proposta de orçamento, e realiza seu controle, detalhado trimestralmente, de modo a possibilitar a realização
das atividades previstas no planejamento.
Sistematização Registro e sistematização das ações relativas à proteção e promoção dos índios isolados e de recente contato, tendo em vista
promover os direitos destes povos.
Comunicação Elaborar plano de comunicação que apresente o trabalho das FPE às comunidades do entorno e à sociedade nacional, com o
propósito de agregar aliados na defesa dos povos isolados e de recente contato. / Aprendizado da língua indígena para estabelecer
comunicação plena com os grupos indígenas.
Capacitação Cursos e intercâmbios que qualifiquem as equipes das FPE de modo a promover a qualidade do trabalho.
A. Convivência Estabelecer “Acordos de Convivência” para nortear a relação dos integrantes das equipes da FUNAI, FUNASA, visitantes,
pesquisadores e equipes da mídia em geral. Estes acordos devem se pautar em princípios que promovam a missão da CGIIRC.
SUB SISTEMA DE
PROTEÇÃO
Localização Atividades de campo para obter informações que caracterizam a etnia (aspectos físicos, lingüísticos, culturais e cosmológicos),
território ocupado, bem como identificar possíveis perigos que a etnia está exposta.
Monitoramento Monitorar os isolados e recém contatados, como o intuito de se observar se o trabalho da FPE contribui para promover “às condições
necessárias para a sobrevivência física e cultural” destes grupos.
Vigilância Ações que garantam a autodeterminação dos índios isolados e de recente contato, e promovam a integridade de seus territórios,
bem como sua cultura, crenças e tradições.
SUB SISTEMA DE
PROMOÇÃO
Processo Educativo /
Intercâmbio
São ações planejadas e executadas pela equipe e/ou consultores de modo a contribuir com a redução dos fatores que aumentam a
vulnerabilidade dos grupos de recente contato frente a sociedade ocidental. Desenvolvimento de intercâmbio com grupos indígenas
afins e população do entorno de modo a fortalecer a compreensão da sociedade envolvente por parte dos recém contatados.
Educação
Etnoambiental
São ações educativas, na perspectiva da Gestão socioambiental, que tem como foco o desenvolvimento de comportamentos, da
equipe e dos que vivem no interior e entorno da TI. De modo a manter e promover a qualidade ambiental da terra/área ocupada por
índios isolados e/ou recém contatados.
Saúde São ações que visam a promoção da saúde em seus múltiplos aspectos, respeitando os usos costumes e tradições dos povos
indígenas. Competem à SESAI as ações de saúde e à FUNAI o seu acompanhamento .
SUB SISTEMA DE
CONTATO Contato
As ações pertinentes ao contato, pressupõem uma metodologia diferenciada com equipes experientes no trato com grupos indígenas
em situação de primeiros contatos; equipe especializada em saúde com povos recém contatados e pessoas com capacidade de:
mobilidade e orientação na selva (mateiros), comunicação (intérpretes) e toda uma infraestrutura necessárias a situações de
emergenciais.
242
242
Por fim, vale registra que, de acordo com Vaz e Balthazar (2013, p. 88), a política
brasileira de proteção aos Povos Indígenas Isolados está fundamentada principalmente na
Constituição Brasileira de 1988, nos artigos 231 e 232, no Decreto Legislativo 143/2002 e no
Decreto Presidencial 5.061/2004. Ainda segundo estes autores, as disposições específicas da
política para PIIRC estão fundamentadas em dispositivos legais frágeis, uma vez que suas
regulamentações encontram-se dispersas entre mecanismos jurídicos infraconstitucionais,
principalmente Portarias e Decretos.
De todo modo, Ribeiro e Amorim (2017, p. 196) apontam que desde a implementação
da política pública específica para PII, a partir de 1987, “em diversos povos indígenas isolados
e recém contatados foi observado um crescimento populacional e indícios que comprovam um
uso mais intenso de seus territórios”, constituindo, portanto, um indicativo da eficácia desta
política.
A metodologia de proteção realizada por meio da instalação de bases
permanentes de vigilância, demonstrou-se efetiva ao longo dos anos de sua
implementação. A título de exemplo, voltando ao caso da TI Massaco, após a
instalação de uma equipe permanentemente realizando ações de vigilância, no
início da década de 1990, observou-se a paralisação total do desmatamento
que, até então, já havia acumulado aproximadamente mil hectares desmatados
a corte raso. Atualmente não há quaisquer inciativas de desmatamento no
interior dessa terra indígena, sobretudo em função do trabalho contínuo de
vigilância realizada pela equipe da FUNAI. A política brasileira, quando
implementada de forma plena, revela-se comprovadamente eficaz. Ao
contrário, a não implementação ou precarização das ações em campo resultam
comprovadamente em tragédias. (AMORIM, 2016, p. 35-36).
Feita esta apresentação geral sobre os dispositivos e elementos constituintes da política
da FUNAI para PIIRC, passemos ao estudo mais específico das metodologias através das quais
o órgão realiza seus trabalhos.
4.3.1 Metodologia de Trabalho em Campo da GIIRC/FUNAI;
No que diz respeito à metodologia de trabalho, um dos maiores diferenciais
da política brasileira em relação aos outros países da América do Sul ocorre
pelo forte enfoque metodológico em campo. Essa sistemática de campo é
herdeira das práticas expedicionárias realizadas historicamente pelo Serviço
de Proteção aos Índios (1910-1967), pela Fundação Brasil Central (1943-
1967) e pela própria Funai (criada em 1967). Entretanto, apesar das muitas
similaridades com as expedições atuais, as antigas geralmente tinham como
único objetivo de estabelecer contatos com os grupos isolados e integrar
economicamente extensas áreas “inóspitas”. Atualmente, as expedições
realizadas pelas Frentes de Proteção Etnoambiental objetivam comprovar a
243
243
existência desses povos e desencadear mecanismos de proteção de seus
territórios, sem quaisquer intervenções de contato com os povos indígenas
isolados (AMORIM, 2016, p. 25-26).
Nesta seção analisamos a metodologia de trabalho em campo da política pública
brasileira para povos indígenas em situações de isolamento e de recente contato, que atualmente
está a cargo da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da
FUNAI, a qual atua por meio das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), que, por sua vez,
são compostas por Bases de Proteção Etnoambiental (BAPE). O conhecimento acumulado ao
longos dos 30 anos desta política foi sistematizado e institucionalizado, possibilitando a
elaboração de parâmetros e protocolos de ação testados empiricamente reiteradas vezes. Este
será o enfoque da presente seção.
Vale destacar inicialmente também que o Brasil dispõe da mais antiga e provavelmente
a mais avançada política para PIIRC da América do Sul. De acordo com Yamada e Amorim
(2016, p. 46), embora outros países sul-americanos, especialmente o Peru e a Colômbia, estejam
avançando nesta área, “o desenvolvimento de uma política pública de proteção – considerando
o respeito ao isolamento – é relativamente recente”. Estes autores afirmam que “no Peru, apesar
de existir uma estrutura normativa diferenciada, são reportadas dificuldades na implementação
de prática em campo, que resultem na efetivação da política pública a contento” (idem).
Destacam ainda que “Bolívia e Equador são os únicos países com garantias constitucionais
específicas relacionadas aos direitos dos povos indígenas isolados”, embora a Bolívia não
disponha de “práticas sistemáticas em campo” (idem).
No Brasil, de acordo com Yamada e Amorim (2016, p. 45-46), “esta metodologia, em
contínuo desenvolvimento, hoje considera como etapas de trabalho”:
a) pesquisa/qualificação bibliográfica/documental; b) coleta e sistematização
de relatos de terceiros; c) análise de dados cartográficos e geoprocessamento,
d) sobrevoos, e e) expedições em campo. Geralmente, a etapa da expedição
em campo é o desdobramento final de um processo anterior de planejamento
e qualificação de informações sobre a presença de isolados em determinada
região. Essas etapas anteriores direcionam as estratégias do processo de
expedição em campo. (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 45-46).
De acordo com Vaz (2013, p. 60) o uso das geotecnologias como sensoriamento remoto,
sistemas de informação geográfica (SIG), cartografia digital, sistema de posicionamento global
(GPS), entre outros, tem se mostrado muito eficiente e facilitador de obtenção de informações.
Entretanto, vale lembrar que após a mudança do paradigma de proteção aos povos em
isolamento, iniciada em 1987, “ainda restavam dúvidas sobre como efetivar, na prática, as
novas diretrizes: como fundamentar, por exemplo, a delimitação de terras indígenas para povos
244
244
ou grupos indígenas isolados sem estabelecer qualquer tipo de contato?” (AMORIM, 2016, p.
27). Assim, segundo Yamada e Amorim (2016, p. 46, grifo do autor) “a elaboração desta
metodologia se iniciou com a experiência da Equipe de Localização Guaporé”, coordenada por
Antenor Vaz. Esta experiência destaca-se por ter realizado, “pela primeira vez na história, a
identificação, demarcação e regularização de uma Terra Indígena (TI) de usufruto exclusivo de
um povo isolado (TI Massaco, em Rondônia), sem que nenhum contato fosse estabelecido”
(idem). De acordo com Amorim (2016, p. 26):
No final da década de 1980, o estado de Rondônia passava por um período de
vertiginoso desenvolvimento econômico. O projeto oficial de colonização
estava a pleno vapor, programas estatais financiados pelo Banco Mundial
tentavam ordenar a ocupação, e ao mesmo tempo em que se promovia a
colonização de extensas áreas e se implementavam obras de
infraestrutura, o desmatamento disparava. Nessa época havia uma equipe
da Funai (Equipe de Localização Guaporé) que atuava na localização de
grupos indígenas isolados em Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia,
no interior da Reserva Biológica (REBIO) Guaporé, que estava
completamente invadida por madeireiros, enquanto que simultaneamente
ocorriam inúmeras investidas de grileiros e posseiros. (AMORIM, 2016, p.
26, grifo nosso).
Neste contexto, segundo Amorim (2016, p. 26) a equipe de localização realizou
constantes expedições, “coletando e sistematizando todos os vestígios dos isolados que
encontravam, sem realizar, no entanto, qualquer tipo de contato”. Entre estes vestígios, foram
encontrados “restos de alimentos, cultura material, caminhos, uma série de elementos que
reunidos (registrados e sistematizados), configuravam as características socioculturais e as
dinâmicas de uso territorial desse povo indígena isolado” (idem). Assim, a partir da situação
descrita por este autor, podemos identificar a manifestação empírica das características
atribuídas ao conceito de isolamento voluntário:
havia fortes indícios da presença de um grupo ainda isolado nessa região, fato
posteriormente confirmado por meio do trabalho de campo dessa equipe. O
povo indígena isolado da região vivia em constante processo de fuga,
rechaçando as tentativas de contato. Para se defender, costumavam
colocar centenas de armadilhas (estrepes) nas estradas utilizadas por
madeireiros e nos caminhos utilizados por invasores, clara manifestação
de rejeição à presença dessas pessoas e à invasão de seus territórios (idem,
grifo nosso).
Deste modo, mediante a persistência e o trabalho minucioso dessa equipe culminaram
“na demarcação da primeira terra indígena para usufruto exclusivo de um povo indígena isolado
(TI Massaco) e na retirada de todos os invasores da região. O povo isolado dessa região
mantém-se, até hoje, em situação de isolamento” (AMORIM, 2016, p. 27). Assim:
245
245
A equipe de localização Guaporé provou ser possível, em campo – através de
uma metodologia criteriosa – proteger um povo indígena isolado sem a
necessidade do contato. Posteriormente, a mesma metodologia foi aplicada
para a regularização de outros territórios ocupados por povos indígenas
isolados, tal como a Terra Indígena Himerimã, na bacia do rio Purus; e
Kawahiva do rio Pardo, localizada no noroeste do Mato Grosso. (AMORIM,
2016, p. 27).
A experiência adquirida e o sucesso na efetiva demarcação da TI Massaco sem haver
realizado o contato com os índios isolados, certamente tiverem contribuições decisivas para o
fortalecimento político e institucional da nova política indigenista. De acordo com Amorim
(2016, p. 27) as metodologias desenvolvidas e aprimoradas desde então se baseiam atualmente
em um “fluxo processual que envolve a pesquisa documental, qualificação de relatos de
terceiros, as expedições em campo, sobrevoos, análises de satélite, entre outros métodos”. A
partir destas etapas, é construído um acervo de dados georreferenciados sobre “as dinâmicas de
uso e ocupação e características socioculturais desses povos, sem a necessidade de intervenções
de contato” (idem).
Segundo Vaz (2011, p. 16), as informações sobre a presença de isolados em uma dada
região “provêm de distintas fontes e referem-se a avistamentos, conflitos, vestígios diversos ou
mesmo localização de aldeias avistadas em sobrevoos”. A partir da literatura sobre o tema,
podemos acrescentar a estas fontes o seguinte: encontros entre etnias isoladas e etnias
contatadas, histórico de conflitos entre etnias ou com habitantes não-indígenas do entorno,
avistamentos ocasionais em campo ou por sobrevoos, localização de vestígios diversos que
indiquem a presença dos índios isolados (acampamentos, armadilhas, roças, restos de fogueiras
e de alimentação, etc.) e localização de aldeias por sobrevoos. (VAZ, 2011, p. 16).
Segundo Vaz (2013, p. 61) “de acordo com o contexto e as fases de cada referência, a
FPE define um plano de ações”:
Antes de iniciar o trabalho de localização em campo é preciso que seja
realizado o levantamento das referências da região, o qual deve levar em
consideração os seguintes aspectos: a) Etno-história; b) Complexo cultural da
região; c) Complexo linguístico; d) Cultura material; e) Mapas, imagens de
satélite e outros; f) Levantamento da ocupação por não índios; g) Frentes
econômicas (extrativismo, empreendimentos públicos e privados). Coletar
informações acerca da história da relação entre índios e não índios da região.
O levantamento dos dados anteriores leva aos informantes regionais ou
indígenas. Assim, faz-se necessário procurar essas fontes primárias para a
confirmação ou o refutamento de tais informações (VAZ, 2013, p. 61).
Ainda de acordo com este autor:
O trabalho desenvolvido na fase da localização e ou monitoramento possibilita
compor o quadro das condições objetivas a que o grupo isolado esta
submetido. O avanço das fronteiras econômicas e missionárias, nas regiões
246
246
onde existem índios isolados, obriga as FPEs a acelerarem os levantamentos
sobre a localização desses grupos indígenas. Assim, e possível criar uma
barreira e proteger os índios isolados ou de recente contato e seu habitat dos
impactos causados pelos segmentos despreparados para o contato
(missionários, madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, grileiros, caçadores,
pescadores, grandes projetos, etc.) (VAZ, 2013, p. 63).
Assim, em conformidade com o princípio do não-contato, todas as etapas de trabalho
são realizadas de modo a evitar sistematicamente o estabelecimento de contato com os grupos
indígenas.
As expedições são constituídas por extenuantes caminhadas na mata,
geralmente em regiões de difícil acesso e têm o objetivo de localizar, registrar
e sistematizar vestígios e indícios da presença de grupos ou povos isolados em
determinada região. Nos casos dos povos ou grupos cuja a presença é
confirmada, são realizadas expedições de monitoramento e atualização dos
dados sobre sua presença. Esse trabalho contínuo, criterioso, fundamenta o
conhecimento oficial da presença de povos indígenas isolados no Brasil.
(AMORIM, 2016, p. 27).
Freire (2005, p. 120) demonstra que as extensas “observações de ordem prática relativas
à organização, implantação e execução das atividades das expedições:
É extremamente minucioso o roteiro de uma expedição, envolvendo o
detalhamento dos equipamentos gerais (motores, etc.) e individuais
(uniformes, etc.), o material geral de acampamento (lonas, etc.), as
construções (dimensões, etc.), segurança (na navegação, etc.), logística
(armazenamento, etc.), transporte (campo de pouso, etc.), radiocomunicação
(aparelhos portáteis, etc.), sobrevoos, cartografia, rumos e direções (bússola,
etc.), armas (uniformizar calibres, etc.), brindes (tipos, etc.), ferramentas para
acampamento (mecânica, etc.), artesanato (conservação, etc.), material básico
para pesca (anzol, etc.), escolha dos componentes da equipe (antecedentes dos
regionais, etc.), anotações diárias e o quantitativo das equipes (dimensão da
área, etc.). Inúmeros cuidados de saúde são necessários para que não seja
paralisada uma expedição (falta de medicamentos, prevenção de acidentes,
etc.), assim como é necessário não esquecer todos os itens que compõem o
equipamento individual numa expedição (bornal, armas, cantil, facas, etc.).
A etapa de expedição em campo, portanto, deve ser especialmente cautelosa, uma vez
que ela tem como objetivo o “a identificação e o registro (documental e audiovisual) de
vestígios de grupos isolados, comprovando sua presença e de dados sobre os processos de uso
e ocupação indígena do território” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 46). Uma das precauções
fundamentais é apontada por Vaz (2013, p. 60):
As ações em campo devem ser extremamente cautelosas e precedidas de
levantamentos que garantam que a região a ser expedicionada não esteja em
uso pelos isolados no momento da expedição, por isso como estratégia é de
fundamental importância que a equipe de localização compreenda as
247
247
dinâmicas de deslocamentos/ocupação sazonais156, tornando possível
expedicionar por regiões recentemente “abandonadas” sem que os molestem
ou nos percebam. Estas atividades possibilitam a obtenção de informações
recentes. Estes levantamentos de informações, acerca do grupo indígena
isolado, possibilitam mapear a malha de caminhos usados pelos indígenas para
seus deslocamentos entre aldeias, para regiões de caça e coleta (de alimentos
e matéria prima para confecção da cultura material), locais de roças, o que
leva a obter informações para a definição do seu território, etc. (VAZ, 2013,
p. 60, grifos do autor).
Portanto, há um conjunto de medidas que têm como objetivo não apenas verificar se de
fato existem povos indígenas isolados em uma determinada região, mas que também visam
tornar possível “o dimensionamento territorial e a identificação sociocultural dos grupos ou
povos indígenas isolados” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 45).
Com essa metodologia é possível identificar algumas estratégias de
organização social desses grupos em seus territórios, como por exemplo com
relação aos recursos naturais que utilizam considerando a distribuição desses
recursos em seus espaços. Tais dados e informações fundamentam ações de
proteção e regularização fundiária como o resguardo, por parte do Estado, dos
espaços, das relações e dos recursos ambientais imprescindíveis aos processos
de vida desses povos. Além disso, através dessa metodologia, é também
possível levantar dados sócio-culturais e demográficos sobre esses grupos.
(YAMADA; AMORIM, 2016, p. 46).
De acordo com Vaz (2013, p. 60) “uma vez desencadeado o trabalho de localização, já
é possível identificar os possíveis perigos ou fatores vulnerabilizantes a que o grupo indígena
isolado está exposto (se necessário aciona-se a equipe de vigilância)”. Deste modo, já se torna
possível iniciar “à distância o trabalho de monitoramento das informações coletadas, como por
exemplo: uso do solo para feitio de roças, uso de varadouros (malha viária), construção e
arquitetura de aldeias (números e aumento de tapiris ao longo dos anos), locais de caça,
ocupação territorial, usos de tecnologias próprias etc” (VAZ, 2013, p. 60). Neste campo as
atuais geotecnologias têm papel importante, e “os dados obtidos por meio do monitoramento
qualificam as informações obtidas no trabalho de localização, bem como apontam novas
compreensões acerca da cultura e cosmovisão do grupo isolado em questão, ao longo dos anos”.
(VAZ, 2013, p. 60).
Por sua vez, “o monitoramento [...] consiste em acompanhar, junto aos índios isolados
e recém-contatados, a dinâmica de ocupação territorial, densidade populacional etc., bem como
os possíveis riscos (diretos ou indiretos) a que o grupo está exposto”, e, “dessa forma é possível
avaliar se o trabalho da FPE está contribuindo para assegurar as condições necessárias para a
156 “De uma maneira geral, os grupos indígenas movimentam-se nos seus territórios, de acordo com duas estações climáticas
bem definidas, a saber: período chuvoso (em que regiões baixas ficam alagadas e, portanto, ocupam-se as áreas mais altas) e
período da estiagem (em que os grupos indígenas retornam às regiões baixas dos vales dos igarapés e rios)” (idem).
248
248
sobrevivência física e cultural do grupo indígena isolado ou recém-contatado” (VAZ, 2013, p.
60-61, grifos do autor).
Assim, resta analisar qual deve ser a metodologia de trabalho caso seja verificado que é
indispensável realizar o contato com determinado grupo indígena, visto que se encontram em
situação de extrema ameaça à sua sobrevivência: seja devido a invasões territoriais, com
diversos fins, seja devido à ação de missionários, ou devido à constatação de uma epidemia no
grupo indígena. Estar permanente preparada para um possível primeiro contato direto é uma
atribuição da CGIIRC também pelo fato de que a iniciativa do contato pode partir dos próprios
indígenas. É devido a todos estes motivos que a política dispõe de um Subsistema de contato.
Nas situações em que o contato ocorrer ou se fizer necessário, a equipe da CGIIRC deve ter
como prioridade todas as precauções e medidas voltadas para a dimensão da saúde dos
indígenas. Segundo Vaz (2013, p. 66):
As formas e motivações do contato são diversas, porém, e obrigação de uma
FPE estar preparada nos aspectos materiais (principalmente para fazer frente
às demandas de saúde) e possuir equipe experiente para agir diante de uma
das seguintes possibilidades: o grupo isolado decide-se por efetivar o contato,
seja com a equipe da frente de proteção seja com regionais, seja com indígenas
já contatados, ou com segmentos da frente expansionista, etc.; não indígenas
ou indígenas ja contatados promovem o contato forcado; ou o Estado decide
por induzir o contato, uma vez que o grupo isolado encontra-se exposto a uma
condição de risco irreversível, de tal modo que os coloca em situação iminente
de genocídio Diante dessas situações, o Estado deve ser acionado, por meio
das FPEs, de modo a mobilizar as equipes de contato para desencadear os
planos de contingência estabelecidos. (VAZ, 2013, p. 66).
De acordo com Freire (2005, p. 119), desde a instituição do primeiro Sistema de
Proteção ao Índio Isolado, “todos os subsistemas estabeleciam normas de saúde detalhadas,
com as respectivas competências, visando a proteção da saúde dos índios isolados, antes e após
os primeiros contatos”. Portanto, “as ações pertinentes ao contato pressupõem uma metodologia
diferenciada com equipes experientes no trato com grupos indígenas em situação de primeiros
contatos; equipe especializada em saúde com povos recém-contatados; pessoas com capacidade
de mobilidade e orientação na selva (mateiros157); comunicação (intérpretes); e toda uma
infraestrutura necessária a situações emergenciais” (VAZ, 2013, p. 66-67).
157 Pessoa experiente e com conhecimento em deslocamento e sobrevivência em selva.
249
249
4.3.2 Outros conceitos e princípios da política para isolados: Vulnerabilidades, Integridade
Territorial; Planos de Contingência; Autodeterminação;
Como vimos até aqui, o nível de complexidade e de vulnerabilidade dos povos indígenas
em situações de isolamento e de recente contato é bastante elevado. Em função disto, além de
todos os elementos já analisados, as políticas e ações direcionadas a estes povos devem observar
uma série de outros conceitos e princípios e apresentaremos brevemente a seguir. São eles:
vulnerabilidade; titularidade de direitos; autodeterminação; integridade territorial; saúde plena;
prevenção; emergência sanitária; plano de contingência; precaução; avaliação de danos;
mitigação; e políticas para o entorno.
Consideramos importante ressaltar como primeiro elemento a noção de
vulnerabilidade, visto que praticamente todos os outros conceitos e princípios decorrem dos
diferentes tipos e níveis de vulnerabilidade associadas aos PII
Vaz (2016, p. 10) resume o princípio da vulnerabilidade da seguinte maneira: “grau de
suscetibilidade das pessoas ou grupos a problemas e danos que ameaçam suas condições de
vida e que podem ser expressados nas dimensões sanitária e social”. De acordo com Dall’Orso
(2013, p. 07):
Los pueblos indígenas aislados se encuentran en un crítico estado de
vulnerabilidad por las siguientes razones: (i) la presión sobre sus territorios y
medios de supervivencia como resultado del avance de la frontera económica,
en especial por las actividades hidrocarburíferas, mineras y de extracción de
madera, ya sean legales o no; así como por proyectos de infraestructura y
frentes religiosos; (ii) el hecho de no poseer defensas contra enfermedades
contagiosas respiratorias y gastrointestinales de origen viral o bacteriano, por
lo cual el contacto diezma sus poblaciones y ha generado verdaderos
etnocidios en el pasado; (iii) por efecto de su aislamiento, el hecho de no poder
representarse a sí mismos en el caso de los pueblos indígenas aislados, el
hecho de desconocer los códigos político-culturales de la sociedad moderna,
poseyendo una especial inhabilidad de grupo de participar en la toma de las
decisiones que les afecta, como en el caso de los pueblos indígenas de contacto
inicial; (iv) la insuficiencia de instituciones u organizaciones, locales o
regionales, así como de los marcos legales y políticas públicas existentes para
su protección y la consecuente dificultad de implementar medidas que
garanticen su integridad física, cultural y territorial, coincidentes con un
desarrollo sustentable de inversiones en áreas aledañas a sus territorios
(DALL’ORSO, 2013, p. 07).
Neste contexto, a partir dos trabalhos de Amorim (2016, p. 30) e Castillo (2015, p. 19-
22), podemos identificar as principais vulnerabilidades que afetam os povos indígenas em
situações de isolamento e de recente contato. Destaca-se primeiramente a vulnerabilidade
250
250
imunológica, dada a carência ou inexistência de defesas em seus organismos contra várias
doenças infecciosas158 exógenas – disseminadas por não-indígenas. Como vimos anteriormente
(na seção 4.1.1), os contatos com pessoas, artefatos, ou roupas, podem ocasionar o contágio e
a expansão destas doenças pelo grupo, causando números significativos de mortes. Relacionam-
se a isto, as vulnerabilidades socioculturais e demográficas, dado o baixo contingente
populacional decorrente, sobretudo, das grandes taxas de mortalidade causadas pelo contato.
Por sua vez, a vulnerabilidade territorial se caracteriza pela contínua pressão da sociedade
nacional sobre áreas ocupadas por PIIRC. Dada a estreita relação desses povos com os recursos
naturais, a degradação de seus territórios e mesmo do entorno, afeta sua subsistência e suas
relações cosmológicas. Há ainda a vulnerabilidade política, relacionada ao isolamento
voluntário, dada a impossibilidade desses povos de reivindicarem seus direitos e demandas
através dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado.
A vulnerabilidade dos povos indígenas isolados ou de recente contato se
concretiza em diferentes perspectivas (Huertas 2015) i) a vulnerabilidade
epidemiológica, decorrente da inexistência de memória imunológica em seus
organismos para defesa contra determinadas doenças –tal como uma simples
gripe, por exemplo; ii) a vulnerabilidade demográfica que ocorre pela
fragilidade do contingente populacional, em consequência sobretudo das
grandes taxas de mortalidade decorrentes do contato; iii) a vulnerabilidade
territorial, pela contínua pressão da nossa sociedade sobre seus territórios e a
estreita relação desses povos com os recursos naturais e os aspectos
cosmológicos ali originados; iv) a vulnerabilidade política, que ocorre pela
impossibilidade desses povos se manifestarem através dos mecanismos de
representação comumente aceitos pelo Estado, tais como associações ou
assembleias, por exemplo (AMORIM, 2016, p. 30).
O princípio da titularidade de direitos, segundo Vaz e Balthazar (2013, p. 89), se
destina reconhecer “a condição de sujeitos de direito dos povos indígenas isolados e de recente
contato”. Neste sentido, entre os direitos que possuem os PII, tem importância central o direito
à autodeterminação. Para Vaz e Balthazar (2013, p. 90), o direito de autodeterminação, no caso
dos PII, implica no “respeito a suas estratégias de sobrevivência física e cultural, segundo seus
usos costumes e tradições, que pode compreender o isolamento e formas seletivas de contato e
convívio”.
Dentro do princípio da integralidade territorial está o que Vaz e Balthazar (2013, p.
90) chamaram de “Livre acesso, locomoção e usufruto de seus territórios”. Para os autores,
este princípio “contempla o direito dos indígenas de ir e vir em seu território livre de ameaças
que possam comprometer o provimento natural em seu habitat”. Relacionado ao princípio da
158 “Influenza A y B, parainfluenza 2 y 3, rotavirus, tos convulsiva y sarampo causan graves estragos a la salud ante la ausencia de defensas inmunológicas” (CASTILLO, 2015, p. 19).
251
251
integralidade territorial está a noção de saúde plena. De acordo com Vaz e Balthazar (2013, p.
90, grifo nosso), este princípio:
considera que a saúde física, psíquica e o bem estar social dos grupos
indígenas isolados e de recente contato estão diretamente relacionados ao
meio ambiente equilibrado, bem como às condições de saúde das
populações do entorno, das populações indígenas que compartilham o
território e das equipes que promovem a proteção desses grupos. Para
tanto é necessário um serviço especial de saúde adequado às condições
especiais e às fragilidades imunológicas dos grupos isolados e de recente
contato frente a doenças da sociedade envolvente;
Diretamente relacionada ao princípio de saúde plena, está a prevenção, que, segundo
Vaz (2016, p. 10) é um “conjunto de ações que visam evitar uma doença ou evitar seus fatores
causais. Tem por objetivo a promoção de saúde e proteção específica de indivíduos ou povos”.
Uma situação de emergência sanitária relaciona-se à ocorrência de surtos ou epidemias
que tenham ou possam ter efeitos sobre PII. Assim, a emergência sanitária pode ser
caracterizada, de acordo com Vaz (2016, p. 10), da seguinte forma:
evento extraordinário de uma doença ou uma ocorrência que cria um potencial
para doença e que requer uma resposta coordenada e eficaz. Para os PII, um
contato é considerado uma emergência em saúde pública de importância
nacional assim como os surtos ou epidemias de doenças infecto-contagiosas
em povos de recente contato (Decreto 7616 de 17/11/2011), pois estão
associados a uma alta taxa de mortalidade que compromete seriamente a saúde
e vida destes povos.
Assim, também segundo Vaz (2016, p. 10) um plano de contingência pode ser entendido
como um “Conjunto de medidas e procedimentos planejados a fim de mitigar os efeitos
negativos de um evento, como a alta mortalidade decorrente de surtos ou epidemias em um
povo de recente contato ou de uma situação de contato com indígenas em isolamento”. Portanto,
é importante observar, como ressalta Vaz (2016, p. 10), que “As estratégias de ação dos
profissionais de saúde junto aos PIRC e junto às populações que habitam o entorno das regiões
com presença de PII têm como fundamento, um conjunto de princípios e diretrizes”.
Deste modo, tendo em vista os princípios de vulnerabilidade, titularidade de direitos,
autodeterminação, integralidade territorial, saúde plena, emergência sanitária, plano de
contingência, toda e qualquer medida relacionada aos PII deve se guiar pelo princípio de
precaução. Para Vaz e Balthazar (2013, p. 90) este princípio representa uma “ação sem dano”
e “se refere à tomada de decisões públicas de forma oportuna e adequada, em situações onde a
informação disponível não é suficiente, incompleta ou confusa, o que obriga tomá-las para pré-
cautelar direitos”. Um exemplo que ajuda a compreender este princípio é o caso de uma região
na qual se tem informações não confirmadas sobre a existência de povos indígenas isolados.
252
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Surge então o projeto de um empreendimento com impactos sobre aquela região. De acordo
com o princípio da precaução, antes de emitir qualquer licença à realização deste
empreendimento, o Estado deve certificar-se da existência, ou não, de PII na referida região.
Em sentido semelhante ao do princípio da precaução, Vaz (2016, p. 10) destaca a noção
de avaliação de danos. De acordo com o autor, este princípio consiste na “identificação e
registro qualitativo e quantitativo da extensão, gravidade e localização dos efeitos daninhos
causados por processo natural ou antrópico. Inclui a avaliação de risco.”. O autor observa ainda
que “no caso dos PIIRC, a avaliação de danos deve levar em consideração a saúde das
comunidades que vivem em seu entorno”.
Nos casos em que tais efeitos daninhos causados por processos naturais ou antrópicos
não possam ser evitados, Vaz (2016, p. 10) sugere a importância do princípio de mitigação,
definido como a “redução dos efeitos de um evento negativo para a saúde individual ou coletiva,
através de medidas de prevenção específicas para diminuir a morbimortalidade”.
Por fim, em relação às políticas para o entorno, é preciso ressaltar que muitas
dinâmicas territoriais, econômicas, epidemiológicas, entre outras, podem ter efeito sobre os
territórios habitados por PII, e, assim, serem determinantes para as condições de vida e de
autodeterminação destes povos. Além do sempre danoso contato entre PII e não-índios,
conforme veremos mais detalhadamente no capítulo seguinte, existe um número significativo
de casos nos quais os territórios onde vivem povos indígenas isolados são compartilhados com
outras etnias indígenas já contatadas. Em algumas situações ocorrem, inclusive, conflitos
territoriais entre os PII e os povos indígenas contatados que compartilham uma determinada
região. E, mesmo em situações nas quais não existam relações previamente conflituosas, os
próprios deslocamentos tradicionais destes povos podem resultar em situações de contato, de
contágios, roubos de artefatos, rapto de mulheres, e, assim, são diversas as situações que podem
resultar em conflitos ou outros tipos de situações que apresentem riscos, via de regra maiores
para PII. Neste sentido, são abundantes os casos em que os povos indígenas de uma determinada
região querem “amansar” os índios isolados, ainda caracterizados como “brabos”.
Nesse sentido a elaboração e a execução de ações informativas e educacionais para as
populações de regiões do entorno de onde vivem PII é um complemento indispensável para as
políticas direcionadas aos PII. Cursos de capacitação para os agentes de saúde e servidores
públicos que possam vir a ter que lidar com situações emergenciais também são indispensáveis.
No Brasil já existem iniciativas neste sentido, de políticas para o entorno, desenvolvidas
inclusive com a participação de organizações da sociedade civil, a exemplo do Centro de
253
253
Trabalho Indigenista, na região do Vale do Javari. A integralidade da proteção aos PII passa,
necessariamente, pela elaboração e execução de políticas para o entorno de seus territórios.
4.3.3 A aplicação dos direitos de Consulta e Consentimento no caso dos PII;
Conforme verificamos no capítulo anterior, a Convenção nº 169 da OIT, de 1989,
ratificada pelo Brasil, estabeleceu que “os governos deverão: a) consultar os povos interessados,
por meio de procedimentos adequados [...] sempre que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. De modo complementar, estabeleceu
também que “as consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção
deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias” (OIT/169,
1989, grifo nosso). Com o desenvolvimento das interpretações e de jurisprudência sobre este
princípio, chegou-se à expressão do direito à “consulta livre, prévia e informada”.
Apesar de não ter a força jurídica da Convenção nº 169 da OIT, a Declaração da ONU
sobre Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), de 2007, foi além do estabelecimento da
consulta ao afirmar a necessidade de obtenção do “consentimento” dos povos indígenas. No
documento lê-se que:
Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas
interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu
consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar
medidas legislativas e administrativas que os afetem (UNDRIP, Art. 19,
2007, grifo nosso).
Neste sentido, de acordo com Yamada e Amorim (2016, p. 48):
um processo de consulta deve ocorrer antes da tomada de decisões que possam
afetar estes povos indígenas (Garzón, Yamada e Oliveira 2016), inclusive no
caso de “isolados”. A consulta é um processo que prevê um diálogo, ou uma
interação, de boa-fé do Estado com os povos indígenas afetados e, portanto,
deve ser adequadamente informado, livre de pressões e respeitoso com os
povos indígenas.
Com isto, todos os povos indígenas, inclusive os povos em situações de isolamento têm
o direito à consulta e ao consentimento, ou não, de modo livre, prévio e informado. Sendo
assim, surgem algumas questões pertinentes sobre como estes princípios se aplicam aos casos
de medidas legislativas, administrativas e de empreendimentos que possam ter efeitos diretos
e/ou indiretos sobre regiões com presença de povos indígenas em situações de isolamento.
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254
Este debate merece grande atenção, dada a sua importância, sua atualidade, sua relação
direta com as principais ameaças existentes aos PIIRC e o alto nível de vulnerabilidade destes
povos. Duprat (2014, p. 71), apesar de não estar abordando especificamente o tema dos PII,
levanta ainda um ponto de discussão indispensável, a saber, o de que “as categorias de
civilização e barbárie, volta e meia, são acionadas para classificar aqueles que estão a favor ou
contra “projetos de desenvolvimento”:
Ou tomam-se esses grupos, e seus integrantes, por frágeis, sofredores,
necessitados, dependentes, vulneráveis, que, mais do que tudo, devem ser
monetariamente satisfeitos. A consulta, então, transforma-se em análises de
custo-benefício, com cálculos grotescos colocando valores em vidas humanas.
Essas percepções, infelizmente, ainda estão presentes no inconsciente jurídico
brasileiro: parece quase natural que o pagamento seja uma saída para todos os
impasses, e o “progresso”, um imperativo das sociedades modernas. Contudo,
já é hora de prestar atenção às visões concorrentes de “desenvolvimento”,
“progresso” e “boa vida”. Elas existem, são muitas e não podem ser mais
banidas para as periferias dos debates (DUPRAT, 2014, p. 71).
De acordo com Amorim (2016, p. 32), “são incipientes os protocolos e normativas
existentes para estudo de viabilidade e impactos ambientais desses empreendimentos no caso
da presença de povos indígenas isolados”. Neste sentido, Yamada e Amorim (2016, p. 50)
questionam o seguinte:
Considerando que os grupos ou povos indígenas isolados não estabelecem
relações contínuas e constantes com a sociedade nacional, e as diretrizes
nacionais e internacionais de não imposição do contato, como ocorreria o
processo de consulta do Estado junto a esses povos? (YAMADA; AMORIM,
2016, p. 50).
Podemos explorar mais detalhadamente esta questão, das seguintes maneiras: de acordo
com as leis e a política indigenista vigentes, é possível realizar consultas aos PII? Quais
elementos devem ser observados, verificada a necessidade de dar respostas aos
empreendimentos que, por ventura, considerem realizar processos de consulta sobre regiões
com presença de PII? A partir dos conhecimentos disponíveis atualmente, o que se poderia
esperar/traduzir como expressão de vontades destes povos?
O dever de consultar os povos indígenas aplica-se sempre que uma decisão do
Estado possa afetar os povos indígenas em maneiras que não são percebidas
pela sociedade em geral (ANAYA 2013). Isso porque, a consulta e
participação nos termos previstos pela Convenção 169 da OIT auxiliam os
Estados a efetivamente respeitar os povos indígenas na sua diversidade,
inclusive a partir de sua visão de organização e desenvolvimento. Esse
tratado internacional exige que os Estados conheçam e considerem os
pontos de vistas, os valores, os entendimentos e as regras dos diferentes
povos indígenas, sobre diferentes assuntos (YAMADA; AMORIM, 2016,
p. 48, grifo nosso).
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Sendo assim, as respostas para tais questões são baseadas em um raciocínio lógico e
fundamentado. De acordo com Yamada e Amorim (2016, p. 41) nos casos que envolvem PII
“exige-se um rol de ações estatais protetivas orientadas pela expressão de vontades desses
povos”. Ainda segundo estes autores, “no Brasil, a metodologia de trabalho desenvolvida pela
Funai tem permitido identificar e qualificar tais expressões de vontades para fazer avançar a
proteção de direitos de povos indígenas isolados” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 41).
a decisão do isolamento constitui manifestação expressa de sua autonomia e
de suas vontades. Evidências dessa manifestação, materializadas através de
vestígios que deixam (armadilhas, tapagens, acampamentos, entre outros), são
coletadas e sistematizadas por equipes da Funai, seguindo a metodologia
estabelecida (AMORIM, 2016, p. 32, grifo nosso).
A questão a ser ressaltada, como já vimos anteriormente, é a seguinte: “no outro lado da
divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência
epistêmica da lei e educação imperialistas, [...] pode o subalterno falar?” (SPIVAK, 2010, p.
54). De acordo com Yamada e Amorim (2016, p. 51), “para os povos indígenas, inclusive os
isolados, [...] as relações e trocas sociais que se estabelecem ao longo de suas histórias são
formadoras de identidades e fundamentam visões de mundo”. Podemos, assim, identificar que
a recusa em estabelecer relações e a adoção de estratégias de isolamento configuram uma
“expressão de vontades desses povos”, expressão que “a metodologia de trabalho desenvolvida
pela FUNAI tem permitido identificar e qualificar” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 41). Neste
sentido “o que ocorre, não é simplesmente uma decisão de não relação, mas estratégias
conscientes, que se originam a partir de relações com o outro” (YAMADA; AMORIM, 2016,
p. 52).
Nesses casos, os “isolados” nos transmitem mensagens, que podemos
traduzir ou compreender - dentro das limitações colocadas pelos nossos
próprios códigos - como manifestações de autonomia no que diz respeito
a seus direitos territoriais e sobre os recursos naturais de que prescindem.
Conclui-se, assim, e a partir de observação de casos concretos, que as
estratégias de “isolamento” são melhor traduzidas como estratégias de
relação, do que como de não relação. (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 52).
Portanto, no caso de regiões com presença comprovada de povos indígenas em situações
de isolamento, devemos considerar o seguinte: primeiro, conforme estipula a política pública
brasileira e os documentos internacionais sobre o assunto, deve-se respeitar os princípios do
não-contato e do direito ao isolamento. Como vimos há pouco, a realização procedimentos de
consulta não está entre as situação de exceção nas quais pode ser estabelecido um contato com
PII. As únicas situações que justificam a busca pelo contato com os PII são as situações de
emergência sanitária ou social.
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As especificidades destes povos ou grupos apontam que o próprio contato
forçado coloca em risco a vida e a autonomia desses povos. Portanto, não seria
possível a imposição, por parte do Estado, de um processo de consulta
“padrão”, ou que não respeite essa maior especificidade dos isolados.
Exatamente por estarem particularmente vulneráveis a situações extremas de
violação de direitos humanos fundamentais – incluindo-se o risco de
genocídio – é necessário que o Estado observe com cautela ainda maior os
modos e estratégias de vida destes povos antes da tomada de qualquer decisão
que os possam afetar. [...] No caso dos povos ou grupos indígenas isolados, a
releitura do direito de consulta não deve implicar contradição com o respeito
à estratégia de isolamento destes povos. Afinal, o que se busca com o direito
de consulta livre, prévia e informada não são meras reuniões, distribuição de
materiais informativos, conversas e atas. Busca-se, acima de tudo, o
reconhecimento da presença indígena em áreas afetadas por medidas
governamentais e o efetivo respeito por parte do Estado aos modos e planos
de vidas, às culturas e cosmologias indígenas sobre os quais, em geral, pouco
se sabe. (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 50-51).
Segundo, no caso dos PII, especialmente naqueles casos em que se identifica a situação
de isolamento voluntário, ou seja, de recusa explícita ao contato, pode-se considerar que a
consulta já está plenamente realizada. Ou seja, se os PII ou PIIV recusam qualquer tipo de
contato, é imponderável considerar a possibilidade de um consentimento na hipótese, inviável,
de se realizar um procedimento de consulta.
Tal medida [a Consulta] visa garantir que não se imponham situações de
violação de direitos fundamentais e evitar a desproporcionalidade da medida
a ser adotada pelo Estado frente aos impactos sobre direitos indígenas
específicos (ANAYA 2013). Essa exigência garante coerência entre a
observância do direito de consulta, a garantia dos direitos substanciais e o
respeito à autonomia ou autodeterminação dos povos indígenas. Nesse
sentido, situações em que os povos indígenas se recusam a ser consultados
também devem ser consideradas pelo Estado nos processos de tomada de
decisão. Trata-se, em geral, da manifestação do não-consentimento dos
povos indígenas afetados e, muitas vezes, revelam a desproporcionalidade
da magnitude dos impactos sobre direitos indígenas (ANAYA 2013).
(YAMADA; AMORIM, 2016, p. 49, grifos nossos).
Associado a estes fatores convém lembrar que a consulta é um procedimento que deveria
ser realizado antes do início de qualquer atividade que possa produzir efeitos danosos a
quaisquer povos. Neste sentido, ainda de acordo com Amorim (2016, p. 32), o ideal seria que,
“ao planejar os empreendimentos, o Estado deveria investir em estudos e expedições sobre a
presença de povos indígenas isolados previamente ao atestado de viabilidade ambiental da
obra”, ou seja, “antes da emissão da licença prévia”
Isso deveria ocorrer sobretudo nos casos em que não se dispõe de um acervo
de dados suficiente para exposições assertivas sobre as dinâmicas de ocupação
desses grupos ou povos, portanto gerando incertezas sobre os impactos do
empreendimento. Caso esses estudos prévios apontem a inviabilidade do
projeto, no que diz respeito às garantias dos direitos dos povos isolados, esses
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257
projetos deveriam ser imediatamente suspensos e/ou
readequados/redimensionados (AMORIM, 2016, p. 32).
Entretanto, a própria complexidade e o tempo necessário para estes estudos prévios já
indicam uma incompatibilidade com os prazos e procedimentos dos empreendimentos
econômicos. Vaz (2013, p. 59) observa que “o trabalho de localização é lento, não menos que
três anos por referência, e exige equipe especializada”. No mesmo sentido, Amorim (2016, p.
32-33) afirma que:
A criteriosa metodologia da Funai, de localização e pesquisa de campo sobre
a presença de isolados e compreensão ‘(...) das relações socioecológicas que
os grupos indígenas em foco mantém com o seu território(...)’ demandam, por
vezes, anos de trabalho, não se adequando, portanto, aos cronogramas das
obras”.
Os Estados têm deveres nacionais e compromissos internacionais, inscritos na
Convenção 169 da OIT, nas Declarações da ONU e da OEA, nas Diretrizes e Recomendações
do ACNUDH e da CIDH para o respeito dos direitos humanos dos PIACI, de respeitar e
proteger direitos fundamentais dos povos indígenas. Entre estes direitos estão o direito à
consulta e ao consentimento, associados ao direito às terras e recursos naturais necessários para
a vida e a reprodução física e cultural, e, portanto, ao direito de não serem removidos de suas
terras tradicionalmente ocupadas. (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 49-50).
Fundamentalmente, é necessário que ao reconhecer e garantir a autonomia de
povos e grupos “isolados” também se permita a influência destes povos nas
tomadas de decisões estatais que os afetem. Isso deve se dar por meio da
compreensão sobre suas formas de expressão e de vidas diferenciadas
(YAMADA; AMORIM, 2016, p. 50).
Portanto, a “manifestação clara dos povos ou grupos indígenas isolados de não aceitação
de relações intensas ou constantes com seu entorno” (YAMADA; AMORIM, 2016, p. 44)
oferece as respostas que são objeto dos procedimentos de consulta.
Considerando que as estratégias de controle de relações (ou de isolamento)
desenvolvidas pelos grupos isolados ocorrem a partir de decisões
fundamentadas, por lógicas ou motivações que não necessariamente
compreendemos, mas que visam diminuir seu grau de vulnerabilidade e
manter suas formas próprias de vida, podemos inferir que povos isolados
expressam sua autonomia pela opção do isolamento. Ao fazerem isso, revelam
ao Estado seu não consentimento, pelo menos, quanto ao: (a)
desencadeamento de processos forçados de contato; e (b) quanto à ações que
acarretam na degradação ou destruição ambiental de seus territórios.
(YAMADA; AMORIM, 2016, p. 58-59).
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258
5 POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: O SEXTO
SÉCULO DE GENOCÍDIOS E DIÁSPORAS INDÍGENAS
Vimos nos capítulos anteriores que o direito dos povos indígenas de permanecerem em
isolamento em seus territórios, encontra-se reconhecido no nível nacional brasileiro e
reafirmado no nível internacional. Também vimos que o Brasil dispõe há 30 anos de uma
política pública específica para realizar a proteção destes povos e a demarcação de suas terras.
Neste último capítulo buscamos aprofundar o conhecimento específico sobre as características
e a situação contemporânea dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia
brasileira. Em seguida, a fim de complementar a análise da hipótese desta pesquisa, resta-nos
estudar quais são os fatores que ameaçam a sobrevivência e a autodeterminação destes povos e
como estas ameaças persistem na sociedade e no cenário política brasileiro.
Para isto, iniciamos o capítulo pelo estudo das características e denominações atribuídas
aos povos indígenas em situações de isolamento, com atenção especial às situações de
isolamento voluntário e de recente contato, ou contato inicial, que são os termos mais utilizados
no Brasil e internacionalmente. Em seguida, faz-se uma apresentação do panorama atual dos
PIIRC presentes no Brasil, a partir do mapa e da lista de registros fornecidos pela FUNAI
(2017), com informações oficiais e atualizadas sobre as etnias, línguas, localização, situação
territorial e estimativa de população de alguns povos. Vale destacar que este panorama não foi
elaborado apenas com informações oficiais, mas também com base em análises do cenário feitas
principalmente por Vaz (2013b, 2016, 2017), Amorim (2016) e Ribeiro e Amorim (2017).
Destaca-se deste panorama que os PIIRC habitam majoritariamente em regiões que
denominamos como refúgios amazônicos, ou seja, concentram-se em regiões de fronteira
nacional e nas regiões de fronteira representadas pelas terras indígenas já demarcadas.
Traçado este panorama, realizamos uma análise dos principais fatores que, com a
conivência e/ou o incentivo do Estado-Nação, ameaçam a sobrevivência e a autodeterminação
259
259
destes povos, entre os quais destacam-se: o desflorestamento; a expansão das fronteiras
agropecuárias; as obras de infraestrutura; e, a mineração. Neste sentido, considerou-se
necessário realizar um breve estudo da temática indígena na sociedade brasileira e no cenário
político nacional, tendo como componentes: uma análise da capacidade institucional da
FUNAI/CGIIRC; a proteção de PIIRC no Brasil no século XXI, e as Cartas-denúncia dos
Coordenadores de FPE e sertanistas (2013,2015,2017) sobre a situação político-orçamentária
da política específica para PII. O capítulo termina com a apresentação de dois casos recentes de
contatos e de situações de risco envolvendo PII, que demonstram a continuidade e o aumento
das pressões territoriais sobre os últimos refúgios amazônicos.
5.1 Povos Indígenas em situações de isolamento: denominações e características;
Conforme apontado na introdução desta pesquisa, o Alto Comissariado das Nações
Unidas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirmam existir aproximadamente
200 grupos indígenas em situações de isolamento na América do Sul, estimados em um total
de 10.000 indivíduos (EACNUDH, 2012, p. 5; CIDH, 2013, p. 7). Importante observar que os
termos “povos” e “grupos” indígenas em situações de isolamento possuem conotações
diferentes. Verifica-se que um mesmo povo/etnia pode conter mais de um grupo em situações
de isolamento, em regiões diferentes. Deste modo, quando se pretende fazer referência à
categoria geral dos indígenas em isolamento e recente contato, é utilizado o termo “povos”, e,
quando se faz referência a uma característica ou a um caso específico, é utilizado o termo
“grupo”.
De acordo com Amorim (2016, p. 21), “o fenômeno do ‘isolamento’ ocorre, sobretudo,
na região amazônica, em regiões de difícil acesso, em função de suas características
geopolíticas e ambientais”. Entretanto, há alguns poucos registros também no Cerrado
brasileiro e na região denominada como “Chaco Boreal”, localizado entre o norte do Paraguai
e o sul da Bolívia. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2017) afirma que o Estado brasileiro
reconhece a existência de 103 registros de povos indígenas em isolamento, sendo 26 com
presença confirmada, 26 registros em estudo, e 51 registros de informações que ainda não foram
verificadas. Dentre os 103 registros, 29 estão localizados fora de terras indígenas demarcadas,
dos quais 1 registro é confirmado, 10 estão em estudo, e 17 informações não verificadas. Além
260
260
destes grupos em isolamento, a FUNAI (2017) também reconhece a existência de 18 grupos
indígenas considerados de recente contato.
Conforme apontado na introdução desta pesquisa, o conceito genérico de “índios
isolados” não expressa a complexidade e a diversidade de situações existentes. É possível
encontrar múltiplas denominações para estes povos, tais como: povos “não contatados”; povos
“livres”, “autônomos”, “independentes”; povos “hostis”, “arredios”; “brabos”; “caceteiros”;
povos “sem contato permanente”; “com contatos esporádicos”; “de contato seletivo”; “em
situação de quebra de isolamento”; “em situação de isolamento e risco”; “em isolamento
voluntário”; “recém-contatados”; e, povos “em contato inicial”.
Entretanto, segundo Vaz (2011, p. 17, grifo do autor), “diante da falta de consenso
acadêmico, ou mesmo de um termo que represente a diversidade de cada uma dessas categorias,
o pragmatismo do órgão indigenista oficial decide usar o termo índios isolados”. Neste sentido,
e de acordo com a FUNAI (2016, n.p.), os povos isolados são “grupos indígenas com ausência
de relações permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca frequência de interação,
seja com não-índios, seja com outros povos indígenas”.
Além da ausência de um termo mais representativo, outro motivo que favorece a
permanência do termo “índio isolado” é a tendência existente de pensar estes índios a partir de
uma perspectiva romântica, com espanto e desconfiança sobre sua real existência.
Nesse sentido, “índio isolado” é tido pelo senso comum como exemplo de “índio
puro”, de índio que vive no interior da floresta, longe de tudo aquilo que significa
progresso, desenvolvimento, evolução, civilização, etc., de preferência nu, com pena
de arara no nariz, morando em casas comunais, convivendo em sua intimidade com
animais selvagens domesticados, reunidos em agrupamentos sem qualquer tipo de
organização social, não sujeitos a nenhuma forma de ordenamento político e jurídico,
com todos os estereótipos que demarcam a distância entre “natureza” e “cultura”
(NEVES, 2011, p. 48).
Qual é, então, o contraponto à visão do índio isolado como um ser humano exótico e
selvagem? O que e quem são os povos indígenas isolados? Com o objetivo de superar
concepções simplistas e superficiais, nas próximas três seções buscaremos aprofundar o
conhecimento sobre os distintos conceitos e denominações que são atribuídos a estes povos,
visto que o termo genérico “índios isolados” é utilizado para fazer referência a povos de várias
etnias, com distintos históricos de contatos e conflitos, e vivendo em diferentes situações
perante à sociedade envolvente. Assim, pretendemos enfatizar a dimensão relacional que é
intrínseca ao isolamento. Afinal, não é possível estar isolado de tudo, ou de nada, o isolamento
é sempre em relação a alguém e/ou a alguma coisa.
261
261
5.1.1 O isolamento voluntário e a questão da intencionalidade do isolamento;
Os povos isolados optaram, em algum momento de sua história, pelas
estratégias de ‘isolamento’, fundamentadas seja por experiências de contato
traumáticas que ocorreram no passado, ou por outros processos decisórios
internos que visam, sobretudo, diminuir seu grau de vulnerabilidade por meio
de um maior controle, ou seletividade, de relações que estabelecem com
outros agentes. Ao expressarem sua autodeterminação por meio dessa decisão,
esses povos manifestam a necessidade de disporem de um território
preservado, sendo muitas vezes um dos motivos [pelos quais] reagem
energicamente a qualquer intervenção em seus territórios (exploração de
madeira, mineração, entre outras). Portanto, são decisões legítimas, cujo
reconhecimento deve ser garantido tanto por práticas em campo quanto por
marcos legais (AMORIM, 2016, p. 21).
Como vimos anteriormente, desde os primeiros contatos – diretos e indiretos –, os
processos de colonização e de expansão da sociedade nacional resultaram, para os povos
indígenas, em epidemias, drásticas perdas populacionais, violências e extermínios, exploração
e escravização, esbulho territorial e transformações socioculturais com intensidades e sentidos
variados, além do desaparecimento de incontáveis etnias, línguas e cosmologias. Ao longo
destes processos, os povos indígenas elaboraram seus próprios conhecimentos e cosmologias
sobre o contato, compartilhando-os entre suas gerações e entre diferentes etnias, através de suas
redes interétnicas de relacionamentos e de trocas socioculturais159.
Cientes das consequências sistemáticas do contato, determinados grupos indígenas
adotaram comportamentos e estratégias para evitar o estabelecimento de relações com o
“homem branco”. Há casos em que os grupos em isolamento evitam relações inclusive com
outros grupos indígenas. Segundo Amorim (2016, p. 20) “trata-se de condição peculiar a uma
grande diversidade de povos indígenas: a decisão de manter alto grau de controle (e autonomia)
sobre as relações que estabelecem com outras pessoas (ou sociedades) exógenas às suas”. De
acordo com Vaz e Balthazar (2013, p. 85, grifo nosso):
A decisão de isolamento é manifestada por atos de resistência com armas, com
armadilhas, símbolos e sinais de advertência e de ameaça dirigidos a
invasores, mas principalmente, pela fuga sistemática em direção a
territórios cada vez mais distantes das frentes de expansão da “civilização
ocidental”, onde tentam manter suas formas tradicionais de reprodução social
e material. Territórios cada vez mais escassos e submetidos à avidez e à
velocidade com que nesse início de milênio cada centímetro de terra é
mapeado, “georreferenciado” e demarcado para a completa conversão da
159 Sobre este aspecto é indispensável a obra de Bruce Albert e Alcida Ramos (2002): Pacificando o branco:
cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado.
262
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“natureza” em “recursos naturais”. [...] Lugares onde eles resistem, e teimam
em existir.
Assim, é importante ressaltar que a denominação do isolamento voluntário tem como
objetivo reconhecer os povos indígenas enquanto sujeitos históricos. Como vimos ao longo
desta pesquisa, o fato de terem tenha sido vítimas de diversas atrocidades, não retira dos povos
indígenas a sua condição de sujeitos, que se manifesta tanto quando eles decidem estabelecer
e/ou manter contatos com a sociedade envolvente, quanto nas situações em que decidem evitar
ou selecionar estes contatos, como veremos mais adiante. De acordo com Cunha (2002, p. 07):
Por várias vezes, em lugares e momentos diferentes, grupos indígenas
declararam ter “pacificado os brancos”, arrogando para si a posição de sujeitos
e não de vítimas. “Pacificar os brancos” significa várias coisas: situá-los, aos
brancos e aos seus objetos, numa visão de mundo, esvaziá-los de sua
agressividade, de sua malignidade, de sua letalidade, domesticá-los, em suma;
mas também entrar em novas relações com eles e reproduzir-se como
sociedade, desta vez não contra, e sim através deles, recrutá-los em suma para
sua própria continuidade.
Portanto, o isolamento reflete uma estratégia destes grupos indígenas em defesa de sua
sobrevivência e de sua autodeterminação. De acordo com o ACNUDH (2012, p. 05, grifos
nossos), no documento intitulado “Directrices de Protección para los Pueblos Indígenas en
Aislamiento y en contacto inicial de la región Amazónica y el Gran Chaco”, estes povos podem
ser assim definidos:
Los pueblos en aislamiento son pueblos o segmentos de pueblos indígenas que
no mantienen contactos regulares con la población mayoritaria, y que además
suelen rehuir todo tipo de contacto con personas ajenas a su grupo. También
pueden ser grupos pertenecientes a diversos pueblos ya contactados que tras
una relación intermitente con las sociedades envolventes deciden volver a
una situación de aislamiento como estrategia de supervivencia y rompen
voluntariamente todas las relaciones que pudieran tener con dichas
sociedades. En su mayoría, los pueblos aislados viven en bosques tropicales
y/o zonas de difícil acceso no transitadas, lugares que muy a menudo cuentan
con grandes recursos naturales.
Na perspectiva adotada pelo ACNUDH (2012, p. 05) destaca-se que: “Para estos
pueblos el aislamiento no ha sido una opción voluntaria sino una estrategia de supervivencia”
(ACNUDH, 2012, p. 05). Sobre este assunto, o CIMI (2013, p. 115) afirma que:
Esta opção normalmente está associada a experiências traumáticas de encontros,
protagonizados ou não por eles, com os agentes das frentes econômicas das sociedades
nacionais. Encontros marcados pela violência dos massacres, das epidemias, da
invasão de seus territórios e da depredação de suas fontes de alimento e de seus
referenciais simbólicos. Revela, por outro lado, uma enorme capacidade de luta e
resistência desses povos, para manter, mesmo em situações muito adversas, a sua
autonomia e para suprir suas necessidades materiais, espirituais e de vida em
sociedade.
263
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Entretanto, a CIDH (2013, p. 04) adota o termo “pueblos indígenas en situación de
aislamiento voluntário”, acrescentando que:
La CIDH toma nota que el uso del término “voluntario” para calificar el
aislamiento de estos pueblos indígenas ha sido cuestionado con el argumento
de que minimiza el hecho de que la decisión de permanecer en o volver al
aislamiento en realidad obedece a las presiones de la sociedad envolvente
sobre sus territorios, y no un ejercicio libre de su voluntad. Este informe
utiliza el término “voluntario” para realzar la importancia del derecho a la
autodeterminación, ya que aun si la decisión de permanecer en aislamiento
es una estrategia de supervivencia resultado en parte de presiones externas,
ésta es una expresión de autonomía de estos pueblos en tanto sujetos de
derecho, y como tal debe ser respetada (CIDH, 2013, p. 4, grifo nosso).
Neste sentido, através do estudo da literatura específica e dos documentos institucionais
sobre o tema PII é possível identificar três estratégias de isolamento e/ou de controle de relações
adotadas por estes povos: 1) a fuga floresta adentro, deixando sinais de advertência aos
invasores, quando percebem alguma aproximação ou quando ocorrem encontros inesperados;
2) a reação violenta quando um contato indesejado ocorre de maneira forçada ou se torna
inevitável – o que explica as denominações dos isolados historicamente como índios agressivos
(“brabos”, “arredios”, etc.); e, 3) a camuflagem dentro de um determinado território, o que pode
ocorrer quando há a demarcação de uma terra indígena ou quando o território tradicional do
grupo se transformou em resquícios ou ilhas de floresta.
Segundo Yamada e Amorim (2016, p. 52):
Podemos afirmar que existe uma diversidade de formas e de gradações que
nos ajudam a traduzir muitos tipos de relações que os isolados estabelecem
com relação à nossa sociedade, e que denominamos de estratégias de
“isolamento”. Há casos em que esses grupos ou povos evitam constantemente
qualquer tipo de contato, sendo o controle das relações por eles mais rígido.
Há outros casos em que a intensidade varia conforme os contextos e os agentes
de interlocução. Portanto, o que ocorre, não é simplesmente uma decisão de
não relação, mas estratégias conscientes, que se originam a partir de relações
com o outro, cujo objetivo é exatamente ter maior seletividade, controle ou
gestão dessas interações sociais, físicas ou até espirituais.
Esta perspectiva é reiterada por Octavio e Azanha (2009, p. 03) ao afirmarem que “há
uma gradação e diversas modalidades de troca (a guerra é uma delas), de forma que se pode
classificar as sociedades como mais abertas ou mais fechadas a trocas (gradação), porém estes
graus de abertura dependem das estratégias intencionais das sociedades”. Outro exemplo da
intencionalidade do isolamento pode ser encontrado a seguir:
Sabemos também que a história de contatos interétnicos remotos é necessária
para entender a atual conformação étnica e a posição geográfica de muitos
grupos arredios. A maior parte desses grupos descende de segmentos
indígenas que recusaram a situação colonial, ou recompostos por foragidos
que se reagruparam em zonas de refúgio. A história dos contatos intertribais,
264
264
igualmente influenciada pela pressão colonial, também é fundamental para
compreender a posição dos isolados contemporâneos (GALLOIS, 1992, p.
123).
Está presente a história ainda na medida em que muitas das sociedades
indígenas ditas “isoladas” são descendentes de “refratários”, foragidos de
missões ou do serviço de colonos que se “retribalizaram” ou aderiram a grupos
independentes, como os Mura. Os Mura, aliás, provavelmente se
“agigantaram” na Amazônia (Amoroso in Carneiro da Cunha [org.] 1992)
porque reuniam trânsfugas de outras etnias. Os Xavante também foram mais
de uma vez contactados e mais de uma vez fugiram (Lopes da Silva in
Carneiro da Cunha [org.] 1992). (CUNHA, 2012, p. 12).
O ponto a ser enfatizado, então, é que o isolamento não representa uma condição passiva
dos povos indígenas. Ao contrário, as estratégias de isolamento constituem uma postura ativa,
que reflete a escolha social e política de determinados povos indígenas, visando assegurar sua
sobrevivência e sua autodeterminação.
Praticamente todos os grupos indígenas que vivem hoje independentes da relação de
dominação que nossa sociedade lhes reserva, não apenas mantêm, mas reconstroem
continuamente sua posição de isolamento. Posição esta que, quase sempre, resulta
de experiências anteriores de contato, direto ou indireto: a atitude arredia é reativa ao
contato (GALLOIS, 1992, p. 122, grifo nosso).
Decorrem destes fatores as justificativas para o uso da expressão “isolamento”
acompanhada do adjetivo “voluntário”, que deve ser entendido como um isolamento
intencional, consciente, deliberado.
5.1.2 Povos de Recente Contato ou em Contato Inicial;
Esta condición se caracteriza por una extrema vulnerabilidad ante
enfermedades transmisibles, baja disposición a establecer relaciones
continuas y prolongadas con personas foráneas y alta probabilidad de que
una relación pacífica se torne violenta (CASTILLO, 2015, p. 18-19).
O debate sobre as situações de “recente contato” ou “contacto inicial” demonstra o alto
grau de complexidade e de vulnerabilidade que caracteriza estes povos. No Brasil, tanto a
FUNAI quanto a literatura específica sobre o tema utilizam a expressão povos indígenas de
recente contato, enquanto nos demais países sul-americanos a expressão mais utilizada é
pueblos indígenas en contacto inicial. Consideramos que nenhuma destas denominações é
suficiente para expressar as características e a situação destes povos, e, além disso, contêm
problemas que não devem ser negligenciados.
Nota-se que o termo “recente contato” causa confusão devido à ênfase no aspecto
cronológico, associada ao termo “recente”. No Peru, por exemplo, o termo “pueblos en contacto
265
265
reciente” é usado como uma categoria específica dentro dos “pueblos en contacto inicial”, e se
refere a situações com “corto tiempo trancurrido desde que establecieron contacto sostenido
con la sociedade envolvente” (CASTILLO, 2015, p. 18). A utilização do termo povos indígenas
de recente contato no Brasil, entretanto, segundo Vaz (2011, p. 19) leva em consideração
“vários aspectos, além do temporal”. De acordo com este autor, “apesar de ainda não existir
uma definição consensual, em fóruns realizados na América do Sul, envolvendo diversos atores
sociais e representantes de Estados, vem-se consolidando a compreensão de que” (idem):
São considerados recém-contatados os povos ou segmentos indígenas que
estabeleceram contato recente com segmentos da sociedade nacional, bem como
grupos indígenas com reduzida compreensão dos códigos e valores das
sociedades nacionais majoritárias para fazer frente às situações de
vulnerabilidade que ameaçam a integridade física, social ou psicológica desses
povos (VAZ, 2011, p. 19-20, grifo nosso).
Segundo Rodrigues (2014, p. 33), a primeira definição oficial da FUNAI – ou seja, que
consta em documentos internos da instituição – para os grupos indígenas de recente contato
“surge apenas no Plano Plurianual da 2012-2015160”, e é a seguinte:
[...] são aqueles grupos (povos ou fragmentos de povos) que mantém relações
de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade
nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam
singuralidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade
(autonomia) na incorporação de bens e serviços (RODRIGUES, 2014, p.
33, grifo nosso).
No pedido de informação feito diretamente à FUNAI (2017a), nos foi apresentada a
seguinte definição:
Sobre a categoria ‘povo indígena de recente contato’, a FUNAI utiliza-se
do seguinte conceito: ‘povos ou agrupamentos indígenas que mantêm
relações de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos
da sociedade nacional, com reduzido conhecimento dos códigos ou
incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, e que conservam
significativa autonomia sociocultural’ (FUNAI, 2017, n.p.).
Portanto, a principal característica atribuída aos povos denominados de “recente
contato” não é a quantidade de tempo decorrida desde o contato, mas sim o nível de
vulnerabilidade que possuem em função do contato, em termos epidemiológicos, socioculturais
e políticos. Segundo Castillo (2015, p 19), esta condição é mantida enquanto a população
conserve as diversas vulnerabilidades que resultam e que se agravam a partir dos efeitos
desestabilizadores e traumáticos do processo de contato.
160 Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ouvidoria/pdf/acesso-a-informacao/Plano_plurianual-PPA_2012-2015.pdf . Acesso em 23 out. 2017.
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Al respecto, a la vulnerabilidad inmunológica se suelen sumar desequilibrios
demográficos, riesgo de pérdida territorial, inicio de procesos de
aculturación, discriminación, relaciones de sometimiento impuestas por
personas que buscan utilizarlos o explotarlos, manipulación e influencia
directa en la toma de decisiones del grupo ante su desconocimiento de los
actores y los intereses que estos tienen sobre la población o los recursos de
sus territorios (CASTILLO, 2015, p. 18).
Já o termo “contato inicial”, que é o mais utilizado por todos os demais países sul-
americanos, é definido pelo ACNUDH (2012, p. 10) do seguinte modo:
Los pueblos en contacto inicial son pueblos que mantienen un contacto
reciente con la población mayoritaria; pueden ser también pueblos que a
pesar de mantener contacto desde tiempo atrás, nunca han llegado a conocer
con exactitud los patrones y códigos de relación de la población mayoritaria.
Esto puede deberse a que estos pueblos mantienen una situación de semi
aislamiento, o a que las relaciones con la población mayoritaria no son
permanentes, sino intermitentes. Los pueblos "en contacto inicial" son
pueblos que previamente permanecían "en aislamiento" y que bien forzados
por agentes externos, bien por decisión del grupo o por factores de otro tipo,
entran en contacto con la población mayoritaria. De esta manera podríamos
hablar bajo la categorización de pueblos en contacto inicial de pueblos en
contacto intermitente, en contacto permanente, en peligro de extinción y
pueblos extinguidos (DIRECTRICES, 2012, p. 10).
Por sua vez, a CIDH (2013, p. 05) afirma que:
Los pueblos indígenas en situación de contacto inicial son pueblos o
segmentos de pueblos indígenas que mantienen un contacto intermitente o
esporádico con la población mayoritaria no indígena16, por lo general
referido a aquellos que han iniciado un proceso de contacto recientemente.
No obstante, se advierte que “inicial” no debe entenderse necesariamente
como un término temporal, sino como una
referencia al poco grado de contacto e interacción con la sociedad
mayoritaria no indígena. Los pueblos indígenas en contacto inicial
anteriormente fueron pueblos en aislamiento voluntario, que por alguna
razón, voluntaria o no, entraron en contacto con miembros de la población
envolvente, y aunque mantienen un cierto nivel de contacto, no conocen
plenamente ni comparten los patrones y códigos de interrelación social de la
población mayoritaria.
O problema identificado na denominação de povos indígenas em “contato inicial” – não
mencionado pelo ACNUDH (2012) nem pela CIDH (2013) – é que o termo transmite a ideia
de uma progressão obrigatória ou natural na ocorrência dos contatos, ou seja, que após uma
fase “inicial” os contatos devem ou tendem a se intensificar.
Neste sentido, consideramos o termo “recente contato” menos problemático do que o
termo “contato inicial”. Enquanto o primeiro simplifica demasiadamente a situação destes
povos, o segundo reproduz, de certa maneira, um viés assimilacionista, ainda que de modo não
intencional. Apesar de haver na literatura ressalvas quanto às insuficiências e problemas destas
267
267
duas denominações, consideramos necessário encontrar um outra forma de representar estes
povos, todavia, ainda não identificada.
5.1.3 Outras denominações: não contatados? povos livres? povos hostis? povos de contato
seletivo/esporádico?
Povos indígenas não contatados?
Em muitos casos a primeira ideia suscitada pela expressão povos indígenas isolados é a
da existência de índios vivendo em regiões ainda inalcançadas pela sociedade envolvente, e que
nunca tiveram qualquer tipo de contato com a sociedade moderna/ocidental. Na nossa
perspectiva, são grandes as possibilidades de que existam povos indígenas na Amazônia, que
nunca vivenciaram experiências de contato direto com não-índios. O documento da ACNUDH
(2012, p. 08) também considera esta possibilidade quando afirma que:
Es preciso establecer una distinción entre ambos grupos; el nivel de
vulnerabilidad de los grupos que no han sido nunca contactados es mayor
al de aquéllos que si bien han desarrollado relaciones sociales con la
sociedad mayoritaria, han decidido volver a su situación de aislamiento.
Asimismo, y por dicha razón, la necesidad de protección es mayor en el caso
de los no contactados (DIRECTRICES, 2012, p. 08, grifo nosso).
Portanto, não é possível descartar a hipótese de existência de povos indígenas não
contatados diretamente. Porém, é preciso observar que as redes de trocas interétnicas dos povos
indígenas, sobretudo no passado, eram intensas e alcançavam vastas áreas. Deste modo,
concordamos com o argumento encontrado na literatura de que muitos outros elementos da
sociedade envolvente já podem ter alcançado os territórios destes povos, sejam elementos
materiais ou mesmo conhecimentos transmitidos entre povos indígenas, exercendo, desta
maneira, alguma forma de influência indireta sobre a vida destes povos.
De acordo com Ribeiro (1986, p. 240) "mesmo aqueles [grupos] ainda não alcançados
pela sociedade nacional já sofreram sua influência indireta, através de tribos desalojadas e
lançadas sobre eles, e de bacilos, vírus ou artefatos que, passando de tribo a tribo, alcançaram
seus redutos”. Neste sentido, Cunha (2002, p. 07) afirma que “antes mesmo do contato em carne
e osso com os brancos, trava-se uma guerra biológica” e, portanto, “não é de espantar que [nas
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cosmologias indígenas sobre o contato] brancos e doenças fiquem indissoluvelmente ligados”.
Conforme demonstra Albert (2002, p. 12-13) é extremamente comum entre as cosmologias
indígenas a concepção do branco como fantasmas ou espíritos-maléficos, com “poderes tecno-
patogênicos que trazem uma dimensão de diferença e de virulência até então inédita nas suas
representações do forasteiro”.
Portanto, o uso do termo “não contatados” deve ser muito cuidadoso, visto que só é
cabível em raros casos, geralmente desconhecidos fora dos círculos institucionais que
trabalham diretamente com o assunto. Além disto, este tipo de informação é muito sensível e
de difícil acesso. Imagina-se que os próprios órgãos indigenistas evitam a divulgação de
informações sobre estes povos, já que o conhecimento destas pode colocar em risco as
populações indígenas em isolamento.
Povos livres?
Outro tipo de denominações atribuídas aos povos indígenas “isolados” reúne as
seguintes caracterizações: povos “autônomos”, “independentes” ou povos “livres”. Segundo
Feitosa (2011, p. 44), a expressão “povos livres” tem sido utilizada “como forma de contestar
o determinismo histórico” de que não há outro caminho para os povos indígenas isolados a não
ser estabelecer relações com a sociedade ocidental.
O termo “livres” é uma designação que parece ser mais apropriada para
identificar esses grupos, porque descarta a perspectiva da necessidade
absoluta da “pacificação” daqueles povos indígenas que sempre fizeram
questão de guardar distância da sociedade brasileira (FEITOSA, 2011, p. 44).
Apesar da justificativa apontada para utilizar tal terminologia ser, de fato, bastante
plausível, entendemos que a classificação “povos livres” continua a transmitir uma perspectiva
romântica sobre os índios isolados, “o que conduz à falsa ideia de que ‘isolado’ é um tipo de
índio que nunca teve nenhum tipo de contato, seja com ‘brancos’ seja com outros povos
indígenas, mantendo-se, assim, completamente livre de qualquer influência externa” (NEVES,
2011, p. 70). Por estes motivos, entende-se nesta pesquisa que os termos povos “livres”,
“autônomos” ou “independentes” não são adequados para denominar esta complexa categoria
antropológica, à medida que estes termos não representam a diversidade de situações existentes
entre os povos indígenas vivendo em isolamento.
Povos hostis?
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269
Identificou-se também o seguinte conjunto de denominações: “arredios”; “brabos”;
“caceteiros”; “hostis”. Estas classificações são frequentes no senso comum em regiões
próximas nas quais se tem conhecimento da existência de povos isolados. Demonstram, por sua
vez, que a caracterização destes povos como índios agressivos é decorrente de várias
experiências de contatos indesejados pelos índios, contatos aos quais estes povos reagiram com
violência no intuito de afastar os invasores e demarcar seu território.
No final do século XIX e principalmente nos anos iniciais do século XX, dada a
crescente demanda por borracha no mercado internacional, a exploração da seringa na região
do Acre e a exploração do caucho pelos peruanos, foram fomentadas pelos Estados nacionais
como forma de promover o crescimento econômico e a ocupação territorial das suas regiões de
fronteira na Amazônia. Estas atividades causaram profundas mudanças no modo de vida e na
história dos povos indígenas. De acordo com Iglesias et al. (2010, p. 11) “em locais onde a
presença indígena constituía ameaça à abertura dos seringais, ou à produção, correrias foram
pratrocinadas para destruir as malocas comunais, matar considerável parte dos moradores,
forçar a saída dos sobreviventes e, em certos casos, capturar as mulheres e crianças indígenas”.
O autor define as correrias da seguinte forma: “reúnem-se de 30 a 50 homens, armados de
carabinas de repetição e munidos cada um com uma centena de balas, e, à noite, cerca-se a
maloca aonde todo o clã dorme. No nascer do sol, um grito convencionado dá o sinal, e os
assaltantes abrem fogo todos juntos e à vontade” (IGLESIAS et al, 2010, p. 12). Assim, “as
correrias eram justificadas pelos patrões e caucheiros com discursos que concebiam os índios
como “selvagens”, “feras” (“animais”) e “pagãos” (ou “infiéis”) (IGLESIAS et al., 2010, p.
11).
Como aponta o autor, além de invadir os territórios indígenas através das “correrias”, as
frentes econômicas buscaram utilizá-los como mão-de-obra:
Depois da violência nas primeiras correrias, responsáveis pelo
desaparecimento de tribos inteiras, muitos grupos foram incorporados como
trabalhadores nos seringais. Aqueles que se mantiveram afastados dos
seringais, chamados de “brabos”, tiveram reduzidos seus territórios nas
cabeceiras dos rios. Alguns passaram inclusive a ter suas malocas no lado
peruano da fronteira. Os conflitos entre seringueiros, os grupos indígenas que
trabalhavam para os “patrões” e os brabos continuavam, todavia, a ocorrer
com frequência, por conta de roubos e de mortes de ambos os lados
(IGLESIAS, 2010, p. 24, grifo nosso).
Existem diversos registros de encontros forçados pelas frentes de expansão das
sociedades nacionais que resultaram em mortes de indígenas e de não indígenas, em diferentes
períodos ao longo do século XX.
270
270
Los indígenas mantuvieron una actitud hostil contra los shiringueros que
habían ocupado sus tierras, convertindose en un problema para éstos debido
a las constantes incursiones que realizaban contra sus colocaciones. Los
shiringueros patrocinaron entonces expediciones armadas contra los
indígenas, contratando para ello a experimentados guías familiarizados con
la región y sus habitantes. Otros patrones establecieron acuerdos con
caucheros peruanos permitiéndoles la exploración del caucho en sus
propiedades a cambio del extermínio y la expulsión de los indígenas del
interior y de los alrededores de sus shiringales (AQUINO y PEREIRA, 1998
apud CASTILLO, 2002, p. 148).
Desta forma, por meio dos termos “hostis”, “brabos”, “arredios”, “caceteiros”,
transmite-se a ideia de que o uso da violência foi e é uma característica unilateral dos povos
isolados. Estas expressões parecem advogar que as formas de invasão e de ocupação dos
territórios indígenas pelas frentes das sociedades nacionais foram legítimas e realizadas de
forma pacífica, sem o uso da violência, que é atribuída apenas à selvageria dos índios. Ou seja,
a denominação dos isolados como índios hostis não representa o caráter relacional e conflituoso
que está envolvido nas situações de contato interétnico.
“Isolados”, “Arredios”, “Brabos”, “Hostis” [...] cada um desses vocábulos
utilizados para nominar os povos isolados é dotado de acepções próprias que
contribuem para criar e reforçar visões na maior parte das vezes
discriminatórias acerca dos povos isolados [...] Seja de forma direta e
explícita, seja através de sentido figurado, estes termos constroem para os
“isolados” a imagem de sociedades debilitadas social, política e
economicamente, de fragilidade humana e, principalmente, de indivíduos que
adotam posturas antagônicas à sociedade nacional, justificando, por tudo isso,
as iniciativas de “pacificação” que lhes venham redimir da situação de
“selvageria” em que, de acordo com tais termos, vivem (NEVES, 2011, p. 50-
52).
Portanto, as denominações destes grupos como “hostis”, “brabos”, “arredios”,
“caceteiros”, não representam a complexidade dos processos históricos, e, ainda, transferem
para os indígenas a agressividade e violência que foi característica essencial dos invasores de
seus territórios.
Povos com contatos seletivos e/ou esporádicos;
Outra denominação importante de compreender é a de povos indígenas com contatos
seletivos. Como vimos, segundo Yamada e Amorim (2016, p. 51) “existe uma diversidade de
formas e de gradações que nos ajudam a traduzir muitos tipos de relações que os isolados
estabelecem com relação à nossa sociedade, e que denominamos de estratégias de isolamento”.
Neste sentido, “há casos em que esses grupos ou povos evitam constantemente qualquer tipo
271
271
de contato, sendo o controle das relações por eles mais rígido. Há outros casos em que a
intensidade varia conforme os contextos e os agentes de interlocução” (idem, 2016, p. 51).
Assim, a seletividade dos contatos ocorre em função também das necessidades dos povos em
isolamento “que estabelecem relações intermitentes com outros povos circunvizinhos, seja por
meio de relações de guerra, saques, vestígios propositalmente produzidos, ou outras formas de
interação” (AMORIM, 2016, p. 20). Portanto, podemos verificar uma vez mais que o
isolamento “não é simplesmente uma decisão de não relação, mas estratégias conscientes, que
se originam a partir de relações com o outro, cujo objetivo é exatamente ter maior seletividade,
controle ou gestão dessas interações sociais, físicas ou até espirituais”. (YAMADA; AMORIM,
2016, p. 51).
5.2 Panorama atual dos povos indígenas em situações de isolamento e de recente contato
(PIIRC) no Brasil: Mapa, etnias e situação territorial;
Nesta seção apresentamos as informações coletadas principalmente junto à FUNAI
(2017), e nos trabalhos de Vaz (2013, 2016, 2017), Amorim (2016) e Amorim e Ribeiro (2017)
sobre os povos indígenas em situações de isolamento e de recente contato no Brasil atualmente.
O objetivo deste panorama é subsidiar a análise da situação contemporânea destes povos.
Reunimos, assim, o mapa atualizado com o registros de povos indígenas em isolamento no
Brasil e as listas de registros da FUNAI (2017). Sobre os103 registros de povos indígenas em
isolamento, sendo 26 com presença confirmada, 26 registros em estudo, e 51 registros de
informações que ainda não foram verificadas. Dentre os 103 registros, 29 estão localizados fora
de terras indígenas demarcadas, dos quais 1 registro é confirmado, 10 estão em estudo, e 17
informações não foram verificadas. Além destes grupos em isolamento, a FUNAI (2017)
também reconhece a existência de 18 grupos indígenas considerados de recente contato.
Deste modo, a seção tem dois objetivos em relação à hipótese da pesquisa: primeiro,
demonstrar que existem abundantes informações sobre os PII; segundo, enfatizar os riscos
decorrentes do fato de existirem 51 registros de informações sobre PII que ainda não foram
verificadas, certamente em função da debilidade político-orçamentária da CGIIRC/FUNAI,
cuja capacidade institucional será analisada mais adiante.
De acordo com a FUNAI (2017, n.p.),
Quanto ao contingente populacional, esclarecemos que em função da
situação peculiar dessas populações, esses dados tendem a compor uma
margem de erro considerável. Portanto há cuidados na divulgação detalhada
dessas informações, com vistas sobretudo à salvaguarda da integridade física
272
272
dessas populações. Adiantamos, no entanto, que há casos de pequenos
grupos formados por diminuto contingente populacional, vítimas de
sucessivos massacres, inclusive com caso de apenas uma pessoa (isolado na
TI Tanaru/RO), e a há casos de povos de tamanho considerável, tais como
os isolados no Acre e na região do Vale do Javari, que chegam certamente a
centenas de pessoas”.
De acordo com Amorim (2016, p, 23) “atualmente são 20 as Terras Indígenas com
presença confirmada de povos ou segmentos de povos indígenas isolados, todas localizadas na
região amazônica”. Segundo o autor, “essas terras totalizam mais de 26 milhões de hectares, o
que representa 23,5 % do total de área de terras indígenas no Brasil e cerca de 3% do Território
Nacional” (AMORIM, 2016, p. 23). Mais adiante poderemos ver a capacidade institucional, ou
seja, os recursos político, orçamentário e humano de que a CGIIRC dispõe para cumprir suas
funções perante este universo de referências e de terras indígenas.
Ainda segundo este autor, “as ações de localização de grupos isolados realizadas pela
Funai vêm revelando que esse número de registros confirmados de povos isolados pode
aumentar nos próximos anos, caso haja um efetivo fortalecimento e continuidade dessa política”
(AMORIM, 2016, p. 23).
Vejamos a seguir o mapa e as tabelas disponibilizados pela FUNAI, com os registros de
PIIRC no Brasil.
273
273
274
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Tabela 7 - Referências Confirmadas de Povos Indígenas Isolados
Referências Confirmadas de Povos Indígenas Isolados
Ref. Nome Etnia UF Terra Indígena
07 Rio Alalaú Pirititi RR/AM Pirititi
12 Katawixi Katawixi AM Jacareúba/Katawixi
13 Hi-Merimã Língua Arawa (Hi-Merimã)
AM Himerimã
15 Igarapé Nauá Desconhecida AM Vale do Javari
16 Rio Itaquaí Desconhecida AM Vale do Javari
18 Igarapé Alerta Desconhecida AM Vale do Javari
19 Igarapé Inferno Provavelmente Korubo AM Vale do Javari
20 Rio Boia/Curuena Provavelmente Korubo AM -
21 Igarapé Lambança Korubo AM Vale do Javari
23 Rio Coari Korubo AM Vale do Javari
25 Rio Quixito Grupo de língua Pano AM Vale do Javari
31 Riozinho do Alto Envira
Desconhecida AC Riozinho do Alto Envira
32 Rio Jaminawa Desconhecida AC Riozinho do Alto Envira
33 Cabeceiras do Rio Iaco e Chandless
Mashko Piro AC Mamoadate
39 Igarapés Presídio e Juriti
Awa Guajá MA Caru
41 TI Arariboia Awa Guajá MA Arariboia
48 Cautário Yrapararikuara RO Uru Eu Wau Wau
50 Serra da Onça Jururei / Língua Tupi Kawahiva
RO Uru Eu Wau Wau
51 Massaco Possivelmente Siriono RO Massaco
53 Índio do Buraco Desconhecida RO Tanaru (RU)
55 Igarapé dos Índios Língua Tupi Kawahiva MT Piripkura (RU)
59 Kawahiva do Rio Pardo
Língua Tupi Kawahiva MT Kawahiva do Rio Pardo
71 Masko Piro Mashko Piro AC Mamoadate
76 Serra da Estrutura Língua Yanomami RR Yanomami
90 Rio Esquerdo Língua Pano AM Vale do Javari
91 Igarapé São José Desconhecida AM Vale do Javari
Fonte: FUNAI (2017).
Apresentamos a seguir um mapa específico sobre os registros de povos indígenas
em isolamento na Terra Indígena Vale do Javari, fim de demonstrar o nível das
275
275
informações existentes sobre os PII, principalmente no caso destas referências que já
estão confirmadas mediante a realização de todas as etapas da política específica para
PIIRC.
Mapa 6 - Terra Indígena Vale do Javari
Fonte: VAZ (2016, p. 35).
Dando prosseguimento ao panorama geral dos PIIRC no Brasil, apresentaremos
em seguida a lista de referências em estudo, de acordo com a FUNAI (2017), ou seja,
aquelas referências para as quais já foi designada uma equipe de trabalho para verificar
as informações sobre a presença de índios isolados em determinada região.
Tabela 8 - Referências em Estudo
Referências em Estudo
Ref. Nome Etnia UF Terra Indígena
06 Baixo Rio Cauaburi Desconhecida AM Yanomami
09 Rio Parauari Desconhecida AM/PA -
10 Alto Rio Canumã Desconhecida AM -
276
276
14 Igarapé Maburrã Desconhecida AM -
27 Igarapé Craco Desconhecida AM Vale do Javari
28 Igarapé Amburus Desconhecida AM Vale do Javari
29 Igarapé Flecheira Desconhecida AM Vale do Javari
37 Rio Amapari / Alto Oiapoque
Provavelmente Waiãpi AP -
42 Iriri Novo Provavelmente Kayapo
PA Menkragnoti
43 Rio Fresco Provavelmente Kayapo
PA Kayapo
45 Bom Futuro Desconhecida RO -
54 Rio Tenente Marques Provavelmente Nambikwara
MT Parque Aripuanã
60 Igarapé Pacutinga Desconhecida MT -
61 Pontal Desconhecida MT Apiaka e Isolados
64 Igarapé Tapada Provavelmente Isconahua
AC -
67 Avá Canoeiro Desconhecida GO -
68 Mão de Onça Provavelmente Awá Guajá
MA Awá
70 Kaidjuwa Desconhecida AM -
75 Rio Coti Desconhecida AM -
78 Cabeceira do Rio Camanaú
Desconhecida AM Waimiri Atroari
88 Igarapé Bom Jardim Desconhecida PA Arawete do Igarapé Ipixuna
99 Alto Tapajós Desconhecida PA Munduruku
103 Igarapé Papavo Provavelmente sub-grupo Jaminawa
AC Kaxinawa/Ashaninka do Rio Breu
105 Karapawyana Karapawyana (Karibe) PA/RR/AM
Trombetas Mapuera
107 Pitinga / Nhamunda-Mapuera
Possivelmente Karibe PA Kaxuyana / Tunayana e Isolados
110 Igarapé Ipiaçava Desconhecida PA Ituna-Itata (outras)
Fonte: FUNAI (2017).
A seguir veremos a relação dos 51 registros de Informações de índios em
isolamento que ainda não foram verificados ainda pela CGIIRC/FUNAI. De acordo com
Vaz (2013, p. 72) “em março de 2012, a CGIIRC promoveu reunião em Brasília para
277
277
tratar desse tema. Transcreveremos abaixo trechos do relatório161 elaborado por Elias
Bigio e Francisco Paes, ambos servidores da FUNAI”.
No Encontro, durante a atualização dos dados da Tabela de Referência
e a partir das informações trazidas pelos Coordenadores de Frentes e
pelos demais participantes, foi proposta a discussão da classificação de
todos os registros existentes de Referência de Índios Isolados
(confirmadas ou não-confirmadas em estudos) na tabela citada e no
mapa das referências. Após exaustiva discussão, decidiu-se que
algumas das referências deveriam ser reclassificadas apenas como
Informação de Índios Isolados, pois partiu-se do princípio de que,
embora estivessem classificadas como referências, careciam tanto de
pesquisa documental quanto de pesquisa de campo para fundamentar a
sua reclassificação (VAZ, 2013, p. 72).
Tabela 9 - Informações não verificadas de PII
Informações
Ref. Nome Etnia UF Terra Indígena
01 Igarapé Waranaçu Provavelmente Maku AM Alto Rio Negro
02 Rio Uapés Provavelmente Maku AM Alto Rio Negro
03 Rio Cuririari Provavelmente Maku AM Alto Rio Negro
04 Igarapé do Natal Desconhecida AM -
05 Igarapé Bafuanã Desconhecida AM -
08 Alto Rio Jatapu Desconhecida RR -
11 Rio Mucuim Desconhecida AM -
22 Rio Pedra Desconhecida AM Vale do Javari
26 Igarapé São Salvador Desconhecida AM Vale do Javari
34 Alto Rio Mapuera Desconhecida PA -
35 Rio Cachorro/Cachorrinho
Desconhecida PA -
36 Rio Kaxpakuru / Igarapé Água Fria
Desconhecida PA -
40 Riozinho do Anfrizio Desconhecida PA -
44 Alto Rio Ipitinga Provavelmente Karibe PA Rio Paru de Leste
46 Igarapé Oriente Desconhecida RO Uru Eu Wau Wau
47 Cachoeira do Remo Desconhecida RO -
56 Igarapé Boca da Mata
Desconhecida MT -
57 Médio Rio Branco Desconhecida MT Aripuanã
58 Arara do Rio Branco Desconhecida MT Arara do Rio Branco
161 BIGIO, Elias. PAES, Francisco Simões. Relatório sobre a Sistematização das Referências e Informações sobre a Existência de Índio ou Grupo Indígena Isolado. FUNAI: Brasília, Junho de 2012.
278
278
63 Norte da TI Zoró Desconhecida MT Zoró
65 Jari Desconhecida PA -
66 Serra do Cipó Desconhecida MA -
72 Rio Iquê Desconhecida MT Enawene Naue
73 Serra do Cachimbo Desconhecida PA -
74 Urucum Desconhecida AM -
77 Médio Jatapu Desconhecida AM Trombetas / Mapuera – Waimiri Atroari
79 Médio Macucua Desconhecida RR -
80 Igarapé Jararaca Desconhecida MA Alto Turiaçu
81 Rio Arraias Desconhecida MA Krikati
82 Cana Brava Desconhecida MA Cana Brava
83 Rio Corumbiara Desconhecida RO -
84 Manicorezinho Desconhecida AM -
85 Igarapé Preto Desconhecida AM Tenharim Igarapé Preto
86 Rio Maici Desconhecida AM Pirahã
87 Rio dos Peixes Desconhecida MT Apiaka / Kayabi
92 Igarapé Pedro Lopes Desconhecida AM Vale do Javari
93 Surucucu / Kataroa Yanomami (Putu u thori)
RR Yanomami
94 Parawa u Yanomami (Xih J i thõri)
RR Yanomami
95 Auaris / fronteira Desconhecida RR Yanomami
96 Surucucu / Watho u Desconhecida RR Yanomami
97 Igarapé Tiradentes Desconhecida RO Uru Eu Wau Wau
98 Baixo Cautário Desconhecida RO Uru Eu Wau Wau
100 Amajari Yanomami (Ninan) AM Yanomami
101 Rio Branquinho Desconhecida RR Yanomami
102 Cabeceiras do Rio Cuniuá
Desconhecida AM Deni
104 Ilha do Bananal Avá Canoeiro TO Inawebohona
106 Akuriyó do Rio Mataware / Alto Jari
Akuriyó (Karibe) PA Tumucumaque
108 Alto Urucuriana / Alto Curuá / Alto Maicuru
Possivelmente Apalai (Karibe) ou Zo’é
isolados
PA Paru de Leste
109 Rio Citaré Possivelmente Waiana (Karibe)
PA Tumucumaque
111 Rio Jamanxim Desconhecida PA Sawre Maybu
112 Rio Abacaxis Desconhecida PA -
Fonte: FUNAI (2017).
279
279
Vale destacar que as Informações ainda não verificadas estão dispersas por vários
estados brasileiros. As terras indígenas com registros de informações sobre a
presença de povos indígenas isolados são as seguintes: Alto Rio Negro (AM), Vale do
Javari (AM), Deni (AM), Yanomami (RR), Rio Paru de Leste (PA), Uru Eu Wau Wau
(RO), Aripuanã (MT), Arara do Rio Branco (MT), Zoró (MT), Enawene Naue (MT),
Trombetas / Mapuera – Waimiri Atroari (AM), Alto Turiaçu (MA), Krikati (MA), Cana
Brava (MA), Tenharim Igarapé Preto (MT), Pirahã (AM), Apiaka / Kayabi (MT),
Inawebohona (TO), Tumucumaque (PA), Paru de Leste (PA), Sawre Maybu (PA). Vale
lembrar que dentre os 103 registros de povos isolados reconhecidos pelo Estado brasileiro
(FUNAI/CGIIRC), 29 estão localizados fora de terras indígenas demarcadas, dos quais 1
registro é confirmado, 10 estão em estudo, e 17 informações não foram verificadas.
A seguir apresenta-se os registros de povos indígenas considerados pela FUNAI
(2017) como de recente contato.
Tabela 10 - Povos Indígenas de Recente Contato atendidos pelas Frentes de Proteção
Etnoambiental (FPE)
Povo
indígena
Terra
indígena
UF Fase
fundiária
Área
(ha.)
Popu-
lação
Língua
(tronco/família)
FPE
Akuntsu Rio Omerê RO Homologada 26.000 03 Akuntsú – Tupi Tupari FPE
Guaporé/RO
Arara Cachoeira
Seca do Iriri
PA Homologada 734.000 90 Arara - Karib FPE Médio
Xingu
Araweté Araweté do
Igarapé
Ipixuna
PA Homologada 941.000 415 Araweté - Tupi
Guarani
FPE Médio
Xingu
Awá-
Guajá
Alto Turiaçu MA Homologada 530.52 420 Awa - Tupi Guarani FPE Awá-
Guajá Awá MA Homologada 116.582
Caru MA Homologada 172.667
Kanoê Rio Omerê RO Homologada 26.000 03 Kanoê FPE
Guaporé
Korubo Vale do
Javari
AM Homologada 8.544.482 84 Korubo - Pano FPE Vale do
Javari
Parakanã Apyterewa PA Homologada 8.421.243 476 Akwawa - Tupi
Guarani
FPE Médio
Xingu
Igarapé
Xinane
Kampa e
isolados do
Envira
AC Homologada 232.795 35 Desconhecida - Pano FPE Envira
Suruwaha Zuruaha AM Homologada 8.932.426 162 Suruwaha - Arawa FPE Purus
280
280
Yanomami Yanomami AM/R
R
Homologada 9.664.975 25.000 Sanuma,
Ninam/Xiriana,
Yanomama, Yawari,
Yanomamö-Yanomami
FPE
Yanomami e
Ye’kuana
Waimiri
Atroari
Waimiri
Atroari
AM/R
R
Homologada 2.585.912 1.633 Karib FPE
Waimiri
Atroari
Zo’é Zo’é PA Homologada 2.802.129 269 Zoe - Tupi Guarani FPE
Cumina-
panema
Fonte: FUNAI (2017).
Tabela 11 - Povos indígenas de Recente Contato atendidos pelas Coordenações Regionais
(CR)
Povo
indígena
Terra
indígena
UF Fase
fundiária
Área
(ha.)
Popu-
lação
Língua
(tronco/família)
CR
Pirahã Pirahã AM Homologada 347.000 592 Pirahã - Mura CR Madeira
Hupdä’h Alto Rio
Negro
AM Homologada 7.999.381 2500 Hupdä’h - Maku CR Rio Negro
Yuhupdeh Alto Rio
Negro AM Homologada 7.999.381 500 Yuhupdeh - Maku CR Rio Negro
Ava
Canoeiro
Ava
Canoeiro
GO Homologada 38.000 08 Ava Canoeiro – Tupi
Guarani
CR Araguaia-
Tocantins
Juma Juma AM Homologada 38.651 15 Juma - Tupi
Kawahiva
CR Madeira
Enawenê-
Nawê
Enawenê-
Nawê
MT Homologada 742.089 737 Enawenê-Nawê -
Aruak
CR Noroeste
Mato Grosso
Fonte: FUNAI (2017).
Portanto, as terras indígenas com registros de povos indígenas de recente
contato são as seguintes: Rio Omerê (RO), Cachoeira Seca do Iriri (PA), Araweté do
Igarapé Ipixuna (PA), Alto Turiaçu (MA), Awá (MA), Caru (MA), Vale do Javari (AM),
Apyterewa (PA), Kampa e isolados do Envira (AC), Zuruaha (AM), Yanomami
(AM/RR), Waimiri Atroari (AM/RR), Zo’é (PA),
Sobre os 18 registros de povos de recente contato, vale observar, segundo Vaz
(2017, p. 07, nota 23), que “a luz de uma análise mais criteriosa, muitos outros grupos e
povos indígenas no Brasil enquadram-se na definições de recente contato adotadas pelo
“Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos” e “Comissão
Interamericana de Direitos Humanos” da OEA”. Assim, “a relação da FUNAI está mais
relacionada à capacidade operacional do órgão, do que aos critérios adotados para a
281
281
caracterização de grupos indígenas como sendo de recente contato”. A FUNAI divulga
apenas como de recente contato, os PIRC atendidos pelas Frentes de Proteção
Etnoambiental – FPE” (idem).
Vale ressaltar as análises feitas por Amorim (2016, p. 23-24) sobre a situação dos
povos indígenas em situações de isolamento por estado da federação. De acordo com o
autor:
O estado do Amazonas é o que concentra o maior número de registros
de povos indígenas isolados. Há indícios e comprovação de sua
existência praticamente em todas as regiões do estado, desde o norte,
no alto rio Negro e na região do Pico da Neblina – Terra Indígena
Yanomami - até o sul do Amazonas, na região do médio rio Purus, ou
no interflúvio Tapajós/Madeira. Na TI Vale do Javari, localizada na
fronteira com o Peru, é onde encontramos o maior conjunto conhecido
desses povos no país (AMORIM, 2016, p. 23).
Ainda segundo este autor,
No estado do Acre também há grande presença de povos indígenas
isolados. O corredor formado pelo Acre e os departamentos de Ucayali,
Madre Dios e Cuzco, no Peru, configura-se como um território ocupado
por uma imensa diversidade de povos isolados ou de recente contato
(ou contato inicial) (Huertas 2015). É muito conhecida, por exemplo, a
presença dos Mashko Piro isolados, que ocupam regiões em ambos os
lados da fronteira Brasil/Peru. Além deles, há povos de língua Pano, tal
como o povo isolado do rio Humaitá, que se tornou conhecido
mundialmente por conta da ampla divulgação de fotos obtidas por
sobrevoo; e do grupo contatado recentemente no alto rio Envira,
próximo à foz do igarapé Xinane (AMORIM, 2016, p. 23).
Sobre o estado do Pará, Amorim observa que:
No Pará também há um grande número de informações apontando para
a presença de povos isolados, desde o norte, na fronteira com as duas
Guianas, Suriname e o estado do Amapá até a região central do estado,
na região do médio rio Xingu – inclusive no contexto da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte; ao sul, na bacia do alto rio Xingu –
inclusive nas Terras Indígenas Kayapó, Menkragnoti, e nas regiões do
médio e alto rio Tapajós (AMORIM, 2016, p. 24).
Em Roraima, segundo Amorim (2016, p. 24):
Em Roraima registra-se a presença de povos isolados na Terra Indígena
Yanomami, região de fronteira com a Venezuela, e na Terra Indígena
Waimiri Atroari. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta,
ainda, a presença de povos isolados na Terra Indígena Raposa Serra do
Sol (Monte Caburaí), ainda não estudados pela FUNAI (CIMI 2016)
(AMORIM, 2016, p. 24).
Já em Rondônia, de acordo com Amorim (2016, p. 23):
282
282
Em Rondônia há casos emblemáticos de violação dos direitos
indígenas, como é o caso dos Akuntsu e Kanoê na Terra Indígena
Omerê, que totalizam 7 pessoas ; e do “índio do Buraco”, na Terra
Indígena Tanaru. Esses povos foram dizimados em sucessivos
massacres ocorridos durante a implementação de projetos de
colonização e de desenvolvimento econômico em Rondônia, nas
décadas de 1970 e 1990. Foi em Rondônia, também, que ocorreu a
demarcação, no início da década de 1990, da primeira terra indígena
para usufruto exclusivo de um povo indígena isolado: a TI Massaco.
Foi a primeira experiência metodológica bem sucedida de garantia do
direito à autodeterminação dos povos isolados, sem quaisquer
intervenções de contato por parte do órgão indigenista oficial, como
veremos mais adiante (AMORIM, 2016, p. 23).
Acerca do estado do Maranhão, Amorim (2016, p. 24) observa que:
A região abrangida pelo oeste do estado do Maranhão é território
tradicional Awá, povo indígena da família Tupí-Guaraní. Entre as
décadas de 1970 e 1990 foram contatados diversos grupos no contexto
do avanço da colonização na região e da construção e operacionalização
da ferrovia Carajás, que escoa minério de ferro desde a mina na Serra
dos Carajás, estado do Pará, até o porto de Itaqui, próximo a São Luís,
no Maranhão. Entretanto, ainda é conhecida a presença de grupos ainda
isolados na região, localizados nas Terras Indígenas Caru, Arariboia e
Awá. Esses grupos isolados são extremamente vulneráveis em virtude
da constante pressão por parte da rede criminosa de exploração de
madeira na região (AMORIM, 2016, p. 24).
Já no Mato Grosso, Amorim (2016, p. 24) afirma que:
No noroeste matogrossense é confirmada a existência de pelo menos
dois povos isolados, ambos de filiação linguistica Tupi-Kawahiva. São
sobreviventes de massacres desferidos contra eles. Vivem
historicamente acuados em seu próprio território, em constante
processo de fuga diante da ação de madeireiros e da grilagem de terras
para formação de fazendas de gado. Além desses dois grupos
confirmados, há uma série de indícios recorrentes da presença provável
de outros povos indígenas isolados, desde a região mais a oeste do
estado, nos rios Arinos, Sangue e dos Peixes, até mais ao norte, no
interior da TI Parque Indígena do Xingu (AMORIM, 2016, p. 24).
Por fim, nos estados de Tocantins e Goiás:
No Tocantins, além dos grupos Avá Canoeiro, contatados na década de
1970 e atualmente vivendo entre os Javaé, são históricos os relatos da
presença de grupos isolados Avá na região compreendida pela ilha do
Bananal e arredores, em especial na TI Inãwébohona. No estado de
Goiás (GO) é conhecida a história de massacres, de fuga e de resistência
do povo Avá Canoeiro. Além dos Avá que já travam contatos desde a
década de 1980 – o pequeno grupo considerado de recente contato que
vive atualmente numa terra indígena no município de Minaçu/GO –, há
também relatos apontando a presença de grupos ainda isolados na
macrorregião da Chapada dos Veadeiros, em específico no município
de Cavalcante” (AMORIM, 2016, p. 24).
283
283
5.3 Ameaças contemporâneas aos PIRC na Amazônia: a contínua apropriação de
recursos e territórios pelo capitalismo local/global;
Los ingresos a los territorios de los pueblos en aislamiento se dan en
su mayoría en el contexto de extracción de recursos naturales. Los
pueblos en aislamiento voluntario y contacto inicial habitan y transitan
por tierras y territorios ricos en recursos naturales en la Amazonía y el
Gran Chaco, con los cuales mantienen una relación material de
aprovechamiento y consumo sustentable, así como una profunda
conexión espiritual y cultural. La extracción de los recursos naturales
en estos territorios ha ido desde las piedras y metales preciosos en la
época de la conquista, el caucho a finales del siglo XIX y principios del
XX, hasta maderas, minerales e hidrocarburos en la actualidad. La
extracción tanto legal como ilegal de estos y otros recursos naturales
constituyen una grave amenaza a la integridad física y cultural de estos
pueblos, y su supervivencia “exige el reconocimiento de sus derechos
a los recursos naturales presentes en sus tierras y territorios, de los
cuales dependen para su bienestar económico, espiritual, cultural y
físico (CIDH, 2013, p. 55).
Apresentaremos, a seguir, as principais ameaças à sobrevivência e à
autodeterminação dos povos indígenas em situações de isolamento na Amazônia. De
acordo com a CIDH (2013, p. 45) as principais ameaças a estes povos são decorrentes do
contato, e, deste modo, havendo sucesso em evitar o contato, as chances destes povos
conseguirem satisfazer suas necessidades de modo autossuficiente são maiores.
Gran parte de las situaciones de riesgo a la vida e integridad de estos
pueblos son generadas por el contacto, ya sea directo o indirecto. En
opinión de la CIDH, los casos más emblemáticos, y a la vez prevenibles,
se dan cuando el contacto es propiciado de manera directa y
deliberada, como en el caso de las misiones religiosas que han buscado
evangelizar a los pueblos en aislamiento. Tal es el caso de la Misión
Nuevas Tribus (New Tribes Mission) y el Instituto Lingüístico de
Verano (Summer Linguistic Institute), entre otros, que deliberadamente
contactaron a pueblos en aislamiento en Bolivia, Colombia, Ecuador,
Paraguay, Perú, y Venezuela, por mencionar algunos países, en la
segunda mitad del siglo XX principalmente215. Entre otras cosas, se
ha recibido información sobre integrantes de estas organizaciones que
prohibían prácticas religiosas y culturales tradicionales de los pueblos
que contactaban, tildándolas de demoníacas, y menoscabando el
derecho de estos pueblos a su propia cultura (CIDH, 2013, p. 46).
Além destas iniciativas de missionários, o documento da CIDH também aponta
iniciativas de grupos científicos que se lançaram em busca de estabelecer contato com
povos em isolamento, citando como exemplo casos ocorridos em 1997, 2004, 2010 e
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2013. Iniciativas deste tipo representam riscos aos PII mesmo quando não conseguem
estabelecer o contato, visto que podem deixar objetos pelo caminho que podem ser
encontrados pelos índios, como ferramentas, roupas, lixo ou comida, com potencial de
transmitir doenças infectocontagiosas (CIDH, 2013, p. 47). Deste modo, independente da
natureza e dos objetivos, qualquer iniciativa que não respeite o direito ao isolamento
destes povos indígenas, coloca em sérios riscos a sua sobrevivência.
La Comisión observa que este tipo de incidentes de contacto
representan una pérdida cultural irreparable. Una vez establecido el
contacto, es primordial garantizar la vida, integridad y bienestar físico
y psicológico de las personas contactadas, pero la condición de
aislamiento en que se encontraban antes del contacto se ha perdido
para siempre […] Otro efecto indirecto del contacto es la afectación
psicológica que pueden sufrir los integrantes de pueblos previamente
aislados. Por ejemplo, cuando el pueblo indígena Akiruyo fue
contactado en Surinam a finales de la década de 1960, el impacto en
su cosmovisión fue tal que muchos cayeron en cuadros depresivos o
mostraron síntomas de conmoción psicológica, algunos simplemente se
rehusaban a vivir [...] La CIDH considera que los efectos del contacto
también se presentan a nivel colectivo, ya que el pueblo pasa de una
situación de autosuficiencia en la selva a una dependencia casi total de
quienes le proporcionan comida, medicamentos y otros elementos de
subsistencia, lo cual tiene un gran efecto desmoralizante en la identidad
del pueblo (CIDH, 2013, p. 47).
Entretanto, além de evitar o contato direto e indireto é preciso também impedir
que a degradação do bioma no qual a grande maioria destes povos vive, a Amazônia,
continue a ocorrer de forma acelerada. As consequências desta degradação, sobretudo no
entorno de regiões onde vivem povos em isolamento, já têm apresentado efeitos. Em um
dos contatos desencadeados no ano de 2014, no Peru, próximo ao povoado de Monte
Salvado, um grupo indígena que até então vivia em isolamento deixou claro como a
degradação ambiental impacta na vida destes povos e também é um fator que os leva
buscarem o contato com a sociedade envolvente. Pertencentes à etnia Mashco Piro, os
índios gritavam repetidas vezes: “cadê os caititus?”, nome dado a um dos porcos do mato
essenciais em sua dieta tradicional (EL PAÍS, 2015)162.
En opinión de la Comisión Interamericana, una de las principales
amenazas que enfrentan los pueblos en aislamiento y que
frecuentemente lleva al contacto es la enorme presión sobre los
territorios en que habitan y transitan, y que a menudo deriva en
incursiones a éstos. Como han señalado la CIDH y la Corte
Interamericana, los pueblos indígenas guardan una relación especial
162 El País, “Uma onda de tribos isoladas da Amazônia sai em busca de socorro”, 05/06/2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/04/ciencia/1433440315_187131.html. Acesso em 03/07/2015.
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con sus tierras, territorios y recursos naturales en términos materiales,
sociales, culturales y espirituales; la protección de esta relación es
fundamental para el goce de otros derechos humanos de los pueblos
indígenas y por lo tanto amerita medidas especiales de protección. La
CIDH considera que la protección territorial es una condición
fundamental para proteger la integridad física, cultural y psicológica
de los pueblos indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial, y
ha expresado que “debe aplicarse especial cuidado al tomar las
medidas para garantizar territorios de suficiente extensión y calidad a
pueblos en aislamiento voluntario, pueblos en contacto inicial, pueblos
binacionales o plurinacionales, pueblos en riesgo de desaparición, […]
pueblos agricultores itinerantes o pastores, pueblos nómadas o
seminómadas, pueblos desplazados de sus territorios, o pueblos cuyo
territorio ha sido fragmentado, entre otros” (CIDH, 2013, p. 48).
Adicionalmente a las incursiones directas en sus territorios, las
actividades que se realizan en las cercanías también pueden afectar la
integridade territorial de los pueblos indígenas en aislamiento
voluntario y contacto inicial. Por ejemplo, las actividades que
contaminan ríos y otros cauces hídricos pueden afectar seriamente el
hábitat de los pueblos en aislamiento, aun si éstas se realizan fuera de
sus territorios. Asimismo, las actividades de exploración y prospección
sísmica en áreas cercanas a los territorios donde habitan o transitan
pueblos en aislamiento puede generar ruidos y otras afectaciones que,
por ejemplo, ahuyentan a la fauna de la zona, de la que dependen estos
pueblos para su alimentación y sustento. Estas presiones al territorio
son a menudo resultado de proyectos de extracción de recursos
naturales, como se señala a continuación (CIDH, 2013, p. 54).
Neste sentido, apesar da ocorrência do contato ser, de fato, o risco maior a ser
evitado, as ameaças aos povos em isolamento não devem ser observadas apenas no nível
micro, mas também no nível macro. Verifica-se que as dinâmicas responsáveis pela
degradação da região amazônica estão diretamente relacionadas com as principais
ameaças à sobrevivência e à autodeterminação dos povos indígenas em isolamento. São
elas: 1) o desflorestamento, atividade que ainda ocorre pelo método da derrubada total de
áreas extensas, e também através da extração seletiva das espécies mais valorizadas no
mercado nacional/global; 2) as grandes obras de infraestrutura; 3) a expansão das
fronteiras agrícolas e pecuárias, atividade para a qual a derrubada abre caminho,
juntamente com a grilagem e venda de terras; 4) as atividades de mineração, legal e ilegal,
que ocorrem pelos métodos de garimpagem e de mineração industrial; 5) a prospecção e
a exploração de hidrocarbonetos, que tem crescido na região amazônica nas últimas
décadas; 6) a exploração predatória de caça e pesca para comércio e biopirataria; 7) a
atuação de narcotraficantes fortemente armados; 8) o proselitismo religioso, que
considera os povos indígenas em isolamento e de recente contato como um público
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especial para sua evangelização (VAZ, 2011, 2013, 2014; EACNUDH, 2012; CIDH,
2013).
A fiscalização estatal insuficiente, descontínua, ou inexistente em muitas regiões
da Amazônia, facilita a ocorrência destas atividades.
Las presiones derivadas de la extracción de recursos naturales, en su
mayoría destinados a satisfacer la demanda de las sociedades no
indígenas, representan quizás la mayor amenaza al pleno goce de los
derechos humanos de los pueblos indígenas en aislamiento voluntario
y contacto inicial. La CIDH considera que los Estados, en
cumplimiento de las obligaciones internacionales y de naturaleza
interna, deben asegurar que estos procesos extractivos, si se han de
realizar, se realicen en estricto respeto a los derechos humanos y
territoriales de los pueblos indígenas, de conformidad con los
estándares jurídicos existentes (CIDH, 2013, p. 67).
Vejamos a seguir, em mais detalhes, as principais destas atividades que
constituem ameaças aos PIIRC.
O Desflorestamento
De acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE),
entre 1989 e 2004 a média anual de área desmatada na Amazônia brasileira foi de
aproximadamente 17.500km², com picos de 29 e 27 mil km² (1995 e 2004,
respectivamente). A partir de 2005 inicia-se uma trajetória de redução que atinge um
índice inferior a 10.000km² anuais pela primeira vez no ano de 2009, e chega a 4.571km²
no ano de 2012. A partir do ano de 2013, após a reforma do Código Florestal Brasileiro,
as taxas anuais de área desmatada voltam a crescer (+29%, -15%, +24% e +29%, de 2013
a 2016), tendo atingido 7.989km² em 2016. Além da derrubada de extensas áreas,
devemos considerar também o efeito da extração seletiva de madeira.
La extracción de maderas con alto valor comercial, como el cedro
(cedrela odorata), la caoba (swietenia macrophylla) o el palo santo
(bursera graveolens), y la exploración y explotación de hidrocarburos
representan dos de la principales amenazas a los pueblos en
aislamiento voluntario […] La Comisión Interamericana también ha
recibido información sobre enfrentamientos violentos entre madereros
ilegales y miembros del pueblo Awá Guajá, en contacto inicial, en el
estado de Maranhão, en Brasil. Asimismo, la CIDH ha recibido
información a través de audiencias temáticas
sobre la presencia de madereros ilegales […] en las riberas de los ríos
Madeira y Xingu, en la Amazonía brasileña (CIDH, 2013, p. 55-56).
Devemos observar também que, de acordo com Amorim (2016, p. 33), atualmente
a Funai contabiliza 17 registros de informações sobre a presença de povos isolados, ainda
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em fase de pesquisa, que estão localizados fora de quaisquer delimitações de terras
indígenas e em regiões com altas taxas de desmatamento: “Rondônia, norte do Mato
Grosso, sul do Amazonas, centro-sul do estado do Pará e oeste maranhense. Esse cenário
constitui importante (e preocupante) passivo de localização e investigação da presença
desses povos em território brasileiro” (AMORIM, 2016, p. 33).
De acordo com Vaz (2017, p. 07, nota 24) os “Índios Arara da Cachoeira Seca
lutam contra a expansão do desmatamento e invasão de madeireiros em seu território”.
No ano de 2016 a Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca foi a mais desmatada no Brasil, e,
segundo a FUNAI, “foram desmatados 680 hectares e degradados 1.773 hectares, até
setembro deste ano” (idem).
O aumento das taxas de desmatamento está atrelado, em muitos
contextos, à implementação dos grandes projetos econômicos. O
avanço do desflorestamento sobre a Amazônia revela-se como
preocupante ameaça no que diz respeito à manutenção dos processos de
vida (e dos direitos mais fundamentais) dos povos isolados. Segundo
os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), do
sistema DETER (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), das
30 terras indígenas (TI) mais desmatadas entre 2003 e abril 2016,
em 18 delas há registros ou relatos da presença de povos indígenas
isolados em seu interior ou regiões circunvizinhas. A TI Apyterewa,
no Pará, localizada no contexto da UHE Belo Monte, figura entre essa
relação. Há entre a Apyterewa a TI Araweté do Rio Ipixuna e a TI
Trincheira Bacajá, registro da presença de povos isolados, que vem
sendo pesquisado pela Funai nos últimos anos. Nesse conjunto de 18
terras indígenas mais desmatadas, em três há a presença confirmada de
isolados: as Terras Indígenas Piripkura/MT, Uru Eu Wau Wau/RO,
Arariboia/MA (AMORIM, 2016, p. 33, grifo nosso).
As grandes obras de infraestrutura
Os empreendimentos de grande porte na área de infraestrutura constituem um
fator que merece atenção específica dentre as principais ameaças contemporâneas à região
amazônica, aos povos indígenas, de modo geral, aos povos indígenas em situações de
isolamento, e a seus territórios. De acordo com a CIDH (2013, p. 52-53): “otra de las
fuentes de presión directa sobre los territorios por donde se desplazan los pueblos en
aislamiento voluntario es la construcción de carreteras, proyectos hidroeléctricos y otras
obras de infraestructura”.
São inúmeras as rodovias, ferrovias, hidrovias e usinas hidrelétricas construídas,
em construção e planejadas na Amazônia. Segundo Amorim (2016, p. 30):
O avanço da implementação de grandes projetos econômicos e de
infraestrutura na região amazônica configurou-se, desde sempre, como
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um dos maiores desafios da política pública de proteção dos direitos
desses povos. Observa-se, historicamente, que os projetos de
desenvolvimento econômico de grande impacto socioambiental, que
desencadeiam a ocupação e colonização desordenadas de imensas áreas
na região amazônica, desprovidos de diretrizes norteadoras exequíveis
para a garantia dos direitos dos povos indígenas, geram prejuízos
irreversíveis.
Neste sentido, é alarmante o cenário descrito por este autor:
Entre 2011 e 2015, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém
Contatados (CGIIRC) acompanhou, analisou e ofereceu subsídios à
Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental (CGLIC), em
respostas referentes a pelo menos 23 processos de licenciamento
ambiental de grandes obras, em diferentes fases de licenciamento,
alguns sequer saíram do papel e outros encontram-se, atualmente, em
plena operação. Figuram entre os processos, pelo menos, 12
hidrelétricas, 4 rodovias, 4 linhas de transmissão e 2 processos de
mineração ou petróleo/gás. Registramos, em análises preliminares, que
24 registros de povos indígenas isolados, entre esses 7 com existência
administrativamente confirmada, encontram-se em área de influência
direta ou indireta dos impactos desses projetos de infraestrutura
(AMORIM, 2016, p. 30-31).
Amorim (2016, p. 32) lista ainda as seguintes obras que afetam terras indígenas
com presença de povos indígenas em isolamento:
Dentre as usinas hidrelétricas (UHE), destacam-se a construção das
UHE Belo Monte, no médio rio Xingu; das UHE Jirau e Santo Antônio,
no rio Madeira; e Telles Pires, no rio Telles Pires, todas dispondo
atualmente de licenças de operação emitidas pelo IBAMA, e portanto,
em plena atividade. A construção dessas hidrelétricas foi levada
adiante sem que fosse proporcionado tempo e investimentos
necessários para que estudos adequados sobre a presença de
isolados fossem realizados previamente pela Funai. É imposta à
FUNAI uma atuação a reboque do cronograma de construção
dessas hidrelétricas, desconsiderando o tempo necessário a análises
adequadas sobre a viabilidade da obra quanto ao componente
indígena. Além disso, o número de técnicos na CGIIRC e CGLIC
para analisar esse imenso universo de processos de licenciamento
está muito aquém do necessário. É gritante, por exemplo, o contexto
da UHE Telles Pires, localizada aproximadamente 50 km da região da
Serra do Cachimbo e adjacências, a leste da Terra Indígena Kayabi,
região que compõe a bacia do rio Telles Pires, onde a Funai registra
indícios da presença de povos isolados sendo, aliás, uma região de
fronteira de desmatamento. O mesmo ocorre com relação à UHE São
Manoel, também no rio Telles Pires, divisa dos estados do Pará e Mato
Grosso, atualmente com licença de instalação emitida pelo IBAMA,
portanto em fase de construção. Na região onde se insere essa UHE,
além das informações a leste da TI Kayabi, há também um registro de
isolados que vivem em afluentes do lado esquerdo do rio Telles Pires,
no interior da Terra Indígena Apiaká do Pontal e Isolados, no interflúvio
desta bacia com a bacia rio Juruena. Cabe destacar, também, o caso do
asfaltamento da BR-429, realizado entre 2011 e 2012. Essa rodovia
interliga a cidade de Presidente Médici/RO, localizada no centro do
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estado de Rondônia, à cidade de Costa Marques/RO, localizada nas
margens do rio Guaporé, a leste. A estrada percorre aproximadamente
330 km, de leste a oeste do estado, 190 km dessa rota está localizada ao
sul da TI Uru Eu Wau Wau. Em alguns trechos, a rodovia chega a distar
apenas alguns poucos metros da demarcação física dessa terra indígena,
justamente na altura da Serra da Onça, região onde é confirmada a
presença de um grupo isolado: os Kawahiva do Rio Muqui. Mais
adiante, já entre os municípios de Seringueiras/RO e São Francisco do
Guaporé/RO, a rodovia dista entre 10 e 25 km da linha de demarcação
da TI Uru Eu Wau Wau, sendo essa a região de ocupação de outro grupo
isolado de tamanho expressivo: os Yraparariquara. [...] Conforme o
processo de licenciamento ambiental, em seu componente indígena,
uma das medidas para mitigação de impactos, financiadas pelo DNIT,
constitui-se no apoio à construção de Bases de vigilância e contratação
de pessoal para a realização de ações de vigilância e manutenção das
bases. No entanto, atualmente, apenas uma Base encontra-se em
funcionamento, em decorrência da falta de recursos humanos e do
integral cumprimento, por parte do empreendedor, das medidas de
mitigação de impactos. Esse fato tem colocado em sério risco os grupos
isolados dessa região, em virtude do incremento do avanço da ocupação
desenfreada e exploração dos recursos naturais nas regiões que
margeiam a estrada (AMORIM, 2016, p. 32, grifo nosso).
Vale ainda destacar a dimensão dos impactos provocados por este tipo de
empreendimentos. Segundo BARBER et al. (2014), as estradas são o principal indutor de
desflorestamento na Amazônia. Para cada 1km de estradas oficiais (73.553 km, no total)
existe cerca de 3km de estradas clandestinas (190.506 km, no total). 94% do
desflorestamento de toda a região amazônica se concentra em uma faixa de 5,5km de
distâncias das estradas (oficiais e clandestinas). Considerando-se apenas as estradas
oficiais, 73,9% do desmatamento da Amazônia está concentrado em uma faixa de 32km
de distância destas vias. As áreas desprotegidas acessíveis por estradas encontram-se
43,6% devastadas, enquanto 10,9% das áreas protegidas acessíveis por estadas foram
desmatadas. As áreas protegidas evitaram de 34 a 39 mil km² de desmatamento.
De acordo com FEARNSIDE (2015, p. 14-15) existem ao todo 113 usinas
hidrelétricas em operação, em construção, planejadas ou em planejamento na Amazônia
brasileira. Destas, 13 estão em operação, 38 estão em construção ou constam no Plano
Decenal de Expansão Energética (2012-2021), e outras 62 estão em planejamento.
Segundo o autor, nos demais países amazônicos existem 48 usinas (26 no Peru, 16 no
Equador, 6 na Bolívia) e outras 151 planejadas (79 no Peru, 60 no Equador, 10 na Bolívia
e 2 na Colômbia).
Não é difícil compreender por que os megaprojetos de infraestrutura são
abundantes e seguem em ritmo acelerado, mesmo sendo amplamente conhecidos os seus
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impactos. Basta observar a magnitude dos empreendimentos, a quantidade de recursos
investidos para viabilizá-los (predominantemente dinheiro público) e a quantidade de
riqueza gerada para as empresas responsáveis pela construção e gestão destes
empreendimentos. Grande parte destas obras não constitui necessidades ou demandas
específicas das populações locais. Têm como objetivo subsidiar e favorecer a
continuidade da ocupação territorial da Amazônia pelo modo de produção capitalista,
através da integração definitiva da região às rotas nacionais e globais de circulação de
mercadorias, com destaque atual para as vias interoceânicas.
Portanto, é preciso destacar que o Estado brasileiro tem participação e
responsabilidade direta no cenário descrito acima. A problemática observada não se deve
apenas à ausência do poder público na região amazônica, mas, sobretudo, ao
favorecimento de interesses privados através de políticas públicas. Dominado
historicamente e atualmente pelos interesses de suas elites, sobretudo o setor agrário-
exportador, o Estado foi e continua sendo o principal indutor e facilitador das dinâmicas
econômicas que promoveram e promovem a exploração predatória da Amazônia, e, deste
modo, ameaçam a sobrevivência e a autodeterminação dos povos indígenas em situações
de isolamento.
A expansão das fronteiras agrícolas, e pecuárias e a apropriação de terras públicas;
No Brasil, a expansão das fronteiras agropecuárias avançou do sul-sudeste para a
região central e norte do país, associada principalmente ao desflorestamento do Cerrado
e da Amazônia para constituição de latifúndios monocultores. Destaca-se o chamado
Arco do Desmatamento, região de aproximadamente 500 mil km² que registra os maiores
índices de desmatamento na Amazônia. Atualmente, porém, o avanço agropecuário
também ocorre de modo disperso por várias regiões, inclusive no interior da floresta e
não mais apenas em suas margens.
De acordo com o Barreto et al. (2017), atualmente a pecuária ocupa 65% da área
desmatada na Amazônia. O rebanho bovino na região saltou de 37 milhões de cabeças
em 1995 para 85 milhões em 2016 (40% do rebanho nacional). A sistemática do
desmatamento segue etapas já amplamente conhecidas: “o invasor derruba a floresta em
terra pública, vende madeira para se capitalizar, planta capim e coloca o gado. Mais tarde,
as terras de interesse da agricultura dão lugar ao cultivo de soja, arroz e milho” (PONTES,
2017, n.p.).
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O Narcotráfico
De acordo com a CIDH (2013, p. 78) as atividades relacionadas ao narcotráfico
constituem outra ameaça crescente à vida e à integridade dos povos indígenas em
situações de isolamento voluntário e contato inicial. Devido ao seu caráter ilegal, as
atividades de produção e principalmente de transporte de drogas costumam ser
camufladas em regiões remotas e de difícil acesso da floresta amazônica. Deste modo,
estas atividades por vezes se instalam ou transitam por regiões habitadas por povos
indígenas em isolamento. Assim, a ocorrência de encontros ocasionais ou mesmo
planejados resulta em violências das quais os povos indígenas geralmente são as maiores
vítimas. Devido às mesmas condições de distância e de difícil acesso a estas regiões
muitos casos de conflitos e matanças de índios isolados não chegam sequer ao
conhecimento público.
Según la información al alcance de la Comisión, las actividades de
narcotráfico amenazan, por ejemplo, al pueblo Toromona en
aislamiento voluntario en la frontera entre Perú y Bolivia, en la Zona
de Reserva Absoluta Toromona, creada por el Estado boliviano.
Asimismo, en la región de Made de Dios, en Perú, las actividades
relacionadas al narcotráfico estarían obligando a integrantes de
pueblos en aislamiento voluntario a salir de sus territorios ancestrales.
La CIDH también ha recibido información sobre rutas de narcotráfico
en la zona fronteriza entre Perú y Brasil, donde hay presencia de
pueblos en aislamiento en la Reserva Territorial Isconahua. Del lado
brasileño, la información indica que en las zonas remotas del estado
de Acre, narcotraficantes también se encontrarían en territorios con
presencia de pueblos en aislamiento y en contacto inicial. Por otra
parte, la CIDH cuenta con información de que en Colombia la política
pública relativa al pueblo Nükak en contacto inicial se centra en la
atención a la población desplazada por afectaciones vinculadas al
conflicto armado. Además, se recibió información sobre los intereses y
actividades relacionadas al narcotráfico en territorios habitados por
comunidades Ayoreo en aislamiento voluntario en Paraguay (CIDH,
2013, p. 78-79).
Estas atividades, portanto, representam um risco duplo para os povos em
isolamento, de acordo com a CIDH (2013, p. 79), porque, por um lado, a presença dos
narcotraficantes implica em risco de contato e de agressão aos PII, e, por outro lado, o
combate às atividades ilícitas tende a gerar o aumento da presença de agentes do Estado
nestas regiões, o que também incrementa as possibilidades e os riscos de ocorrência de
contatos com PII.
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A Mineração
Al igual que las incursiones a los territorios de los pueblos en
aislamiento voluntario con otros fines, las incursiones con fines de
extracción de recursos naturales significan un riesgo para los pueblos
en aislamiento no sólo por la afectación de sus recursos naturales, sino
también por el riesgo inherente de contacto que éstas suponen por la
presencia de terceros y por el ruido generado por motores, generadores
y otra maquinaria [...] En cuanto a la minería, la mayoría de las
incursiones son por parte de actores privados que actúan sin
autorización del Estado, pero que evaden las prohibiciones existentes.
Actividades de minería ilegal se conocen, por ejemplo, en Venezuela,
Perú y Brasil, donde se han dado casos de enfrentamientos violentos
entre trabajadores mineros y miembros de pueblos en situación de
contacto inicial. Em relación con el pueblo Yanomami, en la frontera
entre Brasil y Venezuela, se cuenta com información de actividades de
minería ilegal en las áreas cercanas al Alto Siapa, el Cerro Delgado
Chalbaud-Parima, el Alto Ocamo-Putaco-Matacuni, en el Estado
Amazonas, y en el Alto Caura y Alto Paragua, en el Estado Bolívar
(CIDH, 2013, p. 62-63, grifo nosso).
De acordo com Salomão e Veiga (2016, p. 377) “a Amazônia é a última fronteira
mineral importante da terra – especialmente a parcela contida no território brasileiro” e
possui “grande potencial mineral, comparável ao das principais regiões produtoras do
mundo”. Segundo Cardoso (2017, p. 2), “vivenciamos nesse início de século XXI o maior
boom mineral dos últimos 100 anos” e “estiveram à frente dessa expansão extrativista
grandes corporações de capital transnacional que comandam projetos de exploração em
grande escala em todo mundo”.
É importante ressaltar também que, dada a maior concentração de biodiversidade
em unidades de conservação ambiental e nos territórios indígenas, estas áreas são alvos
preferenciais das atividades madeireiras, de caça e pesca, e também da mineração.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA, 2017), nas Unidades de Conservação federais
e estaduais existentes na Amazônia, o desmatamento acumulado é de 1,47% destas áreas,
enquanto as áreas florestais fora de UC’s têm um desmatamento acumulado de 21%, ou
seja, um índice 14 vezes maior. Nas Terras Indígenas a situação é semelhante, apenas 2%
da área total das TI’s foi desmatada.
Neste contexto, importa destacar que o caráter capitalista e colonial do Estado
brasileiro é exercido através das seguintes medidas políticas, tomadas para viabilizar as
dinâmicas econômicas citadas: 1) alteração e fragilização de legislações, sobretudo do
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Código Florestal163 e dos processos de licenciamento ambiental164; 2) estagnação na
criação de novas áreas protegidas165; 3) decretos executivos e projetos legislativos
visando a extinção e/ou alteração do tamanho e do grau de proteção ambiental das
unidades de conservação existentes166; 4) “regularização” fundiária, legalizando a
apropriação das terras públicas que foram degradadas justamente em função da
expectativa de regularização167; 5) paralização/obstrução dos processos de demarcação
de terras indígenas168; 6) projetos legislativos visando a alteração dos procedimentos
constitucionais de demarcação das TI e, ainda, instituindo a possibilidade de revisão,
alteração e extinção das terras já demarcadas169; 7) projetos legislativos visando permitir
obras de infraestrutura, mineração, exploração de recursos naturais e agropecuária dentro
de terras indígenas170; e, por fim, 8) o corte sistemático de recursos humanos e financeiros
163 O Código Florestal Brasileiro foi alterado no ano de 2012, reduzindo de diferentes maneiras as exigências de proteção ambiental nas propriedades privadas. No mesmo sentido estão tramitando no Congresso Nacional projetos visando a fragilização das exigências para obtenção de Licenciamentos Ambientais. 164 Está em negociação no Congresso Nacional o Projeto de Lei (3.729/2004) que altera as exigências para obtenção de licenciamento ambiental – fragilizando-as em muitos aspectos – e acaba com a obrigatoriedade de licenciamento para alguns tipos de empreendimentos. Assim como ocorreu com o Código Florestal, a necessidade existente de atualização para o aprimoramento das leis é utilizada ao revés. 165 Existem 60 milhões de hectares de terras públicas sem destinação na Amazônia (quase duas vezes o território da Alemanha). Estas áreas são alvo preferencial de grileiros, posseiros e outros invasores (PONTES, 2017, n.p.). 166 Destaca-se o Decreto nº 9.142 de 22 de Agosto de 2017, através do qual “fica extinta a Reserva Nacional de Cobre e seus associados”, uma área de 46.450 km², localizada entre nove áreas protegidas na região entre os estados do Pará e Amapá. Outro caso emblemático é o da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, onde se propõe a redução do nível de proteção ambiental de 600 mil hectares da floresta Amazônica e a legalização de propriedades rurais invadidas e desmatadas na região. O caso abre precedente para outros projetos de lei do mesmo tipo, e, assim, cria a expectativa de que UCs invadidas sejam “regularizadas”, fomentando, assim, o desflorestamento na Amazônia. 167 Além do caso do Jamanxim, foi sancionada pelo Congresso Nacional a proposta do Executivo (MP 759/2016), denominada MP da grilagem, que permite a legalização massiva de propriedades em áreas públicas invadidas. 168 De acordo com o CIMI (2015, p. 49), existem atualmente 348 terras indígenas (TIs) com solicitação registrada no Ministério da Justiça, mas que se encontram sem providências dos órgãos responsáveis. Outras 175 TIs estão classificadas no processo administrativo como “A identificar”. Estas duas categorias somam aproximadamente 50% do número total de TIs do país. Além destas, 6 TIs encontram-se “com portarias de restrição”, 47 “identificadas”, 63 “declaradas”, 61 “reservadas” e 15 “homologadas” – etapas do longo processo administrativo, ao fim do qual as TIs são “registradas”. Em suma, o cenário é de 398 TIs registradas, 192 em processamento administrativo, e 348 sem providências. Vale lembrar que o artigo 67 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o prazo de 5 anos para a conclusão das demarcações de Terras Indígenas no Brasil. 169 A PEC 215/2000 retira do Executivo e transfere para o Congresso Nacional a atribuição de demarcar as Terras Indígenas, permite a revisão e anulação das TIs já demarcadas, além de outras mudanças nos procedimentos demarcatórios, como a diminuição do peso da FUNAI e dos laudos antropológicos na decisão. 170 O PLP 227/2012 pretende legalizar atividades econômicas no interior de terras indígenas sob a identificação de “relevante interesse público da União”. Entre estas atividades estão a agropecuária, obras
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visando exaurir a capacidade institucional e a credibilidade das instituições estatais
responsáveis pela proteção ambiental (IBAMA), pela promoção dos direitos dos povos
indígenas (FUNAI), e pelas políticas de reforma agrária (INCRA).
Se por um lado percebe-se uma mobilização da sociedade civil
organizada [restrita aos especialistas no tema] em defesa dos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato, e algumas reações localizadas
de setores governamentais a nível regional, por outro lado as forças
relacionadas ao agronegócio, empresas de energia e petróleo,
empreiteiras e mineradores, madeireiras, missionárias, ou seja, aqueles
setores interessados nos processos de integração da Amazônia aos
mercados globalizados encontram respaldo no legislativo, executivo e
judiciário e promovem uma onda “anti-indígena”, que resulta numa
conjuntura adversa para os direitos conquistados por esses povos (VAZ
e BALTHAZAR, 2013, p. 96).
Em compasso com estas medidas executivas e legislativas, verifica-se
historicamente uma espécie de segurança jurídica da impunidade quando se trata de
violações da legislação ambiental e dos direitos indígenas. Um estudo sobre crimes
ambientais em áreas protegidas federais na Amazônia aponta que: os processos duram em
média 5,5 anos; 86% dos crimes ficam impunes; 15% prescrevem; e apenas 14% dos
processos resultam em algum tipo de responsabilização. Por sua vez, esta
responsabilização é geralmente convertida em penas sociais dissociadas de fins
ambientais (como a doação de cestas básicas), e menos de 5% do valor total das multas
aplicadas é pago (BARRETO, 2009, p. 25). Dado o histórico de impunidade, os conflitos
territoriais seguem acirrados, e a assimetria de forças resulta em números trágicos de
violência contra os povos indígenas, comunidades tradicionais, ativistas ambientais e
defensores dos direitos humanos171.
Em suma, a impunidade e a anistia garantidos via regularização da posse de terras
públicas invadidas, flexibilização das leis ambientais e de licenciamento, e retirada de
direitos dos povos indígenas indicam que, no Brasil, os crimes ambientais e étnicos
compensam, são lucrativos, e até incentivados pelo Estado. De acordo com Amorim
(2016, p. 30) verifica-se que “as mesmas lógicas de exploração dos recursos naturais e de
de infraestrutura, e mineração. De acordo com o ISA (2016, online), “de um total de 44.911 processos minerários [solicitações de pesquisa e de lavra] na Amazônia brasileira, 17.509 incidem, total ou parcialmente, sobre TIs ou UCs”. 171 Segundo relatório da Global Witness (GW, 2014), entre 2002 e 2013 foram registrados 908 assassinatos de “environmental and land defenders” em 35 países. Destes casos, 448 ocorreram no Brasil (49,3%). A organização afirma ainda que as informações sobre este tipo de crime são escassas, e provavelmente os dados apontados são apenas uma amostra da dimensão real do fenômeno. No ano de 2015, foram registrados 185 assassinatos deste tipo ao redor do mundo, sendo 50 no Brasil. Deste total, 40% eram indígenas (GW, 2016).
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domínio fundiário continuam fortemente atreladas ao exercício do poder no Brasil, desde
a época da colônia até os dias atuais” (RIBEIRO 1982 apud AMORIM, 2016, p. 30).
Para aqueles povos que dependem exclusivamente dos recursos
existentes em suas terras, tal como os povos isolados, essa lógica
adquire contornos ainda mais preocupantes, por isso constituem
populações em situação de alto grau de vulnerabilidade. Tanto as
iniciativas formais de exploração dos recursos naturais e ordenamento
territorial - tais como os grandes projetos econômicos de infraestrutura
estatais e o interesse do agronegócio - quanto as vias informais (ou
ilegais) - como o interesse pelos recursos madeireiros, grilagem ou
garimpo - sempre constituíram um desafio a ser superado para
efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil (AMORIM, 2016,
p. 30).
Neste contexto, veremos mais adiante que um número crescente de grupos
indígenas identificados em situações de isolamento tem buscado estabelecer contatos com
habitantes do entorno de seus territórios, com outras etnias indígenas, e com postos de
assistência de órgãos indigenistas. Entre os motivos destes contatos, apontados pelos
órgãos indigenistas e em alguns casos pelos próprios índios, estão as pressões territoriais
e a escassez de alimentos dada a degradação ambiental de seus territórios e do entorno.
Esta situação têm despertado a atenção de diversas organizações. O que mais chama a
atenção, contudo, é a publicação de três cartas-denúncia, elaboradas pelos próprios
Coordenadores de Frentes de Proteção Etnoambiental da FUNAI e por ex-sertanistas,
mostrando o desmantelamento da política indigenista estatal e os graves riscos a que estão
submetidos os povos indígenas em isolamento.
Como vimos anteriormente, garantir o direito de autodeterminação dos povos,
reconhecido nacional e internacionalmente, significa, no caso dos indígenas em
isolamento, garantir condições para que estes grupos possam permanecer sem contato
com a sociedade envolvente, enquanto esta for sua opção. Várias ações são necessárias
para isto, tais como: fortalecimento político, institucional e financeiro dos órgãos
indigenistas; capacitação de profissionais; monitoramento dos registros existentes e
verificação de informações sobre novos grupos; conscientização das populações do
entorno de regiões com presença de PIIRC; elaboração e instrumentalização de planos de
contingência para casos emergenciais; produção e divulgação científica sobre estes
povos; informação e conscientização da sociedade civil; entre outros fatores.
Neste sentido, questiona-se se é possível estabelecer limites ao avanço do
capitalismo por toda a extensão terrestre? Mais especificamente, é possível impor limites
efetivos ao avanço da exploração predatória na Amazônia, tendo como fundamento a
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proteção dos povos indígenas isolados? Serão garantidas as condições para que os povos
indígenas que não desejam manter contatos com as sociedades não-indígenas tenham este
direito de autodeterminação assegurado? Vaz e Balthazar (2013, p. 99) questionam ainda
“quais serão os atores que poderão fazer avançar direitos como os de autodeterminação
de povos indígenas isolados”? Estas perguntas compõem a problemática que está por
detrás do assunto dos povos indígenas em situações de isolamento.
5.3.1 As três Cartas-denúncia dos Coordenadores de FPE e sertanistas (2013,2015,2017);
Apos 25 anos de execução do SPII, sempre com poucos recursos
humanos, financeiros e materiais, os resultados alcançados traduzem-
se em um conjunto de povos indígenas isolados “protegidos” e seus
territórios “juridicamente” constituídos. O exercício de eleger
prioridades diante de um grande número de referências a serem
trabalhadas, em vastas extensões de terras e de difícil acesso, com
notícias constantes de avistamentos de grupos indígenas isolados
expostos a perigos eminentes, sempre foi muito traumático (VAZ,
2013, p. 27).
Nesta seção faremos uma breve análise sobre as condições operacionais da
política de proteção aos povos indígenas isolados no século XXI, tendo como referência
o trabalho de Vaz (2013) e três cartas-denúncia, elaboradas por Coordenadores de Frentes
de Proteção Etnoambiental da FUNAI e por ex-sertanistas, mostrando o desmantelamento
da política indigenista estatal e os graves riscos a que estão submetidos os povos indígenas
em isolamento.
Segundo Vaz (2013, p. 23) vários encontros se sucederam ao I Encontro de
Sertanistas de Belém, em 1987, analisado anteriormente. De acordo com este autor,
“ocorreram encontros de sertanistas, promovidos pela FUNAI em: 1987, 1992, 1994,
1995, 1997, 2000, 2006, 2007” (idem):
em todos esses [encontros] foram constantes os relatos das dificuldades
enfrentadas pelos sertanistas, relativas à impropriedade das políticas
governamentais dirigidas à Amazônia; precariedade dos recursos
humanos e materiais para desenvolver os trabalhos de proteção dos
grupos indígenas isolados; gradual redução dos recursos financeiros,
atribuições e poder da FUNAI; ao desprestígio e falta de incentivo,
inclusive trabalhistas, para os trabalhadores das Frentes de Proteção;
aumento da pressão por parte das missões religiosas sobre os isolados e
recém-contatados; às dificuldades jurídico-administrativas quanto à
regularização fundiária de terras ocupadas por índios isolados; etc.
(VAZ, 2013, p. 23).
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Ainda de acordo com Vaz (2013, p. 23) no encontro ocorrido em abril de 2000,
“sete chefes de Frentes promoveram reunião para discutir a situação das Frentes”. Deste
modo, “reclamando de nunca terem sido atendidos nos seus pleitos, os sertanistas
dirigiram ao Presidente da FUNAI, Carlos Marés, uma série de providências que
deveriam ser adotadas pelo órgão”. Entre estas providências apontou-se a necessidade de
alteração de nomenclatura, criação de novas frentes e postos indígenas, contratação de
pessoal, ampliação orçamentária e “captação de recursos extraorçamentários, nacionais e
internacionais” (VAZ, 2013, p. 23).
Assim, a nova denominação das equipes de campo como Frentes de Proteção
Etnoambiental, que vimos anteriormente, ocorreu em resposta a esta atitude dos
sertanistas, resultando na publicação da Portaria nº 290/PRES, de 20/04/2000 (VAZ,
2013, p. 25).
Neste contexto, de constantes reivindicações dos funcionários da FUNAI que
trabalham diretamente com o tema dos povos indígenas em isolamento, é elaborada a
primeira carta, assinada por 9 Coordenadores de Frentes de Proteção Etnoambiental172
(2013) e endereçada para a “Diretoria Colegiada da FUNAI”. Neste documento de 5
páginas os coordenadores de FPE afirmam “manifestar nossa indignação e nossa
insatisfação acerca dos rumos que tomam a política brasileira de proteção aos índios
isolados e de recente contato” (CARTA-DENÚNCIA, 2013, p. 01). Os autores alertaram
que as consequências da situação verificada “sobre a vulnerabilidade física e cultural
desses povos, tem colocado o Estado brasileiro em situação de flagrante violação de
direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988” (idem).
Nestes parâmetros, os signatários denunciaram o sucateamento do Sistema de
Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC) diante do “descaso e
desrespeito por parte de setores da instituição [FUNAI] e do Governo com relação ao
SPIIRC”, colocando em “grave risco não só a efetividade e a competência dos nossos
trabalhos mas, sobretudo, a integridade dos povos indígenas isolados e de recente contato
(idem). Deste modo, os coordenadores exigiram “providências institucionais urgentes e
proporcionais [...] [que] exigem medidas estruturantes e articuladas [...] a fim de garantir
a continuidade e o fortalecimento desta importante política indigenista” (idem).
172 Altair José Algayer, Elias Bígio, Fábio Augusto Ribeiro, Fabrício Amorim, Guilherme Siviero, Jair Candor, Luciano Pohl, Manoel Edson da Silva, Rieli Franciscato e Rogério Vargas Motta.
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Apontando a necessidade de promover a motivação, reconhecimento e
qualificação das equipes das FPE, os signatários afirmam que:
Embora as FPEs desenvolvam um trabalho exemplar em algumas
regiões do Brasil há pelo menos 20 anos, sendo muitas vezes a única
referência estatal em áreas remotas de difícil acesso, atualmente as
FPEs contam com equipes pequenas, ineficientes e, em alguns
casos, inexistentes. Todos esses anos de trabalho no ensinaram que
equipes motivadas, qualificadas, reconhecidas e dedicadas são a
espinha dorsal dos trabalhos das Frentes de Proteção Etnoambientais.
No entanto, nossos servidores Auxiliares em Indigenismo, ingressos no
concurso de 2010, além de serem insuficientes em termos
quantitativos, em geral não apresentam a qualificação necessária
para o trabalho em campo exigido para o cumprimento das
atribuições das FPEs. Muitos deles não cumprem seu papel como
servidores públicos em razão de sua falta de compromisso com a missão
institucional do órgão. Outros tantos sequer demonstram interesse para
com as questões indigenistas. [...] Por outro lado, foram dispensados
servidores e colaboradores que historicamente contribuíram para
a execução da política brasileira de proteção aos índios isolados e
de recente contato, como é o caso dos mateiros, pilotos de
embarcação, zeladores das estruturas físicas das bases das FPEs,
cozinheiros de expedição, entre outros (idem, p. 01-02).
Assim, os signatários apontam outras situações que caracterizam acentuado
“déficit de pessoal” e “comprovada inviabilidade de funcionamento mínimo das FPEs
sem profissionais com perfis específicos”, exigindo um diálogo sincero sobre o processo
de estruturação das FPEs (idem, p. 02).
Outro assunto de extrema importância tratado nesta primeira carta foi a
necessidade de “regulamentação do exercício do poder de polícia das FPEs” para fazer
frente às situações em que as terras indígenas com presença de PIIRC “sofrem pressões
constantes de madeireiros, garimpeiros, narcotraficantes, milícias de fazendeiros,
etc.” (idem, grifo nosso).
Os autores apontam também a necessidade de “modificar a forma como são
executados os recursos destinados às ações das FPEs”, visto que questões administrativas
geraram uma histórica dificuldade em realizar a execução de recursos. Deste modo,
afirmam que “as FPEs funcionam sem o mínimo de estrutura e insumos” fazendo
inclusive com que os servidores precisem “gastar os próprios salários para suprir
demandas básicas para que pelo menos algumas FPEs não deixem de operar”, além do
que, indicam os signatários, verifica-se “FPEs que só existem em sua portaria de criação,
inoperantes” (idem, p. 02-03).
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Após este diagnóstico interno, os coordenadores de FPE passam a analisar o
“contexto geral da agenda desenvolvimentista do Estado brasileiro e suas consequências
sobre a política indigenista de proteção dos povos indígenas isolados e de recente
contato”. Assim, afirmam que:
Não compactuaremos com a pressão governamental por
empreendimentos (aproveitamento hidrelétricos, mineração, projetos
agropecuários, prospecção de petróleo, abertura de estradas, etc) que
afetem e ou ameacem direta ou indiretamente áreas com presença de
povos indígenas isolados e de recente contato. Não compactuaremos
com o desmonte dos direitos indígenas (vide PEC 215) orquestrado no
Congresso Nacional por setores chave do Governo Federal aliados às
bancadas mais retrógradas do cenário econômico e político brasileiro
(ruralistas, evangélicos, empreiteiras, mineradoras, pecuaristas,
sojeiros, madeireiros, garimpeiros, etc). Estamos indignados com o
desmonte da política indigenista e com o sucateamento e degradação do
papel da Funai no atual Governo. O retrocesso é de tal ordem que, no
caso do reconhecimento das Terras Indígenas, mesmo as Constituições
do Brasil Imperial eram mais favoráveis aos índios. Assim, a cada dia
que passa temos mais certeza de que o sucateamento da Funai em geral
e das FPEs em particular, assim como a paralisação de processos
fundiários de Terras Indígenas faz parte de um amplo movimento anti-
indígena em escala nacional, com sérios impactos sobre o bem-estar
físico e cultural de povos isolados e de recente contato (idem, p. 03).
Então, com base neste cenário, os signatários desta primeira carta-denúncia
solicitam uma reunião com a Diretoria Colegiada da FUNAI para discutir e encontrar
soluções para os assuntos em questão. Em seguida, apresentam 23
propostas/reivindicações para o fortalecimento do SPIIRC, entre as quais destacamos:
1. Estruturação e fortalecimento político, administrativo e técnico de
todas as FPEs. (Destaca-se a necessidade de reestruturação da FPE
Envira, viabilização administrativa e técnica da FPE Yanomami – com
a criação de uma CR para atuar conjuntamente na TI Yanomami – e a
estruturação e fortalecimento da FPE Awa Guaja). [...] 3. Organizar
renião com todos os coordenadores e convidados especialistas para
discursão sobre o SPIIRC, proposição e atualização de normas e
definição de estratégias de enfrentamento e contextos desfavoráveis;
[...] 8. Realizar concurso em modelo que venha selecionar pessoas com
aptidão em atividades de campo, em locais remotos e de difícil acesso.
[...] 12. Definir procedimentos para proibição do ingresso de
instituições missionárias em Terras Indígenas com índios isolados e/ou
de recente contato; 12. Pactuar sobre o andamento dos processos de
identificação de Terras Indígenas, principalmente aquelas com presença
de índios isolados e de recente contato. Exigimos a imediata
demarcação da TI Kawahiva – paralisada até o momento no MJ – e da
TI Kaxuyana-Tunayana – paralisada no âmbito da FUNAI. Exigimos a
imediata extrusão da TI Awa, da TI Omerê, da TI Yanomami, da TI
Uru Eu Wau Wau (Burareiro), da TI
e da TI Cachoeira Seca; [...] 15. Desenvolver planos de contingência
em casos de contatos e surtos epidêmicos; 18. Definir o
posicionamento institucional de reconhecimento da decisão dos
300
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índios isolados e de recente contato, como NÃO
CONSENTIMENTO para realização de empreendimentos, etc. que
os afete, tal como se presume e respeita a não imposição do contato;
19. Priorizar o apoio às atividades de confirmação de referências
de índios isolados, sobretudo aquelas mais ameaças devido à
proximidade de empreendimentos; 20. Estabelecimento de acordos e
protocolos com outros países com relação aos índios isolados na
fronteira; 21. Fortalecer e aprimorar a ferramenta normativa “Restrição
de Uso” [...] (idem, p. 3-5).
A segunda destas cartas foi endereçada ao Presidente da FUNAI no ano de 2015,
e assinada por 5 coordenadores de FPE173 e também por 3 ex-sertanistas174 não ligados à
FUNAI naquele momento. Este documento não apenas reitera o cenário de 2013, como
indica o agravamento das condições políticas e de operacionalidade do órgão. Inicia-se
apontando a fragilidade político-institucional visto que o comandante do órgão naquele
momento era “o primeiro presidente da FUNAI a ser nomeado e efetivado no cargo, após
uma prolongada e fragilizada gestão da política indigenista por presidentes interinos”
(CARTA-DENÚNCIA, 2015, p. 01).
Neste contexto, os signatários afirmam apresentar um posicionamento coletivo
acerca da gestão da CGIIRC, tendo como base a Carta dos coordenadores de 2013, visto
que apenas algumas das demandas apresentadas naquela ocasião foram atendidas, “apesar
do compromisso assumido por essa gestão em assegurar o atendimento dessas demandas
e da então Presidente as ter considerado justas e factíveis de serem encaminhadas” (idem).
Das ações de proteção identificadas e eleitas como prioritárias pelos
Coordenadores de Frente para diminuir a vulnerabilidade dos povos
indígenas isolados e de recente contato, pouquíssimas foram de fato
consideradas e deslanchadas pela gestão, o que agravou ainda mais o
cotidiano das Frentes, que já operavam com grandes dificuldades (idem,
p. 02).
Novamente atribuiu-se destaque à falta de recursos humanos e de núcleos
administrativos, que há tempo dificultava e/ou inviabilizava o cumprimento dos trabalhos
de campo, além de causar sobrecarga administrativa para os Coordenadores “impedindo-
os de realizarem os seus respectivos planos de trabalho a contento”. Deste modo, afirma-
se que “os problemas relatados pelos Coordenadores de Frente, em 2013, continuam
atuais e agravados” (idem).
Um fato novo trazido pela carta-denúncia de 2015 foi a preocupação com a
atuação de uma organização da sociedade civil, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI),
173 Altair José Algayer, Elias Bígio, Fabrício Amorim, Jair Candor, Rieli Franciscato. 174 Antenor Vaz, José Carlos dos Reis Meirelles e Marcelo dos Santos.
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na execução do “Projeto de Proteção para os Índios Isolados da Amazônia Brasileira”, o
que ocorreu, segundo os signatários, “com total anuência da CGIIRC” (idem). Os autores
da carta lembram que a coordenação e execução da política de proteção dos PII é
atribuição exclusiva do Estado, independentemente da origem dos recursos. Embora o
projeto tenha como objetivo fortalecer a política de proteção aos PII, os signatários
observam que em função desta terceirização, “a CGIIRC, mesmo tendo total
conhecimento da precariedade das Frentes, permitiu que fossem alocados recursos
irrisórios para o aprimoramento da política pública de proteção em campo”. Por estes
motivos, os signatários manifestaram o seguinte:
Discordamos veementemente dessas decisões, pois desconsideram a
importância da atuação qualificada e necessária das FPE(s) na
supervisão dos trabalhos que lhes competem. Outrossim, lamentamos
profundamente que a CGIIRC tenha se manifestado favorável à
aprovação deste projeto junto ao BNDES e expressamos nosso
estranhamento quanto ao fato do referido projeto almejar a criação de
um suposto sistema de proteção ‘paralelo’, retirando das FPE(s) o que
lhes compete, a articulação regional da Política de Proteção aos
Índios Isolados e de Recente Contato (idem, p. 03).
Por fim, em uma crítica direta à gestão da CGIIRC, os signatários apontam a falta
de diálogo e transparência com a base, ressaltando a contribuição dos experientes
sertanistas e indigenistas envolvidos há anos com a política de proteção aos PIIRC, e
“avaliando os pontos positivos e negativos da atuação da CGIIRC nos últimos anos,
concluímos que os pontos negativos se sobrepõem consideravelmente”. Assim, concluem
que solicitando que “se inicie um processo de transição da CGIIRC, que objetive a
retomada do diálogo e confiança com a base, criando um ambiente propício para o
fortalecimento da política indigenista” (idem, p. 04).
Já a terceira e mais recente destas cartas foi publicada em 2017 por dois
coordenadores de FPE, Fabio Ribeiro e Fabrício Amorim, com o título “Carta-denúncia:
O desmantelamento da política pública indigenista e o risco de genocídio de povos
isolados e de recente contato no Brasil”. Os autores demonstram a persistência do cenário
adverso exposto nas duas cartas anteriores, das quais, inclusive, eles foram signatários.
Por ter sido publicada em um periódico acadêmico175, esta carta apresenta mais detalhes
sobre a política para PIIRC, e é direcionada à sociedade civil, diferentemente das duas
cartas anteriores, direcionadas aos cargos de comando da própria FUNAI.
175 Aracê – Direitos Humanos em Revista, Ano 4, Número 5, Fevereiro de 2017.
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Tendo em vista os processos – efetivados nos últimos anos nas esferas
dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Estado Brasileiro –
de desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai) e de violação dos
direitos dos povos indígenas, a presente nota tem como objetivo alertar
a sociedade civil organizada, as organizações indígenas e indigenistas,
e os organismos nacionais e internacionais de defesa dos direitos
humanos sobre o risco iminente de genocídio a que estão submetidos
diversos povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil
(RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 194, grifo dos autores).
Assim, após apresentarem brevemente as categorias administrativas de povos
indígenas “isolados” e de “recente contato” e a política pública indigenista voltada para
esses povos, os autores realizam “uma caracterização do processo de desmonte do órgão
indigenista oficial e, finalmente, das principais ameaças territoriais a que estão
submetidos diversos povos isolados e de recente contato no Brasil” (RIBEIRO;
AMORIM, 2017, p. 194).
O primeiro elemento denunciado pelos autores é o desmonte que a FUNAI, de
modo geral, bem como a política específica para PII, vêm “passando nos últimos anos, e
sem dúvida com muito maior intensidade nos últimos meses, por um processo de
sucateamento e desestruturação”. Ressaltam ainda que “tal processo vem se dando
paralelamente ao processo de ataque aos direitos dos povos indígenas garantidos pela
Constituição Federal de 1988 e por diversos instrumentos jurídicos subsequentes” (idem,
p. 198, grifos dos autores). A fim de demonstrar a gravidade dos fatos apontados pelos
autores, reproduzimos a seguir um longo trecho da carta-denúncia:
Na esfera do poder executivo, gostaríamos de mencionar as
consequências desastrosas da continua redução orçamentária sobre as
atividades das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE). A título de
exemplo, temos atualmente cerca de 17% a menos de orçamento por
FPE comparativamente ao ano de 2009. Em 2016 em particular, os
decretos presidenciais de bloqueio orçamentário e de paralisação
administrativa da Funai colocaram em risco de paralisação diversas
FPEs e afetaram seriamente o andamento das atividades de proteção
territorial em campo. Outro aspecto grave é a não reposição, por meio
de concurso público, do quadro de servidores da Funai. A escassez
crônica de recursos humanos e de tal ordem que atualmente as FPEs
tem a relação aproximada de 01 servidor para cada 300 mil hectares de
Terras Indígenas (TIs) com a presença de povos indígenas isolados. Por
conta desses fatores, atualmente 8 das 27 Bases de Proteção
Etnoambiental (BAPEs) localizadas em pontos estratégicos da
Amazônia Legal encontram-se paralisadas por falta de recursos
e/ou de pessoal. (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 198, grifos dos
autores).
No âmbito do poder legislativo os autores indicam as seguintes ações como
exemplos dos ataques direcionados ao órgão indigenista e aos direitos dos povos
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indígenas no Brasil: a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para
investigar supostas irregularidades praticadas pela Funai; a Proposta de Emenda
Constitucional nº 215 (PEC 215) que visa a mudar as regras do processo de demarcação
de Terras Indígenas no Brasil, e a aprovação da PEC nº 55, que limitou por 20 anos os já
reduzidos gastos públicos em todas as áreas.
Os autores afirmam que apesar da atuação fundamental do Ministério Público
Federal na defesa dos direitos indígenas, a esfera do poder judiciário “também não está
imune aos interesses contrários aos povos indígenas e ao órgão indigenista”, o que se
verifica por meio de “diversas decisões recentes em diferentes instâncias do judiciário, e
relativas aos processos de regularização fundiária de diversas Terras Indígenas no Brasil
[...] e ao licenciamento de grandes empreendimentos” (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p.
198-199). De acordo com os autores:
Provas desse desmonte efetivado pelo Estado Brasileiro são as cartas
com reivindicações que os Coordenadores das Frentes de Proteção
Etnoambiental vem encaminhando formalmente para a Diretoria
Colegiada e para a Presidência da Funai desde 2013. Além disso, o
processo mais geral de sucateamento da política indigenista e de ataque
aos direitos indígenas foi devidamente identificado e caracterizado no
“Diagnóstico Sistêmico sobre Organização e Funcionamento da Funai”,
elaborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e no “Relatório
da Missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os Direitos dos
Povos Indígenas”, elaborado pela Sra. Victoria Tauli-Corpuz, Relatora
Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (RIBEIRO;
AMORIM, 2017, p. 199, grifos dos autores).
Nestes parâmetros, Ribeiro e Amorim (2017, o. 199) apresentam sua perspectiva
sobre as “ameaças territoriais e o risco de genocídio” a que estão expostos os PIIRC,
como resultado deste processo de desmantelamento da política pública indigenista.
Segundo os autores, “a situação atual de desmatamento das Terras Indígenas é alarmante,
conforme atestam os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)” (idem).
Destaca-se que:
Dentre as 30 Terras Indígenas mais desmatadas entre 2003 a abril de
2016, em 18 Terras Indígenas há registros de povos isolados em seu
interior ou em regiões circunvizinhas, sendo que em 3 Terras
Indígenas está confirmada a presença de povos isolados (TI
Arariboia/MA; TI Piripkura/MT e TI Uru Eu Wau Wau / RO).
Juntas, essas 18 TIs acumularam o desmatamento a corte raso de 113
mil hectares no período. A Terra Indígena Cachoeira Seca, habitada
pelo povo Arara (recente contato), e atualmente uma das recordistas de
desmatamento. Dentre as 50 Unidades de Conservação mais
desmatadas entre 2003 a abril de 2016, em 10 UCs há registros da
presença de povos isolados, sendo que o desmatamento nessas 10 UCs
juntas totalizaram 84 mil hectares de corte raso. Outras Terras Indígenas
304
304
com presenca de povos isolados e/ou de recente contato também se
encontram fortemente pressionadas por madeireiros, garimpeiros,
colonos, pescadores, narcotraficantes e missionários
fundamentalistas. Dentre estas podemos mencionar: Awá/MA,
Caru/MA, Apyterewa/PA, Ituna-Itatá/PA, Jacareúba-Katauixi/AM,
Kawahiwa do rio Pardo/MT, Yanomami/RR-AM, Vale do Javari/AM,
Rio Omerê/RO, Kaxuyana-Tunayana/PA, Kampa e Isolados do
Envira/AC, Pirititi/RR e Zo’é/PA (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 199,
grifos dos autores).
Acerca das ameaças decorrentes de obras de infraestrutura, os autores afirmam
que “a CGIIRC/FUNAI acompanhou e subsidiou com informações nos últimos anos pelo
menos 23 processos de licenciamento ambiental de empreendimentos de grande porte”,
entre os quais estão “grandes usina hidrelétricas, pavimentação de rodovias, construção
de linhas de transmissão, entre outros” (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 199-200).
Segundo os autores “esses grandes empreendimentos abrangeram regiões onde há 24
registros de povos isolados, sendo 7 desses registros confirmados” (idem, p. 200).
Nesse contexto, ocorreu uma gritante desproporcionalidade e
incompatibilidade entre os ritmos e cronogramas dos estudos de
impacto (e das subsequentes fases de licenciamento) e o tempo e os
investimentos proporcionados a Funai/CGIIRC para a realização de
estudos de investigação sobre as dinâmicas de ocupação e presença de
grupos isolados nessas regiões. Essa discrepância acarretou,
inevitavelmente, na violação dos direitos mais fundamentais desses
povos, conforme a CF 1988 (usufruto exclusivo dos recursos naturais)
e a Convenção 169 da OIT (direito de consulta livre, prévia e
informada). Podemos citar, por exemplo, os casos da UHE Belo Monte
(no rio Xingu), da UHE São Manoel (no rio Teles Pires) e da UHE
Santo Antônio (no rio Madeira) (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 200).
Neste contexto, os autores indicam que “os seguintes povos isolados e de recente
contato estão em situação atual de extrema vulnerabilidade” (idem):
Awá Guajá isolados e de recente contato (MA), Piripikura (MT),
Kawahiwa do rio Pardo (MT), Moxihatetea (RR), Índio do Buraco,
(RO) Akunstu (RO), Kanoê (RO), povo indígena do Xinane (AC),
Korubo isolados (AM), os Yrapararikuara (RO), os Kawahiva do rio
Muqui (RO), isolados da Massaco (RO) e, possivelmente, diversos
outros povos isolados cuja existência está sendo estudada pela
Funai (RIBEIRO; AMORIM, 2017, p. 200, grifo nosso).
Por fim, é de grande importância o seguinte cenário destacado pelos autores:
Temos o entendimento de que os interesses dos setores ruralistas,
evangélicos e dos grandes empreendimentos (mineração,
hidroelétricas, construção/pavimentação de rodovias, etc.), atuantes nos
três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) do Estado Brasileiro,
são os principais responsáveis pelo processo de desmonte da Funai,
pelo ataque aos direitos indígenas e, consequentemente, pelo iminente
305
305
risco de genocídio a que estão submetidos diversos povos isolados e de
recente contato que vivem no território brasileiro, sobretudo aqueles
localizados em áreas de forte pressão territorial (RIBEIRO; AMORIM,
2017, p. 200-201, grifos dos autores).
Diante da gravíssima situação identificada, os autores finalizam a carta-denúncia
apresentando três conjuntos de inciativas indispensáveis para “fortalecer a política
pública e afastar a possibilidade de desaparecimento de povos indígenas isolados e de
recente contato”:
(i) o Estado Brasileiro respeite o que está disposto nos artigos 231 e 232
da Constituição Federal de 1988 assim como na Convenção no 169 /
OIT, principalmente no que tange aos direitos territoriais, aos direitos a
diferença e ao direito à autodeterminação;
(ii) recursos orçamentários e humanos sejam garantidos de maneira
adequada ao universo de atuação da Funai/CGIIRC e das Frentes de
Proteção Etnoambiental. Nesse sentido, é fundamental que sejam
realizados investimentos tanto em ações de localização em campo (com
vistas a qualificação de informações sobre os 77 registros ainda não
confirmados de povos isolados) como para a reabertura das bases
atualmente fechadas e para a estruturação das que operam atualmente
com fragilidade (com vistas a garantir a proteção dos territórios dos 26
povos isolados confirmados);
(iii) sejam desenvolvidos, a luz dos instrumentos jurídicos e normativos
vigentes, mecanismos e metodologias que evitem que os territórios de
povos isolados e de recente contato sejam impactados direta ou
indiretamente por grandes empreendimentos (RIBEIRO; AMORIM,
2017, p. 201).
5.3.2 A Capacidade Institucional da CGIIRC/FUNAI;
Apesar de ser considerada referência internacional, o fato é que a
comprovada fragilização e diminuição da capacidade operativa da
Funai nos últimos anos, aliada à própria antiguidade da política pública
– que em 2017 cumpre 30 anos de implementação – são aspectos que
compõe um cenário futuro extremamente preocupante. No mínimo, o
Estado deve cumprir com seus deveres constitucionais, efetivando no
campo normativo e na prática estatal o direito dos povos indígenas
306
306
isolados a viverem conforme seus usos, costumes, tradições - e decisões
(AMORIM, 2016, p. 37).
Nesta seção apresentamos os dados e tabelas pesquisados sobre a capacidade
institucional da FUNAI e da CGIIRC para cumprirem suas funções. Vejamos
primeiramente, os dados orçamentários da FUNAI e da CGIIRC, nos últimos 20 anos176.
Não pretendemos fazer uma análise detalhada destes montantes gerais, eles servem
apenas como parâmetros diante do tamanho da área e do número de registros de povos
indígenas que a FUNAI/CGIIRC tem sob sua responsabilidade.
Tabela 12 - Dados Orçamentários da FUNAI de 1997 a 2017.
Exercício Dotação orçamentária
autorizada (R$)
Despesa realizada (R$)
1997 175.418.145,00 151.706.674,81
1998 158.644.606,00 148.113.329,38
1999 180.395.278,00 165.276.686,52
2000 176.838.348,00 154.246.384,85
2001 201.402.561,00 190.287.668,75
2002 206.248.988,00 191.592.519,99
2003 212.239.775,00 202.244.278,60
2004 235.048.052,00 184.155.985,98
2005 252.765.349,00 199.346.508,31
2006 252.823.864,00 217.648.546,40
2007 297.617.950,00 241.754.495,92
2008 381.856.288,00 288.297.274,26
2009 413.861.932,00 381.837.268,96
2010 481.733.639,00 324.822.421,88
2011 533.042.019,00 450.334.040,37
2012 560.242.335,00 464.076.973,54
2013 634.575.057,00 516.089.274,33
2014 600.030.567,00 532.999.825,00
2015 653.323371,00 529.829.905,68
2016 536.194.679,00 523.388.109,08
2017 553.016.396,00 264.785.326,80 (até agosto)
Fonte: Elaboração própria com base em Pedido de Informação à FUNAI (2017)
No longo prazo, verifica-se um aumento gradual da dotação orçamentária
autorizada para a FUNAI, até o ano de 2015, bem como da quantidade de recursos
efetivamente gastos. Entretanto, de acordo com o ISA (2017, n.p.):
A Funai jamais dispôs de recursos suficientes para efetuar plenamente
suas funções e seu orçamento está em queda desde 2013. Mas nos
últimos dois anos a situação se agravou. Em 2016, o já baixo orçamento
inicial previsto para o órgão foi de R$542 milhões, correspondente a
176 Utilizamos este período pois os dados fornecidos sobre a CGIIRC, via pedido de informação à FUNAI (2017), se iniciam no ano de 1997.
307
307
0,018% do orçamento da União. Sob a justificativa de contribuir com o
ajuste fiscal, este montante foi reduzido em R$137 milhões.
Estes números compõem o cenário político nacional, caracterizado pelos
movimentos indígena e indigenista, já há alguns anos, como o mais perigoso desde a
Constituição de 1988, com fortes ações de retrocesso e de ataque aos direitos indígenas.
Entre as variadas iniciativas políticas que representam este cenário, destacam-se a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC)177 215/2000 e o Projeto de Lei Complementar
(PLP)178 227/2012.
Além disso, o sucateamento da FUNAI decorre não apenas da insuficiências dos
recursos orçamentários, mas também da insuficiência de recursos humanos, e,
principalmente, de força e autonomia política para executar suas obrigações
constitucionais. Segundo Relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2014a,
n.p.) tal cenário é composto pela “total paralisação dos processos de demarcação de terras
indígenas, que teve reflexos diretos no acirramento de conflitos nas aldeias em todo o
país”. Somam-se também os “altos índices de mortalidade infantil, suicídio, assassinato,
racismo e desassistência nas áreas de saúde e de educação” (idem).
Em suma, o cenário das terras indígenas no país é constituído por 398 TIs
registradas, 192 em processamento administrativo, e, de acordo com o CIMI (2015, p.
49), existem ainda atualmente 348 terras indígenas (TIs) com solicitação registrada no
Ministério da Justiça, mas que se encontram sem providências dos órgãos responsáveis.
Vale lembrar que o artigo 67 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o prazo de 5
anos para a conclusão das demarcações de Terras Indígenas no Brasil.
Existem 30 processos de demarcação de áreas já identificadas pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) como terras indígenas tradicionais que não têm
nenhum impedimento administrativo ou litígio judicial. Ou seja, não há
nenhuma pendência ou obstáculo para a efetivação da demarcação dessas
177 Em suma, a PEC 215/2000 retira do Executivo e transfere para o Congresso Nacional a competência de aprovar as demarcações de Terras Indígenas, além de estabelecer a revisão de todas as TIs já demarcadas. As razões e as consequências desta proposta podem ser facilmente explicadas pela força dos interesses contrários à demarcação de mais terras indígenas, muito bem representados no Congresso Nacional, o extremo oposto do que ocorre em relação aos povos indígenas. 178 Já o PLP 227/2012, apelidada “legalização do latifúndio em terras indígenas”, baseia-se na previsão constitucional de que seja elaborada uma lei complementar para regulamentar situações excepcionais nas quais o relevante interesse público da União poderá implicar em compartilhamento do uso fruto de um determinado território indígena. Através desta lei os representantes do agronegócio “pretendem legalizar latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas, empreendimentos econômicos, projetos de desenvolvimento em terras indígenas sob o pretexto de um situação excepcional, prevista na Constituição para ser realizada numa situação de guerra ou epidemia” (SANTILI, 2013 n.p.). Disponível em: em: http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/plp-227-a-legalizacao-do-latifundio-em-terras-indigenas-e-a-indecisao-do-governo-entrevista-com-marcio-santilli.
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terras. Desses 30 processos, 12 depende somente da assinatura da Portaria
Declaratória [...] 17 terras aguardam a homologação [...], e um processo
aguarda a expedição do Decreto de Desapropriação. Outros cinco processos
estão na mesa da presidência da Funai, [...], aguardando apenas a assinatura de
aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.
(CIMI, 2014b, online).
Por fim, o movimento indígena e indigenista aponta que os interesses do
agronegócio, de empreiteiras, de mineradoras e de empresas de energia hidrelétrica
impedem o governo de cumprir suas obrigações constitucionais. Novamente segundo o
relatório do CIMI (2014, n.p.), “como é de conhecimento público, estes setores são
justamente os inimigos históricos dos povos indígenas e os principais responsáveis pelos
massacres, etnocídios e espoliações dos territórios destes povos”.
Além disso, de acordo com Milanez (2017a):
Há uma dança das cadeiras em marcha na Funai, com indicações
políticas que preocupam servidores e lideranças indígenas por servir
não aos povos indígenas, mas apos interesses de quem indica. Ainda
para CGIIRC, a coluna apurou que está planejada a indicação de um
engenheiro elétrico, sem nunca ter trabalhado com povos indígenas. Ele
passou, no entanto, mais de 20 anos em uma gigante mineradora. O
cargo para o qual ele está cotado é direcionado ao planejamento,
orçamento e estratégia para o trabalho em campo das Frentes de
Proteção. Além disso, o deputado Edio Lopes (PR-RR), relator de um
projeto de lei que visa abrir as terras indígenas para mineração, teve
recentemente uma audiência com o presidente da Funai, Franklinberg
Freitas. Apurei que estas articulações visam facilitar a entrada da
mineração em Terras indígenas, inclusive ocupadas por povos isolados.
Diante deste cenário, vejamos a seguir o orçamento disponível especificamente
para a CGIIRC.
Tabela 13 - Dados Orçamentários da Coordenação Geral de Índios Isolados e de
Recente Contato (CGIIRC) de 1997 a 2016.
Despesas Discricionárias: Dotação Autorizada no encerramento de cada exercício
CUSTEIO INVESTIMENTO
TOTAL
ÍNDIOS
ISOLADOS
RECENTE
CONTATO
ÍNDIOS
ISOLADOS
RECENTE
CONTATO
1997 445.054 - 70.990 - 516.044
1998 329.800 - 60.000 - 389.800
1999 266.556 - 65.000 - 331.556
2000 366.660 - 72.000 - 438.660
2001 670.830 - 72.000 - 742.830
2002 478.000 - 72.000 - 550.000
2003 646.000 - 104.000 - 750.000
309
309
2004 646.000 - 104.000 - 750.000
2005 600.000 - 150.000 - 750.000
2006 650.000 - 100.000 - 750.000
2007 1.000.000 - 250.000 - 1.250.000
2008 1.351.560 - 174.500 - 1.526.060
2009 1.351.560 - 446.600 - 1.798.160
2010 1.665.500 - 334.500 - 2.000.000
2011 2.765.500 - 334.500 - 3.100.000
2012 2.565.500 800.000 334.500 100.000 3.800.000
2013 3.261.435 743.028 310.679 92.879 4.408.021
2014 5.661.435 743.028 110.914 33.157 6.548.534
2015 4.063.005 741.460 1.077.640 33.087 5.915.192
2016 2.939.173 492.302 43.500 - 3.474.975
Emenda Parlamentar: Dotação Autorizada no encerramento de cada exercício
CUSTEIO INVESTIMENTO
TOTAL
ÍNDIOS
ISOLADOS
RECENTE
CONTATO
ÍNDIOS
ISOLADOS
RECENTE
CONTATO
2009 350.000 - 100.000 - 450.000
2010 - - - - 0
2011 - - - - 0
2012 - - - - 0
2013 - - - - 0
2014 490.000 - - - 490.000
2015 490.000 - - - 490.000
2016 480.000 - - - 480.000
Fonte: Pedido de Informação à FUNAI (2017).
A partir destes dados, daremos ênfase, a seguir, na análise das quantidades de
unidades ativas e de servidores disponíveis nas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE)
e nas Bases de Proteção Etnoambiental (BAPE). Segundo Amorim (2016, p. 36) a
CGIIRC conta atualmente com “27 Bases em campo, no entanto 6 foram fechadas entre
2012 e 2015” e outras 4 Bases estão com risco de paralisação “por falta de recursos
humanos e financeiros [...] enquanto as Bases que seguem em funcionamento operam
com recursos muito aquém do necessário”. Lembramos, uma vez mais, que existem 51
registros de informações de povos indígenas em isolamento ainda não verificados pela
CGIIRC/FUNAI. De acordo com Amorim (2016, p. 36):
Há um crescente e gradual enfraquecimento da política pública, por
falta de interesse político e limitações orçamentárias (Ribeiro &
Amorim 2017), conjuntura essa agravada pela mudança de governo que
310
310
ocorreu recentemente. Em 2016, o governo Temer publicou o Decreto
n. 8859, de 26 setembro, que modificou o Decreto de
contingenciamento orçamentário publicado em fevereiro desse mesmo
ano. Esse novo Decreto provocou o bloqueio total do orçamento
previamente destinado à Funai. Apenas no final de novembro de 2016,
após uma forte pressão por parte das equipes das FPE’s, houve a
liberação de uma parcela financeira à CGIIRC, permitindo às FPE’s
manterem-se abertas, entretanto respirando, ainda, com dificuldade.
(AMORIM, 2016, p. 36).
De acordo com este autor, “o orçamento previsto nos últimos anos para a política
de isolados está muito abaixo do necessário para manter as 11 FPE” (idem).
Para piorar o cenário, o orçamento previsto para a CGIIRC, conforme
a Lei Orçamentária Anual para 2017, é na ordem de (pelo menos) 40%
a menos comparando com o ano de 2015. Como se não bastasse, este
ano (2017) o governo decidiu bloquear e limitar repasses orçamentários
à FUNAI, tendo como alicerces o Decreto n. 8961/2017 e o 9018/2017,
que contingencia e bloqueia as dotações Orçamentárias (AMORIM,
2016, p. 36).
Como resultado deste processo Amorim (2016, p. 36) aponta a possibilidade de
“novos fechamentos de Bases (notadamente no Vale do Javari e médio Rio Purus) e o
aumento vertiginoso de invasões de terras indígenas com a presença de povos isolados”.
Outros fatores alarmantes apontados pelo autor são: “o garimpo ilegal no interior da TI
Yanomami [que] está ganhando status de calamidade pública [...] a invasão da TI Uru Eu
Wau Wau, em Rondônia, e o retorno de invasores e posseiros na TI Awá, no Maranhão”.
Além disso, “observamos a intensificação de iniciativas de exploração ilegal de madeira
e grilagem na TI Kawahiva do Rio Pardo” (AMORIM, 2016, p. 36).
Nesse contexto de ataque aos direitos indígenas, a Coordenação-Geral
de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), vive uma situação
de emergência orçamentária, dispondo apenas de 60% do orçamento de
2015. A desestruturação da Funai praticamente tem inviabilizado ações
de proteção das terras indígenas e dos aparatos de proteção aos povos
em isolamento (MILANEZ, 2017a).
Com base neste cenário, vejamos, na página seguinte, a relação de servidores
atuando nas Frentes de Proteção Etnoambiental.
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311
Tabela 14 - Frentes de Proteção Etnoambiental – Servidores (Ago./2017)
FPE Servidores Unidades Descentralizadas179 Localização Coord. Regional
AWÁ
32 servidores, destes, 12 atuando
em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL AWÁ São Luís/MA MARANHÃO - Imperatriz/MA
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL AWÁ I Santa Inês/MA
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL AWÁ I Santa Inês/MA
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL AWÁ II Imperatriz/MA
CUMINAPANEMA
4 servidores, destes, 3 atuando
em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL CUMINAPANEMA Santarém/PA CENTRO LESTE DO PARÁ - Altamira/PA
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM SANTARÉM I Santarém/PA
ENVIRA
11 servidores, destes, 7 atuando
em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL ENVIRA Rio Branco/AC ALTO PURUS - Rio Branco/AC
SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL ENVIRA Tarauacá/AC
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM FEIJÓ - XINANE Feijó/AC
GUAPORÉ
5 servidores, destes, 4 atuando
em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMB. GUAPORÉ Alta Floresta D´Oeste/RO JI-PARANÁ - Ji-Paraná/RO
SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMB. GUAPORÉ II Corumbiara/RO
SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMB. GUAPORÉ II Alta Floresta D´Oeste/RO
MADEIRA-
PURUS
8 servidores, destes, 7 atuando
em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMB. MADEIRA-PURUS Lábrea/AM MÉDIO PURUS - Lábrea/AM e MADEIRA
- Humaitá/AM SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMB. MADEIRA-PURUS I Lábrea/AM
SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMB. MADEIRA-PURUS II Lábrea/AM
SERVIÇO DE PROTEÇÃO ETNOAMB. MADEIRA-PURUS III Lábrea/AM
FRENTE DE PROT. ETNOAMB. MADEIRINHA-JURUENA Cuiabá/MT
179 “As Unidades Descentralizadas listadas na 'Coluna 3' são unidades que prescindem de um Cargo de Assessoramento Superior (DAS) para serem criadas, logo, cada uma delas tem um servidor responsável. No caso das FPEs, um Coordenador (DAS 101.3) dos Serviços de Proteção Etnoambiental, um chefe de serviço (DAS 101.1) e das Coordenações Técnicas Locais, um chefe de CTL (DAS 101.1). As Coordenações Regionais (CRs) listadas na 'Coluna 5' são responsáveis por prestar apoio administrativo às Frente de Proteção Etnoambiental (FPEs) no que se refere a operacionalização de recursos financeiros e humanos” (FUNAI, 2017, n.p.).
312
312
MADEIRINHA-JURUENA
6 servidores, destes, 4 atuando
em campo
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL MAD-JURUENA I Cuiabá/MT CUIABÁ - Cuiabá/MT e JI-PARANÁ - Ji-
Paraná/RO SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL MAD-JURUENA II Alta Floresta/MT
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL MAD-JURUENA III Ji-Paraná/RO
MÉDIO- XINGU
5 servidores, todos atuam em campo
FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL MEDIO XINGU Altamira/PA CENTRO LESTE DO PARÁ - Altamira/PA
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL MEDIO XINGU Altamira/PA
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM ALTAMIRA (I) Altamira/PA
URU-EU-WAU-
WAU
3 servidores, destes, 2 atuam em
campo
FRENTE DE PROT. ETNOAMB. URU-EU-WAU-WAU Ji-Paraná/RO JI-PARANÁ - Ji-
Paraná/RO COORD. TÉCNICA LOCAL GOVERNADOR JORGE TEIXEIRA Gov. Jorge Teixeira/RO
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM MONTE NEGRO Monte Negro/RO
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL JI-PARANÁ III Ji-Paraná/RO
WAIMIRI-ATROARI
2 servidores, todos atuam em campo
FRENTE DE PROT. ETNOAMBIENTAL WAIMIRI-ATROARI Manaus/AM CR MANAUS - Manaus/AM COORD. TÉCNICA LOCAL EM PRESIDENTE FIGUEIREDO Presidente Figueiredo/AM
VALE DO JAVARI
11 servidores, destes, 10 atuando
em campo
FRENTE DE PROT. ETNOAMBIENTAL VALE DO JAVARI Atalaia do Norte/AM VALE DO JAVARI -
Atalaia do Norte/AM e ALTO SOLIMÕES -
Tabatinga/AM
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL VALE DO JAVARI I Eirunepé/AM
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL VALE DO JAVARI II Tabatinga/AM
SERVIÇO DE PROT. ETNOAMBIENTAL VALE DO JAVARI III Atalaia do Norte/AM
COORD. TÉCN. LOCAL EM ATALAIA DO NORTE - QUIXITO Atalaia do Norte/AM
YANOMAMI YE’KUANA
16 servidores, destes, 14 atuam
em campo
FRENTE DE PROT. ETNOAMB. YANOMAMI YE'KUANA Boa Vista/RR RORAIMA - Boa Vista/RR e RIO NEGRO
- São Gabriel da Cachoeira/AM
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM AMAJARI (I) Amajari/RR
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM AMAJARI (II) Amajari/RR
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM BOA VISTA (I) Boa Vista/RR
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM ALTO ALEGRE Alto Alegre/RR
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM CARACARAÍ Caracaraí/RR
COORDENAÇÃO TÉCNICA LOCAL EM BARCELOS Barcelos/AM
Fonte: FUNAI (2017).
313
313
É difícil imaginar como este quadro extremamente reduzido de servidores pode ser
responsável por trabalho de tamanha complexidade, como temos visto ao longo desta pesquisa,
em áreas tão vastas, como são as Frentes de Proteção Etnoambiental. Com esta capacidade
institucional, as FPE precisam atender à quantidade de referências seguinte:
Tabela 15 - Registros de PIIRC por Frente de Proteção Etnoambiental
Fonte: VAZ (2013, p. 75).
Vale lembrar ainda que as FPE são compostas também por Bases de Proteção
Etnoambiental, responsáveis pelos trabalhos em campo, nas regiões habitadas por PIIRC. Ou
seja, além de realizar os trabalhos administrativos e de localização, proteção, monitoramento,
etc., o reduzido quadro de servidores deve ainda garantir presença constante nas BAPEs.
Tabela 16 - Bases de Proteção Etnoambiental Ativas e Desativadas (2017)
BASES DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL JURISDIÇÃO
BAPE Sul - TI Awá (ativa)
BAPE Norte - TI Awá (ativa) FPE Awá
Terras Indígenas: Caru, Awá e Araribóia
MARANHÃO
BAPE Zo´é - TI Zo´é (ativa) FPE Cuminapanema
Terras Indígenas: Zo´é, Trombetas-Mapuera,
Nhamundá-Mapuera, Paru D´leste, Tumucumaque -
PARÁ e AMAZONAS
BAPE D´Ouro - TI Alto Tarauacá (ativa) BAPE
Xinane - TI Kampa e Isolados do Rio Envira
(ativa)
FPE Envira
Terras Indígenas: Mamoadate, Kampa e Isolados do
Rio Envira, Kaxinawá do Rio Humaitá, Riozinho do Alto
Envira, Kaxinawá do Rio Jordão, Jaminaua/Envira,
FRENTES INFORMAÇÃO REFERÊNCIA EM ESTUDO
REFERÊNCIA CONFIRMADA
RECENTE CONTATO
TOTAL GERAL
Awá 06 01 02 01 10
Cuminapanema 02 04 - 01 07
Envira 01 01 04 - 06
Guaporé 02 01 02 02 07
Madeira 05 03 01 - 09
Madeirinha juruena
07 04 01 01 13
Médio Xingu 07 02 - 03 12
Purus 03 - 01 01 05
Uru-Eu-Wau-Wau
04 - 02 02 08
Vale do Javari 06 03 11 02 22
Waimiri-Atroari
02 02 01 01 06
Yanomami 11 01 01 02 15
TOTAL GERAL 56 22 26 16 120
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Kaxinawá Ashaninka do Rio Breu, Igarapé Taboca do
Alto Tarauacá - ACRE
BAPE Omerê - TI Rio Omerê (ativa)
BAPE Massaco - TI Massaco (ativa) FPE Guaporé
Terras Indígenas: Massaco, Rio Omerê, Tanaru e
Parque Indígena Aripuanã –
RONDÔNIA E MATO GROSSO
BAPE Canuaru - TI Hi-Merimã (ativa)
BAPE Piranha - TI Hi-Merimã (ativa)
BAPE Suruwahá - TI Zuruwahá (ativa)
BAPE Mari - TI Jacareúba-Katawixi (desativada)
FPE Madeira-Purus
Terras Indígenas: Hi-Merimã, Zuruwahã e Jacareúba-
Katawixi;
AMAZONAS / RONDÔNIA
BAPE Piripkura - TI Piripkura (ativa)
BAPE Kawahiva - TI Kawahiva do Rio Pardo
(ativa)
FPE Madeirinha-Juruena
Terras Indígenas: Kawahiva do Rio Pardo e Piripkura;
MATO GROSSO, AMAZONAS e PARÁ
BAPE Koatinemo - TI Koatinemo (ativa)
BAPE Transamazônica - TI Arara (ativa) FPE Médio Xingu
Terras Indígenas: Xipaya, Kuruaia, Cachoeira Seca,
Kararaô, Ituna/Itata, Koatinemo, Trincheira Bacajá,
Araweté/Ig. Ipixuna, Apyterewa, Baú, Menkragnoti,
Parque Indígena Do Xingu e Kayapó - PARÁ
BAPE Bananeira - TI Uru-Eu-Wau-Wau (ativa)
BAPE Cautário - TI Uru-Eu-Wau-Wau
(desativada)
FPE Uru Eu Wau Wau
Terra Indígena: Uru-Eu-Wau-Wau;
RONDÔNIA
BAPE Pirititi - TI Waimiri-Atroari (ativa) FPE Waimiri Atroari
Terra Indígena: Waimiri-Atroari;
BAPE Ituí-Itaquaí - TI Vale do Javari (ativa)
BAPE Quixito - TI Vale do Javari (ativa)
BAPE Jandiatuba - TI Vale do Javari (desativada)
BAPE Curuçá- TI Vale do Javari (ativa,
responsab. da CR VJ)
FPE Vale do Javari
Terra Indígena: Vale do Javari;
AMAZONAS
BAPE Serra da Estrutura - TI Yanomami
(desativada)
BAPE Ajarani - TI Yanomami (sendo ativada)
BAPE Uraricuera - TI Yanomami (desativada)
BAPE Mucajaí - TI Yanomami (desativada)
FPE Yanomami
Terra Indígena: Yanomami; Municípios: Alto
Alegre/RR, Amajari/RR, Boa Vista/RR, Caracaraí/RR,
Mucajaí/RR, Iracema/RR, São Gabriel da
Cachoeira/AM, Barcelos/AM e Santa Isabel do Rio
Negro/AM
Fonte: adaptado a partir de FUNAI (2017).
De acordo com Vaz (2015), o déficit de Bases de Proteção Etnoambiental e de Equipes
de localização de PIIRC pode ser verificado a partir da apresentação da situação da
CGIIRC/FUNAI realizada pelo próprio órgão em sessão no Senado Federal.
Tabela 17 - Situação da CGIIRC/ FUNAI para Localização e Proteção Territorial dos Povos
Indígenas Isolados no Brasil (2015)
Frente de
Proteção
Etnoambiental
(FPE)
Bases de Proteção - BAPE Equipes de Localização
Necessárias Existentes Fechadas
(2011-
2015)
Necessárias Existentes
Envira (AC) –
Fronteira com Peru
5 2 1180 1 0
180 A Base de Proteção Etnoambiental Xinane, foi reativada após o contato dos índios Tsapanaua em 2014.
315
315
Javari (AM) –
Fronteira com Peru
5 4 1 2 0
Awá (MA) 5 2 1 1 0
Cuminapanema
(PA)
3 1 0 2 0
Guaporé (RO) 3 3 1 1 0
Madeirinha-Juruena
(MT)
4 2 2 2 0
Madeira-Purus
(AM/RO)
2 1 1 2 1
Médio Xingu (PA) 1 0 0 2 1
Yanomami e
Ye’kuana (RR/AM)
Fronteira com
Venez.
8 3 3 3 0
Waimiri Atroari
(RR/AM)
1 0 0 1 0
Uru Eu Wau Wau
(RO)
2 2 1 1 0
FPE
Monitoramento da
Amazônia Legal
0 0 0 1 0
TOTAL 39 20 10 18 02
Fonte: adaptado de Vaz (2015).
Portanto, este é o cenário que caracteriza a capacidade institucional da CGIIRC/FUNAI.
Pelas informações oferecidas pela FUNAI (2017) a CGIIRC dispõe de 103 servidores atuando
nas FPEs e BAPEs, as quais são responsáveis por 103 registros de povos indígenas em situações
de isolamento, além de 18 povos indígenas de recente contato. Portanto, há menos de 1 servidor
para cada registro de PIIRC no Brasil.
Consideramos importante, por fim, fazer referência aos desafios estruturais e
conjunturais identificados por Vaz (2013, p. 27) no âmbito da política para povos indígenas em
isolamento e recente contato, “bem como questões que se colocam na ordem do dia, alguns
provenientes da própria eficácia do SPII, implantados ao longo dessas três últimas décadas, e
outros por fatores que surgem com implementação das políticas de desenvolvimento atuais”.
No aspecto estrutural, o autor aponta os seguintes desafios:
• Poucas FPEs com escasso recurso humano diante de muitas referências a
serem pesquisadas (em campo) em um espaço geográfico muito extenso e de
difícil acesso. Nestas condições o SPII não tem atuado de maneira funcional.
Trabalha-se o tempo todo nas emergências;
• Ausência de políticas ‘transfronteiriças’ de proteção (defesa de direitos dos
povos indígenas isolados e de recente contato);
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• Reformas administrativas implantadas na administração pública dificultam
a implementação do SPII em regiões remotas e longe das bases
administrativas da FUNAI;
• Escassez de recursos humanos, materiais, etc.;
• Necessidade de novo perfil de quadros de servidores para trabalharem,
provenientes de concurso público; (VAZ, 2013, p. 28, grifo nosso).
No âmbito conjuntural, o autor destaca:
• Aumento da competição da frente expansionista/desenvolvimentista, por
territórios ocupados por índios isolados e de recente contato, inclusive nas
regiões de divisas internacionais;
• Falta de apoio político dos poderes constituídos: legislativo, executivo e
judiciário;
• Aumento das ações proselitistas e econômicas ilegais sobre os povos e
territórios indígenas;
• Empreendimentos de grande impacto derivados de políticas econômicas de
Estado e de programas de governo e privados que afetam regiões com
presença de índios isolados e de recente contato (VAZ, 2013, p. 28).
Ainda segundo Vaz (2013, p. 28) “nas regiões onde as FPEs atuam com trabalhos de
vigilância e monitoramento territorial constata-se”:
• Índios isolados coletando produtos das roças dos índios contatados e levando
objetos industrializados;
• Torna-se mais frequente a aparição de índios isolados nas margens dos rios;
• Aumento considerável de grupos recém-contatados solicitando maior
interação com a cultura ocidental e produtos industrializados de maior valor;
• Índios contatados que coabitam território com índios isolados expressam
intenção de promover o contato e/ou passam a ocupar regiões tradicionais dos
índios isolados;
Assim, de acordo com Amorim (2016, p. 19) “nos últimos, anos a gradual precarização
da FUNAI em campo tem colocado em risco os avanços alcançados ao longo de 30 anos de
implementação da atual política indigenista direcionada aos povos isolados”. Observa-se, de
acordo com Vaz (2013, p. 30) que “as disputas em torno da questão indígena, como ocorrem
desde o tempo colonial, têm como cenário de fundo o ordenamento territorial e seus recursos
naturais” (VAZ, 2013, p. 30).
Apesar das limitações e da impossibilidade de implementar o SPII em sua
plenitude, é possível constatar a sua eficácia bem como o seu princípio
norteador: o respeito à decisão destes povos de se manterem isolados,
enquanto expressão de sua autodeterminação. As experiências e reflexões
acumuladas por todos os sertanistas, indigenistas, auxiliares, mateiros e
colaboradores na implementação do SPII, concebido em 1987, apontam
caminhos diferenciados que contribuem para seu aperfeiçoamento, bem como
para a definição de novos instrumentos frente aos desafios contemporâneos
(VAZ, 2013, p. 27).
317
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5.4 O aumento dos casos recentes de contatos e de situações de risco: o caso do Xinane
(2014) e as suspeitas de massacres no Vale do Javari (2017);
Após analisarmos a política pública brasileira específica para PIIRC, o panorama atual
destes povos, e a capacidade institucional da FUNAI/CGIIRC para cumprir suas atribuições,
nesta seção buscou-se identificar como a continuidade e o aumento das pressões territoriais,
invasões e violências têm afetado os povos indígenas em isolamento nos últimos anos. Como
vimos anteriormente, a CIDH alerta para a ocorrência de agressões diretas e matanças de povos
indígenas em situações de isolamento:
Los miembros de pueblos indígenas en aislamiento voluntario y contacto
inicial también han sido víctimas de agresiones físicas directas, que han
causado numerosas muertes. Además de las obvias afectaciones a las víctimas
de las agresiones, éstas también tienen un impacto en la capacidad del pueblo
afectado para sobrevivir como tal, dado el reducido número de integrantes
con que la mayoría de estos pueblos cuentan (CIDH, 2013, p. 73).
Los incidentes de violencia mencionados ejemplifican de manera cruda la
presión sobre los territorios de los pueblos en aislamiento voluntario y
contacto inicial. La Comisión recuerda que los Estados tienen el deber de
prevenir dichos hechos violentos en contra de los pueblos indígenas, y si se
presentan, tienen la obligación de investigar los hechos de una manera
culturalmente apropiada que tome en cuenta los sistemas de justicia
indígenas y, de ser pertinente, castigar a los responsables (CIDH, 2013, p.
76).
De acordo com Amorim (2016, p. 33, grifo nosso):
Embora haja nos últimos anos avanços comprovados de implementação da
política pública (Amorim 2016), pelo menos desde 2013 os coordenadores das
FPE alertam sobre a gradual precarização das condições estruturais das FPE,
o sucateamento geral da política pública e as consequências disso no aumento
da vulnerabilidade dos povos isolados e de recente contato, colocando “o
Estado brasileiro em situação de flagrante violação de direitos indígenas”181.
Tais alertas vieram a se confirmar em 2014 e 2015, período em que
ocorreu uma série de contatos e conflitos envolvendo povos isolados.
A tabela a seguir mostra o aumento do número de contatos estabelecidos por grupos
indígenas em isolamento após o ano de 2014.
181 Carta-denúncia dos Coordenadores de FPE (2013).
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Tabela 18 - Contatos estabelecidos após 1987182
Grupo Indígena Contatado
Ano Estado OBS
01 Zo’é 1987 PA Em 1982, missionários evangélicos da Missão Novas Tribos do Brasil efetivaram o contato. Em 1989 a FUNAI retirou os missionários e assumiu a proteção dos Zo’é.
02 Arara PA TI Cachoeira Seca – Em 1987 consolida-se o contato como último subgrupo Arara.
03 Piripikura 1989 MT Contatados 03 indígenas, hoje continuam 03 indígenas
04 Akuntsu 1995 RO Contatados 08 indígenas: hoje 05
05 Kanoê RO Contatados 04, hoje 03
06 Korubo 1996 AM Contatados 16. Hoje ver ítens 09 e 11 abaixo
07 Awá (Tupi Guarani)
1989 e 1992
MA O Sistema de Proteção Awá, contatou parte do grupo Awá do Juriti, Tiracambu e Aparitiua (MA), Terra Indígena Awá-Guajá, entre os anos de 1989 e 1992
08 Shapanawa /Pano (Xinane)
Junho 2014
AC Grupo indígena contatado na TI Kampa e isolados do Rio Envira, no Rio Envira, aldeia Simpatia - (Estado do Acre, região de fronteira com Peru). Contatados 28 indígenas (hoje num total de 35) . Relatam ataques e mortes por metralhadora. Região com presença de narcotraficantes.
09 Korubo 2014 Setembro e Outubro
AM Dois contatos na TI Vale do Javari (Rio Itaquaí – Amazonas) totalizando 21 indígenas. Relatam que (antes do contato) ocorreram mortes de no mínimo 14 indígenas, ocasionados por gripe e malária.
10 Awá (Tupi Guarani)
Dez 2014 MA Três indígenas (um rapaz e duas senhoras) da etnia Awa Guajá na TI Caru, MA, nas cabeceiras do igarapé Juriti. Relatam morte por arma de fogo e grande invasão madeireira. Pós contato agravou-se a situação destes três indígenas sendo necessário remoção de uma senhora para tratamento em centro urbano. Em 2017 as duas indígenas restabelecem o isolamento e retornaram à mata.
11 Korubo 2015 Setembro
AM Em 26 de setembro de 2015, indígenas Matis, da aldeia Tawaya, levaram até o Posto Indígena de Saúde da SESAI 04 crianças Korubo isoladas. Um grupo de 08 Matis (adultos) retornaram até a aldeia dos Korubo Isolados para devolver as crianças. Uma delas já apresentava coriza. Posteriormente a FUNAI e SESAI chegaram até o local onde os Matis mantinham os Korubo (forçadamente) contatados (TI Vale do Javari, Rio Branco – Amazonas) e implementaram o Plano de Contingência para situações de Contato. Hoje, computando todos os indígenas contatados (incluindo os contatados em 1996), existe um total de 83 Korubo contatados.
Fonte: adaptado183 de VAZ (2017, p. 10)
Sobre este cenário, é necessário dedicar muita atenção ao diagnóstico feito a seguir por
Vaz (2017, p. 10-11, grifo do autor):
182 Ano em que é estabelecida a Política específica para PIIRC, baseada na proteção do direito ao isolamento, ou no paradigma do “Não-Contato”. 183 Adaptações foram feitas apenas no design e na cor da tabela. Nada do texto foi alterado.
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Observa-se que entre os anos de 1987 e 1996, ocorreram 07 contatos,
correspondendo a uma média de 0,7 contatos por ano. Entre os anos de 1997
e 2013 (17 anos) não ocorreu nenhum contato. Já entre 2014 e 2015 (01 ano
e 09 meses) 05 contatos em menos de 2 anos. Sem sombra de dúvidas
podemos afirmar que estes contatos não são voluntários. A análise das
motivações que levaram os isolados a ‘procurarem’ o contato, dos contatos
entre 2014 e 2015, dois relatam mortes por armas de fogo, três relatam
território invadido e um dos grupos contatados (Korubo) informa mortes por
malária e/ou gripe. O último contato estabelecidos com um grupo de 21
Korubo, protagonizado por um grupo de indígenas da etnia Matis, ocorreu sob
pressão destes últimos, inclusive com o uso de arma de fogo. Um conjunto de
motivações, incluindo a falha na implementação da Política de Proteção e
Promoção dos Direitos para os PIIRC, tem contribuído para aumentar os
fatores que colocam os PIIRC em situações de risco, levando-os, na maioria
dos casos, a procurarem o contato como única alternativa de sobrevivência.
O autor ainda complementa sua análise da seguinte maneira:
Informações acerca dos Povos Indígenas Isolados - PII no Vale do Javari
(Amazonas), Maranhão, Acre, etc. nos coloca em situações de alerta,
evidenciando a possibilidades de novos contatos. Em Rondônia, Roraima,
Amazonas e Mato Grosso tem-se avistado indígenas isolados com maior
frequência. Nestes casos é urgente que se inicie todo um trabalho de
fortalecimento das ações preventivas de saúde junto às populações do entorno,
como forma de diminuir os agentes transmissores de infecção. Por outro lado
é preocupante a existência de 51 informações sobre a presença de PII sem
algum trabalho de monitoramento e/ou de localização o que impossibilita
confirmar/refutar a existência destes povos184 (VAZ, 2017, p. 11-12).
Nota-se, portanto, que o aumento contínuo das pressões sobre os territórios com
presença de PIIRC, somado à negligência estatal para com a política de proteção destes povos,
tem levado um número significativo e crescente de grupos a abandonarem o isolamento em
busca de ajuda contra ameaças externas. Veremos brevemente a seguir dois casos recentes que
compõem este cenário. O primeiro é o caso do contato dos índios Shapanawa, ocorrido em
2014 na região do rio Envira, no Acre. O segundo é a suspeita, mediante fortes indícios, da
ocorrência de um massacre de índios isolados por garimpeiros na Terra Indígena Vale do Javari,
Amazonas, em 2017.
A diáspora e o contato dos Shapanawa, os índios isolados do Xinane, em junho de 2014;
No ano de 2014, um grupo indígena até então denominado como “isolados do Xinane”
tomou a iniciativa de estabelecer contato com a aldeia “Simpatia”, localizada na Terra Indígena
184 “Cinco Grupos de recente contato estão com cobertura frágil do Sistema de Proteção: Arara (TI Cachoeira Seca), Araweté (TI Araweté do Igarapé Ipixuna), Hupdah, Yuhupde (TI Rio Negro), Juma (TI Juma), Tsohom Dyapá (TI Vale do Javari). No caso dos Tsohom Djapá a Coordenação regional de Atalaia e a FPE Vale do Javari realizaram uma expedição na região. Nos outros casos a CGIIRC atua por meio das Coordenações Regionais com repasses de recursos e articulação” (VAZ, 2017, p. 11, nota 33).
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Kampa e Isolados do Rio Envira, no estado brasileiro do Acre, região de fronteira entre Brasil
e Peru.
Mapa 7 - Região de fronteira Brasil-Peru - Contato do Xinane
Fonte: PRINGLE (2015).
O grupo indígena dos “isolados do Xinane” é conhecido por órgãos indigenistas já há
bastante tempo. Estima-se que este grupo seja um dos 4 grupos em isolamentos apontados por
Castillo (2002) e avistados em sobrevoos e fotografados pela FUNAI nos anos de 2005 e 2006.
Desde então, foram vistos na região algumas vezes, principalmente na estação de seca, quando
o nível dos rios baixa e os indígenas se estabelecem nas praias dos rios para suas atividades de
subsistência. Ciente destas informações, a FUNAI estabeleceu a Base de Proteção
Etnoambiental (BAPE) com o nome de Base Xinane. De acordo com Amorim (2016, p. 33-34):
O povo indígena do Xinane, ao longo de mais de duas décadas em que a Base
esteve em funcionamento, manteve-se próximo de forma intermitente,
coletando furtivamente produtos da roça ocorrendo, inclusive, alguns ataques
à equipe (Milanez 2015). Embora estivessem frequentemente nos arredores da
Base, a equipe não incentivava quaisquer contatos, era uma relação
estabelecida à distância (AMORIM, 2016, p. 34).
Porém como já é amplamente conhecido pelas autoridades, a região de fronteira entre
Brasil (Acre) e Peru (Ucayali e Madre de Diós) é alvo da atuação constante de madeireiros e
de narcotraficantes. Assim, após sofrer vários ataques fortemente armados, e devido às
precárias condições de funcionamento já verificadas, a base de proteção foi fechada no ano de
2011.
O primeiro contato desse período ocorreu em 2014, no alto rio Envira, na TI
Kampa e Isolados do Rio Envira. Nessa região havia, até 2011, uma Base da
321
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FPE Envira, criada em 1988. O fechamento dessa Base ocorreu por conta de
invasões sucessivas de narcotraficantes, do pouco apoio recebido de outros
órgãos à Funai, e das dificuldades orçamentárias e de recursos humanos. O
contato com o povo indígena do igarapé Xinane ocorreu em 2014 numa aldeia
Ashaninka, de nome Simpatia, localizada próximo à Base, à jusante do rio
Envira. Acredita-se que o fechamento da Base em 2011 pode ter contribuído,
de certa forma, para o posterior contato em 2014. [...] O fechamento da Base,
em 2011, aliado à presença de madeireiros e de narcotraficantes no lado
peruano da fronteira, pode ter provocado deslocamentos mais frequentes dos
índios às aldeias localizadas abaixo, notadamente a Simpatia, onde acabou
ocorrendo o contato em 2014 (AMORIM, 2016, p. 33-34).
Nesta aparição dos isolados do Xinane, após a chegada de intérpretes indígenas da etnia
Jaminawa, os índios do Xinane relataram que vieram de sua aldeia, a 6 dias de caminhada dali,
onde vivem aproximadamente 60 indivíduos. Relataram também que seu grupo fora vítima de
diversos ataques armados no curso do alto Rio Envira (PRINGLE, 2015; WATTS, 2014). Trata-
se de um evento comum, frequentemente levado a cabo por narcotraficantes presentes na região
e que se valem das dificuldades de acesso e da escassa fiscalização para transportar cocaína do
Peru, grande produtor, para o Brasil, grande mercado consumidor. A atividade de exploração
madeireira também é intensa na região e da mesma maneira resulta em invasões de territórios
e ataques aos indígenas com bastante frequência. Segundo Amorim (2016, p. 34).
Segundo a revista The Guardian, os índios relataram o seguinte ao intérprete da FUNAI:
“A maioria dos índios mais velhos foi massacrada por tiros e incêndios provocados nas malocas
[...] morreu tanta gente que não conseguimos enterrar todos, e seus corpos foram comidos por
abutres” (WATTS, 2014, n.p.). Disseram ainda que seu grande receio em estabelecer o contato
é o conhecimento que têm das doenças do “homem branco”. No mesmo sentido, Amorim (2016,
p. 34) afirma que:
Os índios recém contatados, em conversa com a equipe no pós contato,
relataram terem sofrido ataques armados, mostrando aos funcionários as
cicatrizes provocadas por armas de fogo. Em estudos realizados recentemente
pela FUNAI (Amorim 2015), observou-se que a partir da segunda metade da
década de 2000 o povo indígena do Xinane interiorizou, gradualmente, sua
ocupação para dentro do território brasileiro, constituindo seus roçados cada
vez mais afastados da fronteira do Brasil com o Peru. No mesmo período,
registrou-se a intensificação da exploração legal de madeira naquela região do
território peruano (Fagan 2007).
É interessante notar como o caso relatado pelos índios do Xinane em 2014 se assemelha
com as descrições encontradas na literatura antropológica sobre as “correrias de índios”,
promovidas nos primeiros anos do século XX, quando da exploração da seringa e do caucho
também na região de fronteira entre Brasil e Peru.
A abertura dos seringais e a extração do caucho representaram para os povos
indígenas a invasão de seus territórios e o início de um longo período de
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violência. Por quase meio século, as correrias, expedições armadas
organizadas por patrões e caucheiros, foram usadas para matar, perseguir,
capturar e afastar grupos indígenas [...] queimando suas malocas e destruindo
seus roçados. A violência foi tão grande que muitos povos foram dizimados
[...] Mesmo com a definitiva instalação dos seringais, correrias continuaram a
ser realizadas em certas regiões para manter os índios “brabos” afastados das
colocações, segundo os patrões, para “dar segurança” aos seringueiros e
garantir a produção da borracha. (IGLESIAS et al, 2010, p. 10-13).
Amorim (2016, p. 34) afirma que “com o advento do contato, a Base [Xinane] foi
reaberta de forma improvisada, a custas (inclusive financeiramente) do esforço dos servidores
da Funai e de apoiadores. Em que pese as imensas dificuldades, a Base permanece atualmente
aberta, com presença de servidores da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI)”.
A suspeita de mais um massacre de índios isolados – Vale do Javari, agosto de 2017;
De acordo com Milanez (2017a) “o Ministério Público do Amazonas está investigando
uma denúncia de que indígenas de um grupo que vive isolado na Terra Indígena Vale do Javari,
incluindo mulheres e crianças, podem ter sido assassinados e esquartejados”. Os suspeitos de
praticarem este ato de genocídios contra os indígenas são “garimpeiros ilegais que costumam
navegar pelo rio Jandiatuba, localizado dentro da terra indígena”. Segundo Milanez (idem) “não
se sabe qual a etnia dos indígenas mortos, mas fontes ouvidas pela coluna afirmam que podem
ser os "flecheiros", dada as descrições e a localização”. Segundo este mesmo autor, outros casos
semelhantes já vinham sendo investigados na região:
Ainda no Vale do Javari, em julho desse ano foi denunciado por indígenas
Kanamari outro massacre na mesma região, de um outro povo isolado,
os Warikama Djapar. O crime pode ter sido cometido por caçadores ilegais
que invadiram a terra indígena no início do ano. Na mesma região da denúncia
dos Kanamari, em dezembro de 2016 a Funai havia observado um fato
incomum: malocas queimadas pelos isolados no interflúvio entre os rios
Itaquaí e Jutaí. Um sobrevoo identificou essa maloca queimada alguns meses
antes dos Kanamari denunciarem o ataque por parte de invasores caçadores e
madeireiros, o que pode ser um indicativo de que os indígenas sofreram um
ataque e, por isso, possam ter posto fogo em sua própria aldeia em fuga. Fontes
ouvidas pela coluna confirmam que a queima das malocas pode ser
consequência dessas invasões que o Vale do Javari está sofrendo. Os indígenas
podem queimar suas casas quando ocorrem mortes dos habitantes dessas
residências (MILANEZ, 2017a, n.p.).
Antes de analisar as informações disponíveis sobre o acontecimento mais recente,
podemos verificar nas palavras de Amorim (2016, p. 34) alguns antecedentes importantes:
A precarização das condições e estrutura de trabalho da FPE Vale do Javari
(FPEVJ), localizada no Amazonas, na fronteira com o Peru; a evasão de
servidores do quadro após concurso público de 2010, pelas dificuldades
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inerentes de um trabalho permanente de campo e falta de regulamentação para
tal; e o término de contrato terceirizado (justamente por conta do concurso
público de 2010) acarretaram, em 2012, na desativação da Base do rio
Jandiatuba, localizada na região com maior concentração de povos isolados
da TI Vale do Javari. [...] esse fechamento refletiu as dificuldades de
operacionalização da FPEVJ, que optou em concentrar os trabalhos na região
ocupada pelos grupos Korubo isolados, nas bacias dos rios Ituí e Itaquaí. Era
um período onde as invasões na calha do rio Itaquaí e Ituí aumentavam
consideravelmente. As invasões eram promovidas, especialmente, pela rede
criminosa de pesca ilegal de pirarucu (AMORIM, 2016, p. 34).
Ainda de acordo com este autor, em 2014 e 2015 ocorreram três situações de contato no
Vale do Javari, assim descritas:
A primeira ocorreu no rio Itaquaí, em 2014, e teve a participação de indígenas
Kanamary. Essa primeira situação de contato com um pequeno grupo Korubo
(6 pessoas) justificou a intervenção da FUNAI, um mês depois, para a
realização do contato com o restante do grupo, constituído por 15 pessoas. A
equipe de contato foi constituída por servidores da FUNAI, indígenas Korubo,
Matis e Kanamary. Diagnosticou-se, após o segundo contato, três casos de
malária entre o grupo recém contatado. No pós contato, os Korubo relataram
que haviam morrido recentemente outras pessoas por enfermidades
(possivelmente malária transmitida por invasores), motivo pelo qual houve
uma desestruturação do grupo e deslocamento para outras regiões, no caso
para o alto rio Itaquaí, região onde ocorreram os contatos (Amorim 2014)
(AMORIM, 2016, p. 35).
Por fim, o autor relata que:
No final de 2014 houve um conflito entre indígenas Matis e outro grupo
isolado Korubo no rio Coari, distinto daqueles contatados no rio Itaquaí
(Matos 2015) [que] resultou em duas pessoas mortas do povo Matis e um
número maior dos Korubo. A morte de indígenas Korubo apenas foi conhecida
um ano depois, no contexto de contato. Como desdobramento desse conflito,
um ano depois (2015) ocorre o contato entre esse grupo isolado Korubo e
indígenas Matis. Nas ações de pós contato, os Korubo relataram aos servidores
da FUNAI que haviam morrido, antes do conflito em 2014, um número
expressivo de pessoas, também em decorrência de doenças o que, aliás,
motivou o conflito de 2014. Fica claro, ao nosso ver, que a precarização e
impossibilidade da FPEVJ em manter a sistemática de vigilância e uma
constante presença nas aldeias Matis contribuíram, também, para esse trágico
cenário (AMORIM, 2016, p. 35).
Diante deste contexto, os relatos sobre o provável massacre de índios isolados
começaram a circular em agosto de 2017, no município amazonense de São Paulo de Olivença.
Segundo Milanez (2017a):
os supostos assassinos passaram a mostrar materiais recolhidos de suas
vítimas, como flechas e um remo. De acordo com as investigações em
andamento, os assassinos ainda teriam cortado os corpos dos indígenas mortos
ao meio e jogado no rio, como desova, para que afundassem, acelerando a
decomposição, de forma dificultar as investigações.
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Milanez (2017a) afirma que os “garimpeiros constituem não apenas uma poderosa força
política local, como também perigosa e violenta”. Segundo este autor “o procurador do MPF
Pablo Luz de Beltrand confirmou à coluna a denúncia do massacre no rio Jandiatuba e a
existência de uma investigação em curso” (idem).
As dragas ilegais que invadem o Vale do Javari para extrair ouro são
reabastecidas periodicamente, cerca de duas vezes ao mês, com material
comprado em São Paulo de Olivença. Para a alimentação dos garimpeiros,
homens são contratados como caçadores nos garimpos, responsáveis por
prover proteína. Dessa forma, além de destruir os rios, a atividade garimpeira
ainda promove a caça ilegal e predatória dentro das terras indígenas. As
informações apuradas indicam que o massacre ocorreu justamente em uma
dessas investidas de caça: caçadores encontraram um grupo de indígenas que
são conhecidos como “Flecheiros”. Eles estariam coletando ovos de tracajá
numa praia nas margens do rio, e os caçadores atiraram com suas armas de
fogo contra os indígenas. Não se sabe quantos podem ter sido mortos, mas
suspeita-se que tenham sido mais do que dez pessoas. Além de partir os corpos
para desovar no rio, os assassinos teriam pego “troféus” de suas vítimas,
roubando alguns dos pertences (idem).
Milanez (2017b) coletou o depoimento de Beto Marubo, Coordenador-geral da União
dos Povos Indígenas do Vale do Javari, sobre o suposto massacre de isolados. De acordo com
o líder indígena, “não há dúvidas de que o massacre contra os ‘flecheiros’ ocorreu:
Nós, indígenas, sempre fizemos esse tipo de alerta de violência contra os
isolados para o Estado: que invasores irão matar os parentes isolados. Fizemos
alertas para o governo tomar providências diante da situação que a gente vê,
com relação aos invasores na terra indígena. A Funai nunca se manifestou
sobre nossas denúncias, e nós sempre colocamos a gravidade disso.
Começamos a pressionar o governo em 2014, mas, na verdade, o movimento
indígena já vinha fazendo cartas alertando o Estado da gravidade que essas
invasões poderiam provocar contra os parentes isolados: olha, vai acontecer
um massacre. [...] Isso é muito grave. Sempre enfrentamos esses tipos de
invasores, caçadores, pescadores aqui na região. E a situação piorou. [...]As
invasões estão acontecendo à vontade, sem que o governo tome qualquer
providência. O governo não está nem aí, essa é a verdade. A gente faz as
denuncias, mas o movimento indígena não tem recursos financeiros para fazer
o trabalho do que é do Estado. Não temos recurso financeiros para tomar a
frente do Estado na proteção de nosso território: dependemos de ajuda do
governo. Hoje, há invasores por toda a terra indígena do Vale do Javari. Eles
estão por todos os lados: pelo rio Javari, vindos do Acre, pelo rio Jurá e até
pelo Peru, onde nossas terras indígenas fazem fronteira. E, por estes pontos de
invasões que eu estou citando, há os parentes indígenas isolados. Por exemplo,
no rio Jutaí, tem os parentes isolados que já se movimentaram de uma outra
área: os invasores expulsaram eles até para fora do limite da terra indígena!
Os isolados estão tentando fugir por causa dos conflitos provocados por estes
invasores, que estão acontecendo com cada vez mais frequência por aqui.
Estão fugindo por todos os lados. [...] Esse massacre dos flecheiros, mortos
pelos garimpeiros que entraram na região ocupada pelos isolados, nós
soubemos por relatos de nossos parentes indígenas. E o Estado diz que não
está acontecendo. A Funai diz que não tem prova. Falam que as aldeias
continuam na região. Para a Funai não teve conflito. Mas as informações que
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chegam dos parentes é que os isolados foram massacrados. Tem a visão
indígena e a visão do Estado. O Estado não vai dizer o que está acontecendo.
Para o Estado, está bom, tudo bem. Mas teve massacre. (MILANEZ, 2017b).
Ainda segundo Milanez (2017a), “outros casos de contato recente também tiveram o
relato dos indígenas de ataques ou doenças”. O autor cita os casos dos Korubo e dos Awa Guajá,
em 2015, e destaca que a TI Araribóia, no Maranhão, onde vive um grupo Awa Guajá isolado,
está invadida por madeireiros, como já mencionamos anteriormente. Também aponta que em
Rondônia, “três bases foram fechadas, no Cautário, em Mirante da Serra e em Monte Nebo,
todas elas na terra Indígena Uru-Eu-Way-Wau, que tem uma grande concentração de povos em
isolamento e está pressionada por madeireiros e invasões”. Por fim, Milanez (2017a) indica que
“também foi fechada a base no rio Purus, expondo os indígenas Suruwahá, de pouco contato, e
os Hi-Merimã, isolados, a ataques de invasores e proselitismo de missionários”.
Outro membro do conselho para proteção dos índios isolados da Funai, o
indigenista Antenor Vaz, especialista em Políticas de Proteção para Povos
Indígenas Isolados, considera “gravíssima a atual situação de falência da
CGIIRC”, e adverte que massacres como esses relatados no Vale do Javari
“estão ocorrendo em regiões sob a jurisdição das Frentes de Proteção. Agora,
imaginem naquelas regiões onde existem 51 informações de presença de
povos indígenas isolados, nas quais a Funai nunca realizou alguma ação de
proteção desses povos. O número de massacres de povos indígenas isolados
deve ser ainda maior. É preciso uma ação efetiva e urgente da sociedade civil
e do Ministério Público” (MILANEZ, 2017a, n.p.).
Neste sentido, vale citar mais uma passagem do depoimento de Beto Marubo, concedido
a Milanez (2017b):
A gente não sabe o que fazer. Por mais que a gente faça denúncias, parece que
elas não valem para nada. Ninguém faz nada. Como os isolados não sabem se
defender no mundo brancos, a gente está aqui, pelo movimento indígena, para
defender eles. Volto a dizer: o Estado só diz que não tem recursos, não tem
recurso humano para atender a demanda de proteção do Javari, e isso nos deixa
muito preocupados, pois ninguém sabe o que vai acontecer daqui para diante.
[...]O Vale do Javari concentra a maior quantidade de índios isolados do
mundo todo. Em toda parte da terra indígena tem parentes isolados, e eles
estão aparecendo por todos os lados cada vez mais. Na Aldeia Marunawa, do
meu povo Marubo, uma aldeia que fica bem no centro da terra indígena, agora
estão aparecendo os isolados. Mas antes, a gente nunca tinha visto isolados lá.
Eles estão aparecendo por causa dos invasores que estão invadindo por todos
os lados, a terra indígena. A gente não sabe mais para onde mandar denúncia
da tragédia que está acontecendo no Vale do Javari. A gente está pedindo
apoio de todas as pessoas que querem ajudar os povos indígenas: para
encaminhar nossa situação e divulgar para que todo o mundo saiba a situação
real de desespero no Vale do Javari. Queremos divulgar a nossa situação.
Divulgar nas redes sociais e na mídia. Por favor, divulguem esse meu
depoimento.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A e mais geral conclusão alcançada com esta pesquisa é a de que, embora ainda não
esteja difundida e debatida pelas sociedades e pelas comunidades acadêmicas, a problemática
dos povos indígenas em isolamento está amplamente mapeada por órgãos estatais, não-
governamentais e pelos demais atores dedicados ao tema. Há enorme quantidade de
informações, mapas, dados e notícias disponíveis sobre estes povos e sobre as persistentes
ameaças à sua sobrevivência e autodeterminação. Acrescenta-se que a política pública brasileira
direcionada especificamente para PII começou a ser concebida em 1987, portanto há 30 anos.
Os princípios, conceitos e metodologias desta política, embora não sejam unanimidade, são
considerados os mais avançados e exemplares em relação aos demais países da região
amazônica. Porém, a pesquisa evidenciou também que os recursos humanos, financeiros e
institucionais disponibilizados pelo poder público inviabilizam a execução desta política.
Identificamos que isto se deve, entre outros motivos, ao fato de que o assunto dos povos
indígenas em isolamento na Amazônia, bem como as ações políticas direcionadas a esta região
e a estes povos, envolvem conflitos de interesse – no campo empírico – e confrontos entre
distintas concepções de mundo – no campo da cosmologia. Estas divergências se refletem
também no campo acadêmico, visto que pesquisar os modos pelos quais os povos indígenas
fizeram e fazem parte dos processos de formação do mundo contemporâneo consiste em
desvendar rasuras, isto é, identificar e dar visibilidade àquilo que foi e continua sendo riscado
da narrativa histórica.
Neste cenário, vimos no primeiro capítulo que a epistemologia e a historiografia
hegemônicas nas ciências sociais, de matriz euro-ocidental – dentre as quais está a área de
Relações Internacionais – não apenas subsidiaram e legitimaram a colonização e o colonialismo
interno, como também ocultaram sistematicamente as consequências destes processos para os
povos indígenas. Mais especificamente, destacou-se que à época de surgimento e de
consolidação das RI enquanto área específica de conhecimento (início e meados do século XX,
respectivamente), o fenômeno do colonialismo já se encontrava consolidado e em franca
expansão global. Portanto, uma das funções cumpridas pela teorização da área de Relações
Internacionais, centrada nos conceitos de Estado e de soberania nacional una e indivisível, foi
a de reproduzir, renovar e reforçar a exclusão dos povos indígenas e de outros povos em relação
aos debates, aos ambientes e à institucionalidade da política global.
Outra conclusão alcançada nesta pesquisa é a de que o campo de estudos sobre os povos
indígenas em situações de isolamento na Amazônia é amplo, complexo e diversificado,
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podendo ser observado, compreendido e analisado a partir de múltiplas perspectivas. Os
possíveis temas, fenômenos, conceitos, implicações teóricas, dados empíricos, perguntas,
argumentos, perspectivas epistemológicas, análises inter/trans/in/disciplinares, vão muito além
das opções feitas nesta pesquisa e de seus limites.
Assim, identifica-se a necessidade da incorporação definitiva e da ampliação dos
estudos acadêmicos sobre antropologia, assuntos indígenas e assuntos amazônicos no âmbito
dos cursos de graduação, pós-graduação, eventos e publicações acadêmicas, especialmente na
área de referência desta pesquisa, as Relações Internacionais. É também fundamental o
estabelecimento, fortalecimento e a articulação de projetos de pesquisa, núcleos e institutos de
pesquisa dedicados à construção de conhecimento sobre os assuntos indígenas, observando-se
os múltiplos níveis de análise que podem trabalhados sobre o tema. No mesmo sentido, em
perspectiva mais específica, é também indispensável, urgente e fundamental o estudo e a
difusão de conhecimentos e informações sobre o tema dos povos indígenas em situações de
isolamento e de recente contato na região amazônica transnacional.
Adicionalmente, vimos que os direitos indígenas, no âmbito dos processos inconclusos
de descolonização, são uma conquista histórica dos próprios povos indígenas, e não concessões
benevolentes feitas pelos Estados-Nação. Através de sua mobilização e articulação, e após
séculos de lutas e resistência, os povos indígenas obtiveram sucesso em inserir o
reconhecimento de seus direitos e de algumas de suas demandas no âmbito político e jurídico
nacional e na agenda da política global. Neste contexto, a proteção dos povos indígenas em
isolamento e de seus territórios também foi incluída recentemente entre os assuntos tratados
pelas instituições internacionais, com destaque para as Diretrizes de Proteção dos PIACI
formuladas pelo EACNUDH, em 2012, e as Recomendações para a proteção e o respeito dos
Direitos Humanos dos PIACI, formuladas pela CIDH, em 2013. Assim, os direitos destes
povos, bem como as ações necessárias para sua efetiva garantia, já são também conhecidas pelo
Estado brasileiro e pela comunidade internacional. Portanto, a situação contemporânea dos PII
na Amazônia brasileira não pode ser atribuída à falta de conhecimento empírico sobre estes
povos nem à falta de instrumentos legais e de recomendações institucionais sobre o tema.
Com base nestas constatações, analisamos se a situação contemporânea destes povos
pode ser caracterizada como o sexto século de genocídios e diásporas indígenas. A partir de
uma análise macro-histórica, vimos que a dimensão cronológica desta tese não representa um
processo linear, mas sim dinâmicas que passaram por momentos de maior e de menor
intensidade, por mudanças dos agentes históricos envolvidos, mas que não foram abolidas.
Assim, nossos argumentos não se concentraram na discussão conceitual sobre genocídio e
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diáspora, ou em verificar se a aplicação destes conceitos é apropriada para a interpretação da
história indígena, muito menos em avaliar se houve, ou não, genocídios e diásporas indígenas.
Nesta pesquisa, estas questões de tipo “sim” ou “não” foram consideradas como já superadas.
Vale lembrar, como também afirmou-se na introdução, que não é uma inovação deste
trabalho afirmar que o histórico das relações entre Estados-Nação (coloniais e pós-coloniais) e
povos indígenas constituem-se de numerosos e amplos genocídios e movimentos diaspóricos.
As publicações acadêmicas sobre estes temas são numerosas e diversificadas. São abundantes
também as denúncias de organizações indígenas, organismos internacionais e de organizações
não-governamentais sobre as constantes e graves violações dos direitos indígenas,
especialmente no Brasil. Logo, não tomamos como um objetivo provar a existência de
genocídios e de diásporas indígenas. A contribuição específica e central que almejou-se
produzir com esta pesquisa foi a de identificar como a continuidade destes fenômenos até os
dias atuais, por meios diversificados, influencia na situação contemporânea dos povos indígenas
em isolamento na Amazônia brasileira.
Como vimos, de acordo com Vaz e Balthazar (2013, p. 85), cerca de 90% dos povos
indígenas isolados que ainda existem no mundo estão na região amazônica, a qual abrange oito
países. A maior parte destes povos está situada em regiões de fronteira. Os dados disponíveis
na literatura específica estudada apontam a presença de índios isolados nas fronteiras do Brasil
com a Colômbia, Bolívia, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela; e também nas fronteiras entre
Bolívia e Peru, Bolívia e Paraguai, e, Equador e Peru.
A distribuição espacial dos povos indígenas no Brasil também indica o movimento de
diáspora destes povos. Curt Nimuendaju (1981) registrou em seu mapa etno-histórico a grande
dispersão geográfica existente entre os 1400 povos indígenas que habitavam o território
correspondente ao Brasil atual. Entretanto, ao longo dos processos de ocupação e de expansão
territorial da sociedade nacional incontáveis etnias indígenas foram extintas, alguns grupos
conseguiram resistir e permanecer em parte de seus territórios, outros encontraram refúgio em
áreas que vieram a se tornar terras indígenas. Grande parte, porém, foi pressionada
sucessivamente a abandonar seus territórios tradicionais ou até mesmo retiradas destes
territórios pelo próprio Estado.
Assim, vimos que até determinado momento (o qual varia de região para região), os
grupos em isolamento voluntário deslocavam-se em fugas sistemáticas para regiões florestais
mais distantes das frentes de expansão da sociedade nacional. Nestes refúgios amazônicos,
determinados grupos indígenas conseguiram manter-se em situações de isolamento. Porém, a
continuidade da expansão capitalista, por meios cada vez mais difusos, passa a alcançar também
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estas áreas, principalmente nos séculos XX e XXI. Assim, mesmo no interior da floresta
amazônica, o avanço da exploração capitalista colonial/nacional/global pressionou e ainda
pressiona os povos indígenas em isolamento voluntário para regiões cada vez mais distantes,
alcançando as fronteiras nacionais. Neste sentido, vimos que praticamente todos os 103
registros de grupos indígenas em isolamento e os 18 em recente contato presentes no Brasil
encontram-se na região amazônica, sendo os mais distantes disto os 7 registros no estado do
Maranhão e 1 no Goiás.
Portanto, o isolamento não pode ser explicado apenas com base na localização destes
povos, ou seja, não se justifica simplesmente pelo fato destes grupos indígenas viverem em
regiões distantes e de difícil acesso. O fenômeno a ser analisado é que a localização majoritária
nestes refúgios amazônicos (terras indígenas, áreas de proteção ambiental e fronteiras
nacionais) reflete sua opção pelo isolamento e suas trajetórias de fuga sistemática dos contatos
e relações com a sociedade colonial-nacional. Além disso, é importante também considerar que
os PIIRC presentes no Brasil cuja localização é distante das fronteiras nacionais, encontram-se
quase todos no interior de terras indígenas ou de áreas de proteção ambiental. Assim, à medida
que estas áreas estabelecem limites formais ao avanço das atividades econômicas e da ocupação
não-indígena, também podem ser concebidas como um tipo de região fronteiriça.
Assim, os genocídios e diásporas indígenas seguem em curso, mesmo tendo sido
verificado que: as informações sobre a existências destes povos são abundantes; os direitos
destes povos já se encontram reconhecidos, nacional e internacionalmente; e, no Brasil, há uma
política pública específica para estes povos há mais de 30 anos, cujos princípios e metodologias
de trabalho são considerados avançados, e, quando implementados, apresentam resultados
satisfatórios. Em termos mais gerais, identificamos três conjuntos de fatores e níveis co-
constituídos, que perpassam os âmbitos global, internacional e nacional, e apresentam relações
com os fenômenos macro-históricos dos genocídios e diásporas indígenas, e com a situação
contemporânea dos PII na Amazônia brasileira. No âmbito global, destacamos os processos de
colonização e de expansão global do sistema europeu de Estados-Nação, que, baseados em uma
cosmologia excludente, promoveram o confronto entre as soberanias estatais e as soberanias
indígenas. Mais precisamente, a negação da legitimidade e do reconhecimento das soberanias
indígenas pelos Estados, que persiste até os dias atuais. No âmbito nacional analisamos, em
perspectiva macro-histórica, a atuação do Estado (colonial português, e, pós-colonial
brasileiro), tanto pela ação (promovendo direta e/ou indiretamente genocídios e diásporas
indígenas), quanto pela omissão (deixando de realizar, ou realizando de modo insuficiente, seu
papel de garantidor de direitos). E, no âmbito do território nacional, porém de modo
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indissociável das dinâmicas internacionais e globais, verificou-se o avanço contínuo da
apropriação dos recursos e territórios amazônicos para serem incorporados aos mercados
nacionais/globais.
Assim, consideramos que ao longo da pesquisa foram identificados os diferentes
períodos e processos históricos por meio dos quais reiteraram-se as práticas de violência,
extermínio e usurpação territorial que levaram diversos povos indígenas a realizarem fugas
sistemáticas das frentes de expansão da sociedade nacional, entre outras estratégias de
resistências e autodeterminação. A análise do aumento de casos recentes de contatos realizados
por iniciativas dos PII, sobretudo a partir do ano de 2014, demonstra que as condições de
sobrevivência e de autodeterminação destes povos têm sido agravadas, resultando na
continuidade da ocorrência de genocídios e de movimentos diaspóricos destes povos.
Através destes casos pudemos verificar também que tanto a prática como a
intencionalidade de genocídios indígenas existiram ao longo da história do Brasil e continuam
a existir, sobretudo no caso dos povos em isolamento, com as peculiaridades do período
contemporâneo. Assim, verificou-se que ambos os processos se iniciaram com a colonização
europeia, foram sucedidos pelo colonialismo interno, e prosseguem atualmente por meio da
apropriação dos recursos e dos territórios amazônicos para serem incorporados aos mercados
nacionais/globais. Como vimos, mesmo estando dividida entre Estados soberanos, com
delimitações político-fronteiriças estáveis, a análise do nível local torna evidente que a
Amazônia continua sendo um território intensamente disputado, devido a suas riquezas
biológicas, hídricas e minerais. Neste contexto, a sobrevivência e a autodeterminação dos PII
demanda a proteção integral de territórios entre os mais preservados, e cobiçados, da Amazônia.
Assim, há uma relação direta entre a problemática contemporânea envolvendo os povos em
isolamento na Amazônia e a história da política global, especialmente no período pós-1492,
visto que o elemento central de ambos os processos é a disputa pelo controle político e pela
exploração econômica de territórios.
Por fim, conforme dissemos no início da pesquisa, a dimensão normativa parece ser
intrínseca ao assunto dos povos indígenas em situações de isolamento, tal qual ocorre em outros
temas complexos, e cujo diagnóstico revela-se potencial ou efetivamente desastroso. Assim, o
tema dos PIIRC, e a situação contemporânea destes povos, parecem convocar o pesquisador
constantemente a propor ações com vistas a modificar tal estado de coisas. Tal dimensão
normativa está presente em praticamente todas as publicações específicas sobre o assunto dos
povos indígenas em isolamento, as quais manifestam análises, sugestões e/ou propostas sobre
o que deve ser feito para garantir a sobrevivência e o direito de autodeterminação destes povos.
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Portanto, consideramos que dedicar toda a tese ao assunto dos povos indígenas em isolamento
e não se posicionar neste debate normativo, seria ignorar questões essenciais, urgentes, e
indispensáveis ao pleno estudo do tema, visto que esta perspectiva está em constante debate,
tanto no âmbito acadêmico quanto entre as instituições envolvidas com a proteção destes povos.
Neste sentido, acerca da política pública brasileira específica para PIIRC, consideramos
pertinente reproduzir aqui as recomendações feitas por Amorim (2016, p. 37), autor de artigos
de grande importância para esta pesquisa, mas, principalmente, devido à sua atuação direta com
o tema, enquanto servidor da CGIIRC/FUNAI:
É urgente que o Estado brasileiro promova o (re-)fortalecimento e atualização,
com vistas ao aperfeiçoamento, da política pública de proteção e promoção
dos direitos dos povos indígenas isolados. Esse esforço deve ocorrer em
diversos sentidos, além dos aspectos já mencionados neste texto, em linhas
gerais, recomenda-se (i) a adequação orçamentária e de recursos humanos às
demandas regimentais (e constitucionais) da FUNAI (CGIIRC/FPE); (ii) o
aprimoramento da gestão da política pública, por exemplo, pela normatização
e institucionalização das metodologias desenvolvidas em campo, (iii) o
investimento em ações de localização em campo, com vistas à confirmação
das 77 referências sobre a possível presença desses povos; (iv) a reabertura
das bases em campo atualmente fechadas, abertura de novas e estruturação
das bases em (frágil) funcionamento, para o monitoramento constante das
ameaças e dos processos territoriais dos 26 registros de isolados confirmados;
(v) a necessidade de ação conjunta com outros órgãos do Estado, que tenham
interface com a questão da proteção dos territórios dos povos indígenas
isolados; (vi) o estabelecimento de cooperações técnicas com outros países -
para a atuação em situações transfronteiriças - e com organizações da
sociedades civil, indígenas ou indigenistas, com vistas ao aumento do
potencial de efetividade da política pública; (vii) a necessidade de se
incorporar mais vozes para refletir, monitorar e prover transparência à
execução da política – incluindo maior participação dos povos indígenas; (viii)
a sistematização e normatização de diretrizes para desenvolvimento de planos
de contingência em situações de contato e conflitos; e (ix) desenvolvimento
(à luz da Convenção n. 169 da OIT) de mecanismos normativos e
metodológicos de avaliação de impactos diretos e indiretos nos territórios dos
povos isolados, no âmbito dos processos de licenciamento de grandes obras.
(AMORIM, 2016, p. 37).
Passemos, então, a algumas das perguntas levantadas no início da pesquisa: Qual é o
nível de conhecimento e de debate acadêmico e público, na sociedade brasileira, sobre os atos,
consequências, e a apuração de responsabilidades nas relações históricas entre o Estado, a
sociedade nacional e os povos indígenas? Há no Brasil uma consciência de que a
responsabilidade histórica atribuída à Europa e aos europeus, devido às atrocidades intrínsecas
à colonização, recairá também sobre o Brasil e os brasileiros? Além disso, e tendo em vista a
área de conhecimento desta pesquisa, nos questionamos também: como os conhecimentos sobre
o assunto dos PII na Amazônia podem contribuir para a compreensão de características e
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dinâmicas da política global pós-1492, e para a modificação dos padrões de relacionamento
entre Estado e povos indígenas no Brasil?
Verificamos que, em termos empíricos, tanto a trajetória histórica da política global pós-
1492 quanto a problemática dos PIIRC têm como característica central a disputa pelo controle
político e pela exploração econômica de territórios. Em termos teóricos verificou-se, a partir do
caso brasileiro, que as relações do Estado e da sociedade nacional para com os povos indígenas
e seus territórios continuam sendo governadas por padrões coloniais, e a situação
contemporânea dos PIIRC demonstra esta relação de forças. Logo, em termos normativos,
compreende-se que a modificação destes padrões exige um reordenamento político entre
Estados e povos indígenas. Ou seja, é preciso alterar as posições relativas de negociação política
e estabelecer novos parâmetros de relacionamento.
Vimos, ao longo da pesquisa, que a descolonização é um processo inconcluso, e o direito
de autodeterminação dos povos indígenas foi apenas parcialmente reconhecido pelos Estados.
Não há estabelecimento ou renovação de relações políticas sem que os atores em questão
reconheçam-se mutuamente como legítimos. E é precisamente este o cenário atual das relações
entre povos indígenas e Estado-Nação, não apenas no Brasil. Concentrando-nos neste país,
porém, nota-se que os detentores do poder estatal relutam em garantir os direitos dos povos
indígenas, entre outros motivos, por considerá-los excessivos, anti-econômicos, e, portanto,
ilegítimos. Os povos indígenas, por sua vez, e por múltiplas razões, contestam a legitimidade
do poder estatal sobre seus territórios e sobre suas culturas, e denunciam a flagrante ineficiência
do Estado em garantir os direitos com os quais se comprometeu constitucionalmente. O que se
verifica, portanto, é que não existem relações políticas entre Estados e povos indígenas no
Brasil.
Neste sentido, visando indicar possibilidades de transformação nestes padrões de
relacionamento, identificamos dois elementos indispensáveis para se levar adiante o processo
de descolonização. Denominamos estes elementos como reconhecimento histórico e
reconhecimento político-institucional. O primeiro trata-se do reconhecimento formal e
institucionalizado por parte do Estado brasileiro, perante os povos indígenas, a sociedade
nacional e a comunidade internacional, de que o processo histórico de construção do Brasil foi
acompanhado de numerosos genocídios e movimento diaspóricos de povos indígenas desde o
século XVI, e de que estas práticas, que ainda seguem em curso por meios variados e difusos,
típicos da exploração capitalista, devem ser apuradas, julgadas, reparadas e combatidas. Neste
sentido é inadiável que seja instaurada no Brasil uma ampla Comissão de Justiça Transicional,
Reparação e Reordenamento Político entre o Estado-Nação brasileiro e os Povos Indígenas.
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Existem experiências de países como Canadá e a Austrália, que instituíram Truth and
Reconciliation Comission. Estudadas as características, méritos e limites de experiências como
estas, e de muitos outras relações de políticas indígenas, podem constituir referências
importantes para a realização deste processo no Brasil.
Associado ao reconhecimento histórico, defende-se o reconhecimento político-
institucional, por parte do Estado e da sociedade nacional, de que os povos indígenas constituem
comunidades políticas dotadas de soberanias e de territorialidades próprias, ainda que estes
atributos possuam propriedades diferentes em relação à sua modalidade estatal. Como vimos
nos debates teóricos realizados nesta pesquisa, diversos autores apontam a necessidade de
superação do paradigma estatal como modelo único de autoridade política e territorial, e,
consequentemente, de compreensão e de ordenamento do mundo. O debate sobre as
características possíveis das soberanias indígenas ainda encontra-se em curso, porém, com
propostas já bastante avançadas, e aplicações práticas demonstrando não haver um conflito
obrigatório entre as soberanias estatais e as formas de soberanias indígenas. A construção de
soberanias compartilhadas e cooperativas demonstra-se não só como possível, mas também
como potencialmente benéfica e enriquecedora para ambos os tipos de comunidades humanas,
o Estado, e os povos indígenas,
Cabe a ressalva de que o reconhecimento é um ato simbólico contestável. Em muitos
casos, ele atesta subalternidade ao invés de possibilitar a emancipação. Logo, o reconhecimento
meramente formal, mesmo que seja indispensável, não modifica, por si só, as relações de poder,
e, então, ele é insuficiente. Entretanto, vale ressaltar que tal reconhecimento tem, entre outras
coisas, o poder de afrontar a impunidade vigente dos crimes contra direitos indígenas, e, assim,
é um passo a mais para dois processos: primeiro, para que os assassinatos sistemáticos de
indígenas, ainda em curso, sejam estancados e as usurpações territoriais sejam, no mínimo,
interrompidas, e, segundo, para que sejam reformulados os termos do debate e as posições
relativas de negociação.
Neste sentido, entendemos que estes reconhecimentos propostos, de âmbito histórico e
político-institucional, são requisitos fundamentais para o reordenamento político entre Estados-
Nação e povos indígenas, e para a construção de novas possibilidades de interação. Através
destas iniciativas, abrem-se canais de diálogo e mecanismos políticos visando a superação da
subalternidade histórica e contemporânea dos povos indígenas. Um cenário de mudanças dos
padrões de relacionamento entre Estado e povos indígenas é essencial para a criação de
condições de proteção efetiva e integral dos territórios com presença de povos indígenas em
situações de isolamento e/ou de recente contato.
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