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REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO Autor do livro Informação, conhecimento e valor, trabalho referência da Economia Política da Informação e da Comunicação, Lopes é um crítico da concepção de um capitalismo alavancado exclusivamente pela informação e pelo conhecimento. Neste sentido, o conceito de sociedade informacional e outros correlatos da sociedade contemporânea mereceriam um tratamento mais analítico e reflexivo acerca da presença marcante do trabalho vivo e da produção material na dinâmica do próprio sistema Capitalista. Este, inegavelmente, passa por mudanças estruturais as quais, em certa medida, se relacionam com a perfilação de uma nova formação social, onde informação e conhecimento assumem grande importância nas relações sociais, inclusive no mundo do trabalho. Mas, Ruy Sardinha lança um olhar crítico e revisionista da perspectiva, amplamente divulgada pelas teorias da pós-industrialização, sobre a transformação radical das formas de produção e organização social, inaugurada pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Lopes pontua que as economias continuam a se orientar em formas de distribuição e comercialização de produtos em que as atividades materiais ainda têm importância estratégica nas cadeias globais de valor (produção, distribuição, gestão de informações). Ruy Sardinha Lopes é professor doutor do curso e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, campus de São Carlos. Atualmente, é presidente do capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC-Br), coordena o Nucleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP). É Bacharel (1987), mestre (1995) e doutor em Filosofia (2006). RBPC- Professor, seu trabalho tem se notabilizado na área da economia política da comunicação pela crítica sistemática às abordagens, como a do sociólogo Manuel Castells, pelas quais as tecnologias da informação e da comunicação ofereceriam condições razoáveis para a regulação da economia. Abordagens que dialogam com os interesses do mainstream econômico, postulando uma racionalidade substancial dos sistemas tecnológicos. O senhor poderia discorrer sobre os limites dessas abordagens acerca do papel das TIC´s no cenário econômico e as perspectivas oferecidas pela economia política para pensar o papel econômico das tecnologias da informação e da comunicação na atualidade? RSL- Sabemos todos da importância das TICs no processo de reestruturação do capitalismo, da centralidade econômica e política que a informação e o conhecimento adquirem e das novas espacialidades e sensibilidades daí advindas. Sabemos também que não obstante algumas conquistas reais, novos espaços coercitivos e contradições são conformados nesse processo. Tais fatos reposicionam a questão de sua legitimação operada a partir de lógicas de justificação levadas a efeito na e pela ação do sistema e, nesse caso específico, na e pela ação das TICs. Ruy Sardinha Lopes, uma Economia Política da Informação e do Conhecimento

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Autor do livro Informação, conhecimento e valor, trabalho referência da Economia Política da Informação e da Comunicação, Lopes é um crítico da concepção de um capitalismo alavancado exclusivamente pela informação e pelo conhecimento. Neste sentido, o conceito de sociedade informacional e outros correlatos da sociedade contemporânea mereceriam um tratamento mais analítico e reflexivo acerca da presença marcante do trabalho vivo e da produção material na dinâmica do próprio sistema Capitalista. Este, inegavelmente, passa por mudanças estruturais as quais, em certa medida, se relacionam com a perfilação de uma nova formação social, onde informação e conhecimento assumem grande importância nas relações sociais, inclusive no mundo do trabalho. Mas, Ruy Sardinha lança um olhar crítico e revisionista da perspectiva, amplamente divulgada pelas teorias da pós-industrialização, sobre a transformação radical das formas de produção e organização social, inaugurada pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Lopes pontua que as economias continuam a se orientar em formas de distribuição e comercialização de produtos em que as atividades materiais ainda têm importância estratégica nas cadeias globais de valor (produção, distribuição, gestão de informações).

Ruy Sardinha Lopes é professor doutor do curso e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, campus de São Carlos. Atualmente, é presidente do capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC-Br), coordena o Nucleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP). É Bacharel (1987), mestre (1995) e doutor em Filosofia (2006).

RBPC- Professor, seu trabalho tem se notabilizado na área da economia política da comunicação pela crítica sistemática às abordagens, como a do sociólogo Manuel Castells, pelas quais as tecnologias da informação e da comunicação ofereceriam condições razoáveis para a regulação da economia. Abordagens que dialogam com os interesses do mainstream econômico, postulando uma racionalidade substancial dos sistemas tecnológicos. O senhor poderia discorrer sobre os limites dessas abordagens acerca do papel das TIC´s no cenário econômico e as perspectivas oferecidas pela economia política para pensar o papel econômico das tecnologias da informação e da comunicação na atualidade?

RSL- Sabemos todos da importância das TICs no processo de reestruturação do capitalismo, da centralidade econômica e política que a informação e o conhecimento adquirem e das novas espacialidades e sensibilidades daí advindas. Sabemos também que não obstante algumas conquistas reais, novos espaços coercitivos e contradições são conformados nesse processo. Tais fatos reposicionam a questão de sua legitimação operada a partir de lógicas de justificação levadas a efeito na e pela ação do sistema e, nesse caso específico, na e pela ação das TICs.

Ruy Sardinha Lopes, uma Economia Política da Informação e do Conhecimento

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Em outras palavras, trata-se de conceber como estritamente técnicas questões que são de ordem necessariamente política. Segundo meu ponto de vista, tal determinismo tecnológico impregna tanto as análises daqueles que advogam um impacto essencialmente negativo das TICs quanto os que lhes atribuem poderes demiúrgicos e socializadores de per si.

Em relação às análises de Manuel Castells – e é preciso salientar que me referia, à época, à sua trilogia, A sociedade em Rede ,publicada em meados dos anos 1990 – minha crítica recaía na leitura que fazia do capitalismo a partir de seus modos de desenvolvimento, definidos como “os dispositivos tecnológicos mediantes os quais o trabalho atua sobre a matéria para gerar o produto , determinando em definitivo o nível e a qualidade do excedente” (CASTELLS apud GARNHAM:2000, p.60), o que o levaria a pensar o capitalismo a partir dos processos de incremento de produtividade e sua história a partir das sucessivas revoluções tecnológicas propiciadoras de mais excedente, donde se falar, numa nova etapa, o informacionalismo.

Ultrapassando os limites estritos da produção material, esse novo modo de desenvolvimento configuraria uma nova sociabilidade, a Sociedade em rede, levando-nos a um capitalismo mais humanitário e democrático.

Ao se deparar, entretanto, com as instabilidades sistêmicas e empiricamente comprovadas que já àquela época assolavam a chamada “nova economia”, Castells fazia uso, mais uma vez, de um novo dispositivo técnico, a “rede global” capaz de corrigir as assimetrias do sistema econômico. O que o aproximava, desta forma, de algumas posições defendidas pelo mainstream econômico que, mesmo reconhecendo uma incompletude intrínseca da informação, pleiteia, através, por exemplo, do comportamento racional dos agentes econômicos, posições de equilíbrio, igualando-se custos e receitas marginais.

Como vários analistas vêm mostrando, e entre nós Alain Herscovici, várias posições alternativas são possíveis e desejáveis. Entre elas a da economia política da comunicação e da informação (EPC) que, ao trabalhar com uma concepção mais realista da informação e do mercado, aponta os ambientes de incerteza e instabilidades do equilíbrio como os cenários nos quais o jogo econômico deve ser encenado. As conseqüências teóricas, práticas e políticas do abandono de uma concepção auto-reguladora do mercado em prol de sua natureza complexa e necessariamente social e política, constituem, assim, um dos campos de investigação privilegiado da EPC.

RBPC- Em seu livro Informação, conhecimento e valor, o senhor defende a tese de que o processo de reestruturação produtiva em voga impacta as relações entre informação, valor e conhecimento, mas sem mudar, de fato, a essência do capitalismo. Na verdade, poderíamos nos referir, como o senhor sugere, a um “capitalismo digital”, no qual o homem amplia sua capacidade de controle sobre a natureza a partir dos avanços da ciência e da tecnologia em setores como as

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engenharias, biotecnologias, etc. Como o senhor localiza as contradições endógenas ao sistema capitalismo, em especial ao seu regime de acumulação, perante o acento dado à dimensão cognitiva da esfera produtiva ocupada pelos trabalhadores e máquinas? Poderíamos dizer, no sentido de Marx, que o trabalhador coletivo foi substituído pelo intelecto geral?

RSL- Afirmar, como eu faço, a subsistência da forma-valor e, portanto, da essência do capitalismo, não significa esquecer as mudanças em sua substância e até mesmo a formação de uma nova base sobre a qual parece operar. Se, como Marx afirmava, a substância do valor é o trabalho abstraído de suas qualidades concretas e reduzido a unidades de tempo homogêneas e passíveis de medida contábil, é preciso ver que tal enormidade social, uma abstração real nas palavras de Sohn-Rethel, foi fruto de um longo embate entre o trabalho e o capital, sintetizada nas duas formas de subsunção descritas por Marx: a formal e a real, cuja maior expressão histórica dar-se-á com o advento da grande indústria, cuja maquinaria e a força de trabalho massificada representariam a matéria adequada à forma e exploração do capital.

Acontece que, Marx já apontava nos Grundrisse que o desenvolvimento das forças produtivas gera não somente uma desproporção entre a riqueza efetiva, isto é, a produção de valores de uso e a produção de valor acionada pela grande indústria, reposicionando não só o trabalho vivo que, subordinado ao estado geral de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, coloca-se como supervisor e regulador do processo de produção, como também um tempo excedente que àquela época não podia ser absorvido produtivamente (para o capital, é claro).

Como sugerem alguns analistas, estaria Marx indicando uma terceira forma de subsunção, não mais a do trabalho imediato executado pelo homem ou do tempo em que este trabalha (transformados, agora, em base miserável da riqueza atual), mas a da sua compreensão e domínio da natureza, graças a sua existência como corpo social. Se isso, ainda segundo Marx, abriria espaço para o desenvolvimento livre das individualidades, a manutenção do capitalismo impõe-lhe a base miserável, sua subordinação à forma-valor, constituindo, portanto, novos embates.

Com base nessas sugestões, se por um lado o desenvolvimento das forças produtivas, cada vez mais vinculado à tecnociência, deu origem a uma espécie de “máquina pensante”, baseada e operada a partir do universo sígnico e cognitivo, e o próprio capitalismo, não podendo mais valorizar-se no chão-da-fábrica, alçou vôo para regiões mais “imateriais” como a cultura, as artes e o conhecimento, toda uma nova dimensão do trabalho concreto, sua dimensão sígnica, cognitiva, “criativa”, é a que agora deve ser acionada para pôr a engrenagem produtiva em funcionamento.

A grande questão, para um modo de produção fundado numa contabilidade do tempo de trabalho roubado, é que tais características são de difícil redução a unidades de tempo homogêneas; o que não quer dizer, por outro lado, que o trabalho abstrato tenha deixado de ser a substância do valor ou que o capitalismo tenha deixado de operar segundo seus princípios. O que poderíamos dizer é que estamos diante de uma nova

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inadequação entre a matéria e a forma do valor, levando-nos novamente a uma espécie de subsunção formal, onde o trabalhador detinha ainda algum poder (conhecimento) sobre o processo de produção.

Embora vários analistas vejam aí ganhos emancipatórios, advogando tratar-se de um capitalismo mais “humanizado”, preferimos falar de um novo campo de batalhas onde do lado do capital tenta-se apropriar-se destas dimensões do trabalho quer cristalizando-as em trabalho morto, quer transformando conhecimento tácito em conhecimento cristalizado, quer inventando novas formas de apoderar-se do sobre-trabalho ou, cada vez mais, tornando o tempo excedente um tempo produtivo (ainda que aqui seja necessário mantermos a devida separação entre produção e realização do valor), aquilo que está sendo denominado pela economia política de subsunção intelectual. Do lado do trabalho, resiste-se a tais processos explorando-se os “constrangimentos” – de diversas ordens – que esta matéria (o conhecimento e a informação) causa ao capital, dificultando-o, entre outras questões, realizar os grandes investimentos necessários à produção destas mercadorias vedetes, quebrando posições monopólicas, gerando-lhe desmedidas de difícil contabilização, como a transposição destes valores aí gerados em preços.

RBPC- Mesmo com todas as críticas que possamos fazer à lógica sistêmica do surgimento das TIC´s, como também, do progresso tecnocientífico - cuja repercussão esta alcança a relação entre cidadania e acesso às tecnologias e entre cidadania e consumo -, a inclusão digital é tema transversal na discussão dos direitos sociais e se tornou vetor de políticas públicas fomentadas pelo Estado brasileiro. Nesse sentido, como vê o debate acerca da urgência da ampliação do acesso da população à internet banda larga?

RSL- Faz parte da história das lutas democráticas em nosso país a confusão entre a democratização da comunicação e a dos meios de comunicação, sutileza que direcionou grande parte do debate social e acadêmico para a denúncia das estruturas excludentes e não democráticas dos meios de comunicação, entendendo a comunicação como uma atividade-fim.

Assim, representa um avanço a adoção, mais recente, de uma posição teórica que transcendendo a questão do mero acesso ou o direito de expressar-se livremente por quais meios disponíveis entende a comunicação como um direito da humanidade e meio de enfatizar os direitos humanos e fortalecer a vida social, econômica e cultural dos indivíduos e comunidades, ainda que o entendimento de tal direito seja bastante diversificado.

Num universo de convergência tecnológica, onde cada vez mais as infra-estruturas infocomunicacionais tornam-se o suporte de veiculação de conteúdos sociais e econômicos, implicando novas sociabilidades e espacialidades, a luta pelo direito à comunicação não pode obliterar a importância da inclusão digital. O que não significa, como boa parte do discurso e políticas públicas vêm asseverando, tomá-la como uma questão meramente quantitativa, quer pela facilitação do acesso aos equipamentos e redes ou pela apropriação do demais veículos de comunicação

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como tevês, rádios e jornais comunitários, ainda que o gap tecnológico seja uma das principais barreiras a ser ultrapassada.

Como procuramos apontar num artigo anterior, a inclusão digital pressupõe não somente a “formação digital” – e as estratégias e políticas de capacitação -, isto é, a apropriação por parte da sociedade dos conhecimentos necessários a uma utilização consciente e crítica dos recursos e conteúdos disponibilizados (o que, apenas como exemplo, como mostram Umberto Eco e Jean-Claude Carrière em não contem com o fim do livro, recoloca a questão da capacidade individual e social de filtragem – e dos critérios utilizados para tanto – desse material), mas também o preciso entendimento das altas performances informacionais necessárias ao sucesso dos padrões de acumulação capitalista contemporâneos.

Como vários analistas da EPC vêm mostrando, o controle das infra-estruturas comunicacionais e do acesso às informações restritas garantem importantes rendas de monopólio dificultando a adoção de lógicas redistributivas mais universalizantes e a ampliação do direito à comunicação às grandes parcelas da população mundial, aí reside, no meu entendimento, o cerne da discussão sobre a exclusão digital.

RBPC- Como o senhor avalia a discussão atual a respeito do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), que tem o desafio de massificar, mas não de universalizar o acesso à rede no país a todo (as) cidadãos (ãs)? Como o senhor se posiciona sobre a importância do envolvimento da sociedade neste debate, levando em consideração as decisões sobre a implementação do Plano as quais ainda que estão sendo tomadas?

RSL- Em primeiro lugar, é preciso que se diga que não se trata de mais um serviço ou setor das telecomunicações, mas, diante da convergência tecnológica, da formação de um sistema de difusão por onde passará a imensa maioria dos conteúdos midiáticos e informacionais a médio prazo. Nesse sentido, foi importante a postura do Ministério das Comunicações, ainda sob o governo Lula, ao conceber o PNBL a partir de uma visão sistêmica, envolvendo várias camadas e agentes, para além de uma simples arquitetura tecnológica.

Ainda que o decreto lei que instituiu o PNBL ao optar por massificar ao invés de universalizar o acesso à banda larga abrisse mão de uma importante bandeira da luta pelo direito à comunicação e procurasse dar à Telebrás, um papel complementar às concessionárias privadas, induzindo-lhes à concorrência; a proposição da criação de uma rede nacional neutra de transporte de dados, mais ampla e capilar, com o objetivo de criar novos troncos por onde passam os fluxos de informação (os backbones e backhauls), pode representar um importante passo para a democratização de um setor fortemente monopolizado (segundo dados da Telebrás, 85% dos acessos à Internet vendidos no país estão na mão de três empresas). Desta forma, a oferta de serviços básicos de telecomunicações a preços bastante competitivos permitiria que agentes públicos e privados de médio e pequeno porte pudessem alugar a capacidade de rede revendendo-a a consumidores finais a preços igualmente mais competitivos.

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Como consta do próprio decreto, a questão da “última milha”, isto é, o atendimento direto ao usuário final, só caberia ao governo, digo Telebrás, “apenas e tão somente em localidades onde inexista oferta adequada daqueles serviços” (art. 4° do Decreto 7.125), de modo que, ao contrário de uma postura estatizante procurou-se preservar as dinâmicas concorrências do setor. Some-se a isso, o fato de que a velocidade de acesso ofertada ser de irrisórios 512 Kbps, o que, evidentemente, criaria uma “segunda classe” de consumidores necessariamente excluídos de uma grande parcela do que circula pela rede. Nesse sentido, parece salutar que um das primeiras medidas da nova presidente da República tenha sido a elevação da velocidade ofertada para 1 Mbps (ainda que muito distante dos 8 Mbps que vem sendo considerado o padrão internacional da banda larga). Entretanto, os cortes orçamentários na Telebrás, a reestruturação do cronograma de implantação da rede nacional de transportes de dados, a ênfase do novo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, na não atuação da Telebrás no varejo e os acordos do governo com as teles em torno da edição, no dia 02/06/2011, do Plano Geral de Metas de Universalização que valerá até 2015 (o PMGU 3) fizeram acender o sinal de alerta.

Se as águas se apresentam turbulentas e as naus têm destino incerto, a mobilização da sociedade civil no sentido de garantir uma política pública para o setor realmente universalizante, um acesso de qualidade e continuado, e, como dissemos acima, capaz de envolver os demais agentes na construção de uma “cultura digital” democrática é fundamental. Várias iniciativas vêm se constituindo - como a formação da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular (frentecom), a campanha Banda Larga é um direito seu, as ações do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e do coletivo Intervozes, apenas para citar uns poucos exemplos – e sugerem um período de intensa disputa e debates políticos.

RBPC- Há certo consenso entre a academia brasileira e as entidades da sociedade civil que se debruçam sobre a questão da democracia na comunicação, a respeito de uma necessária reforma do sistema de comunicações brasileiro, a partir da construção de um novo marco regulatório para o setor. Atualmente, a legislação do país que trata da radiodifusão é obsoleta sob vários aspectos; não permite, por exemplo, a regulação do processo de convergência tecnológica e não se orienta, na prática, pelos princípios constitucionais de pluralidade e diversidade cultural e tão pouco contempla o direito à comunicação da população como um todo. Diante deste quadro, quais poderiam ser as medidas fundamentais, do ponto de vista das políticas de comunicação, para garantir a democratização dos meios de comunicação do país?

RSL- A questão dos marcos regulatórios tem sido um tema bastante caro à economia política brasileira onde diversos estudiosos, entre eles Othon Jambeiro, Sérgio Caparelli, Murilo César Ramos e César Bolaño, têm dado importante contribuição, de modo que teria pouco a acrescentar. Baseando-me, pois, nesses autores, gostaria de salientar alguns aspectos: a proteção e regulamentação da radiodifusão pelo Estado embora só tenha sido caracterizada como um interesse público pela revolução de 1930 está presente desde o Império, em Decreto de 1870. Em segundo lugar, a afirmação do caráter público e do papel ativo do

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Estado, centralizando-se no poder executivo as concessões e controle da radiodifusão, não impediu que o modelo comercial e os interesses das empresas privadas fossem amplamente contemplados e até mesmo estimulados a partir da aprovação do Código Nacional de Telecomunicações de 1962.

Neste sentido, a propalada Constituição de 1988 se, por um lado, repartiu as responsabilidades das concessões com o Congresso Nacional, em detrimento, por exemplo, da proposta encabeçada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que propunha a criação de um Conselho Nacional de Comunicação, coletivo e autônomo, formado por representantes da sociedade civil de dos trabalhadores, pouco fez no sentido de alterar as estruturas altamente oligopolizadas do setor.

A disputa de interesses entre o empresariado da radiodifusão tradicional (congregados na Abert) e os da TV por assinatura (ABTA) explicitada nas tramitações em torno da aprovação da lei da TV a cabo tampouco implicou ganhos democráticos, mas talvez já apontasse para uma reestruturação produtiva do setor a qual o governo Fernando Henrique tratou de legislar através da substituição do antigo Código pela Lei Geral de Telecomunicação e Lei Geral da Comunicação Eletrônica de Massa e cujas conseqüências práticas foram a privatização da Telebrás (após uma importante depreciação de seus ativos) e a criação de um órgão regulador autônomo, a Anatel, que, não obstante suas conquistas democráticas, sintomaticamente, não regulará a radiodifusão tradicional, cabendo ao Ministério das Comunicações tal empreitada.

Se, mais uma vez, o governo Lula pouco avançou nessas questões, a necessidade de construção de um marco regulatório que tome como pressuposto a possibilidade de se interligar campos e conteúdos informacionais até então, relativamente, separados e possuidores de lógicas produtivas e de distribuição distintas, como as telecomunicações, a radiodifusão, a automação industrial e a informática e a produção de conteúdos é o desafio, urgente, colocado ao novo governo.

Ainda que os novos arranjos produtivos e comerciais daí oriundos favoreçam a formação de grandes conglomerados empresariais de escopo múltiplo, repondo as estruturas oligopolistas e as posições de mercado (e suas práticas anticompetitivas verticais) das empresas incumbentes tornem o setor altamente assimétrico, impondo-lhe variadas barreiras de entrada, a atuação de uma agência reguladora, apoiada numa legislação e instrumentos pertinentes, que faça frente a tais tendências é tarefa necessária à luta pela democratização da comunicação. Nesse sentido, o incentivo às entradas plenas, a formação de uma rede nacional de transportes de dados capaz de diminuir o gargalo dos backbones e backhauls das concessionárias privadas, a fixação de tetos de preço por serviços prestados constituem importantes avanços.

Os revezes ficam por conta da recusa do governo em atuar nas redes de suporte de STFC local, a chamada “última milha”, cujos altos investimentos necessários a sua implantação tornam-na propícia às assimetrias e práticas anticompetitivas; na inexistência, por parte da Anatel, de mecanismos eficazes de detecção e coibição de tais práticas e na opção em se privilegiar a integração vertical ao invés da separação estrutural tanto entre as prestadoras de serviços quanto entre rede e

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serviços, separando transporte de dados e produção de conteúdos, o que permitiria, em nosso entendimento, um controle regulatório mais eficiente.

Embora tais aspectos possam contribuir para tornar o acesso aos conteúdos informacionais mais democráticos e o setor mais plural e competitivo, devem ser complementados por uma regulação, ou controle social, de seus conteúdos. Embora a dicotomia entre as finalidades educacionais ou comerciais da radiodifusão tenha longa permanência na historia e luta da regulação do setor, a sociedade não pode abrir mão de ver alguns de seus direitos fundamentais resguardados em prol da imposição do binômio entretenimento/publicidade, hegemônico em nosso sistema de comunicação, muitas vezes travestidos de liberdade de expressão.

Não se trata aqui, evidentemente, da mera oposição entre TVs comerciais e não comerciais ou públicas, como os esforços que deram origem à TVE,em 1967, ou mais recentemente a TV Brasil (2007), cabendo-se a esses últimos a difusão dos “bens virtuosos”, mas de instrumentos legais e jurídicos, de controle público, a exemplo do Ofcom inglês, que além de assegurar voz à diversidade cultural do país enfrente às questões delicadas de conteúdo, como a do uso político ou religioso de nossos rádios e TVs.

RBPC- Ainda no contexto da discussão sobre o quadro politicamente fragmentado e de dispersão normativa do setor de Comunicações no Brasil, o senhor considera que no governo Lula o debate sobre reformas no setor se fortaleceu? O que representou, nessa direção, a I Conferência Nacional de Comunicação para as políticas setoriais?

RSL- Foi de fato tímida a atuação do governo Lula no sentido de se fortalecer o sistema público de comunicação, regulamentando o setor e criando mecanismos efetivos de participação da sociedade na definição das políticas públicas comunicacionais, deixando também praticamente intocada a questão do controle social dos conteúdos. Mesmo a questão da convergência tecnológica parece ter ficado restrita à discussão sobre a adoção ou não de um padrão tecnológico próprio para a TV digital, tendo como resultado a opção pelo padrão japonês, em detrimento das pesquisas realizadas pelas Universidades Brasileiras.

Não obstante a tecnologia nacional ter sido preterida, a aprovação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, através do Decreto-Lei 4901, de 2003 trouxe importantes avanços que embora não tenham encontrado no governo Lula as condições efetivas para sua implantação permanece como um campo de referência importante à luta pelo direito à comunicação.

A principal contribuição deste governo foi, não obstante seus percalços e tentativas de esvaziamento por parte do setor privado, a convocação e organização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em dezembro de 2009. Ainda que não tenha tido força de lei, ter posto em negociação entidades representativas da sociedade civil como FNDC, CUT, Fenaj, Abraço, Intervozes etc e empresariais como Abra, Telebrasil, Abert, ANJ e ABTA foi um processo que conseguiu pôr as

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comunicações na agenda política do país, envolvendo, ao longo de sua preparação cerca de 30 mil pessoas.

Ainda que, como era de se esperar, esse lócus privilegiado da construção de práticas comunicacionais democráticas tenha sido marcado por insistentes embates, não somente ideológicos, como os envolvidos nos chamados “temas sensíveis”, o conjunto de suas resoluções, num total de 672 propostas, constitui um documento essencial que deverá nortear a adoção das políticas públicas e a revisão do Sistema Brasileiro de Comunicação.

Destacam-se entre suas resoluções a regulamentação do Artigo 221 da Constituição Brasileira, a necessidade de uma lei de radiodifusão que contemple, por exemplo, as rádios comunitárias, a instalação do Conselho de Comunicação Social, assim como a própria constituição de um Plano Nacional de Banda Larga. Cabe-nos ainda lembrar que, posteriormente à Confecom, o governo Lula realizou no final de 2010 um Seminário Internacional de Regulamentação da Mídia, que resultou num anteprojeto de lei que, não obstante algumas esparsas versões, ainda não veio a público e mereceu amplo debate.

Se, como frequentemente ocorre no Brasil, corremos o risco deste episódio permanecer na lembrança como mais um momento do que poderia ter sido, será a efetiva disposição e maturidade da sociedade civil, demonstradas naqueles meses, que propiciaram a tão almejada democratização do setor.

A pressão popular para que o governo Dilma realmente enfrente o problema, assumindo a Confecom como um fórum legítimo de manifestação dos anseios da sociedade para o setor, afirmando a urgência não só de um marco regulatório atualizado e afeito as dinâmicas tecnológicas do presente e que se avizinham, mas que possibilite a participação democrática da construção e condução dessas políticas é, a nosso ver, o que deve pautar e conduzir os ânimos daqueles realmente envolvidos com esse direito fundamental da humanidade