sábado - calvino

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  • 8/18/2019 Sábado - Calvino

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    Q ua r t o   P r ec e it o  

    Recorda-te de santificares o dia do sábado.

    Por seis dias trabalharás e farás todas as tuas obras.

    Mas o sétimo dia, o sábado, é de Jeová, teu Deus.Nele não farás trabalho algum  etc.

    28. O fim desse preceito é que, mortos para nossas próprias afecções

    e obras, meditemos no reino de Deus e, instituídos por essa meditação,

    exercitemos as razões que provêm d’Ele. De fato, tendo consideração pe

    culiar e distinta dos outros, requer uma série um pouco diversa de inter

    pretação. Os antigos o costumam chamar de “ã sombra”, porque contéma observação exterior do dia - que no advento do Cristo fora abolida com

    outras figuras ~407 o que, embora dito com verdade por eles, toca a ma

    téria apenas diminuta e parcialmente. Eis por que a exposição deve ser

    retomada com maior profundidade e devam-se considerar as três causas

    que, parece-me, constam nesse mandamento. Quis o Legislador celeste

    figurar espiritualmente, sob a quietude do sétimo dia, o povo de Israel,

    que, expressando sua fidelidade, folgaria de suas próprias obras parapermitir que Deus operasse neles. Depois, quis que fosse estatuído um

    dia pelo qual conviria que a Lei fosse ouvida e as cerimônias realizadas,

    ou, pelo menos, a que dedicariam peculiar meditação de suas obras, para

    que, por essa recordação, fossem exercitados para a piedade. Em tercei

    ro lugar, procurou dar um dia de descanso aos servos e aos que estão sob

    o império de outros, pelo qual teriam algum afastamento do trabalho.

    29. Muitos lugares ensinam que, no sãbado, tivesse lugar primãrio a

    figura do repouso espiritual,408 visto que de nenhum outro preceito o Se

    nhor exige mais severamente a obediência [Nm 15, 32],409 Quando quer

    indicar aos profetas que toda a religião estã destruída, queixa-se de os

    sãbados estarem poluídos, violados, sem guarda, não santificados, como

    se, omitido esse favor, nada mais restasse a ser honrado [Ez 20, 12; 22, 8;

    23, 38; Jr 17, 21.22; 27; Is 56, 2], Segue-se de sua observância altíssimosencómios, donde também os fiéis, entre outros orãculos, estimavam admi

    ravelmente a revelação do sãbado. Com efeito, assim falaram os levitas em

    Neemias, na congregação solene: “Mostraste a nossos pais o teu sábado

    407 Agostinho, Contra duas ep. Pelag., III, 4, 10, PL 44, 594; Sermo 163, 3, PL 38,752; etc.

    408 Cf. Agostinho, Ep. 55, 9, 17s. [ad lanuarPL 33, 212 s; Sermo 9, 3; 23, 3, PL 38,77. 208; Contra duas epist. Pelagianorum, III, 3, 10, PL 44, 594.

    409 Nm 15, 32-36.

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    santo, deste a eles os mandamentos e as cerimônias e a Lei pela mão de

    Moisés” [Ne 9, 14]. Vemos quão singular dignidade tem entre todos os

    preceitos da Lei. Tudo isso cabe ã recomendação da dignidade do misté

    rio, belissimamente expresso por Moisés e Ezequiel. Assim temos noÊxodo: “Cuideis de guardar o meu sábado, porque é um signo entre mim e

    võs para as vossas gerações, para que saibais que Eu sou o Senhor que vos

    santifica. Guardai o sábado; com efeito, é santo para võs” [Ex 31, 13;410

    35, 2], E ainda: “Guardem o sábado, filhos de Israel, e celebrem-no por suas

    gerações; pois é um pacto sempiterno entre mim e os filhos de Israel e um

    signo perpétuo”.411 E com maior amplitude Ezequiel, cuja suma também

    traz para isto: “Que seja o signo pelo qual Israel conheceria que Deus fosse seu santificador” [Ez 20, 12], Se a nossa santificação consiste na morti

    ficação da própria vontade, jã se vê apta a analogia do signo exterior com

    a própria realidade interior. Deve-se repousar completamente para que

    Deus opere em nõs, fazendo ceder nossa vontade, resignando o coração,

    abdicando de todos os desejos da carne. Por fim, deve-se deixar de todos

    os encargos do próprio intelecto para que, operando Deus em nõs, n’Ele

    repousemos, tal como também ensina o apóstolo [Hc 3, 13; 4, 9],30. Para os judeus, a observação de um dia entre sete representava

    essa perpétua cessação, que foi recomendada pelo Senhor com seu exem

    plo para ser celebrada com maior religiosidade: e não vale pouco, para o

    aguçamento de seu zelo, que o homem se saiba tendendo ã imitação do

    Criador. Se alguém reclamar algum significado misterioso para o número

    septenãrio, uma vez que este é o número da perfeição na Escritura, não

    é sem causa que tenha sido escolhido para destacar a perpetuidade.412

    O que também é sufragado por Moisés ao narrar que, no dia em que

    descansou de suas obras, o Senhor tenha encerrado a sucessão dos dias

    e das noites. Também se pode apontar uma observação diferente para o

    número, a saber, que o Senhor teria designado que o sábado jamais ha

    veria de ser absoluto até que viesse o último dia. Com efeito, nele come

    çamos aqui nossa bem-aventurada quietude, nela cotidianamente fazemos novos progressos, mas, uma vez que ainda é assíduo o embate com

    a carne, ela não serã consumada antes de ser implementado o que nar

    rou Isaías sobre a continuação de lua nova a lua nova, de sábado a sába

    do [Is 66, 23], quando Deus serã tudo em todos [1 Co 15, 28]. Assim pode

    parecer que o Senhor delineasse a seu povo, por meio do sétimo dia, a

    410 Ex 31, 13s.

    411 Ex 31, 16.41 2 Cregório I, Moralia in lob.,  35, 8, 15-17, PL 76, 757ss.

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    perfeição futura de seu sábado no ültirno dia; povo que, pela meditação

    contínua do sãbado, aspirará por toda a vida a essa perfeição.413

    31. Se alguém se sentir enfastiado com essa observação sobre os nú

    meros, considerando-a muito sutil, em nada me oponho que tome umamais simples: que o Senhor ordenasse um dia certo pelo qual o povo

    exercitaria a meditação assídua da quietude espiritual sob o ensinamen

    to da Lei; que assinalasse o sétimo porque previa ou que bastasse ou que

    melhor estimulasse o povo pela semelhança proposta por seu próprio

    exemplo ou que admoestasse não esperar do sãbado mais do que se

    tornar conforme ao seu Criador. Na verdade, pouco importa: que perma

    neça o mistério, que foi apontado precipuamente, sobre a quietude perpétua de nossas obras, a cuja contemplação os profetas com freqüência

    chamavam os judeus, para que não se considerassem satisfeitos com a

    cessação do que é carnal. Além das citações alegadas, temos ainda a

    Isaías: “Se advertires o teu pê do sãbado, para que não faças a tua von

    tade no meu dia santo, e chamares de delicado e santo o sãbado do Se

    nhor glorioso, e o glorificares ao não fazer os teus caminhos e não desco

    brires a tua vontade para que digas as palavras, então te deleitarás no

    Senhor” etc. [Is 58, 13].414 Quanto ao mais, não hã dúvida de que, com

    o advento do Cristo Senhor, tenha-se abolido o que aqui era cerimonial.

    Ele mesmo é a verdade, em cuja presença todas as figurações esvaecem;

    o corpo, em cuja visão as sombras dispersam; é Ele, digo, o verdadeiro

    complemento do sãbado: pelo batismo fomos sepultados com Ele, esta

    mos unidos à sua morte, para que, partícipes da ressurreição, andemos

    na novidade da vida [Rm 6, 4j. Por isso, escreve o apóstolo em outro lu

    gar que o sãbado fosse uma sombra da realidade futura: “que o corpo se

    firme no Cristo” [Cl 2, 16.17|, isto é, sobre a sólida substância da verda

    de, sobre a qual bem explicou naquela passagem: “ela não estã contida

    num único dia, mas em todo o curso de nossa vida, até que, plenamente

    mortos para nõs mesmos, fartemo-nos da vida de Deus”. Portanto, deve

    estar afastada do cristão a observância supersticiosa dos dias.32. Visto que as duas últimas causas não devem ser enumeradas en

    tre as sombras antigas, mas convêm igualmente a todos os séculos, o sã

    bado, ab-rogado, entre nõs ainda mantém este lugar: que sejam estabe

    lecidos dias para a audição da Palavra, para a partilha do pão místico,

    para o encontro nas orações públicas e, depois, para ser dada aos servos

    413 Quanto ao que precede, cf. Butzer, Enarrationes in Evang.  1530, f. 118b (1536,p.299s).

    414 Is 58 13s.

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    e operários sua remissão do trabalho.415 Não hã dúvida de que as duas

    fossem visadas pelo Senhor na prescrição do sábado. A primeira, sõ no

    que toca aos costumes dos judeus, tem abundantes testemunhos. A se

    gunda foi assinalada por Moisés no Deuteronômio,  por estas palavras:“Para que teu servo e tua serva repousem, e tu também, como recorda

    ção de que tu mesmo também servistes no Egito” [Dt 5, 14].416 Também

    no Êxodo:  “Para que repouse teu boi e teu asno, e respire o filho de tuaserva” [Ex 23, 12], Quem negará que ambas convenham tanto a nõs como

    aos judeus? As assembléias eclesiásticas nos são prescritas pela palavra

    de Deus, e sua necessidade é plenamente conhecida pela própria expe

    riência da vida: a menos que fossem estabelecidas e tivessem seus diasconstituídos, de que modo se poderiam dar? Da palavra do apóstolo, tem-

    se que tudo deve ser conduzido por nõs decentemente e em ordem [1 Co

    14, 40]. De fato, a menos que seja possível conservar esse governo e

    moderação, estão tão distantes o decoro e a ordem que, uma vez dissol

    vidos, far-se-ã presentíssima a perturbação e a ruína da Igreja. Pois, se

    cabe a nõs a mesma necessidade para a qual o Senhor constituíra o sá

    bado como um auxílio para os judeus, ninguém infira que ela em nada

    nos toque. Com efeito, o nosso Pai providentíssimo e indulgentíssimo provê

    não menos a nossa necessidade que a dos judeus. Por que, pode-se di

    zer, não nos reunimos antes todos os dias, para que assim se suprima a

    distinção dos dias? Quisera isso se desse! Com certeza a sabedoria espi

    ritual seria digna de dedicação diária de uma partícula de tempo. Mas,

    se não é possível obter da debilidade de muitos que se reúnam diaria

    mente, e a regra da caridade não permite exigir mais deles, por que não

    nos submetermos ã regra que vemos ser imposta para nõs pela vontade

    de Deus?

    33. Sou obrigado a me alongar um pouco mais aqui, jã que hoje não

    poucos espíritos inquietos alvoroçam-se a respeito do dia do domingo: re

    clamam que a massa cristã seja favorável ao judaísmo, pois que mantém

    alguma observação dos dias.417 Eu, porém, respondo que estã além do judaísmo observar a esses dias, uma vez que nisso diferimos em muito dos

     judeus. Com efeito, não o celebramos como uma cerimônia estritíssima da

    religião, na qual consideramos ser figurados os mistérios espirituais, mas

    o tomamos como um remédio necessário para manter a ordem na Igreja.

    Paulo ensina que os cristãos não sejam julgados por sua observância, uma

    415 Cf. Butzer, loc. cit., f. 118b-199a (p.300).416 Dt 5, 14s.417 Refere-se aos anabatistas. Cf. também Serveto, De iusticia regni Chr.,  c.III, E7a.

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    vez ser ela uma sombra da realidade futura [Cl 2, 16]; por isso teme ter

    trabalhado em vão entre os gãlatas, visto que ainda observavam os dias

    [Gl 4, 10.11 ]. E disse em romanos que é supersticioso quem distingue um

    dia de outro dia [Rm 14, 5], Mas quem, além desses furiosos, não vê de

    qual observância trata o apóstolo? Com efeito, não tinham em vista o fim

    político e da ordem eclesiástica, mas, quando retinham as sombras tais

    quais as realidades espirituais, obscureciam na mesma medida a glõria de

    Cristo e a luz do Evangelho. Por isso não se abstinham das obras manuais,

    porque seriam empecilhos ao zelo sagrado e ã meditação, mas porque, por

    certa religiosidade, imaginavam que, ao se abster, cultivavam os mistérios

    uma vez a eles recomendados. Digo que foi a respeito de tal distinçãoextemporânea que investiu o apóstolo, e não a respeito da escolha legíti

    ma que serviu ã paz da sociedade cristã, visto que nas Igrejas por ele ins

    tituídas o sãbado era mantido com esse fim. De fato, prescreveu aos

    coríntios esse dia, pelo qual recolheriam as oferendas para apoiar seus

    irmãos de Jerusalém [1 Co 16, 2], Caso se tema a superstição, muito maior

    era o perigo nas pausas judaicas que nos dias de domingo, agora manti

    dos pelos cristãos. Assim, visto que era proveitoso afastar a superstição,foi abolido o dia religioso dos judeus, e como era necessário manter na

    Igreja o decoro, a ordem e a paz, outro dia foi destinado para esse fim.

    34. Não foi aleatoriamente que aqueles a quem chamamos antigos

    colocaram o dia do domingo no lugar do sãbado. Dado que a verdadeira

    quietude que o antigo sãbado representava teve na ressurreição do Se

    nhor um fim e complemento, pelo mesmo dia, que pôs fim ã sombra, os

    cristãos são admoestados a não aderir a uma cerimônia de sombras.Também não insisto no número septenãrio, de modo que force a Igreja ã

    sua servidão; também não condenarei as Igrejas que mantêm outros dias

    para suas assembléias, desde que se abstenham da superstição, o que

    se darã se, bem edificados, forem indicados apenas para a observação

    da disciplina e da ordem. Que a suma seja: tal como a verdade era trazida

    para os judeus sob figuras, para nõs é recomendada sem sombras, em

    primeiro lugar para que, por meio de nossas obras, meditemos por toda

    a vida em um sabatismo perpétuo, pelo qual o Senhor opere em nõs por

    intermédio de seu Espírito; depois para que, cada um em privado, sem

    pre que puder, exercite diligentemente no devoto reconhecimento das

    obras de Deus e então todos nõs observemos, ao mesmo tempo, a or

    dem legítima da Igreja, constituída para a audição da palavra, a adminis

    tração dos sacramentos, as orações públicas; em terceiro lugar, para que

    não oprimamos desumanamente os que são a nõs submetidos [sobre essa

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    liberdade, veja Sócrates, História trípartite eclesiástica,  1.9, c.38],418 Assim esvaecem as frivolidades dos falsos profetas, que imbuíram o povo

    nos séculos passados com a opinião judaica, não inferindo senão que fosse

    ab-rogado nesse mandamento o que era cerimonial (chamado por eles

    de “a taxação do sétimo dia”), mas que permanecesse o que é moral, a

    observância de um dia na semana.419 Ora, isso não seria senão mudar o

    dia por beligerância para com os judeus, retendo na alma a mesma san

    tidade do dia, visto que o mistério dos dias permaneceria significando para

    nõs o mesmo que para os judeus. E vimos que tirassem proveito de tal

    doutrina, pois os que aderem às constituições deles superam em muito

    aos judeus na crassa e carnal superstição do sabatismo, de modo que emnada lhes seja menos conveniente hoje aquelas reprovações lidas em Isaías

    [Is 1, 13; 58, 13], dirigidas pelo profeta a seus coetâneos. Quanto ao mais,

    para que a religião não pereça nem languesça entre nós, deve-se manter

    precipuamente a doutrina geral, freqüentando com diligência as assem

    bléias sagradas e operando para que sejam dados os subsídios exterio

    res que valem para a promoção do culto de Deus.

    Q u in t o   P r ec e it o  

    Honra teu pai e tua mãe, 

    para que sejas longevo sobre a terra que Jeová, teu Deus, haverá de dar para ti,

    35. O fim desse preceito é: se estã no coração do Senhor Deus a con

    servação de sua disposição, convém serem invioláveis para nõs os graus

    de eminência por Ele ordenados. A suma serã, portanto, que ergamos

    nossos olhos àqueles que o Senhor pôs ã nossa frente, seguindo-os com

    honra, obediência e gratidão. Donde se conclui o interdito de que não re

    tiremos a dignidade deles, seja por injúria, por contumácia ou por ingra

    tidão. De fato, aparece com abundância o vocábulo “honra” na Escritura,

    como quando o apóstolo diz que sejam duplamente dignos de honra os

    presbíteros que bem presidem [1Tm 5, 17], não entendendo somente que

    a eles seja devida a reverência, mas quanta remuneração ê merecida pelo

    ministério deles. Ora, visto que esse preceito sobre a sujeição entra em

    profunda luta com a depravação do entendimento humano (que, embe

    vecido pelo desejo de superioridade, penosamente sustenta sua sujeição),

    418 Cassiodoro, W/s. trip.,  IX, 38, PL 69, 1153.

    419 Cf. Alberto Magno, Compendium verítatis theologicae, V, 62; Tomás de Aquino, Summa Theologiae  la-llae, q.100, a.3, ad2; q.122, a.4, adi.