sabedoria evangélica no antigo egito

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Sobre a sabedoria evangélica no Antigo Egito.

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    Sabedoria evanglica no Antigo EgiptoAutor(es): Carreira, Jos NunesPublicado por: Instituto Oriental da Universidade de LisboaURLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24246

    Accessed : 25-Jun-2015 20:45:44

    digitalis.uc.ptimpactum.uc.pt

  • CADMORevista do Institu to Oriental

    Universidade de Lisboa

    2

  • SABEDORIA EVANGLICA NO ANTIGO EGIPTO

    Z u s a m m e n fa s s u n g

    E vange lisch U n te rt n e d e r Lehre e ines M annes f r se inen Sohn, aus de M itt le re n R eich, w u rd e n lngs e rkann t. From a d iffe re n t cu ltu ra l con - texto ve rg le ic h t K. A. K itch e n und d e r Letzte is t de r Erste ( 13b) m it M t. 20 ,1 6 (und M t. 19,30; M k. 10,31; Lk. 13,30). H. B ru n n e r w e is t a u f das lange Leben in de r w e ish e itlich e n T rad ition b is ins N eue Testam ent s o lc h e r Stze, w ie er d e r Knig) le h rt d ie S tu m m e n sp re ch e n / und ffn e t d ie O hren d e r Tauben ( 16).

    D er A u fsa tz m ch te das v e rm e in tlic h e lange Leben ve rze ichen . Was den Letzen, d e r d e r E rste w ird , b e tr if f t , so is t d e r S p ru n g von d e r a lt g yp tis ch e n W e ishe it zu den S yn o p tike rn d ire k t und a b ru p t. N ich t e inm a l im A lten Testam e n t is t e ine Vorsufe zu be legen . A nders lie g t de r B e fund vor, w enn m an d ie Invers ion . Zw ischen d e r a nonym en Lehre und 1. Sam . 2 ,4 -8 (in Lk. 1 ,52 -53 a u fg e n o m m e n ) s ind h n lich ke ite n zu ve rm erken .

    P ro p h e te n und A p o k a ly p tik e r das A lte n T e s ta m e n ts v e rh e isse n e ine H e ilsze it, in d e r die Augen d e r B linden a u fge tan / und d ie O hren d e r ta u b e n g e ffn e t werden (Jess. 35,5). Das Wunder d e r k n ig lich e n L e h rt tig ke it w ird z u r e rfo lg e n d e n ta ts c h lic h e n H e ilung d e r m e n sch lich e n G ebrechen . A uch das N eue T estam en t (M t. 11,5; Lk. 7 ,22) n im m t das W ort taub im e ig e n tlic h e n S inn und e rk l r t d ie W e issagung des Jesa jas in Jesus e r f llt .

    Por JOS NUNES CARREIRA

    Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Instituto Oriental)

  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • SABEDORIA EVANGLICA

    Muito antes das alturas da piedade privada do Imprio Novo e da sua famosa Instruo de Amenemope, a sabedoria egpcia ante- cipou de algum modo o Evangelho. Prova-o a (mesmo para padres egpcios) curiosamente annima (1J Instruo de um homem para seu filho, que no se conserva em nenhum manuscrito nem aproxi- madamente completo e s lenta e dificilmente foi ganhando forma na moderna egiptologia. Publicado o primeiro fragmento em 1871, houve que esperar sessenta anos at que algum a indentificas- se (2), e mais trinta e seis para se reconstituir um texto continuado a partir de treze fragmentos dispersos (3). No se fez esperar a transcrio, transliterao e verso inglesa (4). Dispe-se finalmente da traduo alem de noventa e seis linhas (5).

    K. A. Kitchen notou facilmente as ressonncias evanglicas de os ltimos so os primeiros (6). H. Brunner chama a ateno para a longa vida na literatura sapiencial at ao Novo Testamento (7) de frases como ensina os mudos a falar / e abre os ouvidos aos surdos. Daqui veio o impulso para esta pequena divagao.

    I

    Da majestade do fara proclama 0 autor annimo:

    Morte (prematura) no vir sobre ele.Ele faz do ignorante um sabedor,o mal-amado torna-se benquisto.Consegue que o prequeno ultrapasse o grande,que o ltimo seja 0 primeiro.

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  • JOS NUNES CARREIRA

    Quem no tinha o mais necessrio (agora) senhor de uma fortuna.

    Quem tinha um miservel bocado de terra, (agora) senhor de criadagem.

    Faz conhecer o xito a quem o no tinha,quem padecia necessidade possui (agora) uma aldeia. (8)

    Garantida a longevidade do rei egpcio, o autor proclama as suas benemerncias de ordem intelectual e social. Na primeira esfera, rasga as trevas da ignorncia dos que o escutam, substituindo-se ao sbio tradicional. Nos domnios do social, do rei que as classes baixas podem esperar promoo e bem-estar, superando as dificul- dades e humilhaes de um antes indesejado e indesejvel.

    Do homem comum bem podia dizer-se que ningum nasce ensi- nado (literalmente, sbio) (9). No assim do fara, sbio por antono- msia e sbio nato, pois como sbio veio do ventre (materno) (10). A ele antes de mais se aplica a formulao lapidar: O sbio uma escola para os nobres. / Os que sabem que ele sabe no o ataca- ro (11).

    O esquema antes/agora tambm no. era novo. Oriundo da elegia, onde lastimava a misria do defunto imvel e enfaixado em linho to oposta s alegrias da vida livre de outrora, fora largamente aproveitado por autores que descreveram horrorizados a convulso social do Primeiro Intermedirio. Neferti, mais preocupado com as di- menses csmicas da catstrofe, mal aflora o tema:

    Mostro-te o amo em necessidade, o arrivista saciado, o preguioso empanturra-se, o diligente est na penria (12).O pedinte ganhar riquezas, 0 grande roubar para viver, o pobre comer po, os escravos sero exaltados (13).

    Nas Admonies de Ipuwer, lamrias do gnero tinham alas- trado como um dilvio:

    Eis que homens pobres se tornaram homens ricos, quem no ganha para sandlias possui riquezas.(...)Eis que os nobres se lamentam, os pobres rejubilam.(...)O ladro possui riquezas, o nobre um ladro. (14)Eis que ouro, lpis-lazli, prata e turquesa, cornalina, ametista, pera-ibht e ...

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  • SABEDORIA EVANGLICA

    pendem ao colo de escravas.Fidalgas vagueiam pelo pas, senhoras dizem queremos com er eis... fidalgasseus corpos sofrem em andrajos. (15)Eis que todas as servas so rudes no seu falar, fala a ama e um enfado para as servas. (16)

    Ipuwer esgota-se em lamentos sobre a degradao dos grandes e a ascenso dos humildes. Nunca se vira uma desordem destas: grandes com fome, servos a ser servidos, servos a tornarem-se donos de servos... E no se trata de exclamaes extemporneas. 0 poeta ganha flego e desabafa:

    O que no podia fazer um sarcfago possui um tmulo.Vejam, os que possuam tmulos so lanados pelo campo fora. O que no podia fazer um tmulo tem um tesouro.

    Vejam agora as transformaes das gentes:0 que no construa uma choa possui cofres.Vejam, os juizes do pas so expulsos do pas, os nobres deitados fora das reais manses.Vejam, fidalgas esto em estrados, prncipes em oficinas,quem nem sobre uma caixa dormia tem uma cama.Vejam, o homem de posses jaz sequioso, quem mendigava fezes tem jarras cheias.Vejam, os que tinham vestes esto em andrajos, quem no tecia para si tem linho fino.Vejam, quem no construa para si um barco possui navios, seu dono olha para eles, no lhe pertencem.Vejam, a quem faltava abrigo tem abrigo, quem tinha abrigo jaz nas trevas da tormenta.Vejam, quem no sabia o que era uma lira (agora) tem harpa, o que no cantava exalta a deusa.Vejam, o que era dono de mesas de oferendas de bronze, nem um dos seus vasos est ornado.Vejam, quem dormia sem esposa encontrou uma fidalga,

    Vejam, quem nada tinha homem de posses, o nobre canta o seu louvor.

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  • JOS NUNES CARREIRA

    Vejam, os pobres do pas ficaram ricos,0 proprietrio um pobre.Vejam, cozinheiros deram em chefes de mordomos, quem no tinha mensageiro envia outro por ele.Vejam, quem no tinha um po tem levedura, seu celeiro est repleto de bens dos outros.Vejam, 0 calvo que no tinha unguento deu em dono de jarros de mirra doce.Vejam, a que no tinha uma caixa tem moblia, a que mirava a face na gua tem um espelho. (17)

    Lamenta-se a queda dos grandes e a consequente ascenso dos fracos. 0 pas est moribundo, diz-se por duas vezes como em refro:

    Eis que se foi o que se via ontem, o pas entregue sua fraqueza qual estaca de linho. (18)

    Servidores do trono e apologistas da sua grandeza e estabilidade, os autores da literatura poltica do Imprio Mdio conservam 0 es- quema antes... agora. Mas passam o tom menor da elegia para o tom maior do hino ao fara. O autor da Instruo de um homem para seu filho canta as excelentes perspectivas de promoo aos ouvidos dos pobres diabos do funcionalismo rgio (ao contrrio, a contempornea Instruo Lealista dirige-se ao alto funcionalismo com idntica motivao). Por obra e graa do rei-deus, passaro de ignorantes a sbios, de mal-amados a benquistos, de pequenos a grandes, de ltimos a primeiros. Tudo dentro da venervel maat final- mente imposta pela monarquia restaurada.

    Remata o trecho uma nota decididamente sapiencial:

    (O fara) ensina o mudo a falar e abre os ouvidos do surdo.

    Falar e ouvir eram, por assim dizer, termos tcnicos da fraseo- logia dos sbios. Na sociedade estratificada e organizada do antigo Egipto, o poder da palavra impunha-se. Palavra do rei no s no vol- tava atrs, mas tinha eficcia certa. Discurso prprio e oportuno na boca do funcionrio garantia autoridade perante o sbdito e pro- moo das mos do superior. Sem dvida, o primeiro degrau da sa- bedoria e da carreira subia-se pelo ouvir e saber calar. O silncio

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  • SABEDORIA EVANGLICA

    tornou-se a virtude fundamental e paradigmtica do sbio; ouvir era condio bsica para saber e poder falar. No admira que 0 pri- meiro grande sbio egpcio cujo escrito nos chegou ntegro, Ptah- -hotep (fins do Imprio Antigo), tenha insistido mais no ouvir que no falar. Na mxima n. 17: Se s um homem que dirige, / escuta calma- mente o discurso do que apela (19). Convencido de que s pelo h- bito de ouvir at se tornar um ouvinte-mestre o discpulo alcanar a sabedoria que lhe permite falar para a posteridade(20), Ptah- -hotep desenvolve numa bela pgina as vantagens do ouvir, a que no faltam conotaes de obedecer:

    til ouvir para um filho que ouve; se o ouvir entra no ouvinte, o ouvinte torna-se atento; ouvir bem falar bem.til ouvir para o que ouve, ouvir melhor que tudo o mais; cria boa vontade.Quo bom para um filho captar as palavras de seu pai, alcanar vida longa atravs delas.Quem amado de deus ouve;aquele a quem deus odeia no ouve. (21)

    Se ouvir assim to proveitoso para a carreira social do Egpcio, no se compreenderia o insucesso escolar do aluno dsculo. Ptah- -hotep compreende, ou antes aceita, que nem todo o discpulo seja ouvinte. Salta do mistrio da liberdade para o mistrio da transcen- dncia. E a soberana conduo divina do destino humano irrompe qual raio aterrador no cu lmpido e sereno do Imprio Antigo: s ouve 0 amado de deus. (22)

    Falar no envolve mistrio nem transcendncia apenas saber... e silncio. ainda Ptah-hotep:

    Se s um homem de valorcom assento no conselho do amo,concentra-te na excelncia,teu silncio vale mais que tagarelice.Fala quando sabes que tens uma soluo; o dotado que devia falar no conselho.Falar mais duro que qualquer outra obra, o que o entende pe isso ao seu servio. (23)

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  • JOS NUNES CARREIRA

    Se s dotado no discurso, vencers; a lngua uma espada de rei, falar mais forte que toda a luta. (24)

    A degradao do faraonato no Primeiro Perodo Intermedirio se deve a ousadia de sentar o rei nos bancos da escola, convidandoo a aprender a excelncia de bem falar e o ofcio de bem governar. O autor da Instruo annima, nos alvores da restaurao do Imprio Mdio, eleva 0 rei de discpulo a mestre, atribuindo-lhe o quase milagre de fazer do ignorante um sabedor, de ensinar o mudo a falar e de abrir os ouvidos ao surdo.

    II

    Muitos primeiros sero ltimos e dos ltimos primeiros, ' (Mc 10,31) nos mes- mssimos termos de Marcos (10,31) e Mateus (19,30; ligeira variao em Mt 20,16 e Le 13,20), parece saltar directa e abruptamente da sa- bedoria egpcia para os Sinpticos. Nem um rasto deixou na sabe- doria ou em qualquer outro gnero literrio ou escrito do Antigo Tes- tamento (25). No assim o tema da mudana de situao social tratada nessa passagem. O paralelo veterotestamentrio mais bvio e talvez mais antigo para a Instruo egpcia vem do chamadoCntico de Ana (1 Sam 2, 1-10). 0 hino, inserido no relato de in-fncia de Samuel, contm uma srie de antteses de situaes so- ciais invertidas (vv. 4-8). Pelo poder do Deus sapientssimo (v. 3) de Israel

    Est quebrado o arco dos poderosos, mas os dbeis cingiram-se de fortaleza.Os fartos andam jorna por comida, mas os famintos deixam de trabalhar.A estril sete vezes d luz, e est murcha a me de muitos filhos. Jav que d a morte e d a vida, faz descer ao xeol e de l subir.Jav d pobreza e d riqueza, humilha e tambm exalta.Levanta do p o homem fraco,

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  • SABEDORIA EVANGLICA

    e do monturo faz erguer o indigente, para lhes dar assento entre os fidalgos, e trono de glria lhes dar em sorte; pois de Jav so as bases da terra, sobre elas ps o orbe.

    As primeiras antteses parecem rplica sucinta de Ipuwer: quem antes estava socialmente em baixo adquiriu posio de prestgio e desafogo; quem nadava em poder e abundncia est agora na pe- nria. Bem diferente , todavia, a valorao: negativa em Ipuwer, po- sitiva no salmo bblico. Na valorao da viragem, ainda mais que nos temas, que Cntico de Ana e Instruo de um homem para seu filho se aproximam. No coincidem certamente todos os termos. So diversos os acentos e at os sujeitos da viragem. O sbio egpcio no tira os olhos do funcionrio modesto espera de promoes e honras que nunca vm. S muito de raspo menciona os grandes o pequeno ultrapassa o grande, o ltimo o primeiro. Toda a nfase est na oportunidade de promoo e melhoria de vida, no contraste entre o antes e 0 agora do pequeno funcionrio, no entre os grandes que caem e os pequenos que sobem. Comum a ideia da ascenso social da arraia-mida e desprezada famintos, estreis e pobres de toda a ordem em Israel; analfabetos, indigentes e pe- quenos proprietrios no Egipto. Comum ainda a aluso morte. A diferena que o fara no senhor da vida (diz-se que poupado morte prematura), ao passo que Jav d a morte e d a vida, faz descer ao xeol e de l subir. O horizonte do poeta hebreu largo todo o homem em situao humilde; 0 egpcio sobrevoa sem cui- dados a massa dos que labutavam no campo e nas necrpoles s lhe interessa o funcionrio. 0 salmo hebraico reala a simpatia de Jav pelos socialmente dbeis; 0 sbio egpcio d todas as garantias ao pequeno, mas evita ferir ou rebaixar o grande.

    Socialmente dbil o pobre, outra verso possvel do hebraico dal. E no h dvida de que o pobre se pode valer de especial pro- teco de Deus e da simpatia dos sbios.

    Em Israel como no Egipto, foram os sbios que melhor obser- varam o fenmeno da pobreza e da riqueza e a natural ambio de subir na escala social. Mas curiosamente (e ao contrrio dos pro- fetas, que denunciaram a adopo das concepes econmicas ca- naneias em coliso com o direito fundirio tradicional e a misria dos camponeses outrora livres) a sabedoria dos provrbios no se preo- cupa com problemas sociais nem to pouco se apercebe das crises.

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  • JOS NUNES CARREIRA

    A pobreza existe, com o seu cortejo de experincias tristes. Ao lado, o rico escudase na fortuna e passa bem. tudo... A realidade o que , e h que viver com ela:

    todos os irmos do pobre o odeiam,com mais razo o deixam os amigos. (Prov. 19, 7)

    A fortuna do rico, eis a sua praa forte;alta muralha, pensa ele. (Prov. 18, 11; cf 10, 15)

    Mesmo ao seu vizinho o pobre odioso, mas o rico tem muitos amigos. (Prov 14, 20)

    um facto que o pobre fala como quem suplica / e o rico res- ponde com dureza (Prov 18,23) e que muitas situaes de pobreza resultam da culpa de quem a sofre (Prov 11, 16; 12, 11; 11, 24; 13, 4 etc.). Mas tambm verdade que a arrogncia anuncia a runa / e 0 esprito altivo o descalabro (Prov 16, 18) e que o dinheiro mal ganho gua o deu gua o levou (Prov 13, 11; 20, 21; 21, 6). E a van- tagem no est sempre do lado do rico:

    Mais vale um naco de po seco comido em pazque uma casa cheia de carne com discrdia. (Prov 17, 1).

    Mais vale o pobre que vive honestamenteque o homem de lbios perversos que assim enriquece. (Prov.19, 1; cf. 28,6)

    A insnia causada pela riqueza faz emagrecer a carne, os cuidados que ela traz afastam o sono. (Sir 31,1 ou 34,1)

    0 rico quer passar por sbiomas um pobre sensato desmascara-o. (Prov. 28, 11) 26

    No a riqueza mas a justia que d segurana vida (Prov 11,4. 28). E embora a riqueza possa ser dom de Deus (Prov 10, 22) como no Cntico de Ana (Deus sujeito de yras hi., empobrecer hapax de 1 Sam 2, 7), no h dvida de que a simpatia dos sbios est inequivocamente ao lado dos pobres: oprimir o pobre ultrajar o seu criador (Prov 14, 31), quem d ao pobre empresta a Deus (Prov 19,17), os filhos do mpio devero indemnizar os pobres (Job

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  • SABEDORIA EVANGLICA

    20, 10), ser insensvel s necessidades dos pobres pecado (Job 31, 16).

    0 horizonte de simpatia pelos humildes alarga-se aos salmistas (SI 9, 10. 13. 19; 45,10; 82,4 etc.) e aos reis. O rei de Israel com- passivo para com o fraco e o miservel (SI 72,13); o rei ideal do fu- turo (Messias) julgar os fracos com justia (Is 11, 4).

    Numerosas so as afirmaes de Jav como autor de vida e se- nhor da morte, em paralelismo de situaes como no Cntico de Ana (Dt 32, 39; Jer 49, 11) ou referindo umas vezes 0 dar a vida (hyh pi. SI 138,7; 143, 11; Os 6,2; Hab 3, 2; Job 36,6; Ne 9,6), outras o dar a morte (mwt hi. Os 2,5; 9, 16; SI 105, 29). Os sal- mistas no se cansam de apelar para Deus como dador de vida, em lamentaes (SI 71, 20; 80,19; 85,7), aces de graas (SI 30,4; 41,3) e no grande acrstico sapiencial de elogio Lei (SI 119, 37. 40. 88. 93. 1070419. 154. 156. 159).

    Maior longevidade teriam, porm, outros contrastes: famintos sa- ciados e opulentos despedidos de mos vazias, soberbos humi- lhados e fracos exaltados so tpicos que perpassam pelo Antigo Testamento fora: um salmista repete ipsissimis verbis 1 Sam 2,8 (SI 113, 7: Jav levanta do p 0 homem fraco); Deus humilha e exalta (SI 75, 8), mas humilha sobretudo tiranos e soberbos (SI 18, 28; Is 13, 11; 25, 11; 26, 5). At desembocarem no Magnificat: Deps po- tentados de tronos e exaltou humildes. Encheu famintos de bens e despediu ricos de mos vazias (Lc 1, 52-53).

    Resta analisar o percurso de ensinar 0 mudo a falar e abrir os ouvidos do surdo, do Egipto ao Novo Testamento. No vale do Nilo, era o milagre da instruo perseverante, acompanhada obviamente pela alta conduo de Deus ao nvel da emergente transcedncia e pela vara nas costas nos domnios prticos do imediato (Ptah-hotep). Na Instruo annima do Imprio Mdio, o prprio fara que faz do ignorante um sabedor, condio preliminar para algum se aba- lanar difcil aprendizagem da escrita e da arte de lidar com homens.

    A mais antiga sabedoria de Israel ignora praticamente o falar. Fala a sabedoria personificada (Prov 8, 22), quando, mngua de pro- vrbios novos a coleccionar, os sbios desenvolviam as suas teses em discursos. Acreditar no milagre de pr um rude a falar bem no passaria pela cabea dos campnios e artesos de Israel nem dos le- trados da corte que escreveram os seus ditados. preciso chegar

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  • JOS NUNES CARREIRA

    sabedoria cansada de Job para assistir a uma inflao de falas (mar, nah, dbar pi.). F-aiam inmeras vezes 0 justo sofredor e os seus amigos gritos de angstia existencial de um lado, frases ocas e verborreia barata do outro. Qohelet, colhendo os frutos de uma sa- bedoria madura, entre cptica e resignada, prefere falar consigo pr- prio (1, 16; 2, 15), como quem nem sequer acredita no poder do verbo, quanto mais na existncia de milagres.

    No ouvir que os sbios do Antigo Testamento concentram a sua ateno. Apelam aos discpulos que ouam (Prov 1, 8; 4, 1. 10;5, 7. 13; 7, 24; 8,6. 32. 33; 23, 19. 22). O sbio ouve (Prov 1, 5; 12, 15). S o nscio no ouve (Prov 13, 1). Job tem de clamar para que os amigos, todos concentrados na sabedoria tradicional e optimista, finalmente o ouam (Job 13, 6. 17; 21, 2).

    Em suma, os sbios querem ser ouvidos e raras vezes aconse- lham a falar (abre a tua boca ao mudo, Prov. 31, 8, uma excepo), mas no crem no milagre de dar ouvidos a surdos, mesmo em sentido figurado.

    S profetas e apocalpticos tm a audcia de prever mudos a falar e surdos a ouvir. Em pleno exlio de Babilnia, 0 poeta e profeta annimo a quem, falta de melhor, chamamos Dutero-lsaas, con- vidou o cego e surdo povo de Israel a ouvir e ver (Is 42, 18). O sentido obviamente metafrico: surdo por no escutar a men- sagem proftica, cego por residir nas trevas da priso (Is 42, 7; 43, 8). Na viso apocalptica de Is 29, 17-24, mantm-se 0 sentido meta- frico de ouvir e ver 27:

    Naquele dia, os surdos ouviro as palavras da Escritura, e, da escurido e trevas, vero os olhos dos cegos.(v. 18)

    Mas noutro poema apocalptico, com temas e motivos tomados ao Dutero-lsaas, prev-se um tempo salvifico radioso deserto seco e estril convertido em prado risonho, cegos, surdos e coxos li- bertados das maleitas. Descrevendo a cura fsica:

    Ento se ho-de abrir os olhos aos cegos,os ouvidos dos surdos se abriro...e a lngua dos mudos gritar de gozo. (Is 35, 5-6)

    No entendimento dos evangelhos, estava aqui um dos elementos do carto de identidade do Messias. Cumpria-se a previso nos mila-

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  • SABEDORIA EVANGLICA

    gres de Cristo. O futuro gramatical converte-se em presente, com li- geiras adaptaes verbais:

    Surdos que ouvem e mudos que falam, sem apoio verbal em Isaas mas muito mais prximo da sabedoria egpcia, ocorrem final- mente em Mc 7, 37. Aps a cura do surdo-mudo, exclama a multido: Tudo fez bem; ps os surdos a ouvir e os mudos a falar.

    A perspectiva de elevao social dos fracos, enunciada pela sa- bedoria egpcia do Imprio Mdio e erguida evidncia do contraste pelo Antigo Testamento, percorre cerca de dois milnios at ao Novo Testamento. Fazer de homens simples e ignorantes sabedores e benquistos ao poder era como dar fala a mudos e ouvidos a surdos, milagre tanto mais compreensvel quanto ensino e promoo se atribuem ao fara. Salmistas e sbios de Israel unem-se na simpatia pelos fracos e na expectativa da sua elevao social. O profeta do Exlio clama a um povo surdo e cego que aceite finalmente a sal- vao que lhe restituir a luz de uma vida livre e digna. Apocalpticos prevem o milagre da cura moral surdos ouviro a palavra da Es- critura, cegos vero a luz da liberdade (Is 29, 18) e mesmo da cura fsica (Is 35, 5-6). Profeta e apocalpticos ampliam 0 leque de sen- tidos enfermos a curar (literal ou metaforicamente): viso, audio, fala. Os evangelhos consideram as vises e previses antigas final- mente realizadas (Magnificat e milagres de Cristo)... e com isso fe- cham o arco que arrancava do Imprio Mdio egpcio.

    (1) Por se ter perdido 0 nome do autor ao longo dos quatro ou cinco sculos que me- dearam entre a redaco original e a xvm dinastia ou, o que mais provvel, propo- sitadamente annima (Brunner), por se destinar a toda a gente e no ao aspirante a funcionrio do Estado (Posener).

    * * *

    Netas

    73

    Is 35,5,6 (LXX) Mt 11,5 (Le 7,22) , , , ,, , ^ , ]

  • JOS NUNES CARREIRA

    Respirando o clima geral da literatura poltica da xn dinastia e das instrues lea- listas em especial, o texto foi muito apreciado pelos Egpcios do Imprio Novo, donde vm todos os testemunhos que nos chegaram ( dinastias). Os es- cribas e aprendizes de escriba, que mal entendiam e j no falavam o egpcio cls- sico do Imprio Mdio, neste caso ainda carregado de vocbulos raros, no se can- saram de copiar (e corromper) a Instruo annima. Ao uso escolar da Instruo devemos os sessenta ostraca conhecidos, completados por um rolo de couro ainda por abrir (Paris) e por fragmentos de papiro, que j no pelo vaso do Cairo ra- surado para receber uma coleco de cantigas de amor.

    (2) KUNTZ, A propos de quelques ostraca gyptiens, CRAIBL 1931, pp. 321 ss.

    (3) H. GOEDICKE, Die Lehre eines Mannes fr seinen Sohn, ZS 94 (1967) 62-71. G. Posener j a inclura no conspecto da literatura do antigo Egipto (Revue d gypto- logie 6 [1951], 37-38 e aproveitara na sua Littrature et politique dans l'Egypte de la XIIe Dynastie, 1956, pp. 124-127.

    (4) K. A. KITCHEN, Studies in Egyptian Wisdom Literature I: The Instruction by a Man for his Son, em Oriens Antiquus 8 (1969) 189-208; II, ibid., 9 (1970) 203-210.

    (5) H. BRUNNER, Altgyptische Weisheit. Lehren fr das Leben, Darmstadt, 1988, pp. 185-192 (comentrio, ibid., pp. 458-461).

    (6) Studies, I, 195: em diferente contexto cultural manda conferir Mt 20, 16 e pa- ralelos (Mt 19,30; Me 10.31; Lc 13,30). J S. LURIA, Die ersten werden die Letzten sein, Klio 22 (1929) 405-431.

    (7)0. c., p. 460.

    (8) Ibid., p. 190 (1. 37-44).

    (9) Prlogo da Instruo de Ptah-hotep, M. LICHTHEIM, Ancient Egyptian Litera- ture, I: The Old and Middle Kingdoms, Berkeley/Los Angeles/London, 1973, p. 63.

    (10) Instruo para o rei Merikar, ibid., p. 105.

    (11) Ibid., p. 99.

    (12) M. LICHTHEIM, o.e., I, p. 142.

    (13) Ibid., p. 143.

    (14)Ibid., p. 151.

    (15) Ibid., p. 152.

    (16) Ibid., p. 153.

    (17) Ibid., pp. 156-157.

    (18) Ibid., pp. 153, 154.

    (19) Ibid., p. 68.

    (20) Eplogo, ibid., p. 73.

    (21) Ibid., p. 74.

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  • SABEDORIA EVANGLICA

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    (22) Cf. S. MORENZ, Die Heraufkunft des transzendenten Gottes, em ID., Religion und Geschichte des alten gypten. Gesammelte Aufstze, Kln/Wien, 1975, p. 90.

    (23) Mxima n. 24; M. LICHTHEIM, o.e., p. 70. Ver mximas 27 e 28, ibid., p. 71.

    (24) Ibid., p. 99.

    (25) Os antecedentes textualmente mais prximos da frase evanglica so a opo- sio de duas situaes, assim formulada na verso grega dos lxx: \ , * (2 Sam 13,15 ) (2 Sam 13,15), dio posterior (de Tamar) era maior que o anterior (2 Sam 13, 15); ^ \ ... \>ep (Ag 2,9), a ltima glria (do templo de Jerusalm) ser superior primeira (Ag 2, 9); aya Xogov \> (Qoh 7,8), mais vale fim de uma coisa que o seu incio (Qoh 7,9).

    (26) Cf. G. VON RAD, Isral et la sagesse, trad., Genve, 1971, pp. 93-95; 147-149.

    (27) Segundo 0. KAISER, Der Prophet Jesaja. Kapitel 13-39 (ATD 18), Gttingen, 1973, p. 221, da poca helenstica.