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SAMIZDAT 6 julho 2008 SALVEM AS CRIANÇAS! esta é a súplica de Lu Xun em Diário dum Louco www.samizdat-pt.blogspot.com

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SAMIZDAT

6julho2008

SALVEM AS CRIANÇAS!esta é a súplica de Lu Xunem Diário dum Louco

www.samizdat-pt.blogspot.com

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Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Alian Moroz

Carlos Alberto Barros

Giselle Natsu Sato

Henry Alfred Bugalho

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Autores Convidados

Leo Borges

Textos de:

Aluísio Azevedo

Hu Shi

Lu Xun

Imagem da capa:http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/

www.samizdat-pt.blogspot.com

SAMIZDAT 6julho de 2008

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público ou royalty free.

As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira responsabilidades de seus autores ou tradutores.

EditorialApós tantos séculos, a China ainda permanece um territó-

rio a ser desbravado. No imaginário coletivo, este povo com vários milênios de História acaba por se resumir a alguns conceitos bastante delimitadores: a Grande Muralha, filmes toscos de kung-fu, macarrão chop-suey, meninas sendo aban-donadas à morte por causa duma arraigada cultura patriar-cal e Mao-Tse-Tung. Como se a complexidade do país mais populoso do mundo pudesse ser apresentada de maneira tão simplória.

Em agosto deste ano, as atenções estarão voltadas para a China, sede dos jogos olímpicos de 2008. Do mesmo modo que o povo chinês tem sido obrigado a ocidentalizar cer-tos hábitos e costumes, nós também estamos tendo de nos orientalizar em certos aspectos, apenas assim podemos nos preparar para esta nova China, bem diferente daquela dos filmes de Ang Lee (“O Tigre e o Dragão”) ou de Zhang Yimou (“Herói” e “O Clã das Adagas Voadoras”). Por mais que, no interior rural, a China ainda esteja atolada num regime quase feudal – o que também poderia ser dito do interior brasileiro, por exemplo –, as metrópoles chinesas são a última palavra em tecnologia e civilização.

Nesta edição da SAMIZDAT, são apresentados dois autores desta China moderna, porém ainda pré-revolucionária. Lu Xun e Hu Shi são dois expoentes duma intelectualidade que contribuiu para a atualização e renovação deste país – re-volução que significou atrocidades inimagináveis, mas que também tentou gerar um pouco de igualdade numa nação de contrastes. Aliás, este foi o desafio e o conflito enfrentado por quase todos os Estados socialistas.

Outro destaque é a coleção e o ensaio teórico sobre uma forma poética bastante adaptada à era digital – o poetrix. Breve, econômico, conciso e belo.

Henry Alfred Bugalho

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SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

ENtrEViSta

Fernando Bonassi 8

miCroCoNtoS

Alian Moroz 11

Henry Alfred Bugalho 11

Volmar Camargo Junior 11

autorES Em LÍNGua PortuGuESa

Polítipo 12Aluísio Azevedo

PaNorama LitErÁrio

o medo do Livro 16Henry Alfred Bugalho

CoNtoS

Lucas, o menino Binário 20Carlos Alberto Barros

o Convite 24Volmar Camargo Junior

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Capítulos 1 28Henry Alfred Bugalho

o autor dos Passos 30José Espírito Santo

o País 33José Espírito Santo

Caiu a Sombra 34Pedro Faria

o templo dos Sorrisos 37Alian Moroz

o Bicho-Papão 38Giselle Sato

traduÇÃodiário dum Louco 40Lu Xun

Hu Shi, o intelectual dareforma literária chinesa 50

Não se esqueça 53Hu Shi

Sonho e Poesia 54Hu Shi

autor CoNVidadoa Única Paz Possível é a Jacimeire 56Leo Borges

tEoria LitErÁriaPor que escrevo? 60Henry Alfred Bugalho

três Versos 62Volmar Camargo Junior

CrÔNiCaSBrasileiros no Exterior:Patuscada no Carnegie Hall 66Henry Alfred Bugalho

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PoESia

teatro de máscaras 70Carlos Alberto Barros

utopia 71Frederico Galhardo

Laboratório Póetico iii 72Volmar Camargo Junior

Poesia Concreta 73

Volmar Camargo Junior

Poetrix 74José Espírito Santo

dois momentos 75Marcia Szajnbok

LiNKS dESta EdiÇÃo 76

SoBrE oS autorES da Samizdat 75

Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-dado.

Escreva-nos para:

[email protected]

SEÇÃO DO LEITOR

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66 SAMIZDAT julho de 2008

inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de

governo humanitária, igua-litária, mas logo se converte em uma ditadura como qual-quer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiram, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exenplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

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7www.samizdat-pt.blogspot.com

E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

Ao serem obrigados a bur-larem a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substitua o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.samizdat-pt.blogspot.com

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88 SAMIZDAT julho de 2008

Entrevista

FErNaNdo BoNaSSi

Fernando Bonassi nas-ceu em São Paulo, em 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, cineasta e escritor de diversas obras, entre elas Um Céu de Estrelas (Ed Siciliano) Subúrbio; Crimes Conjugais e 100 Histórias Colhidas na Rua (Scritta); O Amor é Uma Dor Feliz (Moderna); Uma Carta Para Deus e Vida da Gente ( Formato) O Céu e o Fundo do Mar (Geração Editorial); 100 Coisas (Angra) ); Declaração Universal do Moleque Invocado (Cosac & Naify) e São Paulo/Brasil (Ed. Dimensão), ambos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de lançamento.

Em 2003 é publicada a novela Prova Contrária e em 2005 o romance O Menino que se Trancou na Geladeira, ambos pela Editora Objetiva.

É co-roteirista de filmes como Os Matadores (de Beto Brant); Através da Janela (de Tata Amaral); Castelo Ra Tim Bum (de Cao Hamburguer); Carandiru (de Hector Babenco – Prêmio TAM do Cinema Brasileiro para o melhor roteiro

adaptado de 2003); Garotas do ABC (de Carlos Reichenbach), Cazuza (de Sandra Werneck- Prêmio TAM do Cinema Bra-sileiro para o melhor roteiro adaptado de 2004).

Em 2006 é co-autor, com o cineasta chinês Yu Lik Way, do roteiro da co-produção Brasil/China Plastic City.

No teatro, destacam-se as montagens de Preso Entre Ferragens (dirigida por Eliana Fonseca); Apocalipse 1,11 (em colaboração com o Teatro da Vertigem); “Três Cigarros e a Última Lasanha” (com Rena-to Borghi e direção de Débora Dubois); Souvenirs (dirigida por Márcio Aurélio); “Arena Conta Danton” com a Cia Livre de Teatro; a encenação do fragmen-to “Estilhaços de São Paulo”, no espetáculo “Megalopolis” do Theater der Klaenge (Sttutgart, Alemanha) e “Centro Nervoso”, quando estreou na direção, em agosto de 2006.

Em 2007 volta ao texto e a direção com o monólogo O Incrível Menino na Fotografia, interpretado pelo ator Eucir de Souza.

Tem diversos prêmios como roteirista no Brasil e no exterior, além de obras literárias adapta-das para o cinema e textos em antologias na França, Estados Unidos e Alemanha.

O romance Subúrbio teve os direitos comprados pelo Deutsches Schauspielhaus de Hamburgo. A adaptação teatral

estreou no dia 04 de abril de 1998.

Nesse mesmo ano, foi vencedor da bolsa do Kunstlerprogramm do DAAD - Deutscher Akademischer Austauschdienst. Desde 1997 é colunista do jornal Folha de São Paulo.

Há pouco tempo nós tivemos a adaptação do impressionante livro 'Ensaio sobre a cegueira', do José Saramago, em uma produção que cau-sou alguma polêmica. Há uma cena impactan-te (a do estupro coleti-vo) que foi efetivamente filmada pelo Meirelles e exibida de maneira experimental. A cena foi vetada porque a reação foi muito adversa. Nesse sentido, há algum tre-cho do livro “Estação Carandiru”, de Dráusio Varela, que você consi-derou melhor não ex-por na adaptação para o cinema? E o que você achou do resultado final do filme?

Fernando Bonassi: Não, nenhuma cena de Carandiru foi censurada de qualquer modo pelos roteiristas e responsáveis

8 SAMIZDAT julho de 2008

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pelo filme. Fizemos o que quisemos, mas acho que o resultado não é bom. É um filme muito lento quando devia ser rápi-do e muito rápido onde devia se deter e “observar melhor” os personagens. Não é o meu melhor resultado em cinema. Gosto mais do que ajudei a fazer em Os Matadores, de Beto Brant.

Para a escrita do roteiro do filme “ Carandiru”, você este-ve dentro deste com-plexo penitenciário para acompanhar as atividades diárias dos detentos. O que essa experiência lhe trouxe? Você costuma usar esse artifício de inserção no ambiente retratado para compor suas histórias?

F.B.: Acompanhei um grupo de escritores lá no presídio e ao mesmo tempo escrevia cartas para outros tantos, tudo que vi, e ouvi lá me marcou para o roteiro e marca minha escrita sim. Havia muita dor lá, im-possível ficar imune.

A literatura, o cine-ma e o teatro possuem estruturas, resultados e públicos bastante dis-tintos. Para você, qual é o maior desafio ao escrever para cada um destes meios? E qual deles mais te agrada?

F.B.: Cinema é dinheiro. Teatro é diversão. Litera-tura é liberdade.

Qual é sua maior preocupação como autor? Que mensagem deseja passar com o que escreve?

F.B.: Minha maior pre-ocupação como autor é comover como sou co-movido com a vida.

Conte-nos um pouco sobre a trajetória per-corrida até ter sua pri-meira obra publicada.

F.B.: Escrevia (e escrevo) muito muito. Participei de todos os concursos e jornais literários de mi-nha época e até hoje é assim. Oferecer o meu texto por aí é o úni-co jeito mais ou menos honesto que encontrei e encontro até hoje...

É comum encontrar-se autores que, mesmo com livros publicados, se não tiverem a apro-vação da crítica ou um maior reconhecimento, não conseguem obter retorno satisfatório com a escrita e acabam por deixarem-na em segun-do plano ou, até mesmo, a abandonam. O que você acha disso e, no seu caso, como e quan-do surgiu esse reconhe-cimento?

F.B.: Escritor que escreve por reconhecimento tem texto morto. A gente es-creve e a crítica aprecia. Normalmente tomamos pau, mas é assim mesmo. Um dia alguém fala bem e aí começa um circuito de boatos em torno de você... Mas isso só acon-tece se você escrever sem esperar. Tem que ser sur-

“Minha maior preocupação como autor é comover como sou comovido com a vida.”

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1010 SAMIZDAT julho de 2008

presa, senão não vale. Se a crítica fosse importante, haveria só ensaio, não literatura.

Como foi sua expe-riência de viver fora da Brasil? Há uma boa aceitação de seus livros por leitores estrangei-ros?

F.B.: Viver no estrangei-ro, em países onde você nem sabe a língua, é uma experiência muito forte de solidão e paradoxal-mente de mergulho na sua própria cultura. Pas-sei a compreender (não aceitar) melhor o Brasil depois que fiquei longe dele. É bom ser cidadão das Américas, a tradição nos pesa menos... Meus livros de criança vendem bem no exterior, mas ainda temos muito o que aprender para se dar bem nesse mercado...

Tendo em vista sua participação em pro-jetos marcantes para a televisão, como os pro-gramas “Rá-tim-bum” e “O Mundo da Lua”, até que ponto vai sua afini-dade com a escrita para o público infantil?

F.B.: As crianças são lei-tores mais desencanados que os adultos. Dá pra

falar de tudo com uma criança, já os adultos vi-vem se ofendendo... é um saco.

Há algum projeto específico (romance, roteiro, peça teatral) em que está investindo no momento? Pode nos falar um pouco dele?

F.B.: Neste momento interrompi a escrita de um romance para traba-lhar na TV. Fui contrata-do pela TV Globo para algumas propostas (ainda sigilosas) de ficção e com uma liberdade criati-va, por enquanto, muito grande. Eu vou até onde eles me deixarem enlou-quecer. O salário é mui-to bom, de todo modo. Acho que vai dar pra comprar alguns vestidos de princesa pras minhas filhas...

Por fim, a equipe editorial da revista SAMIZDAT agradece muito toda a presta-tividade e disposição com que nos cedeu esta entrevista. Desejamos-lhe todo sucesso e um grande abraço!

F.B.: O meu abraço frater-no a todos da SAMIZDAT!

Coordenador da entrevista:Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:Alian MorozCarlos Alberto BarrosDenis da CruzHenry Alfred BugalhoSamuel PeregrinoVolmar Camargo Junior

10 SAMIZDAT julho de 2008

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idéiasAlian Moroz

Sentiu a consciência pesar.Uma idéia concreta talvez?

a Beca do mortoHenry Alfred Bugalho

- Ele era um anjo!- Era um amor de criatura!- Um santo... nunca fez mal a viv'alma.- Ele era um desgraçado filho duma puta, isso sim! Em vida, ele emprestava minhas coisas e nunca de-volvia. Inclusive, aquele terno que ele está usando é meu!

CenárioVolmar Camargo Junior

- Essas casas, essas lojas, esses restaurantes... É tudo tão bonito! Parece cinema!- Senhora...- Sim?- Posso parar de fingir que sou seu marido agora?

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1212 SAMIZDAT julho de 2008

autor em Língua Portuguesa

Aluísio Azevedo

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Suicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa.

Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exigüi-dade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das cousas cá da terra.

Não conheci ainda cria-tura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é sus-ceptível um animal da nossa espécie, escondidos, porém, na mais ingrata e compro-metedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.

O livro era excelente, mas a encadernação detestável.

Imagine-se um homenzi-nho de cinco pés de altura

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sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pe-quenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, bra-ços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma idéia do tipo do meu malogrado amigo.

Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraor-dinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo, cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos gene-rosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galan-tes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança.

Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senho-ra desacatada, ou um velho vítima de alguma violência; ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, casti-gava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a pater-nidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfia-

dos, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita.

E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injusta-mente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.

Outro doloroso caipo-rismo dos seus, era o de parecer-se com todo o mun-do. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enreda-do. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, ama-nuense de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes.

Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao. certo. A circunstância da sua falta absoluta, de barba dava-lhe ao rosto uma dúbia expres-são, que tanto podia ser de homem, como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossí-vel, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o ob-servador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas, olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado

de cima para baixo era quase um bonito moço, porém, de baixo para cima era simples-mente horrível.

Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas, com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até às orelhas e o chapéu até à gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário; e, quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem pôr, um nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.

Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano, lhe invadiu os aposentos, sur-preendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou como-vido:

- Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada!

De outra vez quando ain-da a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajos de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na es-tação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procu-rar certo artista, de cujos serviços precisava, foi rece-bido no corredor com esta singularíssima frase:

- Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?... E quer ver se me engana com essas calças?

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1414 SAMIZDAT julho de 2008

Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia des-pedido de casa.

Não se dava conflito de rua, em que, passando perto o Boaventura, não o tomas-sem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressal-tado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão, sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palma-das no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade.

Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho su-pondo ver nele um colega desertor.

E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.

Uma existência impossível!

Se se achava numa repar-tição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:

- Garção! Há meia hora que reclamo que me sirva.

Se ia provar um paletó à loja do alfaiate, enquan-to estivesse em mangas de

camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autorida-de afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pare-ciam com Boaventura.

Num clube familiar, quan-do o infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão.

- Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velha-co?!

O mísero voltara-se inal-teravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado àqueles en-ganos.

Que vida!

Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar.

No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um ami-go de cada um deles.

Havia choro a valer e, entre o clamor geral, dis-tinguiam-se estas e outras frases:

- Meu filho morto! Meu filho morto!

- Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem!

- Ó senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca!

- Mas não me engano! é o meu caixeiro!

- Dir-se-ia que este moço era um meu antigo compa-nheiro de bilhar!...

- E eu aposto como é um velho, que tinha um bote-quim por debaixo da casa onde eu moro!

- Qual velho, o que! Co-nheço este defunto. Era estu-dante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!

- Estudante! Ora muito obrigado! há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era mé-dico velho!

- Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me to-dos os dias a “Gazeta” à casa. É que a morte alterou--lhe as feições.

- Meu pai!

- O Bernardino!

- Olha! Meu padrinho!

- Jesus! Este é meu tio José!

- Coitado do padre Rocha!

Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa!

E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naque-le defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.

Fonte: Biblioteca Virtual - Literatura

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BiografiaAluísio Tancredo

Gonçalves de Azevedo (São Luís do Maranhão, 14 de abril de 1857 — Buenos Aires, 21 de janeiro de 1913) foi um escritor, diplomata, caricaturista e jornalista brasileiro.

Era filho do português David Gonçalves de Azevedo e de Emília Amália Pinto de Magalhães. Seu pai era viúvo e a mãe , separada do marido algo que configurava grande escândalo na sociedade da época. Irmão do dramaturgo e jornalista Artur Azevedo.

Aluísio desde muito novo dedicou-se ao desenho (ca-ricatura), e ao trabalho. Em 1876 viaja ao Rio de Janeiro, a fim de estudar Belas Artes, obtendo desde então susten-to com seus desenhos para jornais.

Com o falecimento do pai (1879), volta para o Maranhão, onde começa finalmente a escrever.E em

1881, publica "O Mulato", onde choca a sociedade pela forma crua do romance, desnudando a questão racial - tendo ele já se filiado aos abolicionistas.

O sucesso desta obra habi-lita-o a voltar para a Capital do Império, onde escreve sem parar novos romances, contos, crônicas e até peças teatrais.

Sua obra é vista como ir-regular por diversos críticos, uma vez que oscilava entre obras românticas açucaradas, com cunho comercial e di-recionado ao grande público; e outras mais elaboradas e onde deixava sua marca de grande escritor naturalista.

Feito diplomata, em 1895, chega finalmente em [1910] em [Buenos Aires], cidade onde veio a falecer, menos de três anos depois.

Foi homenageado com o nome de uma importante rua no bairro de Santana, da cidade de São Paulo.

Foi o responsável por

inaugurar o estilo naturalis-ta no Brasil com o romance O mulato (1881). É também autor dos romances Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890), entre outros.

A influência de Aluísio de Azevedo são os escritores naturalistas europeus, dentre eles, o mais importante foi Émile Zola. Através dessa óptica naturalista, capta a mediocridade da rotina, os sestros e mesmo as taras do indivíduo, uma opção con-trária dos românticos que o precederam.

As características fun-damentais do naturalismo, quais sejam influência do meio social e da hereditarie-dade na formação dos indi-víduos, além do fatalismo, estão presentes nas obras de Aluísio de forma veemente. Nele "a natureza humana afi-gura-se-lhe uma serta selva-geria onde os fortes comem os fracos", afirma o estudioso Alfredo Bosi.

aLuÍSio azEVEdoautor em Língua Portuguesa

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1616 SAMIZDAT julho de 2008

Panorama Literário

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Quando eu era adoles-cente, nas férias, eu sempre viajava acompanhado por pelo menos um livro.

E toda vez que alguém me encontrava, sentado na varanda da casa da minha avó, no interior do Paraná, ou na praia, neste mesmo estado, lendo, a pergunta inevitável era feita:

— Por que você está len-do?

— Porque gosto... — eu respondia.

— Mas você é louco?

Eu não compreendia, à época, a relação entre gos-tar de ler e ser considerado um maluco, pois, para mim, o prazer da leitura era tão natural quanto o de assistir TV, jogar videogame ou ir ao cinema; um não excluía o outro.

Mas descobri que o bra-sileiro foi ensinado a temer o livro e este fenômeno está enraizado num triste contex-to histórico-social.

Em 1950, mais de 50% da população brasileira era analfabeta, ou seja, dos 50 milhões de habitantes, mais de metade não conseguiria ler um livro se o tivesse às mãos.

Foi exatamente neste

o mEdo do LiVroHenry Alfred Bugalho

[email protected]

“...o brasileiro foi ensinado a temer o livro e este fenômeno está enraizado num triste contexto histórico-social.”

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1818 SAMIZDAT julho de 2008

mesmo ano que o primeiro canal de TV foi inaugurado no país.

Dez anos depois, o anal-fabetismo havia caído 10%, enquanto o número de tele-visores havia aumentado 200 mil vezes.

Hoje, a televisão está presente em 88% dos lares brasileiros, sendo que 98% dos brasilei-ros assiste a TV pelo menos uma vez por semana; por outro lado, os índices de alfabetização estão na casa de 88%, incluindo os analfabetos funcionais — capazes de níveis básicos de escrita, mas sem grandes habilidades interpretativas.

Enquanto a França, a In-glaterra e os Estados Unidos haviam criado um gigantesco público leitores, acoplado a programas educacionais de qualidade, durante os séculos XIX e XX, a leitura no Bra-sil sempre foi precária, até o momento em que teve de dividir espaço com a desleal concorrência da TV.

Um meio de entreteni-mento instantâneo, atraente e novo disputou — e venceu — o obsoleto e intrincado universo dos livros. Um indivíduo com sérias limita-ções financeiras não deveria ter dúvida sobre como gastar seu miserável salário: 200 reais numa TV, ou o mesmo valor para uma estante com alguns poucos livros? Adqui-rir um aparelho que pro-porciona diversão 24 horas ao dia, por tempo indeter-

minado, para toda a família, ou comprar alguns volumes finitos (o ponto final é o fim) de prazer solitário?

Uma população (semi-)analfabeta, um mercado lite-

rário que for-ça aos leito-res um preço surreal, e o mito criado ao redor do livro sepulta-ram — talvez para sempre — um rela-cionamento

íntimo entre o brasileiro e o livro.

A Literatura nunca foi vista como uma forma de entretenimento tão ou mais agradável do que as outras — TV, cinema, música, inter-net. Ao livro é resguardado o rótulo de “repositório de saber”, o que, nas entrelinhas, significa: “que chatice!”

O modo como as esco-las apresentam a Literatura também não é dos mais agradáveis. Apesar de todos seus méritos literários, for-çar alunos de 14 ou 15 anos

a ler Guimarães Rosa ou Euclides da Cunha é criar uma aversão ainda maior ao livro do que a que eles já traziam desde casa. Um lar sem livros é uma casa sem leitores, mas uma escola que seleciona os livros errados está criando verdadeiros ini-migos da Literatura. Eu bem sei quantos anos se passaram até eu me reconciliar com “Sagarana”.

Parece ser este o grande tabu da Literatura no Brasil — ser popular, ser entreteni-mento, ser agradável. Qual-quer autor que porventura caia nas graças do público, deste pobre público que mal consegue comprar dois livros ao ano, é o alvo da execra-ção crítica e moral. Vender e divertir é um convite a uma temporada no inferno literá-rio. No Brasil, o bom autor que se preza abomina cifras, enredos lineares, personagens planas (e, por isto, facilmente assimiladas pelo “populacho”) e, o mais surpreendente, parágrafos. O bom autor brasileiro vomita tudo, sem interrupção, por 500 páginas. E se o leitor não entender, o

“A Literatura nunca foi vista como uma forma de entretenimento tão ou mais agradável do que as outras — TV, cinema, música, internet.”

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problema é dele!

É um ciclo que se alimen-ta.

Numa pesquisa recente foi apresentada a estatística de que 45% dos brasileiros não gosta de ler.

Muita gente pensa — in-clusive grandes formadores de opinião — que bastaria baixar o preço dos livros para se conquistar mais leitores. Isto é simplesmente ridículo. Um brasileiro paga 25 reais para ir a um jogo de futebol, mas não paga 30

reais para adquirir um livro. O que existe é uma hierar-quia de prioridades, do que proporciona prazer ao que causa repulsa.

A única medida que concebo para reverter este cenário — se é que isto seja possível — é modificar a relação entre o brasileiro e o livro. É preciso fazê-lo ver que leitura não é coisas de louco, que, no interior da biblioteca universal, existem obras complexas, sapienciais, difíceis, mas que a leitura também pode gerar prazer,

diversão ou riso.

A questão passa longe de preço ou comércio; quem tem disposição empresta um livro numa biblioteca, ou lê a obra pela internet (as opções de bons livros de domínio público ou livres de copyri-ght são intermináveis), mas é preciso querer.

Prazer na leitura, sem isto, não há medida educacional, não há campanha publicitá-ria que alterará o panorama literário.

Para Saber mais:

Câmara Brasileira do Livrohttp://www.cbl.org.br/content.php?recid=5828&type=N

De olho na Educaçãohttp://www.deolhonaeducacao.org.br/Comunicacao.aspx?action=5&mID=832

Desemprego Zerohttp://www.desempregozero.org.br/artigos/um_estudo_sobre_a_populacao_brasileira_no_secu-lo_xx_fonte_ibge.php

Domínio Culturalhttp://www.dominiocultural.com/ver_coluna.php?id=6207&PHPSESSID=8b602f1930d00d246dd2b14aca7c560c

Farol Comunitáriohttp://farolcomunitario.blogspot.com/2008/05/imprensa-oficial-publica-pesquisa.html

Microfone: História da Televisão Brasileirahttp://www.microfone.jor.br/historiadaTV.htm

Portal Brasilhttp://www.portalbrasil.net/brasil_economia.htm

Wikipédiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/MOBRAL

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2020 SAMIZDAT julho de 2008

Contos

Carlos Alberto [email protected]

LuCaS, o mENiNo BiNÁrio

Haverá um tempo em que os seres humanos quererão extravasar seus sentidos, seus sentimentos, seu amor, seu sexo. Uma mulher triste se isolará em sua casa, se sentirá solitária, amargurada, manterá relações virtuais para suprir suas carências, quererá satisfazer seus instin-tos e passará a copular com máquinas. Nessas cópulas biocibernéticas, será fecun-dada e gerará uma criança à qual dará o nome de Lucas e que, posteriormente, será conhecida como o Menino

Binário.

O parto de Lucas terá grandes complicações. Seu corpo se enroscará no cor-dão umbilical e dificultará sua saída. Os médicos suarão por horas, até conseguirem retirá-lo por completo. Só aí, perceberão que a dificulda-de se deu por conta de uma das mãos do bebê. E dirão mãos por não saberem como chamar as formas incomuns apresentadas nas extremida-des dos braços. Espantados, verão, ligado ao pulso direito do recém-nascido, o número

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1; e ao pulso esquerdo, o número 0.

A mãe do menino pro-meterá a si mesma nunca permitir que ele sofra pre-conceito e o criará como qualquer outra criança. Ela o levará para ser batizado e o sacerdote congregará sobre a sacralidade de seus números. Dirá que as mãos de Lucas, unidas em oração, mostra-rão sempre o quanto ele é 10, assim como o tão bom e poderoso Deus.

O garoto crescerá e fre-qüentará a escola. Sofrerá zombaria dos colegas, ficará triste, se sentirá diferente, chorará. Sua mãe dirá o quanto ele é especial, o quan-to o ama, que será sempre seu filho nota 10. Dirá que não deve ter vergonha de si mesmo e nem permitir que o maltratem. A professora de Lucas será alertada sobre as brincadeiras de mau gosto dos colegas, dirá o quanto devemos respeitar o próximo, que somos todos iguais pe-rante Deus e que não é certo caçoar dos outros. Os alunos baixarão as cabeças, fingi-rão arrependimento. Depois, assistirão aula de História das Máquinas e aprenderão que os antigos computadores funcionavam apenas com os numerais 0 e 1, através de um sistema denominado có-digo binário. E não demora-rão a usar a isso como novo motivo de zombarias.

Lucas será chamado de Menino Binário, ficará cha-teado e quererá deixar a escola. Sua mãe insistirá para que permaneça, falará sobre a importância do conheci-mento, de um grande futuro. Dirá que não importa que

ele não consiga segurar um lápis, que o que vale é a inte-ligência. Ele, então, continua-rá a estudar e logo arrumará briga com um dos colegas. Usará seu 1 para ferir o oponente, vencerá a briga e os outros meninos levantarão seu braço, e dirão que o nú-mero já fala tudo. Chamarão Lucas de Menino Binário, o número 1. E ele começará a gostar de seu apelido e abrirá um sorriso sempre que ouvir alguém o pronunciando. A vida na escola será menos triste e todos, mais por dó que por vontade, passarão a lhe demonstrar carinho.

Quando chegar à adoles-cência, o Menino Binário se mostrará incomodado com seu apelido e dirá a todos que prefere que o chamem de Jovem Binário, mas verá que soará estranho, sem identidade e que será melhor deixar como antes. E ficará muito feliz quando uma ga-rota disser que acha o nome bonitinho. Perguntará se ela não se importa com aquelas diferenças em seu corpo. Ela responderá que acha que se pode fazer muitas coisas interessantes com aqueles números. Ele enrubescerá e fingirá não entender o co-mentário. Os dois começarão a namorar e as pessoas acha-rão a relação estranha. A família da moça dirá que há tantos rapazes normais por aí. Outros irão desaprovar, criticar e fazer comentários maldosos. Dirão que ela é tão bonita, que deve arrumar coisa melhor. A moça se sen-tirá pressionada, começará a refletir e verá defeitos naque-les números 1 e 0. O Menino Binário não entenderá as mudanças na garota e ela ht

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2222 SAMIZDAT julho de 2008

terminará o namoro, dizendo que não dá mais.

A juventude de Lucas se seguirá solitária. Chegará o ponto de pensar em suicídio. Irá até uma estação de trens e aguardará. No momento certo, descerá na via, colocará os pulsos sobre o trilho e es-perará para ter seus números decepados. Ouvirá um forte som de freios, verá os segu-ranças da estação chegarem, será preso. Sua mãe será in-formada do ocorrido e cairá em lágrimas, discutirá com o Menino, dirá que não precisa disso e que o ama. Ele a con-denará, dirá que a odeia por colocá-lo no mundo e fugirá para longe.

O Menino Binário vagará até encontrar uma jovem. Perguntará seu nome e ela dirá que é Silvia, mas que pode chamá-la de Telemoça. Será questionada do porquê, e mostrará que no lugar de sua barriga há uma tela de TV que mostra as imagens que ela desejar. Ele achará in-teressante, dirá que se chama Lucas, mais conhecido como Menino Binário, e explicará o motivo de seu nome. Os dois se tornarão amigos e ela lhe revelará que, além deles, há muitos outros. Dirá que são conhecidos como Virtualis e que o levará para conhecê-los.

Lucas e Silvia chegarão a um local onde haverá um grande grupo de pessoas. À frente de todos, terá um ho-mem discursando através de um auto-falante que possui no lugar da boca. Ouvirão o inflamado discurso, que falará da luta pelos direitos dos Virtualis. O homem per-guntará quem está ali pela

primeira vez e o Menino Binário se manifestará. Terá o motivo de sua presença questionado e, então, mos-trará seus números a todos. A assembléia, em uníssono, exclamará o quanto Lucas é perfeito e ele, de tão feliz, erguerá bem alto seu número 1, assim como na briga da escola. Também ouvirá uma longa salva de palmas e verá o sorriso de satisfação de Silvia, sentada ao seu lado.

Os anos irão avançar e os Virtualis aumentarão. Mui-tas pessoas dirão que são aberrações; outras, que são seres humanos como todos. Haverá guerras, mortes. Lucas se tornará homem, entenderá a injustiça sofrida por seus semelhantes, se juntará a gru-pos revolucionários e lutará por seus direitos.

A nova vida trará grandes amigos: Daniel, o Dedos-de-antena; Funes, o Memorioso; Glória, a Mulher-remota. Numa bela noite, Lucas irá beber com eles e a Telemoça. Ficará alcoolizado e brigará com um zombador de seus números. Anunciará sua vitória erguendo o braço direito e, olhando para Silvia, erguerá também o esquerdo, juntará os dois e dirá para todos ouvirem que ela é uma mulher nota 10, que sempre a amará e que lhe propõe casamento. Ela ficará feliz e irá beijá-lo. Lucas a olhará com expressão de volúpia e introduzirá o número 1 no 0. A Telemoça sentirá vergo-nha, sorrirá e dirá que ele é um pervertido. E os amigos darão longas gargalhadas de aprovação.

Lucas abandonará o nome de menino e começará a ser

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chamado de Homem Biná-rio. Passará a se sentir mais forte e entenderá que a luta contra o preconceito deve-rá sempre continuar. Verá políticos pedindo seu voto e falando sobre igualdade. Presenciará a criação do Estatuto do Virtuali e viverá experiências comprovando a ineficácia dessa lei. Ficará revoltado e fará discursos fervorosos. Dirá que os Virtualis são injustiçados, que estão sendo mortos sem ninguém fazer nada, que precisam de um deles entre os governantes. Todos aplau-dirão e se sentirão capazes. Unidos, criarão o Partido VV (Virtualis Vivos) e iniciarão uma campanha para eleger o Homem Binário. Planeja-rão tudo: primeiro, prefeito; depois, governador; por fim, presidente. Lucas governará o país e nenhum Virtuali será mais menosprezado. A campanha seguirá firme e as pessoas sensíveis se comove-rão. Lágrimas emocionadas cairão quando o Homem Binário erguer seus braços, formando o número 10 de sua candidatura, e aparecer na tela do ventre de sua esposa, Silvia.

Muitos serão os adeptos da Partido VV e também muitos serão os desafetos. Políticos de outras siglas ficarão incomodados com a aceitação do Homem Biná-rio, se sentirão ameaçados, perceberão que ele é uma perigosa influência para a população e quererão eliminá-lo. Eles contratarão homens que farão Lucas e seus amigos mais próximos caírem em uma armadilha. Daniel terá seus dedos-de-

antena entortados, Funes terá seu cérebro arrancado e sua memória extinta, Glória terá seus botões de contro-le remoto cortados. Lucas verá todos serem mortos, chamará os carrascos de covardes, dirá que a hora deles chegará. Os homens o espancarão, usarão um machado para arrancar seus números, mandarão comer seus membros decepados. O Homem Binário amaldiçoará o mundo, sentirá medo da morte, tentará comer, sentirá náuseas, vomitará, chorará, ouvirá injúrias, será humi-lhado, lembrará de sua mãe, de sua esposa, de sua briga na escola, de quando foi chamado pela primeira vez de Menino Binário. Um dos homens cortará seu pescoço e Lucas morrerá. Seu corpo nunca mais será visto. A Telemoça se desesperará. Os Virtualis se revoltarão, alegarão perseguição políti-ca, assassinato. O caso nunca será resolvido.

Anos e mais anos passa-rão e a lembrança de Lucas se perderá no tempo. Haverá aqueles que debocharão, que dirão que tudo foi inventado. Os fatos se tornarão lenda e a história do Menino Binário será apenas mais uma que muitos sentirão prazer em contar.

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2424 SAMIZDAT julho de 2008

Contos

Volmar Camargo [email protected]

o CoNVitE

Era o ano de 1930 e eu estava de férias. A conversa dos adultos à noite rendeu-me um passeio pela manhã. Meu conhecimento sobre bancos era que de tempos em tempos minha mãe ia até o mais próximo de casa e lá deixava algum dinheiro. Uma quantidade enorme de pes-soas aglomerava-se à porta da agência aonde íamos, cuja porta encontrava-se fechada. Em muitas esquinas do cen-tro da cidade havia grupos assim, ensandecidos. No final da tarde, depois de permiti-

rem a entrada, e terminada a balbúrdia, as pessoas vol-tavam para suas casas com montinhos maiores ou me-nores. O que mamãe enfiou na bolsa logo após dizer “Boa Tarde” não era grande. Foi a primeira vez que vi tanto dinheiro junto.

A fábrica onde meu pai trabalhava fazia trilhos para trens, ou peças para trens, ou as duas coisas. Encontramo-nos com ele a poucos metros de casa. Estava chorando, em

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silêncio como fazem os ho-mens. Não era comum vê-lo assim. O patrão gostava do serviço dele — era polonês, como nós — e ofereceu-lhe a oportunidade de continu-ar no trabalho, com salário menor. Estava triste porque os melhores amigos não receberam a mesma pro-posta. Chegamos. Papai foi para o quarto, mamãe para a cozinha, e o dinheiro foi em um embrulho de papel para dentro da lata de farinha. Eu fui para a sala de estar, pôr tudo em ordem para receber alguém que há muito tempo não via.

A casa ficou quieta, mas não silenciosa, porque a quietude é diferente do silêncio. O outono chegava e o vento corria sobre os telhados fazendo os beirais assoviarem. A porta da fren-te abriu-se, esparramando o cisco que eu acabara de juntar. Não vi ninguém. Cor-ri até a entrada e, fazendo uma mesura, disse ao recém-chegado invisível “Queira entrar, por favor. Sinta-se em sua própria casa.” Ri sozinha,

e fechei-a. Nem o vento nem a sujeira que tive de varrer outra vez abalaram meu bom-humor.

A família reuniu-se às seis da tarde para o jantar. Estávamos felizes porque Stanislaw, meu irmão, voltou depois de um longo tempo. Mamãe fez pierogi, uma travessa cheia de onde tentei capturar um. Recebi uma reprimenda da tia Heike, ma-drinha de Stan: “Tire a mão! Esses são só dele.” Não havia muita coisa — na verdade só czernina, que eu não gostava, mas nunca disse isso a nin-guém. A mesa foi decorada, quase tão bonita quanto a do Natal. Sentei-me na cadeira ao seu lado. Senti o cheiro da loção de barba, e da goma que usaram para passar sua camisa. Olhou uma ou duas vezes para mim durante o jantar, e sorriu. Dividimos o prato de pierogi.

Stanislaw contou que tinha uma noiva e não demoraria a apresentá-la a nós. Ao ouvir o nome, era de origem alemã, senti as solas dos meus pés formigarem, um frio percorrer minha espinha, e os cabelos atrás da nuca eriçarem como os de um gato. Eu a odiei, mesmo sem nunca tê-la visto. Ale-guei cansaço e fui para meu quarto. Não vi as visitas irem embora. Meu irmão saiu logo depois, em seu próprio carro – ou era do exército, nem sei. Chorei até pegar no sono.

Acordei no meio da noite. Mãe e pai dormiam. Silên-

cio. A luz pálida dos postes entrava pelos vãos da janela. Percebi alguém observan-do pela cortina do quarto. Mamãe costumava deixá-la aberta antes de ir-se deitar. Tive medo. Todos sabem, especialmente as crianças sa-bem quando a mãe os espia. Não era ela. No corredor, na sala, na cozinha; alguém deslizava pela casa. O quanto pude, tentei nem respirar.

Barulho. Metal, louça, vi-dro, madeira, o som de tudo o que havia. As luzes acende-ram e todo mundo pulou da cama, inclusive eu — graças a Deus alguém inventou a luz para espantar o que nos amedronta. Pai de pijamas e com uma espingarda velha correu até a cozinha. Todos corremos. A janela estava aberta. Pegadas enlameadas e farinha por todo o soalho. A lata vazia. O pacotinho não estava lá.

Passado o susto, papai chamou a polícia. Depois daquela noite, as coisas só pioraram.

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2626 SAMIZDAT julho de 2008

A fábrica de peças de trem — ou de trilhos — fa-liu. O banco da esquina e quase todos os da cidade fecharam as portas, dessa vez para sempre. Ouvimos dizer que o governo ia ajudar, formavam-se filas aqui e ali por causa disso. Havia quem o fizesse até para ganhar comida. Pessoas falavam mal do Presidente Hoover. Ou-tras, falavam muito mal. Meu irmão foi dispensado da cor-poração. A família da noiva chamou-o para voltar com eles para a Europa. Quando a moça mandou-lhe uma carta dizendo que estava espe-rando um bebê, ele sofreu muito, queria morrer. Os velhos entenderam a situação e mandaram que fosse com ela. Eles entenderam; eu não.

Tio Francis era dono de uma oficina mecânica. Chamou o cunhado, meu pai, para ajudá-lo, mas teríamos de nos mudar. A única coisa que ainda possuíamos era a casa. Veio buscar a gente e os móveis com um cami-

nhão. Papai vendeu-a para um judeu. Colocamos tudo na carroceria. O que levamos resumiu-se às roupas e ao que tinha algum valor senti-mental. O resto, louça, cris-tais, talheres, os móveis de madeira, até as camas, tudo entrou no negócio. Mas havia uma coisa que não foi, nem poderia ter sido vendida.

Subíamos na cabina do ca-minhão – eu teria de ir sen-tada no colo do pai; estava muito frio para qualquer um viajar na carroceria. Lem-brei em voz alta “As fotos!”. As fotografias eram a única recordação que eu guardava de Stanlislaw. Do meu Stanis-law. Não aquele, que escolheu uma mulher cuja voz nin-guém da família ouvira. Nem esperei autorização. Voltei correndo. O novo dono con-versava com um vizinho, e a porta estava destrancada.

Por hábito, bati os pés no capacho e entrei. O vento estava forte, e a casa, quieta. Tive a sensação de já ter vivi-do exatamente aquele evento. Só muito depois soube que isso tem até nome: déjà vu. Diante do corredor, hesitei. Não era só a lembrança das coisas na mesma ordem, mas tive outra vez a impressão de estar sendo vigiada. As jane-las estavam fechadas. Escu-ro. O álbum de fotos ficava em cima do meu roupeiro. Todos os corredores são me-donhos a pouca luz, e aquele não era diferente. Teria de atravessá-lo para chegar ao quarto. Corri, abri a cortina, e rapidamente, mesmo na penumbra, espichei a des-tra, peguei a encadernação

de capa de couro marrom, enfiei-a debaixo do braço e tomei a direção da saída. Havia alguém no quarto.

Não consegui gritar. Minhas canelas congelaram, os calcanhares pregaram no soalho e meus olhos arderam até doer por não consegui-rem piscar. Alguém estava ali, diante de mim. O mesmo mal-estar da noite do ladrão. Estáticas, eu e a outra pessoa. Pouco pude ver. Era mu-lher. Velha, miúda, fiapos de cabelos pendendo sobre os ombros e o peito. Andrajos. Cheiro de mofo e de coisas guardadas há muito tempo preencheu o quarto.

Consegui coragem, não sei de onde, dessas que só as crianças têm.

“Quem é a senhora?”

“Não se lembra de mim?”

“Juro que não.”

“Há tempos, cheguei à sua porta.”

“Não a vi, sinto muito.”

“Não. Não viu. Mas con-vidou-me para entrar. Disse bem assim ‘Queira entrar, por favor. Sinta-se em sua própria casa’. Como pode-ria eu recusar um convite desses?”

Calei. Estava pasma, de frio e de medo. Eu dei-lhe a passagem. Uma pessoa morta? Um fantasma? Um demônio? Não conseguia dis-tinguir se era ou não alguém conhecido. Só o que via eram seus cabelos atirados, brancos e compridos como os galhos

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de um salgueiro ressecado. Ela fez um lento movimento com a mão, espalmando-a para mim.

“Ainda não nos apresenta-mos” disse. “Como se chama, mocinha?”

“Leda”

“Bonito nome. É latim. Significa ‘alegre’. Do latim também é o meu”.

Curvou-se, imitando a mesura que eu havia feito à porta

“Meu nome é Miséria.”

E sumiu. Decididamente, não se foi. Simplesmente sumiu. Nunca mais a vi, mas percebia sua presença, cada vez mais intensa; seu cheiro de mofo e seus cabelos secos tocavam-me todos os dias. Viajou conosco. Ficou conos-co. Viveu com minha família por anos. Ao mesmo tempo, passou a viver em outras casas. Em todas as casas. Não bateu mais nas portas, nem esperou que uma criança gentil a convidasse. Parece-me que faltou aos homens coragem de pedir-lhe “Senho-ra, tenha a bondade de se retirar”.

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2828 SAMIZDAT julho de 2008

Elijah Abramanoviecz, cumulado de anos, decidiu contar sua história, desde criança em Varsóvia, pelo gueto e humilhação do Rei-ch, até a fuga para a Améri-ca e os filhos que lá teve.

Sentou-se para escrever seu livro, começando pelo começo e traçando toda a genealogia que conhecia de sua família. Como rabi Solomon Abramanón, seu mais antigo antepassado, foi perseguido em Madri no século XVI pelo Santo Ofício e como, muitos séculos mais tarde, seu pai, Isaac Abra-manoviecz cuidava de sua barbearia e, um dia, conhece-ra Rebeca Steinberg, filha de um industrial alemão, com a qual se casaria posteriormen-te e, de cujo amor, ele, Elijah, nasceria.

Mas aquele longo capítu-lo, não o satisfez. Mais uma catalogação de memórias pretéritas do que um livro autobiográfico, o ritmo mo-roso e a abundância de deta-lhes enfadariam os supostos leitores.

Contar pelo fim pareceu

ser a melhor opção: relatar como ele, Elijah, cabalista de Nova York, tomou a reso-lução de abrir o livro de sua vida para os outros. De todo o esforço davídico por conquistar o universo das palavras e expor, com toda a sinceridade de seu ser, as lições que aprendera da vida.

No entanto, este princípio, que prenunciava um longo flashback no qual sua histó-ria se desenrolaria, também não o agradou.

Rascunhou um novo capítulo, desde o momento em que ele leu pela primei-ra vez o Sepher Yetzerah e, ainda jovem, recém-saído de seu bar Mitzva, iniciou seus estudos dos sephirots e dos nomes de Deus.

Um princípio tão hermé-tico e abstruso, detalhando anos de aprendizado caba-lístico, mais se assemelhava a um dos milhares de livros sobre ocultismo do que o que Elijah realmente preten-dia.

Tentou novos começos, e a cada tentativa novos obstácu-los e objeções surgiam. Nem

Capítulos 1Henry Alfred [email protected]

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o relato de seu matrimô-nio, nem os anos na escola torânica, nem os medos em Treblinka, nem a cegueira parcial, nem a infância tran-qüila, nem o deslumbramen-to na Big Apple da década de cinqüenta. A cada novo começo, um novo fracasso.

Então, ao reler as sete-centas páginas que havia composto nos últimos sete meses, Elijah Abramanoviecz constatou que toda sua vida esta ali. Não somente como ele a relembrava, linearmen-te, como o grande projeto de Yahweh para os homens, mas ciclicamente, com falsos começos e finais mentirosos, tal qual os projetos irrealiza-dos dos homens, que quando fazem uma escolha, deixam para trás um leque de outras perdidas, como o projetar-se existencial de Heidegger, e como os círculos concên-tricos de rememoração, os mesmos que motivaram Proust e Henri Bergson; aque-les círculos que se afastam de nós e, quando retornam, vêem como se não mais nos-sos fossem, estranhos a nós, apesar de nos pertencer.

No entanto, o que mais surpreendeu Elijah é que, em meio a todos aqueles capítulos um, havia um que ele sequer se recordava de haver redigido, aquele no qual ele narrava sua própria morte e aqueles que ao seu funeral atenderiam e como ele voltaria a fazer parte do mistério cósmico que um dia o concebeu, deixando de ser o cabalista de Nova York e tornando-se aquele que pode escrever o próprio futuro.

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3030 SAMIZDAT julho de 2008

Contos

José Espírito [email protected]

o autor doS PaSSoS

IHonra! Era a primeira

vez que participava no concurso literário do grupo de editoras “Teya” e o seu romance “Os olhos cansados do escurecer” arrebatara logo o primei-ro prémio.

- A capacidade para criar uma ambientação rica e poética e mudar de repente para uma narra-tiva em ritmo rápido e

inquietante, foi isso o que mais nos cativou – disse Carlos Reis, o célebre romancista ribatejano, presidente do júri do concurso. Tomou entre mãos o livro de capa es-cura e abrindo na página previamente marcada, leu alto, para todos ouvirem

“Olhos fundos” fechou a sete chaves a porta do pe-queno apartamento. Miguel não aparecera e, de repente,

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ela sentia-se cansada, inse-gura, “só de vida”. Na sala moderna e pouco conven-cional, a janela era grande, de sacada, quase todo o es-paço de uma parede. Estava entreaberta. Se espreitás-semos por ela, poderíamos observar lá bem em baixo e ao longe as mil luzinhas e mais mil cores que assina-lavam o bulício do trânsito sonâmbulo, um enveredar de forma indiferente por repetidos e misteriosos caminhos.

“Olhos fundos” despiu a roupa devagar e brincou por breves momentos com o reflexo do seu próprio corpo moreno belo e es-guio. Vestiu o robe branco e puxou do cigarro. Ficou ali absorta, quase em tempo suspenso, seguindo pensa-mentos erráticos que eram como adornos de fumaça do “Português Suave”. Seria o último cigarro da sua pobre vida.

Pairou por ali um silên-cio breve ao fim do qual a plateia aplaudiu de pron-to, rendida. Seguiram-se o beberete e as vendas dos exemplares autografados. Ao chegar o fim da tarde, disse para Mariana e aos outros “Estou cansado. Acho que vou para casa tomar um bom banho, comer qualquer coisa e dormir. Se não se importarem, adia-mos a comemoração para amanhã”.

Pegou na sacola de couro onde guardava os dois úni-cos exemplares não vendi-dos. Desfez o nó da gravata e guardou-a no bolso do

casaco.

“Queres que te leve até lá?” Inquiriu Mariana, deixando por momentos o molhe de pessoas.

“Se não te faz diferen-ça…” Respondeu.

Três quartos hora de-pois e estavam à porta de casa dele. Despediu-se com um beijo rápido e pouco intenso – um “selinho” - e subiu as escadas a cor-rer. Ao chegar ao átrio do terceiro andar, deu com a porta escancarada e parou, colocando-se de sobreaviso. Chegado ao “hall”, não viu vivalma e a arrumação im-pecável não permitia inferir qualquer presença estranha.

Já estava a meio do corredor quando os sentiu, som quase imperceptível de passos rápidos atrás de si. Virou-se para encarar o intruso e algo lhe bateu com força mesmo no cimo da nuca. Ao mergulhar na escuridão, teve ainda tempo para ouvir a gargalhada. Um som familiar, que co-nhecia perfeitamente, ape-sar de estar a ouvi-lo pela primeira vez.

II

Passam uns minutos da meia-noite. No bairro pe-riférico da capital, o grupo apeia-se do comboio. Após as breves despedidas, a mulher inicia o trajecto que a levará até à porta de casa. Não se vê vivalma na rua estreita e escura. O cande-eiro de latão antigo e sujo está ainda longe, perto do

cruzamento. É a única fonte de luz.

Após alguns metros per-corridos, espreita por cima do ombro verificando se algum indesejado a seguiu até aquelas paragens. Nada. Apenas outro comboio que chega. Ouve-se o apito a marcar a partida e ela ain-da vê de relance fugirem os rectângulos luminosos que são as janelas das várias carruagens.

Dispõe-se a continuar quando ouve o som dos passos. Estão mesmo atrás de si. Falta-lhe o tempo para escapar. Enquanto a mão forte envolve a face tapando a boca, a outra mão faz deslizar a lâmina aguçada. O golpe é dado de baixo para cima com força e precisão cirúrgica. O metal frio entra pelo baixo-ventre, abrindo rapi-damente caminho e rasgan-do, deixando atrás de si as vísceras desfeitas, soltas e desamparadas. A torrente de sangue jorra livremente naquela mesma fracção de segundo em que ela entra em choque. A mulher nun-ca saberá ao certo o que aconteceu.

O homem é alto e tem o cabelo rapado e olhos azuis, frios. No seu corpo musculoso, o peito exibe a tatuagem de um escor-pião. Em silêncio, agacha-se sobre o cadáver e pesquisa a carteira procurando algo. Decerto não tarda a encon-trar o que procura, pois a face sorri quando abandona

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3232 SAMIZDAT julho de 2008

o local apressadamente.

III

Acorda a meio da noite e a cabeça dói, pesa-lhe. O candeeiro aceso a seu lado é a única fonte de luz. As imagens que surgem uma por uma, desfocadas e des-coloridas mostram-lhe que está no quarto das visitas, amarrado à cadeira. Atrás de si, a voz forte e grave, dona dos passos diz

“Como estás, escritor? A cabecinha dói muito?”

Os passos fazem-se ouvir novamente. Está agora bem à sua frente, pode ver-lhe claramente a tatuagem. Sabe a resposta mas, para ganhar tempo, pergunta

“Porquê? Porquê tudo isto? Se ao menos soubes-se…”

“Se soubesses o quê?” responde-lhe a voz

“Se soubesse… nunca teria criado essa persona-gem, nunca, NUNCA TE TERIA ESCRITO!”

Obtém como resposta uma gargalhada forte, bem sonora. Então, o outro pega no livro e encara-o. Após uns segundos, responde

“Julgas que me criaste? Na verdade, sei tudo sobre ti, sobre o que eras dois meses atrás, quando ter-minei de escrever. A única coisa que não conhecia era esta morada, a toca onde te escondeste. Mas esse foi um problema que resolvi facil-mente…”

A boca do escritor que

julgava saber tudo abre-se na expressão de espanto

“Tu, tu… tu escreves?”

Então, o captor, em vez de responder, abriu o livro e começou a leitura

Era fim de tarde, uma tarde chuvosa e triste quando Nuno Marques da Silva, escritor amador, leva o copo de uís-que pela segunda vez à boca e pensa se não será melhor desistir daquele projecto. Entre o vidro e ele e o mar, apenas a rua deserta e as dunas. Ao lon-ge, o cinzento das ondas que vão e vêm sempre de forma diferente, uma inconstância digna de Heraclito de Éfeso à qual apenas a perspectiva peculiar do homem conferiria padrão.

De repente, a ideia surge e senta-se e começa a escrever. Todo o enredo iria ser cons-truído a partir do personagem principal, um ser astuto e for-te, completamente desprovido de escrúpulos.

“Já chega” Disse o outro, as mãos aproximando-se da cadeira

O escritor fitou-o com terror

“Que, que me vais fazer?”

O intruso colocou a cadeira junto da janela e retorquiu em voz alta, com um sorriso cruel

“Vou ler-te o fim. Não que-res saber como acaba o meu romance?”

A cadeira estava agora junto à portada aberta, a escassos trinta centímetros do vazio. Novamente os passos atrás de si. A voz voltou para terminar a leitura

A portada estava aberta e ele sentia o vento frio roçar as cordas e entrar roupa adentro.

Em pânico e paralisado pelo medo, o escuro da noite não lhe permitia ver quase nada mas ele sabia onde estava, ima-ginava já o impulso e a queda.

Novamente passos. Desta vez, atrás de atrás de si.

“Alto. Nem um movimento!” rugiu a voz, imperiosa.

Ouviu então o estampido do projéctil. Num único se-gundo, os passos que morrem, o corpo que sai de atrás de si para o vazio…

As mãos puxaram nova-mente a cadeira para dentro. E ele viu então surgir a cara do Inspector Santos acompanhado pelos dois polícias. Que sorte! Que sorte tê-los criado tam-bém.

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A leoa perseguia o antí-lope pela savana e as garras afiadas estavam quase a apa-nha-lo quando, sem qualquer aviso, aconteceu. O meteoro que visto dali parecia uma estrela a cair, precipitou-se velozmente e foi embater no solo.

Onde foi ao certo o im-pacto? Não sei. Apenas sei que foi algures muito, muito longe. Depois, depois acon-teceu algo extraordinário: o céu ficou negro, de um negro bem escuro e fecha-do. A coisa durou dois dias, dois intermináveis dias. Após decorrido esse tempo, o País estava diferente.

Os leões e todos os outros grandes felinos tornaram-se vegetarianos e passaram a frequentar aulas de Yoga. Crocodilos eram cães. Aves eram répteis e as de rapina passaram a esconder-se ao

notar a passagem do mais pequeno lagarto ou musa-ranho. As árvores e outros vegetais passaram a mover-se livremente, mas apenas à sexta-feira. Ou deveria falar nas segundas? É que a sema-na passou a contar-se assim: Sexta, Quinta, Quarta, Terça, Segunda…

E as pessoas? Bem… os políticos passaram a traba-lhar de forma incansável para o bem comum e a recusar luxos e ostentação. Futebol e novelas passaram a ser coisas aborrecidas, pouco interessantes, chatas. O povo tornou-se culto, educado, gentil. As editoras e todos os outros intermediários passa-ram a pagar um valor justo aos criadores. Ah… e a te-levisão local teve de cancelar o programa “Fiel ou Infiel”. Por falta de audiência.

o PaÍSJosé Espírito [email protected]

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3434 SAMIZDAT julho de 2008

Contos

Pedro [email protected]

Caiu a SomBra

A garota sorriu ao guar-dar o celular em seu bolso.

Não havia achado algo particularmente engraçado. Não, seu sorriso era aque-le de pessoas que não tem qualquer motivo para sorrir. Era um sorriso de tristeza, e de desprezo.

Principalmente, era um sorriso de ódio.

*

O detetive encontrou o sargento próximo a porta do apartamento.

- E aí, o que nós temos?

- É melhor o senhor ver por si mesmo.

O detetive entrou. Peritos forenses tiravam fotos, ensa-cavam copos usados, espa-lhavam pós para a coleta de impressões digitais.

No quarto, o detetive viu o corpo. Ainda estava na po-sição ereta, sentado à frente do computador. O cutelo ainda estava preso na cabeça, praticamente aberta em dois pedaços. Os olhos ainda esta-vam abertos, e o detetive teve

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um calafrio ao olhar para eles. O detetive não soube porque sentira aquilo. Tinha sido perturbado, e em quinze anos de serviço, nunca tivera sido perturbado dessa ma-neira.

Voltou até a porta, e rece-beu a identidade da vítima.

- Já temos algum suspeito? -, perguntou, e de repente viu de novo os olhos que acaba-ra de ver, só que dessa vez diretamente à sua frente, na direção da escada.

O sargento tinha dito alguma coisa.

- O que? -, perguntou o detetive subitamente, inter-rompendo algo que o sargen-to dizia.

- Eu disse que sim, que na verdade já temos uma boa idéia de quem fez isso.

Ainda um pouco perplexo, o detetive perguntou quem tinha sido.

E o sargento lhe mostrou um saco plástico.

Dentro, havia um celular.

*

Mário pagou o estacio-namento, esqueceu de pegar o troco e andou de cabeça baixa até o carro.

Pensava em seu encontro com Penélope, em como ela parecia.

Ela estava muito feliz.

Mário estranhou isso, já que esperava encontra-la deprimida. Não queria isso, mas tinha aceitado isso como fato. Porém, o que encontrou, foi uma Penélope sorriden-te e alegre. Ela lhe abraçou como se ele não fosse um mensageiro de notícias ruins.

Ele perguntou como ela estava. Ela estava bem.

Ele, cautelosamente, per-guntou se ela tinha lido a mensagem que ele lhe envia-ra.

Ela disse que sim, que não tinha problema, que a cul-pa dela ter sido trocada por outra não era dele. Ele era apenas o amigo preocupado.

Foram ao cinema, come-ram, não conversaram muito.

E, enquanto se dirigia à seu carro, Mário sentiu-se perturbado. Sabia que Pe-nélope não era do tipo de garota que aceitava notícias ruins tão calmamente. Algo estava errado.

Durante a volta para casa, Mário decidiu ligar para Penélope, perguntar como ela realmente estava. Decidiu arrancar a verdade dela, não importasse o custo.

Tateou dentro de sua mo-chila. Parou no sinal verme-lho e continuou procurando. O sinal ficou verde, o carro continuou parado, Mário procurando.

E nada.

Seu celular havia sumido.

*

- Aquela piranha! -, gritou Carlos, pela terceira vez.

Havia recebido a infor-mação de que tinham visto sua garota com outro, e não conseguia tirar isso da cabeça. Se fosse um pouqui-nho mais inteligente, Carlos talvez enxergasse a ironia da situação. Porém, ele não era, e portanto não enxergou.

Irado, Carlos leu nova-mente a mensagem em seu celular. Não se agüentando

de raiva, decidiu fazer algu-ma coisa. Nunca se sentira tão mal, e alguém pagaria por isso.

Apertando os botões com mais força do que o necessá-rio, enviou uma mensagem, e saiu.

*

A sombra caiu sobre aque-la casa.

Sentada no chão, a sombra viu suas mãos vermelhas. Vermelho era a única coisa que conseguia enxergar. O resto era preto e branco.

Na cadeira, em frente ao computador, estava o resto de ser humano. O sangue ainda brotava do ferimento, como uma fonte macabra.

A sombra se levantou, e saiu do apartamento. E, ao estar em segurança, voltou de onde veio, deixando para trás um corpo cansado e sonolento.

*

- Abra! É a polícia!

Esfregando os olhos, ele acordou, com dor de cabeça.

Dirigiu-se até a porta, a tempo de vê-la ser derruba-da, e um grupo de homens de azul invadir sua casa.

Um dos homens (o único não usando azul) jogou-o de cara na parede, e o algemou.

- Carlos Rodrigues, você está preso pela morte de Joana Bagnoux.

Se estava de ressaca antes, após ouvir isso, não estava mais.

- O que? Você tá maluco, cara?

Sua resposta foi ter sido esmagado com mais força

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3636 SAMIZDAT julho de 2008

contra a parede pelo detetive.

- Eu vi o que tu fez com ela, seu doente -, murmurou o detetive – e você foi burro o suficiente pra deixar sua mensagem no celular dela. Você sabe, aquela que você dizia que ela pagaria por ter te traído.

- Mas eu não fiz nada! Eu saí ontem, para beber...

- E a matou. Continue ga-roto, tu só tá se dando mais corda para se enforcar.

Chorando e batendo os pés, Carlos foi levado pela polícia, de cuecas e sem ca-misa, até a viatura.

*

Penélope viu Carlos ser le-vado, de sua janela do outro lado da rua.

Estava satisfeita. Tudo dera certo. A sombra veio e se foi, porém a memória do que fizera com a vadia loira continuou em sua mente.

Fez uma anotação mental, de devolver o celular de Má-rio, aquele que ela usara para enganar Carlos.

Olhando a viatura se afas-tar, Penélope lembrou-se da sensação de enfiar o cutelo na cabeça de Joana, lembrou dela emitindo um último ruído abafado antes da vida jorrar para fora dela. Havia gostado disso, gostado muito.

Talvez fizesse de novo.

Provavelmente faria de novo.

Penélope sorriu com esse pensamento.

Dessa vez, um sorriso verdadeiro.

Estava feliz.

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Contos

o tEmPLo doS SorriSoS

Tristeza tremenda invadiu minha mente esta semana. Junto com minha esposa, percorremos o bairro num passeio diferente e saudo-sista. Visitar casas e bairros onde já havíamos morado, transportou nossas lembran-ças, já a tanto guardadas, para as retinas.

Lugares de benevolente memória e românticas obras. Um desses ambientes, pre-ferido algures por mim, era o Bar do Velho Inácio. Uma antiga construção de esquina onde eu, junto com velhos camaradas, tomava minha cota etílica, acompanhado de uma boa conversa e risos da piada mal contada; todos conheciam, mas era sempre descrita de um modo dife-

rente.

O velho Inácio com seu sorriso sempre amigo, por debaixo daquele bigodão lu-sitano já grisalho, era farto.

Saudades em meu coração, não compartilhadas por meu fígado, visto, hoje, ser um abstêmio.

Olhei com surpresa que o antigo local de encontro dos já distantes amigos e colegas de juventude tornara-se um templo para arrecadação, não de sorrisos, mas de moedas para o céu. O velho Inácio havia morrido e o templo das risadas, do pão com boli-nho, e do pastel, nem sempre frescos, havia sucumbido em sua finalidade e fora trans-formado, de maneira herege, em mais uma igrejinha de seita desconhecida.

Poderia o simpático bar vir a ser um templo para discussões filosóficas ou poéticas, como o velho Inácio gostava de realizar todos os sábados à noite, mas não, fora também sucumbido perante os apóstolos do nada e sacrificado em nome da alienação. Estou de luto esta semana. Inácio não merecia isso. Sorte de Deus: o velho era ateu, senão, estaria agüen-tando as argumentações pertinentes do sábio amigo.

Alian [email protected]

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3838 SAMIZDAT julho de 2008

Rita puxou as cobertas e se encolheu na caminha apertada.

A escuridão e a noite chu-vosa contribuíam para que seu pavor aumentasse ainda mais.

O som ritmado dos passos no corredor de tábuas era quebrado apenas pelo baque seco do salto contra a ma-deira.

Mentalmente contava os tons altos e baixos, dez, nove, oito....e então silêncio.

A porta do quarto nun-ca era trancada. O monstro espreitava.

Ela esperava de olhos bem fechados, coração pulsando forte, tremendo de frio e medo.

Desde menina , Rita era assombrada por terríveis monstros. Foi embalada por uma canção de ninar onde um boi da cara preta engo-lia o pranto das criancinhas com medo de careta. Mais tarde, corria para casa com as ameaças do velho do saco e do bicho papão.

Sempre havia um lobo mau pronto a atacar se fosse desobediente.

Os pais eram severos e não admitiam que a menina corresse pela casa ou sujasse as roupas na terra.

As outras crianças brin-cavam de pique e andavam de bicicleta enquanto Rita, sentada no degrau da frente da bela casa, exibia impecá-vel laços na bem comportada “maria –chiquinha”, o vestido muito bem engomado.

Rita olhava os sapatos boneca de verniz brilhante sem um só arranhão e com

Contos

Giselle [email protected]

o BiCHo-PaPÃo

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a ponta das unhas puxava os fios das meias ¾ , desfiar era sua única distração.

Aos poucos compreendeu que seu limitado mundo era um refúgio de dores e doen-ças.

A casa cheirava a desin-fetante e éter. Pomadas e ungüentos.

A mãe lamentava a ar-trose e o pai trabalhava dia e noite na padaria, sofria de pressão alta e não podia ser contrariado nunca. Os familiares haviam se afasta-do no decorrer do tempo e ninguém os visitava.

A televisão ficava ligada em programas femininos. A mãe adorava copiar receitas e acompanhar as novelas.

Rita não podia assistir os folhetins nem ler qualquer obra.

Tudo passava pela cen-sura paterna, nada escapava dos olhares atentos da mãe zelosa que sempre a acom-panhava a escola, cinema ou qualquer outro local.

A mãe andava pelas ruas arrastando a menina pelo braço atenta aos mal enca-rados e suspeitos:-Está vendo aquele homem ali parado? Vamos atravessar, é assaltan-te ou tarado. Vê como nos olha? Cuidado Rita, são os piores tipos.

Rita não via nada de mais na pessoa em questão.

Muito pelo contrário, achava que o pobre homem devia estar horrorizado com a mulher com cara de lou-ca correndo pelas calçadas como se perseguida por horda infernal

Treze anos de prisão.

Começou a mostrar im-paciência e descaso, a exigir maiores explicações para tantas proibições.

A mãe chorava e fazia queixa ao pai, temia que a filha perdesse o rumo, a me-nina estava rebelde demais.

Naquela noite Rita sentiu os olhares atentos dos pais durante todo o jantar. Des-contentes e ameaçadores.

O pai era um senhor rude:- Sabe Rita, sua irmã começou a ficar como você e teve um final trágico e vergonhoso.

-Por favor Adalberto, não tocamos neste assunto há anos.

-Irmã? Eu tenho uma irmã? Onde ela está?

-Morta.

Rita nunca desconfiou da existência da irmã. Era filha única temporã:- Porque nun-ca me contaram nada? Nem uma foto? Nada....

-Ela desonrou esta família, fugiu grávida e desapare-ceu com um bandido qual-quer. Soubemos depois que morreu de parto. Tinha só quinze anos.

-Depois fomos abenço-ados com sua vinda e pro-metemos nunca mais tocar neste assunto.

-Não acredito que vocês esconderam tudo isto, eu sou uma menina normal, quero ter uma vida como a das outras pessoas. Vocês me tra-tam como uma prisioneira.

-Basta. Nesta casa só quem fala mais alto sou eu. Já para seu quarto. E não sairá do castigo até aprender a ser mais educada.

A mãe chorava e precisou tomar fortes calmantes.

O pai ligou o rádio e pegou a garrafa de conha-que. Logo o fedor do charuto barato invadia a casa.

No quartinho Rita cho-rava a irmã desconhecida e a vida miserável. Cansada acabou dormindo.

Meia- noite. O relógio antigo bateu as horas e Rita ouviu o som dos passos.

A maçaneta girou e a figura escura entrou sem receio, sabia que ela não gritaria nem teria qualquer reação.

O monstro puxou as co-bertas e levantou a ponta da camisola da menina, cheirava a conhaque e charuto, suor e maldade.

Antes de começar mais uma sessão torturante sus-surrou:- Se não quer acabar como sua irmã obedeça, seja uma boa menina, não quero ver sua mãe chorando por suas desfeitas nunca mais ouviu bem?

Rita não ouviu nada, esta-va longe, perdida na floresta Negra, fugindo dos lobos e monstros. Suplicava por socorro ouvindo as risadas da Bruxa Mãe que fingia não enxergar nada. Desta vez havia uma outra menina na estrada esperando. Seguiram juntas o caminho da escu-ridão onde os gritos de dor sopram como o vento.

Um lamento para os inocentes que sofrem esque-cidos.

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4040 SAMIZDAT julho de 2008

tradução

Lu Xuntradução: Henry Alfred Bugalho

diÁrio dum LouCo

40 SAMIZDAT julho de 2008

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Dois irmãos, cujos nomes não preciso mencionar aqui, eram ambos bons amigos meus durante o ginásio; mas, após uma separação de vários anos, gradualmente acabamos perdendo contato.

Algum tempo atrás, che-gou aos meus ouvidos que um deles havia adoecido gravemente e, como eu esta-va retornando a meu velho lar, interrompi minha viagem para pagar-lhes uma visita, no entanto, encontrei apenas um deles, que me disse que o inválido era seu irmão mais novo.

— Agradeço-o por ter vin-do de tão longe para nos ver, ele disse, mas meu irmão se recuperou, há algum tem-po, e se mudou para outro lugar, para assumir um cargo oficial.

Então, rindo, ele me apre-sentou dois volumes do diário de seu irmão, dizen-do que neles se podia ver a natureza da doença que o havia acometido e que não havia perigo em mostrá-los a um velho amigo. Eu apanhei os diários, li-os do começo ao fim e descobri que ele ha-via sofrido de algum tipo de complexo de perseguição. A escrita era em grande parte confusa e incoerente, e ele havia feito algumas insanas asserções; além disto, ele havia se omitido de fornecer datas, assim apenas pela cor da tinta e pelas diferenças na caligrafia que alguém poderia distinguir quando os trechos não haviam sido es-critos duma só vez. Contudo, certas seções não eram ao todo desconexas e eu copiei algumas partes para servi-rem de objeto para pesquisa

médica. Não alterei uma única ilogicidade sequer do diário e modifiquei apenas os nomes, mesmo que as pessoas referidas sejam todas interioranas, desconhecidas do mundo e sem importân-cia. E sobre o título, este foi escolhido pelo próprio autor do diário, após sua recupera-ção, e eu não o alterei.

i

Hoje à noite, a lua está muito brilhante.

Eu não olhei pra ela por mais de trinta anos, então hoje, quando a vi, senti uma incomum exaltação. Come-cei a perceber que, durante os últimos trinta anos, eu estive nas trevas; mas agora eu devo ser extremamente cauteloso. Senão, por que aquele cachorro na casa do Chao teria me encarado duas vezes?

Tenho razão para meu medo.

ii

Hoje, não há lua, eu sei que isto prenuncia desgra-ça. Esta manhã, quando saí, cuidadoso, o Sr. Chao tinha um estranho olhar, como se estivesse com medo de mim, como se quisesse me matar. Havia com ele outras sete ou oito pessoas, que falavam de mim sussurrando. E elas estavam com medo de serem vistas por mim. Todas as pessoas pelas quais passei agiam deste modo. A mais corajosa delas escancarou um sorriso pra mim, que me fez ter calafrios dos pés

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Lu Xun era o pseudônimo de Zhou Shren (25 de setembro de 1881 - 19 de outubro de 1936), um dos maiores autores chineses do século XX. Considerado o fundador da moderna literatura baihuam, Lu Xun foi contista, editor, tradutor, crítico e ensaísta. Ele foi um dos fundadores da Liga Chinesa de Escritores de Esquerda em Xangai.

A obra de Lu Xun exerceu grande influência após o Movimento Quatro de Maio, a ponto de ser exaltado pelo regime comunista após 1949. O próprio Mao Tse-Tung foi um admi-rador das obras de Lu Xun durante toda a vida. Apesar de simpatizar com o movimento comunista chinês, Lu Xun jamais se afiliou ao Partido, mesmo sendo um ardoroso socialista, como proferido em seus textos.

fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Lu_Xun

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4242 SAMIZDAT julho de 2008

à cabeça, por saber que os preparativos delas estavam completos.

No entanto, eu não estava amedrontado, mas prossegui em meu caminho. Adiante, um grupo de crianças tam-bém falava de mim, e o olhar delas eram exatamente como aquele do Sr. Chao, e seus rostos eram duma palidez horrível. Tentei conceber que rancor tais crianças pode-riam ter contra mim para fazê-las se comportarem des-te jeito. Não consegui evitar de gritar:

— Digam-me! Mas, então, elas fugiram.

Pergunto-me que rancor o Sr. Chao pode ter contra mim, que rancor as pessoas na estrada podem ter contra mim. Não consigo pensar em nada, excetuando que, vinte anos atrás, eu espezinhei o livro de balancetes de vários anos do Sr. Ku Chiu1, e ele ficou muito ofendido. Apesar de o Sr. Chao não tê-lo co-nhecido, ele deve ter ouvido algum boato sobre isto e decidiu vingá-lo, então ele e as pessoas na estrada estão conspirando contra mim. Mas as crianças? Naquela época, elas não haviam nem nascido ainda, por que então elas estariam me olhando tão estranhamente hoje, como se tivessem medo de mim, como se quisessem me ma-tar? Isto realmente me assus-ta, é tão incompreensível e perturbador.

Eu sei. Elas devem ter aprendido com os pais!

iii

Não consigo dormir à noite. Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender.

Aquelas pessoas, dentre elas algumas que haviam sido humilhadas pelo juiz, es-bofeteadas pela nobreza local, suas mulheres levadas por oficiais de justiça, ou seus pais forçados ao suicídio por credores, nunca pareceram tão assustadas e hostis como ontem.

O mais extraordinário foi aquela mulher, ontem, na rua, que dava palmadas no filho e dizia:

— Seu diabinho! Eu gosta-ria de comer alguns pedaços seus para aplacar minha raiva!

No entanto, ela olhava para mim todo o tempo. Eu me sobressaltei, incapaz de me controlar; todas aquelas pessoas, rostos esverdeados, dentes longos, começaram a rir escarniçadamente. O velho Chen apressou-se e me arrastou para casa.

Arrastou-me para casa. O pessoal lá de casa fingiu não me conhecer; tinham o mesmo olhar que os outros. Quando entrei no escritório, eles trancaram a porta por fora como se engaiolassem um frango ou um pato. Este incidente me deixou ainda mais perplexo.

Alguns dias antes, um dos nossos inquilinos da Vila Lobato veio relatar o fracasso nas colheitas, e disse a meu irmão mais velho que um notório personagem na vila havia sido espancado até a morte; então algumas pes-soas arrancaram o coração

1. Ku Chiu significa “Tempos Antigos”. Lu Hsun tem em mente a longa história de opressão feudal na China.

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e o fígado dele, fritaram-nos em óleo e os comeram, com o propósito de aumentar a coragem deles. Quando eu os interrompi, tanto o inquilino quanto meu irmão me enca-raram. Apenas hoje percebi que eles tinham o mesmo olhar que aquelas pessoas lá fora.

Só de pensar nisto tenho calafrios do topo da cabeça até as solas dos pés.

Eles comem seres huma-nos, então podem me comer também.

Percebo que o “comer alguns pedaços seus” dito pela mulher, a risadas da-quelas pessoas de rostos esverdeados e dentes longos e a história do inquilino no outro dia eram, obviamente, sinais secretos. Vejo todo o veneno na fala deles, em suas risadas cortantes. Seus dentes são brancos e reluzentes: eles são devoradores de homens.

Apesar de eu não ser uma má pessoa, aparentemente minha situação era delicada desde o dia em que piso-teei os balancetes do Sr. Ku. Eles parecem ter segredos que nem posso imaginar e, se ficarem com raiva, eles chamarão qualquer um de mau-caráter. Lembro-me quando meu irmão mais velho me ensinou a escrever redações — não importava quão bom um homem fosse, se eu apresentasse argumen-tos contrários, ele marcaria o trecho para mostrar sua aprovação, e se eu defendesse os malfeitores, ele diria:

— Que bom, isto demons-tra originalidade.

Como eu posso saber

quais são seus pensamentos secretos — especialmente quando eles estão prontos para comer pessoas?

Tudo exige cuidadosa reflexão para se entender. Em épocas antigas, se não me en-gano, as pessoas comiam se-res humanos com freqüência, mas não estou muito certo disto. Tentei pesquisar sobre o assunto, mas meu livro de História não tem cronologia, e rabiscadas em cada uma das páginas estão as palavras: “Virtude e Moral”. E como eu não conseguia dormir, li-o atentamente durante metade da noite, até que comecei a ver palavras nas entrelinhas, todo o livro preenchido com duas palavras — “Coma pessoas”.

Tais palavras escritas no livro, tais palavras ditas por nosso inquilino, observavam-me estranhamente com um sorriso enigmático.

Eu também sou um ho-mem, e eles querem me comer!

iV

De manhã, sentei-me em silêncio por algum tempo. O velho Chen trouxe o almoço: uma tigela de vegetais e uma de peixe no vapor. Os olhos do peixe estavam brancos e duros, a boca dele estava aberta exatamente como das pessoas que querem comer seres humanos. Após algu-mas poucas mordidas, eu não conseguia distinguir se os escorregadios bocados eram de peixe ou de carne huma-na, então vomitei tudo.

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4444 SAMIZDAT julho de 2008

Eu disse:

— Velho Chen, diga a meu irmão que estou me sentindo um pouco sufocado e que gostaria de dar uma volta no jardim.

O velho Chen não disse nada, mas saiu, imediatamen-te retornou e abriu o portão.

Não me mexi, mas espe-rei para ver como eles me tratariam, certo de que eles não me deixariam ir. Eu tinha certeza! Meu irmão mais velho entrou lentamen-te, conduzindo um ancião. Havia um brilho assassino nos olhos deste e, temendo que eu percebesse isto, ele abaixou a cabeça, olhando-me de esguelha por detrás de seus óculos.

— Você parece estar muito bem, hoje, meu irmão disse.

— Sim, respondi.

— Convidei o Sr. Ho para vir aqui hoje, meu irmão disse, para examiná-lo.

— Tudo bem, eu disse. Na verdade, eu sabia muito bem que este ancião era um exe-cutor disfarçado! Ele simples-

mente se muniu do pretexto de sentir meu pulso para ver quão gordo eu estava; ao fazer isto, ele receberia uma cota da minha carne. Mesmo assim, eu não estava com medo. Mesmo que eu não coma homens, minha cora-gem é maior do que a deles. Estendi meus dois punhos para ver o que ele faria. O ancião se sentou, fechou os olhos, tateou-os por alguns instantes e depois ficou quie-to por outros instantes; então ele abriu seus olhos malicio-sos e disse:

— Não deixe sua imagi-nação o controlar. Descanse em silêncio por alguns dias e tudo ficará bem.

Não deixe sua imaginação o controlar! Descanse por alguns dias! Quando eu hou-ver engordado, naturalmente eles terão mais o que comer; mas que bem isto me fará, ou como é que tudo “ficará bem”? Todas estas pessoas querendo comer carne huma-na e, ao mesmo tempo, ten-tando sorrateiramente manter as aparências, não ousando

agir de imediato, quase me fazem morrer de rir. Eu não conseguia parar de garga-lhar, estava tão surpreso. Eu sabia que nesta risada havia coragem e integridade. Tanto o ancião quanto meu irmão empalideceram, estupefatos diante de minha coragem e integridade.

Mas tão somente por eu ser corajoso eles anseiam ainda mais me comer, para ganharem um pouco da mi-nha coragem. O ancião saiu pelo portão, mas antes que estivesse longe, ele disse ao meu irmão, baixinho:

— Deve ser comido logo! e meu irmão aquiesceu. Então você também faz parte disto! Esta estupenda descoberta, apesar de ter me chocado, não era nada mais do que eu já esperava: o cúmplice em devorar-me é meu irmão mais velho!

O devorador de carne humana é meu irmão mais velho!

Eu sou o irmão mais novo dum devorador de carne humana!

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Serei comido por outros, mas, mesmo assim, sou o irmão dum devorador de carne humana!

V

Nestes últimos dias, voltei a refletir: suponhamos que o ancião não fosse um execu-tor disfarçado, mas um dou-tor de verdade; ele mesmo assim seria um devorador de carne humana. Naquele livro sobre plantas medicinais, escrito por seu predeces-sor Li Shih-chen2, afirma-se claramente que a carne dum homem pode ser cozida e comida; então como ele ainda insiste que não come homens?

Quanto a meu irmão mais velho, eu também tenho um bom motivo para suspeitar dele. Quando me ensinava, ele me disse com a própria boca:

— Pessoas trocam os filhos para comer. E, uma vez, deba-tendo sobre um homem mau, ele disse que este não apenas merecia ser morto, como deveria “ter sua carne comida e que se dormisse sobre sua pele...”3 Eu ainda era jovem, à época, e meu coração se ace-lerou por um tempo; ele não ficou nem um pouco surpre-so com a história que nosso inquilino da Vila do Lobato nos contou, outro dia, sobre comer o coração e o fígado dum homem, mas ficou con-cordando com a cabeça. Ele é, evidentemente, tão cruel quanto antes. Se é possível que se “troque filhos para comer”, então tudo pode ser trocado, tudo pode ser comi-do. No passado, eu simples-

mente ouvia suas explicações e fazia vista grossa; agora eu sei que quando ele explicava isto para mim, não apenas havia gordura humana nos cantos de sua boca, mas todo seu coração estava inclinado a comer homens.

Vi

Trevas. Não sei se é dia ou noite. O cachorro da famí-lia Chao começou a latir de novo.

A ferocidade dum leão, a timidez dum coelho, a malí-cia duma raposa...

Vii

Eu conheço o jeito deles; não matarão alguém dire-tamente, nem ousam, pois temem as conseqüências. Ao invés disto, uniram-se e prepararam armadilhas por todos os lados para me indu-zirem ao suicídio. O com-portamento dos homens e mulheres nas ruas, há dias, e a atitude do meu irmão mais velho nestes últimos tempos torna isto óbvio. O que mais os agrada é que um homem arranque da cintura seu cin-to e se enforque numa viga, porque, então, eles podem desfrutar de seus mais caros desejos sem serem culpados de assassinato. Naturalmente, isto faz com que eles garga-lhem com deleite. Por outro lado, se um homem está amedrontado ou preocupado com a morte, mesmo que com isto ele emagreça, eles ainda aquiescem em aprova-ção.

Eles só comem carne

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2. Um farmacologista famoso (1518-1593), autor de Ben-cao-gang-um, a Materia Medica.

3. Estas citações são do clássico Zuo Zhuan.

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morta! Lembro-me de ter lido em algum lugar sobre uma fera medonha, com terrível olhar, chamada “hiena”, que freqüentemente come carne morta. Ela tritura em frag-mentos até o maior dos ossos e os engole: o mero pen-samento disto é o bastante para aterrorizar alguém. Hie-nas são parentes dos lobos, e lobos pertencem à espécie dos cães. Outro dia, o cão na casa do Chao me fitou várias vezes; é óbvio que ele também faz parte deste ardil e se tornou cúmplice deles. O ancião baixou o olhar, mas isto não me enganou!

O mais deplorável é o meu irmão mais velho. Ele também é um homem, então por que não está com medo, por que esta conspirando com os outros para me co-mer? O hábito faz com que se pense que isto não é mais um crime? Ou ele endureceu seu coração para fazer algo que sabe ser errado?

Ao amaldiçoar os devo-radores de homens, devo começar por meu irmão, e, ao dissuadir os devoradores de homens, devo começar por ele também.

Viii

Na verdade, tais argumen-tos deveriam tê-los convenci-do há muito tempo...

De repente, alguém en-trou. Ele tinha apenas uns vinte anos e eu não enxerga-va seus traços com clareza. Sua cara vinha ornamentada com sorrisos, mas quando ele me cumprimentou, seu sorriso não parecia autêntico. Perguntei a ele:

— É certo comer seres humanos?

Ainda sorrindo, ele res-pondeu:

— Quando não há escas-sez, por que alguém comeria seres humanos?

Percebi imediatamente que ele era um deles; mas ain-da convoquei coragem para repetir minha pergunta:

— É certo?

— O que o leva a pergun-tar tal coisa? Você realmente gosta duma piada... Está um dia muito bonito hoje.

— Está bonito, e a lua está muito brilhante. Mas quero perguntar a você: é certo?

Ele olhou-me desconcerta-do e murmurou:

— Não...

— Não? Então por que eles ainda fazem isto?

— Do que você está falan-do?

— Do que estou falando? Eles estão comendo homens agora na Vila do Lobato e você pode encontrar isto escrito pelos livros, em fresca tinta vermelha.

A expressão dele mudou e ele ficou terrivelmente páli-do.

— Pode ser, ele disse, encarando-me, sempre foi assim...

— É certo porque sempre foi assim?

— Recuso-me a discutir estes assuntos com você. De qualquer modo, você não de-veria falar sobre isto. Qual-quer um que fala sobre isto está errado!

Sobressaltei-me e esbuga-

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lhei meus olhos, mas o ho-mem havia desaparecido. Eu estava encharcado de suor. Ele era bem mais novo do que meu irmão, mas mesmo assim ele fazia parte disto. Deve ter sido ensinado por seus pais. E temo que ele já tenha ensinado seus filhos: é por isto que as crianças me olham com tamanha feroci-dade.

iX

Querem comer homens, mas, ao mesmo tempo, têm medo de eles próprios serem comidos, assim todos se en-treolham com a mais pro-funda das suspeitas...

Como a vida seria confor-tável para eles se pudessem se livrar de tais obsessões e fossem trabalhar, caminhar, comer e dormir sossegados. Eles tinham de dar apenas um passo. Mesmo assim, pais e filhos, maridos e espo-sas, irmãos, amigos, profes-sores e estudantes, inimigos jurados e até estranhos, todos se reuniram nesta conspi-ração, desencorajando-se mu-tuamente e evitando que os outros dessem este passo.

X

De manhã cedo, fui pro-curar meu irmão mais velho. Ele estava do lado de fora da porta de entrada, olhando para o céu, quando apro-ximei-me dele pelas costas, fiquei entre ele e a porta e, com excepcional equilíbrio e educação, disse a ele:

— Irmão, tenho algo para lhe dizer.

— Bem, o que é? — ele perguntou, rapidamente se virando em minha direção e aquiescendo.

— É pouco, mas muito difícil de se dizer. Irmão, provavelmente todos os povos primitivos comiam carne humana, no princípio. Depois, porque a visão deles havia mudado, alguns deles pararam, e porque tentavam ser bons, ele se tornaram homens, tornaram-se homens de verdade. Mas alguns ain-da comem — assim como os répteis. Alguns se tornaram peixes, pássaros, macacos e, por fim, homens; mas al-guns não tentaram ser bons e continuam ainda répteis. Quando aqueles que comem homens se comparam àque-les que não comem, como eles devem se envergonhar. Provavelmente se envergo-nham muito mais do que os répteis diante dos macacos. Em épocas antigas, Yi Ya co-zinhou seu filho para Chieh e Chou comerem; esta é a velha história4. Mas, na ver-dade, desde a criação de céu e terra por Pan Ku, homens têm comido uns aos outros, desde o tempo do filho de Yi Ya até o tempo de Hsu Shi-lin, e desde o tempo de Hsu Hsi-lin5 até o homem que foi pego na Vila do Lobato. Ano passado, eles executaram um criminoso na cidade, um tuberculoso molhou um pe-daço de pão no sangue dele e o lambeu. Eles querem me comer e é claro que eu não posso fazer nada sozinho; mas por que você se uniria a eles? Como devoradores de homens, eles são capazes de qualquer coisa. Se eles me comerem, podem comê-lo também; membros dum mes-

4. De acordo com os registros antigos, Yi Ya cozinhou seu filho e o presenteou ao Duque Huan de Chi que reinou de 685 a 643 a.C. Chieh e Chou foram tiranos duma época primitiva. O louco cometeu um equívoco aqui.

5. Um revolucionário no final da dinastia Ching (1644-1911), Hsu Hsi-lin foi executado em 1907 por assassinar um oficial Ching. Seu coração e fígado foram comidos.

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4848 SAMIZDAT julho de 2008

mo grupo podem comer uns aos outros. Mas se vocês mu-darem seus hábitos imediata-mente, então todos terão paz. Apesar de isto ocorrer desde tempos imemoriais, hoje nós podemos fazer um esforço especial para sermos bons e dizer que isto não deve ser feito! Tenho certeza de que você pode dizer isto, irmão. Outro dia, quando o inquili-no queria que você abaixasse o aluguel, você disse isto era impraticável.

A princípio, ele apenas sorriu cinicamente, então um brilho assassino surgiu em seus olhos e, quando eu falei do segredo deles, ele empa-lideceu. Do outro lado do portão, havia um grupo de pessoas, incluindo o Sr. Chao e seu cão, todos esticando os pescoços para espiarem. Eu não conseguia ver seus rostos, pois eles pareciam estar mascarados com panos; alguns deles eram pálidos e assustadores, escondendo suas risadas. Eu sabia que eles eram um bando, todos comedores de carne humana. Mas eu também sabia que nem todos pensavam de ma-neira semelhante. Alguns de-les pensavam que os homens deveriam ser comidos, pois sempre havia sido assim. Alguns deles sabiam que não deveriam comer homens, mas ainda assim tinham vontade; e eles tinham medo que as pessoas descobrissem seu segredo; assim, quando me ouviram, eles se enfureceram, mas ainda assim tinham um cínico sorriso amarelo.

De repente, meu irmão os olhou com fúria e gritou alto:

— Saiam daqui, todos vocês! Qual é o sentido em

ficar olhando para um louco?

Então entendi parte do ardil deles. Eles nunca es-tariam dispostos a mudar sua posição e seus planos já estavam traçados; eles ha-viam me estigmatizado como um louco. No futuro, quando eu fosse comido, não apenas não haveria problema algum, como as pessoas ficariam provavelmente gratas a eles. Quando o nosso inquilino falou dos vilões comendo um mau sujeito, era exatamente o mesmo artifício. Este é o velho truque deles.

O velho Chen veio tam-bém, em ótimo humor, mas eles não conseguiam me ca-lar, eu tinha de falar àquelas pessoas:

— Vocês devem mudar, mudar de todo o coração! eu disse. Quase todos vocês sabem que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens. Se não mudarem, vocês se co-merão uns aos outros. Ape-sar de muitos terem nascido, eles serão eliminados pelos homens de verdade, assim como os lobos são mortos por caçadores. Assim como répteis!

O velho Chen espantou todo mundo. Meu irmão de-sapareceu. O velho Chen me aconselhou a voltar para meu quarto. O quarto estava um breu. As traves e vigas tre-miam sobre minha cabeça. Após tremerem por algum tempo, elas aumentaram de tamanho. Empilharam-se sobre mim.

O peso era tão grande que eu não podia me mover. Elas significavam que eu deveria morrer. Eu sabia que o peso

era falso, então eu lutei, co-berto de suor. Mas eu tinha de dizer:

— Vocês devem mudar imediatamente, mudar de todo o coração! Vocês devem saber que, no futuro, não haverá lugar no mundo para devoradores de homens...

Xi

O sol não brilha, a porta não está aberta, duas refei-ções ao dia.

Peguei meus hashi, então pensei no meu irmão mais velho; agora sei como minha irmã caçula morreu: foi tudo por causa dele. Minha irmã tinha apenas cinco anos, naquele tempo. Ainda consi-go me lembrar quão adorável e apaixonante ela era. Ma-mãe chorou e chorou, mas ele implorou para que ela não chorasse, provavelmente porque ele a havia comido e o choro dela o envergonhava. Como se eles tivessem algum senso de vergonha...

Minha irmã havia sido comida por meu irmão, mas eu ainda não sei se mamãe percebeu isto ou não.

Acho que mamãe devia sa-ber, mas, quando chorou, ela não disse isto com franqueza, provavelmente porque ela também pensava que aquilo fosse apropriado. Lembro-me quando eu tinha quatro ou cinco anos, sentado no fres-cor do vestíbulo, meu irmão me disse que se os pais dum homem estivessem doentes, ele deveria cortar um peda-ço de sua pele, cozinhá-lo para eles, se ele desejasse ser considerado como um bom

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filho; e mamãe não o contra-disse. Se um pedaço poderia ser comido, obviamente que o todo também pode. Ainda assim, só de pensar naquele lamento faz meu coração ainda sangrar; esta é a coisa mais extraordinária sobre isto!

Xii

Não suporto pensar sobre isto.

Acabei de constatar que tenho vivido todos estes anos num lugar onde, por milha-res de anos, eles têm comido carne humana. Meu irmão havia acabado de se tornar o encarregado da casa quan-do nossa irmã morreu, e ele deve ter posto a carne dela em nosso arroz e em nossas refeições, fazendo com que nós a comêssemos involunta-riamente.

É possível que eu tenha comido vários pedaços da carne na minha irmã sem sa-ber e que agora será a minha vez...

Como pode um homem semelhante a mim, após quatro mil anos de histó-ria de filantropia — mesmo que eu não soubesse nada, a princípio —, ter a esperança de encarar um homem de verdade?

Xiii

Será que ainda há crianças que não comeram homens? Salvem as crianças....

Abril de 1918

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Hu SHio intelectual da reforma Literária Chinesa

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Hu Shi (17 de dezembro de 1891 - 24 de fevereiro de 1962) foi um filósofo chinês e ensaísta. Nascido em Xangai, ele foi enviado aos EUA em 1910 para estudar agricultu-ra na Cornell University. Em 1912, ele mudou linha de pes-quisa para Filosofia e Litera-tura. Depois, estudou Filosofia na Columbia University. Lá, foi profundamente influenciado por seu professor, John Dewey, e se tornou tradutor das obras de Dewey e um defensor fer-renho do pragmatismo. Retor-nou para lecionar na Universi-dade de Pequim. Durante sua

permanência, recebeu apoio de Chen Duxiu, editor do influen-te jornal “Nova Juventude”, e atraiu atenção e influência. Hu se tornou um dos principais e mais influentes intelectuais durante o Movimento Quatro de Maio e, depois, no Movi-mento Nova Cultura.

Sua mais importante con-tribuição foi a divulgação do Chinês Vernáculo na literatura em substituição ao Chinês Clássico, o que tornou a lei-tura mais acessível às pessoas comuns.

Hu foi embaixador da República Popular da China nos EUA entre 1938 e 1941, chanceler da Universidade de Pequim entre 1946 e 1948 e, posteriormente, presidente da Academia Sinica em Taiwan, onde ele permanceu até sua morta, por ataque cardíaco, aos 71 anos de idade. Ele foi o diretor-executivo do Jornal China Livre, que foi fechado por causa da crítica a Chian Kai-shek.

foto: Hu Shi em 1944, após servir como embaixador nos Estados Unidos.

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5252 SAMIZDAT julho de 2008

Diferente de outras fi-guras da Era dos Generais na República da China, Hu era defensor de apenas uma corrente de pensamento: o pragmatismo. Muitos de seus textos utilizaram destas idéias para propor mudanças na China.

Hu era conhecido como o primeiro porta-voz da era da revolução literária, um mo-vimento que visava substituir o erudito Chinês Clássico na escrita pela língua vernácu-la falada, além de cultivar e estimular novas formas de literatura. Num artigo publi-cado originalmente em "Nova Juventude" de janeiro de 1917, entitulado "Uma Dis-cussão Preliminar de Refor-ma Literária", Hu enfatizou originalmente oito diretrizes que todos escritores chineses deveriam ter em mente ao escrever:

1. Escreva com substância. Hu queria dizer que literatura deveria conter sentimen-tos e pensamentos humanos reais. A intenção era contrastar à poesia recente com rimas e métrica, vista por Hu como sendo vazia.

2. Não imite os clássicos. Literatura não deveria conter estilos ultrapassa-dos, mas sim um estilo moderno dos tempos atuais.

3. Respeite a gramática. Hu não dissertou muito sobre este ponto, apenas afirman-do que as formas recentes de poesia negligenciavam a gramática.

4. Rejeite a melancolia. Jovens autores recentes co-mumente escolhem pseudônimos e es-

crevem sobre temas como a morte. Hu rejeita este modo de pensar como sendo improduti-vo na tentativa de resolver problemas modernos.

5. Elimine velhos clichês. A língua chinesa sempre possuiu vários ditados e senten-ças com quatro caracteres utiliza-dos para descrever eventos. Hu im-plorou aos autores para usar suas próprias palavras em descrições e desprezou os que não faziam isto.

6. Não fazer alu-sões. Hu se referia à prática de com-parar eventos pre-sentes a históricos quando não havia nenhuma analogia significativa.

7. Não utilizar dísticos e parale-lismos. Apesar de

estas formas terem sido o objetivo de escritores antigos, Hu acreditava que os autores mo-dernos deveriam primeiro aprender o básico da subs-tância e qualidade antes de retornar àqueles assuntos de sutileza e delica-deza.

8. Não evitar ex-pressões populares e formas populares de caracteres. Esta regra, talvez a mais conhecida, relacio-na-se diretamente com a crença de Hu de que a litera-tura moderna de-veria ser escrita em vernacular, ao invés do Chinês Clássico. Ele acreditava que esta prática tinha precedentes históri-cos e que conduzia a uma maior com-preensão de textos importantes.

Em abril de 1918, Hu publicou um segundo artigo em "Nova Juventude", este intitulado "Revolução Literária Cons-trutiva - Uma Literatura da Fala Nacional". Nele, ele simplifi-ca os oito itens originais em apenas quatro:

1. Fale apenas quando você tem algo para dizer. Análogo ao primeiro item acima.

2. Fale o que você quer di-zer e o diga do modo que você quer dizer. Une do segundo ao sexto itens acima.

3. Fale o que é próprio de si mesmo, e não de outra pessoa. Uma reescrita do item sete.

4. Fale na língua da época em que você vive. Refere-se novamente à substituição do Chinês Clássico pela língua vernácula.

fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hu_Shi

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53www.samizdat-pt.blogspot.com

Filho,Por vinte anos ensinei-o a amar este país,Mas só Deus sabe como!

Não se esqueça:Este é o nosso país de soldados,Que fez sua tia se suicidar em desgraça,E fez o mesmo com Ah Shing,E com sua esposa,E que fuzilou Gao Sheng!

Não se esqueça:Quem decepou seu dedo,Quem espancou seu pai até a invalidez!Quem queimou esta vila?Merda! O fogo está chegando!Vai, para o seu próprio bem! Não morra comigo!Espere!

Não se esqueça:O único desejo desse pai moribundo é o país invadidoPelos cossacos,Ou pelos prussianos,Por qualquer um!Há vida pior do que — esta?!

fonte: http://www.chinapage.com/poet-e/hushih2e.html

Hu Shitradução: Henry Alfred Bugalho

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5454 SAMIZDAT julho de 2008

Hu Shitradução: Henry Alfred Bugalho

SoNHo E PoESia

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55www.samizdat-pt.blogspot.com

É tudo experiência comum,Tudo imagens comuns.Ao acaso elas surgem num sonho,Engendrando infinitos novos padrões.

É tudo sentimentos comuns,Tudo palavras comuns.Ao acaso elas encontram um poeta,Engendrando infinitos novos versos.

Uma vez intoxicado, descobre-se a força do vinho,Uma vez enamorado, descobre-se o poder do amor:Tu não podes escrever meus poemasAssim como não posso sonhar teus sonhos.

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5656 SAMIZDAT julho de 2008

O que eu mais gosto no Bar do Setembrino são os axiomas do Rildo. Normal-mente vêm acompanhados de bolinhos de carne – espe-cialidade da casa – e cerveja barata, muito comum nos su-búrbios. Se não vejo o Rildo em uma das mesas na calça-da, cumprimento o Setembri-no, jogo uma sinuca, falo um pouco sobre futebol, mando um beijo pra Jacimeire e sigo meu caminho. Mas com ele por ali, fato relativamente raro, fico para um papo mais cáustico, onde suas verdades empíricas vão sendo derra-madas sem filtros para quem quiser ouvir.

Hoje ele estava por lá, como sempre na mesa exposta ao ar livre, se mis-turando entre os transeuntes apressados. Rildo dizia que o melhor de um bar não é a comida e nem a bebida, mas a possibilidade de ver as pes-soas, nervosas, correndo de um lado para o outro numa sessão pavorosa de corpos em movimento. Não me furtei em puxar uma cadeira para acompanhá-lo com uma gelada. Comentei sobre um fato triste que havia presen-ciado momentos antes, quan-do um pivete roubara a bolsa da dona Lourdes. Ele decre-

tou que a paz que o mundo busca é impossível porque entra em conflito com a pró-pria essência beligerante do ser humano.

Qualquer conduta reativa é, antes de mais nada, uma violação ao que foi explana-do anteriormente. Na visão macro de Rildo essa premis-sa é não apenas primordial como muito pitoresca.

– Quando rompemos o padrão, a vida se movimenta e as pessoas se desacomo-dam e com isso, evoluem. Sem a bolsa roubada, Lourdes iria pra casa assar sua carne, fazer seu arroz. Mas acon-teceu um fato novo em sua vida e isso a vai fazer pensar em outras coisas mais apro-fundadas, tipo: ‘que mundo é esse em que vivo?’ e ‘quem são as pessoas a minha volta?’. Ela nunca teria essa oportunidade se não tivesse tido esse contratempo.

Rildo não é um sujeito que pode ser classificado como ‘agradável’. Ele é do-lorosamente fiel aos seus conceitos. Desfia suas pérolas como algum filósofo frustra-do que pretende explicar a vida a partir de sua vivência boêmia. Mas é gostoso ouvir colocações que não são poli-ticamente corretas, já que nos jornais, revistas e TV tudo o

que vemos é o óbvio e bati-do: “não agüentamos mais a violência!”. Roupas brancas de grife desfilando pelas ruas pedindo paz.

– As pessoas se adaptam ao jogo. Para novas conquis-tas o homem se reuniu para guerrear e criou flechas e pólvora. Se quisesse a paz, teria ficado no seu cantinho, no cultivo familiar, trocando sal e frutas com seus vizi-nhos. A evolução é a própria face da violência e do caos. Quer coisa mais violenta que o desenho do Pica-Pau?

No ponto de vista de Ril-do não há viabilidade na paz. É tão ingênuo quanto tentar fazer o leão não caçar suas presa explicando que a zebra vai sentir dor. A comparação é tão estapafúrdia que seria uma violência ao diálogo tentar ponderar. E ainda que eu quisesse um caminho mais brando para hastear a “bandeira branca” sobre os argumentos de Rildo, não conseguiria. Ele não dá essa opção.

– A verdade é que todo mundo gostaria de ser poli-cial ou bandido. Há glamour na violência. Estar intima-mente ligado a uma arma é prazeroso. Vá a uma locado-ra de filmes e constate: existe a categoria “Engenheiro”? A

autor Convidado

Leo Borges

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“Arquiteto”? A “Peixeiro”? Não. Mas existe a “Policial”. Polícia e ladrão é a brinca-deira mais recorrente entre a criançada. E criança tem sua própria natureza de tapas e corredor polonês. Precisam disso. Claro que quando não recebem uns bons cascudos de seus pais para se com-portarem. O indivíduo só deixa de porradaria quando o policial vem e lhe senta o cacete.

Para Rildo a violência não tem como ser combatida pelo fato de o ser humano não saber conviver sem ela. Seria um mundo enfadonho, macambúzio e... violento! Não seria uma violência do-

losa, mas ainda assim as es-tatísticas iriam surpreender. Triplicariam as mortes nas estradas, já que todos sairiam para passear. Duplicariam os pisoteamentos em shows, pois milhões iriam freqüen-tar raves e similares. Afoga-mentos em piscinas e praias em balneários superlotados. Intoxicações com inseticidas. Queimaduras. Atropelamen-tos. Seria uma catástrofe sem precedentes.

- As pessoas enjoariam de tanto marasmo e falta de perspectivas perversas e sairiam para todos os can-tos buscando qualquer coisa que as alegrassem. A figura do diabo seria transformada

num boneco de aniversário de criança. E os pugilistas entrariam no ringue com luvas de algodão para pode-rem fazer uma boa “matinê de cafuné”. Quem pagaria para ver isso? Imagine uma lírica torcida do Flamengo enaltecendo a torcida do Flu-minense no Maracanã. Seria até caricato. A essência de uma disputa é justamente a briga. Já começamos brigan-do desde espermatozóides. Se não houvesse o antídoto da calmaria, o mundo estaria fa-dado ao cinismo, à falsidade e à desonestidade. Exemplo maior são os nossos políticos, que não atiram nem esfa-queiam. Mas quer violência

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5858 SAMIZDAT julho de 2008

maior que uma canetada assinando uma lei estúpi-da? Um salário mínimo que no papel garante tudo e na prática só serve como cha-cota. Melhor fazer piada que chorar com tanta violência.

Realmente é um mundo esquisito o que Rildo vis-lumbra... mas e as religiões? Não cumpririam seus papéis pacíficos numa sociedade despojada de violência?

– As religiões, que de-veriam ser ícones de paz, fomentam a violência com dogmas intolerantes e intran-sigentes. O grande trunfo da Igreja são, paradoxalmente, as trevas. Sem elas, a bonança seria apenas um quadro do Rembrandt num consultório psiquiátrico.

Eu normalmente não contraponho as assertivas de Rildo, porque suas definições são, como ele próprio alega, irrepreensíveis. E consiste nisso a diversão espinhosa de um bate-papo com ele.

- Tragédia maior, entre-tanto, seria o sombrio clima entre um casal impetuoso num mundo sem violência. Entre quatro paredes, o rapaz não poderia nem segurar com volúpia os cabelos de sua amada e muito menos dar uns bons tapas em suas ancas quando a sacanagem esquentasse. Em última análise isso também está no rol de aberrações, de espan-camentos, ainda que consen-tidos.

O mais interessante de Rildo é que seus discursos são despolitizados, mas não são ocos. No caso em ques-tão não dá para acusar o ve-lho como sendo um paladino

pró-violência ou um libelo da destruição, já que seu tra-tado é uma versão sarcástica e estilizada do mundo real. Rildo é o Thomas More ao reverso em meio aos salgadi-nhos engordurados do Bar do Setembrino.

- Eu repudio frontalmen-te a violência – diz ele. – O problema é que ela mora em todos os lugares onde há sinais de inteligência. Dê um pedaço de osso para um cachorro e ele será feliz. Dê toneladas de ossadas para um ser humano e ele ficará amargurado com tantos res-tos mortais à sua disposição.

Seriam os cães mais inteli-gentes que os homens?

- A busca pela felicidade é traumática, pois nos co-loca frente a perguntas sem respostas. A violência, ao contrário, é pura, não preci-sa de arquétipos, sem falar que é ela quem gera milhões de empregos, de militares a jornalistas. Afinal, notícia ruim é que movimenta a imprensa.

Para Rildo intolerância é a prima da ignorância. Moram juntas e são muito compe-tentes em criar e cuidar da violência. Fazem isso com grande esmero.

– Veja você que um solda-do é condecorado ao matar duas pessoas, mas é execrado se transar com alguém do mesmo sexo. A violência prevalece e ainda que lute por seu país, nem ele próprio vai saber quais são os ideais pelos quais luta. Seus líderes dizem que é a luta pela de-mocracia. Mas o que se quer mesmo é a obtenção de ri-quezas. Ou seja, quem é forte

e violento, vence, sai bem na fita, é glorificado e ainda posa de ‘bonzinho’.”Deus nos ajudou a vencer essa guerra contra os impuros”. Como disse Sartre, “o inferno são os outros”.

Percebi que o papo desse dia já estava ficando cinzento além da conta. Enfim, para o meu amigo de cerveja não há paz possível. Seria isso? Nem tanto.

– Eu vou te contar qual é a única paz possível: a Jaci-meire.

Jacimeire é a garçonete do Setembrino. Mulata gostosa, ela é mais que carinhosa no atendimento aos fregueses, trazendo sempre junto com o pedido um sorriso franco e um espírito alegre. Quando alguém pergunta seu nome ela o fala todo: Jacimeire Francisca da Paz. Acho que faz isso por gostar muito do ‘Paz’ no fim. Nada mais cor-reto, já que sua exuberância acaba com qualquer conflito entre bêbados mais alterados.

Alheia às loucuras dos boêmios, ela trabalha com indescritível préstimo e amor e isso confunde os incautos que acreditam que tal de-senvoltura possa ser algum flerte. Mas, que nada. É só uma simpatia transbordante que sempre relaxa a fisio-nomia rabugenta de alguns, que sempre traz esperança em algo melhor. Melhor que o bolinho de carne de sol, melhor que a tristeza de um mundo confuso.

– Que Paz maravilhosa...

Nesse ponto não há o que discordar dele.

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“Dê um pedaço de osso para um cachorro e ele será feliz. Dê toneladas de ossadas para um ser humano e ele ficará amargurado com tantos restos mortais à sua disposição.”

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6060 SAMIZDAT julho de 2008

teoria Literária

Por quE ESCrEVo?

Hoje em dia, a última moda é criticar a aquisição de “capital cultural”.

Antes, o alvo havia sido o capital puro e simples — grana, bufunfa, prata, money. Uma legião de esquerdistas, de cunho marxista-leninista, se proliferou por países subdesenvolvidos, execrando os males do capitalismo, a exploração da mais-valia e a sociedade de classes.

A falência do socialismo foi um balde de água fria

para esta turma. Mas, recen-temente, em vários artigos que tenho lido pela internet, algo semelhante tem sur-gido, mas agora criticando o hábito — extremamente burguês, como negar? — de se escrever livros. “Os autores só escrevem para adquirir capital cultural”, eles dizem.

Tomei ciência deste conceito pela primeira vez através da boca duma ami-ga americana, mestranda de Ciências Sociais, que me explicou o que Bourdieu entendia por isto. A grosso

Henry Alfred [email protected]

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modo, “capital social” é o conhecimento, ou experiên-cia ou relações que alguém possui de modo a permiti-lo se destacar daqueles que não possuem a mesma formação. Este capital se divide em três instâncias: 1 – inerente, aquele que nasce com um indivíduo, ou é decorrente da formação familiar; 2 – ob-jetificado, que é aquilo que pode ser possuído, enquanto propriedade, como uma obra de arte, um livro raro, ou algo de grande valor cultural; e 3 – institucionalizado, que decorre da legitimação de instituições culturais, como universidades, premiações, títulos e demais honrarias.

Até onde percebo, o es-critor se enquadraria nestas três categorias, pois a escrita depende de algo inerente, o idioma no qual se escre-ve, o talento para organizar sentenças, a capacidade de observação do mundo e sua reprodução através da lite-ratura; depende também da objetificação do livro, algo físico, palpável, que pode ser comercializado, manuseado, que traz na capa o nome do autor, que o institui como criador e dono de seu conte-údo; por fim, também possui um caráter institucional, pois o reconhecimento da Academia é uma das grandes medidas de canonização dum autor, a adoção de suas obras por uma Universidade, ou a premiação em algum im-portante concurso literário, ou o recebimento de alguma titulação de doutor honoris causa.

A aquisição de capital cultural faz parte do ofício da escrita, mas é isto que os

autores buscam ao escreve-rem um livro?

Sem dúvida, há uma fe-tichização do livro. Aquela coisa, composta de páginas, caracteres, signos, sentido, é um universo à parte do nos-so mundo cotidiano. Apesar de a escrita ser uma espécie de instrumento de comuni-cação — escrevemos cartas, e-mails, cartazes, jornais, revistas para comunicarmos algo a alguém, sendo que este alguém pode ser um receptor direto, alguém que conhecemos, ou um receptor indireto, uma massa desco-nhecida —, o livro ultrapassa esta função, ainda mais se nos restringirmos aos limites da ficção.

Um romance ou uma coleção de contos transmite uma mensagem, comunica um sentido, mas vai além, visa algo que ultrapassa a mera comunicação.

O que este “além” significa é motivo de debates acalo-rados através dos séculos; uns dizem ser a transmissão do Belo; outros, o estímulo de sensações e sentimentos; outros, a formação de senso crítico ou a crítica da socie-dade; outros, entretenimento. As hipóteses e propostas são infindas, talvez tão nume-rosas quanto os volumes de livros que já foram escritos na História da Humanidade.

Eu, enquanto escritor, não me recordo de, em momento algum, eu me sentar diante do computador para escrever um conto ou romance e ser assolado pelo pensamento: “que beleza, vou adquirir mais um pouco de capital

cultural!”

Acho que a primeira intenção dum autor, a mais genuína, a mais entranhada, é tentar recriar as mesmas impressões que ele teve ao ler um bom livro. Talvez o que se passe na mente, talvez até de maneira inconsciente, dos escritores é causar nos leitores aquela sensação: “eu queria ter escrito este livro”.

Isto não significa que os autores tentam imitar formal ou estilisticamente seus au-tores favoritos, mas sim que, no interior de seus gostos e predileções, eles gostariam de causar no leitor, através de palavras, o deslumbramento que um dia tiveram através da leitura.

A aquisição de capital cul-tural está atrelada ao ofício literário do mesmo modo que a aquisição de capital está vinculada ao trabalho. Se não é vergonhoso ser remunerado pela execução dum trabalho, então por que o reconhecimento através da escrita seria?

Mas não é isto que motiva um escritor, pelo menos, não deveria ser.

Se alguém me perguntas-se: “por que você escreve?”, a única resposta que eu po-deria dar, a mais sincera e verdadeira, é: “porque gosto; porque, acima de tudo, eu me divirto muito”.

E não há dinheiro ou reconhecimento capaz de superar esta sensação.

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6262 SAMIZDAT julho de 2008

teoria Literária

trÊS VErSoS

Há algum tempo, desde que comecei a integrar esse grupo de escritores, auto-pro-clamados “oficineiros”, entrei em um irremediável proces-so de auto-descobrimento literário. Entre as coisas que descobri em mim mesmo foi o quanto escrever poesia é gratificante. A primeira vez que fiz um poema na vida foi para uma das atividades da oficina: uma coletânea de haicais. Para minha intei-ra satisfação, eu consegui escrever um haicai – que era, aliás, um gênero de poesia

do qual apenas havia ouvido falar.

Depois disso, não parei mais. É claro que ainda não fiz nada de extraordinário (muito pelo contrário, aliás) Mas estou experimentando. O resultado dessas experi-ências vem sendo publicado aqui, na SAMIZDAT. São meus Laboratórios Poéticos.

Bem, continuei escrevendo haicai. Entretanto, eu sim-plesmente não conseguia manter-me preso à singele-za e às normas muito bem

Volmar Camargo [email protected]

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definidas que essa linguagem poética tão bonita (e tão an-tiga) exige. Então, eu descobri o Poetrix. Ou melhor: eu descobri que o que eu fazia, pensando ser haicai, era, na verdade, poetrix.

Para tentar deixar claro o que é um e o que é outro, dando como exemplo poe-mas que eu mesmo escrevi, tentarei expor abaixo as normas que fazem um haicai não ser um poetrix, e vice-versa.

o haicai

Sobre a linguagem do hai-cai na História, pretendo tra-tar em outra oportunidade. Entretanto, vale ressaltar o nome de duas pessoas essen-cialmente importantes para a divulgação do haicai em nosso país: Nempuku Sato e Goga Masuda. O primeiro, um mestre desta forma de arte, foi o grande responsável pela cultura do haicai entre os imigrantes japoneses no Brasil – apesar de nunca ter escrito poemas que não fos-sem em seu próprio idioma. O segundo, Goga Masuda, é discípulo de Nempuku Sato. Possivelmente, é o respon-sável pela divulgação dessa forma poética em terras brasileiras - não apenas para os imigrantes - seguindo a milenar tradição japonesa. O texto abaixo, de autoria de Masuda, é uma orientação para o haicai tradicional.

***

Um haicai, segundo minha pena (torta), tentando acom-panhar as diretrizes acima, é assim

os dez mandamentos do haicai

(http://www.kakinet.com/caqui/dezmand.shtml)

I - O Haicai é poema conciso, formado de 17 sílabas, ou melhor, sons, distribuídas em três versos (5-7-5), sem rima nem título e com o termo-de-estação do ano (kigô).

II - O kigô é a palavra que representa uma das quatro es-tações, primavera, verão, outono e inverno; p. ex., IPÊ (flor de primavera), CALOR (fenômeno ambiental de verão), LIBÉLULA (inseto de outono) e FESTA JUNINA (evento de inverno).

III - Cada estação do ano tem o próprio caráter, do ponto de vista da sensibilidade do poeta; p. ex., Primavera (ale-gria), Verão (vivacidade), Outono (melancolia) e inverno (tranqüilidade).

IV - O haicai é poema que expressa fielmente a sensibili-dade do autor. Por isso,

respeitar a simplicidade;

- evitar o “enfeite” de “termos poéticos”;

- captar um instante em seu núcleo de eternidade, ou melhor, um momento de transitoriedade;

- evitar o raciocínio.

V - A métrica ideal do haicai é a seguinte: 5 sílabas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro; mas não há exigência rigorosa, obedecida a regra de não ultrapassar 17 sílabas ao todo, e também não muito menos que isso. E a contagem das sílabas termina sempre na sílaba tônica da última palavra de cada verso.

VI - O haicai é poemeto popular; por isso usa-se palavras quotidianas e de fácil compreensão.

VII - O dono do haicai é o próprio autor; por isso, deve-se evitar imitação de qualquer forma, procurando sempre a verdade do espírito haicaísta, que exige consciência e realidade.

VIII - O haicaísta atento capta a instantaneidade, qual apertar o botão da câmera.

IX - O haicai é considerado como uma espécie de diálo-go entre autor e apreciador; por isso, não se deve explicar tudo por tudo. A emoção ou a sensação sentida pelo autor deve apenas sugerida, a fim de permitir ao leitor o re-acontecer dessa emoção, para que ele possa concluir, à sua maneira, o poema assim apresentado. Em outras palavras, o haicai não deve ser um poema discursivo e acabado.

X - O haicai é um produto de imaginação emanada da sensibilidade do haicaísta; por isso, deve-se evitar expres-sões de causalidade, sentimentalismo vazio ou pieguice.

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6464 SAMIZDAT julho de 2008

Orvalho noturno,Frio e geada -Verso branco.

No entanto, o primeiro que escrevi, foi esse:

Flerte

Roseira branca,na cerca, ama o céunegro sem culpa.

o PoEtriX

O Poetrix é uma forma poética nascida aqui, no Brasil. Surgiu, à maneira dos movimentos vanguardistas do Modernismo, com um manifesto. Seu idealizador, o poeta baiano Goulart Go-mes, é hoje o coordenador do Movimento Internacional Poetrix. Da mesma forma, pretendo falar mais detida-mente sobre a origem do Poetrix em um futuro pró-ximo. O texto abaixo consta na introdução do Volume 1 do Caderno Internacional de Poetrix, distribuído gratuita-mente na rede (http://www.zaz.com.br/virtualbooks/no-valexandria/goulart/poetrix1.htm)

o Poetrix hoje

POETRIX é um terceto contemporâneo de temática livre, com título, ritmo e um máximo

de trinta sílabas, possuin-do figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor

satírico. (...) No Manifesto Poetrix foram identificadas as suas principais caracterís-ticas, que resultaram na atual definição do novo vernáculo:

- possui apenas uma estrofe de três versos, sem limite de sílabas (depois seria estabele-cido o limite de 30 sílabas);

- o título é desejável, mas não exigível, podendo com-plementar o texto (atualmen-te, o título é uma exigência);

- não existie rigor quanto a métrica ou rimas (mas o ritmo é desejável);

- metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, são uma cons-tante no poetrix;

- geralmente há uma intera-ção autor/leitor provocada por mensagens subliminares;

- é minimalista, ou seja, procurr transmitir a mais completa mensagem em um menor número de palavras;

- passado, presente e futuro podem ser utilizados sem distinção;

- o autor, as personagens e o fato observado podem inte-ragir, mesmo criando condi-ções suprarreais, cômicas ou ilógicas (non sense).

uns e outros

Uma inportante relação entre os dois formatos foi trazida por Goulart nesta mesma publicação, referida acima:

“(...) POETRIX é, certamente, a primeira linguagem poética a ganhar uma definição discutida e elaborada pelos seus próprios

http://www.flickr.com/photos/himachal/858665751/sizes/o/

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65www.samizdat-pt.blogspot.com

praticantes – os poetrixtas – no mundo virtual da internet. O POETRIX foi proposto, inicial-mente, como uma evidente alternativa ao hai-kai, mantendo a sua forma (em tercetos) mas subvertendo o seu conteúdo, ao admitir título, rimas, figuras de linguagem e um maior número de sílabas.”

Não estou querendo defender um em detrimento de outro. Aliás, muito pelo contrário. Desde que conheci o haicai, tenho-me esforçado para conseguir criar um que seja minimamente adequado à tradição. E, da mesma for-ma, tenho produzido alguns poetrix, porque – talvez, é uma suposição – meu pensa-mento seja ocidental demais, e demasiadamente atrelado ao “querer dizer” dos idio-mas românicos. Sobretudo o português. Ainda mais, esse português tupiniquim, nos-tálgico, eclético, e (pelo que sou muito grato) democráti-co.

Fico muitíssimo satisfeito.

Para ler mais sobre haicai e poetrix, acesse:

Grêmio Haicai Ipê

http://www.kakinet.com/caqui/ipe.shtml

Biografia de Masuda Goga

http://www.kakinet.com/caqui/goga.shtml

Movimento Internacional Poetrix

http://www.movimentopoetrix.com/

Biografia de Goulart Gomes

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=17739

http://www.flickr.com/photos/hogart/92289132/sizes/o/

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Crônica

BraSiLEiroS No EXtErior:

PatuSCadaS No CarNEGiE HaLL

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O brasileiro no exterior se torna um patriota. Mesmo que tenha deixado o país por haver amargado anos de desemprego, ou por medo da violência, ou por vergonha dos políticos, basta um ano morando fora para se criar uma visão fictícia do país. Esquece-se de todas as ma-zelas e o Brasil torna-se uma Shangri-la.

Esta nostalgia impele os brasileiros a perseguirem fa-naticamente tudo que possui alguma relação com o Brasil: restaurantes, casas noturnas, mercadinhos e, principal-mente, a vinda de algum artista famoso.

Assistir a algum show dum artista brasileiro é a justificação da existência dos brasileiros no exterior, a oportunidade para matar a saudade do que nunca se teve.

Recentemente, tive a opor-tunidade de presenciar uma destas agremiações.

a etiqueta da música erudita

Não é preciso ser nenhum gênio para se perceber, logo na primeira experiência com a música erudita, que há uma etiqueta diferente na hora de se apreciar um concerto. Via de regra, não se aplaude entre os movi-mentos duma peça musical — apenas no final —, nada de assovios, gritos (excetuando os Bravo! Bravo!) ou demais arroubos de comportamento característicos dos eventos populares.

A música erudita foi

BraSiLEiroS No EXtErior:

PatuSCadaS No CarNEGiE HaLLHenry Alfred [email protected]

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6868 SAMIZDAT julho de 2008

consagrada pela aristocra-cia e burguesia européias em contraposição às mani-festações da praça pública. Por isto, a reação também deve ser oposta, ao invés do carnaval dionisíaco, a platéia dum concerto é uma mera espectadora, ela vai ao teatro para apreciar, não para fazer parte da apresentação.

a atração

Em maio, o Carnegie Hall recebeu uma atração muito especial: após uma década, João Carlos Martins voltava a se apresentar no mais cele-brado teatro do mundo.

João Carlos Martins já era uma figurinha carimbada do cenário da música erudita há muito tempo. Considerado um dos maiores intérpretes de Bach, a carreira do pia-nista foi brilhante, até que os contratempos da vida a encerraram. Primeiro, João Carlos Martins perdeu o mo-vimento duma das mãos, ao se machucar jogando futebol no Central Park; recuperou-se, voltou a tocar no auge de sua forma; mas outro aci-dente, desta vez durante um assalto na Bulgária, o fez per-der novamente o movimento na mão. Isto não o impediu de terminar o seu projeto de vida — a gravação da obra

completa de Bach para tecla-do. Quando sua outra mão também ficou lesionada pelo esforço, João foi obrigado a abandonar o piano.

No entanto, este não é o fim da história. Foi justamen-te neste momento em que João Carlos Martins passou a ser conhecido pelo públi-co brasileiro. A sua história de superação se tornou um ideal, um exemplo, e seu re-torno, posteriormente, como regente, foi um novo apogeu.

Agora, não como pianista, mas como maestro, João Car-los Martins se apresentaria no Carnegie Hall.

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a Platéia

Dada a sua reputação internacional como concertis-ta, imaginei que o público se comporia, principalmente, de americanos. Mas logo na fila de entrada, já se ouvia português por todos os lados. Obviamente, o show seria dado para (e pelos) bra-zucas.

Acontece que, algumas semanas antes, João Carlos Martins havia es-tado no programa do Faustão e mencionara seu concerto em Nova York. Assim, talvez pela primeira vez na Histó-ria, o Carnegie Hall estava abarrotado de pessoas que só haviam ouvido Beethoven no auto-falante do caminhão de gás e Mozart no comercial do desodorante Vinólia. Talvez o preço da entrada — dois dólares — tenha sido um

agravante.

Este fato era o suficiente para antecipar o óbvio — aplausos na hora errada, gente indo embora antes do fim, sessão de fotografia coletiva entre as poltronas, o que leva-

va as funcioná-rias do teatro ao desespero, na tentativa de se fazer vale a advertência enorme de “No Photos” pro-jetada sobre o palco —, mas nada nos

poderia preparar para o me-nos óbvio, como um celular tocando no meio da interpre-tação dum Piazzola, ou como toda a platéia se levantando, mão sobre o coração, cho-rando, enquanto João Carlos Martins regia um arranjo do hino nacional e alguém, nos balcões superiores, balançava uma bandeira do Brasil!

Os poucos não-brasileiros

na platéia observavam tudo estarrecidos, sem compreen-der bulhufas daquele carnaval.

Além disto, uma das principais atrações era uma rápida corrida às primeiras filas para a bajulação obriga-tória do global Marcos Frotas, que havia vindo prestigiar o concerto do amigo.

Numa única noite, os brasileiros haviam consegui-do quebrar todas as regras de etiqueta dum concerto de música erudita. E com grande estilo, pois não é todo dia que se pode usar o Carnegie Hall pra isto.

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“...a platéia dum concerto é uma mera espectadora, ela vai ao teatro para apreciar, não para fazer parte da apresentação.”

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7070 SAMIZDAT julho de 2008

Poesia

Carlos Alberto [email protected]

tEatro

Dirijo um teatro de máscaras.

Nele, sou o ator principal.

Meu palco é o além-eu.

Minha máscara é o plural imperfeito,

O incerto transmutável.

Se desejo-me poeta, sou tristeza.

Se almejo a tristeza, sou negligência.

Se busco a negligência, sou sorriso.

E se quero só um sorriso, eu garga-lho!

Oh, máscara da morte,

Que veste a máscara da vida,

Que veste a máscara do simples,

Que veste a do complexo,

Antes que me deixe nua a face

Com tuas incógnitas cores,

Permita-me encenar o grande final

Portando a mais bela,

Aquela que é incondicional e plena,

Absoluta e irreversível:

A máscara do amor.

Aliás,

Será uma máscara?

http://www.flickr.com/photos/afsilva/304414484/sizes/o/

dE

mÁSCaraS

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71www.samizdat-pt.blogspot.com

Frederico Galhardo

Flanei pelas ruas, buscando sei lá o quê.Nas vitrinas, consumo e cores.Nas calçadas, panfletos e bitucas de cigarro.Seres anônimos passaram por mim, semblantes sérios, passos apressados.Escravos das horas, servos do trabalho.Eu, um vagabundo nauseabundo os invejei,Sempre tão ocupados, sempre em cima da hora, sempre indo para algum lugar.Meu ócio me envergonhou e, num banco de praça, ocioso me envergonhei.Depois, em casa, deite-me, ronquei, babei, sonhei.Com um mundo desocupado sonhei, todos poetas e filósofosContempladores do universo, sem relógios nem rugas de preocupação.Apenas o tempo a passar sem que ninguém se preocupe com eleE a vida a ser vivida sem que por ela dessem conta.

Vagabundo vaguei pelas vielas do sonho,E lá encontrei sei lá o quê.

Nascido em Curitiba, cursou dois anos de jornalismo. Trabalha atualmente (e talvez para todo o sempre) numa livraria. Ocasio-nalmente, redige artigos para um jornal comunitário, para e-zines e para serem escondidos na gaveta.

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7272 SAMIZDAT julho de 2008

PoetrixVolmar Camargo [email protected]

LaBoratÓrio PoétiCo iii

morto vivo

Ninguém vivo,Morto, é ninguém.Morto, vivo.

reveillon

- Saúde e paz!(...e que um raio te parta,filho da puta!)

Fotografia

— Sai daí, pobrinho!Está estragandoA paisagem da Serra.

Sacrifício

Os dentes brancos rasgam a pele branca.

Brota abundante o vermelho.

Primeiro do homem, depois do cachorro.

Poesia

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73www.samizdat-pt.blogspot.com

Junho

Estúpido tenho sidoEm tudo perdidoEstudo eruditoÉs tudo.

AntesNa contramão.Outrora infantes,Ora entendem, ora não.

Grandes coisas feiasMiúdas e carasCaras e bocasOlho.

OlhoTodos sérios,Calados, sisudos.Adultos ministérios.

Professo o temporalProtesto, é claro!Preciso, claro,Natural.

PorqueÉ mês de Junho,E está ficando frioE ainda não é inverno.

Por que é mês de Junho?Por que é inverno?Por que é frio?Porque é.

Esquece.Levanta daí,Porque eu aindaTenho que arrumar tudo.

É São João!

PoESia CoNCrEta

Volmar Camargo Junior

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7474 SAMIZDAT julho de 2008

indecisão

Atenta reflexão

Alavanca que morre parada

Entre Sim e Não e Nada

José Espírito Santo

PoEt

riX

ilusão

Início e fim

Errado que te toca

Rabo de minhoca

Último vôo

Dura folha

Queda esquecida

Outono de vida

três

O Um

O Dois

O que vem depois

Contabilidade

Calculo que sonhes

Sonho não é cálculo

É salto!

http://www.flickr.com/photos/twose/301833984/sizes/o/

Poesia

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75www.samizdat-pt.blogspot.com

ii. Vida

Tempo é trem que segue adianteSem paradas, estações, descansos.Leva corpos, letras e sonhos.Sobrepõe lembranças ,Imagens quebradas e enganos.

Memória é ponto fugidio que escapa à reta,Transgressão que ilude a alma.Rompe a seqüência esperada dos impulsos,Subverte ponteiros e areias,Desperta espectros de sentimentos insepultos.

Saudade é ausência que deixa no íntimoPegadas de lugares, datas, pessoas.Momentos de dor ou plenitudeQue alongam o tempo,Contorcem horas, alteram mapas.Cede às cores o vazio monocromáticoDe um presente solitário.

Mas o amor...O amor não tem tempo.O amor não tem memória.O amor faz da saudade, alimento.

Marcia [email protected]

momENtoS

i. mortE

Por vezes me perguntoSe a falta que sintoÉ mesmo do que já não tenhoOu da parte de mimQue um dia supus eternaE agora não recuperoPor mais que tentePersiga, imagine, invente

Constato a pura perdaJá por mim viva assim não esperoFoi-se o tempoPerdeu-se sonhoTornou-se o que fuiSilente

Declaro-me a partir deste instanteCondenadaAo exílio de mimEternamente.

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7676 SAMIZDAT julho de 2008

Sites ou páginas pessoais:

Carlos Alberto Barros

http://desnome.blogspot.com

Giselle Natsu Sato

http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

Henry Alfred Bugalhowww.maosdevaca.com

José Espírito Santo

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Leo Borges

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=19246

Pedro Fariahttp://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Revista SAMIZDAT

www.samizdat-pt.blogspot.com

LiNKS dESta EdiÇÃo

http://www.sgeier.net/fractals/fractals/06/Robot%20Spider%20Web.jpg

Ligações

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77www.samizdat-pt.blogspot.com

Sven Geier

http://www.sgeier.net/fractals/

Volmar Camargo Juniorhttp://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Fotos e ilustrações:FlickrCapa: http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/Idéias: http://www.flickr.com/photos/caribb/1561876135/sizes/o/A Beca do Morto: http://www.flickr.com/photos/woylee/1137932049/sizes/o/Cenário: http://www.flickr.com/photos/premshree/2588299341/sizes/l/

Polítipo: Magritte http://healthisaright.files.wordpress.com/2008/03/1024magritte-sonofman.jpg

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O Medo do Livro http://www.flickr.com/photos/melanieburger/1451941259/sizes/o/

http://www.flickr.com/photos/memorymotel/375042645/sizes/l/

Lucas, O Menino Binário http://www.msgraphix.com/Wallpaper/Binary/Binary1024x768.jpg

http://techitright.com/img/binary.jpg

O Convite http://www.reuther.wayne.edu/faces/evicted.jpg

http://www.geh.org/fm/feininger/m197806060312.jpg

http://www.lordprice.co.uk/Merchant2/graphics/00000001/

referências:

Biblioteca Virtual - Literaturahttp://biblio.tempsite.ws/defaultz.asp?link=http://biblio.tempsite.ws/conteudo/AluizioAzevedo/politipo.htm

Flickr

http://www.flickr.com/

Marxists Internet Archive

http://www.marxists.org/

Wikipédia

http://www.wikipedia.org/

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Capítulos 1 http://www.flickr.com/photos/aromma/189378446/sizes/l/

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O Autor dos Passos http://www.flickr.com/photos/annalisa/74229400/sizes/o/

O País http://www.flickr.com/photos/missmareck/2193567123/sizes/l/

Caiu a Sombra http://www.flickr.com/photos/ableman/1884813924/sizes/o/

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O Templo dos Sorrisos http://www.flickr.com/photos/diogro/146406821/sizes/l/

O Bicho-Papão http://www.flickr.com/photos/romeo66/2431660788/sizes/o/

Diário dum Louco http://www.flickr.com/photos/hinaet/210499966/sizes/o/

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Hu Shi http://www.theeastisred.com/images/posters/PIC%2000180.jpg

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A Única Paz Possível é a Jacimeire http://www.flickr.com/photos/marianafaria/2438289318/sizes/l/

Por que escrevo? http://www.flickr.com/photos/josephrobertson/248621288/sizes/o/

Três Versos http://www.flickr.com/photos/pbouchard/2250272920/sizes/o/

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Patuscada no Carnegie Hall http://www.flickr.com/photos/stelling/65409814/sizes/l/

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http://www.flickr.com/photos/digitalink/24052775/sizes/o/

Teatro de Máscaras http://www.flickr.com/photos/afsilva/304414484/sizes/o/

Utopia http://www.flickr.com/photos/chrisjones/12913665/sizes/l/

Poesia Cnncreta http://www.flickr.com/photos/lhattori/599423291/sizes/l/

Poetrix http://www.flickr.com/photos/twose/301833984/sizes/o/

Dois Momentos http://www.flickr.com/photos/stevelevi/854897365/sizes/o/

Sobre os Autores http://www.labnews.co.uk/cms_images/Image/March_2/318239_4385web.gif

http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

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79www.samizdat-pt.blogspot.com

SOBRE OS AUTORES DA

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Carlos Alberto Barros

Paulistano, filho de no

rdestinos, desenhis-

ta desde sempre, artis

ta plástico formado,

escritor. Começou sua

vida profissional como

educador e, desde entã

o, já deixou seu ras-

tro por ONG’s, Escolas

e Centros Culturais,

através de trabalhos a

rtísticos e pedagógi-

cos – experiências que

têm forte influência

sobre seus escritos. A

tualmente, organiza

oficinas de ilustração

para crianças, estuda

pós-graduação em Histó

ria da Arte e escreve

para publicações na in

ternet.

[email protected]

om

http://desnome.blogspo

t.com

Alian MorozFormado em Matemática pela

UFPR,lecionou durante 20 anos. For-mado ainda pela Faculdade de Belas Artes do Paraná em Licenciatura em Desenho,trabalhou junto a Estúdios de pro-paganda e no setor editorial. Historiador e Filósofo amador, venceu em 2006 o Prèmio ‘Destaque cultural’ promovido pela secre-taria de Cultura de Curitiba com o livro ‘ Desvendando a História e os mitos Bíblicos’. Lançou em 2007 a primeira edição de ‘ O Manuscrito XXXII’,seu primeiro romance , pela Editora Corifeu. Poeta e músico nas horas vagas, têm como principais influências,Umberto Eco e Luis Fernando Veríssimo.

[email protected]

Henry Alfred Bugalho

É formado em Filosofia pela UFPR, com

ênfase em Estética. Especialista em Literatura e

História. Autor de quatro romances e de duas

coletâneas de contos.

Mora, atualmente, em Nova York, com sua

esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

[email protected]

www.maosdevaca.com

Giselle SatoGiselle se autodefine apenas como uma contadora de his-

tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo — cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e fala alguns idiomas.

Atualmente se diverte com a literatura, participando de concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.

[email protected]://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

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81www.samizdat-pt.blogspot.com

Marcia Szajnbok

Médica formada pela Facul-

dade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo, trabalha

como psiquiatra e psicanalista.

Apaixonada por literatura e lín-

guas estrangeiras, lê sempre que

pode e brinca de escrever de vez

em quando. Paulistana convicta,

vive desde sempre em São Paulo.

[email protected]

José Espírito SantoInformático com licenciatura e pós

graduação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, trabalha há largos anos em formação e consultoria, sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”. A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e “Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de Lisboa.

[email protected]://www.riodeescrita.blogspot.com/

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT em 2004, e desde então já morou em meia dúzia de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

[email protected]://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Pedro FariaEstuda Matemática na Univer-

sidade Estadual do Rio de Janeiro, músico amador e escritor quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.

[email protected]

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

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8282 SAMIZDAT julho de 2008

Também nesta edição,textos de

alian moroz

aluísio azevedo

Carlos alberto Barros

Giselle Natsu Sato

Henry alfred Bugalho

Hu Shi

Leo Borges

José Espírito Santo

marcia Szajnbok

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior